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Tranados indgenas norte amaznicos: fazer, adornar, usarLucia Hussak van Velthem1

Resumo O artigo visa a enfocar aspectos relevantes relacionados com o fazer, adornar e usar cestos e outros tranados. Como se fossem fios condutores, esses aspectos permitem tratar de coisas e de idias e assim infiltrar-se em uma dimenso que contempla antes o objeto concreto (Menezes, 1994) idntico a si prprio no contexto social de produo, do que o objeto retrico, confinado no universo museal. Assim articula-se a contextualizao dos tranados indgenas, ao considerar, alm daqueles elementos, os componentes cosmolgicos e simblicos. Palavras-chave: Amaznia. Cultura material. Cestaria.

Tranados indgenas: uma introduo

A atividade humana deixa traos materiais, de diferentes sortes. Alguns so involuntrios, outros intencionais e, portanto, artefatuais, possuindo a forma de objetos, os quais informam sobre as necessidades de expresso e de perpetuao de determinada sociedade. Um objeto sintetiza propriedades que derivam de aspectos espaciais, temporais e sociais, cujo significado se completa atravs da integrao de seus componentes estruturais, conceituais e relacionais(Velthem, 2003). A flexibilidade, funcionalidade e tambm a facilidade de renovao sempre distinguiram os objetos tecidos com matrias vegetais como uma das mais antigas tecnologias daRevista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Braslia, v.4, n.2, p.117-146, dez. 2007

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humanidade, antecedendo-se cermica e fazendo-se presente da antiguidade ao mundo contemporneo (Vidal, 1998). A arte de tranar fibras vegetais representa a mais diversificada das categorias artesanais indgenas pois revela adaptaes ecolgicas e expresses culturais distintas (Ribeiro, 1980, 1985, 1986, 1988; Velthem, 1980; Ricardo, 2000). Os objetos tranados produzidos possuem ampla distribuio geogrfica e se apresentam segundo uma aprecivel variedade de tcnicas de confeco, de elementos decorativos, de formas, que conectam cada objeto a uma funo especfica ou a vrios usos. Na vida da aldeia, os tranados tanto desempenham corriqueiras funes, armazenando as miudezas de um indivduo, como permitem que uma famlia possa transportar e processar os alimentos necessrios vida cotidiana. Ademais, muitos objetos tranados como cintos, tipias ou suportes para ornatos plumrios , contribuem para uma esttica corporal que determinante na individualizao sexual ou etria, estabelecendo por este meio uma conexo que se prolonga nos rituais funerrios ou de iniciao e intermediando a ao da sociedade sobre os corpos de seus membros. A insero museal dos tranados e demais artefatos indgenas sul-americanos remonta ao sculo XIX, quando se disseminaram os museus de Histria Natural na Europa e na Amrica. As razes desta insero esto, entretanto, fincadas na histria do contato entre brancos e ndios desde o sculo XVI e, de certa forma, reproduzem a sua dinmica. Desta forma, as colees encontradas nos museus consistem, muitas vezes, em recolhimentos ditados pela inclinao e interesses individuais e pelas dificuldades logsticas, e assim no representam118

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usualmente a totalidade da produo cesteira de determinada sociedade indgena, prevalecendo a incluso de determinados tipos de cestos nos museus, em grandes quantidades em detrimento dos demais. Um aspecto condicionante dessa coleta representado pela possibilidade de substituio de um tranado por um outro elemento de funo idntica, como ocorreu com os cestos recipientes dos Karaj, habitantes do estado do Tocantins, que foram facilmente vendidos ou trocados e assim integram vrias colees de museus nacionais e estrangeiros, o que no se repetiu com o cesto cargueiro ueriri, necessrio ao trabalho domstico e, assim, dificilmente disponibilizado e, portanto, raramente coletado (Taveira, 1982). Armazenados em museus, na vizinhana de elementos naturais, os produtos culturais indgenas so geralmente seriados e museografados em um universo que considera notadamente a tcnica produtiva dos artefatos. A abordagem museolgica de um objeto indgena uma das possibilidades de estudo mas, evidentemente, no a nica e, certamente, no estabelece o mais correto foco, pois no ressalta a riqueza e a densidade destes objetos. Nesse contexto, preciso ponderar que o termo cestaria, amplamente empregado no contexto museal para designar uma categoria artesanal de objetos tranados com fibras vegetais, no corresponde necessariamente a uma categorizao indgena (Taveira, 1982; Reichel-Dolmatoff, 1985; Velthem, 1998), o que pode ser estendido s demais produes materiais. Ilustrativo desse descompasso a classificao dos Wayana, que vivem no norte do estado do Par, para as suas diferentes produes materiais. O que rotulamos como cestaria constitui, para este povo, um conjunto de objetos avaliados a partir de mltiplas referncias que esto interligadas e assim se inserem119

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em uma identificao que considera a matria-prima empregada, a forma de confeco, a decorao e a funo de cada artefato (Velthem, 1998). Consequentemente, os artefatos indgenas, ao compartilharem um mesmo modelo de experincia coletiva, devem ter uma apreciao que no se restrinja s formas concretas e aos aspectos tcnicos, mas que se articule com os demais mbitos culturais. Com esse enfoque, podem revelar as dimenses mticas e metafsica do universo indgena, assim como transmitir preocupaes comunitrias e identitrias da sociedade produtora, pois os objetos, enquanto suporte de informao, proporcionam conhecimentos acerca da imagem que seus produtores fazem de si mesmos (Ribeiro, 1989; Vidal, 1992; Velthem, 1995, 2000). Os mais antigos estudos dos tranados indgenas da regio do norte amaznico remontam a Roth, (1916-17), mas, anteriormente, viajantes e cientistas que a percorreram, entre os quais Schomburk (1847), Crevaux, (1883), Koch-Grunberg (1903-1905), De Goeje (1910) coletaram objetos tranados entre os povos visitados e os mencionaram em seus escritos. Nos estudos antropolgicos recentes sobre a cestaria indgena das terras baixas sul-americanas, saliente uma preocupao com os aspectos tcnicos. A complexidade tecnolgica da cestaria atraiu diferentes pesquisadores para o terreno dos estudos taxonmicos e dos aspectos relacionados com a produo e uso forma e funo (ONeale, 1949; Yde, 1965; Frikel, 1973; Wilbert, 1975;Taveira, 1982; Ribeiro, 1980, 1985, 1986). Paralelamente, recorrente a nfase atribuda aos grafismos que esta tcnica logra to esplendidamente120

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apresentar. Determinados autores (Roth, 1916; Frikel, 1973) salientam inclusive que no seio destes padres que se aloja o simbolismo agregado aos tranados. Entretanto as tcnicas de confeco e a grande variedade na estrutura formal possuem igual importncia, visto que alguns estudos (Reichel-Dolmatoff, 1985; Ribeiro, 1980, 1985, 1986; Guss, 1989; Vidal, 1995; Velthem, 1998, 2000) permitiram aferir que estes aspectos no so meramente tcnicos, mas integram o mesmo arcabouo simblico dos padres. A estes somam-se questes relativas ao uso dos objetos de cestaria, sua funo na vida diria, nos rituais em que atua, as proibies que inibem sua confeco ou uso e ainda aspectos que esto conectados com a comercializao destes objetos (Henley e Muller, 1978; Ribeiro, 1977, 1981, 1982). O presente artigo evidentemente no esgota o tema, mas visa a enfocar aspectos relevantes relacionados com o fazer, adornar e usar cestos e outros tranados. Como se fossem fios condutores, esses aspectos permitem tratar de coisas e de idias e assim infiltrar-se em uma dimenso que contempla antes o objeto concreto (Menezes, 1999) idntico a si prprio no contexto social de produo, do que o objeto retrico, confinado no universo museal. O texto extrapola assim esse restritivo enquadramento, para se articular a um estudo contextualizado dos tranados indgenas que considera, alm dos elementos grficos, tecnolgicos, formais, funcionais , os componentes cosmolgicos e simblicos desta categoria artesanal2.

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Fazer: os materiais e as tcnicas

No Brasil, os povos indgenas fazem uso de materiais de origem vegetal madeiras, cips, enviras, palhas, fibras, resinas, leos, sementes, canios para edificarem suas moradias e na produo de artefatos de uso cotidiano e ritual (Ribeiro, 1983). Os que habitam a regio norte-amaznica empregam diferentes matrias-primas na confeco de tranados: folhas abertas, fololos e pecolos das folhas novas de diferentes espcies de palmeira como aai, bacaba, miriti, inaj3, as tiras de diversos tipos de cips, como o cip titica, e os talos de arum, uma planta silvestre encontrada em terrenos midos da terra firme e que, ao ser colhida, volta a brotar, exaurindo-se dificilmente. Berta Ribeiro (1985, 1992) inferiu que as matrias-primas empregadas na cestaria indgena permitem adequar essa categoria artesanal em dois macros-estilos: um mais malevel por empregar palhas de palmeiras, e o outro rgido, por utilizar fasquias de cips e de arum. A produo cesteira norte-amaznica inserese preferencialmente nesta segunda modalidade. Os Wayana conhecem e utilizam trs espcies de arum e os Baniwa, localizados no estado do Amazonas, identificam cinco espcies (Ricardo, 2000). Tanto os Wayana quanto os Baniwa destinam o arum verdadeiro, wama e popoa kntsa, respectivamente, para a produo de artefatos durveis de uso cotidiano, pois devem resistir a atividades intensas e dirias, como o caso do tipiti, que serve para espremer a massa de mandioca brava. A durabilidade do arum igualmente fundamental para os Arapasso, que vivem tambm no Amazonas. A hierarquia que estabelecem entre as diferentes espcies empregadas se baseia neste aspecto: as mais durveis122

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so os irmos mais velhos, e as demais so os irmos menores, uma categorizao que repassada aos objetos tranados. Assim sendo, a peneira siowa, confeccionada com arum verdadeiro, integra o grupo dos artefatos considerados primognitos em relao aos demais, feitos com as outras espcies de arum. A coleta do arum, entre os Wayana, exclusivamente masculina e, desta forma, os homens de uma aldeia empreendem incurses, de modo individual ou em pequenos grupos de parentes prximos. O arum cortado, as folhas so retiradas, e os talos reunidos em feixe e amarrados. So transportados desta forma ou em um cesto descartvel de folhas de palmeira. Quando as hastes so processadas posteriormente, o cesto que os contm armazenado em lugares midos, na orla da aldeia, no mximo por quatro dias, pois apodrecem rapidamente. As diferentes matrias-primas empregadas na cestaria indgena necessitam de preparao inicial para que as fibras possam ser trabalhadas. Em uma das modalidades tcnicas, os talos de arum no so raspados, mantendo, portanto, a casca, sendo em seguida fendidos com faca ou a unha do indicador em oito ou dezesseis fasquias. O arum com casca empregado na confeco dos tranados que devem ser resistentes, como os cestos cargueiros e os utilizados no processamento de alimentos. Em outro procedimento, os talos so decorticados, fendidos em fasquias e pintados. O arum pintado menos resistente, mas mais malevel, produzindo tranados com padres em claroescuro. Uma das principais tinturas, compartilhada pelos Wayana, Arapasso e Piriy, obtida da mistura de um mordente vegetal123

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com a fuligem recolhida em uma panela de argila (Frikel, 1973; van Velthem, 1998). Esta tintura, de cor negra, espalhada na haste decorticada com os dedos, e torna-se indelvel depois de seca, quando ento as fasquias so retiradas e tecidas. Os Kaiabi, estabelecidos no Parque do Xingu, empregam uma outra tcnica, tecendo previamente os cestos e s ento recobrindo a superfcie tranada com tintura feita com outro tipo de mordente, misturado ao carvo triturado. Esse revestimento posteriormente raspado com faca, revelando ento os padres (Athayde, 2001), pois a tintura adere s fasquias raspadas. Entre os Karaj so utilizados a embira preta ou feixes de malhas tingidos para a concretizao de padres contrastados em claroescuro (Taveira, 1982). O arum representa a matria-prima que concentra a maior carga simblica, dentre todas as que so empregadas pelos Wayana e tambm por outros povos, como os Tiriy e Aparai, do norte do estado do Par, e os Yekuana da fronteira Brasil-Venezuela (Frikel, 1973; Guss, 1989; Velthem, 1998). Entre os primeiros, o simbolismo atribudo a esse vegetal deriva de sua capacidade de produzir tranados tanto monocromticos como contrastados em claro-escuro. Essa dupla possibilidade origina-se do fato de que as diferentes espcies de arum so compreendidas como sendo dotadas de um revestimento em tudo similar ao humano. O arum possui assim uma epiderme, que a pelcula superficial, e uma derma, a casca secundria. Para a confeco de tranados, a primeira casca pode ser mantida, resultando em artefatos de cor unida, ou ento pode ser literalmente esfolada para receber tintura vegetal de cor negra ou vermelha e, assim, produzir artefatos com padres em cores contrastadas.124

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A similitude de revestimentos entre humanos e arum permite que essa matria-prima, ao ser tranada, reproduza peles tanto a da mulher primordial4, de cor unida e avermelhada, quanto a dos sobrenaturais fundamentais, estas com padres grficos em claro e escuro. O sentido perceptivo que destacado que as tcnicas de entranamento, ao permitirem a confeco de peles primevas, revela tanto a colorao das mesmas quanto os padres que as compem e, ainda, o seu fundamental carter, que o de ser uma decorao permanente. Consequentemente, na cestaria Wayana, o tecido e o motivo decorativo so uma e a mesma coisa, ao contrrio da cermica em que a decorao aplicada. este sentido de perenidade que aproxima os tranados dos seres primordiais e dos sobrenaturais, uma vez que ambos so dotados de um mesmo atributo decorativo. O entranamento das fibras vegetais uma tarefa masculina para a maioria dos povos indgenas norte amaznicos. Entretanto, para os Yanomami de Roraima e do Amazonas, assim como para os povos Maku deste mesmo estado, o entretecimento e a decorao de diferentes tipos de cestos caracterizam o mundo feminino. Essa diferenciao informa acerca do estabelecimento de uma rgida diviso sexual dos papis e das atividades de subsistncia que se exprime tambm nas tcnicas de manufatura dos povos indgenas. Entretanto, preciso considerar que na confeco de muitos dos artefatos necessria a cooperao mtua entre homens e mulheres, a partir do fornecimento de matriasprimas processadas e de implementos para a excelncia do resultado final.125

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A confeco de tranados representa uma atividade contnua no calendrio indgena, inclusive porque constitui importante fonte de renda para muitos povos indgenas, entre os quais os Baniwa, Kaiabi, Wayana, Aparai, e os Waipi que habitam o estado do Amap, os quais executam e transacionam cestos no comrcio regional e atravs das associaes indgenas5. Para os Wayana, o perodo mais propcio para este trabalho situa-se entre a derrubada e a queima dos roados, ou ainda em seu esfriamento, aps a queima. Nos momentos de transio, quando do nascimento do primeiro filho, so suspensos os trabalhos de cestaria, sobretudo os que empregam as talas de arum, uma vez que o poder que emana do entranamento de fibras afeta o recm-nascido, acarretando-lhe molstias que podem conduzir morte. Os tranados indgenas so concretizados a partir de tcnicas que empregam, evidentemente, as mos e os dedos. Para os Wayana, a gestualidade da confeco dos tranados e de seus arremates fornece a nomenclatura para as diferentes tcnicas de manufatura. A cestaria, a cermica e a tecelagem compacta so modalidades artesanais designadas pelo mesmo termo tkaph, provido do fazer, porque todas essas tcnicas empregam as duas mos em movimentos similares e no porque consideram que fazer cestos seja igual a fazer potes ou tangas. A necessidade da dupla gestualidade indica que se trata de uma tcnica na qual se trabalha intensamente, ao contrrio das que empregam apenas as pontas dos dedos, como a colagem de penas a um suporte. Para os Wayana, a dificuldade para a confeco de um tranado medida tanto pelos preparativos necessrios para126

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que a matria-prima possa ser trabalhada como pelas etapas requeridas para a concluso de um cesto. Assim, quanto mais h por fazer, o que inclui tambm as amarraes, a colocao de varetas de sustentao e das alas e acabamentos, mais rdua considerada a feitura de determinado objeto. Os paneiros de trama aberta, as esteiras e os abanos so mais fceis de serem executados e assim at meninos dominam esta tcnica. Entrementes, o artefato mais difcil de ser concludo o cesto cargueiro pintado, referido como katali timilihe e, por esse motivo, esse tranado atesta a maestria artesanal de um homem Wayana, quando portado por sua esposa nas visitas a outras aldeias (Velthem, 2000b). O espao de produo de tranados no indistinto entre os Wayana, pois se observa que os jovens solteiros se instalam preferencialmente dentro ou nos arredores da casa cerimonial. Os homens casados trabalham prximo s casas de moradia, sentados em bancos, no terreiro que as circunda ou junto a uma das entradas. Solteiros e casados, contudo, preferem tecer sentados em torno do fogo de aquecimento, aceso no centro do terreiro, um espao eminentemente masculino. Instalam-se ao seu redor no alvorecer e entardecer do dia, horas consideradas especialmente apropriadas para a confeco de tranados, uma vez que as matrias-primas, aps receberem o sereno da noite, tornam-se flexveis. A fabricao de tranados no um ato expontneo, pois necessrio que regras sejam obedecidas e que tcnicas sejam dominadas. Para os Wayana, o saber fazer advm de um aprendizado evolutivo e representa o resultado de uma transmisso social, sexualmente diferenciada, em que os pais e tios iniciam os jovens, o que caracteriza uma fabricao humana.127

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Os produtores de tranados esto sujeitos a prescries que objetivam o afastamento de ataques deletrios motivados por desordens sociais que derivam de uma obsesso individual na execuo de uma atividade artesanal. Um homem Wayana que est continuamente tecendo cestos, sem alternncia com as tarefas ligadas subsistncia ou a produo de outros artefatos, considerado como sendo obcecado pelo arum, um procedimento que provoca um desregulamento que acarreta acessos de febre que podem afet-lo e a seus parentes prximos. A obsesso no constitui uma forma de agir humana, mas representa a prpria tecnologia dos seres primordiais, desejvel apenas nos tempos rituais. Nestes momentos, os jovens iniciados devem dedicar-se, durante determinado perodo, execuo contnua de cestos cargueiros visando a acarretar processos de metamorfose em si mesmos e ao seu redor, os quais constituem o objetivo primeiro do ritual.Adornar: conhecimentos e apreciaes formais e estticas

Entre os povos indgenas, a produo de tranados congrega um conjunto de conhecimentos e saberes. Para os Wayana, a sede do conhecimento so os olhos, pois a figura invertida, que se apresenta nas pupilas, considerada a verdadeira detentora dos conhecimentos artesanais. Em outros termos, possuir conhecimentos sobre a confeco de cestos significa que a figura que vive nos olhos do arteso intermedia um processo visual/gestual que resulta na concretizao dos tranados. O saber artesanal resguardado a partir da proteo dessa figura. Assim, o arteso deve trabalhar de dia, com luz clara, para que no sofra o efeito de foras predatrias128

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e a vista decline e tambm para que os demais moradores da aldeia percebam que est tecendo um cesto e no preparando um sortilgio, pois ambos utilizam-se de materiais similares, o arum. Uma das mais marcantes caractersticas dos tranados indgenas a sua grande variedade formal que revela um elenco igualmente vasto de usos e funes6 que so exercidas na esfera privada e pblica, cotidiana ou ritual. O aspecto formal de um tranado evidencia-se quando este est completo, pronto. Um cesto, ao ser concludo, passa a ser referido pelos Wayana como pendurado na viga central, uma metfora que indica que os objetos no ficam soltos no espao, mas so sempre armazenados. O ato de pendurar constitui-se no paradigma da ordenao dos tranados e dos demais artefatos e tudo o que est depositado em lugares no adequados considerado como algo que est apodrecendo. Paralelamente, deve ser ressaltado que, entre os povos indgenas, os registros de visibilidade do universo material so muito diversificados. Assim, muitas vezes fundamental que o local de armazenamento de um tranado ou outro objeto qualquer seja conhecido. Esse conhecimento confere atributos de visibilidade aos tranados que ultrapassam o ato concreto de ver. Artefatos que esto deslocados de seu lugar original tornam-se simplesmente invisveis. Concludo, um tranado antes de tudo um objeto funcional, qualidade esta que constitui o coroamento de uma criao bem sucedida para os Wayana. A funcionalidade se valoriza, entretanto, quando dotada de especificidade e propriedade. Estes requisitos se alojam em categorias adjetivas que ampliam o potencial esttico de determinado objeto e,129

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embora aparentem sinonmia, existem elementos que permitem diferenci-los. Na especificidade funcional, isto significa que, quanto mais limitada a funo do tranado, mais valorizado ele se torna, no importando o contexto de uso, cotidiano ou ritual. Tranados que possuem uma nica funo, como a peneira para massa de mandioca, so mais apreciados do que os cestos de trama aberta que servem para carregar diferentes tipos de frutas. Na propriedade funcional, a valorizao decorre de o fato do tranado estar sendo usado na funo que lhe foi predestinada, a qual muitas vezes est descrita em sua designao, ocasionalmente atestada por um sufixo que significa continente, o que pode remeter a produtos os mais diversos, como batata-doce, miangas ou penas caudais de arara. Outras apreciaes estticas dos Wayana conectam-se colorao dos tranados recm-concludos que ressaltam, de modo marcante, a sua cor original, aquela que lhe d especificidade e identidade. Essa cor propiciada pela matriaprima de confeco, como o branco da palha de cunan ou o vermelho do arum com casca. Um tranado deteriorado , entretanto, depreciado, pois perdeu irremediavelmente esses valorizados atributos cromticos. Ao apresentarem sinais visveis de deteriorizao, os tranados so considerados verdadeiramente imprestveis ou podres, categorias antitticas a ipok, bom, adjetivo que raramente atribudo aos objetos, pois trata-se de algo evidente, intrnseco aos mesmos, uma vez que inconcebvel a fabricao de artefatos inteis ou imprestveis. Os objetos tranados que so produzidos pelos Wayana, tanto os de uso cotidiano como os empregados nas cerimnias130

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e rituais, apresentam caractersticas formais que identificam seus modelos, os arqutipos dos tempos primevos. Este sentido possibilita relacionar os tranados atuais aos elementos primordiais e assim constitui-se numa particularidade que enfatiza que o aspecto dos objetos baseado em um modelo, preferencialmente corporificado, mas que tambm pode ser constitudo por outro elemento de identificao dos arqutipos, como os seus pertences ou o seu local de moradia. Assim sendo, e como exemplos, uma determinada peneira circular tem exatamente o mesmo aspecto das volutas de uma serpente enrodilhada e uma peneira representa um ninho de vespas. Essa considerao representa o motivo pelo qual os tranados so compreendidos como corporificados e denominados no todo e nas partes constitutivas segundo essa concepo, um sentido igualmente encontrado entre os Yekuana (Wilbert, 1975; Guss, 1989). A estrutura formal dos tranados informa no apenas sobre a sua funcionalidade como tambm destaca outros aspectos representativos, os quais transmitem transcendentais valores culturais que iro se expressar de modo mais acurado nos motivos decorativos7. Entre muitos povos indgenas, a cestaria representa, consequentemente, um importante e significativo veculo de expresso esttica, alojado tanto na habilidade de execuo quanto na forma e nos padres decorativos. A ornamentao dos artefatos indgenas possui variaes formais porque materializada atravs de diferentes tcnicas, entretanto, em seu conjunto, revela o estilo de cada sociedade. A decorao possui um importante papel na socializao das pessoas e das coisas por elas fabricadas. Os propsitos131

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especficos da decorao esto direcionados sobretudo para a afirmao tnica e a definio do sentido de humanidade, para a apropriao de qualidades desejveis, a comunicao espiritual, a categorizao social e o desenvolvimento da expresso criativa. Os padres permitem ao indivduo perceber aspectos ocultos da viso ordinria e representam possibilidades de concretizao do aspecto formal dos seres de outras esferas cosmolgicas que no podem ser veiculados to precisamente por outros meios (Van Velthem, 2000, 2003). Para os povos de lngua Carib, como os Yekuana, os Tiriy, os Waiwai, os Kachuyana, os Wayana e Aparai, uma serpente sobrenatural constitui a figura central do mito de obteno da cestaria e dos motivos decorativos. Entre os Waiwai, trata-se de Uruperi ou Urufiri (Fock, 1963; Guss, 1989; Roe, 1995), entre os Kaxuyana, Marmaruim, a qual, segundo um relato mtico, foi morta por dois demiurgos que, ao retirarem seu couro, verificaram que o mesmo estava todo pintado, aprendendo dali todos os desenhos e enfeitando as peneiras, os balaios, as cestas e os demais artefatos dos Kaxuyana (Frikel, 1973). O principal repertrio decorativo wayana compreendido como sendo as pinturas corporais de Tuluper8 e conecta-se a uma noo de conjunto e enquanto criaes inerentes e permanentes deste ser sobrenatural, a sua pintura corporal e indica tambm a posse no-Wayana da decorao. Os elementos do repertrio decorativo wayana so denominados milikut e inserem-se na definio de desenho, englobando igualmente as noes de grafismo, padro, motivo, modelo, considerados na sua essncia representativa, tendo sido estendida escrita depois do contato com a sociedade nacional.132

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Os termos kusiwa para os Waypi, kwasiat para os Asurini, menur para os Aparai, menudu para os Yekuana, holi para os Tukano e goholi para os Desna possuem o mesmo sentido da expresso Wayana, revelando a importncia dos padres grficos enquanto portadores de significados e princpios fundamentais do pensamento indgena (Ribeiro, 1989; Guss, 1989; Gallois, 1992; Muller, 1990). O sentido mltiplo de um grafismo no se esgota jamais em si mesmo, mas revela diferentes concepes, as quais pressupem diversos nveis de interpretao. Os padres Wayana destinam-se ao corpo humano e aos objetos de todas as categorias artesanais, mas so os tranados de arum que exibem o mais variado elenco de padres, uma vez que permitem evidenciar um aspecto importante, relativo estruturao e distribuio da pintura do sobrenatural em seu prprio corpo: no rosto e tronco esto distribudos os padres contrastados em claro-escuro, sua cauda apresenta os motivos monocromticos. Alguns padres especiais, que podem ser vistos dos dois lados de um tranado, concentram-se no ventre do sobrenatural e indicam, por sua localizao, que este ser tem as entranhas igualmente decoradas. Dispostos exclusivamente nos cestos cargueiros decorados, so apontados como os mais belos e intrincados padres do elenco Wayana. Sua reproduo conseguida pelos mais habilidosos artistas, que so tambm os que, atravs deste exerccio, mais profundamente exercem o poder de visualizar o mundo sobrenatural (Velthem, 2000b). Os motivos decorativos, reproduzidos nos tranados, devido prpria natureza dessa tcnica, sem linhas curvas, apresentam-se como se fossem geomtricos, estilizados. So encontrados padres monocromticos que se sobressaem pelo133

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relevo das malhas trabalhadas e os elaborados meandros negros que se destacam sobre um fundo claro, resultante da tcnica de cruzado diagonal ou sarjado que, com suas variantes, proporciona uma multiplicidade de desenhos geomtricos (Ribeiro, 1985, p. 46). Entretanto, no aprofundamento da apreciao dos padres de diferentes povos indgenas, destacase um outro aspecto, a saber, a existncia de elementos figurativos ou icnicos9. O sentido icnico se caracteriza pelo fato de algum aspecto de semelhana evidenciar a relao entre a forma visual e seus significados, quase sempre os traos definidores do que representado: objeto, vegetal, animal e, sobretudo, seres sobrenaturais. A exegese de cada padro Wayana repousa na assertiva de que sua caracterstica icnica nem sempre unvoca, ou seja, no faz aluso a um nico modelo, mas revela mltiplas imagens, um mesmo grafismo detendo vrios significados. A exegese, entretanto, vai alm e evidencia a predao animal e sobrenatural e os sentidos da metamorfose, temas capitais do sistema cognitivo Wayana que influenciam diretamente a sua arte e esttica, temtica que compartilhada com diferentes povos de fala Carib e em especial com os Yekuana e Aparai (Velthem, 1998, 2000). Em outros termos, um padro Wayana expressa uma e mltiplas realidades e, por exemplo, o motivo decorativo kaikui ona pintada representa este animal e ainda um felino de propores gigantescas, assim como um outro sobrenatural identificado com o co domstico. Enfim, todas essas representaes se unem para expressar um elemento do repertrio das pinturas corporais da serpente sobrenatural e, por seu intermdio, ela mesma. A compreenso de cada padro se134

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efetiva, por conseguinte, atravs de um sentido figurativo mais complexo, uma vez que so reproduzidos seres assemelhados fisicamente mas que evoluem em mltiplas esferas espaotemporais: a dos primrdios e as atuais, a da natureza e a da sobrenatureza. A anlise formal dos padres permite destacar que as representaes podem ser integrais ou parciais, permitindo reconhecer o ser representado em sua totalidade ou apenas uma parcela de seu corpo, como ocorre entre os Wayana e os Karaj. Em alguns motivos, a prpria definio de cone deve ser expandida, porque existem padres cuja relao de semelhana com o modelo no se evidencia nominalmente. Temos assim que o nome do grafismo no corresponde ao que se procura efetivamente representar e, portanto, podem ser classificados enquanto metforas visuais para outra representao. Esse aspecto ocorre com o padro rabo (enrolado) do macaco prego, em forma de grega, que, alm de representar esse smio, descreve os cabelos espirados de um determinado sobrenatural. Muitos dos grafismos de cestaria logram influenciar aqueles que visualizam ou manipulam os artefatos que os ostentam. Assim, segundo o pensamento dos Arapasso, determinados padres so dotados de uma certa toxidade que repassada aos artefatos, os quais passam a ter uma atuao deletria, que atinge especialmente as mulheres que os utilizam. Isso ocorre com o motivo dente de piranha, e seus poderes deletrios derivariam do fato desses peixes serem reconhecidos canibais. A sua representao minaria as foras das usurias dos cestos em que foram tecidos, pois, de certa forma, as135

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devorariam. Um outro tipo de padro arapasso, referido como folha de aa pode ser tecido em uma peneira de duas formas: concntrica e excntrica. Cada uma dessas modalidades atua de modo antagnico, diminuindo ou aumentando a capacidade respiratria da mulher que utiliza esse artefato e, paralelamente, revelando os cuidados de seu marido ou ento a sua carncia (Velthem, 1999).Usar: funcionalidade e posse

No contexto social, os tranados expressam a especializao artesanal, assim como a diviso sexual do trabalho, o que prprio das sociedades indgenas amaznicas. Evocando uma das metforas da vida conjugal, essa tecnologia de gnero (Roe, 1995) revela que os artefatos confeccionados com materiais naturais, como os tranados, tendem a ser especializados no complementar trabalho de homens e mulheres. Essa tecnologia no somente baseada nas diferentes habilidades e conhecimentos de cada sexo, mas igualmente representada por artefatos que lhes so emblemticos. Consequentemente impregnam-se dos atributos prprios aos homens e mulheres e assim no devem ser tocados ou utilizados pelo cnjuge, quando em confeco ou em determinados perodos, em que agem foras poluidoras, relacionadas com a menstruao. Entre os Wayana, a cestaria ressalta a complementaridade existente entre fazer e usar que decorrente da vida matrimonial e familiar. Neste sentido, e em princpio, os homens so por excelncia os produtores de tranados e as mulheres as usurias. Esta regra no rgida, pois alguns tranados so utilizados pelos homens em determinados contextos e136

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algumas mulheres conhecem e executam artefatos tranados. A complementaridade aludida no se restringe confeco e ao uso dos tranados, mas atinge o referencial masculino e feminino que aplicado aos objetos. Assim sendo, os homens Wayana denominam um tranado de acordo com a matriaprima constituinte ou padres decorativos que possui, mas as mulheres consideram antes a sua utilizao, seja enquanto recipiente ou como um meio de transportar coisas. As diversas designaes que so atribudas a um mesmo tranado revelam as facetas que so percebidas nos objetos, a saber: confeco, decorao, utilizao. Ao homem cabe as duas primeiras, e assim cada tranado indica o domnio tcnico e artstico do indivduo. A mulher conecta-se outra, pois a manipulao dos tranados evidencia a necessidade de processamento de alimentos e outras matrias para a subsistncia e conforto familiar. Esse aspecto no exclusivo dos Wayana, pois entre os Kaxinaw do estado do Acre ele determina que as mulheres sejam responsveis pela confeco dos cestosrecipientes que empregam exclusivamente, uma vez que esto destinados a servir alimentos ou processar algodo. Os homens, entretanto, tecem os cestos de tampa encaixante para armazenar materiais diversificados e os artefatos plumrios de seu uso exclusivo. O casal se une na produo do elaborado cesto kuki, de armao rgida e tranado com motivos marchetados (Kensinger et alii, 1975). Na vida social da aldeia, onde os tranados adquirem funcionalidade e intermediam mltiplas relaes na vida domstica, inclusive de compartilhamento de marido e mulher em seu uso, como ocorre com a maioria dos cestos Asurini,137

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observa-se que geralmente as mulheres ocupam uma posio de destaque como as principais usurias dos artefatos de cestaria, como ocorre entre os povos indgenas norte-amaznicos. Para os Bar do noroeste do Estado do Amazonas10, uma jovem recm-casada, ao processar mandioca amarga, utiliza a casa de farinha do ncleo famliar de seu esposo, mas os implementos tranados empregados devem pertencer a seus familiares, at que possa obter aqueles que sero de sua propriedade. No uso desses implementos comum a jovem trabalhar associada me ou a uma irm e assim poderem trabalhar rpido. A associao de trabalho dos humanos referida entre os Bar como sumuara, companheiro, associao esta que pode ser estabelecida entre os artefatos, pois dois tipitis que so espremidos em conjunto ou dois abanos que se unem para virar um grande beiju no torrador tornam-se igualmente companheiros recprocos (Velthem, 1998). O cesto cargueiro dos Mundurucu que vivem no estado do Par transmite informaes que permitem identificar, simultaneamente, a metade clnica do homem que o confeccionou e a da mulher que o utiliza no transporte de lenha e dos produtos agrcolas (Velthem, 1992). A forma dos cestos no muda, a diferena entre eles se apoia no padro decorativo aplicado e na cor da ala de sustentao. O grafismo aplicado na parede externa do cesto com uma tintura base de urucu por aquele que o confeccionou e permite identificar o cl ao qual ele pertence e que transmite a seus descendentes. A confeco da ala de sustentao um trabalho feminino e utiliza uma entrecasca que pode apresentar cor esbranquiada ou avermelhada. A escolha da artes se dirige para a espcie que138

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apresenta a cor vermelha ou branca que identifica a metade exogmica qual ela pertence, um aspecto que determinou o seu casamento com o cesteiro que produziu e decorou seu cesto cargueiro e que, evidentemente, pertence outra metade. Ao receber um tranado, a mulher Wayana passa a ser a sua possuidora e o utiliza de acordo com as exigncias da vida domstica ou, segundo outras necessidades imperativas, pode vend-lo, recicl-lo e finalmente descart-lo quando o considera velho e sem serventia. medida que uma menina cresce, recebe uns poucos tranados do pai ou irmo mais velho, mas a posse e a utilizao de objetos tranados segue um crescendo em termos de variedade e tamanho. Na idade adulta manipula praticamente todo o repertrio existente, recebendo artefatos do marido e filhos adolescentes. Entretanto, com o passar do tempo, seu acervo diminui, reduzindo-se a poucos exemplares na velhice. Alguns tranados marcam especialmente a vida da mulher Wayana. O primeiro um diminuto cesto cargueiro ofertado pelo pai por volta dos cinco anos. Este cesto se torna ao mesmo tempo brinquedo e forma de aprendizado das tarefas femininas e constitui sua propriedade individual, dispondo do mesmo de acordo com sua vontade. O casamento propicia-lhe o recebimento dos artefatos necessrios ao processamento da mandioca brava, tais como cesto cargueiro, peneiras, abanos, esteiras, confeccionados pelo marido, assim como objetos entranados com finas talas de arum e desenhos marchetados que se destinam ao acondicionamento do algodo e do instrumental empregado em sua fiao (Velthem, 1998)11.

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O artefato, resultado de uma criao, est intimamente ligado a seu produtor ou possuidor e assim estes sofrem imposies de confeco e uso que no podem ser infringidas. Uma das restries Wayana impede que as prticas executadas com tranados de pessoas mortas, como a queima, a destruio e o enterramento, sejam aplicadas aos pertences dos vivos, pois lhes acarretaria envelhecimento precoce. Os objetos gastos pelo uso devem desaparecer pela ao do tempo e, assim, so jogados na periferia da aldeia. Entretanto, quando ocorre a morte de um cesteiro, todos os tranados que confeccionou devem ser destrudos. Como seus fabricantes, os tranados morreram e nada deve permanecer como lembrana, exceto a cesta de tampa encaixante que abriga a plumria e que destinada ao filho mais velho. Entre os Arapasso, os familiares do morto renem no terreiro todos os tranados que executou e usou, assim como outros objetos pessoais. O kum, xam, os deposita espiritualmente em uma canoa e os envia atravs das prticas xamnicas para a casa do retorno da vida, permitindo que os objetos se tornem aptos a serem utilizados pelos parentes vivos aps essa cerimnia12. Na atualidade, entre os povos indgenas, os indivduos produtores de cestos e de outros artefatos de cultura material tiveram de encontrar respostas ao longo do tempo para um seletivo nmero de presses que alteraram radicalmente tanto o que produzem como a forma em que os mesmos so avaliados e transacionados. Essas presses envolvem a introduo de novas tcnicas, materiais, formas e usos e o deslocamento dos cestos para fora do contexto da aldeia. Elas tambm se originam da ampliao do mercado externo mercantilista de140

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que os objetos indgenas so alvo e que envolve, em alguns casos, demandas por objetos autnticos as quais em seu conjunto acarretam transformaes radicais nesse processo (Ribeiro, 1978; Hugh-Jones, 1995). Esses aspectos refletem o fato de que, freqentemente, os artefatos indgenas so apreciados com um certo saudosismo e como sucedneos empobrecidos de uma arte outrora pujante e como obras de pessoas incapazes de operarem mudanas. Enquanto produtos humanos, os objetos indgenas refletem no apenas as mudanas efetivadas no decorrer do tempo, mas constituem, eles mesmos, em um arcabouo transformativo que faculta o surgimento e a incorporao de concepes e de percepes que proporcionam a essas sociedades os meios de adaptao a novas realidades e a novos horizontes criativos (Geertz, 1986, p. 125). Nas aldeias, a cultura material dos povos indgenas participa decisivamente da produo e reproduo social, definindo relaes individuais e coletivas, confirmando papis sociais e reforando valores fundamentais. Sua apreenso, portanto, no pode sofrer um estreitamento que v contemplar apenas alguns dos aspectos de uma complexa rede de referentes. A compreenso da importncia de um objeto tranado, como esse artigo tentou demonstrar, exige que se considere outros sistemas expressivos cuja conexo revela um mesmo modelo de experincia coletiva, culturalmente determinado, prprio a cada sociedade indgena.

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Notas1 2

Pesquisadora SCUP-MCT Esse exerccio baseia-se principalmente em trabalhos de minha autoria, datados de 1986, 1992, 1995, 1998, 2000 a e 2000 b. Os Wayana empregam sete espcies diferentes de folhas fechadas e abertas de palmeira (Velthem, 1998) Trata-se de Arumana, que deu origem aos Wayana. Ver a esse respeito alguns catlogos de divulgao CTI/APINA, 1999; ISA/ ATIX 2001; ISA/FOIRN, 2001. Foram repertoriados, entre os Karaj, onze tranados (Taveira, 1982), entre os Asurini, quatorze (Muller, 1990) e, entre os Wayana, trinta e seis (Velthem, 1998). Ver Guss (1989) para detalhes desses aspectos entre os Yekuana. Cujo correspondente zoolgico a sucuri (Eunectes murinus), tambm conhecida como sucurij, boiu, boina, anaconda, viboro, sendo a maior serpente constritora das Amricas. Trata-se do sentido amplamente discutido por Munn (1973) e retomados por Pierce (1977). Os Bar no falam mais a sua lngua original, pertencente famlia lingstica Aruak, mas se expressam em nheengatu, que tambm pode ser denominada de lngua geral Atualmente esse quadro alterou-se substancialmente, com o advento de uma grande quantidade bens industriais que substituem alguns tranados. Notas de campo, Yawaret, rio Uaups, 1999

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