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29 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 1(1): 29-46, 2009 O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase): breves considerações Resumo A doutrina da proteção integral disposta na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e na Lei 8.069/90 eleva crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos e os reconhece como pessoas em desenvolvimento, além de conferir à família, ao Estado e à sociedade o dever de assegurar seus direitos fundamentais e de proteção com prioridade absoluta (Art. 227, CF/88). Estudar o ato infracional e as medidas sócioeducativas implica fazer um aprofundamento teórico da doutrina da proteção integral. As medidas sócioeducativas têm finalidades especificamente pedagógicas e levam em consideração a vulnerabilidade do público a qual se destina. É necessário elucidar a diferenciação da responsabilização estatutária da lógica repressiva imposta pelo sistema penal; por isso, a partir do ano de 2004 foi apresentado como Projeto de Lei o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. A pesquisa tem como objetivo trazer algumas reflexões sobre o ato infracional, medidas socioeducativas, responsabilização estatutária e o SINASE como instrumento jurídico-político para a concretização dos direitos dos adolescentes autores de ato infracional. A pesquisa utilizou o método indutivo com análise interdisciplinar crítica e reflexiva da realidade envolvendo pesquisa bibliográfica. Podemos concluir que é necessário um estudo aprofundado da temática que envolve o ato infracional a partir das concepções trazidas pela doutrina da proteção integral e que o SINASE é um importante documento normativo que visa promover uma ação educativa no atendimento ao adolescente, seja em meio aberto ou em casos de restrição de liberdade. Palavras-chave: adolescentes - ato infracional - doutrina da proteção integral - medidas socioeducativas - responsabilização estatutária - SINASE. Josiane RosePetry Veronse 1,2 Fernanda da Silva Lima 1,2,3 1 Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina 2 Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente, Universidade Federal de Santa Catarina 3 Mestranda no Curso de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina Autor para correspondência: Josiane RosePetry Veronse Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Trindade, Cep: 88050-000, Florianópolis, SC. Email: [email protected] Veronese & Lima

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29 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 1(1): 29-46, 2009

O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase): breves considerações

Resumo

A doutrina da proteção integral disposta na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e na Lei 8.069/90 eleva crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos e os reconhece como pessoas em desenvolvimento, além de conferir à família, ao Estado e à sociedade o dever de assegurar seus direitos fundamentais e de proteção com prioridade absoluta (Art. 227, CF/88). Estudar o ato infracional e as medidas sócioeducativas implica fazer um aprofundamento teórico da doutrina da proteção integral. As medidas sócioeducativas têm finalidades especificamente pedagógicas e levam em consideração a vulnerabilidade do público a qual se destina. É necessário elucidar a diferenciação da responsabilização estatutária da lógica repressiva imposta pelo sistema penal; por isso, a partir do ano de 2004 foi apresentado como Projeto de Lei o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. A pesquisa tem como objetivo trazer algumas reflexões sobre o ato infracional, medidas socioeducativas, responsabilização estatutária e o SINASE como instrumento jurídico-político para a concretização dos direitos dos adolescentes autores de ato infracional. A pesquisa utilizou o método indutivo com análise interdisciplinar crítica e reflexiva da realidade envolvendo pesquisa bibliográfica. Podemos concluir que é necessário um estudo aprofundado da temática que envolve o ato infracional a partir das concepções trazidas pela doutrina da proteção integral e que o SINASE é um importante documento normativo que visa promover uma ação educativa no atendimento ao adolescente, seja em meio aberto ou em casos de restrição de liberdade.

Palavras-chave: adolescentes - ato infracional - doutrina da proteção integral - medidas socioeducativas - responsabilização estatutária - SINASE.

Josiane RosePetry Veronse 1,2 Fernanda da Silva Lima 1,2,3

1 Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina

2 Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente, Universidade Federal de Santa Catarina 3 Mestranda no Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina

Autor para correspondência: Josiane RosePetry Veronse Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Trindade, Cep: 88050-000, Florianópolis, SC. Email: [email protected]

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Introdução

O Direito da Criança e do Adolescente é um ramo jurídico autônomo, cujo caráter interdisciplinar permite o estudo aprofundado dos mais variados temas que envolvem a população infanto-juvenil. Crianças e adolescentes, na condição de sujeitos de direitos, recebem uma proteção especial, tendo em vista a situação peculiar de seres ainda em desenvolvimento e que por isso gozam de absoluta prioridade na efetivação dos seus direitos fundamentais.

Nesta perspectiva, estudar o ato infracional e as medidas socioeducativas implica fazer um aprofundamento teórico da doutrina da proteção integral, consagrada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente consubstanciado na Lei 8.069 de 13 de julho de 1990.

A problemática que envolve o ato infracional e a execução das medidas socioeducativas tem múltiplas causas e está vinculada a concepções obsoletas na forma como enfrentar/ lidar com o adolescente autor de ato infracional. As medidas socioeducativas, sejam aquelas executadas em meio aberto ou as restritivas de liberdade, devem guiar-se pelo trinômio: liberdade, respeito e dignidade. A intervenção deve ser obrigatoriamente pedagógica e não punitiva.

No ano de 2004, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e com apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) sistematizaram e apresentaram a proposta do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, que é um documento que visa promover uma ação educativa no atendimento ao adolescente que cumpre medida socioeducativa, sejam aquelas em meio aberto ou as restritivas de liberdade.

A pesquisa tem como objetivo trazer algumas reflexões sobre o ato infracional, as medidas socioeducativas, responsabilização estatutária e o SINASE – como instrumento jurídico-político para a concretização dos direitos fundamentais dos adolescentes autores de ato infracional.

Num primeiro momento deste estudo, é importante conceituar ato infracional e a responsabilização estatutária caracterizada na execução das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. É importante elucidar a diferenciação da responsabilização estatutária – ancorada pela doutrina da proteção integral – da lógica repressiva imposta pelo sistema penal. Em seguida será analisado o projeto do SINASE e a sua importância como

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instrumento jurídico consolidador dos direitos dos adolescentes no Brasil.

A pesquisa utilizou o método indutivo com análise interdisciplinar envolvendo pesquisa bibliográfica.

Ato infracional, medidas socioeducativas e a responsabilização estatutária

Um dos grandes desafios atuais nos estudos em Direito da Criança e do Adolescente refere-se à temática ato infracional. É um tema complexo, que envolve múltiplas causas e vem carregado das velhas concepções trazidas pelo direito do menor e pela doutrina jurídica da situação irregular consubstanciada no revogado Código de Menores de 1979.

Não cabe neste texto discorrer sobre a política social e a construção normativa que marcou o direito menorista no Brasil1, mas cabe enfatizar que já passamos pelo período de transição paradigmática com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e com a aprovação da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente. Ambos os instrumentos normativos foram inspirados na Convenção Internacional dos Direitos da Criança aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 1989 que contempla uma nova doutrina jurídica para a infância respaldada pela concepção da proteção integral.

A doutrina da proteção integral eleva crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos e as reconhece como pessoas em estado peculiar de desenvolvimento, além de conferir à família, ao

1 De acordo com Custódio: “No período da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, implantada a partir de 1964 com o golpe, mais uma vez, há a repressão institucionalizada, com a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor e a ideologia da segurança nacional, revigorando as práticas de contenção institucional e imposição da disciplina.” E ainda assinala que: “O Período do Direito do Menor em Situação Irregular inaugurado com o Código de Menores de 1979 continuou a compreender a infância como abandonada, exposta, transviada, delinqüente, infratora ou libertina, ou seja, concentrando todas as discriminações em uma única categoria jurídica: a menoridade. Na verdade, o Direito do Menor nada mais foi que a institucionalização jurídica da Política Nacional do Bem-Estar do Menor orientada para o controle, a vigilância e a repressão das classes populares.” CUSTÓDIO, André Viana. Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas: limites e perspectivas para a erradicação do trabalho infantil doméstico. In: CUSTÓDIO, André Viana; CAMARGO, Mônica Ovinski de. (orgs.) Estudos contemporâneos de direitos fundamentais: visões interdisciplinares. Curitiba: Multideia, 2008. p. 105.

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Estado e à sociedade o dever de assegurar seus direitos fundamentais e de proteção com prioridade absoluta (Art. 227, CF/88).

A infância e a adolescência, admitidas como prioridade imediata e absoluta exige uma consideração especial e isto significa que a sua proteção deve sobrepor-se às medidas de ajustes econômicos com o objetivo de serem resguardados os seus direitos fundamentais. E mais, tal entendimento resultou na “prioridade absoluta constitucional” determinada no art. 227 da Constituição Federal de 1988, regulamentada na Lei nº 8.069/90, em especial o art. 4º, § único:

- primazia em receber proteção e socorro em qualquer circunstância;

- precedência no atendimento por serviço ou órgão público de qualquer poder;

- preferência na formulação e execução das políticas sociais públicas;

- destinação privilegiada de recursos públicos às áreas relacionadas com a proteção da infância e da juventude.

A Doutrina da Proteção Integral, como lembra Costa,

[...] afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude como portadora da continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade. O que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos (1992: 17).

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em consonância com tal doutrina, tem por fundamento o seguinte tripé: liberdade, respeito, dignidade. Não podemos mais tratar a infância e a juventude com descaso, não podemos mais coisificá-los como meros objetos passíveis de tutela normativa, não podemos mais diferenciar a quem se deve proteger. Todas as crianças e adolescentes, indistintamente, estão na condição de sujeitos de direitos e são merecedores de uma proteção especial aos seus direitos, sem negligência, sem crueldade, sem opressão, sem discriminação e sem desrespeito.

Nessa perspectiva de proteção, o Estatuto da Criança e do Adolescente consubstancia uma norma insurgente capaz de não apenas normatizar sobre os direitos de crianças e adolescentes; vai além disso, pois consegue sistematizar a forma pela qual esses direitos

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devem ser efetivados mediante a atuação do sistema de garantia de direitos.

Primeiramente, podemos conceituar ato infracional como toda conduta praticada por criança ou adolescente definida como crime ou contravenção pelo Código Penal Brasileiro. Para a configuração do ato infracional é necessária a presença de indícios suficientes da autoria e materialidade do fato. Esta é a única relação existente entre o Direito da Criança e do Adolescente e o Direito Penal. O Direito Penal apenas nos dá os tipos penais que são considerados crimes ou contravenções, pois a forma de responsabilização pela prática do ato infracional é exclusiva das normativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Conforme previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, são penalmente inimputáveis as pessoas com idade inferior a 18 anos. A palavra imputabilidade tem origem no verbo imputar, que significa atribuir a alguém determinada responsabilidade. Imputabilidade penal, portanto, é a atribuição da responsabilidade penal, que torna a pessoa suscetível de aplicação das normas estabelecidas no Código Penal e de suas sanções, se suas determinações não forem cumpridas.

Logo, imputabilidade penal é a suscetibilidade de tornar a pessoa sujeito do Direito Penal, sendo então considerada como uma condição ou qualificação daquele que pode ser sujeito ativo de ilícito penal (CRETELLA JÚNIOR, 1993: 45-49).

A inimputabilidade penal dos menores de dezoito anos incorporou-se à Carta Magna brasileira em 1988, quando foi promulgada, com sua disposição no art. 228.2 Por isso podemos dizer que a discussão acerca do rebaixamento dos limites de idade penal soa como um “discurso vazio”, pois o dispositivo normativo que assegura a imputabilidade penal aos menores de 18 anos é uma cláusula pétrea e, como tal, só pode ser alterada mediante a realização de uma nova Assembléia Nacional Constituinte.

Portanto, o critério de 18 anos como limite de responsabilidade penal vem de um avanço da própria política criminal. Os projetos de rebaixamento desse limite esbarram no art. 60, § 4º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o qual determina que não pode ser objeto de Emendas Constitucionais dispositivos que visem abolir os direitos e garantias individuais.

No entanto, há que se afirmar que o menor de dezoito anos é inimputável penalmente, mas está sujeito às normas presentes na legislação especial. Desde 1990, os adolescentes – pessoas de 12 a 18

2 Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

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anos de idade - são responsabilizados por seus atos frente ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado para dar maior ênfase à situação da criança e do adolescente e dar-lhes o status de sujeitos de Direito. Para tal fim, se projeta com uma proposta insurgente: a responsabilização social. Assim, para atos infracionais cometidos por menores de dezoito anos, o Estatuto prevê medidas socio-educativas que são dispostas em grau de severidade, no seu art. 112, dependendo, para a aplicação de cada medida, de algumas questões fundamentais que são: a capacidade do adolescente em cumprir determinada medida, as circunstâncias que sucedeu o suposto ato infracional e a gravidade deste último.

As medidas socioeducativas são prescritas conforme os artigos do Título III, Capítulo IV do Estatuto da Criança e do Adolescente. Vejamos os artigos das Seção I, “Disposições gerais”, os quais enumeram e caracterizam as tais medidas:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I – advertência;

II – obrigação de reparar o dano;

III – prestação de serviços à comunidade;

IV – liberdade assistida;

V – inserção em regime de semiliberdade;

VI – internação em estabelecimento educacional;

VII – qualquer uma das medidas previstas no art. 101, I a VI.3

§ 1.º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.

§ 2.º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.

3 Art. 101, I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II – orientação, apoio e acompanhamento temporários; III – matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de estudo fundamental; IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;

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§ 3.º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.

Art. 113. Aplica-se a este capítulo o disposto nos arts. 99 e 100.4

Art. 114. A imposição das medidas previstas nos incisos II a IV do art. 112 pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese da remissão, nos termos do art. 127.

Parágrafo único. A advertência poderá ser aplicada sempre que houver prova da materialidade e indícios suficientes da autoria.

Ainda como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, são asseguradas aos adolescentes todas as garantias processuais tais como o direito ao contraditório, a ampla defesa, a defesa técnica por advogado e o devido processo legal. Sem essas garantias, medida alguma poderá ser concedida ao adolescente autor de ato infracional sob pena de nulidade processual.

As garantias processuais, bem como a imprescindibilidade da presença do advogado em todos os atos do processo representam um enorme avanço frente aos revogados Códigos de Menores (1927 e 1979), uma vez que, para o antigo sistema, a presença do advogado era facultativa, prejudicando principalmente aquela parcela da população sem recursos financeiros para contratar profissional da área.

As seis medidas socioeducativas previstas no Estatuto devem ser aplicadas em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e observar o estado peculiar em que se encontram os adolescentes na condição de pessoas em desenvolvimento. A aplicação das medidas socioeducativas deve ter caráter pedagógico e promover o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.

Entende-se que a Lei n. 8.069/90 efetivamente não contempla a medida socio-educativa como uma sanção penal. Chama atenção o fato de que no art. 100 há a evidência de algo inovador: “Na aplicação das medidas, levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”. Os arts. 119, II; 120, § 1º; 123, § único, de igual modo ratificam a importância das atividades pedagógicas, as quais são obrigatórias, mesmo nas internações provisórias, pois o que se pretende é sempre o resgate desta pessoa humana, inimputável penalmente que, no entanto, transgrediu normas. 4 Art. 99. As medidas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo. Art. 100. Na aplicação das medidas, levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

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O Estatuto acredita que a melhor forma de intervir nesse adolescente em conflito com a lei é incidir positivamente na sua formação, servindo-se, para tanto, do processo pedagógico como um mecanismo efetivo, que possibilite o convívio cidadão desse adolescente autor de ato infracional em sua comunidade. Pretendem, pois, tais medidas, educar para a vida social.

No entanto, não deve ser essa intervenção pedagógica pautada pelo medo, pois

O medo é impositivo, suscita um desequilíbrio psicológico e físico, exerce uma ação de fora para dentro no individuo e o leva, pela incapacidade ou impossibilidade de enfrentá-lo, à obediência. A prática de educar pelo medo, pela punição, atua fortemente, predeterminando uma ação ou um comportamento através da inibição de outros. O medo impede determinadas ações, não porque desencadeia no indivíduo uma maior compreensão sobre algo, não necessariamente porque o conduz a um processo consciente de aprendizagem, mas porque faz com que o indivíduo, na maioria das vezes, se sinta sem iniciativa, podendo, consequentemente, comprometer suas ações futuras, o seu processo de socialização e sua autoestima (VERONESE, OLIVEIRA, 2008: 49).

O que se pretende com o atual sistema de medidas socioeducativas é a superação das velhas concepções autoritárias de defesa social e de caráter retributivo, pois sabemos que a melhor alternativa de superação à violência é a emancipação humana e somente a promoção de alternativas educativas e sociais são capazes de apresentar novos horizontes.

Ao responsabilizar os adolescentes estamos impondo limites. Se o Estatuto da Criança e do Adolescente não é respeitado sob esse prisma, o da responsabilização estatutária é, porque estamos trabalhando com profissionais inabilitados e/ou programas inadequados.

A idéia fundamental de que à criança e ao adolescente é conferida a prioridade constitucional, a qual enseja uma série de respostas a serem tomadas de forma conjunta pela família, pela sociedade e pelo Estado, implica necessariamente o atendimento preferencial nos casos limites e emergenciais. Portanto, o status da prioridade absoluta deve ser considerado na proposição e execução das políticas públicas, nesse caso, que visem orientar adequadamente a execução das medidas socioeducativas.

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O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE

A proposta da responsabilização estatutária mediante a inserção de práticas pedagógicas em detrimento das punitivas – violadoras dos direitos humanos dos adolescentes – é um grande desafio proposto aos operadores do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente. É possível fazer com que esse ideal de responsabilização não se constitua em letra morta? Como fazer cumprir essa nova proposta pedagógica? Qual caminho seguir? Como permitir que os adolescentes envolvidos com ato infracional não tenham condutas reiteradas? Essas e outras indagações são basilares para quem trabalha com um tema tão complexo e tão carregado das mais variadas violências.

Foi pensando em melhor atender os adolescentes e dar respostas a essas questões que, no ano de 2004, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente e com apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) sistematizaram e apresentaram a proposta do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE.

Em novembro do mesmo ano promoveram um amplo diálogo nacional com aproximadamente 160 atores do SGD, que durante três dias discutiram, aprofundaram e contribuíram de forma imperativa na construção deste documento (SINASE), que se constituirá em um guia na implementação das medidas socioeducativas (CONANDA, 2006: 15).

O SINASE foi aprovado na assembléia do CONANDA em 13 de julho de 2006 e representou um grande avanço em termos de políticas públicas voltadas para os adolescentes autores de ato infracional. Em 13 de julho de 2007, o SINASE foi apresentado como projeto de lei (PL 1.627/2007) ao Plenário da Câmara dos Deputados. Em 9 de novembro do mesmo ano, por Ato da Presidência da Câmara foi criada uma Comissão Especial para analisar o projeto de lei, tendo como relatora a deputada Rita Camata (PMDB/ES).

O SINASE é fruto de uma construção coletiva envolvendo diversos seguimentos do governo, representantes de entidades de atendimento, especialistas na área e sociedade civil que promoveram intensos debates com a finalidade de construir parâmetros mais objetivos no atendimento ao adolescente autor de ato infracional. Trata-se de uma política pública que verdadeiramente procura atender aos preceitos pedagógicos das medidas socio-educativas conforme dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente.

O educar para a vida social visa, na essência, ao alcance de realização pessoal e de participação comunitária, predicados inerentes à cidadania. Assim, imagina-se que a excelência

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das medidas socioeducativas se fará presente quando propiciar aos adolescentes oportunidade de deixarem de ser meras vítimas da sociedade injusta em que vivemos para se constituírem em agentes transformadores desta mesma realidade (MAIOR, 2006: 379).

O SINASE, portanto, é um instrumento composto por um “[...] conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa” (CONANDA, 2006: 23). Deve ser compreendido como uma política social de inclusão do adolescente autor de ato infracional.

O SINASE é um documento que visa promover uma ação educativa no atendimento ao adolescente, seja em meio aberto ou em casos de restrição de liberdade. Mas há que se ressaltar que esse instrumento jurídico-político dá preferência às medidas executadas em meio aberto, porque compreende que as medidas restritivas de liberdade, como a semiliberdade e a internação devem ser aplicadas em último caso, levando sempre em consideração os princípios da brevidade e da excepcionalidade.

O SINASE está organizado em nove capítulos e

Objetiva, primordialmente, o desenvolvimento de uma ação socioeducativa sustentada nos princípios dos direitos humanos. Persegue, ainda, a idéia dos alinhamentos conceitual, estratégico e operacional, estruturado, principalmente, em bases éticas e pedagógicas (CONANDA, 2006: 15).

Na condição de sistema integrado, o SINASE procura articular os três níveis do governo para o melhor desenvolvimento do atendimento socioeducativo ao adolescente, levando em consideração a intersetorialidade e a co-responsabilidade entre a família, o Estado e a sociedade. É importante que haja uma articulação e um trabalho conjunto/em rede dos operadores do Sistema de Garantia de Direitos. Para Souza, é necessário que se desenvolva trabalhos em sistemas de redes para alcançar a real efetivação dos direitos infanto-juvenis, uma vez que

A idéia de rede tem por base o sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente, compreendendo os diversos atores que interagem para garantir esses direitos. [...] Assim, esse sistema de garantia apresenta eixos de ação (promoção de direitos, defesa dos direitos e controle social), que criam redes internas e entre si (2008: 45-46).

O SINASE tem como marco legal os dispositivos da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, além de respeitar os tratados e convenções internacionais. É um documento que normatiza como devem atuar as

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entidades de atendimento que trabalham com os adolescentes autores de ato infracional. O manual compreende desde a forma política de traçar as diretrizes pedagógicas de cada programa de atendimento como também enumera o quadro de profissionais que deve atuar em conjunto nos programas específicos.

A equipe multidisciplinar é fundamental para auxiliar o adolescente em cumprimento de medida socioeducativa, pois ele pode ser atendido na medida de suas necessidades e recebe apoio profissional de advogados, pedagogos, assistentes sociais, psicólogos e demais profissionais dispostos a contribuir com a sua formação. Além disso, o apoio pedagógico deve ser suficiente para

[...] propiciar ao adolescente o acesso a direitos e às oportunidades de superação de sua situação de exclusão, de ressignificação de valores, bem como o acesso à formação de valores para a participação na vida social, uma vez que as medidas socioeducativas possuem uma dimensão jurídico-sancionatória e uma dimensão substancial ético-pedagógica (CONANDA, 2006: 51).

O SINASE também normatiza sobre os parâmetros arquitetônicos para unidades de atendimento socioeducativo, principalmente em relação ao espaço físico, infraestrutura adequada para atender os adolescentes e capacidade/vaga compatível com a demanda sem negligenciar os direitos dos adolescentes. Dispõe sobre a previsão orçamentária para a execução e manutenção das medidas socioeducativas. Enfim, é um verdadeiro manual que, em complemento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, mostra o know how, o como fazer, o como trabalhar com as medidas socioeducativas mediante a intervenção de práticas pedagógicas sem violar direitos.

Dentre as diretrizes pedagógicas do atendimento socioeducativo apontadas pelo SINASE, ressalta-se que é imprescindível considerar:

1.A prevalência da ação socioeducativa sobre os aspectos meramente sancionatórios;

2.O projeto pedagógico como ordenador de ação e gestão do atendimento socioeducativo;

3.A participação dos adolescentes na construção, no monitoramento e na avaliação das ações socioeducativas;

4.O respeito à singularidade do adolescente, presença educativa e exemplaridade como condições necessárias na ação socioeducativa;

6.A disciplina como meio para a realização da ação socioeducativa;

7.A dinâmica institucional garantindo a horizontalidade na socialização das informações e dos saberes em equipe multiprofissional;

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8.A diversidade étnico-racial, de gênero e de orientação sexual norteadora da prática pedagógica;

9. A família e a comunidade participando ativamente da experiência socioeducativa;

10.A formação continuada dos atores sociais (CONANDA, 2006).

A sistematização do SINASE em nove capítulos foi importante porque abrangeu as principais necessidades e, porque não dizer, as medidas urgentes que precisavam ser estabelecidas para harmonizar o atendimento socioeducativo em todo o território nacional. O SINASE, sem dúvida alguma, é um importante instrumento jurídico-político que contribuiu para a concretização dos direitos dos adolescentes envolvidos com ato infracional.

Tem a característica de um verdadeiro manual a ser seguido pelos operadores dos programas de atendimento, além de auxiliar os operadores do sistema de garantia de direitos – principalmente na proposição de políticas públicas e previsão orçamentária –, e o sistema de justiça. Ambos devem atuar em conjunto para romper com a lógica repressivo-punitiva que permeia os programas de atendimento socioeducativo.

Estamos numa fase de transição, em que se rompe com a punição, com a cultura do medo, para substituí-la pela lógica dos limites e da intervenção pedagógica. Em outra obra já afirmamos que

[...] a melhor educação assegurada pela atual Carta Constitucional é aquela voltada ao diálogo, à tolerância e, sobretudo, à liberdade.

A educação para a liberdade somente poderá ser efetivada através do diálogo e da hierarquização dos valores intrínsecos à natureza humana, no sentido de permitir à criança e ao adolescente uma possibilidade real de atuar como protagonista na construção de sua condição especial de ser humano em desenvolvimento (VERONESE, OLIVEIRA, 2008: 131).

Por isso, insistimos em afirmar: para que haja verdadeira transformação no tratamento dispensado aos adolescentes autores de ato infracional, são necessárias grandes mudanças. É imprescindível a ampliação do sistema em meio aberto. É preciso que os magistrados que atuam na área da infância conheçam melhor o Estatuto da Criança e do Adolescente e a finalidade das medidas socioeducativas para que possam aplicar as medidas não restritivas de liberdade em detrimento da semiliberdade e da internação.

É necessário ampliar as varas especializadas e o plantão institucional. Regionalizar o atendimento em atenção ao princípio da municipalização. É importante que a elaboração de uma política de

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atendimento esteja verdadeiramente integrada com as demais políticas sociais desenvolvidas para a infância e juventude.

É imprescindível que haja integração entre os “órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública, Assistência Social, na operacionalização do atendimento inicial do adolescente em conflito com a lei, e atendimento estruturado e qualificado aos egressos” (CONANDA, 2006: 22).

Finalmente, no dia 29 de abril de 2009, a Comissão Especial instalada na Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade o projeto de Lei 1.627/2007 que foi, em seguida, encaminhado ao Plenário da Câmara. Em discussão no Plenário da Câmara o projeto original do SINASE ganhou duas Emendas e o substitutivo foi aprovado no dia 2 de junho de 2009 e encaminhado para apreciação do Senado Federal sob o nº PL 1.627-B/2007.

O SINASE é um instrumento jurídico-político que complementa o Estatuto da Criança e do Adolescente em matéria de ato infracional e medidas socioeducativas. É um documento que impõe obrigações e a co-responsabilidade da família, da sociedade e do Estado para a efetivação dos direitos fundamentais dos adolescentes autores de ato infracional. E ao Estado, principalmente, cabe a função de investir em políticas sociais que facilitem a concretização desse importante instrumento normativo.

Conclusão

Como forma de concluir esse trabalho, sem obviamente cessar as reflexões sobre a aplicabilidade das medidas socioeducativas para adolescentes como modelo de (que deve ter) caráter sociopedagógico, vale a pena tecer algumas considerações e inquietações a cerca da temática e tudo o que ela envolve. Atuar na área da infância e adolescência não é tarefa fácil, mas se tornará profundamente mais difícil se não houver amor e compreensão por essa parcela significativa da população que, com absoluta certeza, é a mais vulnerável.

Mas o seu estado de vulnerabilidade é inerente à fase da vida (ÀRIES,1981) em que se encontram os adolescentes. O ser adolescente representa o ser que ainda não está completo, pois ainda transita entre a infância e a fase adulta que terá de trilhar. Portanto, a adolescência, diversas vezes, caracteriza-se pela busca incessante de autonomia, de liberdade, de emancipação, de formação, etc.

A historiografia sociojurídica da infância e adolescência revela que esses grupos vulneráveis sempre foram alvos de toda forma de

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negligência, violência e opressão. Ao normatizar as relações sociais, as leis menoristas serviram para escamotear verdadeiras crueldades nos tratamentos dispensados à infância e juventude, em que o ser adulto sempre foi, nessa relação, aquele que tudo podia e a voz da autoridade. No Brasil, sobretudo, por mais de quatro séculos, milhares de crianças e adolescentes foram oprimidos na sua condição de ser humano.

Vive-se numa sociedade que ainda não conseguiu romper com a lógica punitivo-repressiva evidenciada principalmente na época da Política Nacional do Bem-Estar do Menor em plena efervescência durante a ditadura militar no país. Problema de menor era assunto de segurança nacional. E o que se percebeu ao longo de décadas foi o inchaço das FUNABEMs e FEBEMs espalhadas pelo Brasil, que atuavam como verdadeiros depósitos de indesejáveis sociais.

Hoje, que tipo de instituições existem? Existem os Centros Educacionais e os Centros de Internamento Provisórios, e agora? Cadê a mudança?! Parece que, em muitos destes lugares, foi apenas substituído o nome; eis que a lógica da institucionalização permanece a mesma.

Mas não cabe a desesperança, pois a verdade é que, muito ou pouco, os estudos têm avançado. O Direito da Criança e do Adolescente segue à risca as normativas internacionais de proteção e promoção dos direitos infanto-juvenis. O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma norma insurgente mais que avançada para o seu tempo, e o melhor instrumento jurídico de proteção aos direitos da infância que alguma nação pode ter.

Em se tratando da normatização das condutas humanas, o Estatuto reservou às crianças e adolescentes a chamada responsabilização estatutária frente à prática do ato infracional, e essa responsabilização se materializa no cumprimento, pelos adolescentes, das medidas socioeducativas.

As medidas sócio-educativas devem contribuir para o desenvolvimento dos adolescentes, sendo-lhes garantido o acesso à educação, à cultura, à informação, ao lazer, à profissionalização, à convivência comunitária. Contudo, é preciso registrar que no sistema de justiça brasileiro ainda são aplicáveis as medidas socioeducativas consideradas mais severas para um universo significativo de adolescentes, tais como as privativas de liberdade. Essas decisões buscam fundamentos em concepções antigas e reproduzidas historicamente pelo Direito do Menor e que continuam em pleno vigor no Brasil “[...] porque os atores jurídicos envolvidos nestas questões continuam com a ‘mentalidade da defesa social’, inconstitucionalmente, ressalta-se” (ROSA, 2005: 39, grifo do autor).

Nos procedimentos de apuração de ato infracional, ou até mesmo durante a execução da medida socioeducativa há uma perda da

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identidade do adolescente, pois ele é desconsiderado em sua condição de sujeito de direito sendo taxado erroneamente de adolescente infrator. Nas fases judiciais, dá-se maior ênfase aos “aspectos objetivos e formais, desconsiderando-se as questões subjetivas, relacionais e emocionais envolvidas no ato infracional” (VEZZULLA, 2004: 69).

A experiência profissional de Alexandre Morais da Rosa5 tem revelado que a aplicação das medidas socioeducativas e que o tratamento dispensado aos adolescentes em conflito com a lei caminha na contramão dos Direitos da Criança e do Adolescente, ao afirmar que:

A Justiça da Infância e Juventude continua, salvo poucas exceções, contribuindo para fomentar a ideologia da formação para o trabalho, o respeito à ordem e à disciplina, à tolerância das violações por parte do Estado, agindo na camada mais excluída da população para manter a tranquilidade ideológica de poucos. Justificando o uso da opressão em uma parcela cada vez maior de pessoas – adolescentes – com o enfadonho e cínico discurso de que a intervenção é um ‘bem para o adolescente’. (ROSA, 2005: 179, grifo do autor)

Passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que efetivamente inaugurou esse novo olhar para a infância ao contemplar a doutrina da proteção integral, ainda é necessário gritar pela concretização e não violação dos direitos de crianças e adolescentes.

Crianças e adolescentes estão, infelizmente, propensos a situações de violência, seja sofrendo-a diretamente ou, ainda, exercendo-a. Nesse cenário, em que a população infanto-juvenil ainda luta pela concretização de seus direitos, Savater (2005: 108) aduz que a educação deve ter uma função humanizadora no sentido de proporcionar aos seus sujeitos a autonomia necessária para o desenvolvimento humano.

E isso implica em não coagir, não agir de violência contra crianças e adolescentes durante o seu processo de desenvolvimento, pois todo ato de “coação reprime a criatividade” (MIZUKAMI,1986). Essa prerrogativa educacional deve ser extensiva a todos os adolescentes autores de ato infracional e que, de certa maneira, cumprem as medidas socioeducativas, uma vez que, conforme previsão estatutária, as medidas socioeducativas tem caráter socio-pedagógico.

Entende-se por bem que a aplicação das medidas socioeducativas devem contribuir para o desenvolvimento humano do 5 Alexandre Morais da Rosa foi magistrado titular da Vara da Infância e Juventude na Comarca de Joinville, no estado de Santa Catarina.

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adolescente em um procedimento dialógico, em respeito ao adolescente que tem o direito de fala, o direito de ser ouvido e atendido sempre que seus direitos forem violados.

Enquanto isso, o SINASE, que é um importante instrumento jurídico-político para a concretização dos direitos fundamentais dos adolescentes envolvidos com a prática de ato infracional, ainda está em fase de discussão. O SINASE impõe medidas e mostra como devem funcionar/atuar as entidades de atendimento socioeducativo, bem como os operadores que, direta ou indiretamente, irão trabalhar com esses adolescentes.

Obviamente, é necessário o investimento em políticas sociais públicas que dêem conta de pôr todo esse planejamento em prática. Além, é claro, da necessidade de capacitação dos operadores do sistema de garantia de direitos e de justiça. Para romper com a lógica punitivo-repressiva é necessário viver a cultura da tolerância e cultivar o amor pela infância e adolescência.

Fala-se tanto na reinserção social do adolescente autor de ato infracional, mas como reinseri-lo numa sociedade que é culpada pela sua situação vulnerável. É o adolescente quem tem que se reinserir, mas a sociedade consumista, egoísta, violenta, discriminadora não lhe dá condições mínimas para tanto. Se é necessário tratamento, é a sociedade quem tem que se curar e entender sua posição frente a esse adolescente que, mesmo autor de ato infracional é, sem sombra de dúvida, a maior vítima.

Abstract

The full protection doctrine as disposed in the Constitution of the Federal Republic of Brazil of 1988 and in law 8.069/90 elevates children and adolescents to the condition of subjects of right, recognizes them as persons in development, and gives the family, the State and society the duty of ensuring their fundamental rights and rights of protection with absolute priority. To study the infractional act and the social-educational measures implies in analysing thoroughly the theory of the full protection doctrine. The social-educational measures have specifically pedagogical purposes and take into consideration the vulnerability of the public it’s aimed at. It’s important to clarify the distinction between the statutary responsibility and the repressive logic imposed by the penal system. For this reason, since 2004, the National Social Educative Service System - SINASE has been presented as bill. This research brings us some reflections about the infractional act, social educative measures, statutary responsibility and the SINASE as juridical and political instrument concretizing the rights of the adolescents, authors of an infractional act. The research used the inductive method with interdisciplinary critical and reflexive analysis of the reality involving bibliographical research. We can conclude that it’s necessary to

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make a profound study of the themes involving the infractional act starting at the concepts brought by the full protection doctrine and that the SINASE is an important normative document with an educational purpose in attending the adolescent, in an open environment or in cases of restriction of liberty.

Key Words: adolescents - infractional act - full protection doctrine - social educational measures - statutuary liability - SINASE.

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