aqui o tempo não tem vez - uerj

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C M Y K C M Y K 28 Brasília, sábado, 22 de novembro de 2003 CORREIO BRAZILIENSE O UNIVERSO NO QUINTAL Chegou a hora da verdade: fez as contas, decidiu pagar o cheque espe- cial, zerar o cartão de crédito e come- çar de novo. (O bom da vida é quando a gente pode conjugar o verbo começar de novo tantas vezes quantas forem necessárias. Começar de novo é um verbo provido de animus próprio. Há nele um sopro de renascença, um las- tro de futuro). Porém, não será de começar de no- vo nem de orçamento doméstico que esse pé de página vai tratar. Vou anco- rar meu modesto barquinho de pala- vras num tema que está angustiando larga fatia da classe média brasiliense — não vai sobrar dinheiro para a via- gem de férias. Tenho pegado carona em conversas de terceiros cujo grande drama é o de não se ter dinheiro para a passagem de avião menos ainda pra pousada na beira da praia. Desenhei então um plano de vôo para um mês de férias em Brasília. Me imaginei outra eu, uma não-eu indiferente a essa baboseira de patri- mônio da humanidade, de arquitetu- ra modernista, de cidade nascida de uma utopia. Me fiz de prisioneira de Brasília, por longos 30 dias detida en- tre as quatro paredes geográficas desse quadrilátero esquisito planta- do no centro do mapa. O que fazer? Marcar os dias na pare- de da cela, choramingar meu destino sofredor, maldizer a política brasileira e sua recorrente incompetência para nos tirar da lama? Nelson Rodrigues, na sua radicalida- de cortante, considerava o ato de viajar ‘‘a mais burra e empobrecedora das ex- periências humanas’’. E explicava: ‘‘O homem existe em função do vizinho, da rua, das esquinas que ele percorre, dos credores, dos fornecedores, paisa- gens. Quando o homem se separa dis- so, ele deixa de existir. Sou um homem da minha rua, do meu bairro, da mi- nha cidade, não viajo para fora do Bra- sil e nem para dentro do Brasil.’’ Era um homem singular esse Nelson Rodrigues. Ribeiro Couto preferiu uma versão mais lírica para o tema: ‘‘Todas as viagens são lindas, mesmo as que fi- zeres nas ruas do teu bairro. O encanto dependerá do teu estado de alma’’. Quem já passou as férias em Brasí- lia, teve ousadia de movimentos e lar- gueza de espírito descobriu que viajar não é tão-somente ir de um lugar a outro relativamente distante. O roteiro turístico básico de Brasília para brasilienses começa no Parque da Cidade, passa pelas duas trilhas da Água Mineral, a Capivara e a Cristal, e pode descambar para a Chapada Im- perial, área particular próxima ao Par- que Nacional, com rios cortando pare- dões de pedra que quase tocam o céu. O tour cruza o Ceasa nas quintas- feiras de manhã, com seu amontoado de flores cheirando a vontade de ser feliz. Joga sinuca no subsolo do Conic, vai à roda de samba do Calaf no sába- do à tarde, come tambaqui assado nas barraquinhas da Feira do Guará, põe uma cerveja no isopor e vai ver o pôr- do-sol na Praça do Cruzeiro (de na- morado, o céu fica mais esplendoro- samente avermelhado), assiste a uma das missas milagrosas da cidade (na catedral Rainha da Paz, na Nossa Se- nhora do Perpétuo Socorro) e pede a Deus que o mês não acabe nunca, porque há muito mais o que fazer, mas a página acaba de acabar. Crônica da Cidade CONCEIÇÃO FREITAS // [email protected] (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901) Aqui o tempo não tem vez A cidade de Goiás do século 21 em muito se parece com a Vila Boa do final do século 19. E, hoje, ela tem orgulho de sua história RENATO ALVES ENVIADO ESPECIAL G oiás (GO) - A cidade de Goiás, distante 135 qui- lômetros de Goiânia e 340 quilômetros de Bra- sília, não é muito dife- rente da época em que a Missão Cruls passou por lá, há 111 anos. Os prédios e ruas fotografadas por Hen- rique Morize, o autor das fotos do Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central, continuam de pé, praticamente intactos. Alguns apenas foram encobertos pelas ár- vores ou receberam nova pintura. Conhecer Goiás é entrar no uni- verso dos bandeirantes que desbra- varam o sertão brasileiro, dois sécu- los antes de Cruls e sua turma passa- rem por lá para demarcar o quadrilá- tero onde seria construída a nova ca- pital. Os carros da moderna comis- são de pesquisadores — que saiu do Rio de Janeiro no último dia 11 para refazer o percurso de Cruls — des- toam do cenário. As ruas estreitas, calçadas por pedras irregulares e cercadas por casas simples, de jane- lões, ainda predominam na cidade. Goiás cresceu graças à ocupação dos bandeirantes em busca do ouro que brotava nas margens do Rio Ver- melho, que corta a cidade. A corrida dos bandeirantes à região, em que teve o Arraial de Sant’Ana — funda- do por Bartolomeu Bueno da Silva (o Anhanguera) — como primeiro povoado, chamou a atenção dos portugueses. Em 1736, o Império fundou a Vila Boa de Goiás (que de- pois passou a se chamar apenas Goiás) para cobrar impostos, com- bater o contrabando de ouro e de- fender o território dos colonizado- res espanhóis. A região de Vila Boa era tão pro- missora que passou a ser sede da re- cém-fundada capitania de Minas de Goiás — posto que só perdeu com a inauguração de Goiânia, em 1933. Porém, o ouro durou pouco. Até a segunda metade do século 18, e os bandeirantes exploraram outras re- giões do país. A cidade entrou em decadência econômica. Atualmen- te, ela tem cerca de 30 mil habitan- tes, metade do que chegou a ter nos tempos áureos. Quando a Missão Cruls desembar- cou em Goiás, em 1892, com sua co- mitiva de mulas e cavalos, a cidade vi- via um período de plenitude. Livre da gana dos bandeirantes, o município passou a crescer em um ritmo mais lento, bem parecido com o mantido pelos moradores atuais. A praça em frente à igreja ainda é o ponto princi- pal da cidade, que dorme cedo e acor- da mais cedo ainda. A passagem da nova Missão Cruls por Goiás foi, até agora, a mais pres- tigiada de toda a expedição. O palá- cio Conde dos Arcos — residência oficial do governador na época em que a cidade era capital — ficou pe- queno para tanta gente. Meninos, es- tudantes, jovens, velhos, senhoras, autoridades, todos queriam saber o que fazia ali aquela gente diferente e quem era o tal Cruls. Mesmo com o calor intenso, os nativos não saíram do salão onde os especialistas res- pondiam as suas perguntas. ‘‘É muito legal saber que a nossa cidade foi im- portante na construção de Brasília’’, comentou Risoneide de Oliveira, 28 anos, estudante secundarista. Depois da enchente O título de Patrimônio Cultural da Humanidade, dado pela Unesco no final de 2001, reforçou na população local a consciência da importância da cidade de Goiás para o estado, o Brasil e o mundo. A paixão pelos pré- dios históricos é demonstrada por artistas de toda idade em quadros e esculturas, oferecidos aos visitantes nos hotéis e lojinhas de artesanato. Francisco Augusto, 14 anos, é um dos artistas locais que se inspiram no patrimônio para pintar telas e ce- râmicas. Com o dinheiro da venda de suas obras, ele compra material escolar, roupas e calçados. ‘‘Agora, estou juntando dinheiro para com- prar meu computador’’, conta o me- nino. Francisco é um dos 132 alunos da escola de arte Veiga Valle, criada há 30 anos pelo estado de Goiás. Ela é mantida pelos próprios alu- nos, de 8 a 80 anos, que compram o próprio material e doam parte das obras para a instituição. O estado paga apenas os professores. Apesar das difi- culdades, aumenta a cada dia o inte- resse da comunidade pela escola. ‘‘Pa- rece que a enchente do ano passado comoveu a cidade, que hoje luta, tam- bém por meio da arte, para preservar e divulgar nossa história’’, ressalta a pro- fessora e diretora da Veiga Valle, Regi- na Célia Damaceno, 50 anos. Na virada de 2001 para 2002, Goiás sofreu uma terrível enchente. As das chuvas desceram pelas matas devas- tadas da serra que circunda a cidade para o Rio Vermelho. Com o leito ocupado no perímetro urbano por casas construídas de forma irregular, o transbordamento foi inevitável. A parte mais rica, histórica e cultural- mente, acabou debaixo d’água, co- mo a casa onde morava a poeta Cora Coralina. Quase dois anos depois da enchente, a cidade conseguiu recu- perar quase todo o seu patrimônio e retomar sua vida normal. O REPÓRTER RENATO ALVES E O FOTÓGRAFO WANDERLEI POZZEMBOM VIAJAM DE DOBLÒ ADVENTURE, CEDIDO PELA FIAT AUTOMÓVEIS ARTISTA DA RUA FRANCISCO AUGUSTO REPRODUZ EM SUAS TELAS O PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA CIDADE: DINHEIRO PARA COMPRAR UM COMPUTADOR Wanderlei Pozzembom CIDADES A-28 A-28

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28 • Brasília, sábado, 22 de novembro de 2003 • CORREIO BRAZILIENSE

O UNIVERSONO QUINTAL

Chegou a hora da verdade: fez ascontas, decidiu pagar o cheque espe-cial, zerar o cartão de crédito e come-çar de novo. (O bom da vida é quando agente pode conjugar o verbo começarde novo tantas vezes quantas foremnecessárias. Começar de novo é umverbo provido de animus próprio. Hánele um sopro de renascença, um las-tro de futuro).

Porém, não será de começar de no-vo nem de orçamento doméstico queesse pé de página vai tratar. Vou anco-rar meu modesto barquinho de pala-

vras num tema que está angustiandolarga fatia da classe média brasiliense— não vai sobrar dinheiro para a via-gem de férias. Tenho pegado caronaem conversas de terceiros cujo grandedrama é o de não se ter dinheiro paraa passagem de avião menos ainda prapousada na beira da praia.

Desenhei então um plano de vôopara um mês de férias em Brasília.Me imaginei outra eu, uma não-euindiferente a essa baboseira de patri-mônio da humanidade, de arquitetu-ra modernista, de cidade nascida deuma utopia. Me fiz de prisioneira deBrasília, por longos 30 dias detida en-tre as quatro paredes geográficasdesse quadrilátero esquisito planta-

do no centro do mapa.O que fazer? Marcar os dias na pare-

de da cela, choramingar meu destinosofredor, maldizer a política brasileirae sua recorrente incompetência paranos tirar da lama?

Nelson Rodrigues, na sua radicalida-de cortante, considerava o ato de viajar‘‘a mais burra e empobrecedora das ex-periências humanas’’. E explicava: ‘‘Ohomem existe em função do vizinho,da rua, das esquinas que ele percorre,dos credores, dos fornecedores, paisa-gens. Quando o homem se separa dis-so, ele deixa de existir. Sou um homemda minha rua, do meu bairro, da mi-nha cidade, não viajo para fora do Bra-sil e nem para dentro do Brasil.’’

Era um homem singular esse NelsonRodrigues. Ribeiro Couto preferiu umaversão mais lírica para o tema: ‘‘Todasas viagens são lindas, mesmo as que fi-zeres nas ruas do teu bairro. O encantodependerá do teu estado de alma’’.

Quem já passou as férias em Brasí-lia, teve ousadia de movimentos e lar-gueza de espírito descobriu que viajarnão é tão-somente ir de um lugar aoutro relativamente distante.

O roteiro turístico básico de Brasíliapara brasilienses começa no Parque daCidade, passa pelas duas trilhas daÁgua Mineral, a Capivara e a Cristal, epode descambar para a Chapada Im-perial, área particular próxima ao Par-que Nacional, com rios cortando pare-

dões de pedra que quase tocam o céu.O tour cruza o Ceasa nas quintas-

feiras de manhã, com seu amontoadode flores cheirando a vontade de serfeliz. Joga sinuca no subsolo do Conic,vai à roda de samba do Calaf no sába-do à tarde, come tambaqui assado nasbarraquinhas da Feira do Guará, põeuma cerveja no isopor e vai ver o pôr-do-sol na Praça do Cruzeiro (de na-morado, o céu fica mais esplendoro-samente avermelhado), assiste a umadas missas milagrosas da cidade (nacatedral Rainha da Paz, na Nossa Se-nhora do Perpétuo Socorro) e pede aDeus que o mês não acabe nunca,porque há muito mais o que fazer,mas a página acaba de acabar.

Crônica da Cidade CONCEIÇÃO FREITAS // [email protected] (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Aqui o temponão tem vezA cidade de Goiás do século 21 em muito se parece com a Vila Boado final do século 19. E, hoje, ela tem orgulho de sua história

RENATO ALVES ENVIADO ESPECIAL

Goiás (GO) - A cidade deGoiás, distante 135 qui-lômetros de Goiânia e340 quilômetros de Bra-sília, não é muito dife-

rente da época em que a MissãoCruls passou por lá, há 111 anos. Osprédios e ruas fotografadas por Hen-rique Morize, o autor das fotos doRelatório da Comissão Exploradorado Planalto Central, continuam depé, praticamente intactos. Algunsapenas foram encobertos pelas ár-vores ou receberam nova pintura.

Conhecer Goiás é entrar no uni-verso dos bandeirantes que desbra-varam o sertão brasileiro, dois sécu-los antes de Cruls e sua turma passa-rem por lá para demarcar o quadrilá-tero onde seria construída a nova ca-pital. Os carros da moderna comis-são de pesquisadores — que saiu doRio de Janeiro no último dia 11 pararefazer o percurso de Cruls — des-toam do cenário. As ruas estreitas,calçadas por pedras irregulares ecercadas por casas simples, de jane-lões, ainda predominam na cidade.

Goiás cresceu graças à ocupaçãodos bandeirantes em busca do ouroque brotava nas margens do Rio Ver-melho, que corta a cidade. A corridados bandeirantes à região, em queteve o Arraial de Sant’Ana — funda-do por Bartolomeu Bueno da Silva(o Anhanguera) — como primeiropovoado, chamou a atenção dosportugueses. Em 1736, o Impériofundou a Vila Boa de Goiás (que de-pois passou a se chamar apenasGoiás) para cobrar impostos, com-bater o contrabando de ouro e de-fender o território dos colonizado-res espanhóis.

A região de Vila Boa era tão pro-missora que passou a ser sede da re-cém-fundada capitania de Minas deGoiás — posto que só perdeu com ainauguração de Goiânia, em 1933.Porém, o ouro durou pouco. Até asegunda metade do século 18, e osbandeirantes exploraram outras re-giões do país. A cidade entrou emdecadência econômica. Atualmen-te, ela tem cerca de 30 mil habitan-tes, metade do que chegou a ter nostempos áureos.

Quando a Missão Cruls desembar-cou em Goiás, em 1892, com sua co-mitiva de mulas e cavalos, a cidade vi-via um período de plenitude. Livre dagana dos bandeirantes, o municípiopassou a crescer em um ritmo mais

lento, bem parecido com o mantidopelos moradores atuais. A praça emfrente à igreja ainda é o ponto princi-pal da cidade, que dorme cedo e acor-

da mais cedo ainda. A passagem da nova Missão Cruls

por Goiás foi, até agora, a mais pres-tigiada de toda a expedição. O palá-

cio Conde dos Arcos — residênciaoficial do governador na época emque a cidade era capital — ficou pe-queno para tanta gente. Meninos, es-

tudantes, jovens, velhos, senhoras,autoridades, todos queriam saber oque fazia ali aquela gente diferente equem era o tal Cruls. Mesmo com ocalor intenso, os nativos não saíramdo salão onde os especialistas res-pondiam as suas perguntas. ‘‘É muitolegal saber que a nossa cidade foi im-portante na construção de Brasília’’,comentou Risoneide de Oliveira, 28anos, estudante secundarista.

Depois da enchenteO título de Patrimônio Cultural daHumanidade, dado pela Unesco nofinal de 2001, reforçou na populaçãolocal a consciência da importânciada cidade de Goiás para o estado, oBrasil e o mundo. A paixão pelos pré-dios históricos é demonstrada porartistas de toda idade em quadros eesculturas, oferecidos aos visitantesnos hotéis e lojinhas de artesanato.

Francisco Augusto, 14 anos, é umdos artistas locais que se inspiramno patrimônio para pintar telas e ce-râmicas. Com o dinheiro da vendade suas obras, ele compra materialescolar, roupas e calçados. ‘‘Agora,estou juntando dinheiro para com-prar meu computador’’, conta o me-nino. Francisco é um dos 132 alunosda escola de arte Veiga Valle, criadahá 30 anos pelo estado de Goiás.

Ela é mantida pelos próprios alu-nos, de 8 a 80 anos, que compram opróprio material e doam parte dasobras para a instituição. O estado pagaapenas os professores. Apesar das difi-culdades, aumenta a cada dia o inte-resse da comunidade pela escola. ‘‘Pa-rece que a enchente do ano passadocomoveu a cidade, que hoje luta, tam-bém por meio da arte, para preservar edivulgar nossa história’’, ressalta a pro-fessora e diretora da Veiga Valle, Regi-na Célia Damaceno, 50 anos.

Na virada de 2001 para 2002, Goiássofreu uma terrível enchente. As daschuvas desceram pelas matas devas-tadas da serra que circunda a cidadepara o Rio Vermelho. Com o leitoocupado no perímetro urbano porcasas construídas de forma irregular,o transbordamento foi inevitável. Aparte mais rica, histórica e cultural-mente, acabou debaixo d’água, co-mo a casa onde morava a poeta CoraCoralina. Quase dois anos depois daenchente, a cidade conseguiu recu-perar quase todo o seu patrimônio eretomar sua vida normal.

O REPÓRTER RENATO ALVES E O FOTÓGRAFOWANDERLEI POZZEMBOM VIAJAM DE DOBLÒADVENTURE, CEDIDO PELA FIAT AUTOMÓVEIS

ARTISTA DA RUA FRANCISCO AUGUSTO REPRODUZ EM SUAS TELAS O PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA CIDADE: DINHEIRO PARA COMPRAR UM COMPUTADOR

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