artigo - a filosofia da usp sob a ditadura militar (marcos nobre)

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A FILOSOFIA DA USP SOB A DITADURA MILITAR 1 Marcos Nobre RESUMO Examinando o caso do Departamento de Filosofia da USP, o artigo procura explicar a disparidade entre a ausência de massa crítica e de fóruns de debate institucionalizados e a excelente qualidade de muitos trabalhos de filosofia produzidos no Brasil. Esta qualidade se deveu a um movimento de pretensões estritamente exegéticas voltado para a própria história da filosofia e do pensamento e a um outro movimento que buscou pensar os problemas clássicos da filosofia em confronto com as questões prementes das ciências, das artes e da realidade social. A ditadura militar produziu uma ruptura nesse processo, provocando um isolamento da filosofia de seus parceiros tradicionais nas ciências e nas artes, situação que perdura até hoje. Palavras-chave: Departamento de Filosofia da USP; ditadura militar e universidade. SUMMARY Focusing on the Philosophy Department at the University of São Paulo, this article seeks to account for the disparity between, on the one hand, the absence of critical density and of institutionalized forums for discussion, and on the other, the exceptional quality of many works in philosophy produced in Brazil. This standard of excellence had to do with the strictly exegetical objectives of one movement concerned with the history of philosophy and of thought, while another movement pored over the classic problems of philosophy in relation to urgent issues in the sciences, arts, and social reality. The military dictatorship abruptly interrupted this process, and philosophy became isolated from its traditional partners in the arts and sciences, a situation that remains to this day. Keywords: University of São Paulo Philosophy Department; military rule; university. Para Gilles-Gaston Granger, en hommage respectueux. A filosofia universitária brasileira se caracteriza por uma indigência estrutural: não há nas suas fileiras consistência suficiente nem mesmo para a institucionalização do debate intelectual público especializado. E, entre- tanto, são produzidos no Brasil livros e trabalhos de filosofia de excelente qualidade, ainda que, de maneira geral, a produção brasileira nesse campo permaneça à margem do debate internacional. Sendo assim, a primeira tarefa posta para quem se propõe a entender — tanto retrospectiva como prospectivamente — a produção filosófica universitária brasileira é justa- MARÇODE1999 137 (1) Este artigo nasceu de uma encomenda da revista alemã Comparativ (nº 6, ano 8, de- zembro de 1998), texto que reproduzo aqui guardadas as diferenças da versão alemã. Di- versas foram as fontes de infor- mação, sem excluir, por exem- plo, diversos testemunhos orais ou mesmo informações cons- tantes de quartas-capas e ore- lhas de livros. Nem sempre é possível reproduzir com exati- dão todas essas fontes, mas registro aqui o papel decisivo das conversas com José Arthur Giannotti. Os documentos im- pressos mais importantes fo- ram: uma sinopse inédita de Marilena Chaui, Quadro histó- rico-descritivo do Departamen- to de Filosofia 1940-1964, 1992, mimeo; o número 22 (vol. 8) da revista Estudos Avança- dos, (set./dez. de 1994), dedi- cado aos 60 anos da USP; e o livro de Paulo Eduardo Arantes Um departamento francês de ultramar. Estudos sobre a for- mação da cultura filosófica us- piana (São Paulo: Paz e Terra, 1994). A redação deste artigo não teria sido possível sem as observações e sugestões de Ri- cardo Terra. A versão final con- tou com valiosas contribuições de Franklin Leopoldo e Silva, a quem agradeço. A José Carlos Estêvão devo vários pedaços de conversa sobre o assunto.

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A FILOSOFIA DA USP SOB ADITADURA MILITAR1

Marcos Nobre

RESUMOExaminando o caso do Departamento de Filosofia da USP, o artigo procura explicar adisparidade entre a ausência de massa crítica e de fóruns de debate institucionalizados e aexcelente qualidade de muitos trabalhos de filosofia produzidos no Brasil. Esta qualidade sedeveu a um movimento de pretensões estritamente exegéticas voltado para a própria históriada filosofia e do pensamento e a um outro movimento que buscou pensar os problemasclássicos da filosofia em confronto com as questões prementes das ciências, das artes e darealidade social. A ditadura militar produziu uma ruptura nesse processo, provocando umisolamento da filosofia de seus parceiros tradicionais nas ciências e nas artes, situação queperdura até hoje.Palavras-chave: Departamento de Filosofia da USP; ditadura militar e universidade.

SUMMARYFocusing on the Philosophy Department at the University of São Paulo, this article seeks toaccount for the disparity between, on the one hand, the absence of critical density and ofinstitutionalized forums for discussion, and on the other, the exceptional quality of manyworks in philosophy produced in Brazil. This standard of excellence had to do with the strictlyexegetical objectives of one movement concerned with the history of philosophy and ofthought, while another movement pored over the classic problems of philosophy in relationto urgent issues in the sciences, arts, and social reality. The military dictatorship abruptlyinterrupted this process, and philosophy became isolated from its traditional partners in thearts and sciences, a situation that remains to this day.Keywords: University of São Paulo Philosophy Department; military rule; university.

Para Gilles-Gaston Granger, en hommage respectueux.

A filosofia universitária brasileira se caracteriza por uma indigênciaestrutural: não há nas suas fileiras consistência suficiente nem mesmo paraa institucionalização do debate intelectual público especializado. E, entre-tanto, são produzidos no Brasil livros e trabalhos de filosofia de excelentequalidade, ainda que, de maneira geral, a produção brasileira nesse campopermaneça à margem do debate internacional. Sendo assim, a primeiratarefa posta para quem se propõe a entender — tanto retrospectiva comoprospectivamente — a produção filosófica universitária brasileira é justa-

MARÇODE1999 137

(1) Este artigo nasceu de umaencomenda da revista alemãComparativ (nº 6, ano 8, de-zembro de 1998), texto quereproduzo aqui guardadas asdiferenças da versão alemã. Di-versas foram as fontes de infor-mação, sem excluir, por exem-plo, diversos testemunhos oraisou mesmo informações cons-tantes de quartas-capas e ore-lhas de livros. Nem sempre épossível reproduzir com exati-dão todas essas fontes, masregistro aqui o papel decisivodas conversas com José ArthurGiannotti. Os documentos im-pressos mais importantes fo-ram: uma sinopse inédita deMarilena Chaui, Quadro histó-rico-descritivo do Departamen-to de Filosofia — 1940-1964,1992, mimeo; o número 22 (vol.8) da revista Estudos Avança-dos, (set./dez. de 1994), dedi-cado aos 60 anos da USP; e olivro de Paulo Eduardo ArantesUm departamento francês deultramar. Estudos sobre a for-mação da cultura filosófica us-piana (São Paulo: Paz e Terra,1994). A redação deste artigonão teria sido possível sem asobservações e sugestões de Ri-cardo Terra. A versão final con-tou com valiosas contribuiçõesde Franklin Leopoldo e Silva, aquem agradeço. A José CarlosEstêvão devo vários pedaçosde conversa sobre o assunto.

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mente a de explicar essa disparidade entre, de um lado, a ausência de massacrítica e de fóruns de debate institucionalizados e, de outro, a excelentequalidade de muitos trabalhos de filosofia produzidos no país. É o quetentarei fazer aqui, examinando o caso do Departamento de Filosofia daUniversidade de São Paulo, com o foco centrado no período da ditaduramilitar e, mais especificamente, na década de 70.

Minha primeira tese: a Filosofia no Departamento da USP sempre secaracterizou por buscar compensar sua relativa indigência por um movi-mento duplo e simultâneo: um movimento de pretensões estritamenteexegéticas voltado para a própria história da filosofia e do pensamento, eum outro movimento que buscava pensar os problemas clássicos da filosofiaem confronto com as questões prementes das ciências, das artes e darealidade social. É importante notar que esse duplo movimento foi sempresimultâneo e que se entende mal o processo se se abstrai de um dos seuspólos. Temos, portanto, de um lado, uma concentração de forças nodesenvolvimento de técnicas de leitura de texto em que os clássicos dopensamento são lidos de acordo com um conjunto de modelos inspirados noprincípio de autofundação típico dos sistemas filosóficos modernos: todopensador é considerado unidade isolada e autônoma e deve ser compreen-dido a partir de suas próprias premissas e segundo seus próprios desenvol-vimentos. Com isso, foi possível concentrar de maneira extremamenteprodutiva os escassos recursos disponíveis. Não foram empenhadas energi-as, por exemplo, na tarefa de adquirir técnicas e conhecimentos de cunhohistoriográfico, paleográfico ou filológico. Também não se procurou con-centrar esforços no pensamento de um único autor ou escola de pensamen-to. A concentração das energias no aprendizado dos modelos de análise detexto permitia que pudessem ser estudados dessa perspectiva todos osclássicos do pensamento, o que garantia simultaneamente a variedade daslinhas de pesquisa e uma relativa unidade no tratamento.

Por outro lado, a Filosofia da USP sempre compensou sua relativaindigência com matéria que lhe era fornecida pelos desenvolvimentos dasciências e das artes. Com isso, ganhava corpo e ao mesmo tempo podiafornecer a sociólogos, economistas, teóricos e críticos de arte, antropólogos,historiadores e politicólogos uma perspectiva conceitual que, no mínimo,abria novos horizontes. Sob este último aspecto, penso que a hipótesetambém pode ser útil para a compreensão do conjunto das ciênciashumanas e da crítica da cultura em São Paulo. A vida universitária brasileiraaté a década de 60 se caracterizou pela ausência de integração entre osdiversos centros de pensamento no país, cujas iniciativas não se agregavamem linhas de pesquisa e de trabalho nacionais. Mas, além disso, é precisoestabelecer também que, isoladamente, nenhuma das disciplinas dasciências humanas ou de crítica e teoria da arte dispunha de massa críticasuficiente para um salto teórico, de modo que foi preciso constituir"consórcios" tanto no âmbito das ciências humanas como no de crítica dacultura, de modo que a interdisciplinaridade não foi apenas um desejo dosvários participantes, mas uma necessidade estrutural para que as linhas de

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trabalho e de pesquisa específicas pudessem florescer2. Nesse contexto, afilosofia entrou na condição de sócia menor nos consórcios interdisciplina-res assim formados: as ciências sociais e a crítica da cultura já dispunham deuma tradição muito mais antiga no Brasil e determinavam a pauta dosproblemas a serem enfrentados.

E aqui surge a segunda disparidade a ser explicada: a Filosofia da USPfoi relativamente poupada dos estragos causados pela ditadura militar àuniversidade brasileira como um todo e às ciências humanas em particular,e no entanto ela se encontra hoje isolada das suas demais "parceiras",perdeu seus vínculos interdisciplinares. Donde a segunda tese deste artigo:na situação atual, que segue sendo a de uma reconstrução das ciênciashumanas, o isolamento da filosofia frente a outras disciplinas ainda é efeitode sua tática de sobrevivência à ditadura militar, situação que se agravou noperíodo pós-ditatorial por conta da tendência crescente à especialização —que se faz sentir de maneira mais crua na economia, na ciência política e naprópria filosofia. Ocorre que — excetuando-se o caso da economia comodisciplina universitária, em que grandes investimentos foram realizados emvista de necessidades de gerenciamento macroeconômico — a especializa-ção vem muito mais como exigência "externa", como resultado da "globa-lização acadêmica" e de exigências das agências de fomento, do que comoresultado de um processo interno relativamente bem-sucedido de criação demassa crítica e de espaços de debate efetivos. Ou seja, vivemos hoje asituação paradoxal de não trabalharmos mais em regime interdisciplinar ede ainda não termos, no geral, elementos materiais suficientes para realizaruma especialização bem-sucedida, seja lá o que isso possa querer dizer. Eisto no bojo de uma política nacional de desmantelamento do ensinopúblico em todos os níveis que torna extremamente difícil qualquer saídapositiva e criativa para o impasse atual da pesquisa e do ensino universitá-rios em ciências humanas (e, em particular, nas ciências sociais). É nessecontexto que devemos examinar o caso singular do Departamento deFilosofia da USP, buscando explicar tanto o seu relativo sucesso emsobreviver aos ataques da ditadura militar como seu processo de progressivaespecialização e seu isolamento do conjunto das ciências humanas noperíodo que se seguiu à redemocratização. Para tanto, precisamos começarpor uma breve reconstrução da história do Departamento desde o seunascimento.

A Universidade de São Paulo foi fundada em 1934. Seus primeirosprofessores foram recrutados na Europa, principalmente na Itália, na Françae na Alemanha. Foi assim que o acanhado público universitário da épocateve o privilégio de seguir, por exemplo, cursos de antropologia com ClaudeLévi-Strauss, de geografia com Georges Deffontaines, Pierre Monbeig eEmmanuel De Martonne, de sociologia com Roger Bastide, de história comFernand Braudel. No caso da cátedra de Filosofia, a tarefa de moldar a novadisciplina universitária foi inteiramente francesa. De 1934 a 1951, ocuparamo posto francês na Filosofia da USP Etienne Borne (1934-35), Jean Maugüé(1935-44) e Gilles Gaston-Granger (1947-51), que foi substituído por Claude

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(2) E o paradigma aqui meparece ser o do grupo de dis-cussão conhecido como "Semi-nário Marx", no qual nos dete-remos mais adiante, que fun-cionou de 1958 até meados dadécada de 60 em São Paulo. OSeminário congregava sociólo-gos, historiadores, economistase filósofos e foi importante ala-vanca para uma série de traba-lhos de reinterpretação do Bra-sil publicados nas décadas de60 e 70. Apesar de sua impor-tância decisiva, a experiênciado Seminário tinha uma boadose de ambigüidade política,como bem observou RobertoSchwarz, ele mesmo partici-pante de algumas das sessõesde discussão do grupo: "Comocorrespondia àqueles anos dedesenvolvimentismo, o focoestava nos impasses da indus-trialização brasileira, que podi-am até empurrar em direção deuma ruptura socialista, mas nãolevavam à crítica aprofundadada sociedade que o capitalismocriou e de que aqueles impas-ses formam parte" ("Um semi-nário de Marx". Novos Estudos.São Paulo: Cebrap, nº 50, mar-ço de 1998, p. 113). Neste con-texto, a condição de "sócia me-nor" da filosofia no "consórciodas ciências humanas" é certa-mente um dos elementos deci-sivos para explicar, entre ou-tras coisas, o maior radicalismoteórico das análises do filósofoJosé Arthur Giannotti dos mo-vimentos do capital quandocomparadas, por exemplo, àsdo sociólogo Fernando Henri-que Cardoso, ambos figurascentrais do Seminário. Infeliz-mente, não será possível aquifazer as necessárias distinçõesentre os diferentes participan-tes do Seminário, elementoque, segundo me parece, temsido negligenciado até o mo-mento nas discussões sobre otema.

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Lefort. O primeiro brasileiro a ocupar a cátedra de Filosofia foi João CruzCosta, a partir de 1950, sendo depois acompanhado por seu colega LívioTeixeira, a partir de 1955. Além disso, vários foram os professores visitantesnesse período, incluindo nomes como os de Martial Guéroult e JulesVuillemin.

É certo que a figura de Jean Maugüé (tanto quanto as de Lévi-Strausse de Roger Bastide) foi de importância decisiva para a geração de críticosda cultura reunidos em tomo da revista Clima, como Antônio Cândido,Paulo Emílio Salles Gomes, Gilda de Mello e Souza, Décio de AlmeidaPrado3. Mas só se pode falar da formação de uma geração de filósofosprofissionais a partir da década de 50, momento em que se pode dizer queo esforço de reprodução de intelectuais em filosofia foi bem sucedido,pois, ao contrário de Cruz Costa e Lívio Teixeira, tratava-se já de um grupode estudantes de filosofia formados segundo padrões franceses, os quaisviriam mais tarde a ocupar as cátedras de Filosofia e iriam por sua vezformar novos estudantes de filosofia, alcançando relativa autonomia frenteà missão francesa.

Enfim, é durante a estadia de Gilles-Gaston Granger em São Paulo quese cristaliza o que viria a ser o curso de Filosofia da USP. Granger, hojeprofessor aposentado da Universidade de Aix-En-Provence e membro doCollège de France, chega a formar turmas inteiras de alunos, acompa-nhando-os do primeiro ao último ano de curso. A obra de Granger,reconhecida internacionalmente, concentra-se em problemas de fundamen-tação da matemática e da física, contando também com um importante livrosobre a racionalidade econômica4. Granger aliou desde sempre a formaçãoacadêmica exemplar francesa da exegese dos textos clássicos da história dafilosofia a investigações concretas sobre as tendências recentes da matemá-tica e da física, incentivando seus alunos a adquirir conhecimentos sólidosem pelo menos uma disciplina científica canônica. Pioneiros foram, porexemplo, seus cursos da década de 50 sobre o Tratactus logico-philosophi-cus de Ludwig Wittgenstein, autor então conhecido apenas em pequenoscírculos filosóficos europeus e americanos e quase desconhecido na Françada época.

Desse modo, a primeira geração de estudantes de filosofia brasileirosestava marcada pelo acoplamento das questões filosóficas a problemasconcretos da ciência e obrigada a pensar esse acoplamento segundo rígidospadrões de leitura dos clássicos do pensamento filosófico e científico. Alémdisso, Granger passou a ser o mentor dos futuros passos do Departamentode Filosofia em formação. De volta à França, em 1954, depois de umatemporada em Brazaville, Granger se estabelece na Universidade de Rennese passa a ser o mais importante elo dos jovens estudantes de filosofia da USP(que se tornam professores assistentes em fins da década de 50 e no inícioda de 60) com a cultura universitária da França, que para lá se dirigem a fimde completar sua formação acadêmica. Ele também passa a sugerir nomesde professores que viriam a ocupar o posto francês no Departamento deFilosofia da USP nas décadas de 50 e 605.

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(3) Entre outras fontes, é pos-sível atestar essa influênciapela aula inaugural de Gildade Mello e Souza de 1973 ("Aestética rica e a estética pobredos professores franceses".Discurso, nº 9,1979). Note-seque Clima, como "consórciode crítica da cultura" que era,procurava continuar o "con-sórcio" dos chamados "mo-dernistas brasileiros", cujomarco inaugural foi a Semanade Arte de 1922.

(4) Entre outros livros, Grangerpublicou: Méthodologie écono-mique (PUF, 1955); Pensée for-melle et sciences de l´'homme(Aubier, 1960); Essai d'une phi-losophie du style (A.Colin, 1968;Odile Jacob, 1988); Langage etepistemologie (Klincksieck,1979); Pour la connaissancephilosophique (Odile Jacob,1988).

(5) Granger foi responsável,por exemplo, pela indicaçãode Gérard Lebrun, professorque imprimiu profundas e du-radouras marcas no Departa-mento.

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É já o momento de mencionar os nomes de alguns desses jovensprofessores, cujos percursos intelectuais são emblemáticos para explicar osrumos do Departamento nas décadas subseqüentes: José Arthur Giannotti,Oswaldo Porchat, Bento Prado Jr. e Ruy Fausto.

Giannotti torna-se professor assistente em 1958, escreve uma tese dedoutoramento contra o psicologismo de Stuart Mill e defende sua tese delivre-docência sobre a lógica do jovem Marx6. Ao iniciar o curso de Filosofiaem 1950, Giannotti trazia a experiência da convivência com grupos culturaisvanguardistas e dos círculos de estudos filosóficos extra-universitários.Ainda na graduação e como bom discípulo de Gilles-Gaston Granger, passaa freqüentar como aluno regular o curso de Matemática da USP e seaproxima de jovens estudantes de ciências sociais, história e economia, comquem, a partir de 1958, irá formar um grupo de discussão externo àUniversidade que se propunha a ler teóricos clássicos do direito, daeconomia e das ciências sociais. Este grupo veio a ser conhecido como"Seminário Marx", entre outros motivos, pela estimulante, demorada ecuidadosa leitura de O capital, e Giannotti desempenhou aí um papeldecisivo para o desenvolvimento dos trabalhos, já que as técnicas de análisede texto que trazia do curso de Filosofia forneceram o modelo para acircunscrição e a convivência produtiva das diferentes posições políticaspresentes, favorecendo o esforço coletivo7.

O grupo do Seminário tinha três adversários teóricos básicos. Primei-ramente, posicionava-se contra a tentativa do cientista social FlorestanFernandes, que introduziu no país novas técnicas de investigação empíricaem sociologia a partir de uma teoria que buscava compatibilizar e integraros diversos métodos sociológicos de interpretação, tais como os que teriamsido propostos por Durkheim, Weber e Marx8. Florestan Fernandes já haviaconseguido por essa época formar um importante contingente de pesquisa-dores e cientistas sociais e pode-se considerar que suas posições eram entãohegemônicas na Sociologia da USP. Além disso, os integrantes do Seminárioeram em sua grande maioria adversários da interpretação de Marx oferecidapor Louis Althusser na França, assim como de tentativas afins, como a deNicos Poulantzas9. Por fim, o grupo opunha-se à doutrina econômica esocial produzida pela Comissão Econômica Para a América Latina da ONU(Cepal), cuja teoria do desenvolvimento econômico autônomo para ospaíses da região parecia por demais ingênua frente aos processos reais dedependência dos países periféricos. Note-se mais uma vez que o diálogo sedava seja com o vizinho mais próximo (a Sociologia da USP), seja cominterlocutores internacionais (Althusser e o pensamento da Cepal). Nãohavia integração com outros centros de pesquisa nacionais.

Oswaldo Porchat formou-se em letras clássicas e pretendia seguircarreira acadêmica como helenista. Consolida sua opção pela filosofiadurante estágio de estudos na França, retornando em 1961, e realiza umapeculiar síntese de seus interesses teóricos de então ao escrever umdoutoramento notável sobre o conceito de ciência em Aristóteles10. Durantesua estada na França, aproxima-se das idéias de Victor Goldschmidt e de

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(6) Respectivamente: "JohnStuart Mill: o psicologismo e afundamentação da lógica". Bo-letim da Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras da USP, nº269,1963; Origens da dialéticado trabalho. São Paulo: Difel,1966.

(7) Esses parâmetros de análisede texto podem ser encontra-dos em exercício no excepcio-nal Origens da dialética do tra-balho (loc. cit.). Pode-se aferira influência decisiva de Gran-ger nesse movimento de Gian-notti neste testemunho da suaexperiência como participantedo Seminário:"... para mim, lerMarx e ao mesmo tempo apro-fundar minha familiaridadecom as ciências sociais eqüiva-lia a obedecer ao conselho queG. Bachelard tinha dado a Gran-ger e este a mim: se pretendeestudar epistemologia, case-secom uma ciência. Mas desdelogo manifestei minhas tendên-cias polígamas, pois eram to-das as ciências sociais que pre-tendia abranger" ("Recepçõesde Marx". Novos Estudos. SãoPaulo: Cebrap, nº 50, março de1998, p. 117).

(8) Ver, por exemplo: Fernan-des, Florestan. Fundamentosempíricos da explicação socio-lógica. Rio de Janeiro: Cia. Edi-tora Nacional, 1959, que reúneensaios redigidos entre 1953 e1957.

(9) O documento mais notáveldessa reflexão segue sendo oartigo de Giannotti "Contra Al-thusser", publicado pela pri-meira vez em Teoria e Prática,nº 3,1968. Também é digna denota a investida de FernandoHenrique Cardoso contra Ni-cos Poulantzas ("Althusserismoou marxismo? A propósito doconceito de classes em Pou-lantzas". In: O modelo políticobrasileiro. São Paulo: Difel,1973), sob nítida inspiração doartigo de Giannotti supracita-do.

(10) A noção aristotélica deciência (1967).

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Martial Guéroult, cuja tese fundamental era a de que o tempo dos sistemasfilosóficos tinha chegado ao fim, cabendo aos estudiosos de filosofiaunicamente a reconstrução das filosofias do passado mediante rigorososprocedimentos de explicação de texto11.

Bento Prado Jr. é desses jovens professores o mais próximo da geraçãoda revista Clima. Isto significa antes de mais nada que esteve semprepróximo de problemas de fronteira da filosofia com a arte, em especial coma literatura, o que não quer dizer, entretanto, que ele se ocupe de "estética":qualificar assim os seus interesses seria justamente incorrer no erro que elequer evitar. Sua excepcional tese de livre-docência sobre a filosofia de HenriBergson12, por exemplo,

supera largamente a dicotomia entre ensaísmo e tecnicidade filológi-ca, e o faz começando pela inventividade da hipótese que, sem tersido extraída dos textos bergsonianos mediante uma interpretaçãoanalítica strictu sensu, consegue dar a razão da coerência da obrado filósofo francês através de original concepção das relações entreontologia e teoria da representação: uma nova relação entre sujeito erepresentação13.

Bento Prado Jr. sempre dedicou especial atenção ao problema dalinguagem, utilizando freqüentemente recursos da literatura e da análiseliterária para encaminhar questões filosóficas clássicas. Desse modo, o"consórcio de crítica da cultura" tinha em Bento Prado Jr. uma perspectivaconceitual nova, em que as questões concretas enfrentadas ou por enfrentarvinham de par com a interrogação de um problema filosófico. De modo queé possível aproximar Bento Prado Jr. e José Arthur Giannotti:

Não se pode desconhecer a originalidade da contribuição da tese deBento Prado Jr. para a reposição do problema da subjetividade emtermos mais amplos do que a tradição historiográfica do cartesianis-mo o preservara, e a intenção de Giannotti de oferecer uma alternativapara a compreensão do marxismo que superasse a epistemologiapositivista althusseriana e a teleologia humanista inoculada no mate-rialismo histórico14.

Ruy Fausto é o mais jovem desse grupo. Quando ingressou no cursode Filosofia da USP, Granger já tinha deixado o Brasil. Mas os novosprocedimentos técnicos de leitura e análise de textos clássicos da filosofiase consolidavam rapidamente e passavam a ser uma espécie de programada nova geração. De seu lado, Ruy Fausto trazia consigo a experiência damilitância marxista, elemento inovador no quadro que examinamos. Com

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(11) Nas palavras de Porchat,"a necessidade de nunca disso-ciar-se a interpretação das obrasfilosóficas do conhecimento eanálise de seu modo própriode constituição, isto é, do co-nhecimento da maneira parti-cular por que se estruturam osdiscursos através dos quais elasse exprimem e se oferecem ànossa leitura e meditação (...].Entender de outro modo a dou-trina que não como ela se nosapresenta e se nos propõe se-gundo a intenção de seu autor,querer aplicar-lhe critérios ex-ternos ou julgá-la segundo umateoria da contradição que lhe éestranha, na pretensão de as-sim melhor julgá-la filosofica-mente, implica, em verdade, arecusa prévia e pré-judicial desua 'lógica' própria e, conse-qüentemente, a rejeição ante-cipada e irrecorrível de seuuniverso de discurso. Opta-sedesde o início contra ela, embenefício de um outro discursoem que ela se vai traduzir" ("Oconflito das filosofias", aulainaugural proferida em marçode 1968. In: Vida comum eceticismo. São Paulo: Brasilien-se, 1993, pp. 14-15).

(12) Presença e campo trans-cendental: Consciência e nega-tividade na filosofia de Berg-son, defendida em 1966 e pu-blicada em livro somente em1986.

(13) Leopoldo e Silva, Franklin."Pesquisas no Departamento deFilosofia". Estudos Avançados,8(22), 1994, p. 307.

(l4)Ibidem.

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isso, também ele inicia no Brasil uma original e fecunda leitura da obra deMarx, em que — tal como no caso de Giannotti no Seminário — ainterpretação diretamente política e ativista estava agora limitada pela provade fogo da leitura rigorosa de texto. Além disso, Ruy Fausto seguia, à suamaneira, a tradição do "consórcio das ciências humanas e das artes",participando de muitas iniciativas interdisciplinares de fôlego, sendo mar-cante o seu papel na criação da revista Teoria e Prática, cujo primeironúmero apareceu em 196715. Data também desse ano o acirramento de suasdivergências pessoais, teóricas e administrativas com Giannotti, então chefedo Departamento de Filosofia. No início de 1969, essas dificuldades sesomam aos riscos próprios da nova fase da repressão política, obrigandoRuy Fausto a se transferir para o Chile, onde passa a lecionar. Em 1972, viajapara a França, país em que vem a estabelecer residência definitiva, já queimpossibilitado de voltar ao Chile ou ao Brasil16.

Foi assim que Ruy Fausto escapou das conseqüências mais imediatasdo 13 de dezembro de 1968, quando foi imposto o AI-5. No Chile, RuyFausto via crescer a cada dia o número de exilados brasileiros. Mas látambém pôde testemunhar o movimento inverso: vários intelectuais quetomaram parte no Seminário e que se encontravam exilados no Chilevoltaram ao Brasil para atuar nos estreitos espaços de resistência institucio-nal à ditadura. Do ponto de vista da trajetória dos professores de filosofiaque acompanhamos, basta dizer, para começar, que Giannotti e BentoPrado Jr. foram aposentados precocemente, sendo afastados da Universida-de em março de 1969.

É o momento de ruptura representado pelo AI-5 que parece explicaros desenvolvimentos subseqüentes. As prisões, aposentadorias compul-sórias e exílios atingiram duramente todas as áreas do conhecimento nauniversidade brasileira. No caso das ciências humanas, essas arbitrariedadesvieram no exato momento em que os diversos "consórcios" teóricos epolíticos esperavam dar o salto qualitativo para o qual já vinham há pelomenos vinte anos acumulando forças: em direção ao desenvolvimentoautônomo e democrático, para alguns, e à revolução socialista, para outros.Mas a repressão que se abateu sobre a universidade não explica tudo.Durante muitos anos, o próprio projeto da ditadura militar não foi devida-mente compreendido: o golpe militar não fazia parte do horizonte doprovável e não havia instrumentos disponíveis para conceituá-lo devida-mente. Até meados da década de 70, a repressão vencia por larga margemna universidade: as linhas de ensino e de pesquisa estavam desmanteladas,as tentativas de compreender o fenômeno ditatorial brasileiro eram precá-rias e as forças de oposição estavam extremamente desorganizadas. É nestecontexto que temos de tentar entender tanto o relativo sucesso do Departa-mento de Filosofia da USP em se preservar dos ataques da ditadura como oseu processo de progressiva especialização e isolamento frente ao conjuntodas ciências humanas no período que se seguiu aos governos militares. Paratanto, precisamos retomar nossa reconstrução no ponto em que a havíamosdeixado.

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(15) Teoria e Prática teve ape-nas três números, sendo que oúltimo nem chegou a ser distri-buído, vítima que foi do recru-descimento da ditadura militarem dezembro de 1968. Nelaescreviam arquitetos, dramatur-gos, filósofos, críticos literários,sociólogos, economistas, cine-astas. Para que se tenha umaidéia do que foi a notável expe-riência da Teoria e Prática, valea pena citar dois trechos daApresentação do primeiro nú-mero: "Não basta saber filoso-fia e literatura, nem economiae política. É preciso escreversobre umas conhecendo as ou-tras. Só assim nos livraremosdo lero-lero grã-fino de nossosliteratos e da fala cifrada emque os economistas escondemas novas do capital"; "Infeliz-mente, escrevemos para umafração da fração alfabetizada ebem posta do país. Poderíamosescrever para uma fraçãomaior. Entretanto, a miséria e odespreparo nacional não tor-nam mais simples as questõesda prática ou teoria, cuja sim-plificação tem parte no queaconteceu em 64. Os que nãosabem ou não costumam lernão serão, naturalmente, nos-sos leitores, mas são a nossareferência: definem limite, situ-ação e tarefa da palavra escrita,que se não sabe deles não sabede si nem serve."

(16) A influência mais amplade Ruy Fausto nos meios inte-lectuais brasileiros só se fezsentir novamente a partir dapublicação em português doprimeiro tomo de seu Marx:Lógica e política (São Paulo:Brasiliense), em 1983, livro no-tável sob vários aspectos.

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José Arthur Giannotti, tendo optado pela resistência à ditadura nosmarcos institucionais, pôde permanecer no Brasil. Realizava seminários deleitura de textos de filosofia com vários dos estudantes recém-ingressos nocurso da USP, que deveriam ter sido seus alunos a partir de 1969, quandofoi compulsoriamente aposentado. Juntamente com os antigos colegas doSeminário, aderiu à idéia da frente ampla de luta contra a ditadura quebuscava atuar nos espaços institucionais existentes. Esse grupo, alijado dauniversidade, fundou o Cebrap. Neste contexto, o Cebrap não foi apenas umcentro de pesquisa e de reflexão, mas também um centro de referência dopensamento de oposição institucional, constituindo-se em elemento decisi-vo na formulação de diretrizes para o único partido de oposição consentido,o MDB, e transformou-se em importante pólo aglutinador nacional dopensamento de oposição. Lá se realizavam, por exemplo, seminários deconjuntura para os quais acorriam intelectuais de várias partes do país.Dessa forma, foi no contexto de repressão da ditadura militar e da busca deum programa de oposição para o país que se pode dizer que as ciênciashumanas de São Paulo passaram a ter interlocutores verdadeiramentenacionais17. E, com a importante presença de Giannotti nesse processo,pode-se dizer que a Filosofia da USP manteve-se nesse caso na linhafrutífera do "consórcio das ciências humanas", que foi uma de suas marcascaracterísticas desde a década de 5018.

A partir de 1968, Osvaldo Porchat afasta-se das posições defendidaspor Victor Goldschmidt e Martial Guéroult19 e se aproxima do viés próprioda filosofia analítica. Essa nova posição foi consolidada de 1969 a 1971,período em que esteve na Universidade de Berkeley. Pode-se dizer quetambém essa nova posição de Porchat retoma uma linha de desenvolvimen-to do Departamento de Filosofia da USP instaurada pelos ensinamentos deGilles Gaston-Granger, pois pretende reunir pesquisadores oriundos dasvárias ciências naturais em vista de um trabalho conjunto em que a filosofiatem papel central na discussão de problemas de fundamentação dedisciplinas como a física, a matemática e a lógica. É com esse objetivo que,em 1975, Porchat transfere-se para a Unicamp, então em formação,tornando-se responsável pela criação e desenvolvimento do Centro deLógica e Epistemologia (CLE).

A implantação do CLE foi a primeira tentativa sistemática e deenvergadura de introduzir a filosofia analítica no Brasil. Tratava-se de umprograma de pós-graduação em filosofia que buscava trazer para a filosofiaalunos provenientes de cursos das ciências "duras", como a física, mastambém das áreas tecnológicas, como as engenharias. Para que isso fossepossível, Porchat organizou uma grade de disciplinas que certamenteequivalia a uma graduação em filosofia, fazendo com que os alunosfossem de fato formados pelo curso e de acordo com o viés que lhe erapróprio. A peculiaridade da tentativa estava justamente em que não haviaum número suficiente de lógicos, epistemólogos, filósofos e historiadoresda ciência para que esse objetivo fosse alcançado, o que fez com quePorchat levasse para a Unicamp historiadores da filosofia que não estavam

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(17) Além dos estragos diretosprovocados pela ditadura, umoutro elemento importante nadificuldade das ciências sociaisde São Paulo em retomar seuspadrões tradicionais de ensinoe pesquisa após a redemo-cratização foi justamente o en-gajamento político de intelec-tuais importantes, que, a partirde 1982, passam a ocupar pos-tos-chave na administraçãopública.

(18) O documento mais im-portante desse processo é Tra-balho e reflexão. Ensaios parauma dialética da sociabilida-de, publicado em 1983. O li-vro, segundo seu autor, procu-ra nada menos do que "esbo-çar uma dialética dos fenôme-nos sociais que se mostra, aomesmo tempo, uma ontologiasocial" (p. 9), o que obrigajustamente a filosofia a um di-álogo cerrado e constante coma economia, a antropologia, asociologia e a política. Signifi-cativamente, entretanto, a de-dicatória do volume conta ahistória que estamos tentandoacompanhar: "Para todos osque partiram sem dizer adeus",dedicatória de um dos capítu-los do livro que já tinha sidopublicado em 1973, alude "atodos aqueles que, desde 1964,estavam sendo mortos, presosou fugindo às pressas, enfim,sem tempo para qualquer des-pedida. Aquele ano negro darepressão não permitia umadedicatória mais direta; hojeconservo sua forma alusiva masexplicito seu terrível conteú-do" (pp. 13-14).

(19) "Tendo-se intimamente fa-miliarizado com diferentes uni-versos filosóficos, parecer-lhe-á, ao nosso philósophos semfilosofia, que o empreendimen-to criador ou a simples opçãolhe são vedados, enquanto per-manecer atento à pluralidadeirredutível das filosofias. O co-nhecimento meditado da natu-reza do conflito das filosofiasfá-lo-á renunciar a dele partici-par. Philósophos, não se faráfilósofo" ("O conflito das filoso-fias", loc. cit., p. 18).

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necessariamente comprometidos com os padrões próprios da filosofiaanalítica. Eram jovens professores da USP e de outros estados. Com isso,durante o período em que o curso funcionou em sua forma original (até1985, aproximadamente) conseguiu-se um elevado padrão de ensino emque a formação dos alunos era ampla e exigente. É provável que tenhasido justamente a incompatibilidade entre, de um lado, a riqueza e avariedade de perspectivas e, de outro, a limitação dos objetivos do projetoo que decidiu do esgotamento dessa tentativa. De qualquer forma, criou-se na Unicamp durante esse período um centro de referência nacional paraquestões de epistemologia, filosofia da ciência e filosofia analítica, expe-riência que permitiu estabelecer redes de discussão e de debate no campoanalítico que, mesmo funcionando de maneira precária, permanecem atéhoje.

Por paradoxal que possa parecer a partir do que já sabemos de BentoPrado Jr., também ele participou do projeto do CLE. Sempre explorandozonas fronteiriças da filosofia, atento ao problema mais geral da linguageme suas ressonâncias filosóficas, Bento Prado passou a trabalhar intensa-mente sobre o pensamento de Freud. Foi nesse sentido que participou dacriação e da implantação, no início da década de 80, do curso deFundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise, curso de pós-graduação e de especialização vinculado ao CLE. O curso foi de importân-cia decisiva para a institucionalização dos estudos freudianos universitáriosno Brasil, funcionando como centro de aglutinação para filósofos epsicólogos interessados em questões mais amplas de epistemologia dapsicologia e da psicanálise. Além disso, trata-se de mais um elementoimportante a indicar a pluralidade e a variedade de perspectivas presentesna experiência de implantação do curso de pós-graduação em Filosofia daUnicamp.

Mas Bento Prado Jr. participou também — juntamente com Giannotti— do arriscado projeto de resistência que representou implantar o curso depós-graduação em Filosofia na PUC de São Paulo. Cassados em 1969 peladitadura militar, Bento Prado e Giannotti estavam proibidos de dar aulas emqualquer universidade pública e nenhuma universidade privada iria searriscar a acolhê-los. Ocorre que a Igreja Católica, sob a orientaçãopredominante no período, de resistência à ditadura, colocou as suasuniversidades (as PUCs de todo o país) à disposição do pensamento deoposição de todos os matizes. Assim, em 1977, ano em que a PUC-SP foiinvadida pelas forças de repressão, Giannotti e Bento Prado voltaram aministrar cursos e iniciaram o processo de implantação do curso de pós-graduação em Filosofia daquela universidade.

Mas a ruptura representada pelo AI-5 foi também o momento em quevieram para o primeiro plano nomes como o de Gilda de Mello e Souza,Maria Sylvia de Carvalho Franco e Marilena Chaui. Essas professoras nãoforam afastadas da Universidade pela ditadura e coube a elas a maior partedo mérito tanto pela manutenção do nível do curso de Filosofia da USPcomo pela sua própria existência autônoma, já que não foram poucas as

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sabotagens e ameaças de intervenção direta. Além da ameaça semprepresente de prisão ou de cassação, era preciso enfrentar naqueles temposespiões da polícia política que se passavam por alunos regulares e protegercom os meios disponíveis o grande número de alunos engajados emorganizações clandestinas de esquerda, e apesar de tudo tinha-se de buscara manutenção do padrão de ensino de filosofia conquistado nas décadasanteriores.

Gilda de Mello e Souza foi aluna de Lévi-Strauss, Roger Bastide e JeanMaugüé e pertenceu ao grupo reunido em torno da revista Clima. NoDepartamento de Filosofia da USP, foi responsável pela criação e desenvol-vimento da área de Estética. Durante a crise que se seguiu às aposentadoriascompulsórias de 1969, assumiu a chefia do Departamento20. Além disso, foia principal responsável pelo lançamento da revista Discurso, publicaçãopensada como resposta de resistência intelectual organizada às açõesdesorganizadoras da repressão e que permanece até hoje revista oficial doDepartamento de Filosofia da USP21.

Marilena Chaui tornou-se professora do Departamento em 1967. Em1970, defendeu sua tese de doutoramento sobre Espinosa, autor ao qualdedicou também sua tese de livre-docência, apresentada em 1977. MariaSylvia de Carvalho Franco, anteriormente professora do então Departamen-to de Ciências Sociais da USP, transferiu-se para o Departamento deFilosofia em 1968 por causa de divergências teóricas e políticas com seuspares da Sociologia22. Além dos serviços prestados na resistência à ditadurae na manutenção do ambiente intelectual necessário à reflexão, Chaui eCarvalho Franco tentaram dar continuidade à tradição do "consórcio dasciências humanas", buscando manter o vínculo da filosofia com os estudossociais empíricos. Estabeleceu-se, então, entre as duas intelectuais umaaliança política, intelectual e administrativa com vistas a um ambiciosoprograma de trabalho. Ocorre que, como já indicado, a situação na USP eraextremamente desfavorável para o "consórcio das ciências humanas", já queas ciências sociais, tradicionalmente vanguarda do processo, estavamextremamente fragilizadas. Desse modo, elas decidiram partir para umapolítica de "compensação" em que a Filosofia da USP não apenas tomava ainiciativa nesse modelo conjunto de produção de conhecimento, comopassava a assumir, além das suas funções habituais, as funções tradicionaisdas ciências sociais. Foi nesse contexto que Marilena Chaui e Maria Sylviade Carvalho Franco dirigiram grande parte de seus esforços a trabalhos deorientação e de pesquisa sobre a realidade brasileira, programa de trabalhoem que foi produzido um grande número de teses e de artigos, sobre os maisvariados temas23.

O resultado da tentativa foi, em termos intelectuais, modesto. Ostrabalhos produzidos nesse contexto não conseguiram, no geral, ser estudosde sociologia, de economia ou de história, nem foram desenvolvimentos detemas clássicos da filosofia, tampouco algo novo: para o trabalho científicoempírico, faltavam as técnicas, a qualificação dos pesquisadores e aformação devida em questões clássicas das diferentes ciências humanas;

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(20) Não pode aqui passar semregistro o papel fundamentaldesempenhado por Victor Kno-ll nesse processo. Como assis-tente de Gilda Mello e Souza,Knoll foi o professor responsá-vel pela administração e exe-cução de diretrizes do Depar-tamento nesse período.

(21) Os primeiros editores deDiscurso foram Armando Morade Oliveira e Luiz Roberto Sali-nas Fortes. Na Apresentaçãodo primeiro número da revistapode-se ler: "O paradoxo é oseguinte: há anos que esta re-vista era projeto do Departa-mento de Filosofia da USP, massó agora, após ter sofrido gra-ves alterações no seu funciona-mento, é que ela surge". Aexpressão "graves alterações noseu funcionamento" é mais umexemplo da linguagem alusivada época para se escapar acensura e à repressão.

(22) As divergências giravambasicamente em torno das con-cepções de Florestan Fernan-des. A oposição a ele, entretan-to, não aproximou Maria Sylviade Carvalho Franco do grupodo Seminário, podendo-se di-zer que ela permaneceu até adécada de 70 uma outsider nocampo das ciências humanasde São Paulo. No final de 1964,Carvalho Franco defendeu suatese de doutoramento, publica-da no ano seguinte com o títuloHomens livres na ordem escra-vocrata. Trata-se de um clássi-co do pensamento brasileiro,caracterizado por uma utiliza-ção original e frutífera da teoriae da metodologia de Weber noexame da "civilização do café"que foi o século XIX no interiorde São Paulo.

(23) Relembrar as linhas geraise o sentido desse projeto nãosignifica dizer que MarilenaChaui e Maria Sylvia de Carva-lho Franco não orientaram te-ses em moldes acadêmicos so-bre temas clássicos da filosofia,nem que elas mesmas não con-tinuaram a trabalhar sobre osautores fundamentais da tradi-ção filosófica. Trata-se, por umlado, de lembrar os enormesinvestimentos intelectuais fei-tos na direção dos estudos so-bre o Brasil, e, por outro, detentar entender o significadodesse projeto no desenvolvi-mento do Departamento de Fi-losofia da USP em sentido maisamplo.

(24) É preciso lembrar, entre-tanto, que Maria Sylvia de Car-valho Franco e Marilena Chauiromperam publicamente em1981. Os rumos das investiga-ções de Carvalho Franco a le-varam a dedicar a década de 80essencialmente ao estudo domundo clássico greco-romano.Chaui ainda prosseguiu apre-sentando os frutos de suas in-vestigações sobre o Brasil na

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para o trabalho filosófico relevante, faltavam os temas próprios da tradiçãoda história da filosofia. De qualquer forma, esta foi em grande medida a facepública do Departamento de Filosofia da USP na década de 70, e naquelecontexto não se pode subestimar a importância da colaboração desseengajamento aberto e corajoso contra a ditadura no agrupamento maisamplo das forças de oposição ao regime militar24.

Por fim, há a linha de força no campo da Filosofia da USP que irádefinir o perfil do Departamento na década seguinte25. Esta linha — que setorna hegemônica a partir de meados da década de 80 — é composta porjovens professores que decidiram concentrar seu trabalho naqueles instru-mentos pedagógicos e procedimentos acadêmicos de leitura de texto quetinham se tornado rotineiros desde a década de 50. Em outras palavras, nomomento em que as alianças da filosofia com as ciências humanas e as artesem geral estão bloqueadas, um grupo significativo de professores doDepartamento de Filosofia investe na manutenção do padrão de ensino e napreservação das técnicas de trabalho aprendidas dos franceses. Essemovimento, entretanto, impunha também a necessidade de explicitar enomear essas práticas tornadas habituais, vale dizer, reconhecê-las comométodo pedagógico e estratégia deformação intelectual, condição sine quanon não apenas para o estudo da filosofia, mas para o trato com as coisasdo espírito e da cultura em geral.

E o instrumento dessa explicitação estava bem à mão: os estudosmonográficos de Martial Guéroult e Victor Goldschmidt. Desse modo, livroscomo Descartes selon 1'ordre des raisons e Anthropologie et politique — Lesprincipes du système de Rousseau tornaram-se modelos de investigação aserem seguidos, passando-se a explicitar e a aplicar as técnicas utilizadaspor ambos os autores em suas análises de texto. Tomar como modelos osestudos monográficos de Guéroult e de Goldschmidt vinha, entretanto, comimportantes restrições: se é "método pedagógico", não pode ser tomadocomo fim em si; se é "estratégia de formação intelectual", não pode serentendido como concordância com as posições expressas pelos dois autoresem textos como o de Goldschmidt, "Tempo histórico e tempo lógico nainterpretação dos sistemas filosóficos", ou de Guéroult, Philosophie del'histoire de la philosophie26.

A figura proeminente e emblemática desse movimento me parece sera de Rubens Rodrigues Torres Filho, que escreveu na Apresentação dapublicação em livro de sua tese de doutoramento sobre Fichte, defendidaem 1972 na USP:

Agradeço também ao Departamento de Filosofia de nossa Universida-de, que de modo ainda mais decisivo amparou e protegeu estaspesquisas quando ainda engatinhavam. Em especial, a José ArthurGiannotti, Bento Prado Júnior e Oswaldo Porchat Pereira, continua-dores da obra universitária de João Cruz Costa e Lívio Teixeira, e a cujotrabalho constante, através de todos os percalços, se deve a própria

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década de 70, publicando li-vros como Conformismo e re-sistência. Aspectos da culturapopular no Brasil (1986) e Cul-tura e democracia. O discursocompetente e outras falas(1980), além de ter coordena-do a série de seminários e delivros em diversas áreas O na-cional e o popular na culturabrasileira (1983). Não podepassar sem registro o fato deque, a partir de 1980, MarilenaChaui se torna uma das princi-pais referências intelectuais pú-blicas do recém-fundado Parti-do dos Trabalhadores.

(25) Deixo de lado aqui o exa-me da figura de Luiz RobertoSalinas Fortes, estudioso dopensamento de Rousseau quefoi preso e torturado pela dita-dura em 1970 e 1974. Salinasfoi um importante fomentadorde estudos de filosofia políticae, apesar de não ter aglutinadosistematicamente em torno desi um grupo de estudiosos doséculo XVIII, não se pode hojepensar essa área do Departa-mento de Filosofia da USP sema sua figura.

(26) É óbvio que uma tal opçãoprática não vem sem as pressu-postos teóricos que a susten-tam. Desde que corretamenteentendida, porém, a compila-ção consciente, na década de70, dos processos de formaçãointelectual estabilizados desdea década de 60 foi expedienteextremamente bem-sucedidona resistência aos ataques de-sorganizadores da ditadura mi-litar. Desse modo, a Filosofia daUSP foi capaz cie manter cons-tante o padrão de ensino e deformação de seus quadros, oque não se pode dizer doscursos de ciências humanas emgeral, excetuando-se talvez aEconomia. Entretanto, é preci-so observar que manteve emlinhas gerais essa orientação pe-dagógica e formativa mesmoapós a redemocratização: de-pois de muitos anos de isola-mento e de práticas "auto-sufi-cientes", não encontrou maisdisponíveis aquelas condiçõesque haviam permitido a forma-ção, por exemplo, do "consór-cio das ciências humanas". Eisto não se deve apenas ao fatode que o processo de recons-trução das ciências humanasem São Paulo foi muito maislento e penoso que o da filoso-fia em particular, mas também auma mudança de rumos nopróprio desenvolvimento des-sas ciências a partir da décadade 80, quando comparadoàquele característico do perío-do anterior a 1968, nova situa-ção à qual a Filosofia da USPnão foi capaz de responder comcriatividade, exceto algumas ini-ciativas isoladas. Em suma: nogeral, a Filosofia da USP aindanão encontrou o seu lugar nosnovos arranjos intelectuais doambiente pós-ditatorial.

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existência no Brasil daquele padrão de investigação filosófica que esteensaio tenta alcançar27.

Este "padrão de investigação filosófica" é o que está calcado na "leituraestrutural de texto", que o mesmo Rubens Torres descreveu nos seguintestermos:

As técnicas da análise estrutural de texto, não obstante o rigor, oacademicismo e as "finezas " que se costumam atribuir-lhe, obedecema normas bastante simples. Toma-se um segmento do autor, secciona-do de seu contexto em pontos que indiquem uma articulação aparen-temente natural (parágrafo, capítulo, passo da argumentação), eprocura-se explicá-lo internamente, isto é, com os próprios recursosque ele oferece. Unicamente esse segmento é colocado em tela: ocontexto — assim como o restante da obra — ficam reduzidos,provisoriamente, à simples condição de gramática ou dicionário, aque se pode recorrer quando alguma exigência do texto o solicitar. Otexto, nessa sua materialidade, será interrogado conceitualmente enão tematicamente: não se procurará saber o que ele diz — muitomenos o que o autor quis dizer —, mas como ele funciona; não osconhecimentos ou informações de que ele seria "veículo" — eventual-mente, a respeito do "pensamento do autor" —, mas o que acontecenele. Uma etapa posterior — e bem distinta, que pressupõe o términodessa primeira abordagem aparentemente formal — é o comentário,em que então se discutirão as idéias construídas pelo texto que foianalisado e suas implicações mais gerais28.

Além disso, esse movimento pressupunha o necessário estabeleci-mento de uma terminologia filosófica em português. Daí que Rubens Torrestambém tenha se dedicado à tradução de textos clássicos da filosofia,traduzindo

de maneira exemplar Kant, Fichte, Schelling, além de Nietzsche,Novalis e Walter Benjamin. Essas traduções contribuíram para orefinamento e certa consolidação da linguagem filosófica em portu-guês no Brasil, principalmente em relação ao idealismo alemão29.

Mas o trabalho de Rubens Rodrigues Torres Filho é tanto maisemblemático por explicitar que o projeto de preservação das técnicaspedagógicas e de formação intelectual não só não significou adesão às tesespropriamente filosóficas de Guéroult e Goldschmidt, como conseguiu

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(27) O espírito e a letra. A críti-ca da imaginação pura em Fi-chte. São Paulo: Ática, 1975p. 22.

(28) Significativamente, o arti-go se intitula "Dogmatismo, an-tidogmatismo. Kant na sala deaula" (Revista Tempo Brasilei-ro, 11/27, out./dez. de 1987,pp. 12-13). Note-se que R. K.Torres qualifica de "aparente-mente formal" o primeiro mo-mento da leitura estrutural detexto.

(29) Terra, Ricardo R. "Atuali-dade de Schiller". Novos Estu-dos. São Paulo: Cebrap, nº 34,novembro de 1992, p. 230.

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produzir e reproduzir traços importantes de diversas linhas de desenvolvi-mento que viemos acompanhando até aqui. Se Marilena Chaui e MariaSylvia Carvalho Franco exploraram a vertente do "consórcio das ciênciashumanas", Rubens Torres retomou a linha do "consórcio de crítica dacultura": coube a ele a iniciativa de animar a revista Almanaque, umimportante fórum de discussão de estética, de crítica de arte e de cultura.Nesse contexto, não é de menor importância o fato de Rubens Torres sertambém poeta; de fato, no livro Novolume (Iluminuras, 1997), reunião doconjunto de sua produção poética e de suas traduções de poesia, o autor éapresentado da seguinte maneira: "historiador da filosofia moderna, tradu-ziu obras de Kant, Fichte, Schelling, Nietzsche, Adorno e Benjamin.Publicou, em prosa: O espírito e a letra (Ática, 1975) e Ensaios de filosofiailustrada (Brasiliense, 1987)" (grifo meu).

Com isso, dou por terminado o esboço que me propus a traçar daslinhas de força que, penso, são as mais importantes no Departamento deFilosofia da USP até o início dos anos 80. Retomando os resultados em suasgrandes linhas, pode-se dizer que a ditadura militar encantoou a Filosofia daUSP e que esta teve pelo menos quatro respostas diferentes para a situação.Em primeiro lugar, o caminho tomado por Giannotti, que, aposentadocompulsoriamente, vai ajudar a fundar, fora da universidade, um centrointerdisciplinar de pesquisa em ciências humanas, o Cebrap. Em segundolugar, aparece a tentativa de Porchat de introduzir de maneira sistemática afilosofia analítica no Brasil, para o que ele tem de deixar a USP e se transferirpara a Unicamp. Uma terceira resposta — já no interior do próprioDepartamento de Filosofia da USP — é a instalação de uma ampla linha depesquisa sobre a realidade brasileira sob a coordenação de Marilena Chauie Maria Sylvia de Carvalho Franco. E, por fim, temos aqueles que decidiramresistir à ceifagem intelectual da ditadura elegendo como prioridade asistematização, explicitação e aplicação de mecanismos pedagógicos e deformação que já eram corriqueiros na Filosofia da USP, projeto que passa aser hegemônico no Departamento no período pós-ditatorial.

De todas essas respostas da Filosofia da USP à ditadura militar, pode-se dizer que apenas a última sobreviveu de forma orgânica e organizada nointerior do Departamento. Embora cada uma dessas respostas faça parte dahistória do Departamento e tenha contribuído à sua maneira para a suasobrevivência e para a sua feição atual, é inegável que a Filosofia da USP éainda hoje conhecida por ser uma casa em que os conceitos são bemtratados porque sempre lidos de acordo com suas respectivas posiçõessistêmicas e sistemáticas.

Seja como for, essa breve reconstrução nos mostra que a Filosofia daUSP sobreviveu melhor que as suas parceiras tradicionais das ciências

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humanas e da crítica da cultura ao ar rarefeito do momento histórico daditadura porque conseguiu se manter às custas dos tanques de oxigênio dahistória da filosofia. Com isso, no entanto, ficou também sem uma boaporção da sua própria vitalidade: perdeu os laços que a uniram desde muitocedo às ciências e às artes. Essa situação permanece praticamente inalteradaaté o momento atual, com a agravante de que, hoje, o futuro e a relevânciada Filosofia da USP não dependem mais unicamente da sua capacidade deretomar suas alianças tradicionais com as ciências humanas e as artes. É opróprio "consórcio das ciências humanas" que tem de ser repensado, nãoapenas porque o seu cenário é hoje nacional e internacional, mas tambémporque tem de incluir as recentes alterações nas disciplinas, entre elas osimportantes desenvolvimentos na economia e no direito, disciplinas quetendem hoje a "satelitizar" as ciências sociais e a própria filosofia. Comotambém o "consórcio de crítica da cultura" vai precisar inventar o seu lugar,espremido entre uma arte que duvida de sua própria possibilidade e alinguagem peculiar dos cadernos de cultura dos jornais de grande circula-ção. Talvez seja excessivo esperar, além disso, que os dois modelos de"consórcio" encontrem um espaço de reflexão conjunta que vá além daformação acadêmica comum, das conversas ocasionais e das relações deamizade. Mas é uma possibilidade que não deve ser desprezada.

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Recebido para publicação em11 de janeiro de 1999.

Marcos Nobre é professor defilosofia da Unicamp e pesqui-sador do Cebrap. Publicou nes-ta revista, em co-autoria comVinicius T. Freire, "Política difí-cil, estabilização imperfeita: osanos FHC" (nº 51).