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  • 8/3/2019 A+Razo+j..

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    Antnio Braz Teixeira

    A Razo Jurdica IApontamentos

    deFilosofia do Direito e Metodologia Jurdica II

    Faculdade de Direitoda

    Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias

    2010/2011

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    NDICE

    CAPTULO I DIREITO, LINGUAGEM E RAZO

    1. Direito e linguagem ............................................................................................ 12. Papel da razo no Direito .................................................................................. 2

    3. As formas da racionalidade jurdica .................................................................. 3

    CAPTULO II A LGICA JURDICA

    1 Conceito e mbito da Lgica Jurdica:

    4. Lgica apofntica e lgica normativa ou dentica ............................................. 6

    5. Lgica normativa e lgica jurdica ..................................................................... 8

    6. mbito da lgica jurdica .................................................................................... 8 2 O juzo jurdico-normativo:

    7. Estrutura lgica da norma jurdica .................................................................... 9

    8. Natureza do juzo jurdico-normativo .............................................................. 11

    9. Classificaes dos juzos normativos ............................................................. 13

    3 Os conceitos jurdicos:

    10. Noo e especificidade dos conceitos jurdicos .............................................. 15

    11. Classificaes dos conceitos jurdicos ............................................................ 17

    12. Conceitos jurdicos fundamentais ................................................................... 19

    CAPTULO III A HERMENUTICA JURDICA

    1 A hermenutica:

    13. A hermenutica como primeiro momento da racionalidade jurdica prtica .... 29

    14. Conceito de hermenutica .............................................................................. 30

    15. Origem e percurso histrico da hermenutica ................................................ 33

    16. A teoria hermenutica:

    16.1. Friedrich Shleiermacher ........................................................................... 35

    16.2. Wilhelm Dilthey ......................................................................................... 38

    16.3. Emilio Betti ................................................................................................ 43

    17. A filosofia hermenutica:

    17.1. Martin Heidegger ...................................................................................... 46

    17.2. Hans-Georg Gadamer .............................................................................. 51

    17.3. Paul Ricur.............................................................................................. 57

    18. A hermenutica crtica:

    18.1. KarlOtto Apel .......................................................................................... 62

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    18.2. Jrgen Habermas ...................................................................................... 65

    2 A hermenutica jurdica:

    19. Da hermenutica geral hermenutica jurdica .............................................. 69

    20. A hermenutica jurdica do sc. XIX:

    20.1. A Escola da Exegese ............................................................................... 70

    20.2. A Escola Histrica do Direito (von Savigny) ............................................. 72

    20.3. A jurisrisprudncia dos conceitos ............................................................. 78

    20.4. O positivismo jurdico ............................................................................... 82

    21. A reaco anti-conceptualista:

    21.1. O Movimento do Direito Livre ................................................................... 84

    21.2. A jurisprudncia dos interesses ................................................................ 87

    22. A hermenutica jurdica contempornea:

    22.1. A hermenutica anaItico-descritiva (Alf Ross) ......................................... 90

    22.2. A interpretaco jurdica como anlise da linguagem (Norberto Bobbio) .... 94

    22.3. A Igica do razovel (Recasns Siches) .................................................. 96

    22.4. A hermenutica jurdica estrutural (Miguel Reale) .................................. 100

    22.5. A interpretao teleolgica (Karl Engisch) .............................................. 103

    22.6. A hermenutica jurdica (Karl Larenz) .................................................... 105

    22.7. A interpretao jurdica construtiva (Ronald Dworkin) ............................ 110

    22.8. Aulis Aarnio: interpretao, justificao e aceitabilidade social .............. 113

    23. Interpretao, aplicao e argumentao ..................................................... 116

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    CAPTULO I

    Direito, Linguagem E Razo

    1. Direito e linguagem

    Como objecto ou realidade cultural, como criao espiritual do homem

    destinada a conferir efectividade a determinados valores, o Direito compartilha com

    a filosofia e com a literatura o exprimir-se em palavras, o ter na linguagem o seu

    elemento constitutivo essencial, distinguindo-se, contudo, de uma e de outra pelo

    modo ou funo com que, nele, a linguagem usada, pois, enquanto, na primeira, o

    seu uso tem uma funo descritiva, para dar a conhecer a realidade ou dizer a

    verdade do ser, e, na segunda, a linguagem tem uma funo expressiva, visando

    comunicar emoes, no Direito, como na moral, no mandamento religioso ou nos

    usos sociais, a funo da linguagem de carcterprescritivo, destinada a ordenar a

    conduta do homem nas suas relaes intersubjectivas, pelo que se objectiva em

    normas, que constituem uma ordem normativa1.

    Do Direito pode dizer-se, por isso, ser todo ele linguagem, j que nada h nele

    que possa conceber-se fora da linguagem. Com efeito, em todos os seus momentos,

    desde a sua formulao normativa at sua concretizao individualizadora na

    deciso judicial, no acto administrativo ou no contrato, desde a sua interpretao at

    argumentao forense, ou no seu tratamento dogmtico pela cincia jurdica, o

    Direito consiste sempre e necessariamente num discurso lingustico distinto da

    linguagem corrente ou da linguagem social e intersubjectiva e dos seus respectivos

    cdigos lingusticos, discurso esse que se tece, se articula e desenvolve com base

    em termos e proposies que exprimem conceitos e princpios prprios, fundados e

    constitudos a partir de uma modalidade especifica de experincia histrica e social,de natureza prtico-axiolgica, vivificada e actualizada, dinmica e criadoramente,

    pelas ideias, crenas e vivncias de cada poca e de cada comunidade humana2.

    1Cfr. Norberto Bobbio, Teoria della norma juridica, Turim, 1958, pp. 82-86 e A. Braz Teixeira, Sentido e valordo Direito, 3ed., Lisboa, 2006, pp.149-159.

    2

    Cfr. H. A. Schwarz-Liebermann von Wahlendor, Politigue, Droit, Raison, Paris, 1982, pp.163-172, ArthurKaufmann, Filosofia do Direito, trad. port. Antnio Ulisses Corts, Lisboa, 2004, pp.161-197 e Fritjof Haft,Direito e linguagem, em A. Kaufmann e W. Hassemberger, Introduo Filosofia do Direito e teoria doDireito Contempornea, trad. port. Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira, Lisboa, 2002, pp. 303-326.

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    2. Papel da razo no Direito

    I. Como notou Norberto Bobbio3, a publicao, quase simultnea, de Sobre o

    Direito e a Justica, de Alf Ross (1958), da 2 edio, consideravelmente ampliada e

    revista, da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen (1960) e de O conceito de Direito,de Herbert Hart (1961), representou um novo folgo ou um momentneo

    renascimento do positivismo jurdico, com a sua implcita reduo da ontologia do

    Direito aos quadros da lgica formal e a sua viso eminentemente imperativista,

    voluntarista e legalista do mundo jurdico, movimento secundado pelo prprio Bobbio

    (Teoria da norma jurdica, 1958 e Teoria do ordenamento jurdico, 1960) e

    prosseguido, nos anos seguintes, pelo inesperado interesse suscitado pela obra e

    pelo pensamento de Bentham.

    Este facto indisputado no deve, porm, fazer esquecer que, na mesma poca,

    se assistiu redescoberta da tpica, por Theodor Viehweg (Tpica e Jurisprudncia,

    1953), e da retrica clssica, por parte de Ch. Perelman (Tratado da argumentao,

    1958) e de Stephen Toulmin (Os usos da argumentao, 1958).

    Ao mesmo tempo, atravs de Emilio Betti (Teoria geral da interpretao, 1955),

    Hans Georg Gadamer (Verdade e mtodo, 1960) e Paul Ricur (Da interpretao,

    1965, O conflito das interpretaes, 1969, Teoria da interpretao, 1976 e Do texto

    aco, 1986), foi retomado o intento de Schleiermacher de construir uma

    hermenutica geral ou uma teoria geral da hermenutica, para que Wilhelm Dilthey

    havia j concorrido, um sculo depois daquele filsofo e telogo alemo e a que M.

    Heidegger deu renovador impulso em Ser e Tempo (1927).

    Estes trs movimentos, praticamente simultneos e em grande parte

    convergentes, nascidos dentro ou a partir da reflexo sobre o Direito como foi o

    caso da tpica jurdica de Viehweg, da nova retrica de Perelman, da lgica dentica

    ou normativa de G. Kalinowski ou da hermenutica de E. Betti ou nele quase

    imediatamente projectados (p.e. a Teoria da argumentao jurdica, de Robert Alexy,

    1978), contriburam, decisivamente, para um novo e diferente entendimento da

    realidade prpria do Direito, da natureza da razo jurdica, da especificidade da

    lgica normativa ou dentica, relativamente lgica apofntica, e das

    3 Il positivismo juridico, Turim, 1978, p.1.

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    particularidades do raciocnio prtico-argumentativo usado pelos juristas na vida

    quotidiana do Direito.

    II. Em conjunto e em diversa medida, tais movimentos inovadores ou

    restauradores de verdades esquecidas, vieram chamar a ateno para que a vida do

    Direito , antes de mais, isso mesmo, i.e., vida e esta no decorre (nem se

    processa) segundo puros processos ou esquemas lgico-dedutivos mas de acordo

    com as exigncias da prpria vida e do concreto agir humano nas suas relaes

    intersubjectivas, pautando-se, constantemente, por valoraes, de base intuitivo-

    emocional, visando alcanar certos fins na ordenao da conduta e da convivncia,

    que devem reger-se ou ordenar-se por critrios de justia.

    Daqui decorre, ento, que h lugar a distinguir, no que respeita ao papel da

    razo no Direito, entre, por um lado, as estruturas lgico-formais do Direito quer da

    norma jurdica, enquanto se exprime atravs de uma proposio normativa e postula

    determinado dever-ser, quer dos conceitos jurdicos formais, gerais ou universais,

    independentes de contedos ou critrios valorativos e, por outro, a aplicao

    efectiva do Direito, a sua individualizao no caso concreto, a deciso judicial dos

    litgios, a aplicao administrativa da lei ou o seu acatamento espontneo, actos

    todos eles de natureza fundamentalmente problemtica, aportica ou casustica.

    Assim, se, quanto ao primeiro caso considerado, so vlidos e adequados os

    processos e categorias da lgica formal, dentica e no j apofntica, pois se trata

    de juzos de dever-ser e no de juzos de ser, de realidade ou de verdade, no que se

    refere ao segundo no vale este tipo de lgica nem so adequados os processos da

    razo dedutiva, porquanto s uma lgica do razovel ou um pensamento tpico ou

    tpico-retrico pode conduzir-nos na tarefa de vivificao do direito, de

    concretizao singular e individualizada dos seus preceitos.

    3. As formas da racionalidade jurdica

    I. O que acaba de referir-se revela que, no campo da racionalidade jurdica, h

    dois essenciais domnios distintos:

    a) O da racionalidade lgica, que o campo da lgica jurdica, de natureza

    formal, como toda a lgica, que cuida apenas de categorias e conceitos

    formais, independentes de valores ou contedos valorativos;

    b) O da racionalidade prtica, que, por sua vez, engloba trs momentos ou trsinstncias diferentes mas complementares e indissociveis:

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    - o hermenutico;

    - o tpico-retrico;

    - o teleolgico-dialctico.

    II. Assim, o momento ou a instncia hermenutica procura determinar o sentido

    actual e concreto da prescrio normativa respeitante ao caso decidendo, pelo que

    implica que interpretao e aplicao devam ser sempre consideradas como tarefas

    complementares e indissociveis. Com efeito, no h uma interpretao genrica e

    abstracta da lei, ou do Direito, independente de situaes concretas mas sim uma

    interpretao que visa a aplicao e parte sempre e suscitada por um problema

    concreto, por um caso singular carecido de soluo ou de deciso.

    Deste modo, a hermenutica jurdica no se reduz nem se identifica com um

    pensamento meramente interpretativo ou cognitivo das fontes de Direito

    consagradas ou admitidas pelo sistema normativo ou pela ordem jurdica vigente,

    tendo em vista encontrar os fundamentos e os critrios das decises, as quais

    seriam correctas na medida em que se traduzissem na insero dos casos a decidir

    nesse mesmo sistema normativo, pois:

    a) A hermenutica jurdica visa uma deciso justa e no uma compreenso

    correcta, implica mais umjuzo estimativo do que umjuzo cognitivo4;

    b) A hermenutica jurdica envolve sempre uma mediao ou um momento

    valorativo que, partindo do problema ou do caso, exige uma certa

    autonomia constitutiva do Direito;

    c) A deciso jurdica no se esgota no momento hermenutico ou na

    concretizao hermenutica, com o seu carcter meramente

    especificante, pois tem um objectivo normativo e uma natureza

    constitutiva, normativa e judicativa;d) A aplicao das normas gerais e abstractas implica sempre e

    necessariamente um processo de individualizao e concreo da norma;

    o processo de aplicao das normas contm sempre algo de novo, que

    no se encontra contido na norma geral, inclui uma essencial dimenso

    criadora ou inovadora: a definio do direito, do devido ou do justo do

    caso concreto5.

    4L. Recasns Siches, Nueva filosofia de la interpretacin del Derecho , Mxico, 1956, p. 185.

    5Recasns Siches, ob. cit., p. 142 e A. Castanheira Neves, Metodologia jurdica, Coimbra, 1993, pp. 76-77.

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    III. O segundo momento corresponde ao domnio da teoria da argumentao ou

    da razo argumentativa, aquela que visa persuadir mediante razes ou argumentos.

    Finalmente, no terceiro momento, efectua-se a concretizao material do

    Direito, na dialctica entre o sistema jurdico e o caso concreto.

    A circunstncia de a aplicao ou concretizao material do Direito implicar

    sempre uma relao dialctica entre o sistema jurdico e o caso concreto, retira

    grande parte do sentido ao debate que, h quarenta anos, ops o pensamento

    sistemtico de Claus-Wilhelm Canaris (Pensamento sistemtico e conceito de

    sistema na Cincia do Direito, 1968) aopensamento tpico de Theodor Viewheg, j

    que um e outro mutuamente se reclamam e completam, constituindo uma unidade.

    IV. Note-se, por outro lado, que o sistema jurdico, enquanto unidade totalizante

    normativa, compreende quatro estratos ou nveis distintos, embora entre si

    relacionados num todo que os integra, que so, sucessivamente, constitudos:

    a) Pelos princpios normativo-jurdicos, positivos e supra-positivos, nos quais

    se funda a validade material e formal do Direito;

    b) Pelas normas prescritas, que conferempositividade ao Direito;

    c) Pelajurisprudncia, que d efectividade ao Direito;

    d) Pela doutrina ou dogmtica jurdica.

    V. Daqui resulta, ento, que uma completa teoria da razo jurdica ou da

    racionalidade jurdica engloba, necessariamente:

    a) A Lgica Jurdica, enquanto teoria (formal) do juzo lgico-normativo e

    enquanto tratado dos conceitos jurdico-formais.

    b) A Hermenutica Jurdica.

    c) A Retrica Jurdica ou Teoria da Argumentao Jurdica, projeco, nodomnio do Direito, do que, na lgica aristotlica, se chamou raciocnio

    dialctico ou raciocnioprtico e que compreende duas partes essenciais:

    a teoria da controvrsia e a teoria da prova6.

    6 A. Giuliani, "La logique comme thorie de la controverse", Arch. phil. Droit, vol. XI, 1966 e "La logique de lacontroverse dans la procedure judiciaire", em Fernando Gil (org.), Controvrsias cientficas e filosficas,Lisboa, 1990.

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    CAPTULO II

    A Lgica Jurdica

    1 Conceito e mbito da Lgica Jurdica

    4. Lgica apofntica e lgica normativa ou dentica

    I. No domnio da lgica formal, que trata das categorias ou formas

    fundamentais do pensamento e da sua expresso atravs da linguagem, deve

    distinguir-se a chamada lgica apofntica da lgica normativa ou lgica das normas,

    tambm designada, modernamente, porlgica dentica.

    Com efeito, ao passo que a primeira, de que, desde Aristteles, se ocupou,

    quase exclusivamente, o pensamento lgico at h meio sculo, se refere ao mundo

    do sere descritiva epredicativa, a segunda reporta-se ao plano de dever-sere

    relacionaleprescritiva.

    Enquanto as proposies prprias da lgica apofntica tm como elemento

    relacionante o verbo sere se pautam pelo valor ou princpio da verdade, as da lgica

    normativa tm como elemento relacionante o dever-ser e como valor ou princpio

    fundamental a validade.Deste modo, ao passo que, na lgica apofntica, as proposies so

    verdadeiras ou falsas, na normativa, elas so vlidas ou invlidas. A proposio, que

    sempre uma forma de sntese de dois ou mais conceitos, na lgica apofntica diz-

    nos que um conceito convm ou no a outro conceito, est ou no includo na

    extenso desse outro conceito, enquanto que, na lgica dentica, estatui uma

    relao entre dois ou mais conceitos.

    II. A distino entre as duas espcies fundamentais de proposies que a

    lgica formal compreende, as apofnticas e as normativas, com base na distino

    entre verdade e validade como atributos essenciais de umas e de outras, admitida

    pela generalidade dos autores, foi contestada por G.H. von Wright e por Georges

    Kalinowski.

    O primeiro considera que a analogia entre aqueles dois valores ou princpios

    carece de base, pois a validade no , no plano das normas, o equivalente daverdade. Segundo Von Wright, enquanto a verdade absoluta, a noo de validade

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    relativa, porquanto uma norma ser valida quando o em relao a outra norma

    superior que permite a sua promulgao ou a sua existncia e no se refere, sequer,

    a validade desta, mas apenas a sua existncia7.

    No se afigura, porm, que esta objeco seja decisiva. Se certo que, no

    domnio lgico, o nico critrio de validade a que pode atender-se de natureza

    formal e se refere, por isso, exclusivamente, relao de conformidade de qualquer

    norma com a forma e o processo de formao estatudo numa norma

    hierarquicamente superior, maxime a Constituio, com expressa excluso de

    qualquer critrio axiolgico-material de validade, pretensamente absoluta, parece

    no dever esquecer-se que, no campo das proposies apofnticas, a noo de

    verdade relevante , igualmente, de natureza formal e se refere, to s, coerncia

    lgica das proposies e ao seu respeito pelos princpios lgicos fundamentais,

    maxime o da no contradio.

    Assim, se as proposies normativas, no plano da mera lgica dentica, se

    reportam apenas a um critrio formal de validade, tambm as apofnticas no tm,

    no estrito domnio lgico, uma garantia ontolgica de verdade, consistindo em

    enunciados cuja verdade , tambm, puramente lgico-formal. Deste modo, tanto a

    verdade das proposies apofnticas como a validade das normas ou das

    proposies normativas tero igual ou equivalente valor ou significado no plano

    lgico, sendo, por isso, legtimo atribuir-lhes sentido e lugar paralelo nos dois ramos

    fundamentais da lgica formal.

    III. Por seu turno, Kalinowski pretende que a distino entre dois tipos de

    proposies baseada na contraposio entre a verdade das apofnticas e a validade

    das normativas no pode ser acolhida porque, em seu entender, no s nada exclui,

    a priori, que as normas morais e jurdicas possam ser verdadeiras ou falsas, como,pelo, contrrio, tudo aponta para que, efectivamente, sejam verdadeiras ou falsas.

    Assim, p.e., segundo o lgico polaco, a proposio "Carlos deve pagar a sua dvida"

    s ser verdadeira se, de facto, Carlos dever pagar uma dvida8.

    Esta objeco no se afigura, porm, mais pertinente do que a de von Wright,

    porquanto a proposio apresentada no exemplo de Kalinoski, apesar de nela figurar

    o verbo dever, uma proposio apofntica e no normativa. Com efeito, trata-se,

    7 Norma y accin. Una investigacin lgica, trad. cast. Pedro Garcia Ferrero, Madrid, 1970.

    8 Le problme de la verit en morale et en droit, Lyon, 1967 e La logique des normes, Paris, 1972.

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    claramente de uma proposio enunciativa e no prescritiva, equivalente a esta

    outra: "Carlos devedor". Uma verdadeira proposio normativa teria, no a

    estrutura apontada no exemplo de Kalinowski, mas antes a seguinte: "Se Carlos

    assumiu o compromisso de pagar, deve pagar a sua dvida".

    Verifica-se, assim, que, do ponto de vista lgico, o elemento decisivo no a

    verdade ou a falsidade desta proposio mas sempre e s a sua validade formal.

    5. Lgica normativa e lgica jurdica

    A lgica jurdica no se identifica com a lgica normativa, no s porque esta

    abrange outros tipos de normas, alem das jurdicas, como as morais e as religiosas,

    como tambm porque apresenta elementos individualizadores no que respeita

    estrutura das proposies normativas, aos tipos de conceitos que emprega ou a que

    recorre e ao grau de definio que deles d, e, ainda, e principalmente, ao decisivo

    papel que os elementos valorativos, tpicos e retricos desempenham no raciocnio

    jurdico9.

    6. mbito da lgica jurdica

    I. A importncia primordial que, na lgica jurdica, ocupa o raciocnio jurdico,

    levou a que se tenha pretendido que aquela mais no deva ser do que uma teoria

    das formas do raciocnio jurdico, em especial dos argumentos a que este mais

    frequentemente recorre como seus prprios (por analogia, a contrario, por maioria

    de razo, por absurdo) j que aqueles se circunscreve a teoria das regras lgico-

    formais que se empregam na aplicao do Direito em que consiste a lgica

    jurdica10.

    II. O mbito da lgica jurdica apresenta-se, no entanto, mais vasto, j que nele

    se integra, de pleno direito, o estudo da estrutura lgica das normas ou das

    proposies normativas, sua natureza e suas espcies, bem como dos conceitos

    jurdicos11.

    Quanto teoria de argumentao como elemento fundamental do raciocnio

    jurdico, dada a sua especificidade e a sua natureza eminentemente tpico-retrica,

    9Cf. G. Kalinowski, "De la spcificit de la logique juridique",Arch.Phil. Droit, vol. XI, 1966.

    10 Ulrich Klug, Lgica jurdica (1951), trad. cast. J. C. Gardella, Bogot, 1990. 11

    E. Garcia Maynez, Lgica del juicio jurdico, Mxico, 1955, Lgica del concepto jurdico, id., 1959 e Lgica delraciocinio jurdico, id.,1964 e G. Kalinowski, Introduction la logique juridique, Paris, 1965.

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    caber, talvez, melhor numa teoria da retrica jurdica do que no mbito da lgica

    normativa formal12.

    Assim, no plano da lgica jurdica, vamos concentrar a nossa reflexo nas

    questes relativas estrutura lgica da norma jurdica, natureza do juzo jurdico-

    normativo e s espcies que neste possvel surpreender e teoria do conceito

    jurdico, deixando o tratamento da problemtica referente ao raciocnio jurdico como

    raciocnio prtico, de natureza tpico-retrico, e argumentao jurdica para

    quando nos ocuparmos da retrica jurdica.

    2 O juzo jurdico-normativo

    7. Estrutura lgica da norma jurdicaI. Do ponto de vista lgico, a norma jurdica reveste a natureza de uma

    proposio relacional, atravs da qual se ligam duas proposies simples ou

    categricas, que passam, assim, a constituir uma nica proposio.

    Sendo uma proposio composta ou relacional13, a norma jurdica estatui

    relao entre sujeitos (de direito) e relao entre tipos de aco ou de conduta,

    resultantes da verificao de pressupostos fcticos, i.e., diz que se ocorrer um facto

    que, por meio do pressuposto a ele referido, entre no mundo jurdico, um sujeitodeve ter ou omitir tal ou qual conduta relativamente a outro sujeito. Diferentemente

    do que ocorre nas proposies prprias da lgica apofntica e predicativa, a cpula

    ou elemento relacionante no aqui o verbo sermas o verbo dever-ser, o qual pode

    assumir trs modalidades denticas diferentes: ter a faculdade de, estar obrigado a

    ou estar proibido, ou seja, triparte-se porpermitido, obrigatrio eproibido.

    Se esta a estrutura geral das proposies jurdico-normativas, casos h, no

    entanto, em que elas no revestem uma estrutura imperativa, ou prescritiva,limitando-se a formular definies, assumindo, ento, natureza meramente

    enunciativa, ou a determinar a perda ou a aquisio de um direito ou a extino de

    um dever (p.e., prescrio ou usucapio), revestindo, por isso ento carcter

    dispositivo14.

    12 Ch. Perelman, Logique juridique. Nouvelle rhtorique, Paris, 1976.13

    Cfr. Jules Lachelier, tudes sur Ie syllogisme, Paris, 1907, pp. 39 e segts. 14

    Karl Larenz, Metodologia da cincia do Direito, 3 ed., trad. port. Jos Lamego, Lisboa, 1997, pp. 355-358.

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    II. Trs observaes cumpre fazer a este respeito, para afastar dvidas ou

    interpretaes deficientes.

    Refere-se a primeira ao facto de, frequentemente, na lnguagem quotidiana, se

    usar a expresso verbal dever-serpara referir a necessidade ou a possibilidade de

    um acontecer regido por leis naturais e no por leis normativas. o que ocorre

    quando, p.e., se diz "amanh deve chover".

    A segunda observao destina-se a chamar a ateno para que,

    frequentemente, as proposies normativas recorrem aos modos verbais do

    indicativo, quer presente quer futuro, ou do imperativo.

    Finalmente, a terceira diz respeito ao facto de nem sempre a proposio

    normativa se encontrar formulada ou contida integralmente num nico artigo da lei,

    podendo as proposies simples que a compem constar de artigos diferentes15.

    III. Alm do elemento relacional, constitudo pelo verbo dever-ser, referido

    conduta como obrigatria, permitida ou proibida, a proposio normativa formada

    por dois outros elementos essenciais, denominados, respectivamente, pressuposto

    ou antecedente e consequncia.

    Sendo os membros da proposio relacional e composta que a proposio

    normativa duas proposies simples, apresentam, contudo, natureza lgica

    diferente.

    Com efeito, enquanto o primeiro membro da proposio normativa

    (pressuposto ou antecedente) descritivo, constituindo um juzo enunciativo, que

    descreve uma possvel situao fctica, seja um facto natural, seja um facto j

    integrado no universo jurdico, o segundo membro daquela proposio

    (consequncia) prescritivo, i.e., prescreve que a relao se constitui entre sujeitos

    (de direito) com a verificao da descrio contida naquele primeiro membro.

    IV. Cumpre notar que, se a relao que, no domnio da lgica jurdica, se

    estabelece entre os dois membros da proposio normativa meramente formal, na

    proposio concreta do direito positivo reveste j a natureza de nexo

    axiologicamente institudo, pois todo o Direito sempre tecido de valoraes e

    constantemente as implica e pressupe.

    15Lourival Vilanova, Lgica jurdica, So Paulo, 1976, pp. 94-95 e 133-114.

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    Da que, como repetidas vezes se notou j, contra as pretenses logicistas de

    algum positivismo jurdico, a lgica seja, s por si, insuficiente e inadequada para a

    construo e a aplicao do Direito, pois estas inscrevem-se num domnio que

    ultrapassa o estritamente lgico, o dos contedos axiolgico-materiais das normas,

    que esto para alm das puras formas lgicas que, analiticamente, nelas se podem

    surpreender ou isolar16.

    8. Natureza do juzo jurdico-normativo

    I. 0 que acaba de ser dito sobre a estrutura e os elementos do juzo jurdico-

    normativo abre seguro caminho ao adequado esclarecimento da sua natureza

    lgica.

    Sendo juzo hipottico, o juzo composto que estabelece uma relao de

    dependncia entre duas ou mais proposies atravs de uma partcula conjuntiva,

    parece inegvel que o juzo jurdico-normativo ou a proposio normativa reveste a

    natureza dejuzo hipottico, como, entre outros, o haviam j visto Stammler, Kelsen,

    Fritz Schreier, Klug ou Garcia Maynez.

    Isto, no entanto, no nos esclarece inteiramente sobre a sua natureza lgica,

    uma vez que o juzo hipottico um gnero que engloba diversas espcies.

    Destas, para o nosso intento, importa apenas considerar trs: os juzos

    disjuntivos, osjuzos conjuntivos e osjuzos condicionais.

    Assim, so disjuntivos os juzos cujos membros, unidos pela conjuno ou,

    mutuamente se excluem; so conjuntivos os que negam a concorrncia simultnea

    de dois predicados no mesmo sujeito, i. e., que os seus membros possam ser

    ambos verdadeiros; so condicionais os que estabelecem uma condio

    (antecedente) da qual depende um condicionado (consequente).17

    II. Qualquer destas trs naturezas tem sido atribuda ao juzo jurdico-

    normativo. Com efeito, enquanto Carlos Cossio18, seguido, neste ponto, por Legaz y

    Lacambra19 e Irineu Strenger20, considerava que o juzo normativo apresentava

    16Cf. Lourival Vilanova, ob. cit., pp. 166-169.

    17Cf. Garcia Maynez, Logica del juicio juridico, pp. 117 e segts. e A. Miranda Barbosa, Lgica, Coimbra, 1940,pp. 223 e segts.

    18 La teoria egolgica del Derecho, pp. 333 e segts. 19

    Filosofia del Derecho, pp. 383 e segts. 20

    Lgica Jurdica, So Paulo, 1999, p.212.

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    natureza disjuntiva, Jorge Mills21 entendia que ele revestia a natureza de juzo

    conjuntivo e K. Engisch22 considerava-o como juzo condicional.

    Contudo, nem a primeira nem a segunda destas qualificaes lgicas

    atribudas ao juzo normativo parece de aceitar, pelas razes que passam a indicar-

    se.

    III. No que respeita tese sustentada pelo fundador da escola egolgica de

    que a norma jurdica constituiria um juzo disjuntivo, deve lembrar-se que,

    implicando, necessariamente, esta espcie de juzos a excluso de um dos

    membros componentes do juzo, no podendo, por isso, ser ambos ao mesmo

    tempo, conduziria, inevitavelmente, destruio da prpria norma jurdica, cuja

    natureza lgica pretende explicar.

    Na verdade, a disjuntiva aqui seria de duas possibilidades de dever, uma das

    quais excluiria a outra, pelo que, se for devido o primeiro, no o ser o segundo.

    Deste modo, ou a norma primria excluiria a secundria, e no haveria sano para

    o incumprimento do dever, ou a norma secundria excluiria a primria, levando a

    que a conduta j no fosse devida. O absurdo a que, em ambos os casos, seramos

    conduzidos parece comprovar no haver aqui qualquer juzo disjuntivo, pois o dever-

    ser da norma primria e o dever-ser da norma secundria implicam-se mutuamente,

    nenhum deles podendo ser sem o outro.

    IV. Tambm a tese que v na norma jurdica um juzo conjuntivo, demasiado

    preocupada em salvar o que considerava positivo e inovador na viso de Cossio, ou

    seja, a compreenso do juzo normativo como complexo proposicional ou como

    proposio compsta, sem incorrer no erro daquela, se no afigura adequada.

    Entendia o professor chileno que a norma jurdica um complexo proposicionalde carcter conjuntivo, pois se traduz na coexistncia de dois elementos na

    proposio normativa, coordenados conjuntivamente. Assim, o juzo normativo

    obedeceria ao seguinte esquema: Se A , B deve ser e se B no , dever-ser S. O

    evidente artificialismo desta frmula, claramente dependente do esquema disjuntivo

    proposto pelo jurisfilsofo argentino, revela, involuntariamente, que o decisivo, no

    21 El problema de las formas de la proposicin juridica , Santiago de Chile, 1954.

    22 Introduo ao pensamento jurdico (1956), trad. port. Joo Baptista Machado, Lisboa,1965.

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    juzo normativo, o seu carctercondicional bem denunciado nos dois

    condicionais (se) nela usados e no a sua pretensa natureza conjuntiva.

    Da concluirmos que, do ponto de vista lgico, a norma jurdica constitui um

    juzo hipottico condicionale no um juzo disjuntivo ou conjuntivo.

    9. Classificaes dos juzos normativos

    I. Os juzos podem classificar-se com base nas categorias de quantidade,

    qualidade, modalidade e relao. Esta ltima categoria diz respeito natureza do

    prprio juzo normativo, assunto de que acabamos de ocupar-nos no nmero

    precedente.

    II. Assim, considerados do ponto de vista da qualidade, os juzos enunciativos

    podem seruniversais ouparticulares.

    Pertencem primeira categoria aqueles em que o predicado se afirma ou nega

    relativamente a todos os objectos compreendidos na classe designada pelo

    conceito-sujeito; nos casos em que o predicado no referido totalidade mas

    apenas a uma parte dos objectos designados pelo conceito-sujeito, o juzo diz-se

    particular23.

    Quando consideradas do ponto de vista da quantidade, as proposies

    normativas dividem-se em genricas e individualizadas. Cabem no primeiro grupo as

    que obrigam ou concedem faculdades a todos os sujeitos compreendidos na classe

    designada pelo conceito-sujeito; integram-se no segundo as que obrigam ou

    concedem faculdades a certos membros individualmente determinados daquela

    classe.24

    III. Do ponto de vista da qualidade, as proposies normativas podem serpositivas ou negativas. Dizem-sepositivas as quepermitem certa conduta, que tanto

    pode consistir numa aco como numa omisso; por seu turno, so negativas as

    queprobem certo comportamento (aco ou omisso).

    Como adverte Garcia Maynez25, o que determina a qualidade de uma norma

    no a circunstncia de prescrever uma aco ou proibir uma aco. Com efeito, as

    23

    A. Miranda Barbosa, ob. cit., p. 214 e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 99 e segts.24Cf. Garcia Maynez, ob. cit., p. 107.

    25Idem, p. 89.

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    que prescrevem a omisso da conduta juridicamente proibida so positivas, pois a

    omisso dessa conduta , simultaneamente, obrigatria e lcita. Assim, o que

    condiciona a qualidade, positiva ou negativa, das normas jurdicas o facto de

    permitirem ou proibirem uma aco ou uma omisso e no o de prescreverem

    aces ou imporem omisses. Daqui decorre, ento, que o objecto das normas

    positivas uma conduta jurdicamente lcita e o das negativas um proceder

    juridicamente ilcito.

    IV. No que diz respeito ao modo ou modalidade, as proporsies enunciativas

    podem consistir numa afirmao do ser, de uma possibilidade do ser ou da

    necessidade do ser. Deste modo, conforme afirme o ser ou um destes seus modos

    de ser, o juzo enunciativo ser, respectivamente, assertrio, problemtico ou

    apodctico.

    J quanto aos juzos normativos, porque sempre estabelecem

    condicionalmente um dever ou concedem, tambm condicionalmente, um direito,

    so sempre juzos apodcticos, uma vez que a permisso ou a obrigao sempre

    de ndole necessria26.

    V. Sintetizando o que antecede, teremos ento:

    genricos

    Quanto quantidade

    individualizados

    positivos

    Quanto qualidadeJuzos normativos negativos

    Quanto modalidade apodctivos

    Quanto relao hipotticos condicionais

    26Cf. A. Miranda Barbosa, ob. cit., pp. 205 e segts e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 158 e segts.

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    3. Os conceitos jurdicos

    10. Noo e especificidade dos conceitos jurdicos

    I. Acabamos de ver que a norma jurdica, enquanto juzo ou proposio lgico-

    normativa, envolve sempre uma relao entre conceitos, pelo que importa

    considerar agora a teoria do conceito jurdico naquilo que apresenta de especfico e

    prprio.

    Do ponto de vista lgico, o conceito um resultado da actividade pura do

    pensamento, uma apreenso do objecto pela conscincia. Todo o conceito se

    reporta a um objecto, sempre conceito de um objecto, com o qual, no entanto, se

    no identifica nem confunde.

    Sendo uma apreenso essencial de um objecto pela conscincia, o conceito

    um produto esquemtico da abstraco, que apreende, sinteticamente, certas notas

    singulares no seu conjunto, imutveis nos seus arranjos, que distinguem um

    determinado objecto e o individualizam relativamente a todos os outros.

    Referindo-se embora sempre a um objecto, sem, contudo, dele afirmar ou

    negar alguma coisa, o conceito no se confunde nem coincide com ele, como

    tambm distinto da palavra ou do termo que o diz, que no mais do que a sua

    expresso convencional e simblica, do mesmo modo que se distingue darepresentao mental do objecto e da sua definio, a qual constitui sempre um

    juzo e no um conceito.

    Enquanto representao intelectual e abstracta de um objecto, o conceito

    distingue-se ou ope-se percepo ou intuio e, enquanto intelectual, distinto

    de toda a representao sensvel.

    Quando considerado subjectivamente, o conceito a apreenso simples, o

    pensamento do objecto, ao passo que, considerado objectivamente, um modo deser ideal, representativo de um objecto ou o objecto pensado.

    II. ainda habitual distinguir, no objecto do conceito, o objecto material e o

    objecto formal, sendo o primeiro o objecto na sua totalidade e integridade e o

    segundo a sua considerao tendo apenas em conta algum, ou alguns dos seus

    elementos atributos ou notas27.

    27Cf. A. Miranda Barbosa, ob.cit., pp. 69-82 e Manuel Barbosa da Costa Freitas, O Ser e os Seres. Itinerriosfilosficos, vol. II, Lisboa, 2004, pp. 11-13.

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    III. Em qualquer conceito possvel encontrar dois atributos essenciais, a

    determinao do seu contedo, cujos elementos se reportam ao seu objecto formal,

    e a conexo com outros conceitos.

    Para alm destas caractersticas genricas, comuns a todos os conceitos, os

    conceitos jurdicos tm ainda como atributos especficos, resultantes de o Direito ser

    um objecto ou uma realidade cultural de natureza normativa, o terem um

    fundamento normativo e o possurem uma referncia axiolgica, caractersticas que

    partilham com as restantes ordens normativas, cumprindo no esquecer, no entanto,

    que a diversa estrutura lgica das normas jurdicas condiciona e determina os

    conceitos, tanto normativos como dogmticos com que lida o Direito28.

    Como notou Garcia Maynez, diversamente do que acontece nas restantes

    cincias culturais, cujos conceitos so individualizadores ou ideogrficos29, os

    conceitos jurdicos tm carcter genrico, visto referirem-se sempre a todos os

    sujeitos de uma classe, mesmo quando fazem referncia a um nico objecto, pois a

    no atendem sua irredutvel individualidade.

    Tambm o precedente, no Direito anglo-americano, tem o sentido de uma

    aplicao de princpios gerais, vlidos para todas as situaes do mesmo tipo e no

    de considerao individualizada e nica de um caso ou de uma situao singular.

    Assim, os conceitos jurdicos so sempre conceitos de classe, visto estarem

    sempre referidos a determinadas classes ou a objectos que delas fazem parte ou

    nelas se integram.

    Estas caractersticas prprias do Direito fazem que o seu mtodo de

    conceptualizao se distinga do das restantes cincias culturais, a cujo universo

    epistemolgico pertence, para vir a coincidir com o das cincias naturais, mas com

    uma dupla e significativa diferena, que decorre dos atributos especficos dos

    conceitos jurdicos, i.e, o seu fundamento normativo e a sua referencia axiolgica30.

    IV. Cabe ainda ter em conta que as definies dos conceitos jurdicos tanto

    podem ser explcitas ou directamente normativas como implcitas ou dogmticas,

    28Garcia Maynez, Lgica del concepto jurdico, pp.79-87.

    29 H. Rickert, Ciencia cultural y ciencia natural, trad. cast. M. Garcia Morente, Mxico, 1943 e E. Cassirer, Lasciencias de la cultura, id., trad.cast. Wenceslao Roces, 1951.

    30Garcia Maynez, ob.cit., pp. 48-59.

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    quando o contedo dos conceitos determinado de acordo ou a partir de um

    conjunto de axiomas que lhe so aplicveis31.

    11. Classificaes dos conceitos jurdicos

    I. Tal como os juzos normativos, tambm os conceitos jurdicos podem

    classificar-se com base nas categorias de qualidade, quantidade, relao e

    extenso.

    II. Considerados do ponto de vista da qualidade ou da sua natureza, os

    conceitos jurdicos podem serconceitos lgico-jurdicos ou conceitos jurdicos puros,

    e conceitos jurdicos impuros ou empricos.

    Os primeiros so os conceitos jurdicos fundamentais, comuns a toda e

    qualquer ordem jurdica e condio de toda a experiencia jurdica e, nessa medida,

    conceitos de certo modo a priori, enquanto os segundos apresentam uma dimenso

    ou uma origem emprica, so espcio-temporalmente determinados, tm uma

    essencial componente histrica. Embora dela prxima, esta classificao no deve

    confundir-se com a que distingue os conceitos jurdicos prprios ou especficos do

    Direito dos conceitos juridicamente relevantes, i.e., aqueles que o Direito recebe da

    linguagem comum ou corrente e a que atribui significados ou valor jurdico.

    III. Por sua vez atendendo quantidade, os conceitos jurdicos podem ser

    singulares,plurais ou universais.

    Dizem-se singulares os conceitos jurdicos referidos a um unico objecto, nem

    genrico nem especifico, ainda que tal objecto seja colectivo (p.e., sindicato dos

    metalrgicos).

    Por seu turno, soplurais os conceitos jurdicos que designam ou se referem a

    vrios objectos quando a sua reunio meramente de carcter numrico e

    independente de consideraes qualitativas, o que os torna distintos dos conceitos

    genricos e especficos, j que estes so conceitos referidos a classes, envolvendo,

    por isso, sempre uma considerao qualitativa, a de pertena a uma classe

    determinada.

    Por ltimo, so universais os conceitos jurdicos que abrangem todos os

    membros de uma classe, podendo, consequentemente sergenricos ou especficos.

    31 Idem, pp. 86-87.

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    IV. Sob o ponto de vista da relao em que podem encontrarse entre si, os

    conceitos jurdicos so:

    a) dependentes ou independentes;

    b) compatveis ou incompatveis;

    c) correlativos;

    d) supra ordenados ou subordinados.

    So exemplo de conceito independente o de "objecto do dever jurdico" e de

    conceito dependente o de "pagar a coisa ao vendedor", pois se refere a um dever

    que depende ou decorre de um contrato de compra e venda. De igual modo, so

    correlativos os conceitos reciprocamente dependentes, como os de "credor" e

    "devedor" ou de "sujeito activo" e "sujeito passivo". Por ltimo, so relaes de

    supra-ordenao e de subordinao as que existem entre conceitos referidos a

    classes e a membros das mesmas classes, como a que existe, p.e, entre os

    conceitos genricos e os conceitos especficos ou entre os conceitos de "contrato" e

    o de "contrato de compra e venda"32.

    V. Tendo em conta a sua extenso, os conceitos jurdicos podem ser

    determinados ou indeterminados. Dizem-se indeterminados os conceitos jurdicos

    cuja extenso , em larga medida, incerta, sendo determinados os restantes,

    embora, como salientou Engisch, sejam muito raros em Direito conceitos

    absolutamente determinados33.

    VI. Em sntese, so as seguintes as classificaes dos conceitos jurdicos:

    lgico-jurdicosQuanto qualidade

    empricos ou impuros

    32Cf. Miranda Barbosa, ob. cit., pp. 127-142 e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 88.137.

    33 Ob. cit., p. 137.

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    singulares

    Quanto quantidade plurais

    genricos

    universais

    especficos

    dependentes ou independentes

    compatveis ou incompatveis

    Quanto relao correlativos

    supraordenados ou subordinados

    determinados

    Quanto extenso

    Indeterminados

    12. Conceitos jurdicos fundamentais

    I. Os conceitos no tm todos a mesma relevncia e o mesmo significado no

    domnio jurdico, pois, ao lado de conceitos prprios de certos ramos de Direito ou

    de determinados institutos, h conceitos que se apresentam como fundamentais ou

    essenciais em qualquer ordem jurdica, que assenta ou se constitui com base neles.

    O saber quais sejam os conceitos jurdicos deste segundo tipo, ou quais os

    conceitos jurdicos verdadeiramente fundamentais problema que est longe de ter

    obtido respostas uniformes ou concordantes, por parte dos jurisfilsofos que se

    detiveram a reflectir sobre esta questo, desde que John Austin (1790-1859), em

    meados do sculo XIX, chamou a ateno para a existncia de determinados

    conceitos, noes ou distines que constituem elementos necessrios de qualquer

    sistema de direito de uma comunidade civilizada.

    II. Pensava o jurista ingls que a cincia jurdica (jurisprudence) tinha por

    objecto o direito positivo, nos seus diversos ramos, entendendo por direito positivo o

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    estabelecido ou positum numa comunidade politica independente pela vontade

    expressa ou tcita do respectivo suberano ou governo supremo.

    Notava Austin que, se certo que cada sistema jurdico ou cada ordem jurdica

    positiva apresenta particularidades e diferenas especficas, no deixa de

    compartilhar com as demais um conjunto de princpios, noes ou distines, que

    so comuns a todas elas.

    Para o jurisfilsofo britnico, entre tais conceitos ou noes fundamentais,

    necessrios ou comuns aos diversos ordenamentos jurdicos figurariam os

    seguintes:

    a) As noes de dever, direito, liberdade, delito, pena, ressarcimento, bem,

    como o de Direito, soberania e sociedade poltica independente;

    b) Os direitos que, como a propriedade ou domnio, podem fazer-se valer

    contra todos e aqueles que s podem tornar-se efectivos contra

    determinadas pessoas, como os decorrentes de contrato;

    c) A distino entre obrigaes que nascem de contratos, as que resultam

    de actos ilcitos e as que derivam de actos que no revestem a natureza

    de contrato nem de acto ilcito (quasi ex contactu);

    d) A distino entre actos ilcitos civis epenais34.

    Este elenco de noes ou conceitos jurdicos fundamentais apresentado por

    John Austin revela ou denuncia a concepo positivista do Direito do seu autor, ao

    mesmo tempo que apresenta um carcter, de certo modo, assistemtico, visto no

    obedecer a qualquer critrio lgico interno, que ordene os conceitos ou as noes

    que enumera de acordo com o seu significado no mundo jurdico.

    Com efeito, uma ordem valorativa de tais conceitos, que atendesse sua maior

    ou menor relevncia no mbito do Direito, no poderia deixar de colocar cabeadesta relao de noes ou conceitos jurdicos fundamentais os de soberania e de

    liberdade que constituem verdadeiros pressupostos essenciais de todo o direito

    positivo, j que sem liberdade nenhum dever-ser concebvel e sem um poder

    soberano que crie o direito positivo no pode falar-se em ordenamento jurdico.

    Por outro lado, como foi j notado por diversos autores, alguns dos conceitos

    indicados por Austin so meramente histricos, como a diviso tripartida das fontes

    das obrigaes (ex contractu, ex delictu e ex quasi contractu) ou a contraposio

    34 On the uses of the study of jurisprudence, 1861, cap. I.

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    entre propriedade e domnio, cabendo ainda ter em conta que o jurista ingls, cujo

    mrito pioneiro inegvel, no distinguiu, como convinha, entre os elementos

    formais e os elementos materiais dos conceitos jurdicos35.

    III. Para Rudolf Stammler (1856-1938), os conceitos jurdicos fundamentais

    constituem condies de ordenao permanente das normas e instituies jurdicas,

    possibilitadas pelo conceito de Direito, o qual, para este autor, deveria definir-se

    como "vontade vinculativa, autrquica e inviolvel." Tais conceitos seriam formas

    puras das noes jurdicas cujo conhecimento permitiria conferir valor cientfico

    cincia do Direito.

    De acordo com o pensamento do jurisfilsofo neokantiano, seria dos quatro

    elementos contidos no conceito de Direito vontade, vinculao, autarquia e

    inviolabilidade que decorreriam os conceitos jurdicos fundamentais.

    Assim, da vontade ou do quererproviriam os conceitos de sujeito de Direito,

    entendido como noo de um ser concebido como fim em si segundo uma

    determinada ordem jurdica, e de objecto de Direito, considerado, em concreto,

    como meio para determinado fim.

    Por sua vez, da vinculao decorreriam os conceitos de fundamento de Direito,

    concebido como noo de determinao de vrias vontades como meios entre si, e

    o de relao jurdica, entendido como o facto de aquelas vontades se acharem

    determinadas.

    Em terceiro lugar, da autarquia proviriam os conceitos de soberania jurdica,

    como noo de uma vontade jurdica que contm em si o fim da sua prpria

    determinao, e de sujeio jurdica ou articulao harmnica de varias vontades

    juridicamente vinculadas como meios ao servio de uma vontade vinculativa.

    Finalmente, da inviolabilidade resultariam os conceitos de jridicidade oulegalidade, vista como conformao das vontades vinculadas a vontade jurdica que

    as vincula e de anti-juridicidade ou ilegalidade, compreendida como contradio

    entre aquelas vontades e esta.

    Advertia Stammler no serem, contudo, estes os nicos conceitos

    fundamentais existentes para ordenar o sistema jurdico, pois, ao lado deles, h

    outras formas conceituais, puras que servem, igualmente, para determinar e reduzir

    unidade os problemas jurdicos.

    35Cf. Garcia Maynez, ob. cit., pp. 152-153.

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    Deste modo, alm daqueles conceitos jurdicos fundamentais primrios,

    existem conceitos jurdicos fundamentais derivados, que resultam da combinao

    daqueles entre si. Estes ltimos conceitos, sintticos, como os primrios, constituem

    as primeiras modalidades do nosso pensar jurdicos, e so simples formas

    metdicas de ordenao dos mais diversos problemas jurdicos, susceptveis de se

    decompor nos conceitos fundamentais primrios, de que so a sntese.

    Assim, da combinao do conceito de fundamento do Direito com o de sujeito

    de direito decorre o de vnculo jurdico, e da sua combinao com o de objecto do

    direito provm o de disposio jurdica.

    Por sua vez, da combinao do conceito da relao jurdica com o de sujeito de

    direito resulta o de prestao jurdica, enquanto da sua combinao com o de

    objecto de direito decorre o conceito de excluso jurdica.

    De igual modo, o conceito de soberania jurdica, quando combinado com os de

    sujeito e objecto do direito origina, respectivamente, os de proclamao do direito e

    de comunidade jurdica.

    J o conceito de sujeio ao direito, quando combinado com o de sujeito de

    direito d lugar ao de aplicao do direito e com o de objecto do direito origina o de

    participao jurdica.

    Por seu turno, os conceitos de juridicidade e anti-juridicidade, se combinados

    com os de sujeito e de objecto de direito, do origem, respectivamente, aos de

    faculdade e de dever jurdicos e aos de culpa e dano jurdicos.

    Quanto combinao do conceito de soberania jurdica com os de fundamento

    do direito e de relao jurdica, dar lugar aos conceitos de originalidade jurdica e

    colectividade jurdica, ao mesmo tempo que, combinando o conceito de sujeio ao

    direito com aqueles outros dois teremos os conceitos de derivatividade jurdica e de

    singularidade jurdica.No que respeita combinao dos conceitos de juridicidade e anti-juridicidade

    com os de fundamento do direito e de relao jurdica, dela resultam,

    respectivamente, os conceitos de validade jurdica e negao do direito e os de

    aquisio eperda de direitos.

    Finalmente, dos conceitos de juridicidade e anti-juridicidade, combinados com

    os de soberania jurdica e de sujeito de direito, provm, respectivamente, os de

    preceito jurdico e de mandato jurdico e os de proibio jurdica e de rebeldiajurdica.

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    Pensava, ainda, Rudolf Stammler que os conceitos jurdicos fundamentais,

    tanto primrios como derivados, exprimem-se formas conceptuais puras, que

    intervm como princpios de ordenao unitria de toda a realidade jurdica,

    cumprindo no esquecer, no entanto, que o Direito se desenvolve, incessantemente,

    ao longo do tempo e se revela como algo constitudo por uma multiplicidade de

    dados concretos. Ora, segundo o pensador germnico, a articulao, no tempo, de

    qualquer ordem jurdica e a comparao de diferentes ordens jurdicas entre si

    verifica-se de um modo sempre idntico, sem o qual tudo seria desordem e

    confuso, o que provaria haver conceitos jurdicos fundamentais que servem de

    elementos de conexo nas duas direces indicadas, temporal e lgica.

    Assim, de acordo com o pensamento stammleriano, seriam os seguintes pares

    de conceitos que desempenhavam o papel de elemento de conexo temporal em

    qualquer ordem jurdica:

    comeo jurdico continuao jurdica

    permanncia jurdica alterao jurdica

    juridicamente definitivo juridicamente transitrio

    dilao jurdica resoluo jurdica

    Por seu turno, os elementos de conexo lgica dos conceitos jurdicos seriam

    os seguintes quatro pares de conceitos jurdicos fundamentais:

    simplicidade jurdica sntese jurdica

    estabilidade jurdica condicionalidade jurdica

    procedncia jurdica consequncia jurdica

    coincidncia jurdica divergncia jurdica36

    Para Stammler, os conceitos jurdicos fundamentais compreenderiam, pois,conceitos primrios, conceitos derivados e conceitos de conexo, concepo que

    representa um notvel avano terico relativamente a proposta pioneira de Austin,

    tanto pelo maior rigor lgico como pela mais ampla compreenso da natureza e

    formas deste tipo de conceitos jurdicos.

    IV. Enquanto o pensamento do jurisfilsofo ingls se desenvolveu no mbito do

    positivismo utilitarista e o do pensador alemo representou a mais significativa

    36 Tratado de filosofia del Derecho, trad. cast. Wenceslao Roces, Madrid, 1930, pp. 289-297 e Economia y

    Derecho segun la concepcin materialista de la Histria , id., 1929, pp. 460-466.

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    expresso filosfico-jurdica da escola neokantiana de Marburgo, foi a partir da

    fenomenologia que Adolf Reinach (1883-1917)37 e Fritz Schreier38 consideraram o

    problema dos conceitos jurdicos fundamentais, mas com assinalveis diferenas

    entre si, pois o primeiro buscou determinar o a priorimaterial de alguns institutos de

    direito civil e o segundo teve em mente surpreender o a prioriformal do Direito.

    Entendia Reinach que os conceitos e as noes que, em geral, se consideram

    especificamente jurdicos possuem um ser prprio e autnomo, de natureza a priori,

    independente do direito positivo, que os encontra e utiliza mas no os cria nem

    produzno seu desenvolvimento, para o qual so decisivas as concepes de cada

    poca e, em grau ainda mais significativo, as relaes e as necessidades

    econmicas, em constante mutao.

    Considerava ainda o jurisfilsofo alemo ser necessrio distinguir entre os

    conceitos jurdicos, formais e a priori e os actos sociais com eficcia jurdica

    imediata, como a promessa ou a transmisso de direitos ou de bens.

    Assim, para ele, os conceitos jurdicos fundamentais do direito civil (a que

    limitou a sua anlise) seriam o de poder jurdico e o de pessoa, j que s eles

    permitem tomar inteligvel a origem dos direitos absolutos e das obrigaes

    absolutas e a sua transmisso de pessoa para pessoa.

    Com efeito, segundo o malogrado professor da Universidade de Gttingen,

    impossvel que actos sociais como os de conceder, transmitir e anlogos funcionem

    como fontes ltimas do poder, visto que eles, na medida em que possuem um efeito

    jurdico imediato, pressupem sempre um poder jurdico, cuja raiz ltima se encontra

    na pessoa como tal, constituindo um seu poder jurdico fundamental39.

    V. Por sua vez, o jurisfilsofo austraco Fritz Schreier procurou construir uma

    teoria jurdica pura com base na fenomenologia, compartilhando com Reinach a

    ideia de que o sistema formal de Direito algo de atemporal e inespacial, emborano deixe de criticar o seu predecessor por considerar que ele no soube distinguir,

    convenientemente, a investigao das realidades dadas ao Direito e a do prprio

    Direito. Na verdade, para Schreier, o acto jurdico, noo de que parte a sua

    teorizao, aquele em que o Direito se constitui, o acto referido intencionalmente

    ao Direito e no qual concebemos o Direito, que nele nos dado.

    37 Los fundamentos aprioristicos del derecho civil(1913), trad. cast. Jose Luis A'lvares, Barcelona, 1934.

    38 Conceptos y formas fundamentales del Derecho. Esbozo de una teoria formal del Derecho y del Estado

    sobre base fenomenolgica (1924), trad. cast. E. Garcia Maynez, Buenos Aires, 1942.39

    Ob. cit., pp. 21-29, 118 e 140-141.

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    De acordo com a teoria fenomenolgica do Direito do mestre vienense, o

    conceito jurdico fundamental e decisivo o de facto jurdico, de que so espcies,

    tanto o dever jurdico e o direito subjectivo como aprestao e a sano.

    Para Schreier, o facto jurdico deveria compreender-se como o pressuposto ou

    o aspecto condicionante do preceito jurdico ou como o facto juridicamente

    relevante, o que lhe permitia introduzir aqui algumas distines, como as que

    separam os factos jurdicos independentes ou totais dos dependentes ou parciais,

    ou os factos jurdicos compatveis dos incompatveis.

    Assim, seriam factos jurdicos dependentes aqueles que s podem existir como

    parte de uma totalidade e independentes ou totais os que existem por si. Daqui

    decorre, ento, que determinados factos jurdicos podem fundir-se num todo

    superior que os compreenda, enquanto outros no tm essa possibilidade, ou seja,

    h factos jurdicos que so compatveis entre si, enquanto outros se apresentam

    como incompatveis, por se destrurem reciprocamente, o que impede que sejam

    dependentes ou venham a constituir parte de um todo, notando, contudo, o

    jurisfilsofo austraco que tanto a dependncia como a incompatibilidade poderiam

    ser absolutas ou meramente relativas40.

    VI. Na sua teoria dos conceitos jurdicos fundamentais, Eduardo Garcia

    Maynez (1908-1993) distingue duas categorias, que denomina, respectivamente,

    conceitos lgico-jurdicos e conceitos ontolgico-jurdicos.

    Relativamente ao primeiro grupo, pensava o jurisfilsofo mexicano, como

    Stammler, que os conceitos que compreendia seriam os que se encontravam

    contidos no prprio conceito de Direito, que, segundo ele, deveria definir-se com a

    regulamentao bilateral, externa e coercvel do comportamento humano41.

    Assim sendo, os primeiros conceitos lgico-jurdicos fundamentais nopoderiam deixar de ser os de norma jurdica atributiva e de norma jurdica

    prescritiva, uma vez que a regulamentao jurdica se consubstancia na conexo

    necessria e recproca de uma norma que obriga e outra que faculta. Esclarecia,

    ainda, Garcia Maynez que a primeira daquelas normas a que concede, a um ou

    mais sujeitos, um direito cujo exerccio est garantido pela imposio, a outro ou a

    outros, de um dever de observar a conduta que possibilita o exerccio e cabal

    40 Ob. cit., pp. 145-254.

    41 Lgica del concepto jurdico, p.158.

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    satisfao das faculdades do pretensor, enquanto a segunda a que impe, a uma

    ou mais pessoas, o dever de observar a conduta requerida para o exerccio e cabal

    satisfao do direito que a correspondente norma atributiva concede a outro, ou

    outros, sujeitos.

    Por sua vez, no conceito de regulamentao bilateral esto implicados os

    conceitos de pressuposto jurdico, entendido como a hiptese de cuja realizao

    depende o nascimento de consequncias jurdicas (faculdades ou deveres) e de

    disposio, i.e, da parte da norma que indica que direitos ou deveres esto

    condicionados pela verificao do pressuposto.

    Por outro lado, porque toda a norma jurdica, tanto atributiva como prescritiva,

    composta por trs elementos lgicos, o sujeito, a cpula e o predicado, tambm

    estes revestem a natureza de conceitos lgico-jurdicos fundamentais.

    Deste modo, e tendo em conta que, do ponto de vista lgico, as normas so

    juzos relacionais de carcter normativo, o conceito sujeito da norma atributiva o

    que indica o titular do direito atribudo pela norma, enquanto o da norma prescritiva

    o referido ao sujeito passvel do dever que o preceito impe.

    Relativamente cpula, notava o jurisfilsofo mexicano que a atributiva seria o

    elemento da regulamentao bilateral cuja funo conferir um direito e a prescritiva

    aquela cuja funo impor um dever jurdico. Quanto ao predicado relacionalda

    norma atributiva, o elemento da disposio que determina o objecto do direito e a

    pessoa ou pessoas passveis do correlativo dever, ao passo que o da norma

    prescritiva o elemento da disposio que determina o objecto do devere indica o

    titular do direito correlativo.

    De acordo com o pensamento de Garcia Maynez, os conceitos ontolgico-

    jurdicos fundamentais so o correlato objectivo dos lgico-jurdicos. Assim, os

    correlatos de norma atributiva e de norma prescritiva so os conceitos de relaocondicionante do direito e de relao condicionante do dever, tal como o correlato do

    pressuposto, no plano da conduta, o facto jurdico e o da disposio, so relaes

    jurdicas entre duas ou mais pessoas, o vnculo que as normas estabelecem entre o

    sujeito do direito e o sujeito do dever e que, consoante se referiam a disposio

    atributiva ou a prescritiva, o autor mexicano designa por relao jurdica directa ou

    relao jurdica conversa. Por outro lado, o correlato objectivo do conceito-sujeito, no

    plano da conduta juridicamente regulada o sujeito de direito, como titular do direitoou o passvel de dever que a norma concede ou impe, enquanto os correlatos de

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    cpula prescritiva e atributiva so, respectivamente, conceitos de dever jurdico e de

    direito subjectivo e os correlatos do predicado das normas atributiva e prescritiva

    so, respectivamente, o objecto do direito e o objecto do dever, os quais so sempre

    uma forma de conduta42.

    VII. O jurisfilsofo espanhol Lus Recasns Siches (1903-1977) distinguia, no

    conjunto dos conceitos jurdicos, dois grandes grupos:

    a) Os conceitos a priori, universais, constantes e necessrios, essncias

    intrinsecamente vlidas de carcter formal, que constituem a trama de

    toda a realidade jurdica e, nessa medida, so condio de possibilidade

    de todo o conhecimento jurdico, apresentando-se, por isso, como

    conceitos jurdicos fundamentais;

    b) Os conceitos empricos, contingentes, histricos, de instituies de direito

    positivo, i.e., conceitos de realidades jurdicas criadas pelos homens em

    determinado tempo e lugar, figuras jurdicas concretas, surgidas numa

    determinada circunstncia social, com destino a essa mesma

    circunstncia.

    Segundo o pensador espanhol, incluir-se-iam na primeira categoria de

    conceitos jurdicos, entre outros, os de norma jurdica, dever jurdico, direito

    subjectivo e personalidade jurdica, ao mesmo tempo que seriam exemplo da

    segunda os conceitos de hipoteca, enfiteuse, letra de cmbio, pena de priso,

    imposto sobre o rendimento ou subsdio de desemprego43.

    VIII. Mais recentemente, Arthur Kaufmann (1923-2001) distinguiu entre o que

    denominava conceitos jurdicos imprprios ou conceitos juridicamente relevantes,aqueles que o legislador usa e vai buscar a linguagem comum ou corrente, e

    conceitos jurdicos fundamentais, que, diversamente daqueles, no provm da

    realidade emprica exterior, mas so dados apriorstica e necessariamente com o

    42 Ob. cit., pp. 157-187.

    43 Experiencia juridica, naturaleza de la cosa y lgica "razonable", Mxico, 1971, p. 502. Ver, igualmente,

    Tratado general de Filosofa del Derecho, Mexico, 1959, caps. 9-11 e Introduccin al estudio del Derecho, id.,1970, parte V. Benito de Castro Cid, La filosofia jurdica de Luis Recasens Siches , Salamanca, 1974, pp.139-151, inclui, ainda, entre os conceitos jurdicos fun-damentais, segundo este autor, os de ordem jurdica

    vigente e de Estado, o que no se afigura correcto, designadamente luz da primeira e da terceira obras de

    Recasens Siches atrs citadas.

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    Direito, constituindo, por isso conceitos jurdicos prprios ou autnticos ou categorias

    jurdicas.

    Entendia o jurisfilsofo alemo ser grande, embora no ilimitado, o nmero dos

    conceitos jurdicos fundamentais, do mesmo passo que reconhecia haver diferentes

    possibilidades para a sua sistematizao, nenhumas das quais poderia pretender-se

    definitiva.

    Assim, na sistematizao que propunha, considerava apenas cinco conceitos

    jurdicos fundamentais: o de norma jurdica,proposio ou regra jurdica, o de fontes

    do Direito, o de facto jurdico, o de relao jurdica e o de sujeitos jurdicos44, que s

    parcialmente vem a coincidir com a avanada por Recasens Siches, qual h a

    censurar a referncia a personalidade jurdica em vez de mencionar os sujeitos

    jurdicos, noo dotada de maior universalidade do que aquela, directamente

    dependente do conceito depessoa, especfico da tradio especulativa ocidental, de

    matriz judaico-crist.

    IX. Esta diversidade de concepes sobre quais sejam os conceitos jurdicos

    fundamentais decorre, em primeira instancia, de igual diversidade de pontos de

    partida filosfico-jurdicos e, depois, da prpria noo de conceito jurdico

    fundamental, que est longe de se apresentar como unvoca, como parece resultar

    com suficiente clareza de tudo o que antecede.

    Assim, desde os que reduzem aquela noo a um nico conceito, como

    Schreier, ou a dois conceitos de certo modo complementares, como Reinach, at

    aos que apresentam uma lista mais ou menos extensa ou complexa de conceitos

    jurdicos fundamentais, como Stammler ou Garcia Maynez, grandes diferenas se

    registam entre os autores que desta matria se ocuparam e de que a exposio

    anterior se pretende mais exemplificativa do que, propriamente, exaustiva.Do nosso ponto de vista e da noo de que partimos, afigura-se-nos que

    revestem a natureza de verdadeiramente fundamentais, por necessariamente

    comuns a toda e qualquer ordem jurdica e por no constiturem modalidade ou

    espcie de qualquer outro conceito, os seguintes: norma jurdica, sujeito jurdico,

    acto jurdico, relao jurdica, dever jurdico, direito subjectivo, responsabilidade,

    sano epropriedade.

    44 Filosofia do Direito, trad. cit., pp. 142-158.

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    Diversamente do que fazem alguns dos autores atrs considerados, pensamos

    no dever incluir aqui conceitos como os de personalidade jurdica, demasiado

    vinculado tradio jurdica ocidental, ou os de contrato, acto ilcito ou crime, dado

    constiturem conceitos derivados do conceito de acto jurdico e, nessa medida no

    serem conceitos verdadeiramente primeiros ou fundamentais. De igual modo, no se

    nos afigura revestir a natureza de fundamental o conceito de Estado, visto havermos

    recusado a noo de estadualidade do Direito defendida pelo positivismo jurdico e

    sustentado no ser o Estado o nico produtor de normas jurdicas, nem constituir a

    lei a nica fonte de Direito45.

    CAPTULO III

    A Hermenutica Jurdica

    1 A hermenutica

    13. A hermenutica como primeiro momento da racionalidade jurdica prtica.

    Como se notou acima, a racionalidade lgica, que cuida apenas de categorias

    e conceitos formais, independentemente de valores ou contedos valorativos, no

    esgota o domnio da racionalidade jurdica, pois o Direito, enquanto ordem

    normativa, tem uma essencial dimenso prtica, destina-se a regular, ordenar ou

    rectificar a conduta social, de acordo com determinados valores que pretende tornar

    efectivos na vida humanaintersubjectiva.

    Assim, toda a norma jurdica, para alm da sua estrutura lgico-formal, tem

    sempre um determinado contedo, que envolve e implica, necessariamente, conduta

    e valor.

    Deste modo, ao lado da lgica jurdica, que corresponde ao momento ouaspecto formal da racionalidade jurdica, depara-se-nos o amplo domnio da

    racionalidade jurdica prtica, que o que diz respeito aplicao ou

    concretizao singular da normatividade jurdica, a qual implica, como seu primeiro

    momento, uma instncia hermenutica, a compreenso e determinao do sentido

    actual e concreto da prescrio normativa respeitante ao caso decidendo, com vista

    a permitir uma deciso justa.

    45 Sentido e valor do Direito, ed. cit., pp. 77 e 157-158.

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    Por outro lado, a natureza prtica da normatividade jurdica e a sua constitutiva

    componente axiolgica, assim como tornam a interpretao do Direito estreitamente

    dependente da sua aplicao, fazem, igualmente, que a tarefa da hermenutica

    jurdica tenha uma necessria dimenso estimativa, envolvendo ou implicando

    sempre uma mediao ou um momento valorativo, pois a deciso jurdica tem um

    objectivo normativo e uma natureza concretizadora, constitutiva, normativamente

    criadora e no meramente cognitiva ou subsuntiva.

    A hermenutica jurdica aparece-nos, assim, como irrecusvel primeiro

    momento ou primeira instncia do processo de racionalidade jurdica prtica.

    Porque, porm, a tarefa ou a actividade hermenutica inerente a toda a

    realidade cultural, maxime quela que se objectiva em palavras e em textos,

    necessrio se torna, enquadrar a interpretao jurdica no campo mais vasto da

    teoria geral da hermenutica.

    14. Conceito de hermenutica

    I. O termo hermenutica provm do grego hermeneuin, que significa declarar,

    anunciar, interpretar, esclarecer, levar compreenso.

    Admite-se, geralmente, que derive de Hermes46, visto na mitologia grega como

    mensageiro dos deuses e inventor da palavra. assim que se lhe referem Homero e

    Hesodo, quando, no hino a Hermes, o primeiro o designa como enviado por Zeus

    para misses delicadas, como arauto dos deuses ou mensageiro de todos os

    imortais47 ou na Teogonia, o segundo escreve que de Zeus, Maia, filha de Atlas,

    gerou o ilustre Hermes, arauto de todos os imortais48. Por sua vez, Plato, no

    dilogo Crtilo, afirma que o nome de Hermes parece relacionar-se com o discurso,

    pois ser intrprete, mensageiro (...) so actividades referentes ao poder do

    discurso lembrando que o termo ireinsignifica servir-se do discurso, e Eirneus,

    de que proveio o nome Hermes, designa aquele que imaginou a palavra49.

    Esta radicao da hermenutica em Hermes enquanto mensageiro ou arauto

    dos deuses poderia explicar que aquela tivesse comeado por significar a

    46Ver p. e., Gadamer, La philosophie hermneutique, trad, franc. Jean Goudin, Paris, PUF, 1996, p. 85, EmerichCoreth, Questes fundamentais de hermenutica, trad. port. Carlos Lopes de Matos, So Paulo, 1973, p. 1,Richard E. Palmer, Hermenutica, trad. port. Maria Lusa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Ed. 70, 1986, p. 23 eGeorges Gusdorf, Les origines de lhermneutique, Paris, Payot, 1988, pp. 19-21.

    47 Hino a Hermes, v. 480 e segts. 48

    Teogonia, v. 938-939.49

    Crtilo, v. 408a.

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    compreenso e a exposio de uma sentena dos deuses ou de uma mensagem

    divina e a inicial dimenso sagrada conferida hermenutica, que, na tradio

    cultural ocidental, surge ligada s questes relacionadas com a interpretao do

    texto bblico. Registe-se, a este propsito, que a hermenutica bblica tem certo

    parentesco ou semelhana com a hermenutica jurdica, havendo mesmo

    beneficiado, em medida no despicienda, da tradio romana da interpretao do

    Direito.

    Esta aproximao ou afinidade entre estas duas formas de hermenutica

    facilmente compreensvel se se atentar em que, em ambos os casos, se trata de

    interpretar textos que falam de uma forma normativa e autoritria, tendo os dois uma

    pretenso de validade e de obrigatoriedade e sendo, nesse sentido, apresentados

    ao intrprete para por ele serem compreendidos e expostos, em todos os seus

    pormenores, com esse duplo carcter de validade e obrigatoriedade50.

    II. Antes de prosseguir, cumpre notar que, no uso antigo de termo

    hermenutica, possvel surpreender ou distinguir trs sentidos ou trs orientaes

    diferentes.

    Assim, ao lado daquele que vimos considerando, que o toma como significando

    dizer, exprimir ou afirmar, h ainda outros dois: hermenutica como explicar ou

    explicao, sentido este que atribui particular realce ao aspecto discursivo da

    compreenso, dimenso explicativa do intrprete, mais do que sua dimenso

    expressiva, e hermenutica como traduo ou traduzir de uma lngua para a outra,

    de um sistema simblico para outro51.

    III. Do que se acaba de dizer ressalta com clareza que o problema fundamental

    da hermenutica o problema da compreenso, que o prprio do mundo dacultura e das cincias ou dos saberes que lhe dizem respeito.

    Com efeito, enquanto as cincias da natureza explicam, procurando determinar

    as relaes causais que ligam os fenmenos ou a regresso causal de um

    fenmeno particular a leis gerais, as cincias da cultura ou do esprito compreendem

    as realidades culturais, apreendendo o seu sentido.

    50Cfr. Emerich Coreth, ob. e trad. cits., p. 2.

    51Ver p. e., Emerich Coreth, ob. e trad. cit, p. 1 e Richard Palmer, Hermenutica, trad. cit., pp. 24-41.

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    Deste modo, compreender apreender um sentido, sendo este aquilo que se

    apresenta compreenso como contedo.

    Note-se que, apesar da anterior contraposio entre explicao e compreenso

    como o trao essencial que individualiza e distingue as cincias da natureza das

    cincias da cultura ou do esprito, toda a explicao no deixa de ser antecedida por

    uma compreenso de sentido, pois o investigador das cincias da natureza tem de

    comear por compreender o fenmeno individual, de o apreender na sua

    singularidade, no seu contedo e estrutura, ainda que de um modo provisrio, antes

    de poder explic-lo, o que significa que, prvia oposio ou contraposio, de

    natureza metodolgica, entre explicar e compreender, existe uma compreenso

    mais original e mais ampla. Deste modo, a compreenso apresenta-se-nos como

    uma apreenso mais alta de sentido, que ultrapassa e precede a explicao

    causal52.

    Mas porque consiste na apreenso de um sentido, a compreenso no

    pertence mediao do pensamento racional nem imediatez da viso intelectual,

    admitindo que o domnio da razo a capacidade do pensamento discursivo,

    enquando o intelecto ser a capacidade de percepo espiritual imediata, de intuir o

    que imediatamente dado, o ser e as suas leis e os contedos da essncia53, aquilo

    a que, num grau sumo, Jos Marinho designou por viso unvoca enquanto viso

    instantnea do ser e da verdade e da verdade do ser54.

    IV. A experincia hermenutica e a compreenso que a constitui apresentam

    uma estrutura circular, aquilo a que, desde Heidegger, se vem chamando o crculo

    hermenutico. Quer-se com isto dizer que a compreenso do sentido ou do

    contedo singular condicionada pela compreenso do todo em que se integra,

    sendo, por sua vez, a compreenso do todo mediada ou condicionada pelo contedosingular, isto , que, quando referida a um texto, situao a que muitos autores tm

    circunscrito a hermenutica, indicar que o significado das palavras que o compem

    s se alcana a partir do contexto de sentido do prprio texto, o qual, por seu turno,

    apenas poder ser compreendido a partir do significado das palavras que o

    constituem e da combinao dessas mesmas palavras.

    52 Cfr. Emerich Coreth, ob. e trad. cit. p. 49.53

    Coreth, idem, pp. 46-48. 54

    Teoria do ser e da verdade, Lisboa, 1961.

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    V. Mas se o contedo ou o sentido singular sempre apreendido na totalidade

    de um contexto de sentido, o qual pr-compreendido e co-apreendido, de modo a

    tornar-se condio de abertura de sentido do contedo singular, isso significa que,

    subjacente a toda a compreenso, se encontra aquilo a que a filosofiahermenutica

    contempornea designa porpr-compreenso, a qual decorre, directamente, do

    mundo de experincias e de compreenso do intrprete e define uma via de acesso

    prpria compreenso,pr-compreenso essa que, constituindo um pressuposto de

    acesso compreenso, se relaciona, dialecticamente, com ela, num processo em

    que cada um dos elementos medeia o outro mas por ele pressuposto e

    determinado, fazendo que o processo de compreenso seja um processo

    ascendente, mais prximo, por isso, da espiral do que do crculo.

    VI. A actividade hermenutica e a experincia da compreenso apresentam

    uma estrutura no s dialctica entre a pr-compreenso e a compreenso mas

    tambm dialgica, pois nela o intrprete procura desvelar o sentido de uma criao

    espiritual objectivada num texto ou em qualquer outro suporte material ou natural,

    dilogo esse sempre marcado pela temporalidade e pela historicidade, j que a

    demanda de sentido ou contedo significante da obra interpretanda sempre feita a

    partir do concreto presente do intrprete e transcende a inteno do respectivo

    autor, j que o prprio das criaes espirituais objectivarem-se, passando a

    constituir um conjunto de virtualidades de sentido, que, vo sendo descobertas,

    criadoramente, na relao hermenutica que com ela vo estabelecendo, ao longo

    do tempo, os que com elas entram em contacto, numa relao complexa,

    simultaneamente vivencial, intuitiva e cognitiva, que lhe vai conferindo nova vida

    espiritual ou novo ou renovado contedo significativo. Deste modo, como escreveu

    Alexandre F. Morujo, a actividade hermenutica consiste em transpor um contextode sentido de um outro mundo para o seu prprio mundo55.

    15. Origem e percurso histrico da hermenutica

    I. Embora o termo hermenutica haja aparecido, pela primeira vez, em 1654,

    no ttulo de uma obra de J. C. Danhauer56, com o sentido de mtodo expositivo das

    Sagradas Escrituras, a hermenutica surgiu com as questes suscitadas pela

    55 Percurso e natureza da hermenutica, Estudos filosficos, vol. II, Lisboa INCM, 2004, p. 488.

    56 Hermenutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litteraturum .

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    interpretao correcta do Antigo Testamento, tendo-se desenvolvido depois do

    advento do cristianismo, abrangendo agora todo o texto bblico, na exegese dos

    Padres da Igreja, a partir dos sculos II e III da nossa era, com o confronto entre a

    escola de Antioquia, que considerava, exclusivamente, o sentido literal dos Livros

    Sagrados, e a escola de Alexandria, que procurava neles um sentido espiritual,

    recorrendo, para isso, exposio simblico-alegrica.

    Orgenes (185-c.254), primeiro, e Santo Agostinho (354-430), depois,

    procuraram considerar estes dois modos de interpretar, distinguindo o Bispo de

    Hipona diversos sentidos no texto Bblico57.

    A reforma luterana, rompendo com o ensino tradicional da Igre-ja Catlica,

    defendia o regresso pura palavra da Escritura, devendo o seu sentido ser

    procurado por cada um como seu intrprete, processo que o racionalismo iluminista

    reforar, ao excluir o carcter de revelao sobrenatural e de mistrio de toda a

    interpretao do texto sagrado, que deveria ser entendido como mera religio

    racional (Locke) ou num sentido exclusivamente moral (Kant).

    II. Ser, precisamente, por esta poca que surgir a primeira tentativa de

    construo de uma teoria geral da hermenutica, de carcter filosfico, que procura

    determinar as regras para a compreenso de qualquer texto e no j apenas das

    Sagradas Escrituras.

    Coube a Friederich Shleiermacher a tarefa de lanar as bases desta nova

    cincia filosfica, nele entendida como cincia da compreenso lingustica, com vista

    ao uso prtico de um texto falado ou escrito.

    Na linha metodolgica da hermenutica inscrever-se-o, depois, Wilhelm

    Dilthey, que via nela a teoria da compreenso de formas objectivas histricas, cuja

    estrutura e legalidades devem ser apreendidas, a partir de uma vivncia e, emmeados do sculo XX, Emlio Betti, que logrou realizar uma teoria geral da

    interpretao, que fora o fracassado intento de Shleiermacher.

    Ao lado desta corrente, de carcter essencialmente metodolgico, com

    Heidegger surgiu, na primeira metade do sculo XX, uma corrente ontolgica ou

    filosfica da hermenutica, como hermenutica da existncia, como interpretao da

    primeira compreenso do homem em si e do ser, linha que foi prosseguindo, depois,

    57 De doctrina christiana (c. 427).

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    pelo seu discpulo Hans-Georg Gadamer e por Paul Ricur, que a concebia como

    hermenutica fenomenolgica.

    Mais recentemente, assistiu-se ao aparecimento de uma nova corrente no

    pensamento hermenutico, no mbito da denominada Escola de Frankfurt, agora de

    sentido crtico e dialctico, atravs de Karl-Otto Apel e Jrgen Habermas58.

    Vamos considerar em seguida as posies essenciais destes diversos autores

    em matria hermenutica, segundo as trs grandes orientaes que acabamos de

    referir: a teoria hermenutica, de raiz metodolgica, a filosofia hermenutica, de

    vocao ontolgica e a hermenutica crtica59.

    16. A teoria hermenutica

    16.1. Friedrich Shleiermacher.

    I. Como tem sido repetidas vezes sublinhado60, o mrito maior do telogo,

    fillogo e filsofo alemo Friedrich Daniel Ernst Shleiermacher (1768-1834) consistiu

    em ter superado a fragmentao da hermenutica, na qual coexistiam uma

    hermenutica jurdica, uma filologia dos textos clssicos, em especial gregos e

    latinos, e uma exegese do Antigo e do Novo Testamento, para, centrando-se na

    investigao das condies de possibilidade da compreenso de qualquer texto,tentar chegar a uma hermenutica geral, determinao do que, para alm da

    diversidade dos vrios gneros de interpretao, os unifica e lhes comum.

    Como percucientemente observou Paul Ricur, para alcanar tal desiderato

    era necessrio ultrapassar a particularidade dos textos e, tambm, a particularidade

    das regras pelas quais se dispersa a arte de compreender, era preciso ascender da

    exegese e da filologia at uma tecnologiaque no se limitasse a ser uma mera

    coleco de operaes avulsas.Embora tributria do criticismo kantiano, em cujo clima espiritual foi pensada, a

    hermenutica de Shleiermacher, pelo influxo romntico que tambm lhe subjaz,

    acabou por vir a preencher uma lacuna do prprio kantismo, limitado pela sua

    preocupao de determinar as condies universais da objectividade do

    58 Para maiores desenvolvimento, ver G. Gusdorf, ob cit., e Rui Magalhes, Introduo her-menutica,

    Coimbra, Angelus Novus, 2003.59

    Cfr. Josef Bleicher, Hermenutica Contempornea, trad. port. Maria Georgina Segurado, Lis-boa, Ed. 70,2002.

    60 Ver p. e., Paul Ricur, Du texte laction. Essais dhermenutique, II, Paris, Seuil/Esprit, 1986, p. 76 e

    Alexandre F. Morujo, ob. e loc. cits., p. 490.

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    conhecimento em fsica e em tica, o que o levava a uma concepo ou a um

    entendimento impessoal do esprito, dotado das condies de possibilidade de

    juzos universais.

    A esta concepo contraps Shleiermacher uma outra, radicalmente diversa,

    de clara provenincia romntica: a de que o esprito o inconsciente criador,

    operando nas individualidades geniais61.

    Assim, como notou ainda o mesmo filsofo francs, o programa hermenutico

    do pensador alemo apresenta uma marca romntica, no apelo que faz a uma

    relao viva com o processo de criao cultural e, ao mesmo tempo, uma marca

    crtica, no seu intento de estabelecer as regras universalmente vlidas da

    compreenso62.

    II. Desde os seus primeiros esboos de hermenutica63, o filosofo germnico

    afirma a necessidade de uma hermenutica geral, sustentando que ela assenta no

    facto da compreenso do discurso, do que decorreria, ento, que a arte de

    interpretao a arte de possuir ou dispor de todas as condies necessrias

    compreenso. Por sua vez, a compreenso orientar-se-ia tanto para a lnguagem

    como para os pensamentos, o que no significaria que houvesse duas espcies de

    interpretao, pois qualquer delas deve considerar tanto a linguagem como os

    pensamentos.

    Por outro lado, caberia ter em conta que discurso algum pode ser interpretado

    a partir de si mesmo, mas apenas num contexto mais amplo, assim como a

    compreenso do todo condicionada pela do pormenor, tal como, inversamente, a

    compreenso do pormenor determinada pela compreenso do todo. Isto no

    impede, porm, que a totalidade deva ser, provisoriamente, compreendida como

    indivduo de um gnero, ou seja, que a compreenso formal da totalidade devapreceder a compreenso material do pormenor.

    Cumpriria, igualmente, ter em conta que a hermenutica parte de dois pontos

    de vista inteiramente diferentes, o que significa envolver ela um certo carcter

    aportico; o compreender na linguagem e o compreender naquele que fala, o que

    61 Obra cit., p. 79.

    62 Idem, p. 79.

    63Os vrios ncleos de aforismos, esboos, notas e fragmentos de Schleiermacher sobre her-menutica

    datam de 1805, 1809-1810, 1819, 18