aquilino ribeiro: "a quem se proponha ler a arca de noé, iii classe"
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A QUEM SE PROPONHA LER A ARCA DE NOÉ, III CLASSE ─ Aquilino Ribeiro
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«A QUEM SE PROPONHA LER
A ARCA DE NOÉ, III CLASSE - AQUILINO RIBEIRO
LEITURAS PARA PEQUENOS E GRANDES
As narrativas de que compõe a Arca de Noé III Classe foram escritas ─
especialmente para as crianças. Mas também as podem ler as pessoas crescidas.
Foi preocupação do autor não enjeitar nenhum dos seus leitores, prendendo-os pelo
pitoresco, a linguagem simples mas portuguesa de lei, a interpretação lírica e
dramática da vida animal. Da mesma maneira que o Romance da Raposa, esta
obrinha pretende divertir uns e interessar outros. E o objectivo não nos pareceu
impossível de atingir. Há planos em que, a despeito das distâncias grandes e
pequenos se encontram. E um deles é este dum mundo primitivo e descuidado em
que cada bicho representa o papel que lhe está no carácter ou é próprio, fala a
nossa língua, reveste a figuração que lhe empresta o espírito de acordo com os
hábitos e tendências que observamos neles. É guinhol, sim, mas com boa lógica
humana. Os actores, sejam eles quais forem, não se movem por arbitrários cordéis.
Nisto nos apartamos de mestre Esopo, de veneranda memória, e dos contistas da
velha escola. Por exemplo: se um rato se representasse no nosso palco seria no
sentido que mais lhe é peculiar: a sevandijice. Se fosse mosca, seria igualmente no
que para nós, homens, a mosca tem de mais sensível, a sua imunda e importuna
vivacidade. Em correspondência, um cão desempenhará papéis consentâneos com
a sua índole, amigo, fiel, bravo, abnegado e perspicaz; o macaco desentranhar-se-á
em momices e partes gagas.
DIFERENCIAÇÃO IMPOSSÍVEL
Como estes contos se destinam especialmente às crianças, poderá
perguntar-se para que idade. Para todas – respondemos nós. Em verdade, nada
mais extenso, psicologicamente mais extenso, nem mais variável do que a idade
infantil. É tudo a multiplicar. Do mesmo modo que as casinhas de areia se
transformam em castelos de mágica, os dias são longos sonhos e os anos séculos.
Começa quando essa manhã de rosas? Aos quatro, cinco anos, e quando acaba? À
roda dos onze, doze anos, e não acaba nunca no que a alma guarda em si do
paraíso antes da queda dos nossos primeiros pais. Por isso mesmo as narrativas da
Arca de Noé- III classe foram escritas não apenas para as crianças lerem, mas
para lhes serem lidas. Da tarefa se hão-de encarregar os seus e é a eles, por
consequência, que se dirigem as explicações seguintes: ao compor esta obrinha
não era possível fazê-la tendo em vista uma escala literária em harmonia com o
grau de desenvolvimento mental ou factor cronológico da criança. Seria agarrar
sombras. O seguro, único seguro, foi estabelecer dentro desta obra uma ordem
crescente de dificuldades. Assim, o primeiro episódio é incomparavelmente mais
fácil de ler que o derradeiro, sem que por isso seja menos empolgante. Lêem-no
sem dificuldade os nossos homenzinhos a partir dos oito anos, com leves emperros
os de sete. Para menor idade, quem os houver de lhos ler parafraseie aqui e além;
elimine uma vez ou outra certas palavras ou até frases. A tarefa nada tem de
complicado. Suponhamos este período, o primeiro do episódio MESTRE GRILO
CANTAVA E A GIGANTE DORMIA: “Era uma abóbora menina, muito redondinha, que
saíra duma flor tão grande e tão linda que de longe parecia pela forma um cálice de
oiro, o cálice por onde os senhores bispos costumam dizer missa, e pelo brilho
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estrela caída do céu.” Poderá simplifica-se assim: “Era uma vez uma abóbora, das
que chamam meninas porque são redondas, redondinhas, quase umas bolas. Essa
abóbora nasceu, como sucede a todos os frutos, da flor que deitou a aboboreira,
flor amarela, a puxar para laranja, qua luzia ao longe como o oiro.” E ainda seria
possível aproximar mais da imagem: “flor que parecia de longe estrelinha ou vaso
de oiro.”
SUBSTITUIÇÃO DE PALAVRAS MENOS COMUNS
POR OUTRAS DO USO CORRENTE
O leitor da cidade não é o mesmo da aldeia. O da cidade é mias sabido no
que diz respeito à “vida civilizada”; o da aldeia no que diz respeito “à vida natural”.
Aquele nunca viu uma giesta, ou se viu, não fez reparo. Provavelmente não sabe o
que é a lura de um coelho. Este nunca viu um esquilo, a não ser pintado e deve
fazer uma ideia muito imperfeita do que seja um orgão da Sé, um contador de
água, para não ir mais longe. O escritor não pode atender a estas assimetrias,
chamemos-lhes mentais.
Quem for ler estes contos às crianças terá de fazer uma pequena operação,
sempre que ao meio local não corresponda o vocabulário empregado: em Lisboa,
onde encontrar lura do coelho leia casa do coelho, onde encontrar dançar o
sarambeque leia dançar uma valsa ou simplesmente dançar, que para o efeito dá o
mesmo; onde lande, bolota. Não custa nada, mas se quiserem poderão aproveitar
para dar aos pequenos uma breve lição de linguagem.
É preciso não levar longe a guerra contra o termo menos vulgar. Este pode
converter-se em tema de curiosidade; pode penetrar-se a sua significação nada
mais que pelo sentido; acabará, uma vez percebido, por fazer parte do cabedal de
conhecimentos. Desta forma, pela literatura recreativa, se vai ilustrando o espírito
da criança.
Numa espécie de introdução ao primeiro episódio fez-se zoologia
antediluviana. Zoologia da má, à margem da Bíblia, pretexto, mormente, para os
pais contarem aos filhos a grande e extraordinária aventura do homem à superfície
da Terra. Mas os meninos deixem essa página e sigam o grilo musiquinho, o coelho
que perdeu o rabo, Joli, cão francês, o filho da Felícia, o homem como não havia
segundo no mundo com mais sorte, o jumento ao qual por incompreensível
mistério da mãe-natureza cresceu rabo tão grande que poderia servir para
espanejar uma cidade como Tui; e o que é preciso é acharem-lhe graça.
A EXPRESSÃO VERBAL OU FRASE MENOS INTELIGÍVEL
Para a idade em que a expressão verbal é fraquinha e o léxico restrito, não
admira que a leitura tenha os seus escolhos. Na Arca de Noé – III classe
encontram-se formas vocabulares menos corriqueiras, como estas: sinal de
ponderação, em amena filosofia, etc. O circunlóquio levaria longe. Não há dúvida
que em vez de sinal de ponderação poderíamos ter escrito: prova de que pensa
com acerto, ou espremendo mais o coalho: deu mostras de que pensa no que faz.
Valeria a pena? Entre locução consagrada, embora com o seu complexo, e a
definição, vamos por aquela. Um ou outro dos leitores poderá tropeçar em
semelhantes saltos. Mas se não os vencer por impulso próprio, lá estão os pais para
lhes dar a mão e não é necessário que tenham frequentado universidades.
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O TERMO PLEBEU E O NEOLOGISMO
Também nesta obra surge, posto que de raro em raro, uma daquelas
palavras que esperam à porta das academias para que as deixem entrar, quando
não vão para o lazareto da língua. Uma linguagem viril e colorida, em aparência
espontânea, como as ervas daninhas, vai inçando os idiomas europeus. Entra nas
escolas pelo ginásio e pelo recreio e invade a classe. Na chamada boa sociedade é
escalracho contra a voga do qual ninguém pretende lutar. Não é cómodo fugir-lhe e
também nestes contos, em que sob o ar de fábula se intentou vincar certos
aspectos da vida, não os evitámos de todo para não faltar ao respeito à realidade
no que tem de mais actual e corrente. O macaco trocista diz para o elefante que
não era para graças: estende a mangueira… Ouvimo-lo a um menino no Jardim
Zoológico. Na narrativa do coelhinho pardo, os caçapos sem rabo eram muito giros.
A palavra, qua anda nos lábios dos miúdos, descerra uma graça buliçosa que lhe
há-de valer pergaminhos de lei. O cão que guarda a horta é pató de todo. Sendo
bom, simplório, resmungão e forte, que outra coisa podia ser senão pató?
MORALIZAR, SIM, MAS COM ARTE
Além da censura ao léxico, há que aplicá-la neste género de literatura ao
espírito do que se escreve. Impôs-se acima de tudo ser humano, lógico, formador
de consciência sem o dar a perceber. A liçãozinha de moral tem sempre cabimento,
mas com discreta parcimónia. Conta António Sérgio que numa nursery certa
pintura representava os cristãos comidos pelas feras.
─ Coitado daquele leãozinho, que não tem um cristão para comer –
exclamou um petiz ao notar que uma das feras se mostrava alheia ao banquete.
NARRATIVAS DE QUE SE COMPÕE
A ARCA DE NOÉ –III CLASSE
São as seguintes as narrativas deste livro, dispostas segundo uma ordem de
dificuldade crescente:
1º Mestre grilo cantava e a giganta dormia.
2º História do macaco trocista e do elefante que não era para graças.
3º História do colho pardinho que ficou sem rabo.
4º História de "Joli", cão francês, que boa caçada fez.
5º O filho da Felícia ou a inocência recompensada.
6º História do burro com rabo de légua e meia.
AQUILINO RIBEIRO
in ARCA DE NOÉ III CLASSE
(Bertrand, 1989)