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Antnio Braz Teixeira
A Razo Jurdica IApontamentos
deFilosofia do Direito e Metodologia Jurdica II
Faculdade de Direitoda
Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias
2010/2011
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NDICE
CAPTULO I DIREITO, LINGUAGEM E RAZO
1. Direito e linguagem ............................................................................................ 12. Papel da razo no Direito .................................................................................. 2
3. As formas da racionalidade jurdica .................................................................. 3
CAPTULO II A LGICA JURDICA
1 Conceito e mbito da Lgica Jurdica:
4. Lgica apofntica e lgica normativa ou dentica ............................................. 6
5. Lgica normativa e lgica jurdica ..................................................................... 8
6. mbito da lgica jurdica .................................................................................... 8 2 O juzo jurdico-normativo:
7. Estrutura lgica da norma jurdica .................................................................... 9
8. Natureza do juzo jurdico-normativo .............................................................. 11
9. Classificaes dos juzos normativos ............................................................. 13
3 Os conceitos jurdicos:
10. Noo e especificidade dos conceitos jurdicos .............................................. 15
11. Classificaes dos conceitos jurdicos ............................................................ 17
12. Conceitos jurdicos fundamentais ................................................................... 19
CAPTULO III A HERMENUTICA JURDICA
1 A hermenutica:
13. A hermenutica como primeiro momento da racionalidade jurdica prtica .... 29
14. Conceito de hermenutica .............................................................................. 30
15. Origem e percurso histrico da hermenutica ................................................ 33
16. A teoria hermenutica:
16.1. Friedrich Shleiermacher ........................................................................... 35
16.2. Wilhelm Dilthey ......................................................................................... 38
16.3. Emilio Betti ................................................................................................ 43
17. A filosofia hermenutica:
17.1. Martin Heidegger ...................................................................................... 46
17.2. Hans-Georg Gadamer .............................................................................. 51
17.3. Paul Ricur.............................................................................................. 57
18. A hermenutica crtica:
18.1. KarlOtto Apel .......................................................................................... 62
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18.2. Jrgen Habermas ...................................................................................... 65
2 A hermenutica jurdica:
19. Da hermenutica geral hermenutica jurdica .............................................. 69
20. A hermenutica jurdica do sc. XIX:
20.1. A Escola da Exegese ............................................................................... 70
20.2. A Escola Histrica do Direito (von Savigny) ............................................. 72
20.3. A jurisrisprudncia dos conceitos ............................................................. 78
20.4. O positivismo jurdico ............................................................................... 82
21. A reaco anti-conceptualista:
21.1. O Movimento do Direito Livre ................................................................... 84
21.2. A jurisprudncia dos interesses ................................................................ 87
22. A hermenutica jurdica contempornea:
22.1. A hermenutica anaItico-descritiva (Alf Ross) ......................................... 90
22.2. A interpretaco jurdica como anlise da linguagem (Norberto Bobbio) .... 94
22.3. A Igica do razovel (Recasns Siches) .................................................. 96
22.4. A hermenutica jurdica estrutural (Miguel Reale) .................................. 100
22.5. A interpretao teleolgica (Karl Engisch) .............................................. 103
22.6. A hermenutica jurdica (Karl Larenz) .................................................... 105
22.7. A interpretao jurdica construtiva (Ronald Dworkin) ............................ 110
22.8. Aulis Aarnio: interpretao, justificao e aceitabilidade social .............. 113
23. Interpretao, aplicao e argumentao ..................................................... 116
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CAPTULO I
Direito, Linguagem E Razo
1. Direito e linguagem
Como objecto ou realidade cultural, como criao espiritual do homem
destinada a conferir efectividade a determinados valores, o Direito compartilha com
a filosofia e com a literatura o exprimir-se em palavras, o ter na linguagem o seu
elemento constitutivo essencial, distinguindo-se, contudo, de uma e de outra pelo
modo ou funo com que, nele, a linguagem usada, pois, enquanto, na primeira, o
seu uso tem uma funo descritiva, para dar a conhecer a realidade ou dizer a
verdade do ser, e, na segunda, a linguagem tem uma funo expressiva, visando
comunicar emoes, no Direito, como na moral, no mandamento religioso ou nos
usos sociais, a funo da linguagem de carcterprescritivo, destinada a ordenar a
conduta do homem nas suas relaes intersubjectivas, pelo que se objectiva em
normas, que constituem uma ordem normativa1.
Do Direito pode dizer-se, por isso, ser todo ele linguagem, j que nada h nele
que possa conceber-se fora da linguagem. Com efeito, em todos os seus momentos,
desde a sua formulao normativa at sua concretizao individualizadora na
deciso judicial, no acto administrativo ou no contrato, desde a sua interpretao at
argumentao forense, ou no seu tratamento dogmtico pela cincia jurdica, o
Direito consiste sempre e necessariamente num discurso lingustico distinto da
linguagem corrente ou da linguagem social e intersubjectiva e dos seus respectivos
cdigos lingusticos, discurso esse que se tece, se articula e desenvolve com base
em termos e proposies que exprimem conceitos e princpios prprios, fundados e
constitudos a partir de uma modalidade especifica de experincia histrica e social,de natureza prtico-axiolgica, vivificada e actualizada, dinmica e criadoramente,
pelas ideias, crenas e vivncias de cada poca e de cada comunidade humana2.
1Cfr. Norberto Bobbio, Teoria della norma juridica, Turim, 1958, pp. 82-86 e A. Braz Teixeira, Sentido e valordo Direito, 3ed., Lisboa, 2006, pp.149-159.
2
Cfr. H. A. Schwarz-Liebermann von Wahlendor, Politigue, Droit, Raison, Paris, 1982, pp.163-172, ArthurKaufmann, Filosofia do Direito, trad. port. Antnio Ulisses Corts, Lisboa, 2004, pp.161-197 e Fritjof Haft,Direito e linguagem, em A. Kaufmann e W. Hassemberger, Introduo Filosofia do Direito e teoria doDireito Contempornea, trad. port. Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira, Lisboa, 2002, pp. 303-326.
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2. Papel da razo no Direito
I. Como notou Norberto Bobbio3, a publicao, quase simultnea, de Sobre o
Direito e a Justica, de Alf Ross (1958), da 2 edio, consideravelmente ampliada e
revista, da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen (1960) e de O conceito de Direito,de Herbert Hart (1961), representou um novo folgo ou um momentneo
renascimento do positivismo jurdico, com a sua implcita reduo da ontologia do
Direito aos quadros da lgica formal e a sua viso eminentemente imperativista,
voluntarista e legalista do mundo jurdico, movimento secundado pelo prprio Bobbio
(Teoria da norma jurdica, 1958 e Teoria do ordenamento jurdico, 1960) e
prosseguido, nos anos seguintes, pelo inesperado interesse suscitado pela obra e
pelo pensamento de Bentham.
Este facto indisputado no deve, porm, fazer esquecer que, na mesma poca,
se assistiu redescoberta da tpica, por Theodor Viehweg (Tpica e Jurisprudncia,
1953), e da retrica clssica, por parte de Ch. Perelman (Tratado da argumentao,
1958) e de Stephen Toulmin (Os usos da argumentao, 1958).
Ao mesmo tempo, atravs de Emilio Betti (Teoria geral da interpretao, 1955),
Hans Georg Gadamer (Verdade e mtodo, 1960) e Paul Ricur (Da interpretao,
1965, O conflito das interpretaes, 1969, Teoria da interpretao, 1976 e Do texto
aco, 1986), foi retomado o intento de Schleiermacher de construir uma
hermenutica geral ou uma teoria geral da hermenutica, para que Wilhelm Dilthey
havia j concorrido, um sculo depois daquele filsofo e telogo alemo e a que M.
Heidegger deu renovador impulso em Ser e Tempo (1927).
Estes trs movimentos, praticamente simultneos e em grande parte
convergentes, nascidos dentro ou a partir da reflexo sobre o Direito como foi o
caso da tpica jurdica de Viehweg, da nova retrica de Perelman, da lgica dentica
ou normativa de G. Kalinowski ou da hermenutica de E. Betti ou nele quase
imediatamente projectados (p.e. a Teoria da argumentao jurdica, de Robert Alexy,
1978), contriburam, decisivamente, para um novo e diferente entendimento da
realidade prpria do Direito, da natureza da razo jurdica, da especificidade da
lgica normativa ou dentica, relativamente lgica apofntica, e das
3 Il positivismo juridico, Turim, 1978, p.1.
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particularidades do raciocnio prtico-argumentativo usado pelos juristas na vida
quotidiana do Direito.
II. Em conjunto e em diversa medida, tais movimentos inovadores ou
restauradores de verdades esquecidas, vieram chamar a ateno para que a vida do
Direito , antes de mais, isso mesmo, i.e., vida e esta no decorre (nem se
processa) segundo puros processos ou esquemas lgico-dedutivos mas de acordo
com as exigncias da prpria vida e do concreto agir humano nas suas relaes
intersubjectivas, pautando-se, constantemente, por valoraes, de base intuitivo-
emocional, visando alcanar certos fins na ordenao da conduta e da convivncia,
que devem reger-se ou ordenar-se por critrios de justia.
Daqui decorre, ento, que h lugar a distinguir, no que respeita ao papel da
razo no Direito, entre, por um lado, as estruturas lgico-formais do Direito quer da
norma jurdica, enquanto se exprime atravs de uma proposio normativa e postula
determinado dever-ser, quer dos conceitos jurdicos formais, gerais ou universais,
independentes de contedos ou critrios valorativos e, por outro, a aplicao
efectiva do Direito, a sua individualizao no caso concreto, a deciso judicial dos
litgios, a aplicao administrativa da lei ou o seu acatamento espontneo, actos
todos eles de natureza fundamentalmente problemtica, aportica ou casustica.
Assim, se, quanto ao primeiro caso considerado, so vlidos e adequados os
processos e categorias da lgica formal, dentica e no j apofntica, pois se trata
de juzos de dever-ser e no de juzos de ser, de realidade ou de verdade, no que se
refere ao segundo no vale este tipo de lgica nem so adequados os processos da
razo dedutiva, porquanto s uma lgica do razovel ou um pensamento tpico ou
tpico-retrico pode conduzir-nos na tarefa de vivificao do direito, de
concretizao singular e individualizada dos seus preceitos.
3. As formas da racionalidade jurdica
I. O que acaba de referir-se revela que, no campo da racionalidade jurdica, h
dois essenciais domnios distintos:
a) O da racionalidade lgica, que o campo da lgica jurdica, de natureza
formal, como toda a lgica, que cuida apenas de categorias e conceitos
formais, independentes de valores ou contedos valorativos;
b) O da racionalidade prtica, que, por sua vez, engloba trs momentos ou trsinstncias diferentes mas complementares e indissociveis:
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- o hermenutico;
- o tpico-retrico;
- o teleolgico-dialctico.
II. Assim, o momento ou a instncia hermenutica procura determinar o sentido
actual e concreto da prescrio normativa respeitante ao caso decidendo, pelo que
implica que interpretao e aplicao devam ser sempre consideradas como tarefas
complementares e indissociveis. Com efeito, no h uma interpretao genrica e
abstracta da lei, ou do Direito, independente de situaes concretas mas sim uma
interpretao que visa a aplicao e parte sempre e suscitada por um problema
concreto, por um caso singular carecido de soluo ou de deciso.
Deste modo, a hermenutica jurdica no se reduz nem se identifica com um
pensamento meramente interpretativo ou cognitivo das fontes de Direito
consagradas ou admitidas pelo sistema normativo ou pela ordem jurdica vigente,
tendo em vista encontrar os fundamentos e os critrios das decises, as quais
seriam correctas na medida em que se traduzissem na insero dos casos a decidir
nesse mesmo sistema normativo, pois:
a) A hermenutica jurdica visa uma deciso justa e no uma compreenso
correcta, implica mais umjuzo estimativo do que umjuzo cognitivo4;
b) A hermenutica jurdica envolve sempre uma mediao ou um momento
valorativo que, partindo do problema ou do caso, exige uma certa
autonomia constitutiva do Direito;
c) A deciso jurdica no se esgota no momento hermenutico ou na
concretizao hermenutica, com o seu carcter meramente
especificante, pois tem um objectivo normativo e uma natureza
constitutiva, normativa e judicativa;d) A aplicao das normas gerais e abstractas implica sempre e
necessariamente um processo de individualizao e concreo da norma;
o processo de aplicao das normas contm sempre algo de novo, que
no se encontra contido na norma geral, inclui uma essencial dimenso
criadora ou inovadora: a definio do direito, do devido ou do justo do
caso concreto5.
4L. Recasns Siches, Nueva filosofia de la interpretacin del Derecho , Mxico, 1956, p. 185.
5Recasns Siches, ob. cit., p. 142 e A. Castanheira Neves, Metodologia jurdica, Coimbra, 1993, pp. 76-77.
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III. O segundo momento corresponde ao domnio da teoria da argumentao ou
da razo argumentativa, aquela que visa persuadir mediante razes ou argumentos.
Finalmente, no terceiro momento, efectua-se a concretizao material do
Direito, na dialctica entre o sistema jurdico e o caso concreto.
A circunstncia de a aplicao ou concretizao material do Direito implicar
sempre uma relao dialctica entre o sistema jurdico e o caso concreto, retira
grande parte do sentido ao debate que, h quarenta anos, ops o pensamento
sistemtico de Claus-Wilhelm Canaris (Pensamento sistemtico e conceito de
sistema na Cincia do Direito, 1968) aopensamento tpico de Theodor Viewheg, j
que um e outro mutuamente se reclamam e completam, constituindo uma unidade.
IV. Note-se, por outro lado, que o sistema jurdico, enquanto unidade totalizante
normativa, compreende quatro estratos ou nveis distintos, embora entre si
relacionados num todo que os integra, que so, sucessivamente, constitudos:
a) Pelos princpios normativo-jurdicos, positivos e supra-positivos, nos quais
se funda a validade material e formal do Direito;
b) Pelas normas prescritas, que conferempositividade ao Direito;
c) Pelajurisprudncia, que d efectividade ao Direito;
d) Pela doutrina ou dogmtica jurdica.
V. Daqui resulta, ento, que uma completa teoria da razo jurdica ou da
racionalidade jurdica engloba, necessariamente:
a) A Lgica Jurdica, enquanto teoria (formal) do juzo lgico-normativo e
enquanto tratado dos conceitos jurdico-formais.
b) A Hermenutica Jurdica.
c) A Retrica Jurdica ou Teoria da Argumentao Jurdica, projeco, nodomnio do Direito, do que, na lgica aristotlica, se chamou raciocnio
dialctico ou raciocnioprtico e que compreende duas partes essenciais:
a teoria da controvrsia e a teoria da prova6.
6 A. Giuliani, "La logique comme thorie de la controverse", Arch. phil. Droit, vol. XI, 1966 e "La logique de lacontroverse dans la procedure judiciaire", em Fernando Gil (org.), Controvrsias cientficas e filosficas,Lisboa, 1990.
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CAPTULO II
A Lgica Jurdica
1 Conceito e mbito da Lgica Jurdica
4. Lgica apofntica e lgica normativa ou dentica
I. No domnio da lgica formal, que trata das categorias ou formas
fundamentais do pensamento e da sua expresso atravs da linguagem, deve
distinguir-se a chamada lgica apofntica da lgica normativa ou lgica das normas,
tambm designada, modernamente, porlgica dentica.
Com efeito, ao passo que a primeira, de que, desde Aristteles, se ocupou,
quase exclusivamente, o pensamento lgico at h meio sculo, se refere ao mundo
do sere descritiva epredicativa, a segunda reporta-se ao plano de dever-sere
relacionaleprescritiva.
Enquanto as proposies prprias da lgica apofntica tm como elemento
relacionante o verbo sere se pautam pelo valor ou princpio da verdade, as da lgica
normativa tm como elemento relacionante o dever-ser e como valor ou princpio
fundamental a validade.Deste modo, ao passo que, na lgica apofntica, as proposies so
verdadeiras ou falsas, na normativa, elas so vlidas ou invlidas. A proposio, que
sempre uma forma de sntese de dois ou mais conceitos, na lgica apofntica diz-
nos que um conceito convm ou no a outro conceito, est ou no includo na
extenso desse outro conceito, enquanto que, na lgica dentica, estatui uma
relao entre dois ou mais conceitos.
II. A distino entre as duas espcies fundamentais de proposies que a
lgica formal compreende, as apofnticas e as normativas, com base na distino
entre verdade e validade como atributos essenciais de umas e de outras, admitida
pela generalidade dos autores, foi contestada por G.H. von Wright e por Georges
Kalinowski.
O primeiro considera que a analogia entre aqueles dois valores ou princpios
carece de base, pois a validade no , no plano das normas, o equivalente daverdade. Segundo Von Wright, enquanto a verdade absoluta, a noo de validade
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relativa, porquanto uma norma ser valida quando o em relao a outra norma
superior que permite a sua promulgao ou a sua existncia e no se refere, sequer,
a validade desta, mas apenas a sua existncia7.
No se afigura, porm, que esta objeco seja decisiva. Se certo que, no
domnio lgico, o nico critrio de validade a que pode atender-se de natureza
formal e se refere, por isso, exclusivamente, relao de conformidade de qualquer
norma com a forma e o processo de formao estatudo numa norma
hierarquicamente superior, maxime a Constituio, com expressa excluso de
qualquer critrio axiolgico-material de validade, pretensamente absoluta, parece
no dever esquecer-se que, no campo das proposies apofnticas, a noo de
verdade relevante , igualmente, de natureza formal e se refere, to s, coerncia
lgica das proposies e ao seu respeito pelos princpios lgicos fundamentais,
maxime o da no contradio.
Assim, se as proposies normativas, no plano da mera lgica dentica, se
reportam apenas a um critrio formal de validade, tambm as apofnticas no tm,
no estrito domnio lgico, uma garantia ontolgica de verdade, consistindo em
enunciados cuja verdade , tambm, puramente lgico-formal. Deste modo, tanto a
verdade das proposies apofnticas como a validade das normas ou das
proposies normativas tero igual ou equivalente valor ou significado no plano
lgico, sendo, por isso, legtimo atribuir-lhes sentido e lugar paralelo nos dois ramos
fundamentais da lgica formal.
III. Por seu turno, Kalinowski pretende que a distino entre dois tipos de
proposies baseada na contraposio entre a verdade das apofnticas e a validade
das normativas no pode ser acolhida porque, em seu entender, no s nada exclui,
a priori, que as normas morais e jurdicas possam ser verdadeiras ou falsas, como,pelo, contrrio, tudo aponta para que, efectivamente, sejam verdadeiras ou falsas.
Assim, p.e., segundo o lgico polaco, a proposio "Carlos deve pagar a sua dvida"
s ser verdadeira se, de facto, Carlos dever pagar uma dvida8.
Esta objeco no se afigura, porm, mais pertinente do que a de von Wright,
porquanto a proposio apresentada no exemplo de Kalinoski, apesar de nela figurar
o verbo dever, uma proposio apofntica e no normativa. Com efeito, trata-se,
7 Norma y accin. Una investigacin lgica, trad. cast. Pedro Garcia Ferrero, Madrid, 1970.
8 Le problme de la verit en morale et en droit, Lyon, 1967 e La logique des normes, Paris, 1972.
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claramente de uma proposio enunciativa e no prescritiva, equivalente a esta
outra: "Carlos devedor". Uma verdadeira proposio normativa teria, no a
estrutura apontada no exemplo de Kalinowski, mas antes a seguinte: "Se Carlos
assumiu o compromisso de pagar, deve pagar a sua dvida".
Verifica-se, assim, que, do ponto de vista lgico, o elemento decisivo no a
verdade ou a falsidade desta proposio mas sempre e s a sua validade formal.
5. Lgica normativa e lgica jurdica
A lgica jurdica no se identifica com a lgica normativa, no s porque esta
abrange outros tipos de normas, alem das jurdicas, como as morais e as religiosas,
como tambm porque apresenta elementos individualizadores no que respeita
estrutura das proposies normativas, aos tipos de conceitos que emprega ou a que
recorre e ao grau de definio que deles d, e, ainda, e principalmente, ao decisivo
papel que os elementos valorativos, tpicos e retricos desempenham no raciocnio
jurdico9.
6. mbito da lgica jurdica
I. A importncia primordial que, na lgica jurdica, ocupa o raciocnio jurdico,
levou a que se tenha pretendido que aquela mais no deva ser do que uma teoria
das formas do raciocnio jurdico, em especial dos argumentos a que este mais
frequentemente recorre como seus prprios (por analogia, a contrario, por maioria
de razo, por absurdo) j que aqueles se circunscreve a teoria das regras lgico-
formais que se empregam na aplicao do Direito em que consiste a lgica
jurdica10.
II. O mbito da lgica jurdica apresenta-se, no entanto, mais vasto, j que nele
se integra, de pleno direito, o estudo da estrutura lgica das normas ou das
proposies normativas, sua natureza e suas espcies, bem como dos conceitos
jurdicos11.
Quanto teoria de argumentao como elemento fundamental do raciocnio
jurdico, dada a sua especificidade e a sua natureza eminentemente tpico-retrica,
9Cf. G. Kalinowski, "De la spcificit de la logique juridique",Arch.Phil. Droit, vol. XI, 1966.
10 Ulrich Klug, Lgica jurdica (1951), trad. cast. J. C. Gardella, Bogot, 1990. 11
E. Garcia Maynez, Lgica del juicio jurdico, Mxico, 1955, Lgica del concepto jurdico, id., 1959 e Lgica delraciocinio jurdico, id.,1964 e G. Kalinowski, Introduction la logique juridique, Paris, 1965.
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caber, talvez, melhor numa teoria da retrica jurdica do que no mbito da lgica
normativa formal12.
Assim, no plano da lgica jurdica, vamos concentrar a nossa reflexo nas
questes relativas estrutura lgica da norma jurdica, natureza do juzo jurdico-
normativo e s espcies que neste possvel surpreender e teoria do conceito
jurdico, deixando o tratamento da problemtica referente ao raciocnio jurdico como
raciocnio prtico, de natureza tpico-retrico, e argumentao jurdica para
quando nos ocuparmos da retrica jurdica.
2 O juzo jurdico-normativo
7. Estrutura lgica da norma jurdicaI. Do ponto de vista lgico, a norma jurdica reveste a natureza de uma
proposio relacional, atravs da qual se ligam duas proposies simples ou
categricas, que passam, assim, a constituir uma nica proposio.
Sendo uma proposio composta ou relacional13, a norma jurdica estatui
relao entre sujeitos (de direito) e relao entre tipos de aco ou de conduta,
resultantes da verificao de pressupostos fcticos, i.e., diz que se ocorrer um facto
que, por meio do pressuposto a ele referido, entre no mundo jurdico, um sujeitodeve ter ou omitir tal ou qual conduta relativamente a outro sujeito. Diferentemente
do que ocorre nas proposies prprias da lgica apofntica e predicativa, a cpula
ou elemento relacionante no aqui o verbo sermas o verbo dever-ser, o qual pode
assumir trs modalidades denticas diferentes: ter a faculdade de, estar obrigado a
ou estar proibido, ou seja, triparte-se porpermitido, obrigatrio eproibido.
Se esta a estrutura geral das proposies jurdico-normativas, casos h, no
entanto, em que elas no revestem uma estrutura imperativa, ou prescritiva,limitando-se a formular definies, assumindo, ento, natureza meramente
enunciativa, ou a determinar a perda ou a aquisio de um direito ou a extino de
um dever (p.e., prescrio ou usucapio), revestindo, por isso ento carcter
dispositivo14.
12 Ch. Perelman, Logique juridique. Nouvelle rhtorique, Paris, 1976.13
Cfr. Jules Lachelier, tudes sur Ie syllogisme, Paris, 1907, pp. 39 e segts. 14
Karl Larenz, Metodologia da cincia do Direito, 3 ed., trad. port. Jos Lamego, Lisboa, 1997, pp. 355-358.
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II. Trs observaes cumpre fazer a este respeito, para afastar dvidas ou
interpretaes deficientes.
Refere-se a primeira ao facto de, frequentemente, na lnguagem quotidiana, se
usar a expresso verbal dever-serpara referir a necessidade ou a possibilidade de
um acontecer regido por leis naturais e no por leis normativas. o que ocorre
quando, p.e., se diz "amanh deve chover".
A segunda observao destina-se a chamar a ateno para que,
frequentemente, as proposies normativas recorrem aos modos verbais do
indicativo, quer presente quer futuro, ou do imperativo.
Finalmente, a terceira diz respeito ao facto de nem sempre a proposio
normativa se encontrar formulada ou contida integralmente num nico artigo da lei,
podendo as proposies simples que a compem constar de artigos diferentes15.
III. Alm do elemento relacional, constitudo pelo verbo dever-ser, referido
conduta como obrigatria, permitida ou proibida, a proposio normativa formada
por dois outros elementos essenciais, denominados, respectivamente, pressuposto
ou antecedente e consequncia.
Sendo os membros da proposio relacional e composta que a proposio
normativa duas proposies simples, apresentam, contudo, natureza lgica
diferente.
Com efeito, enquanto o primeiro membro da proposio normativa
(pressuposto ou antecedente) descritivo, constituindo um juzo enunciativo, que
descreve uma possvel situao fctica, seja um facto natural, seja um facto j
integrado no universo jurdico, o segundo membro daquela proposio
(consequncia) prescritivo, i.e., prescreve que a relao se constitui entre sujeitos
(de direito) com a verificao da descrio contida naquele primeiro membro.
IV. Cumpre notar que, se a relao que, no domnio da lgica jurdica, se
estabelece entre os dois membros da proposio normativa meramente formal, na
proposio concreta do direito positivo reveste j a natureza de nexo
axiologicamente institudo, pois todo o Direito sempre tecido de valoraes e
constantemente as implica e pressupe.
15Lourival Vilanova, Lgica jurdica, So Paulo, 1976, pp. 94-95 e 133-114.
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Da que, como repetidas vezes se notou j, contra as pretenses logicistas de
algum positivismo jurdico, a lgica seja, s por si, insuficiente e inadequada para a
construo e a aplicao do Direito, pois estas inscrevem-se num domnio que
ultrapassa o estritamente lgico, o dos contedos axiolgico-materiais das normas,
que esto para alm das puras formas lgicas que, analiticamente, nelas se podem
surpreender ou isolar16.
8. Natureza do juzo jurdico-normativo
I. 0 que acaba de ser dito sobre a estrutura e os elementos do juzo jurdico-
normativo abre seguro caminho ao adequado esclarecimento da sua natureza
lgica.
Sendo juzo hipottico, o juzo composto que estabelece uma relao de
dependncia entre duas ou mais proposies atravs de uma partcula conjuntiva,
parece inegvel que o juzo jurdico-normativo ou a proposio normativa reveste a
natureza dejuzo hipottico, como, entre outros, o haviam j visto Stammler, Kelsen,
Fritz Schreier, Klug ou Garcia Maynez.
Isto, no entanto, no nos esclarece inteiramente sobre a sua natureza lgica,
uma vez que o juzo hipottico um gnero que engloba diversas espcies.
Destas, para o nosso intento, importa apenas considerar trs: os juzos
disjuntivos, osjuzos conjuntivos e osjuzos condicionais.
Assim, so disjuntivos os juzos cujos membros, unidos pela conjuno ou,
mutuamente se excluem; so conjuntivos os que negam a concorrncia simultnea
de dois predicados no mesmo sujeito, i. e., que os seus membros possam ser
ambos verdadeiros; so condicionais os que estabelecem uma condio
(antecedente) da qual depende um condicionado (consequente).17
II. Qualquer destas trs naturezas tem sido atribuda ao juzo jurdico-
normativo. Com efeito, enquanto Carlos Cossio18, seguido, neste ponto, por Legaz y
Lacambra19 e Irineu Strenger20, considerava que o juzo normativo apresentava
16Cf. Lourival Vilanova, ob. cit., pp. 166-169.
17Cf. Garcia Maynez, Logica del juicio juridico, pp. 117 e segts. e A. Miranda Barbosa, Lgica, Coimbra, 1940,pp. 223 e segts.
18 La teoria egolgica del Derecho, pp. 333 e segts. 19
Filosofia del Derecho, pp. 383 e segts. 20
Lgica Jurdica, So Paulo, 1999, p.212.
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natureza disjuntiva, Jorge Mills21 entendia que ele revestia a natureza de juzo
conjuntivo e K. Engisch22 considerava-o como juzo condicional.
Contudo, nem a primeira nem a segunda destas qualificaes lgicas
atribudas ao juzo normativo parece de aceitar, pelas razes que passam a indicar-
se.
III. No que respeita tese sustentada pelo fundador da escola egolgica de
que a norma jurdica constituiria um juzo disjuntivo, deve lembrar-se que,
implicando, necessariamente, esta espcie de juzos a excluso de um dos
membros componentes do juzo, no podendo, por isso, ser ambos ao mesmo
tempo, conduziria, inevitavelmente, destruio da prpria norma jurdica, cuja
natureza lgica pretende explicar.
Na verdade, a disjuntiva aqui seria de duas possibilidades de dever, uma das
quais excluiria a outra, pelo que, se for devido o primeiro, no o ser o segundo.
Deste modo, ou a norma primria excluiria a secundria, e no haveria sano para
o incumprimento do dever, ou a norma secundria excluiria a primria, levando a
que a conduta j no fosse devida. O absurdo a que, em ambos os casos, seramos
conduzidos parece comprovar no haver aqui qualquer juzo disjuntivo, pois o dever-
ser da norma primria e o dever-ser da norma secundria implicam-se mutuamente,
nenhum deles podendo ser sem o outro.
IV. Tambm a tese que v na norma jurdica um juzo conjuntivo, demasiado
preocupada em salvar o que considerava positivo e inovador na viso de Cossio, ou
seja, a compreenso do juzo normativo como complexo proposicional ou como
proposio compsta, sem incorrer no erro daquela, se no afigura adequada.
Entendia o professor chileno que a norma jurdica um complexo proposicionalde carcter conjuntivo, pois se traduz na coexistncia de dois elementos na
proposio normativa, coordenados conjuntivamente. Assim, o juzo normativo
obedeceria ao seguinte esquema: Se A , B deve ser e se B no , dever-ser S. O
evidente artificialismo desta frmula, claramente dependente do esquema disjuntivo
proposto pelo jurisfilsofo argentino, revela, involuntariamente, que o decisivo, no
21 El problema de las formas de la proposicin juridica , Santiago de Chile, 1954.
22 Introduo ao pensamento jurdico (1956), trad. port. Joo Baptista Machado, Lisboa,1965.
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juzo normativo, o seu carctercondicional bem denunciado nos dois
condicionais (se) nela usados e no a sua pretensa natureza conjuntiva.
Da concluirmos que, do ponto de vista lgico, a norma jurdica constitui um
juzo hipottico condicionale no um juzo disjuntivo ou conjuntivo.
9. Classificaes dos juzos normativos
I. Os juzos podem classificar-se com base nas categorias de quantidade,
qualidade, modalidade e relao. Esta ltima categoria diz respeito natureza do
prprio juzo normativo, assunto de que acabamos de ocupar-nos no nmero
precedente.
II. Assim, considerados do ponto de vista da qualidade, os juzos enunciativos
podem seruniversais ouparticulares.
Pertencem primeira categoria aqueles em que o predicado se afirma ou nega
relativamente a todos os objectos compreendidos na classe designada pelo
conceito-sujeito; nos casos em que o predicado no referido totalidade mas
apenas a uma parte dos objectos designados pelo conceito-sujeito, o juzo diz-se
particular23.
Quando consideradas do ponto de vista da quantidade, as proposies
normativas dividem-se em genricas e individualizadas. Cabem no primeiro grupo as
que obrigam ou concedem faculdades a todos os sujeitos compreendidos na classe
designada pelo conceito-sujeito; integram-se no segundo as que obrigam ou
concedem faculdades a certos membros individualmente determinados daquela
classe.24
III. Do ponto de vista da qualidade, as proposies normativas podem serpositivas ou negativas. Dizem-sepositivas as quepermitem certa conduta, que tanto
pode consistir numa aco como numa omisso; por seu turno, so negativas as
queprobem certo comportamento (aco ou omisso).
Como adverte Garcia Maynez25, o que determina a qualidade de uma norma
no a circunstncia de prescrever uma aco ou proibir uma aco. Com efeito, as
23
A. Miranda Barbosa, ob. cit., p. 214 e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 99 e segts.24Cf. Garcia Maynez, ob. cit., p. 107.
25Idem, p. 89.
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que prescrevem a omisso da conduta juridicamente proibida so positivas, pois a
omisso dessa conduta , simultaneamente, obrigatria e lcita. Assim, o que
condiciona a qualidade, positiva ou negativa, das normas jurdicas o facto de
permitirem ou proibirem uma aco ou uma omisso e no o de prescreverem
aces ou imporem omisses. Daqui decorre, ento, que o objecto das normas
positivas uma conduta jurdicamente lcita e o das negativas um proceder
juridicamente ilcito.
IV. No que diz respeito ao modo ou modalidade, as proporsies enunciativas
podem consistir numa afirmao do ser, de uma possibilidade do ser ou da
necessidade do ser. Deste modo, conforme afirme o ser ou um destes seus modos
de ser, o juzo enunciativo ser, respectivamente, assertrio, problemtico ou
apodctico.
J quanto aos juzos normativos, porque sempre estabelecem
condicionalmente um dever ou concedem, tambm condicionalmente, um direito,
so sempre juzos apodcticos, uma vez que a permisso ou a obrigao sempre
de ndole necessria26.
V. Sintetizando o que antecede, teremos ento:
genricos
Quanto quantidade
individualizados
positivos
Quanto qualidadeJuzos normativos negativos
Quanto modalidade apodctivos
Quanto relao hipotticos condicionais
26Cf. A. Miranda Barbosa, ob. cit., pp. 205 e segts e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 158 e segts.
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3. Os conceitos jurdicos
10. Noo e especificidade dos conceitos jurdicos
I. Acabamos de ver que a norma jurdica, enquanto juzo ou proposio lgico-
normativa, envolve sempre uma relao entre conceitos, pelo que importa
considerar agora a teoria do conceito jurdico naquilo que apresenta de especfico e
prprio.
Do ponto de vista lgico, o conceito um resultado da actividade pura do
pensamento, uma apreenso do objecto pela conscincia. Todo o conceito se
reporta a um objecto, sempre conceito de um objecto, com o qual, no entanto, se
no identifica nem confunde.
Sendo uma apreenso essencial de um objecto pela conscincia, o conceito
um produto esquemtico da abstraco, que apreende, sinteticamente, certas notas
singulares no seu conjunto, imutveis nos seus arranjos, que distinguem um
determinado objecto e o individualizam relativamente a todos os outros.
Referindo-se embora sempre a um objecto, sem, contudo, dele afirmar ou
negar alguma coisa, o conceito no se confunde nem coincide com ele, como
tambm distinto da palavra ou do termo que o diz, que no mais do que a sua
expresso convencional e simblica, do mesmo modo que se distingue darepresentao mental do objecto e da sua definio, a qual constitui sempre um
juzo e no um conceito.
Enquanto representao intelectual e abstracta de um objecto, o conceito
distingue-se ou ope-se percepo ou intuio e, enquanto intelectual, distinto
de toda a representao sensvel.
Quando considerado subjectivamente, o conceito a apreenso simples, o
pensamento do objecto, ao passo que, considerado objectivamente, um modo deser ideal, representativo de um objecto ou o objecto pensado.
II. ainda habitual distinguir, no objecto do conceito, o objecto material e o
objecto formal, sendo o primeiro o objecto na sua totalidade e integridade e o
segundo a sua considerao tendo apenas em conta algum, ou alguns dos seus
elementos atributos ou notas27.
27Cf. A. Miranda Barbosa, ob.cit., pp. 69-82 e Manuel Barbosa da Costa Freitas, O Ser e os Seres. Itinerriosfilosficos, vol. II, Lisboa, 2004, pp. 11-13.
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III. Em qualquer conceito possvel encontrar dois atributos essenciais, a
determinao do seu contedo, cujos elementos se reportam ao seu objecto formal,
e a conexo com outros conceitos.
Para alm destas caractersticas genricas, comuns a todos os conceitos, os
conceitos jurdicos tm ainda como atributos especficos, resultantes de o Direito ser
um objecto ou uma realidade cultural de natureza normativa, o terem um
fundamento normativo e o possurem uma referncia axiolgica, caractersticas que
partilham com as restantes ordens normativas, cumprindo no esquecer, no entanto,
que a diversa estrutura lgica das normas jurdicas condiciona e determina os
conceitos, tanto normativos como dogmticos com que lida o Direito28.
Como notou Garcia Maynez, diversamente do que acontece nas restantes
cincias culturais, cujos conceitos so individualizadores ou ideogrficos29, os
conceitos jurdicos tm carcter genrico, visto referirem-se sempre a todos os
sujeitos de uma classe, mesmo quando fazem referncia a um nico objecto, pois a
no atendem sua irredutvel individualidade.
Tambm o precedente, no Direito anglo-americano, tem o sentido de uma
aplicao de princpios gerais, vlidos para todas as situaes do mesmo tipo e no
de considerao individualizada e nica de um caso ou de uma situao singular.
Assim, os conceitos jurdicos so sempre conceitos de classe, visto estarem
sempre referidos a determinadas classes ou a objectos que delas fazem parte ou
nelas se integram.
Estas caractersticas prprias do Direito fazem que o seu mtodo de
conceptualizao se distinga do das restantes cincias culturais, a cujo universo
epistemolgico pertence, para vir a coincidir com o das cincias naturais, mas com
uma dupla e significativa diferena, que decorre dos atributos especficos dos
conceitos jurdicos, i.e, o seu fundamento normativo e a sua referencia axiolgica30.
IV. Cabe ainda ter em conta que as definies dos conceitos jurdicos tanto
podem ser explcitas ou directamente normativas como implcitas ou dogmticas,
28Garcia Maynez, Lgica del concepto jurdico, pp.79-87.
29 H. Rickert, Ciencia cultural y ciencia natural, trad. cast. M. Garcia Morente, Mxico, 1943 e E. Cassirer, Lasciencias de la cultura, id., trad.cast. Wenceslao Roces, 1951.
30Garcia Maynez, ob.cit., pp. 48-59.
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quando o contedo dos conceitos determinado de acordo ou a partir de um
conjunto de axiomas que lhe so aplicveis31.
11. Classificaes dos conceitos jurdicos
I. Tal como os juzos normativos, tambm os conceitos jurdicos podem
classificar-se com base nas categorias de qualidade, quantidade, relao e
extenso.
II. Considerados do ponto de vista da qualidade ou da sua natureza, os
conceitos jurdicos podem serconceitos lgico-jurdicos ou conceitos jurdicos puros,
e conceitos jurdicos impuros ou empricos.
Os primeiros so os conceitos jurdicos fundamentais, comuns a toda e
qualquer ordem jurdica e condio de toda a experiencia jurdica e, nessa medida,
conceitos de certo modo a priori, enquanto os segundos apresentam uma dimenso
ou uma origem emprica, so espcio-temporalmente determinados, tm uma
essencial componente histrica. Embora dela prxima, esta classificao no deve
confundir-se com a que distingue os conceitos jurdicos prprios ou especficos do
Direito dos conceitos juridicamente relevantes, i.e., aqueles que o Direito recebe da
linguagem comum ou corrente e a que atribui significados ou valor jurdico.
III. Por sua vez atendendo quantidade, os conceitos jurdicos podem ser
singulares,plurais ou universais.
Dizem-se singulares os conceitos jurdicos referidos a um unico objecto, nem
genrico nem especifico, ainda que tal objecto seja colectivo (p.e., sindicato dos
metalrgicos).
Por seu turno, soplurais os conceitos jurdicos que designam ou se referem a
vrios objectos quando a sua reunio meramente de carcter numrico e
independente de consideraes qualitativas, o que os torna distintos dos conceitos
genricos e especficos, j que estes so conceitos referidos a classes, envolvendo,
por isso, sempre uma considerao qualitativa, a de pertena a uma classe
determinada.
Por ltimo, so universais os conceitos jurdicos que abrangem todos os
membros de uma classe, podendo, consequentemente sergenricos ou especficos.
31 Idem, pp. 86-87.
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IV. Sob o ponto de vista da relao em que podem encontrarse entre si, os
conceitos jurdicos so:
a) dependentes ou independentes;
b) compatveis ou incompatveis;
c) correlativos;
d) supra ordenados ou subordinados.
So exemplo de conceito independente o de "objecto do dever jurdico" e de
conceito dependente o de "pagar a coisa ao vendedor", pois se refere a um dever
que depende ou decorre de um contrato de compra e venda. De igual modo, so
correlativos os conceitos reciprocamente dependentes, como os de "credor" e
"devedor" ou de "sujeito activo" e "sujeito passivo". Por ltimo, so relaes de
supra-ordenao e de subordinao as que existem entre conceitos referidos a
classes e a membros das mesmas classes, como a que existe, p.e, entre os
conceitos genricos e os conceitos especficos ou entre os conceitos de "contrato" e
o de "contrato de compra e venda"32.
V. Tendo em conta a sua extenso, os conceitos jurdicos podem ser
determinados ou indeterminados. Dizem-se indeterminados os conceitos jurdicos
cuja extenso , em larga medida, incerta, sendo determinados os restantes,
embora, como salientou Engisch, sejam muito raros em Direito conceitos
absolutamente determinados33.
VI. Em sntese, so as seguintes as classificaes dos conceitos jurdicos:
lgico-jurdicosQuanto qualidade
empricos ou impuros
32Cf. Miranda Barbosa, ob. cit., pp. 127-142 e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 88.137.
33 Ob. cit., p. 137.
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singulares
Quanto quantidade plurais
genricos
universais
especficos
dependentes ou independentes
compatveis ou incompatveis
Quanto relao correlativos
supraordenados ou subordinados
determinados
Quanto extenso
Indeterminados
12. Conceitos jurdicos fundamentais
I. Os conceitos no tm todos a mesma relevncia e o mesmo significado no
domnio jurdico, pois, ao lado de conceitos prprios de certos ramos de Direito ou
de determinados institutos, h conceitos que se apresentam como fundamentais ou
essenciais em qualquer ordem jurdica, que assenta ou se constitui com base neles.
O saber quais sejam os conceitos jurdicos deste segundo tipo, ou quais os
conceitos jurdicos verdadeiramente fundamentais problema que est longe de ter
obtido respostas uniformes ou concordantes, por parte dos jurisfilsofos que se
detiveram a reflectir sobre esta questo, desde que John Austin (1790-1859), em
meados do sculo XIX, chamou a ateno para a existncia de determinados
conceitos, noes ou distines que constituem elementos necessrios de qualquer
sistema de direito de uma comunidade civilizada.
II. Pensava o jurista ingls que a cincia jurdica (jurisprudence) tinha por
objecto o direito positivo, nos seus diversos ramos, entendendo por direito positivo o
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estabelecido ou positum numa comunidade politica independente pela vontade
expressa ou tcita do respectivo suberano ou governo supremo.
Notava Austin que, se certo que cada sistema jurdico ou cada ordem jurdica
positiva apresenta particularidades e diferenas especficas, no deixa de
compartilhar com as demais um conjunto de princpios, noes ou distines, que
so comuns a todas elas.
Para o jurisfilsofo britnico, entre tais conceitos ou noes fundamentais,
necessrios ou comuns aos diversos ordenamentos jurdicos figurariam os
seguintes:
a) As noes de dever, direito, liberdade, delito, pena, ressarcimento, bem,
como o de Direito, soberania e sociedade poltica independente;
b) Os direitos que, como a propriedade ou domnio, podem fazer-se valer
contra todos e aqueles que s podem tornar-se efectivos contra
determinadas pessoas, como os decorrentes de contrato;
c) A distino entre obrigaes que nascem de contratos, as que resultam
de actos ilcitos e as que derivam de actos que no revestem a natureza
de contrato nem de acto ilcito (quasi ex contactu);
d) A distino entre actos ilcitos civis epenais34.
Este elenco de noes ou conceitos jurdicos fundamentais apresentado por
John Austin revela ou denuncia a concepo positivista do Direito do seu autor, ao
mesmo tempo que apresenta um carcter, de certo modo, assistemtico, visto no
obedecer a qualquer critrio lgico interno, que ordene os conceitos ou as noes
que enumera de acordo com o seu significado no mundo jurdico.
Com efeito, uma ordem valorativa de tais conceitos, que atendesse sua maior
ou menor relevncia no mbito do Direito, no poderia deixar de colocar cabeadesta relao de noes ou conceitos jurdicos fundamentais os de soberania e de
liberdade que constituem verdadeiros pressupostos essenciais de todo o direito
positivo, j que sem liberdade nenhum dever-ser concebvel e sem um poder
soberano que crie o direito positivo no pode falar-se em ordenamento jurdico.
Por outro lado, como foi j notado por diversos autores, alguns dos conceitos
indicados por Austin so meramente histricos, como a diviso tripartida das fontes
das obrigaes (ex contractu, ex delictu e ex quasi contractu) ou a contraposio
34 On the uses of the study of jurisprudence, 1861, cap. I.
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entre propriedade e domnio, cabendo ainda ter em conta que o jurista ingls, cujo
mrito pioneiro inegvel, no distinguiu, como convinha, entre os elementos
formais e os elementos materiais dos conceitos jurdicos35.
III. Para Rudolf Stammler (1856-1938), os conceitos jurdicos fundamentais
constituem condies de ordenao permanente das normas e instituies jurdicas,
possibilitadas pelo conceito de Direito, o qual, para este autor, deveria definir-se
como "vontade vinculativa, autrquica e inviolvel." Tais conceitos seriam formas
puras das noes jurdicas cujo conhecimento permitiria conferir valor cientfico
cincia do Direito.
De acordo com o pensamento do jurisfilsofo neokantiano, seria dos quatro
elementos contidos no conceito de Direito vontade, vinculao, autarquia e
inviolabilidade que decorreriam os conceitos jurdicos fundamentais.
Assim, da vontade ou do quererproviriam os conceitos de sujeito de Direito,
entendido como noo de um ser concebido como fim em si segundo uma
determinada ordem jurdica, e de objecto de Direito, considerado, em concreto,
como meio para determinado fim.
Por sua vez, da vinculao decorreriam os conceitos de fundamento de Direito,
concebido como noo de determinao de vrias vontades como meios entre si, e
o de relao jurdica, entendido como o facto de aquelas vontades se acharem
determinadas.
Em terceiro lugar, da autarquia proviriam os conceitos de soberania jurdica,
como noo de uma vontade jurdica que contm em si o fim da sua prpria
determinao, e de sujeio jurdica ou articulao harmnica de varias vontades
juridicamente vinculadas como meios ao servio de uma vontade vinculativa.
Finalmente, da inviolabilidade resultariam os conceitos de jridicidade oulegalidade, vista como conformao das vontades vinculadas a vontade jurdica que
as vincula e de anti-juridicidade ou ilegalidade, compreendida como contradio
entre aquelas vontades e esta.
Advertia Stammler no serem, contudo, estes os nicos conceitos
fundamentais existentes para ordenar o sistema jurdico, pois, ao lado deles, h
outras formas conceituais, puras que servem, igualmente, para determinar e reduzir
unidade os problemas jurdicos.
35Cf. Garcia Maynez, ob. cit., pp. 152-153.
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Deste modo, alm daqueles conceitos jurdicos fundamentais primrios,
existem conceitos jurdicos fundamentais derivados, que resultam da combinao
daqueles entre si. Estes ltimos conceitos, sintticos, como os primrios, constituem
as primeiras modalidades do nosso pensar jurdicos, e so simples formas
metdicas de ordenao dos mais diversos problemas jurdicos, susceptveis de se
decompor nos conceitos fundamentais primrios, de que so a sntese.
Assim, da combinao do conceito de fundamento do Direito com o de sujeito
de direito decorre o de vnculo jurdico, e da sua combinao com o de objecto do
direito provm o de disposio jurdica.
Por sua vez, da combinao do conceito da relao jurdica com o de sujeito de
direito resulta o de prestao jurdica, enquanto da sua combinao com o de
objecto de direito decorre o conceito de excluso jurdica.
De igual modo, o conceito de soberania jurdica, quando combinado com os de
sujeito e objecto do direito origina, respectivamente, os de proclamao do direito e
de comunidade jurdica.
J o conceito de sujeio ao direito, quando combinado com o de sujeito de
direito d lugar ao de aplicao do direito e com o de objecto do direito origina o de
participao jurdica.
Por seu turno, os conceitos de juridicidade e anti-juridicidade, se combinados
com os de sujeito e de objecto de direito, do origem, respectivamente, aos de
faculdade e de dever jurdicos e aos de culpa e dano jurdicos.
Quanto combinao do conceito de soberania jurdica com os de fundamento
do direito e de relao jurdica, dar lugar aos conceitos de originalidade jurdica e
colectividade jurdica, ao mesmo tempo que, combinando o conceito de sujeio ao
direito com aqueles outros dois teremos os conceitos de derivatividade jurdica e de
singularidade jurdica.No que respeita combinao dos conceitos de juridicidade e anti-juridicidade
com os de fundamento do direito e de relao jurdica, dela resultam,
respectivamente, os conceitos de validade jurdica e negao do direito e os de
aquisio eperda de direitos.
Finalmente, dos conceitos de juridicidade e anti-juridicidade, combinados com
os de soberania jurdica e de sujeito de direito, provm, respectivamente, os de
preceito jurdico e de mandato jurdico e os de proibio jurdica e de rebeldiajurdica.
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Pensava, ainda, Rudolf Stammler que os conceitos jurdicos fundamentais,
tanto primrios como derivados, exprimem-se formas conceptuais puras, que
intervm como princpios de ordenao unitria de toda a realidade jurdica,
cumprindo no esquecer, no entanto, que o Direito se desenvolve, incessantemente,
ao longo do tempo e se revela como algo constitudo por uma multiplicidade de
dados concretos. Ora, segundo o pensador germnico, a articulao, no tempo, de
qualquer ordem jurdica e a comparao de diferentes ordens jurdicas entre si
verifica-se de um modo sempre idntico, sem o qual tudo seria desordem e
confuso, o que provaria haver conceitos jurdicos fundamentais que servem de
elementos de conexo nas duas direces indicadas, temporal e lgica.
Assim, de acordo com o pensamento stammleriano, seriam os seguintes pares
de conceitos que desempenhavam o papel de elemento de conexo temporal em
qualquer ordem jurdica:
comeo jurdico continuao jurdica
permanncia jurdica alterao jurdica
juridicamente definitivo juridicamente transitrio
dilao jurdica resoluo jurdica
Por seu turno, os elementos de conexo lgica dos conceitos jurdicos seriam
os seguintes quatro pares de conceitos jurdicos fundamentais:
simplicidade jurdica sntese jurdica
estabilidade jurdica condicionalidade jurdica
procedncia jurdica consequncia jurdica
coincidncia jurdica divergncia jurdica36
Para Stammler, os conceitos jurdicos fundamentais compreenderiam, pois,conceitos primrios, conceitos derivados e conceitos de conexo, concepo que
representa um notvel avano terico relativamente a proposta pioneira de Austin,
tanto pelo maior rigor lgico como pela mais ampla compreenso da natureza e
formas deste tipo de conceitos jurdicos.
IV. Enquanto o pensamento do jurisfilsofo ingls se desenvolveu no mbito do
positivismo utilitarista e o do pensador alemo representou a mais significativa
36 Tratado de filosofia del Derecho, trad. cast. Wenceslao Roces, Madrid, 1930, pp. 289-297 e Economia y
Derecho segun la concepcin materialista de la Histria , id., 1929, pp. 460-466.
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expresso filosfico-jurdica da escola neokantiana de Marburgo, foi a partir da
fenomenologia que Adolf Reinach (1883-1917)37 e Fritz Schreier38 consideraram o
problema dos conceitos jurdicos fundamentais, mas com assinalveis diferenas
entre si, pois o primeiro buscou determinar o a priorimaterial de alguns institutos de
direito civil e o segundo teve em mente surpreender o a prioriformal do Direito.
Entendia Reinach que os conceitos e as noes que, em geral, se consideram
especificamente jurdicos possuem um ser prprio e autnomo, de natureza a priori,
independente do direito positivo, que os encontra e utiliza mas no os cria nem
produzno seu desenvolvimento, para o qual so decisivas as concepes de cada
poca e, em grau ainda mais significativo, as relaes e as necessidades
econmicas, em constante mutao.
Considerava ainda o jurisfilsofo alemo ser necessrio distinguir entre os
conceitos jurdicos, formais e a priori e os actos sociais com eficcia jurdica
imediata, como a promessa ou a transmisso de direitos ou de bens.
Assim, para ele, os conceitos jurdicos fundamentais do direito civil (a que
limitou a sua anlise) seriam o de poder jurdico e o de pessoa, j que s eles
permitem tomar inteligvel a origem dos direitos absolutos e das obrigaes
absolutas e a sua transmisso de pessoa para pessoa.
Com efeito, segundo o malogrado professor da Universidade de Gttingen,
impossvel que actos sociais como os de conceder, transmitir e anlogos funcionem
como fontes ltimas do poder, visto que eles, na medida em que possuem um efeito
jurdico imediato, pressupem sempre um poder jurdico, cuja raiz ltima se encontra
na pessoa como tal, constituindo um seu poder jurdico fundamental39.
V. Por sua vez, o jurisfilsofo austraco Fritz Schreier procurou construir uma
teoria jurdica pura com base na fenomenologia, compartilhando com Reinach a
ideia de que o sistema formal de Direito algo de atemporal e inespacial, emborano deixe de criticar o seu predecessor por considerar que ele no soube distinguir,
convenientemente, a investigao das realidades dadas ao Direito e a do prprio
Direito. Na verdade, para Schreier, o acto jurdico, noo de que parte a sua
teorizao, aquele em que o Direito se constitui, o acto referido intencionalmente
ao Direito e no qual concebemos o Direito, que nele nos dado.
37 Los fundamentos aprioristicos del derecho civil(1913), trad. cast. Jose Luis A'lvares, Barcelona, 1934.
38 Conceptos y formas fundamentales del Derecho. Esbozo de una teoria formal del Derecho y del Estado
sobre base fenomenolgica (1924), trad. cast. E. Garcia Maynez, Buenos Aires, 1942.39
Ob. cit., pp. 21-29, 118 e 140-141.
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De acordo com a teoria fenomenolgica do Direito do mestre vienense, o
conceito jurdico fundamental e decisivo o de facto jurdico, de que so espcies,
tanto o dever jurdico e o direito subjectivo como aprestao e a sano.
Para Schreier, o facto jurdico deveria compreender-se como o pressuposto ou
o aspecto condicionante do preceito jurdico ou como o facto juridicamente
relevante, o que lhe permitia introduzir aqui algumas distines, como as que
separam os factos jurdicos independentes ou totais dos dependentes ou parciais,
ou os factos jurdicos compatveis dos incompatveis.
Assim, seriam factos jurdicos dependentes aqueles que s podem existir como
parte de uma totalidade e independentes ou totais os que existem por si. Daqui
decorre, ento, que determinados factos jurdicos podem fundir-se num todo
superior que os compreenda, enquanto outros no tm essa possibilidade, ou seja,
h factos jurdicos que so compatveis entre si, enquanto outros se apresentam
como incompatveis, por se destrurem reciprocamente, o que impede que sejam
dependentes ou venham a constituir parte de um todo, notando, contudo, o
jurisfilsofo austraco que tanto a dependncia como a incompatibilidade poderiam
ser absolutas ou meramente relativas40.
VI. Na sua teoria dos conceitos jurdicos fundamentais, Eduardo Garcia
Maynez (1908-1993) distingue duas categorias, que denomina, respectivamente,
conceitos lgico-jurdicos e conceitos ontolgico-jurdicos.
Relativamente ao primeiro grupo, pensava o jurisfilsofo mexicano, como
Stammler, que os conceitos que compreendia seriam os que se encontravam
contidos no prprio conceito de Direito, que, segundo ele, deveria definir-se com a
regulamentao bilateral, externa e coercvel do comportamento humano41.
Assim sendo, os primeiros conceitos lgico-jurdicos fundamentais nopoderiam deixar de ser os de norma jurdica atributiva e de norma jurdica
prescritiva, uma vez que a regulamentao jurdica se consubstancia na conexo
necessria e recproca de uma norma que obriga e outra que faculta. Esclarecia,
ainda, Garcia Maynez que a primeira daquelas normas a que concede, a um ou
mais sujeitos, um direito cujo exerccio est garantido pela imposio, a outro ou a
outros, de um dever de observar a conduta que possibilita o exerccio e cabal
40 Ob. cit., pp. 145-254.
41 Lgica del concepto jurdico, p.158.
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satisfao das faculdades do pretensor, enquanto a segunda a que impe, a uma
ou mais pessoas, o dever de observar a conduta requerida para o exerccio e cabal
satisfao do direito que a correspondente norma atributiva concede a outro, ou
outros, sujeitos.
Por sua vez, no conceito de regulamentao bilateral esto implicados os
conceitos de pressuposto jurdico, entendido como a hiptese de cuja realizao
depende o nascimento de consequncias jurdicas (faculdades ou deveres) e de
disposio, i.e, da parte da norma que indica que direitos ou deveres esto
condicionados pela verificao do pressuposto.
Por outro lado, porque toda a norma jurdica, tanto atributiva como prescritiva,
composta por trs elementos lgicos, o sujeito, a cpula e o predicado, tambm
estes revestem a natureza de conceitos lgico-jurdicos fundamentais.
Deste modo, e tendo em conta que, do ponto de vista lgico, as normas so
juzos relacionais de carcter normativo, o conceito sujeito da norma atributiva o
que indica o titular do direito atribudo pela norma, enquanto o da norma prescritiva
o referido ao sujeito passvel do dever que o preceito impe.
Relativamente cpula, notava o jurisfilsofo mexicano que a atributiva seria o
elemento da regulamentao bilateral cuja funo conferir um direito e a prescritiva
aquela cuja funo impor um dever jurdico. Quanto ao predicado relacionalda
norma atributiva, o elemento da disposio que determina o objecto do direito e a
pessoa ou pessoas passveis do correlativo dever, ao passo que o da norma
prescritiva o elemento da disposio que determina o objecto do devere indica o
titular do direito correlativo.
De acordo com o pensamento de Garcia Maynez, os conceitos ontolgico-
jurdicos fundamentais so o correlato objectivo dos lgico-jurdicos. Assim, os
correlatos de norma atributiva e de norma prescritiva so os conceitos de relaocondicionante do direito e de relao condicionante do dever, tal como o correlato do
pressuposto, no plano da conduta, o facto jurdico e o da disposio, so relaes
jurdicas entre duas ou mais pessoas, o vnculo que as normas estabelecem entre o
sujeito do direito e o sujeito do dever e que, consoante se referiam a disposio
atributiva ou a prescritiva, o autor mexicano designa por relao jurdica directa ou
relao jurdica conversa. Por outro lado, o correlato objectivo do conceito-sujeito, no
plano da conduta juridicamente regulada o sujeito de direito, como titular do direitoou o passvel de dever que a norma concede ou impe, enquanto os correlatos de
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cpula prescritiva e atributiva so, respectivamente, conceitos de dever jurdico e de
direito subjectivo e os correlatos do predicado das normas atributiva e prescritiva
so, respectivamente, o objecto do direito e o objecto do dever, os quais so sempre
uma forma de conduta42.
VII. O jurisfilsofo espanhol Lus Recasns Siches (1903-1977) distinguia, no
conjunto dos conceitos jurdicos, dois grandes grupos:
a) Os conceitos a priori, universais, constantes e necessrios, essncias
intrinsecamente vlidas de carcter formal, que constituem a trama de
toda a realidade jurdica e, nessa medida, so condio de possibilidade
de todo o conhecimento jurdico, apresentando-se, por isso, como
conceitos jurdicos fundamentais;
b) Os conceitos empricos, contingentes, histricos, de instituies de direito
positivo, i.e., conceitos de realidades jurdicas criadas pelos homens em
determinado tempo e lugar, figuras jurdicas concretas, surgidas numa
determinada circunstncia social, com destino a essa mesma
circunstncia.
Segundo o pensador espanhol, incluir-se-iam na primeira categoria de
conceitos jurdicos, entre outros, os de norma jurdica, dever jurdico, direito
subjectivo e personalidade jurdica, ao mesmo tempo que seriam exemplo da
segunda os conceitos de hipoteca, enfiteuse, letra de cmbio, pena de priso,
imposto sobre o rendimento ou subsdio de desemprego43.
VIII. Mais recentemente, Arthur Kaufmann (1923-2001) distinguiu entre o que
denominava conceitos jurdicos imprprios ou conceitos juridicamente relevantes,aqueles que o legislador usa e vai buscar a linguagem comum ou corrente, e
conceitos jurdicos fundamentais, que, diversamente daqueles, no provm da
realidade emprica exterior, mas so dados apriorstica e necessariamente com o
42 Ob. cit., pp. 157-187.
43 Experiencia juridica, naturaleza de la cosa y lgica "razonable", Mxico, 1971, p. 502. Ver, igualmente,
Tratado general de Filosofa del Derecho, Mexico, 1959, caps. 9-11 e Introduccin al estudio del Derecho, id.,1970, parte V. Benito de Castro Cid, La filosofia jurdica de Luis Recasens Siches , Salamanca, 1974, pp.139-151, inclui, ainda, entre os conceitos jurdicos fun-damentais, segundo este autor, os de ordem jurdica
vigente e de Estado, o que no se afigura correcto, designadamente luz da primeira e da terceira obras de
Recasens Siches atrs citadas.
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Direito, constituindo, por isso conceitos jurdicos prprios ou autnticos ou categorias
jurdicas.
Entendia o jurisfilsofo alemo ser grande, embora no ilimitado, o nmero dos
conceitos jurdicos fundamentais, do mesmo passo que reconhecia haver diferentes
possibilidades para a sua sistematizao, nenhumas das quais poderia pretender-se
definitiva.
Assim, na sistematizao que propunha, considerava apenas cinco conceitos
jurdicos fundamentais: o de norma jurdica,proposio ou regra jurdica, o de fontes
do Direito, o de facto jurdico, o de relao jurdica e o de sujeitos jurdicos44, que s
parcialmente vem a coincidir com a avanada por Recasens Siches, qual h a
censurar a referncia a personalidade jurdica em vez de mencionar os sujeitos
jurdicos, noo dotada de maior universalidade do que aquela, directamente
dependente do conceito depessoa, especfico da tradio especulativa ocidental, de
matriz judaico-crist.
IX. Esta diversidade de concepes sobre quais sejam os conceitos jurdicos
fundamentais decorre, em primeira instancia, de igual diversidade de pontos de
partida filosfico-jurdicos e, depois, da prpria noo de conceito jurdico
fundamental, que est longe de se apresentar como unvoca, como parece resultar
com suficiente clareza de tudo o que antecede.
Assim, desde os que reduzem aquela noo a um nico conceito, como
Schreier, ou a dois conceitos de certo modo complementares, como Reinach, at
aos que apresentam uma lista mais ou menos extensa ou complexa de conceitos
jurdicos fundamentais, como Stammler ou Garcia Maynez, grandes diferenas se
registam entre os autores que desta matria se ocuparam e de que a exposio
anterior se pretende mais exemplificativa do que, propriamente, exaustiva.Do nosso ponto de vista e da noo de que partimos, afigura-se-nos que
revestem a natureza de verdadeiramente fundamentais, por necessariamente
comuns a toda e qualquer ordem jurdica e por no constiturem modalidade ou
espcie de qualquer outro conceito, os seguintes: norma jurdica, sujeito jurdico,
acto jurdico, relao jurdica, dever jurdico, direito subjectivo, responsabilidade,
sano epropriedade.
44 Filosofia do Direito, trad. cit., pp. 142-158.
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Diversamente do que fazem alguns dos autores atrs considerados, pensamos
no dever incluir aqui conceitos como os de personalidade jurdica, demasiado
vinculado tradio jurdica ocidental, ou os de contrato, acto ilcito ou crime, dado
constiturem conceitos derivados do conceito de acto jurdico e, nessa medida no
serem conceitos verdadeiramente primeiros ou fundamentais. De igual modo, no se
nos afigura revestir a natureza de fundamental o conceito de Estado, visto havermos
recusado a noo de estadualidade do Direito defendida pelo positivismo jurdico e
sustentado no ser o Estado o nico produtor de normas jurdicas, nem constituir a
lei a nica fonte de Direito45.
CAPTULO III
A Hermenutica Jurdica
1 A hermenutica
13. A hermenutica como primeiro momento da racionalidade jurdica prtica.
Como se notou acima, a racionalidade lgica, que cuida apenas de categorias
e conceitos formais, independentemente de valores ou contedos valorativos, no
esgota o domnio da racionalidade jurdica, pois o Direito, enquanto ordem
normativa, tem uma essencial dimenso prtica, destina-se a regular, ordenar ou
rectificar a conduta social, de acordo com determinados valores que pretende tornar
efectivos na vida humanaintersubjectiva.
Assim, toda a norma jurdica, para alm da sua estrutura lgico-formal, tem
sempre um determinado contedo, que envolve e implica, necessariamente, conduta
e valor.
Deste modo, ao lado da lgica jurdica, que corresponde ao momento ouaspecto formal da racionalidade jurdica, depara-se-nos o amplo domnio da
racionalidade jurdica prtica, que o que diz respeito aplicao ou
concretizao singular da normatividade jurdica, a qual implica, como seu primeiro
momento, uma instncia hermenutica, a compreenso e determinao do sentido
actual e concreto da prescrio normativa respeitante ao caso decidendo, com vista
a permitir uma deciso justa.
45 Sentido e valor do Direito, ed. cit., pp. 77 e 157-158.
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Por outro lado, a natureza prtica da normatividade jurdica e a sua constitutiva
componente axiolgica, assim como tornam a interpretao do Direito estreitamente
dependente da sua aplicao, fazem, igualmente, que a tarefa da hermenutica
jurdica tenha uma necessria dimenso estimativa, envolvendo ou implicando
sempre uma mediao ou um momento valorativo, pois a deciso jurdica tem um
objectivo normativo e uma natureza concretizadora, constitutiva, normativamente
criadora e no meramente cognitiva ou subsuntiva.
A hermenutica jurdica aparece-nos, assim, como irrecusvel primeiro
momento ou primeira instncia do processo de racionalidade jurdica prtica.
Porque, porm, a tarefa ou a actividade hermenutica inerente a toda a
realidade cultural, maxime quela que se objectiva em palavras e em textos,
necessrio se torna, enquadrar a interpretao jurdica no campo mais vasto da
teoria geral da hermenutica.
14. Conceito de hermenutica
I. O termo hermenutica provm do grego hermeneuin, que significa declarar,
anunciar, interpretar, esclarecer, levar compreenso.
Admite-se, geralmente, que derive de Hermes46, visto na mitologia grega como
mensageiro dos deuses e inventor da palavra. assim que se lhe referem Homero e
Hesodo, quando, no hino a Hermes, o primeiro o designa como enviado por Zeus
para misses delicadas, como arauto dos deuses ou mensageiro de todos os
imortais47 ou na Teogonia, o segundo escreve que de Zeus, Maia, filha de Atlas,
gerou o ilustre Hermes, arauto de todos os imortais48. Por sua vez, Plato, no
dilogo Crtilo, afirma que o nome de Hermes parece relacionar-se com o discurso,
pois ser intrprete, mensageiro (...) so actividades referentes ao poder do
discurso lembrando que o termo ireinsignifica servir-se do discurso, e Eirneus,
de que proveio o nome Hermes, designa aquele que imaginou a palavra49.
Esta radicao da hermenutica em Hermes enquanto mensageiro ou arauto
dos deuses poderia explicar que aquela tivesse comeado por significar a
46Ver p. e., Gadamer, La philosophie hermneutique, trad, franc. Jean Goudin, Paris, PUF, 1996, p. 85, EmerichCoreth, Questes fundamentais de hermenutica, trad. port. Carlos Lopes de Matos, So Paulo, 1973, p. 1,Richard E. Palmer, Hermenutica, trad. port. Maria Lusa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Ed. 70, 1986, p. 23 eGeorges Gusdorf, Les origines de lhermneutique, Paris, Payot, 1988, pp. 19-21.
47 Hino a Hermes, v. 480 e segts. 48
Teogonia, v. 938-939.49
Crtilo, v. 408a.
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compreenso e a exposio de uma sentena dos deuses ou de uma mensagem
divina e a inicial dimenso sagrada conferida hermenutica, que, na tradio
cultural ocidental, surge ligada s questes relacionadas com a interpretao do
texto bblico. Registe-se, a este propsito, que a hermenutica bblica tem certo
parentesco ou semelhana com a hermenutica jurdica, havendo mesmo
beneficiado, em medida no despicienda, da tradio romana da interpretao do
Direito.
Esta aproximao ou afinidade entre estas duas formas de hermenutica
facilmente compreensvel se se atentar em que, em ambos os casos, se trata de
interpretar textos que falam de uma forma normativa e autoritria, tendo os dois uma
pretenso de validade e de obrigatoriedade e sendo, nesse sentido, apresentados
ao intrprete para por ele serem compreendidos e expostos, em todos os seus
pormenores, com esse duplo carcter de validade e obrigatoriedade50.
II. Antes de prosseguir, cumpre notar que, no uso antigo de termo
hermenutica, possvel surpreender ou distinguir trs sentidos ou trs orientaes
diferentes.
Assim, ao lado daquele que vimos considerando, que o toma como significando
dizer, exprimir ou afirmar, h ainda outros dois: hermenutica como explicar ou
explicao, sentido este que atribui particular realce ao aspecto discursivo da
compreenso, dimenso explicativa do intrprete, mais do que sua dimenso
expressiva, e hermenutica como traduo ou traduzir de uma lngua para a outra,
de um sistema simblico para outro51.
III. Do que se acaba de dizer ressalta com clareza que o problema fundamental
da hermenutica o problema da compreenso, que o prprio do mundo dacultura e das cincias ou dos saberes que lhe dizem respeito.
Com efeito, enquanto as cincias da natureza explicam, procurando determinar
as relaes causais que ligam os fenmenos ou a regresso causal de um
fenmeno particular a leis gerais, as cincias da cultura ou do esprito compreendem
as realidades culturais, apreendendo o seu sentido.
50Cfr. Emerich Coreth, ob. e trad. cits., p. 2.
51Ver p. e., Emerich Coreth, ob. e trad. cit, p. 1 e Richard Palmer, Hermenutica, trad. cit., pp. 24-41.
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Deste modo, compreender apreender um sentido, sendo este aquilo que se
apresenta compreenso como contedo.
Note-se que, apesar da anterior contraposio entre explicao e compreenso
como o trao essencial que individualiza e distingue as cincias da natureza das
cincias da cultura ou do esprito, toda a explicao no deixa de ser antecedida por
uma compreenso de sentido, pois o investigador das cincias da natureza tem de
comear por compreender o fenmeno individual, de o apreender na sua
singularidade, no seu contedo e estrutura, ainda que de um modo provisrio, antes
de poder explic-lo, o que significa que, prvia oposio ou contraposio, de
natureza metodolgica, entre explicar e compreender, existe uma compreenso
mais original e mais ampla. Deste modo, a compreenso apresenta-se-nos como
uma apreenso mais alta de sentido, que ultrapassa e precede a explicao
causal52.
Mas porque consiste na apreenso de um sentido, a compreenso no
pertence mediao do pensamento racional nem imediatez da viso intelectual,
admitindo que o domnio da razo a capacidade do pensamento discursivo,
enquando o intelecto ser a capacidade de percepo espiritual imediata, de intuir o
que imediatamente dado, o ser e as suas leis e os contedos da essncia53, aquilo
a que, num grau sumo, Jos Marinho designou por viso unvoca enquanto viso
instantnea do ser e da verdade e da verdade do ser54.
IV. A experincia hermenutica e a compreenso que a constitui apresentam
uma estrutura circular, aquilo a que, desde Heidegger, se vem chamando o crculo
hermenutico. Quer-se com isto dizer que a compreenso do sentido ou do
contedo singular condicionada pela compreenso do todo em que se integra,
sendo, por sua vez, a compreenso do todo mediada ou condicionada pelo contedosingular, isto , que, quando referida a um texto, situao a que muitos autores tm
circunscrito a hermenutica, indicar que o significado das palavras que o compem
s se alcana a partir do contexto de sentido do prprio texto, o qual, por seu turno,
apenas poder ser compreendido a partir do significado das palavras que o
constituem e da combinao dessas mesmas palavras.
52 Cfr. Emerich Coreth, ob. e trad. cit. p. 49.53
Coreth, idem, pp. 46-48. 54
Teoria do ser e da verdade, Lisboa, 1961.
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V. Mas se o contedo ou o sentido singular sempre apreendido na totalidade
de um contexto de sentido, o qual pr-compreendido e co-apreendido, de modo a
tornar-se condio de abertura de sentido do contedo singular, isso significa que,
subjacente a toda a compreenso, se encontra aquilo a que a filosofiahermenutica
contempornea designa porpr-compreenso, a qual decorre, directamente, do
mundo de experincias e de compreenso do intrprete e define uma via de acesso
prpria compreenso,pr-compreenso essa que, constituindo um pressuposto de
acesso compreenso, se relaciona, dialecticamente, com ela, num processo em
que cada um dos elementos medeia o outro mas por ele pressuposto e
determinado, fazendo que o processo de compreenso seja um processo
ascendente, mais prximo, por isso, da espiral do que do crculo.
VI. A actividade hermenutica e a experincia da compreenso apresentam
uma estrutura no s dialctica entre a pr-compreenso e a compreenso mas
tambm dialgica, pois nela o intrprete procura desvelar o sentido de uma criao
espiritual objectivada num texto ou em qualquer outro suporte material ou natural,
dilogo esse sempre marcado pela temporalidade e pela historicidade, j que a
demanda de sentido ou contedo significante da obra interpretanda sempre feita a
partir do concreto presente do intrprete e transcende a inteno do respectivo
autor, j que o prprio das criaes espirituais objectivarem-se, passando a
constituir um conjunto de virtualidades de sentido, que, vo sendo descobertas,
criadoramente, na relao hermenutica que com ela vo estabelecendo, ao longo
do tempo, os que com elas entram em contacto, numa relao complexa,
simultaneamente vivencial, intuitiva e cognitiva, que lhe vai conferindo nova vida
espiritual ou novo ou renovado contedo significativo. Deste modo, como escreveu
Alexandre F. Morujo, a actividade hermenutica consiste em transpor um contextode sentido de um outro mundo para o seu prprio mundo55.
15. Origem e percurso histrico da hermenutica
I. Embora o termo hermenutica haja aparecido, pela primeira vez, em 1654,
no ttulo de uma obra de J. C. Danhauer56, com o sentido de mtodo expositivo das
Sagradas Escrituras, a hermenutica surgiu com as questes suscitadas pela
55 Percurso e natureza da hermenutica, Estudos filosficos, vol. II, Lisboa INCM, 2004, p. 488.
56 Hermenutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litteraturum .
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interpretao correcta do Antigo Testamento, tendo-se desenvolvido depois do
advento do cristianismo, abrangendo agora todo o texto bblico, na exegese dos
Padres da Igreja, a partir dos sculos II e III da nossa era, com o confronto entre a
escola de Antioquia, que considerava, exclusivamente, o sentido literal dos Livros
Sagrados, e a escola de Alexandria, que procurava neles um sentido espiritual,
recorrendo, para isso, exposio simblico-alegrica.
Orgenes (185-c.254), primeiro, e Santo Agostinho (354-430), depois,
procuraram considerar estes dois modos de interpretar, distinguindo o Bispo de
Hipona diversos sentidos no texto Bblico57.
A reforma luterana, rompendo com o ensino tradicional da Igre-ja Catlica,
defendia o regresso pura palavra da Escritura, devendo o seu sentido ser
procurado por cada um como seu intrprete, processo que o racionalismo iluminista
reforar, ao excluir o carcter de revelao sobrenatural e de mistrio de toda a
interpretao do texto sagrado, que deveria ser entendido como mera religio
racional (Locke) ou num sentido exclusivamente moral (Kant).
II. Ser, precisamente, por esta poca que surgir a primeira tentativa de
construo de uma teoria geral da hermenutica, de carcter filosfico, que procura
determinar as regras para a compreenso de qualquer texto e no j apenas das
Sagradas Escrituras.
Coube a Friederich Shleiermacher a tarefa de lanar as bases desta nova
cincia filosfica, nele entendida como cincia da compreenso lingustica, com vista
ao uso prtico de um texto falado ou escrito.
Na linha metodolgica da hermenutica inscrever-se-o, depois, Wilhelm
Dilthey, que via nela a teoria da compreenso de formas objectivas histricas, cuja
estrutura e legalidades devem ser apreendidas, a partir de uma vivncia e, emmeados do sculo XX, Emlio Betti, que logrou realizar uma teoria geral da
interpretao, que fora o fracassado intento de Shleiermacher.
Ao lado desta corrente, de carcter essencialmente metodolgico, com
Heidegger surgiu, na primeira metade do sculo XX, uma corrente ontolgica ou
filosfica da hermenutica, como hermenutica da existncia, como interpretao da
primeira compreenso do homem em si e do ser, linha que foi prosseguindo, depois,
57 De doctrina christiana (c. 427).
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pelo seu discpulo Hans-Georg Gadamer e por Paul Ricur, que a concebia como
hermenutica fenomenolgica.
Mais recentemente, assistiu-se ao aparecimento de uma nova corrente no
pensamento hermenutico, no mbito da denominada Escola de Frankfurt, agora de
sentido crtico e dialctico, atravs de Karl-Otto Apel e Jrgen Habermas58.
Vamos considerar em seguida as posies essenciais destes diversos autores
em matria hermenutica, segundo as trs grandes orientaes que acabamos de
referir: a teoria hermenutica, de raiz metodolgica, a filosofia hermenutica, de
vocao ontolgica e a hermenutica crtica59.
16. A teoria hermenutica
16.1. Friedrich Shleiermacher.
I. Como tem sido repetidas vezes sublinhado60, o mrito maior do telogo,
fillogo e filsofo alemo Friedrich Daniel Ernst Shleiermacher (1768-1834) consistiu
em ter superado a fragmentao da hermenutica, na qual coexistiam uma
hermenutica jurdica, uma filologia dos textos clssicos, em especial gregos e
latinos, e uma exegese do Antigo e do Novo Testamento, para, centrando-se na
investigao das condies de possibilidade da compreenso de qualquer texto,tentar chegar a uma hermenutica geral, determinao do que, para alm da
diversidade dos vrios gneros de interpretao, os unifica e lhes comum.
Como percucientemente observou Paul Ricur, para alcanar tal desiderato
era necessrio ultrapassar a particularidade dos textos e, tambm, a particularidade
das regras pelas quais se dispersa a arte de compreender, era preciso ascender da
exegese e da filologia at uma tecnologiaque no se limitasse a ser uma mera
coleco de operaes avulsas.Embora tributria do criticismo kantiano, em cujo clima espiritual foi pensada, a
hermenutica de Shleiermacher, pelo influxo romntico que tambm lhe subjaz,
acabou por vir a preencher uma lacuna do prprio kantismo, limitado pela sua
preocupao de determinar as condies universais da objectividade do
58 Para maiores desenvolvimento, ver G. Gusdorf, ob cit., e Rui Magalhes, Introduo her-menutica,
Coimbra, Angelus Novus, 2003.59
Cfr. Josef Bleicher, Hermenutica Contempornea, trad. port. Maria Georgina Segurado, Lis-boa, Ed. 70,2002.
60 Ver p. e., Paul Ricur, Du texte laction. Essais dhermenutique, II, Paris, Seuil/Esprit, 1986, p. 76 e
Alexandre F. Morujo, ob. e loc. cits., p. 490.
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conhecimento em fsica e em tica, o que o levava a uma concepo ou a um
entendimento impessoal do esprito, dotado das condies de possibilidade de
juzos universais.
A esta concepo contraps Shleiermacher uma outra, radicalmente diversa,
de clara provenincia romntica: a de que o esprito o inconsciente criador,
operando nas individualidades geniais61.
Assim, como notou ainda o mesmo filsofo francs, o programa hermenutico
do pensador alemo apresenta uma marca romntica, no apelo que faz a uma
relao viva com o processo de criao cultural e, ao mesmo tempo, uma marca
crtica, no seu intento de estabelecer as regras universalmente vlidas da
compreenso62.
II. Desde os seus primeiros esboos de hermenutica63, o filosofo germnico
afirma a necessidade de uma hermenutica geral, sustentando que ela assenta no
facto da compreenso do discurso, do que decorreria, ento, que a arte de
interpretao a arte de possuir ou dispor de todas as condies necessrias
compreenso. Por sua vez, a compreenso orientar-se-ia tanto para a lnguagem
como para os pensamentos, o que no significaria que houvesse duas espcies de
interpretao, pois qualquer delas deve considerar tanto a linguagem como os
pensamentos.
Por outro lado, caberia ter em conta que discurso algum pode ser interpretado
a partir de si mesmo, mas apenas num contexto mais amplo, assim como a
compreenso do todo condicionada pela do pormenor, tal como, inversamente, a
compreenso do pormenor determinada pela compreenso do todo. Isto no
impede, porm, que a totalidade deva ser, provisoriamente, compreendida como
indivduo de um gnero, ou seja, que a compreenso formal da totalidade devapreceder a compreenso material do pormenor.
Cumpriria, igualmente, ter em conta que a hermenutica parte de dois pontos
de vista inteiramente diferentes, o que significa envolver ela um certo carcter
aportico; o compreender na linguagem e o compreender naquele que fala, o que
61 Obra cit., p. 79.
62 Idem, p. 79.
63Os vrios ncleos de aforismos, esboos, notas e fragmentos de Schleiermacher sobre her-menutica
datam de 1805, 1809-1810, 1819, 18