aproximaÇÕes entre futebol, polÍtica e estÉtica: … · no livro arte e ilusão, e. h. gombrich...
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APROXIMAÇÕES ENTRE FUTEBOL, POLÍTICA E ESTÉTICA: OS CARTUNS DO PASQUIM E A COPA DO MUNDO DE 1978
ERNESTO SOBOCINSKI MARCZAL∗
Em 1978, incontáveis aficionados pelo futebol ansiavam pela realização de mais uma
Copa do Mundo. Naquele ano o torneio quadrienal de seleções organizado pela FIFA1 se
desenrolou em território sul-americano, mais especificamente na Argentina. Contudo, o
evento não foi notabilizado somente pelo mérito da disputa esportiva, mas particularmente
pelos enlaces políticos que circundaram a competição no cenário de sua realização.
Tal como diversos vizinhos do cone-sul, o país sede da Copa convivia com um
governo militar arbitrário, notadamente violento, acusado por diversas organizações
internacionais de perseguir, aprisionar, torturar e executar milhares de cidadãos (NOVARO,
PALERMO, 2007). Desde 1976 o país platino encontrava-se sob o comando de uma junta
militar formada pelo almirante Emílio Eduardo Massera, o brigadeiro Orlando Ramón Agosti
e o general Jorge Rafael Videla, este último ocupando também a cadeira de presidente
(NOVARO, PALERMO, 2007). É precisamente no momento em que o autointitulado
Processo de Reorganização Nacional verificava o ápice de seu projeto repressor, com a
eliminação quase completa dos poucos focos de resistência minimamente organizados no
interior do país, que ocorreria a Copa do Mundo de futebol.
Embora a escolha da Argentina como sede da competição tenha ocorrido anos antes da
eclosão do golpe de estado (GILBERT, VITAGLIANO, 1998: p. 11; AGOSTINO, 2002: p.
174) que alçou os militares ao poder, o mundial fulgurava como uma oportunidade inédita
para exaltar o país no cenário internacional. Mais do que a eventual conquista caseira do
título, o reconhecimento de uma organização competente do evento, com forte apoio popular
e sem contestações internas flagrantes, serviria para demostrar a capacidade de realização
argentina sob a nova administração. Contando com a ampla cobertura midiática global, tanto
quanto propagandear o país, a concretização bem sucedida da Copa poderia contribuir para
demover, ao menos parcialmente, as acusações internacionais direcionadas aos excessos
autoritários do Processo (NOVARO, PALERMO, 2007: p. 202-208).
∗ Aluno do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Bolsista REUNI de Assistência ao Ensino. Integrante do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade – NEFS. 1 Federação Internacional de Futebol Associado.
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Paralelamente às possibilidades vislumbradas pelo regime, a realização do mundial em
território argentino proporcionava uma maior visibilidade para manifestações contestatórias,
especialmente no exterior, onde a temática encontrava novo fôlego junto aos veículos de
comunicação e ao público.
Sincronicamente às tensões verificadas na Argentina, o Brasil também perpassava por
um hiato autoritário em seu modelo administrativo republicano. Desde março de 1964
vigorava no país uma ditadura militar, cujo ápice repressivo havia alcançado seus limites no
início dos anos 1970. Porém, no instante em que os embates futebolísticos se desenrolavam
nos estádios argentinos, a conjuntura política vivenciada no Brasil já apresentava contornos
bastante distintos daqueles verificados no começo da década.
Naquele instante desdobrava-se o final da administração do general Ernesto Geisel e
discutia-se a definição de seu sucessor, o general João Batista Figueiredo. Diferentemente do
contexto vigente alguns anos antes, Geisel rascunhava o processo de abertura política, no qual
acenava com o recuo do aparato repressivo, a atenuação à ação censória e, principalmente,
com o debate em torno da famigerada lei da Anistia2 (QUEIROZ, 2008, p. 219). A ditadura
militar brasileira provava o aumento das críticas, sobretudo por parte dos órgãos de imprensa,
que reverberavam o eco público de movimentos contestatórios ao regime e experimentava a
possibilidade de adotar uma postura oposicionista mais evidente.
Neste contexto específico, as leituras sobre a competição no país vizinho não passaram
incólumes. A própria participação do selecionado brasileiro no mundial da Argentina, frente à
ampla significância cultural que o futebol desfrutava em ambos os países, fornecia o
embasamento para a formulação de leituras políticas críticas do(s) regime(s) através da
metáfora esportiva.
Ao transpor a perspectiva de análise para além de barreiras limítrofes como a esfera
esportiva ou o espaço de realização do torneio, percebe-se a extensa gama de possibilidades
analíticas e interpretativas de suas dimensões históricas, culturais e políticas. Com base nesta
percepção, este artigo busca analisar algumas das leituras políticas produzidas sobre o
2 Apesar de muito reivindicada, a lei da anistia só foi lançada em agosto de 1979. A conturbada medida permitia o retorno de exilados, libertava prisioneiros políticos e absolvia os crimes tanto de militantes da luta armada quanto de agentes do regime acusados de tortura (ALVES, 2005: p. 320-321).
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mundial naquele momento a partir da produção de um veículo de mídia impressa em especial,
o hebdomadário alternativo Pasquim.
Contudo, mesmo no interior do semanário, restringiremos nossas reflexões sobre uma
produção ainda mais específica: a arte gráfica do periódico, particularmente, os inúmeros
cartuns publicados no momento. Para os cartunistas do periódico o mundial de 1978, em suas
múltiplas correlações, não serviu apenas como motivo de inspiração artística, mas também se
transformou em ensejo para profusão de críticas políticas aos cenários brasileiro e argentino.
Os cartuns como objetos visuais intencionais
No livro Arte e Ilusão, E. H. Gombrich (1986) põe em questão o dilema da apreciação
da arte pictórica na crítica e na história da arte como imitação da natureza, ou, em outros
termos, como a forma de reprodução e captação do mundo visível. Valendo-se de um longo
exame da produção imagética e dos debates em torno da percepção e compreensão da arte, o
autor não só refuta prontamente esta percepção restritiva inicial, como defronta as nuances da
inteligibilidade da arte sob o viés da representação.
No decorrer do trabalho, o estudioso austríaco evidencia a diversidade de elementos
que envolvem tanto o processo criativo quanto a maneira pela qual as imagens são concebidas
e interpretadas, seja por seus artífices ou por seus observadores. Flertando com a psicologia,
Gombrich assinala que o processo de interpretação da arte, bem como a produção de um
efeito de ilusão, está associado à compreensão de códigos simbólicos específicos,
eminentemente conceituais, que permeiam a própria subjetividade dos indivíduos na
elaboração de um determinado entendimento do mundo visível (GOMBRICH, 1986).
Embora tais percepções possam parecer, sob um olhar descompromissado, distantes
dos cartuns veiculados no Pasquim, elas apresentam algumas considerações importantes para
a construção de uma análise admissível destas imagens. Afinal, os desenhos veiculados no
alternativo constituem, cada qual à sua maneira, um caminho de leitura do cenário verificado
por seus autores no período. Mesmo tratando-se de uma expressão simbólica em um contexto
circunscrito (GOMBRICH, 1999: p. 127), o cartum, tal como um quadro, também explora as
subjetividades inerentes à representação do mundo visível. Emaranha-se nos códigos
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presentes nas mentes de seus autores e intérpretes, interferindo na forma como estes
compreendem e dão forma aos dilemas à sua volta.
Analisar os cartuns produzidos sobre o mundial de 1978 não significa somente
debruçar-se sobre o conteúdo destes desenhos, focando naquilo que eles teriam a dizer sobre
este acontecimento histórico. Consiste também em mergulhar nos mecanismos únicos de
interpretação imagética concebidos, simultaneamente, na criação e formatação destes e nas
suas possibilidades de produção de sentido. Tanto quanto falar do mundial ou de suas
correlações sociais, políticas e culturais em si, os cartuns discursam também sobre as
maneiras com que os indivíduos construíram seu entendimento e conferiram sentido,
particular, a estes eventos.
Michael Baxandall (2006), ao debater os desafios metodológicos na elaboração da
crítica de arte, também evidencia como a exploração e percepção visual estão atreladas aos
conceitos articulados mentalmente pelo observador. Tais articulações interferem diretamente
no exercício de descrição do objeto artístico. A impressão construída é manifesta por meio da
linguagem que, de acordo com o autor, configura uma “ferramenta de generalizações”
(BAXANDALL, 2006: p. 34), visto que sua enunciação se estrutura a partir de conceitos já
constituídos mentalmente. Assim, a elaboração da explicação de um quadro apresenta
primeiro uma reflexão sobre aquilo que o intérprete pensa a respeito dele, ocupando-se apenas
em um segundo plano da explanação da imagem propriamente dita (BAXANDALL, 2006: p.
37). Nas palavras do pesquisador galês,
Quando queremos explicar um quadro, no sentido de revelar suas causas históricas,
o que de fato explicamos não é tanto o quadro em si quanto uma representação que
temos dele mediada por uma descrição parcialmente interpretativa.
[...] Uma descrição, por ser um ato de linguagem, é feita de palavras e conceitos.
Por isso, a descrição é menos uma representação do que se vê no quadro, do que
uma representação do que pensamos ter visto nele. Em outras palavras a descrição
é uma relação entre o quadro e os conceitos. (BAXANDALL, 2006: p. 43-44)
O apreço pela leitura de que a análise contida na descrição remete primeiramente às
representações e interpretações construídas a partir das impressões subjetivas do indivíduo
destaca, principalmente, a consideração implícita de que a produção artística não contém
somente a história do processo de trabalho do autor, mas engloba a experiência sensorial de
sua recepção pelo espectador. Afinal, como destaca o próprio Baxandall, é o efeito do quadro
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em si que desperta o interesse do observador (BAXANDALL, 2006: p. 38), de modo que não
podemos desconsiderar que o impacto desta imagem, o efeito de sentido que produz no
indivíduo, acaba por se tornar, mesmo não intencionalmente, o objeto primeiro das
considerações tecidas sobre o observado.
Embora Baxandall reporte-se principalmente aos quadros, os cartuns também passam
por um processo de análise semelhante em sua apreciação crítica. Como destaca Gombrich
(1999), o cartunista, ao tratar de eventos concernentes à história ou política, utiliza a
linguagem visual de modo simplificar a absorção de abstrações da linguagem, tornando-as
mais tangíveis ao observador (p. 128). Contudo, a participação do espectador se torna
essencial no processo de compreensão e interpretação da obra. Somente se o espectador
conhece os códigos simbólicos necessários ele se torna capaz de decifrar a imagem
apresentada sob o prisma pretendido pelo autor (GOMBRICH, 1986: p. 155). Este mesmo
processo permeia o entendimento do cartum, que só viabiliza seu pleno potencial
comunicativo na medida em que dialoga com o espectador atento à linguagem do periódico. A
interpretação dos cartuns, inclusive os presentes neste artigo, depende também do diálogo
estabelecido com o espectador que formula a análise. Somente se este intérprete reconhece os
códigos concernentes à produção, inclusive as relações que estabelece com o contexto ao qual
se refere e ao espaço em que encontra seu suporte, no caso, as páginas do semanário, se torna
possível à apreensão do sentido e a formulação de uma interpretação coerente. De uma forma
mais direta, só se torna plausível a investigação crítica dos cartuns em vista da Copa na
medida em que se consegue reconhecer as referências estabelecidas, diretamente ou não, ao
evento em questão.
Aproximando-se de outra parte do trabalho de Baxandall, os cartuns produzidos no
Pasquim podem ser entendidos como objetos intencionais. Isto é, não configuram apenas o
vestígio documental de uma atividade, mas o resultado final de uma ação artesanal e
intelectual (BAXANDALL, 2006: p. 47). Tal como outras produções artísticas, compõe um
artefato histórico que se apresenta como uma resolução concreta de um determinado problema
enfrentado por seu autor. Para Baxandall (2006), a compreensão deste objeto demanda o
esforço paralelo de reconstituição dos encargos e circunstâncias específicas que motivaram e
permearam a produção do objeto tal como é (p.48). Para ele, tanto o autor quanto o artefato
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produzido detêm um propósito, uma qualidade intencional que os caracteriza e que o
historiador da arte deve tentar apurar. Como o próprio estudioso definiu, “a intenção é a
peculiaridade que as coisas têm de se inclinar para o futuro” (BAXANDALL, 2006: p. 81).
Ainda assim, é importante destacar que por mais que a investigação se esforce ela não
é capaz de refazer a experiência interna do autor. Tal exercício de reconstrução estará sempre
limitado ao conceitualizável de acordo com os diferentes modos de perceber e sentir.
Elementos que só conseguem ser captados a partir de uma investigação relacional entre o
objeto, os fatores atrelados ao processo de produção e a definição de intenção
(BAXANDALL, 2006: p. 80-81).
É nesse sentido que exploramos, mesmo que brevemente algumas das peculiaridades
do Pasquim como periódico em seu contexto de circulação. De acordo com o estudo
elaborado por Braga (1991), em 1978 o Pasquim experimentava os momentos finais de sua
fase liberal3. Na classificação elaborada pelo autor, esta fase se estendeu entre abril de 1975,
momento em que o alternativo deixou de enfrentar a censura prévia em sua redação, até o
final de 1978, quando o alternativo intensifica seu combate político à ditadura diante das
pressões civis que permeiam a defesa pela liberdade de imprensa, a cessação do AI-5 e a
futura implantação da Lei da Anistia (BRAGA, 1991: p. 65-83).
Durante o período privilegiado neste artigo, estas reinvindicações democráticas
constituem temas recorrentes do semanário, espalhando-se pelos artigos, entrevistas e também
na arte visual em geral – cartuns, ilustrações fotografias, etc. A produção focando o futebol, a
seleção e o mundial da Argentina não ficou alheia a este panorama. Ao contrário, firmou um
diálogo direto e permanente com os debates políticos e sociais entranhados no semanário.
Nesta fase, o hebdomadário enriqueceu e diversificou consideravelmente seu quadro
de cartunistas. Além dos veteranos Henfil, Ziraldo, Jaguar, Claudius e Fortuna – personagens
quase umbilicalmente associados ao semanário no período –, o semanário abriu espaço para
arte de Edgar Vasques, Caulos, Agner, Manoel Vianna, Claudio Paiva, Mariano, Marco, Nani,
Duayer, entre muitos outros talentos (BRAGA, 1991: p. 71).
Tais artistas gráficos desfrutavam de liberdade autoral para escolher não só os assuntos
que iriam abordar, mas o ângulo e a postura crítica a serem adotados. O desenho não era
3 O pesquisador divide a trajetória do Pasquim em seis fases distintas distribuídas entre a fundação do jornal em junho de 1969 até dezembro de 1982, arco final de sua pesquisa.
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encomendado pelos editores. A única exigência, algo inerente à charge, era a sua atualidade
temática imediata. Como bem assinala Braga, o cartum configurava “uma espécie de editorial,
independente e personalizado” (BRAGA, 1991, p. 159).
Outro aspecto a ser destacado é a correlação entre a imagem do cartum e o diálogo
com o texto escrito, apresentado em múltiplas formas. Embora a arte gráfica desempenhasse
papel preponderante, não raramente a palavra escrita, fosse sob a forma de legendas ou
diálogos em balões, assumia papel fundamental na construção de sentido. Texto e desenho se
complementam na constituição da obra do cartunista do Pasquim.
Com base nestas considerações, na sequencia propomos um exercício de análise dos
cartuns sobre o mundial em perspectiva de seus aspectos políticos e estéticos.
Excertos de relação entre estética e política nos cartuns do Pasquim
Embora o futebol estivesse longe de figurar como um argumento estranho ao Pasquim
– desde os primeiros números em 1969 foi presença recorrentemente –, a proximidade de um
evento como a Copa do Mundo intensificou a atenção designada a modalidade esportiva nas
páginas do semanário. Nos meses de maio, junho e julho, instante em que se desenrolava a
competição, o futebol ganhou evidência singular, principalmente se consideradas as
preocupações políticas do alternativo naquele momento. Comparado com outras
circunstâncias, o enfoque sobre o mundial adquiriu representatividade quantitativa ainda
maior.
Diversos aspectos relacionados ao evento foram contemplados em artigos e
comentários, específicos ou não, de diferentes jornalistas e colaboradores. Os cartunistas não
deixariam por menos, de modo que o futebol foi abordado em tirinhas, charges e ilustrações
em vários exemplares do semanário. Por exemplo: só no breve intervalo recortado para este
texto, o futebol foi motivo destacado na arte da capa de quatro edições subsequentes,
respectivamente os números 465, 466, 467 e 468.
As temáticas sobre as quais os cartunistas investiram foram igualmente variadas. Os
cartuns pasquinianos tomaram o futebol sob diferentes prismas, ocupando-se da seleção
brasileira e seus integrantes, dos dirigentes da CBF e do mundial em si. Também se
debruçaram sobre a importância concedida ao futebol no país, atentando para sua estreita
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relação com a população como elemento de forte conotação cultural. Contudo, foram para as
possibilidades relacionais da temática futebolística, sobretudo como forma metafórica de
crítica política e social, que os cartuns demonstraram maior apreço.
Como artefato artístico intencional, contendo uma preocupação estética evidente, é,
principalmente, no esforço relacional que reside parte da força de manifestação política dos
cartuns do Pasquim. Neste ponto, nos aproximamos das considerações do pensador Jacques
Rancière. O estudioso argelino, ao longo de diversas obras, discute as aproximações entre
estética e política, como estão atreladas a percepção sensível dos indivíduos e como se
manifestam na esfera da arte.
Para Rancière (2011a) a política não consiste, primariamente, no exercício do poder ou
na luta pelo poder (p.33). Ela é antes a atividade que (re)configura constantemente os marcos
sensíveis, elaborados a partir de um espaço específico de experiências, no seio dos quais se
definem objetos de interesse comuns e dependentes de uma decisão comum dos sujeitos
(RANCIÈRE, 2011a: p. 33). Ela atua na permanente redefinição do espaço e tempo dos
indivíduos, de suas formas de ser, de ver e de dizer, de sua participação na vida pública ou
privada (RANCIÈRE, 2011b: p. 62). Esta ação perene de redistribuição dos lugares, das
identidades, do visível e do invisível, da palavra e do silêncio, constituiu aquilo que o autor
denomina como partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005), uma ação política fundamental.
La política consiste en reconfigurar el reparto de lo sensible que define lo común de
la comunidad, en introducir sujetos y objetos nuevos, en volver visible aquello que
no lo era y hacer que sean entendidos como hablantes aquellos que no lo eran
percibidos más que como animales ruidosos. (RANCIÈRE, 2011a: p. 35)
É precisamente no tocante à gestão das sensibilidades que arte e política se aproximam
de modo mais efetivo. O domínio destas relações sensoriais concerne a estética, pois é através
dos sentidos que tomamos contato com o sensível. No caso da produção artística gráfica, este
processo se desenvolve principalmente por meio da visualidade. Deste modo, a arte não se
torna política, em primeiro lugar, pelas mensagens e sentimentos busca transmitir sobre o
mundo. Tampouco a razão elementar consiste nas formas como representa a sociedade, seus
conflitos e as diferentes identidades. Ela se torna política, principalmente, pela maneira como
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lida com o sensível, pelo modo como opera um recorte material e simbólico, designando um
novo arranjo do espaço e do tempo (RANCIÈRE, 2011a: p. 33).
A partir desta percepção, buscamos, na sequencia da análise, pincelar alguns exemplos
em que estas duas dimensões de tratamento do sensível, a política e a estética, se fazem
presentes no material gráfico concebido e divulgado nas páginas do semanário. Neste ponto
optamos, dentro das várias possibilidades, em abordar algumas charges do semanário que se
direcionaram especificamente sobre a Copa como forma de criticar a ditadura argentina. De
modo geral, a maior parte dos cartuns problematizando o país sede se voltou para a
condenação do seu aparato autoritário e repressor, focando especialmente o desrespeito aos
direitos humanos, sempre que possível, reforçando o grande número de mortos atribuído a
ação repressiva da ditadura local.
Na edição 465 o semanário publicou um artigo de duas páginas referindo-se ao evento.
O título era sintomático: “No me tortures, por favor”4. Como um complemento, um pequeno
parêntese continha a seguinte explicação: “do pequeno vocabulário inglês-espanhol
distribuído ao turista da Inglaterra que vai a Copa, contendo frases básicas para um melhor
entendimento com os argentinos”. O artigo era assinado pelo jornalista brasileiro, erradicado
na França, Ricardo Acciaris, e contava com uma rápida introdução de Ziraldo.
A redação, bastante séria, discorria sobre as atividades do Comitê de Boicote ao
Mundial da Argentina – COBA – e as ações de sua campanha contra a realização da Copa sob
o governo militar5 (GILBERT, VITAGLIANO, 1998: p. 50; SEBRELLI, 2005: p. 191). No
decorrer do texto, o autor aborda diversos protestos direcionados à ditadura processista,
destaca as pressões exercidas sobre as autoridades argentinas por organizações no exterior e
repercute as acusações de violação aos direitos humanos, relatando as altas estimativas de
presos, mortos e desaparecidos.
4 No me tortures, por favor. Pasquim, Rio de Janeiro, n 465, p. 16-17, maio 1978. 5 O COBA (Comité de Boycott du Mundial de Football en Argentine) foi um dos movimento mais conhecidos na oposição perpetrada internacionalmente contra o Processo de Reorganização Nacional durante este período. Tomou forma na França, a partir da ideia lançada pelo pintor e escritor Marek Halter, em artigo publicado no jornal Le Monde. Não tardou para que a proposta ganhasse força, sendo rapidamente encampada por personagens e organizações de luta pelos direitos humanos e / ou engajados em perspectivas políticas de esquerda, espalhando-se logo por outros países europeus.
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Figura 1 – No me tortures, por favor.
Junto com o artigo escrito, a matéria veicula uma série de produções gráficas de
artistas e cartunistas europeus vinculados ao comitê, as quais, nas palavras de Ziraldo, iam
“contra este fantástico ópio do povo, cujo barato nós não conseguimos nos livrar”6. Alguns
trabalhos utilizaram-se dos símbolos do mundial, principalmente do emblema (figura 2) e do
mascote, Gauchito (figura 3). Os demais tomaram emprestadas outras referências ao mundo
esportivo para demarcar sua postura crítica (figura 4).
Figura 2 – No me tortures, por favor II
6 No me tortures, por favor. Pasquim, Rio de Janeiro, n 465, p. 16-17, maio 1978.
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Figura 3 – No me tortures, por favor III
O boicote foi tematizado, sobretudo nos cartazes, que se utilizaram da reconfiguração
do brasão da competição. A violência das prisões, tortura e execuções foi temática de outra
série de cartuns. As denúncias reportadas no artigo estão expostas através da visualidade dos
diferentes materiais gráficos. Mesmo sem figurarem como uma produção dos cartunistas da
casa ou de um de seus colaboradores regulares, a simples reprodução destas imagens pelo
semanário demonstra sua simpatia, e concordância com aquilo que expõe. Os idealizadores do
Pasquim acabam por exercer, de um modo intermediário, o papel de espectadores ao
selecionar e organizar as imagens de acordo com seus próprios filtros sensíveis, políticos e
estéticos, acabando por conceder-lhes uma interpretação, que se materializa na página do
jornal (figura 1). No caso destes desenhos, originalmente veiculados em outros espaços, é o
próprio reordenamento feito pelo alternativo, o local e cenário específico em que foram
publicados, que lhes remonta a um sentido político intencional.
As temáticas abordadas nesta matéria também se fizeram presentes em outros cartuns
em edições subsequentes do hebdomadário. Nas Dicas do número 468 duas charges
problematizavam a violência do governo militar argentino. Na página 7, por exemplo, Claudio
Paiva reproduziu um gesto peculiar no universo do futebol, o minuto de silêncio7 (figura 5).
Normalmente utilizado como forma de homenagem, o minuto de silêncio corresponde a um
gesto simbólico, onde o árbitro, os jogadores e demais presentes no estádio se manteriam
quietos e parados por um breve instante de tempo. O ato em questão corresponde a uma forma
de homenagem pública, comumente utilizada em solidariedade ao falecimento de algum
7 Dicas. Pasquim, Rio de Janeiro, n. 468, jun. 1978. p. 7.
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personagem, ligado ou não ao universo esportivo. Sem dúvida, esta ação curiosa detém uma
carga política e afetiva própria ainda pouco explorada, principalmente se tomarmos o futebol
como espetáculo publicamente partilhado.
Figura 4 – No me tortures, por favor
No desenho, o cartunista retratou os jogadores e o juiz no meio de campo, postados
com os braços para trás e os olhos cerrados, em uma postura solene. Aos seus pés estava a
bola, no centro do gramado.
O artista rompe a solenidade do ato através de uma fala, que remonta ao cochicho de
um dos jogadores: “a nossa sorte é que não vão dar um minuto de silêncio para cada um dos
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15 mil argentinos desaparecidos!”. O texto, claramente marcado pela ironia, exerce uma
função de sentido preponderante neste cartum. Além de tornar a situação representada mais
inidentificável ao citar textualmente o minuto de silêncio, tornando mais evidente a intenção
de representação visual impressa pelo autor na obra, é ele que atribui ao cartum o efeito de
sátira política. Não há uma referência visual notória que remeta à argentina, ao mundial ou
aos apregoados desaparecidos. Sem a fala o desenho poderia aludir uma partida de futebol
qualquer, sobretudo sob o olhar de um espectador descontextualizado.
Figura 5 – Minuto de silêncio.
O trabalho sobre a linguagem implícita ao minuto de silêncio também carrega uma
série de possiblidades sensíveis de interpretação do cartum. Ao demorarmos nosso olhar
sobre a obra, podemos, ingenuamente, questionar se haverá alguma menção a estes
desaparecidos durante o mundial. Se não há perspectiva de conceder um minuto de silêncio a
cada desaparecido, pode-se imaginar que exista a possibilidade de um único ato semelhante a
este ser direcionado a todos eles? Reconhecendo as referências ao regime, parece que uma
resposta restritiva se torna a opção mais óbvia.
Na página seguinte, de número 8, outro cartum abordaria a relação entre os abusos da
ditadura argentina e a Copa do Mundo. A charge de Marcon8 (figura 6) apresenta um desenho
subdividido em duas partes. Na primeira, acima, retrata a festa em um estádio de futebol logo
após o acontecimento de um gol. Concedendo uma maior identificação da localidade onde se
passava o jogo, várias bandeiras com o emblema da Copa de 1978 são agitadas ao fundo –
8 Dicas. Pasquim, Rio de Janeiro, n. 468, jun. 1978. p. 7.
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inclusive pelo próprio árbitro da partida. Na segunda parte, abaixo, estabelece um corte
horizontal do campo, mostrando uma série de corpos enterrados sob o gramado.
Diferenciando-se do exemplo anterior, a linguagem empregada é puramente visual. Não há
necessidade do texto para construção do sentido. Os códigos visuais empregados são
facilmente reconhecíveis. O contraste entre a situação apresentada nos dois planos é
prontamente exposta através da alternância entre uma tonalidade mais clara ou escura
predominante (GOMBRICH, 1999: p. 141-142).
Figura 6 – Marcon
Novamente os desaparecidos do regime argentino são tematizados, com a implicação
de suas prováveis mortes. Contudo para além da acusação e recriminação da violência
processista, o que salta aos olhos é o descaso ou desconhecimento dos personagens com
relação àquilo que se encontra sob os seus pés. Como se mostraria recorrente nas páginas do
alternativo9, estabelece-se uma crítica à alienação passional do futebol e seu uso político pela
ditadura argentina como forma de encobrir e desviar a atenção de seus crimes.
Embora tenhamos nos detido a uma rápida observação de alguns dos cartuns
veiculados nas páginas do Pasquim sobre a Copa de 1978, focalizando a crítica ao regime
ditatorial argentino, eles evidenciam alguns aspectos importantes quanto as possibilidades de
locução política a partir do futebol. Nos poucos exemplos examinados, tanto na produção
estrangeira atrelada ao COBA, quanto naqueles resultantes do trabalho dos cartunistas do
9 Devido as restrições de espaço inerentes a este texto, optou-se por não abordar outras produções gráficas do semanário tematizando o futebol e o mundial de 1978. Ainda assim, é interessante salientar que diversos cartuns problematizariam a popularidade do futebol no país; sua percepção com símbolo cultural singular e representativo da nacionalidade; e como metáfora para explorar o conturbado cenário sócio-político vivenciado no Brasil durante aquele momento.
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próprio semanário, a apreciação concedida ao futebol na figura do mundial se desenvolveu
como forma de crítica a sua apropriação política, exaltando a sua apreciação como forma de
alienação instrumentalizada pela ditadura processista. Assim, em um primeiro momento,
podemos incorrer na compreensão limítrofe desses cartuns, entendo-os somente como a
exasperação de uma determianda leitura sobre a modalidade esportiva já arraigada no espaço
social.
Nesses termos, uma consideração importante deve ser feita. Se o cartum, tal como um
quadro ou outra produção visual pictórica, possui a interpretação de sua intencionalidade
atrelada ao olhar do espectador, a simples discussão do futebol a partir de uma tematização
política lhe confere novos significados possíveis. Rancière argumenta que a política e a
estética são produtoras de dissenso, isto é, perturbam os diversos regimes de sensibilidade
comuns aos indivíduos (RANCIÈRE, 2011b, p. 61). Embora as imagens contenham uma
intenção ética por parte do semanário, sua apreciação também se move em sentido estético ao
problematizar o esporte sob o espectro de suas interpelações com o político. Assim, alterar as
formas de sensibilidade do futebol e da Copa do Mundo, ultrapassando as leituras esportivas
já estabelecidas, é também uma forma de politizá-lo para além da percepção restritiva da
alienação.
Ao se utilizar de símbolos próprios do universo esportivo / futebolístico, como o
mascote e o emblema do mundial, os cartunistas concedem-lhes novos significados, e
tencionam a percepção dos espectadores capazes de reconhece-los, de maneira a atribuir-lhes
novos e distintos sentidos. Deste modo, o tratamento direcionado sobre o futebol e a Copa da
Argentina, mesmo quando retratada como instrumento de manipulação política, assume novas
formas de percepção, principalmente uma tônica de crítica ao cenário político vigente no país
platino. Ao lidar com a experiência estética do espectador, o cartum transgrede as formas de
interpretação política previamente estabelecidas. O futebol, como elemento cultural de amplo
reconhecimento, se torna lugar de manifestações político-públicas diversas, inclusive na
oposição e questionamento do cenário político vigente.
Em consonância com tais constatações, a desinibição do periódico em denunciar a
ditadura argentina através do mundial enfatiza um aspecto importante em relação ao próprio
posicionamento do semanário dentro do contexto político brasileiro no momento. Embora
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ainda haja restrições flagrantes nas manifestações sobre a ditadura militar local, o mesmo não
parece se aplicar na abordagem do regime argentino. Paradoxalmente, a denúncia dos abusos
autoritários do Processo de Reorganização Nacional parecem desfrutar de relativa liberdade,
mesmo diante de suas similitudes, inclusive como instrumento crítico, com o quadro
brasileiro.
O debate político não esteve presente somente nos conteúdos das charges, quadrinhos
e ilustrações, mas nos diferentes caminhos que seus autores se valeram para alterar a
sensibilidade dos espectadores através do impacto visual. As múltiplas formas como os
cartuns se debruçaram sobre o mundial indicam a postura política de seus idealizadores,
tornando as suas obras em provocadoras de dissensos, justamente a superfície onde arte e
política tomam contato como formas de reconfigurar a experiência sensível comum
(RANCIÈRE, 2011b, p. 65), sobretudo do leitor / intérprete do semanário. A utilização de
variados artifícios por parte de cada cartunista remete a diferentes tentativas de construir
novas sensibilidades narrativas na percepção dos cartuns.
Deste modo, a despeito de lidar com distintas técnicas de confecção e formas diversas
representação das temáticas abordadas, o sentido de crítica política, seja ao futebol, a Copa do
Mundo, as ditaduras, ou a própria politização da sociedade, permanece como foco central das
imagens analisadas. Entretanto, a proeminência de uma intenção política inicial não garante
que o sentido desejado seja incorporado pelo leitor. Afinal, a própria abundância da
experiência estética permite a eclosão de percepções diversas por parte do espectador. O jogo
interpretativo faz parte do processo. Retomando as palavras de Rancière, “uma arte crítica é
uma arte que sabe que seu efeito político passa pela distância estética. Sabe que este efeito
não pode ser garantido, que suporta sempre uma parte indecidível” (RANCIÈRE, 2011b, p.
84). Sem dúvida, esta polissemia indeterminável se faz notar na arte gráfica do Pasquim sobre
a controversa Copa do Mundo de 1978.
Referências
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