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A NATUREZA E OS PROPÓSITOS DA ARQUEOLOGIA1Colin Renfrew e Paul BahnTRANSCRIPT
A NATUREZA E OS PROPÓSITOS DA ARQUEOLOGIA1
Colin Renfrew e Paul Bahn
A arqueologia é, em parte, a descoberta dos tesouros do passado, o trabalho meticuloso do
cientista e o exercício da imaginação criativa. É cansar-se sob o sol em uma escavação no deserto
do Iraque e trabalhar com esquimós nas neves do Alasca. É submergir em busca de navios
afundados na costa da Flórida e investigar as fossas de uma cidade romana. Mas também é a tarefa
habilidosa de interpretação que nos permite entender o que significavam tais coisas na história da
humanidade.
A arqueologia é, pois, tanto uma atividade física de campo como uma busca intelectual no
laboratório e esse é seu grande atrativo. A mistura de perigo e trabalho detetivesco também a
converteu em um veículo perfeito para escritores de ficção e cineastas, desde Agatha Christie com
Assassinato na Mesopotâmia até Steven Spielberg com Indiana Jones. Por mais que tais imagens se
afastem da realidade, captam a verdade essencial de que a arqueologia é uma busca – a busca do
conhecimento de nós mesmos e do passado humano.
Mas, como a arqueologia se relaciona com disciplinas como a antropologia e a história,
vinculadas também ao estudo do Homem? A arqueologia é uma ciência?
A arqueologia como antropologia
A antropologia é, em sua definição geral, o estudo do Homem – de nossas características
físicas como animais e as características únicas não biológicas que chamamos de cultura. Esta, em
um sentido mais amplo, abarca o que o pioneiro da antropologia Edward Tylor resumiu, em 1871,
como o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e qualquer outra
capacidade e hábito adquirido pelo homem enquanto membro de uma sociedade. Os antropólogos
também empregam o termo cultura em um sentido mais restrito, quando se referem à cultura de
uma sociedade concreta, significando as características únicas não biológicas dessa sociedade e que
a distingue de outras.
Portanto, a antropologia é uma disciplina ampla – de fato, é tão extensa que se divide em
três disciplinas menores: a antropologia física, a antropologia social ou cultural e a arqueologia.
A antropologia física, chamada também de antropologia biológica, se ocupa do estudo das
características biológicas ou físicas do Homem e sua evolução.
1 RENFREW, C. E BAHN, P. Introduction. The Nature and Aims of Archaeology. In: Archaeology. Theories, Methods and Practice. New York: Thames and Hudson, 1991, p. 9-14. Tradução de Jairo H. Rogge.
A antropologia social ou cultural, analisa as culturas e as sociedades humanas. Dois ramos
importantes da antropologia cultural são a etnografia (o estudo em primeira mão de culturas vivas) e
a etnologia (que trata da comparação entre culturas utilizando as evidências etnográficas, com o
propósito de gerar princípios gerais sobre a sociedade humana).
A arqueologia é o passado da antropologia cultural. Enquanto os antropólogos culturais
baseiam suas conclusões na experiência da vida real dentro de comunidades contemporâneas, os
arqueólogos estudam as sociedades do passado, principalmente através de seus restos materiais – as
construções, utensílios e demais artefatos que constituem o que conhecemos como cultura material,
deixada por eles.
Por outro lado, uma das tarefas mais difíceis para os arqueólogos é saber como interpretar a
cultura material em termos humanos. Como foram utilizados esses recipientes? Por que algumas
casas são circulares e outras quadradas? Aqui, os métodos da arqueologia e da etnografia se
superpõem.
Nas últimas décadas, os arqueólogos desenvolveram a etnoarqueologia na qual, como os
etnógrafos, vivem em comunidades contemporâneas, com o propósito específico de entender como
tais sociedades usam a cultura material – como fabricam seus utensílios, por que constróem seus
assentamentos, onde fazem isso, etc.
A arqueologia como história
Se a arqueologia se ocupa do passado, de que modo ela se diferencia da história? Em seu
sentido mais amplo, considerando a arqueologia como um aspecto da antropologia, também forma
parte da história – entendida como a crônica completa da humanidade, desde seu começo há cerca
de 3 milhões de anos. É claro que, para mais de 99% desse enorme lapso de tempo a arqueologia –
o estudo da cultura material do passado – é a única fonte significativa de informação se excluirmos
a antropologia física, que se concentra mais em nosso progresso biológico que no material. As
fontes históricas convencionais só começam com o nascimento do documento escrito, que ocorreu
no sudoeste asiático há aproximadamente 3.000 anos a. C e, mais tarde, em outras áreas do mundo
(na Austrália, por exemplo, não existiu até 1.788 d. C.). Por essa razão, é bastante comum a
distinção que se faz entre pré-história – o período anterior a escrita – e história no sentido estrito,
que supõe o estudo do passado através da evidência escrita. No entanto, a arqueologia pode
contribuir muito, inclusive, para a compreensão daqueles períodos e lugares onde existem
documentos, inscrições ou outras evidência literárias. Freqüentemente, é o arqueólogo quem
primeiro descobre tais evidências.
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A arqueologia como ciência
Se o propósito da arqueologia é a compreensão do gênero humano, ela constitui uma
disciplina humanística, uma ciência humana. E já que se ocupa do passado do Homem, é uma
disciplina histórica. No entanto, diferencia-se do estudo da história escrita – ainda que a utilize – em
um aspecto fundamental. O material encontrado pelo arqueólogo não nos diz, de forma direta, o que
devemos pensar. O registro histórico faz declarações, oferece opiniões, emite juízos (embora essas
declarações e esses juízos devam ser interpretados). Os objetos descobertos pelos arqueólogos, por
sua vez, nada dizem de si mesmos diretamente. Somos nós, no presente, que devemos dar-lhes
sentido. Desse ponto de vista, a prática arqueológica é muito semelhante à do cientista. O cientista
recolhe dados (evidências), realiza experiências, formula uma hipótese (uma proposição para
explicar os dados), contrasta a hipótese com mais dados e, como conclusão, elabora um modelo
(uma descrição que parece idônea, para resumir o padrão observado nas evidências). A arqueologia
é similar em muitos aspectos. O arqueólogo têm que desenvolver uma imagem do passado, do
mesmo modo que o cientista deve elaborar uma visão coerente do mundo natural. Ela não aparece
pronta.
Em resumo, a arqueologia é tanto uma ciência como uma disciplina humanística. Esse é um
dos seus encantos: reflete a capacidade inventiva do cientista moderno ao mesmo tempo que a do
historiador. Os métodos técnicos da ciência arqueológica são os mais evidentes, desde a datação
radiocarbônica até o estudo de resíduos de alimentos em panelas de cerâmica. São igualmente
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importantes os métodos científicos de análise por dedução. Alguns arqueólogos expressam a
necessidade de definir uma teoria de alcance médio independente, que faça referência a um
conjunto inequívoco de conceitos, a fim de resguardar a distância existente entre a evidência
arqueológica bruta e as observações e conclusões gerais que derivam dela. É um modo de enfocar a
questão. No entanto, não vemos a necessidade de fazer uma distinção entre teoria e método. Nosso
objetivo é descrever, com clareza, os métodos e técnicas utilizados pelos arqueólogos na
investigação do passado. Os conceitos analíticos dos arqueólogos formam parte dessa série de
métodos, na mesma medida em que o são os instrumentos de laboratório.
A variedade e o âmbito da arqueologia
Atualmente, a arqueologia é uma igreja tolerante, que abarca muitas arqueologias diferentes
unidas, no entanto, por métodos e delineamentos comuns. Já chamamos a atenção sobre a distinção
existente entre a arqueologia do longo período pré-histórico e da época histórica. A princípio, essa
divisão cronológica se acentua com novas subdivisões, de forma que os arqueólogos dizem
especializarem-se nas etapas primitivas (a antiga Idade da Pedra ou Paleolítico, há mais de 10.000
anos) ou nas mais recentes (as grandes civilizações da América ou da China; a egiptologia; a
arqueologia clássica da Grécia e Roma antigas). Um dos principais avanços das duas ou três últimas
décadas foi a tomada de consciência de que a arqueologia pode contribuir não só para a
compreensão da pré-história e da história antiga, senão também das etapas históricas mais recentes.
Na América do Norte e na Austrália2 desenvolve-se, de forma muito intensa, a arqueologia histórica
– o estudo arqueológico dos assentamentos coloniais e pós-coloniais – na mesma medida que fazem
suas análogas européias, a arqueologia medieval e pós-medieval.
Deixando de lado essas subdivisões cronológicas, existem especialidades que podem
colaborar em numerosos períodos arqueológicos diferentes. Um desses campos é a arqueologia
ambiental, onde arqueólogos e especialistas de outras ciências estudam o emprego humano de
plantas e animais e o modo como as sociedades do passado se adaptaram a um meio em contínua
transformação. A arqueologia subaquática é outro âmbito que exige grande qualificação. Nos
últimos trinta anos converteu-se em atividade sumamente científica, que resgata o passado na forma
de navios naufragados, que dão nova luz sobre a vida na antigüidade, tanto em terra como no mar.
2 Também na América do Sul e África Negra (N. T).
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Também a etnoarqueologia, da qual já falamos anteriormente, é uma especialidade
importante na arqueologia atual. Nos damos conta, agora, de que só podemos compreender o
registro arqueológico – quer dizer, aquilo que encontramos – se entendermos mais detalhadamente
como ele ocorre, como se forma. Os processos pós-deposicionais são, nesse momento, um foco
intenso de estudo. É aqui que a etnoarqueologia adquire seu verdadeiro
sentido: no estudo de populações vivas e sua cultura material, a fim de aumentar nossa compreensão
sobre o registro arqueológico. Por exemplo, o estudo das práticas de esquartejamento da caça entre
caçadores-coletores atuais, feito por Lewis Binford entre os esquimós Nunamiut do Alasca, lhe
proporcionou novas idéias sobre o modo como pode ter se formado o registro arqueológico,
permitindo-lhe reavaliar os restos ósseos de animais comidos pelas populações pré-históricas em
outras partes do mundo. Essas investigações não se limitam à comunidades simples ou grupos
pequenos. Em Tucson, no Arizona, o Projeto Garbage (lixo), criado por William Rathje, implica no
recolhimento do lixo de um setor da cidade e a classificação cuidadosa de seu conteúdo em
laboratório. Essa desagradável tarefa proporcionou algumas revelações valiosas e inesperadas sobre
o padrão de consumo da população urbana atual – e os métodos empregados são puramente
arqueológicos.
Objetivos e Problemas
Se nossa meta consiste em conhecer o passado humano, é justamente aí que reside a nossa
principal dificuldade. Os enfoques tradicionais se inclinaram a considerar o objetivo da arqueologia,
sobretudo, como uma reconstrução: unir as peças de um quebra-cabeças. Mas agora não basta
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somente recriar a cultura material de períodos remotos ou completar a imagem dos períodos mais
recentes.
Foi definido um novo objetivo em termos de reconstrução do modo de vida das pessoas
responsáveis pelo registro arqueológico. Nos interessa ter uma imagem clara de como viviam essas
pessoas, como exploravam seu meio. Também queremos entender por que viviam dessa forma: por
que adotaram esses padrões de comportamento e como seus modos de vida e cultura material
adquiriram tais formas.
Em resumo, nos interessa explicar as mudanças. Essa inclinação pelos processos de
mudança cultural têm definido a chamada arqueologia processual. A arqueologia processual avança
mediante o estabelecimento de uma série de questões, assim como qualquer outro estudo científico
procede definindo objetivos de investigação – mediante a formulação de perguntas – passando
então a respondê-las.
Existem muitos problemas importantes, que nos preocupam nesse momento. Queremos
compreender as circunstâncias em que nossos antepassados apareceram pela primeira vez. Isso
aconteceu na África e somente lá, como tudo parece indicar? Esses homens antigos eram autênticos
caçadores-coletores ou simples carniceiros?3 Quais foram as circunstâncias pelas quais nossa
própria subespécie, Homo sapiens sapiens, evoluiu? Como explicamos o surgimento da arte
paleolítica? Por que sua distribuição parece ser tão limitada? Como se deu a mudança da caça e
coleta para a agricultura na Ásia ocidental, na Mesoamérica e em outras partes do mundo? Por que
isso ocorreu no transcurso de poucos milênios? Como explicamos o surgimento das cidades em
diferentes partes do mundo, de forma aparentemente independente? A lista de perguntas continua e,
por trás dessas questões gerais, existem outras mais específicas. Queremos saber por que uma
cultura determinada adotou uma forma e não outra: como surgiram suas particularidades e até que
ponto elas foram influentes em seu desenvolvimento.
3 Existe a hipótese de que os primeiros hominídeos, incluindo o Homo habilis, não teriam praticado a caça mas teriam aproveitado principalmente as carcaças de animais mortos por outros predadores como fonte de proteína animal.
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