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A mantença de animal silvestre a propósito de estimação Revista do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Guarulhos, ano 3 n. 5, jul. / dez. 2001 Página 149 A MANTENÇA DE ANIMAL SILVESTRE A PROPÓSITO DE ESTIMAÇÃO ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO Aluno do Curso de Direito das FIG 1. INTRODUÇÃO A conduta de mantença de animal silvestre a propósito de estimação é muito comum no Brasil, tanto no meio rural quanto no meio urbano. Ocorre que espécimes diversos tais como papagaios, araras, macacos e tartarugas, integrantes da fauna silvestre, são mantidos em ambiente doméstico sem autorização ou licença devida e, em que pese a irregularidade de tal situação, verifica-se que se encontram os animais quase sempre bem cuidados, submetidos à condição de ente de estimação de quem exerce sobre eles a posse. O vocábulo “mantença” é aplicado neste estudo porque significa exatamente provimento de sustento, ou mantenimento, sendo o seu emprego adequado para classificar a conduta do possuidor que trata do espécime simplesmente para o propósito de estimação e nunca para finalidade comercial ou de utilização. Manter um animal silvestre em ambiente doméstico a propósito de estimação não representa uma mal em si e não constitui ação moralmente reprovável; aliás, diversas espécies foram salvas da extinção em razão de que foram preservados espécimes representativos em cativeiro. Porém, a conduta pode estimular a retirada ilegal de espécimes do ambiente selvagem e o seu comércio clandestino, comprometendo a perpetuação das espécies e o equilíbrio ecológico, e esta é a grande preocupação dos ambientalistas e estudiosos das questões da fauna. A Lei nº 9.605/98, que trata dos crimes ambientais, dá margem a algumas interpretações, menos ou mais rigorosas, sobre o tema proposto. Afinal, a mantença de animal silvestre é crime ou não? Pois bem, existem mais de 700.000 espécimes da fauna silvestre no interior de casas e em quintais, apenas no Estado de São

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O artigo foi desenvolvido e publicado em 2001, na revista do Curso de Direito da FIG (Faculdades Integradas de Guarulhos/SP), quando eu me encontrava cursando o último ano do Curso. Consiste em um resumo do Trabalho de Conclusão de Curso de mesmo título. Uma contribuição para a doutrina institucional do Policiamento Ambiental em São Paulo que, naquele período, precisava fortalecer a posição de registro da "mantença", sem consequências de responsabilização penal e, inclusive, administrativa em caso de guarda doméstica de animais silvestres (ou "mantença a propósito de estimação").

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A mantença de animal silvestre a propósito de estimação

Revista do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Guarulhos, ano 3 – n. 5, jul. / dez. 2001 Página 149

A MANTENÇA DE ANIMAL SILVESTRE

A PROPÓSITO DE ESTIMAÇÃO

ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO Aluno do Curso de Direito das FIG

1. INTRODUÇÃO

A conduta de mantença de animal silvestre a propósito de estimação é muito

comum no Brasil, tanto no meio rural quanto no meio urbano. Ocorre que espécimes

diversos tais como papagaios, araras, macacos e tartarugas, integrantes da fauna

silvestre, são mantidos em ambiente doméstico sem autorização ou licença devida

e, em que pese a irregularidade de tal situação, verifica-se que se encontram os

animais quase sempre bem cuidados, submetidos à condição de ente de estimação

de quem exerce sobre eles a posse.

O vocábulo “mantença” é aplicado neste estudo porque significa exatamente

provimento de sustento, ou mantenimento, sendo o seu emprego adequado para

classificar a conduta do possuidor que trata do espécime simplesmente para o

propósito de estimação e nunca para finalidade comercial ou de utilização.

Manter um animal silvestre em ambiente doméstico a propósito de estimação

não representa uma mal em si e não constitui ação moralmente reprovável; aliás,

diversas espécies foram salvas da extinção em razão de que foram preservados

espécimes representativos em cativeiro. Porém, a conduta pode estimular a retirada

ilegal de espécimes do ambiente selvagem e o seu comércio clandestino,

comprometendo a perpetuação das espécies e o equilíbrio ecológico, e esta é a

grande preocupação dos ambientalistas e estudiosos das questões da fauna.

A Lei nº 9.605/98, que trata dos crimes ambientais, dá margem a algumas

interpretações, menos ou mais rigorosas, sobre o tema proposto. Afinal, a mantença

de animal silvestre é crime ou não? Pois bem, existem mais de 700.000 espécimes

da fauna silvestre no interior de casas e em quintais, apenas no Estado de São

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Paulo, na condição de bichos de estimação. Qualquer um de nós conhece um

vizinho ou um parente que possui animal silvestre em casa e quase todos não têm

licença ou autorização para tanto. Essa é a realidade.

2. CONCEITOS BÁSICOS

A fim de que seja possível analisar com precisão as normas legais vigentes

que tratam sobre assunto tão específico, faz-se necessária preliminar verificação do

vocabulário freqüentemente utilizado para o estudo da legislação ambiental aplicada

à fauna.

O vocábulo animal possui dois sentidos básicos, encontrados no dicionário; o

primeiro, mais amplo e originado na zoologia, corresponde à: “ser organizado, com a

forma do corpo relativamente constante, órgãos na maioria internos, tecidos

banhados em solução que contém cloreto de sódio, células revestidas de

membranas delicadas, com crescimento limitado, e provido de irritabilidade ou

sistema nervoso, que lhe permite responder prontamente aos estímulos”; o segundo,

que exclui o ser humano, indica: “qualquer animal que não o homem; o animal

irracional” 1 .

Quando a lei utiliza a palavra “animais” sem qualquer adjetivo que a

qualifique, quer representar todo o conjunto de seres vivos excluindo as plantas e o

ser humano. O sentido jurídico da palavra, portanto, é o segundo, o mais restrito.

Assim, o “animal” a que se refere o texto legal, diz respeito ao ser vivo, - exceto o

homem - que é organizado e que, em oposição às plantas, é dotado de

sensibilidade e movimento.

O homem, coletivo, apesar de também constituir uma espécie animal no

sentido mais amplo da palavra em análise, coloca-se acima de todas as outras

espécies e racionalmente dita normas de aproveitamento, ou mesmo de

convivência, em relação a elas. Por isso, no plano legal, somente o ser humano é

sujeito de direitos e deveres, enquanto que os “animais”, em sentido estrito, são

considerados objetos jurídicos por ele tutelados.

1 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova

Fronteira, 1996.

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Espécie é a unidade biológica fundamental. Representa um conjunto de

indivíduos que possuem várias características semelhantes entre si e em relação

aos seus ancestrais e que, além dessas semelhanças, ainda se entrecruzam.

Identificam-se as espécies animais particularmente em virtude das

qualidades do seu hábitat natural, ou seja, do ecossistema em que naturalmente

são encontrados os seus representantes; aliás, as próprias características das

espécies decorrem da influência do meio em que evoluíram, em razão da somatória

de mínimas variações genéticas, verificadas no ciclo da vida animal.

Podem ser as espécies, portanto, classificadas como próprias de uma região

ou de um país, em razão do local em que se encontra seu meio natural. Assim, para

aplicação da legislação pertinente, é fundamental observar que existem espécies

brasileiras, também denominadas próprias da fauna brasileira (ou simplesmente

"silvestres"), e aquelas que não integram a fauna nacional. Importante tal divisão

para se verificar, por exemplo, o valor ecológico de um animal em determinado

espaço natural, definindo-se sua condição de parte, ou não, essencial ao equilíbrio

do ecossistema local.

A palavra espécime possui um sentido totalmente diferente da palavra

“espécie” e, devido à semelhança de grafia dos dois vocábulos, tem sido observada

certa confusão em relação ao seu emprego, mesmo na redação das leis. A

distinção, porém, é simples: o espécime é um indivíduo representativo de um grupo

(espécie, gênero ou família), ou seja, qualquer animal ou planta, vivo ou morto, ao

contrário da espécie, que é toda uma coletividade de espécimes com características

comuns.

Fauna significa o conjunto dos animais próprios de uma certa região ou de

um dado período geológico. No texto legal, quase sempre a palavra é acompanhada

de um adjetivo que reduz o universo de sua abrangência, como por exemplo,

silvestre, doméstica, exótica (de outros países), ictiológica (dos animais que têm na

água o seu principal meio de vida), etc. Algumas vezes, inclusive, verifica-se a

combinação desses adjetivos, o que reduz ainda mais o conjunto de espécies

animais representadas, a exemplo do art. 2o da portaria do Ibama nº 93, de

07.07.98, que estabelece normas para importação e exportação de animais vivos,

além de produtos e subprodutos da “fauna silvestre exótica” (espécies selvagens

próprias de outros países). Quando empregada isoladamente, a palavras “fauna”

representa todas as espécies animais exceto a espécie humana.

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3. CLASSIFICAÇÃO LEGAL DOS ANIMAIS

3.1 Animais da fauna silvestre

O art. 1o da Lei nº 5.197/67 estabelece o critério geral de qualificação da

fauna silvestre: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase de seu

desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a

fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são

propriedade do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição,

caça ou apanha” (grifo nosso). Já o § 3o, do art. 29, da Lei nº 9.605/98, veio a

ampliar o conceito de fauna silvestre para abranger também os animais que, apesar

de não serem próprios do Brasil, nascidos ou não no país, têm ao menos parte do

seu ciclo natural de vida no território nacional: São espécimes da fauna silvestre

todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer

outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida

ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais

brasileiras”.

Portanto, nos limites do território nacional, os animais que pertencem a

espécies migratórias, oriundos de outros países, têm tratamento legal especial, pois

são reconhecidos como integrantes do conjunto da fauna silvestre nacional. Há

interesse do Estado na sua preservação, eis que desenvolvem relações de

interdependência com outras formas de vida locais, enquanto permanecem no meio

natural do território brasileiro.

O critério básico é a condição de viver naturalmente fora do cativeiro, ou

seja, é animal silvestre aquele que em razão de suas características físicas e

comportamentais vive naturalmente sem qualquer relação de dependência com o

homem. Como se observa, esta é uma norma em branco, que exige

complementação de outra fonte para a sua exata compreensão e justa aplicação.

Sendo assim, o Poder Público deveria apresentar regulamentação da matéria,

estabelecendo quais são efetivamente as espécies silvestres, particularmente as

brasileiras, no plano da classificação geral das espécies proposta pela biologia; no

entanto, essa é uma tarefa muito difícil, ou mesmo impossível, levando-se em conta

a quantidade e a mutabilidade das espécies existentes.

Atualmente são conhecidas mais de um milhão de espécies animais no

mundo e todos os anos este número cresce com a descoberta de novos

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organismos. Na dinâmica da natureza, a própria evolução das espécies faz com que

umas se extingam e outras apareçam, com ou sem a interferência do homem, em

decorrência das transformações a que estão sujeitas ao longo do tempo. Como

tecnicamente é inviável relacionar em regulamentação quais as espécies que

naturalmente vivem fora do cativeiro - e por isso integram a fauna silvestre -, o que

abrangeria a maior parte dos bichos desde um simples inseto até uma onça-pintada,

os animais são legalmente considerados como silvestres por processo de exclusão,

na seguinte fórmula: são animais da fauna silvestre todos aqueles que não são

animais da fauna doméstica.

3.2 Animais da fauna doméstica

O conceito de fauna doméstica é trazido pelo inciso III, do art. 2

o, da portaria

Ibama nº 93/98: "Fauna Doméstica: todos aqueles animais que através de

processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento zootécnico

tornaram-se domésticos, apresentando características biológicas e comportamentais

em estreita dependência do homem, podendo apresentar fenótipo variável, diferente

da espécie silvestre que os originou.”

O anexo I da mesma portaria apresenta uma “listagem de fauna

considerada doméstica para fins de operacionalização do Ibama”, que traz o nome

comum, além do nome científico das espécies (nome composto, em latim). São

relacionados nessa listagem animais como: abelhas, cabra, cavalo, coelho,

cachorro, gado bovino etc.

Ao contrário do animal da fauna silvestre, o animal doméstico já está

naturalmente adaptado para a vida em cativeiro, apresentando características

físicas e comportamentais que indicam dependência do ser humano para a sua

sobrevivência. Isso em razão de que diversas gerações da mesma espécie viveram

em contato direto com o homem, impondo-se gradativa alteração do fenótipo dos

indivíduos (característica do exemplar, determinada pelo seu genótipo e pelas

condições ambientais locais) que, ao longo do tempo, muito lentamente foi sendo

incorporada às características do respectivo grupo animal.

As espécies hoje consideradas integrantes da fauna doméstica são o

provável resultado de um processo histórico em que o homem elegeu, desde

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tempos remotos, alguns animais - que naturalmente já ofereciam pouca resistência

ao cativeiro - para viverem sob sua custódia, como uma garantia de provisão

quando lhe faltasse a caça habitual; deles poderia facilmente obter alimentos (carne

e ovos) e matérias para atender outras necessidades (peles para proteger-se do frio,

ossos e chifres para construção de armas etc.).

Gradualmente, o homem veio descobrindo outras formas de aproveitamento

dos animais, que passaram a ser utilizados como instrumento de locomoção e

transporte de objetos (cavalo com rédeas, cavalo ou boi atrelados a carros ou

charretes), como meio de prover segurança ou recurso de caça para captura de

outros animais (cães treinados para defesa, farejadores e cães de caça), como meio

de obtenção de medicamento (abelha, na produção de mel e própolis), como meio

de esporte e recreação (corridas, competições diversas envolvendo os próprios

animais em disputas) e tantas outras formas de aproveitamento que foram sendo

incorporadas à cultura dos diversos povos. Por isso, é possível classificar os animais

domésticos em “utilitários”, ou seja, aqueles que são objeto de utilização e os

domésticos chamados “de estimação”, estes mantidos pelo homem sem finalidade

de utilização.

Hoje em dia, aliás, quando se fala em animal doméstico, remete-se

automaticamente àqueles bichos tais como cães, gatos e pássaros que, apesar de

não serem utilizados economicamente ou como meio de obtenção de qualquer

vantagem, desempenham uma exata função junto ao seu mantenedor, a de simples

companhia e são recipiendários de gestos de afeto, o que proporciona ao homem

moderno um grande bem estar sobre o qual ele quase sempre desconhece a razão.

Pois o que lhe faz bem é o próprio contado com outra forma de vida animal, que

passou a denominar “de estimação” em vista de sua afeição e apreço desenvolvidos

por ela, pela vida. No meio urbano, onde atualmente habita a maior parte das

pessoas, é o animal de estimação quase sempre a ligação mais forte, tanto quanto

primitiva, do homem com a própria natureza.

3.3 Animais domesticados

Alguns espécimes integrantes da fauna silvestre que mantêm intenso contato

com o ser humano, em especial aqueles que ainda filhotes foram colocados em

cativeiro (por exemplo, papagaios, araras ou macacos), deixam com o tempo de

apresentar características selvagens. O animal nessa condição, apesar de seu

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comportamento assemelhar-se muito ao dos animais domésticos, não será

classificado como tal, ainda que mantido a propósito de estimação; continuará

sendo espécime da fauna silvestre nacional, pois pertence à espécie que não é

legalmente considerada doméstica. O espécime nessa situação é considerado

animal silvestre domesticado, ou simplesmente animal domesticado.

3.4 Animais da fauna exótica

Os chamados animais da fauna exótica (ou da fauna alienígena), por

exemplo, o elefante, o leão e o canguru, são animais próprios de outros países que

comportam ecossistemas com características diversas dos ecossistemas localizados

no Brasil. Congregam, portanto, outros países, hábitat de permanência de espécies

que naturalmente não seriam encontradas no Brasil, salvo no caso dos espécimes

em rota migratória.

A questão do tráfico ilegal de animais silvestres é um grande mal que deve

ser combatido em âmbito internacional, para o bem do equilíbrio ecológico do

planeta. É ilusão imaginar que apenas animais da fauna alienígena são

transportados irregularmente pelas fronteiras, ingressando eventualmente no Brasil;

da mesma forma com que chegam animais da fauna exótica, vários espécimes da

fauna silvestre nacional (considerados exóticos em outros países) saem

irregularmente das fronteiras brasileiras, para suprir a demanda do comércio

clandestino no exterior.

4. A INTERPRETAÇÃO DO VOCÁBULO “UTILIZAÇÃO”

Na evolução da tutela legal da fauna no Brasil, a Lei nº 5.197, de 03.01.67,

conhecida como “Lei de Proteção à Fauna” e também como “Código de Caça”, veio

substituir o anterior Código de Caça (de 1943) e trouxe, logo em seu art. 1o, a

imposição de que os animais silvestres são propriedade do Estado, ou seja,

pertencem à União.

O mesmo artigo, ainda, estabeleceu proibição da “utilização, perseguição,

destruição, caça ou apanha” de animais silvestres, condutas doutrinariamente

conhecidas como “atos de caça”. Posteriormente, a rigorosa Lei nº 7.653/88 veio a

classificar tais condutas como crime inafiançável.

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Uma questão na época discutida, quanto à aplicação da Lei nº 5.197/67, era

a compreensão do vocábulo “utilização”. Para a mais restrita interpretação, a

conduta criminosa de utilização consistia em fazer uso do animal da fauna

silvestre com o objetivo de obtenção de real vantagem, como conseqüência da

prática da caça propriamente dita, excluindo-se da tipificação legal a conduta de

simples mantença a propósito de estimação.

Nesse entendimento, não praticaria crime quem mantivesse um papagaio,

uma arara, ou um macaco em seu quintal, na condição de animal de estimação e

sim, por exemplo, quem usasse um animal silvestre na condição de “chama”, ou

seja, para atrair outros animais a fim de capturá-los, quem expusesse uma arara em

estabelecimento comercial a fim de despertar a atenção de transeuntes para o

interior de seu comércio, quem mantivesse um papagaio ou um macaco preso a um

realejo para fazer sorteio de bilhetes vendidos ao público, ou, ainda, um artista que

exibisse uma onça-pintada, utilizando-a em seu espetáculo.

A corrente mais radical, no entanto, entendia que a própria relação de

afetividade desenvolvida pelo homem em relação ao animal silvestre no seu

convívio doméstico caracterizava a utilização, eis que o mantenedor dela tirava

proveito no que diz respeito ao seu equilíbrio emocional, aliado ao fato de que,

exercendo a posse injusta de propriedade da União, mantinha irregularmente o

animal como se doméstico fosse e, portanto, indevidamente integrado ao seu

patrimônio.

Com o passar do tempo, a primeira interpretação acabou por se revelar mais

coerente e a maioria absoluta dos julgados veio confirmar a posição de que a

mantença de animais silvestres em cativeiro a propósito de estimação não

configurava crime sob a forma de utilização, nos termos da Lei nº 5197/67. 2

Condicionou-se, então, no âmbito da fiscalização, a interpretação de que a

conduta “utilização” é configurada em razão da obtenção de real vantagem por parte

do agente que tem por instrumento, ou meio, o animal silvestre, compreendendo-se

atípica a prática de simples mantença do animal silvestre para o propósito de

estimação.

2 TRF 3

a Região – 1

a T. – AC – Rel. Ramza Tartuce – DJU 22.03.1994 – RJ 200/131; TRF 1

a Região –

3a T. – Rec. – Rel. Tourinho Neto – RJ 196/98; TRF 3

a Reg., Acr. 03006148/SP, 2

a T., relator Juiz

Célio Benevides, julgado em 10.12.1996.

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5. A CONDUTA DE “MANTENÇA” FACE O ART. 29 DA LEI Nº 9.605/98

A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 consolidou, em parte, vários textos

legais que tratavam de crimes ambientais e, por essa razão, é ela conhecida como

“Lei de Crimes Ambientais”. No que se refere à matéria de fauna, não revogou todas

as disposições da Lei nº 5.197/67.

Dentre os artigos Lei nº 9.605/98 que prevêem condutas criminosas contra a

fauna, destaca-se o 29 (não aplicável aos atos de pesca, conforme § 6o), que

relaciona diversas ações especialmente em seu caput e nos três incisos do

parágrafo primeiro. É ele o primeiro de uma série de artigos que integram a Seção I,

sob o título “Dos Crimes contra a Fauna”. Traz, basicamente, as ações criminosas

de maior incidência na relação de exploração entre o homem e os animais e

seguramente é o mais complexo dos artigos da referida lei:

“Art. 29: Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da

fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida

permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou

em desacordo com a obtida:

Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa.

§ 1o. Incorre nas mesmas penas:

I – quem impede a procriação da fauna, sem licença,

autorização ou em desacordo com a obtida;

II – quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo

ou criadouro natural;

III – quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire,

guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos,

larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota

migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos,

provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida

permissão, licença ou autorização da autoridade competente.

§ 2o. ...”

Detemo-nos no caput e nos três incisos do parágrafo primeiro, do art.

29, para destacar que foram relacionadas condutas anteriormente não consideradas

criminosas. O texto legal objetivou claramente alcançar não somente a proteção da

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integridade dos animais silvestres, projetada no texto do caput do artigo, mas

também a proteção da capacidade de reprodução da fauna (inciso I, do § 1o), a

proteção da integridade dos ninhos, abrigos e criadouros naturais (inciso II, do

§ 1o) e a restrição da exploração econômica do animal silvestre e de seus

subprodutos (inciso III, § 1o), mediante imposição de igual sanção penal às práticas

criminosas, ou seja, na forma simples, a detenção de seis meses a um ano, além de

multa.

Observa-se, em princípio, que o caput do art. 29 da Lei nº 9.605/98 manteve

basicamente o mesmo conjunto de ações já previstas no art. 1o da Lei nº 5.197/67,

constituindo-se, à evidência, em um aperfeiçoamento da norma legal. Logo, a

interpretação da conduta criminosa de “utilizar” é a mesma da lei anterior, qual

seja, a obtenção de real vantagem por parte do agente.

Poderia o legislador ter suprimido, do caput, a conduta de “utilizar”, vez que a

especificou na seqüência, no inciso III, do parágrafo primeiro, em face da

predominante circunstância do aproveitamento econômico que caracteriza a

utilização, levando em conta que o enfoque desse inciso, conforme observado, é a

restrição da exploração econômica do animal silvestre e de seus subprodutos.

Confirmam o nítido enfoque da exploração econômica no inciso III, Vladimir

Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas3: “O inciso III refere-se ao comércio

de espécimes da fauna silvestre, em diversas modalidades, provenientes de

criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença, ou autorização da

autoridade competente. (...) O tipo penal, agora, utiliza várias formas de conduta

(vender, expor à venda, exportar, adquirir, ter em cativeiro ou depósito, utilizar ou

transportar). Visou o legislador evitar qualquer tipo de justificativa para o mais

condenável dos atos, que é o comércio de animais”.

Constata-se, no inciso III, certa semelhança com a seqüência de condutas do

art. 12 da Lei 6.736/76, sobre os crimes relacionados ao tráfico de entorpecentes, o

que serve como referência para estudo. Objetivando coibir o comércio ilícito de

entorpecentes aquele dispositivo apresentava diversas ações semelhantes àquelas

que vieram a constar na Lei 9.605/98 para restringir o comércio de espécimes da

3 Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas. Crimes Contra a Natureza. 6

a ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 80.

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fauna silvestre e outros bens a ela relacionados (aliás, o comércio ilegal de animais

silvestres também é denominado tráfico). O art. 12 da Lei 6.736/76 apresenta,

dentre outras, as condutas de vender, expor à venda, exportar, adquirir, guardar,

ter em depósito e transportar.

A semelhança não é gratuita. O legislador em 1998 teve como evidente

referência e fonte de vocabulário a Lei 6.736/76 pois, tal como o tráfico de

entorpecentes, o tráfico de animais silvestres passou a representar um desafio para

o Poder Público a partir do momento em que se constatou o grave prejuízo que tal

prática causava à sociedade. Por ocasião do surgimento da Lei 9.605/98, tinha-se

notícia de que, na área dos negócios ilegais, em rota internacional, a venda de

animais silvestres somente perdia para o tráfico de drogas e para o comércio de

armas, em razão do cálculo de que 10 bilhões de dólares eram movimentados

nesse mercado por ano, sendo um décimo desse valor apenas no Brasil. Quando o

legislador se propôs a descrever, no inciso III do § 1o, da Lei 9.605/98, o crime

contra a fauna silvestre sob o enfoque da exploração econômica desautorizada,

pretendeu abordar de forma ampla (tal como na Lei de Tráfico de Entorpecentes),

todas as condutas relacionadas à abominável prática de comércio do precioso bem

ambiental.

Dentre as condutas do referido inciso, destacam-se duas que podem gerar

certa polêmica: guardar e ter em cativeiro ou depósito. Ao inadvertido observador

pode parecer que se quis nesse momento coibir a mantença de animais silvestres

a propósito de estimação, pois esta é a primeira imagem que vem à mente quando

se descreve um animal silvestre “guardado ou mantido em cativeiro”. Sem discordar

quanto ao prejuízo ambiental que essa prática comum de fato provoca (na ausência

de possível autorização), constata-se que a proibição de tal conduta não é o

propósito do dispositivo em questão.

Conforme demonstrado, buscou-se no inciso III abarcar todas as formas

possíveis de atos de comércio ou atos a ele relacionados, dentre os quais a guarda

(doméstica ou não) e a conduta de ter em cativeiro ou depósito (em casa, no

quintal ou em qualquer outro local) o bem jurídico em questão com finalidade

mercantil e não a simples manutenção do animal para o propósito de estimação.

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Exemplo de criminosa guarda doméstica de espécime (ou espécimes) da

fauna silvestre é a conduta do cidadão que possui em seu quintal um viveiro onde

guarda, sem licença, canários-da-terra, pintassilgos e araçaris para serem

negociados com sua vizinhança, ou com qualquer pessoa que a ele recorra para

adquirir, mediante pagamento, um desses pássaros. O seu propósito evidentemente

não é a manutenção para a estima, pois aquele que mantém um animal a propósito

de estimação (doméstico ou silvestre), não o aliena; pelo contrário, esforça-se por

mantê-lo sob seus cuidados em virtude do vínculo afetivo que se estabeleceu entre

ele (o mantenedor) e o animal de estimação.

Cabe, aliás, a observação da sutil diferença da aplicação dos verbos “ter" e

“manter” no texto legal. Mesmo não constituindo propriedade particular, o animal

silvestre nas mãos do comerciante irregular é tratado como objeto de venda, sendo

negociado tal como um eletrodoméstico. Já nas mãos do mantenedor, a título de

estimação, o animal silvestre é destinatário de um esforço pessoal daquele, que se

sente responsável pela manutenção de sua vida, e mesmo de seu bem estar. Ao

contrário do comerciante, o mantenedor não deseja desfazer-se do animal e sim

preservá-lo. Sob os cuidados do mantenedor, o animal desempenha uma função

que vai muito além do benefício produzido por um simples objeto; por isso é mantido

como forma de vida.

6. A GUARDA DOMÉSTICA E A HIPÓTESE DE PERDÃO JUDICIAL

Ainda no complexo art. 29, da Lei 9.605/98, verifica-se:

“§ 2o. No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não

considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as

circunstâncias, deixar de aplicar a pena”.

A Lei, nesse momento, apresenta imprecisão. Correto seria o uso do

vocábulo “espécimes” e não espécie, que foi equivocadamente empregado. Isso

porque, sendo a espécie o conjunto de animais existentes identificados por

características semelhantes, que os qualificam como componentes de um mesmo

grupo, evidentemente é quase impossível alguém conseguir guardar em casa, ou

em seu quintal, todo esse conjunto de animais. Talvez o legislador buscasse

transmitir a idéia de número não definido de animais guardados (um ou mais); nesse

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sentido, porém, deveria ter utilizado a expressão “espécime ou espécimes” e esta

parece ser a compreensão mais adequada para o que indica o dispositivo legal.

Na seqüência da interpretação do art. 29, deduz-se que se o infrator for

surpreendido guardando em sua residência ou quintal (guarda doméstica) espécime

da fauna silvestre, no sentido da guarda já abordada no inciso III, do § 1o - ou seja,

com propósito mercantil - poderá o juiz deixar de aplicar a pena correspondente,

considerando as circunstâncias do caso concreto, desde que o animal não integre

espécie ameaçada de extinção. Por uma questão de lógica, o § 2o só pode ser

relacionado à conduta prevista no inciso III, do § 1o

(guarda com finalidade

comercial), pois em nenhum outro momento, no art. 29, foi utilizado o vocábulo

“guarda”, mesmo diante de extensa e minuciosa descrição de atos lesivos ao bem

ambiental “fauna” verificada nesse artigo.

A resposta proporcional ao menor potencial de lesividade da conduta em

relação ao meio ambiente é a razão da ressalva. O infrator individualmente

identificado que responde criminalmente pela guarda doméstica de animal ou

animais silvestres (para fins de comércio), pode ser beneficiado com o perdão

judicial, pois, agindo no âmbito de suas relações particulares, dá causa a prejuízo

ambiental não tão grave (quando o objeto de sua empreitada não integra espécie

ameaçada de extinção) quanto àquele decorrente da atividade de verdadeiras

organizações comerciais clandestinas que promovem tráfico de animais silvestres

em quantidades e proporções incalculavelmente superiores, especialmente dirigido

a compradores que se encontram fora dos pais.

Outrossim, a quantidade de espécimes presentes em determinado ambiente

doméstico, além do espaço em que são guardados e a própria forma como são

tratados, pode evidenciar o propósito mercantil. Em princípio, quem mantém animais

a título de estimação o faz, normalmente, em relação a um, dois, ou três espécimes

no máximo, e estes quase sempre se encontram muito bem cuidados. Ao contrário,

o particular que pretende auferir lucros, por menor que seja a expectativa de ganho,

normalmente guarda ou tem em depósito, para si ou para outrem, no seu ambiente

doméstico, vários espécimes (salvo os casos de espécies raras), ou seja, detém

uma quantidade suficiente para que as eventuais perdas do objeto de

comercialização - próprias da guarda em cativeiro -, não constituam obstáculo para

a obtenção de vantagem pecuniária advinda de suas transações; o bem estar

desses animais é o que menos importa ao comerciante irregular, nos limites de sua

residência.

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A mantença de animal silvestre a propósito de estimação

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Não é coerente, outrossim, relacionar a hipótese de perdão judicial com as

condutas do caput do art. 29: "matar, perseguir, caçar, apanhar ou utilizar", mesmo

levando-se em conta que o benefício legal está consubstanciado em um dos

parágrafos do referido artigo (§ 2o). O vocábulo “guarda” não se coaduna com

qualquer das condutas relacionadas no caput, que são doutrinariamente

classificadas como atividades próprias de caça. Quando muito, em relação a essas

condutas, a referida “guarda doméstica” poderia ser associada ao ato de “utilizar”;

porém, se tal fosse o propósito, para a hipótese de perdão judicial a Lei teria

empregado a expressão “utilização doméstica” de animal silvestre e, ainda assim,

haveria ser observado que a jurisprudência entende, de longa data, que somente se

configura a utilização quando verificada a obtenção de real vantagem, não sendo

nela compreendida a simples mantença de animal a propósito de estimação.

7. A QUESTÃO ECONÔMICA NA PRESERVAÇÃO DAS ESPÉCIES

O acesso particular ao animal integrante da fauna doméstica não é difícil, pois

este se reproduz normalmente em cativeiro. Já os animais integrantes de espécies

silvestres, que vivem naturalmente livres no meio selvagem, não se reproduzem

com a mesma facilidade quando submetidos ao cativeiro; faz-se necessário um

longo período de adaptação, o que acaba impondo a domesticação do espécime e o

inevitável aparecimento de transformações de ordem física e comportamental

observadas nas gerações seguintes, nascidas em criadouro.

Existe nesse ponto uma questão de ordem econômica a ser solucionada:

espécimes integrantes da fauna silvestre, legalmente comercializados, custam muito

mais porque são raros; são raros porque não se reproduzem com a mesma

facilidade que os domésticos no cativeiro; não podem ser retirados do meio natural

(caçados), para aproveitamento por clara disposição legal; e, finalmente, o valor

alcançado na venda de espécimes silvestres raros no mercado clandestino é

incentivo ao tráfico ilegal - nacional e internacional - e à caça proibida que o

abastece. Por outro lado, a fascinação das pessoas pelos animais silvestres em

razão do seu caráter exótico, exatamente porque é raro, faz com que sua procura

seja grande, inversamente proporcional a quantidade de espécimes legalmente

disponíveis.

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Não defendemos a propriedade privada do animal silvestre, mas sim a plena

possibilidade de seu aproveitamento comercial e privado, inclusive como forma de

garantir a continuidade das espécies. Permitindo e viabilizando o aproveitamento

privado do animal silvestre, mediante expedição de instrumentos públicos

competentes, o Estado promove indiretamente a perpetuação das espécies em

razão do aumento do número de animais procedentes de cativeiro legalizado, o que

diminui a pressão sobre os animais que se encontram no meio selvagem. Estes

instrumentos encontram-se previstos nas leis de proteção da fauna, a exemplo do

inciso III, do § 1o, do art. 29, da Lei 9605/98, classificados em três espécies: a

permissão, a licença, ou a autorização.

Além da permissividade do aproveitamento econômico da fauna silvestre, o

incentivo público direcionado à iniciativa privada, nessa disposição, deve ser

suficiente para compensar as maiores dificuldades encontradas para reprodução de

espécimes da fauna silvestre em cativeiro e desestimular o aproveitamento privado

ilegal. Ao mesmo tempo em que o Poder Público incentiva o surgimento de

criadouros legalizados, deve intensificar o combate à caça e ao comércio ilegal de

espécimes silvestres.

Como reflexo da gestão racional dos bens ambientais, que já tem sido

observada no Brasil, está cada vez mais acessível, por exemplo, alimentar-se de

carne de animais silvestres tais como capivara e jacaré, sem infração aos

dispositivos legais de proteção à fauna, ou adquirir um papagaio ou uma arara, para

fins de estimação, nascidos em criadouro legalizado. Suprindo-se a carência do

mercado com espécimes reproduzidos em cativeiro, é possível, com o trabalho de

fiscalização e combate à caça e ao tráfico, preservar efetivamente os espécimes

remanescentes da vida selvagem e todas as suas qualidades físicas e

comportamentais.

Enfim, diante do processo de evolução das espécies animais, em futuro não

muito distante, o papagaio que encontrarmos nos poleiros dos quintais (espécie que

hoje representa mais da metade dos animais silvestres possuídos irregularmente),

pertencerá a uma espécie doméstica, assim legalmente reconhecida, e será

reproduzida em quantidade e preços compatíveis com a expectativa da sociedade

quanto ao seu aproveitamento privado. Tal mudança, com efeito vislumbrada pela

gestão racional dos bens ambientais, constituirá a própria garantia de que a espécie

equivalente, no meio selvagem, será perpetuada junto às áreas verdes com todas

as sua características físicas e comportamentais originais.

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8. A CONDUTA DE MANTENÇA NA ESFERA ADMINISTRATIVA

Em que pese a mantença de animais silvestres não ser tipificada na Lei dos

Crimes Ambientais, conforme interpretação apresentada, verifica-se que o cidadão

que possui um animal silvestre em casa para o fim de estimação, ainda que bem

cuidado, porém sem autorização, encontra-se objetivamente em situação irregular.

A repressão da posse injusta, nessa circunstância deverá ser efetivada por via

administrativa, pois, na verdade, a responsabilização penal é o último mecanismo de

controle do Poder Público para coibir os atos prejudiciais à vida em sociedade,

sendo ela destinada às condutas mais gravosas tais como a caça proibida e o

comércio ilegal de animais silvestres que trazem incalculável prejuízo ao equilíbrio

ecológico.

O § 3o, do inciso VII, do art. 225, da Constituição Federal, estabelece que “as

condutas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou

jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de

reparar os danos causados”. Já o Decreto nº 3.179/99 (federal) regulamenta a

aplicação das sanções às infrações ambientais, na esfera administrativa, dispondo

em seu art. 1o: “toda a ação ou omissão, que viole as regras jurídicas de uso, gozo,

promoção, proteção e recuperação do meio ambiente é considerada infração

administrativa ambiental e será punida com as sanções do presente diploma legal,

sem prejuízo da aplicação de outras penalidades previstas na legislação”; na

seqüência, especifica as sanções às infrações administrativas que vão desde

advertência, até a reparação dos danos causados.

A sanção administrativa que pode coibir, com sucesso, a posse injusta do

animal silvestre, nos termos do inciso II, do art. 2o, do Decreto nº 3.179/99, é a

multa. Verifica-se bom exemplo desse mecanismo de combate à infração

administrativa ambiental aplicado com êxito pelos órgãos de fiscalização em relação

ao exercício de pesca profissional ou de pesca amadora sem as licenças

específicas para tais atividades.

Da mesma forma que o exercício da pesca, que é autorizada mediante

licença expedida pelo órgão público competente (Ibama), para o aproveitamento

privado de recursos da fauna ictiológica, a posse justa do animal silvestre, para o

propósito de estimação, é obtida mediante instrumento público permissivo, no caso

de animal oriundo de criadouro legalizado. Ainda na comparação com as regras

proibitivas e permissivas no que diz respeito à pesca, observa-se que o

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aproveitamento irregular da fauna ictiológica pode também constituir crime, como

por exemplo, a pesca em período proibido ou em lugares interditados por órgão

competente e a pesca mediante uso de explosivos ou substâncias tóxicas

(respectivamente arts. 34 e 35, da Lei 9.605/98).

No Estado de São Paulo, a Resolução nº 27/90, alterada pela Resolução nº

82/98, da Secretaria do Meio Ambiente, baixada com fundamento nos incisos VI e

VII, do art. 23 e no inciso VI, do art. 24, da Constituição Federal (que estabelece a

competência de cada ente da Federação) especificou os enquadramentos

administrativos para imposição do Auto de Infração Ambiental. Ocorre que dentre as

atividades irregulares listadas não foi prevista a mantença, manutenção ou posse

injusta de animal silvestre para o propósito de estimação, mesmo após a atualização

do seu texto, mediante Resolução SMA-82/98. Dos enquadramento existentes, o

que mais se aproxima é o da “utilização”, porém, conforme já amplamente discutido,

o aproveitamento privado na modalidade “mantença a propósito de estimação” não

caracteriza a utilização.

Portanto, a matéria necessita ser regulamentada, a exemplo do texto da

referida Resolução para que seja possível uma atuação preventiva e eficaz,

mediante fiscalização do aproveitamento privado do recurso ambiental fauna

silvestre, na modalidade estudada, reconhecida a falta de tipicidade no âmbito

criminal. E o Estado federado tem competência para tanto, ou seja, para legislar

sobre fauna, dentre outros bens ambientais, desde que evidentemente não se

estabeleçam conflitos com a legislação federal em vigor, conforme estabelecido na

própria Constituição Federal (art. 24, inciso VI).

9. CONCLUSÕES

Não se pode desconsiderar a realidade do exercício irregular da mantença de

animais silvestres a propósito de estimação. É preciso analisar as origens históricas

e estudar os aspectos culturais de tal conduta, buscando-se soluções legais que

viabilizem uma compatibilização entre o necessário equilíbrio ecológico do ambiente

e a natural aproximação entre o homem e espécimes da fauna silvestre.

O exemplo do papagaio é bem ilustrativo da questão da mantença de animal

silvestre a propósito de estimação no Brasil. A sociedade de uma forma geral insiste

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em manter no meio doméstico um animal silvestre, por suas qualidades sem similar,

apesar do caráter irregular de tal conduta quando desprovida do instrumento legal

permissivo; não obstante, impõe-se a necessidade de preservar os espécimes

selvagens remanescentes nas áreas protegidas. Como solução, surgem criadouros

devidamente legalizados, porém, ainda sem capacidade para atender à demanda,

em razão da pouca oferta e do preço elevado do seu produto.

Há que ser observado que a sanção deve ser sempre proporcional a

lesividade imposta ao meio ambiente, como conseqüência da irregular intervenção

humana no bem público especialmente protegido. Por isso a sanção administrativa

de multa é a mais coerente para a repressão da mantença irregular e os órgãos de

fiscalização devem possuir instrumentos para a sua imposição, sendo esta a melhor

solução para o problema apresentado.

Tal como ocorre na fiscalização dos atos de pesca, quem for surpreendido

em ato de mantença de animal silvestre a propósito de estimação, sem estar

legalmente licenciado, poderá ter a descrição de sua conduta lançada em Auto de

Infração Ambiental, recebendo sanção de multa com valor suficiente para

desestimular a conduta, ou seja, um valor maior do que o preço de um animal

silvestre similar oriundo de criadouro legalizado; isso, evidentemente, conforme

regulamentação da matéria na esfera administrativa.

Por outro lado, caso seja constatada a prática criminosa (por exemplo maus

tratos, comércio ilegal, utilização etc.), o procedimento deverá ser outro, qual seja, a

prisão em flagrante delito do infrator ou a elaboração do Termo Circunstanciado

(para os crimes com rito processual estabelecido na Lei nº 9.099/95), em razão das

disposições da Lei 9.605/98.

Finalmente, quanto a difícil questão da apreensão do animal, valem algumas

considerações. Se há ilegalidade na conduta do possuidor, na esfera penal ou

administrativa, o animal deve ser apreendido em face de dispositivo legal; porém, na

prática, a retirada do animal do meio doméstico em que já se encontra adaptado

pode representar a sua morte e, portanto, um prejuízo ambiental ainda maior do que

aquele que, em tese, já teria ocorrido em razão de sua ausência no meio natural.

Solução viável que se apresenta é a de designar como depositário fiel do

animal o próprio mantenedor, que até então vinha exercendo sobre ele a posse

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injusta, desde que verificadas condições e circunstâncias adequadas para tal

designação. Como a legislação específica não impõe restrição a essa forma de

depósito na esfera administrativa e enfrenta-se grande dificuldade quanto à

colocação de animais silvestres apreendidos em entidades especializadas, conclui-

se que ela é a melhor alternativa para o problema da destinação do espécime

apreendido em decorrência de infração administrativa do possuidor, quando

constatado que o animal está bem cuidado e não pertence à espécie ameaçada de

extinção.

No caso de apreensão em decorrência de prática de crime, porém, não será

possível o depósito, por falta de previsão legal, em vista do que dispõe

taxativamente o § 1o, do art. 25, da Lei 9605/98.

BIBLIOGRAFIA

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Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 1996. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro.

São Paulo: Saraiva, 2000. FREITAS, Wladmir Passos de, e outro. Crimes Contra a Natureza. São

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