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A CONSTITUIÇÃO LEXICAL DO UNIVERSO LINGUÍSTICO
DA CANA-DE-AÇÚCAR NO MARANHÃO
Luís Henrique Serra¹
1. Universidade Federal do Maranhão (UFMA) – Projeto
ALiMA/ PIBIC-CNPq/ [email protected]
RESUMO
Este estudo é uma análise do universo lexical da cana-de-açúcar do
Maranhão. Ocupa-se com os processos de formação dessa linguagem,
buscando investigar qual é o nível de relação que há entre o universo
especializado do micro e pequeno agricultor da cana-de-açúcar do
Maranhão e os outros universos especializados, bem como com o léxico
geral. Basea-se nos pressupostos teóricos discutidos em Alves (2007) e em
Barbosa (2005, 2007), sobre neônimos e as diferentes relações semióticas
entre os discursos especializados, sobretudo com relação aos processos de
terminologização stricto sensu, vulgarização e a metaterminologização. Na
linguagem especializada dos micro e pequenos agricultores do Maranhão,
foram observados inúmeros processos de formação de palavras próprios da
linguagem geral, como as derivações sufixais e as composições justapostas
e aglutinantes. Outro ponto observado foi a relação semiótica entre os
diferentes discursos etno-terminológicos das culturas agroextrativistas do
Maranhão, como a do arroz e da mandioca, o que possibilitou observar
uma estreita relação entre esses universos. Além do campo semiótico da
agricultura, foi possível observar relações semióticas com o léxico geral.
Com este estudo, entendemos que contribuímos com o pressuposto teórico
da Socioterminologia, que não distingue as unidades terminológicas das
unidades do léxico geral, como faz a corrente clássica da terminologia.
1. INTRODUÇÃO
O léxico é um dos mais importantes meios pelos quais
podemos observar a forma de pensamento de uma
comunidade, ou ainda, de um grupo social. Por meio do
léxico, é possível verificar quais são as principais bases do
pensamento dos falantes de uma língua, visto ser o léxico um
depósito infinito do conhecimento humano. A denominação é
o modo encontrado pelo homem para registrar o
conhecimentodo mundo, que lhe é indispensável.
Como sabemos, o léxico é resultado de inúmeras
experiências vividas pelo homem que são registradas em sua
memória por meio das unidades lexicais. Desse modo, o
léxico cumpre um importante papel na formação identitária e
social do homem, visto estar nele um conjunto inestimável de
traços da forma de ver o mundo dos falantes. É também
válido lembrar que um código linguístico é na verdade um
meio de identidade dos grupos sociais: os detentores do
código linguístico de um grupo são, automaticamente,
considerados participantes do grupo, dada a profunda relação
que há entre língua e identidade. Por esses e outros motivos
que estudar um código linguístico, especializado ou não, é
mergulhar em um mundo extremamente denso e cheio de
relações etno-sociais.
O universo da cana-de-açúcar, para o Maranhão, representa
grande parte da cultura, da economia e da identidade: a
cultura da planta, como nos assevera Trovão (2008), desenhou
grande parte da ocupação do Estado. Além de sua importância
histórica, a cana-de-açúcar é um dos produtos mais
consumidos pelo maranhense. Por meio do açúcar, da
rapadura e, principalmente, da cachaça, a cana-de-açúcar está
no cotidiano do povo maranhense, fazendo, desse modo, parte
de sua identidade.
Vale lembrar que por trás dos produtos da cana-de-açúcar
há um universo bastante amplo e organizado, que é o universo
laboral do micro e pequeno agricultor de cana-de-açúcar. Nas
lavouras de cana-de-açúcar do Maranhão que, na grande
maioria das vezes, são de subsistência, há inúmeras pessoas
que plantam e beneficiam a cana-de-açúcar, fazendo dessa
atividade, uma das principais formas de sustento de suas
famílias. Essas pessoas dedicam-se ao desenvolvimento da
cana nas lavouras e nos engenhos, para o consumo dos
comércios locais, seja em forma de rapadura, de cachaça e ou
dos conhecidos “roletes de cana”1. Esses plantadores, em sua
atividade diária, utilizam inúmeros elementos linguísticos
próprios; elementos que só quem está inserido no contexto de
produção da cana-de-açúcar do Maranhão compreende seu
sentido. O emprego contínuo dessas unidades linguísticas nos
1Rolete de cana é uma parte do colmo da cana-de-açúcar que é consumido
nas lavouras pelos cortadores de cana, na hora do descanso.
discursos especializado (ou explicativo) dos personagens
dessa cultura forma um texto especializado, caracterizando,
dessa forma, um tecnolêto rico e cheio de elementos desse
universo.
Neste trabalho, à luz dos estudos sobre o termo e seu
caráter linguístico e semiótico, analisaremos o léxico do
universo da cana-de-açúcar do Maranhão. Com dados reais da
fala de plantadores de cana-de-açúcar de três diferentes
municípios maranhenses, investigaremos quais os processos
de formação de palavras são mais comuns nessa linguagem
especializada, e ainda, investigaremos as relações semióticas
existentes nesse universo.
2. A FORMAÇÃO TERMINOLÓGICA E
A TRANSDICIPLINARIDADES DAS
UNIDADES LEXICAS
O português brasileiro tem em sua constituição grande
parte das palavras derivadas do latim, e de outros tantos
idiomas de povos que estiveram no Brasil durante sua
formação, além de um grande número de palavras formadas a
partir da variante do português que se formou aqui. Quanto
aos processos de criação lexical, Basílio (2004, p 26) assegura
que “são dois os processos mais gerais de formação de
palavra: derivação e composição.”
Segundo essa autora, a derivação se caracteriza pelo
acréscimo de um afixo a uma base para a formação de
palavra. A base é, geralmente, um elemento livre, que
contribui de forma independente para o enunciado, como os
nomes e os verbos; o afixo, por sua vez, é o elemento
linguístico, geralmente preso, que acrescido a uma forma livre
acrescenta-lhe algum sentido novo ou uma informação
gramatical. (cf. BASÍLIO, 2004)
A composição, ainda segundo Basílio (idem. cit), é o
processo pelo qual uma base se junta à outra para a formação
de uma palavra, como em guarda-chuva, guarda-roupa e etc.
Os dois processos têm funções, a princípio, diferenciadas:
a derivação contempla o plano gramatical das palavras,
acrescentando-lhes significados novos, como o sufixo –a, em
menina, que acrescenta a ideia gênero ao substantivo; a
composição, por sua vez, está mais ligada ao processo de
categorização particular, como em azul-turquesa, em que o
segundo elemento categoriza o primeiro.
Alves (2007) observa que nas linguagens especializadas,
esses mesmos processos podem ser vistos de forma
abundante; a autora afirma ainda que no âmbito das
especialidades é onde mais se observa as criações léxicas.
Segundo a autora:
(...) a neologia lexical é mais
abundante nas línguas técnicas do que na
língua geral. Esse fato não é fortuito:
conceitos técnicos e científicos não
cessam de serem criados e têm
necessidade de serem nomeados.
(ALVES, 2007, p 88-89)
Alves (2007), além dos processos já citados, elenca outros
que apresentam certa regularidade no português, como o (i)
empréstimo de estrangeirismos e o decalque; (ii) a truncação;
(iii) a palavra-valise; (iv) a reduplicação e por fim (v) a
derivação imprópria. (cf. ALVES, 2007).
Além dos processos de formação elencados, a Etno-
terminologia também presta uma importante contribuição para
os estudos de formação terminológica. Barbosa (2005) lembra
que uma unidade linguística tem seu caráter terminológico
acionado dentro de um contexto discursivo específico, e que
por isso não se pode dizer que há diferenças, nem no conteúdo
e nem na forma, entre os signos linguísticos das linguagens
especializadas e os da língua geral.
Barbosa (idem. cit), questionando a proposta de
classificação de formação terminológica proposta pela norma
ISO, e propõe outra tipologia dos processos de formação
terminológica. Para ela, os conceitos dos processos de
formação terminológica definidos pela ISO não dão conta da
realidade das unidades terminológicas, sobretudo as unidades
dos discursos etno-literários isto é, discursos que apresentam
baixo teor de tecnicidade ou formalização, mas que
apresentam unidades lexicais próprio de um universo
particular, ou seja, termos.
Para a autora, há quatro processos que atuam na formação
das unidades lexicais dos discursos etno-literários: a
vocabularização, a terminologização stricto sensu e latu senso
e a metaterminologização.
Barbosa (2007) entende que o processo pelo qual uma
unidade linguística do léxico especializado transforma-se em
um vocábulo é chamado de vocabularização, banalização,
vulgarização ou ainda popularização. Para a autora,
diferentemente do que entende a Norma ISO,
terminologização stricto sensu é o processo inverso da
vocabulzarição, isto é, o processo pelo qual um vocábulo
torna-se em termo.
Para a autora, metaterminologização é o processo pelo qual
um termo passa de um discurso especializado para outro,
podendo sofrer ou não mudanças semânticas. Por fim, a
autora chama de terminologização strictu sensu a criação de
um elemento linguístico inédito, não criado a partir de
relações interdiscursivas, mas uma criação inédita e própria de
um universo especializado. Nesse último, diferentemente dos
outros processos, o ponto de partida da unidade terminológica
é um conceito e não outros universos linguísticos ou
discursivos.
Barbosa entende que essa classificação corrobora a ideia de
que uma unidade lexical não é um termo ou um vocábulo em
si mesmo, mas exerce a função de termo ou de vocábulo.
Quem vai determinar o estatuto dessa unidade lexical são as
forças discursivas e pragmáticas que atuam sobre os discursos
e os textos que circulam em nossa sociedade.
3. A CONSTITUIÇÃO LEXICAL E AS
RELAÇÕES SEMIÓTICAS DO UNIVERSO
LINGUÍSTICO DA CANA-DE-AÇÚCAR NO
MARANHÃO
Como vimos, são muitos os processos que operam na
produção lexical em língua portuguesa: a composição e a
prefixação são os principais. De olho no pressuposto teórico
da Socioterminologia – linha de estudo que entende que o
termo não é um termo em si, mas recebe esse estatuto a partir
das relações discursivas, e que por isso ele deve ser
considerado uma unidade linguística como qualquer outra
unidade do léxico geral e que sofre os mesmos processos,
tanto no plano do conteúdo quanto no plano da forma, que as
outras unidades do léxico sofrem – buscamos analisar os
processos de formação de palavras do universo da cana-de-
açúcar do Maranhão, além de observarmos as relações
semióticas do discurso etno-literário do agricultor desse
universo, baseados na teoria das relações semânticas e
discursivas entre os diferentes universos discursivos.
O corpus analisado faz parte do banco de dados da cana-
de-açúcar do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão, da
Universidade Federal do Maranhão, coletados em quatro
diferentes localidades do estado do Maranhão: São Bento,
Buriti, Rosário e Central do Maranhão. Os dados foram
coletados por meio de aplicações do questionário semântico-
lexical da cana-de-açúcar que contém 55 questões referentes a
cinco campos conceituais desse universo: plantação, colheita,
produção, armazenamento e comercialização. A aplicação do
questionário foi feita a micro e pequenos agricultores da cana-
de-açúcar. O banco conta com 120 termos referentes ao
universo laboral da cana-de-açúcar no Estado. Esses dados
farão parte de um vocabulário eletrônico da cana-de-açúcar do
Maranhão, ainda em construção.
É oportuno, antes, indicar que os dados apresentados aqui
são apenas uma amostra representativa dos elementos
linguísticos desse universo.
3.1. A CONSTITUIÇÃO TERMINOLÓGICA
Nos dados analisados por nós, alguns processos de
formação lexical próprios da linguagem geral podem ser
vistos nessa linguagem especializada, como a derivação
sufixal, que é bastante recorrente nesse tecnoleto: conforme
podemos observar nos termos carreiro (carro + eiro), que é a
pessoa que trabalha no transporte da cana-de-açúcar da roça
até o engenho, e em foguista (fogo + ista), que é a pessoa que
trabalha no controle do fogo do alambique. Além desses
termos, também é possível observar o mesmo processo em:
bagaceiro (bagac + eiro) – pessoa responsável pelo transporte
do bagaço
engenhoca (engenh + oca) – engenho de pequeno porte;
enxadeco(enxad+ eco) – enxada de pequeno porte;
lambiqueiro (lambiq + eiro) – pessoa responsável pela
produção de cachaça;
sementeira – (sement + eira) – roça plantada para produzir
sementes de cana-de-açúcar
Como podemos observar, os sufixos empregados nessa
linguagem são os mesmos empregados na linguagem geral,
como os sufixos que denotam profissionalização (- eiro(a),
- ista) e os sufixos que denotam diminuição ( –nhoca; –
eco).
Outro processo bastante regular nesse tecnoleto é o de
composição, que pode ser por aglutinação, como em
aguardente (água + ardente) e por justaposição, como em
cana-de-açúcar (cana+de+açúcar). Observa-se que grande
parte dos termos desse tecnoleto é formada pelo último
processo:
cana cayana (cana+ cayana) – tipo de cana;
casa do engenho (casa+do+engenho) – local onde a
cachaça e a rapadura são beneficiados;
caldo de cana (caldo + de+ cana) – suco extraído da
cana-de-açúcar;
cana-ferro (cana+ferro) – tipo de cana
Outro processo amplamente observado é o apagamento
sintagmático. Os termos constituintes dos sintagmas são
apagados, como em;
casa do engenho>engenho – o mesmo que engenho;
corte da cana>corte – período de colheita da cana
rato de canavial>rato – roedor da cana
caldo de cana>caldo – suco da cana
Como podemos observar, no nível da forma, são muitos os
processos que atuam sobre as unidades terminológicas para
construir o tecnoleto do micro e pequeno agricultor da cana-
de-açúcar. Como vemos, os mesmos constituintes lexicais
próprios das unidades da linguagem geral são encontrados
nessa linguagem especializada, como os termos formados pela
sufixação e pela composição por justaposição e ainda pela
redução sintagmática.
3.2 RELAÇÕES SEMIÓTICAS E DISCURSIVAS
Como um de nossos objetivos, é válido, agora, observar as
relações semióticas e discursivas desse universo
especializado. O processo de terminologização lato sensu é
bastante observado: no corpus analisado é possível notar um
considerado número de vocábulos que exercem a função de
termo, com um alto grau de especialização, como bandeira,
que designa a parte superior da cana, que tem a aparência de
uma bandeira. Segundo os próprios plantadores, essa
denominação nasce da semelhança entre o objeto de pano que
simboliza alguém ou um grupo e essa parte da cana-de-
açúcar, pois ambas tremulam na presença do vento.
Semelhantemente, pé-de-galinha que, nesse universo
discursivo designa um modo de arranjo da roça de cana,
apresenta-se como um termo: o canavial é arrumado de duas
maneiras, uma em que os pés ficam em fila e a outra é a que
os pés ficam plantados de forma aleatória. Quando plantados
de forma aleatória, a plantação é chamada de pé-de-galinha
ou pé-de-caldeirão, graças à semelhança entre a forma do pé
da ave doméstica e a forma de organização da plantação.
Além dessas duas unidades lexicais, o fenômeno de
terminologização strictu sensu também pode ser observado.
cabeça – o primeiro litro de cachaça que sai do alambique
linha – forma de organização do canavial,quando os pés são
plantados em fileiras;
moita – conjunto de canas-de-açúcar
olho – semente de cana-de-açúcar
rato – roedor da raiz da cana
serpentina – parte do alambique por onde o vapor do caldo da
cana passa e transforma-se em cachaça.
Tijolo – Espécie de rapadura
A vocabularização (vulgarização) é bastante frequente
nesse discurso:
cana-de-açúcar – a planta da cana-de-açúcar
rapadura– doce de cana
caldo de cana – suco da cana
aguardente– liquido alcoólico
cachaça– o mesmo que aguardente
A metaterminologização também é um processo produtivo
nesse universo discursivo, como notamos em soca –
reflorescência da cana-de-açúcar, que tem o mesmo sentido
no universo do arroz (cf. ROCHA, 2006), e olho que no
universo da mandioca, designa pequenos brotos que nascem
no tronco da mandioca, que darão origem a um novo galho
(cf. SERRA, 2010), mesma designação dada ao broto que
nasce no colmo da cana-de-açúcar e que dá origem a um novo
pé de cana-de-açúcar.
Notemos também a existência da terminologização stricto
sensu em alambicar, lambique, lambiqueiro, que designam o
ato de preparar a cachaça, o local em que ela é preparada e a
pessoa que prepara a cachaça, respectivamente. Tais unidades
nos parecem elementos inéditos, não advindos de relações
com outros campos discursivos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como podemos observar ao longo deste trabalho, o
discurso especializado do micro e pequeno agricultor da cana-
de-açúcar do Maranhão apresenta os mesmos constituintes
lexicais e os mesmos processos de formação de palavras que o
léxico geral, o que vem reafirmar as ideias da
Socioterminologia, que defendem que o léxico das linguagens
especializadas é constituído pelas unidades lexicais da
linguagem geral, colocando a prova, desse modo, os
pressupostos teóricos da Teoria Geral do Termo e
colaborando com os pressupostos teóricos da
Socioterminologia. Este trabalho também contribui com as
discussões feitas no âmbito da Etno-terminlogia, que estuda as
unidades lexicais do universo discursivos etno-literários, pois
como vimos, muitas unidades do léxico geral, graças a efeitos
discursivos, exercem função de termo, no universo da cana-
de-açúcar. Analisar os constituintes lexicais dessa linguagem
é importante porque revela as particularidades dos atores
desse universo, mostrando a diversidade própria das
linguagens naturais, assim como é diverso o universo
conceitual do homem.
REFERÊNCIA
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