artigo de literatura

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Análise do conto: apequena vendedora de fósforos de Hans Christian Andersen BARBOZA, Jaqueline Lima– Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) 1 MEURER, Indianara dos Santos – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) 2 RESUMO: O presente artigo, realizado à disciplina de Literatura Infantil, refere-se a análise teórica do conto A pequena vendedora de fósforos, do autor Hans Christian Andersen (1805-1875), que fora um escritor dinamarquês conhecido principalmente por seus contos infantis.Suas obras apresentam personagens marginalizados, humilhados e expostos às dificuldades da época, de modo a reproduzir a sociedade e, segundo o próprio autor, sua própria vivência.Deste modo, as temáticas: amor e amizade são constantes em seus contos, mas geralmente, suas obras retomam temas como pobreza, abandono, dificuldades, humilhação, injustiças sociais e o egoísmo. A pequena vendedora de fósforosfoipublicada pela primeira vez em 1845 ecaracteriza-se por fugir do idealismo dos finais felizes dos quais os leitores estão habituados. Retrata a realidade de uma pequena menina com condições precárias de vida e que por falta de condições materiais tem um final trágico nas vésperas de ano novo, com um inverno rigoroso. O autor descreve a história de forma a comover os leitores e aproximá-los desse enredo no qual a protagonista tem um desfecho nada convencional para contos de fadas. Por fim, acreditamos que oconto, como opção metodológica nas escolas, auxilia para que as crianças pensem e verbalizem, substituindosua agitação por perguntas, reflexões e pensamento, contribuindo para o ensino da literatura e para a formação de leitores. 1 Acadêmica do 3º ano do curso de Licenciatura em Pedagogia matutino, do Campus de Cascavel, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. E-mail: [email protected] 2 Acadêmica do 3º ano do curso de Licenciatura em Pedagogia matutino, do Campus de Cascavel, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. E-mail: [email protected]

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Análise do conto: apequena vendedora de fósforos de Hans Christian Andersen

BARBOZA, Jaqueline Lima– Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)1

MEURER, Indianara dos Santos – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)2

RESUMO: O presente artigo, realizado à disciplina de Literatura Infantil, refere-se a análise teórica do conto A pequena vendedora de fósforos, do autor Hans Christian Andersen (1805-1875), que fora um escritor dinamarquês conhecido principalmente por seus contos infantis.Suas obras apresentam personagens marginalizados, humilhados e expostos às dificuldades da época, de modo a reproduzir a sociedade e, segundo o próprio autor, sua própria vivência.Deste modo, as temáticas: amor e amizade são constantes em seus contos, mas geralmente, suas obras retomam temas como pobreza, abandono, dificuldades, humilhação, injustiças sociais e o egoísmo. A pequena vendedora de fósforosfoipublicada pela primeira vez em 1845 ecaracteriza-se por fugir do idealismo dos finais felizes dos quais os leitores estão habituados. Retrata a realidade de uma pequena menina com condições precárias de vida e que por falta de condições materiais tem um final trágico nas vésperas de ano novo, com um inverno rigoroso. O autor descreve a história de forma a comover os leitores e aproximá-los desse enredo no qual a protagonista tem um desfecho nada convencional para contos de fadas. Por fim, acreditamos que oconto, como opção metodológica nas escolas, auxilia para que as crianças pensem e verbalizem, substituindosua agitação por perguntas, reflexões e pensamento, contribuindo para o ensino da literatura e para a formação de leitores.

PALAVRAS-CHAVE:Hans Christian Andersen; conto de fadas; literatura infantil; narrativas exemplares.

RESUMEN: Este artículo, realizado enla disciplina de Literatura Infantil, se refiere al análisis teórico del cuento La pequeña vendedora de cerillas, del autor Hans Christian Andersen (1805-1875), que fue un escritor danés conocido principalmente por sus cuentos infantiles. Sus obras presentan personajes marginados, humillados y expuestos a las dificultades de la época, de modo para reproducir la sociedad y, de acuerdo con el autor, su propia experiencia. Por lo tanto, los temas: el amor y la amistad son constantes en sus cuentos, pero por lo general, sus obras reanudan temas como la pobreza, el abandono, dificultades, humillación, injusticias sociales y el egoísmo. La pequeña vendedora de cerillas ha sido publicada por primera vez en 1845 y se caracteriza por escapar del idealismo de los finales felices de que los lectores están acostumbrados. Retrata la realidad de una pequeña chica con malas condiciones de vida y que por falta de condiciones materiales tiene un final trágico en la víspera del año nuevo, con un invierno áspero. El autor describela historia con el fin de impresionar a los lectores y acercarlos de esa trama, que el protagonista tiene un resultado poco convencional a cuentos de hadas. Por último, creemos que el cuento, como una opción metodológica en las escuelas, ayuda los niños a pensar y verbalizar, en sustitución de su agitación para preguntas, reflexiones y el pensamiento, contribuyendo a la enseñanza de la literatura y la formación de lectores.

1 Acadêmica do 3º ano do curso de Licenciatura em Pedagogia matutino, do Campus de Cascavel, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. E-mail: [email protected] Acadêmica do 3º ano do curso de Licenciatura em Pedagogia matutino, do Campus de Cascavel, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. E-mail: [email protected]

PALABRAS-CLAVE: Hans Christian Andersen; cuento de hadas; literatura infantil; narrtivas ejemplares.

INTRODUÇÃO

O conto A pequena vendedora de fósforos nos faz refletir imensamente sobre o seu teor,

sobretudo por romper com a visão idealista de final feliz. O autor nos impulsiona a ver além de uma

história fictícia, para alcançarmos um novo patamar no que se refere aos contos de fadas, sobretudo

por não haver a presença de elementos como fadas, bruxas malvadas, princesas indefesas como

notavelmente nos deparamos na maioria dos contos.

A obra retrata a trágica história de uma pequena menina que morre de frio na véspera do

ano novo, deixando perplexos os leitores, que parecem presenciar a história, exatamente pela forma

empática com que o autor descreve os fatos.

A análise do conto se torna indispensável na formação de futuras pedagogas,

principalmente porque corrobora com o melhor entendimento da sociedade na qual estamos

inseridos.

Todavia, segundo Faria (2010) experienciamos atualmente o frequente desinteresse pela

leitura, principalmente pela literatura, sendo que as escolas em sua maioria banalizam o ensino de

literatura, seja solicitando a memorização de autores erespectivas obras, seja substituindo o livro

literário pelo paradidático ou mesmo didático. Portanto, o conto de fadas é utilizado pelas escolas

há muito tempo como instrumento pedagógico, porém:

[...] na maioria das vezes, ele é preterido por outras formas de narrativa, devido à falta de atenção e importância que a escola dá para a questão lúdica e de criatividade da criança. Almejando uma educação padronizadora, a escola engessa o poder imaginativo das crianças, trabalhando com histórias mais curtas e cheias de ilustrações, com a desculpa de que as crianças hoje em dia não têm mais paciência para histórias mais longas e profundas (SIEWERT, p. 7-8).

Acreditamos com isso, no papel da escola como um espaçopara a socialização de

conhecimento e cultura, sendo que o professor é por vezes o único mediador dessa tarefa. Tendo em

vista essa função mediadora, torna-se imprescindível uma reflexão sobre a prática pedagógica,

focalizando o ensino da literatura,para torná-la mais atraenteaos alunos.

SOBRE O AUTOR

O autor Hans Christian Andersen, nasceu em 2 de abril de 1805, na cidade de Odense,

município da Dinamarca e faleceu em 4 de agosto de 1875, em Copenhague e segundo a autora

Véra Beatriz Medeiros Bertol de Oliveira(2009), Andersen considerado o Pai da Literatura Infantil

e autor de cento e cinquenta e seis contos:

[...] foi o responsável não apenas pelo novo sentido dado aos desejos e às fantasias contidas nas narrativas, mas também pelo novo olhar lançado sobre as crianças. Estas lograram o lugar privilegiado de ouvintes ou leitores de contos, nos quais figuravam como personagens cujas experiências refletiam as suas (p. 63).

Segundo Oliveira (2009), Andersen veio de uma família muito pobre, seu pai – Hans

Andersen – ganhava a vida a consertar sapatos e mesmo sendo um homem de pouca instrução,

despertara a criatividade e o gosto pela leitura e literatura em Andersen; e sua mãe – Anne Marie

Andersdatter –, uma lavadeira, ensinara o temor a Deus e uma religiosidade quase ingênua, na qual

Andersen carregaria por toda a vida e para a escrita de suas histórias.

Aos onze anos, Andersen perdera o pai, é obrigado a abandonar a escola e vê-se obrigado a

trabalhar. Sendo assim: “As desgraças de uma infância pobre e as dificuldades de aceitação em uma

sociedade dividida em classes ajudaram-no a conviver com as vicissitudes que a vida lhe

apresentaria” (OLIVEIRA, 2009, p. 63).

Andersen fez audições para cantor e ator de ópera, porém, o máximo que conseguira, foi

um papel de figurante e uma vaga na escola de canto. À vista disso, Jonas Collin (alto funcionário

do governo dinamarquês e diretor do Teatro Real de Copenhague) compadecido pela má sorte do

garoto, torna-se seu tutor e matricula-o na escola Slagelse – DK; e a partir daí, produziu obras como

poemas, peças de teatro e livros. Em1835 lança sua primeira coletânea e em 1844 a segunda. “[...]

antes, preferia ser visto e valorizado como um poeta. No entanto, foi justamente como escritor

dedicado à literatura infantil que ele foi reconhecido e aclamado pelas gerações que o

sucederam”(OLIVEIRA, 2009, p. 64).

Desta forma, Coelho (2003) esquematiza os ideais do romantismo apropriados às obras

andersenianas, que é: reduzir as diferenças sociais; valorizar o indivíduo pelas suas qualidades e não

pelas posses; conhecer e aceitar o Eu; conhecer a efemeridade das coisas naturais às artificiais;

estimular a resignação aceitando as provações; satirizar o homem que tenta ganhar vantagem;

criticar a arrogância, a ambição e a maldade contra os mais fracos e; valorizar as virtudes dos

homens (pureza, modéstia, religiosidade, submissão, etc.). Portanto:

[...] as obras do autor apontavam também características da escola Realista que ainda não era cogitada na época. Como o movimento ainda não havia surgido, podemos dizer que algumas obras andersenianas anteciparam suas características. Neste sentido ousou no estilo e avançou no tempo (FARIA, 2010, p. 96).

Coelho (1991) destaca Andersen como legítimo representante do ideário romântico-cristão

e, desta forma, muitas de suas histórias são realistas, situam-se no mundo real, com personagens

humanos, em luta com as adversidades da vida e, em geral, vencidos por elas, mas vitoriosos na

conquista do céu. Situa-se, portanto, nas narrativas exemplares, que sendo de cunho satírico ou

realistaterminam em geral com o fracasso da personagem central, diferentemente das narrativas de

cunho idealista, que terminam com um “final feliz”.

Portanto, a vida terrena é vista para Andersen como: “[...] passagem para o céu ou para o

inferno; é o “vale de lágrimas” onde o “homem da queda” deve pagar sua culpa... Daí a valorização

das narrativas exemplares, onde a Virtude é exaltada e o Vício ou Pecado, condenados” (COELHO,

1991, p. 89).

Apesar de ter escrito romances adultos, livros de poesia e relatos de viagens, foram os

contos infantis que o tornaram famoso. Entre 1835 e 1842, Andersen lançou seis volumes de

"Contos" para crianças. E continuou escrevendo contos infantis até 1872. Graças a sua contribuição

para a literatura, infância e adolescência, a data de seu nascimento, 2 de abril, é hoje o dia

Internacional do Livro Infanto-Juvenil.

Sendo assim, destacam-se entre os contos de Andersen: o abeto;o patinho feio;a caixinha

de surpresas;os sapatinhos vermelhos;Nicolau pequeno e Nicolau grande;ovalente soldadinho de

chumbo; a pequena sereia; a roupa nova do rei; a princesa e a ervilha; a pequena vendedora de

fósforos; a polegarzinha; o fato novo do imperador; o rouxinol; a pastora e o limpa-chaminés; a

família feliz; o duende da mercearia; dança, dança, bonequinha; uma rosa da campa de Homero; o

trigo Mourisco, dentre outros.

Segundo Faria (2010), DenlillePigemedSvovlstikkerneou A pequena vendedora de fósforos

é um conto clássico escrito e publicado pela primeira vez em dezembro de 1845em umfascículo de

contos de fadas- na qual mais quatro histórias de sua autoria foram incluídas: a casa velha, uma

gota de água, a história de uma mãe e o colarinho. Depois em março de 1848, no livro NyeEventyr.

AndetBind. AndenSamling. Dois anos depois era parte integrante do livro Eventyre, em 1863, do

livro EventyrogHistorien. AndetBind.

A história da menina dos fósforos surgiu após Andersen receberuma carta contendo três

gravuras do artista dinamarquês Johan Thomas Lundbye (1818-1848). Nessa carta, o editor do

HerrFlinch’sAlmanack pede a Andersen que escolha uma das gravuras e escreva um contosobre ela,

para ser publicado em seu DanskFolkekalendar.A gravura escolhida foi a que trazia estampada uma

menininha pobre vendendo fósforos.

ANÁLISE DO CONTO

Para Faria (2010), Hans ChristianAndersen (1805-1875), escritor dinamarquês, usou de sua

genialidade e criou suas próprias histórias,muitas delas inspiradas em sua própria vida. “Embora os

contos clássicos sejam criticados por conterem exemplaridade,permanecem no ideário humano

justamente por abordarem valores que se conservam na Sociedade” (FARIA, 2010, p. 68).

Ainda segundo Faria (2010), nas obras predominantemente de valores tradicionais,

encontram-se características que seguem os ideais e costumes do período que se estendeu até o

século XIX.O conto A pequena vendedora de fósforos (1845),por se tratar de umaobra escrita

durante o século XIX, traz inúmeras características do que foi determinado comovalores

tradicionais. Sendo assim, o Romantismo como um movimento reacionário ao Classicismo:

[...] passa a renegar a razão e privilegiar a vontade divina, atribuindo à obra um tom de resignação exacerbado. Assim, a idealização do infinito ligado à Providência permitia momentos nostálgicos, remetendo o indivíduo para o saudosismo. Essas características oriundas do Romantismo evidenciam-se no conto A pequena vendedora de fósforos (1845) quando a garota deixa transparecer o sentimento que cultivava pela avó (FARIA, 2010, p. 104).

Em uma leitura sem intencionalidade do conto, podemos sentir certa desilusão em nos

deparar com um final tão trágico, sem a perspectiva de que apareça alguma fada madrinha para

salvar a pequena menina, assim como na maioria dos contos de fadas. Essa característica em

aproximar a história com a realidade é marcante nas obras de Andersen. Ao analisarmos o conto,

mesmo que minimamente, temos a clareza de que Andersen buscou por meio desta obra, como em

algumas outras, oferecer novos modelos comportamentais para sociedade, referindo aos confrontos

entre aqueles que detêm o poder econômico e aqueles que são oprimidos, em uma sociedade

calcada na injustiça.

Esse conto nos remete a triste realidade de uma menina muito pobre que precisa enfrentar

um inverno rigoroso para vender fósforos, para retornar para casa com algum dinheiro, pelo qual

esperava seu pai. A história é narrada pelo autor com uma riqueza de detalhes impressionante,

principalmente porque busca provocar uma comoção no leitor ao idear a situação em que menina se

encontrava. “O desenrolar da história nos oferece o panorama de um mundo triste e real, sem

chances de se constituir em uma aventura maravilhosa” (OLIVEIRA, 2009, p.107).

A habilidade com que o autor discorre sobre a história conduz os leitores a aproximar o

drama vivido pela menina com aquilo que acontece na realidade. O espaço em que ocorre a história

é de hostil, principalmente porque a menina aguarda em uma situação caótica sua morte chegar,

justamente porque não há ninguém capaz de tirá-la daquela situação de extrema penúria.Andersen

retratou em sua obra a opressão que recaía sobre as pessoas menos favorecidas economicamente, a

condição de miséria da menina é detalhada no seguinte trecho: “pobre criaturinha, parecia a imagem da

miséria a se arrastar, faminta e tiritando de frio”(ANDERSEN, p. 204-205).

A personagem sendo uma criança passa visivelmente por um grande descaso social e

familiar, passando necessidades tanto físicas, mas também carência de afeto e de apoio familiar.

Além de ser muito pequena e ter que vender os fósforos para ajudar a família, sentia o medo de

regressar para casa sem dinheiro, pois estaria sujeita a severa punição, com se observa a seguir,

“não tinha coragem de regressar para casa, pois não vendera fósforo nenhum e não tinha nenhum

níquel para levar. Seu pai com certeza iria surrá-la [...]” (ANDERSEN, p.205). A história passa na

véspera de ano novo em que as famílias estão reunidas para um momento de comemoração,

enquanto a pequena vendedora de fósforos está sozinha nas ruas, de pés descalços e flocos de neve

caindo sobre sua cabeça, também estava faminta e conseguia apenas imaginar nas delícias que as

famílias por onde ela passava haviam preparado.

Para Oliveira: “[...] o árduo percurso da menina ao longo da narrativa reflete o paradigma

social e familiar de muitas crianças, inclusive nos dias de hoje, as quais, assim como ela, precisam

sair à rua e nela permanecer até conseguir levar dinheiro para casa” (OLIVEIRA, 2009, p. 108).

Desta forma:

A narrativa A pequena vendedora de fósforos mostra ao leitor a brutal relação de desigualdade entre as crianças e os adultos, tendo em vista a condição de miséria e abandono imposta à personagem menina, bem como a exploração a que é submetida por meio do trabalho. A venda de fósforos pela menina poderia ser comparada à venda de produtos pelas crianças nos semáforos do Brasil afora, conferindo à história um tom real, e por isso tornando-a atemporal (OLIVEIRA, 2009, p. 108).

Tentando aquecer-se, a menina começa a riscar os fósforos, mas: “[...] delirante pela fome

e beirando à morte, passa, então, a ver imagens do que necessitava naquele momento (comida,

calor, clima acolhedor proporcionado pela presença da avó)” (FARIA,2010, p. 102).O momento

mais fantasioso do conto e distante do real é quando a garota imagina ver o ganso correndo em sua

direção, provavelmente a fome era tanta que alimentou a ilusão da pobre menina, o que durou um

curto período de tempo, conforme nota-se no trecho a seguir:

[...] bem ali, podia-se ver um ganso assado fumegante, recheado com maças e ameixas. E, o que foi ainda mais espantoso, o ganso saltou do prato e saiu gingando pelo piso, com uma faca de trinchar e um garfo ainda espetado nas costas. Rumou diretamente para a pobre menininha. Mas naquele instante o fósforo apagou e só sobrou a parede úmida e fria diante dela (ANDERSEN, p.206).

A orientação ético-religiosa Andersen demonstrada no final do conto quando a menina

mesmo após acender todos os fósforos morre de frio, e faz a passagem para a glória juntamente com

a sua avó onde seus sofrimentos se esgotam, como consta no seguinte trecho, “[...] juntas as duas

voaram em esplendor e alegria, cada vez mais alto, acima da terra, para onde não há frio, nem fome,

nem dor. Estavam com Deus” (ANDERSEN, p.205). Fica evidente a representação do mundo

religioso cristão nas palavras do autor, em que as adversidades da vida são resolvidas, e a menina se

torna vitoriosa no céu acompanhada pela avó.

O auxílio para menina não vem nem do mundo real nem da fantasia, pois o final da

protagonista da história é trágico, cessando assim as expectativas dos leitores de que alguém a

salvaria da morte, não há nenhuma fada madrinha salvadora. O autor finaliza o conto com uma

descrição bastante comovente, que intenta nos a levar a reflexão de um momento que retrata a

realidade do período em que a obra foi escrita em relação ao tratamento com as crianças, retratando

total descaso com elas. O trecho final é o seguinte:

Na madrugada seguinte, a menina jazia enroscada entre as duas cassa, com as faces rosadas e um sorriso nos lábios. Morrera congelada na última noite do ano velho. O ano novo despontou sobre o corpo congelado da menina, que ainda segurava fósforos na mão, um molho já usado (ANDERSEN, p.208).

Outro elemento importante para ressaltarmos, é o papelda morte nesta obra, como forma de

alcançar o infinito, libertando-a dos sofrimentos da vida terrena. Faria (2010) acredita também que

o conto está fundamentado na tríade do Romantismo, infinito, homem e natureza. O infinito

caracteriza-se pelo sofrimento, atingindo a morte e, consequentemente, a libertação da alma, o

infinito. O homem, mostra o sujeito apegado aos interesses humanos e ainda não liberto do mundo

terreno, representado pelas visões e delírios da menina no conto. Por fim, a natureza, que “ocupa

posição inferior ao homem” e identifica-se com o conto, mediante a neve e o inverno rigoroso, que

possibilitam a garota, por meio da morte, alcançar o infinito.

O conto possui alguns arquétipos, que Coelho (2003) define como representações das

grandes forças ou impulsos da alma humana. Desta forma possui: o instinto de sobrevivência, que

se evidencia em sua tentativa em vender os fósforos para conseguir dinheiro para sua família e

depois, quando tenta aquecer-se. O medo, de que seu pai a surrasse; os desejos, de aquecer-se, de

alimentar-se e de sentar-se sob uma árvore de Natal. O respeito ou temor ao Pai (o Masculino, o

Animus) e a fé (necessidade de crer num Ser Superior ou num Absoluto),tendo a esperança que em

outro mundo pudesse ser feliz.

Pode-se analisar a partirdo texto de Coelho (1991) que o conto estudado resultou de uma

necessidade básica do ser humano, o estômago, e desta necessidade resulta as demais situações

envolvendo a personagem principal, sendo que a narrativa desenvolve-se em torno de duas

situações básicas: “Situações detrabalho que visam assegurar a sobrevivência dos personagens, isto

é, superar a miséria em que vivem; [...]” (COELHO, 1991, p. 96), bem como situações de

exploração, evidenciando-se o trabalho infantil.

A obra analisada é atemporal, contêm características de diferentes movimentos literários e

há casos, segundo Coelho (1991), em que o espaço (cenário, paisagem, ambiente) onde se desenrola

a ação intervém na sequência dos acontecimentos ou cria a atmosfera propícia à esfera dramática.

No conto A pequena vendedora de fósforos, a situação problemática decorre, pois existe a

influência do clima frio, de um rigoroso inverno.

Segundo Oliveira (2009), o desenrolar da história oferece-nos um panorama de um mundo

triste e real, sem chances de se constituir em uma aventura maravilhosa. Isso pode ser observado no

trecho a seguir: “Fazia um frio terrível. A neve caía e dali a pouco ficaria escuro. [...] Nas ruas frias,

escuras, você poderia ver uma pobre menininha sem nada para lhe cobrir a cabeça, e descalça”

(ANDERSEN, p. 204).

Segundo Maria Teresa Bento (2011) a literatura infantil atual nega os conflitos internos e

as emoções violentas originadas nos impulsos primitivos, suprimindo passagens que exprimem

esses conflitos dos principais contos de fadas. Entretanto, os contos são muito importantes para o

desenvolvimento das crianças, pois ao mesmo tempo em que as divertem, os contos as esclarecem

sobre si próprias e favorecem o desenvolvimento de sua personalidade. Sendo assim:

O conto de fadas fala diretamente com a criança, já que usam a linguagem do inconsciente, sem a mediação da razão ou sem necessidade de explicações, conselhos ou sermões. Eles falam ao inconsciente através de imagens que vão “conversar” com as bruxas, os monstros, os medos. Com o auxílio das fadas ou da espada mágica, a criança adquire forças para vencer o que a assusta ou preocupa. Enquanto não soluciona o seu problema inconsciente, ela ouve ou lê a história inúmeras vezes, até que o resolve. É esse um dos motivos que levam as crianças a pedirem que lhes contem várias vezes a mesma história (BENTO, 2011, p. 31).

Bento (2011) acredita que uma das mais importantes características dos contos é que eles

oferecem esperança às crianças. Cada história é apropriada a uma fase de desenvolvimento

específico da criança, e ela irá se identificar com aquela que naquele momento lhe fala diretamente

ao inconsciente, auxiliando-a para a solução de problemas pelos quais está passando, bem como,

preparando-a: “para a vida, para o dia a dia e principalmente para as enormes transformações

acarretadas pelo amadurecimento físico, moral e intelectual” (BENTO, 2011, p. 41).

Nos contos de fadas, geralmente não encontramos uma criança que consegue voltar para

casa sozinha, sem o auxílio de algum adulto, porque a finalidade é mostrar o despreparo da criança

para sair pelo mundo. “As condutas são reguladas por normas e valores, pois a finalidade do conto é

persuadir a criança de que tais normas são boas e verdadeiras e que o sofrimento decorre apenas de

sua desobediência”(BENTO, 2011, p. 36).

Contudo, no conto exemplar A pequena vendedora de fósforos, a situação em que se

depara a criança, transpõe essas condutas impostas pela sociedade, pois sua condição social,

material e familiar faz com que saia sozinha do “seu lar”, enfrentando um mundo de angústias,

racionalidade, moralismos e crueldade, ou seja, ela deixa sua infância de lado e passa a ter um

comprometimento social, vivendo no mundo dos adultos. Pois:

Apesar de a criança viver no mesmo mundo dos adultos, ela o pensa, sente e vê de forma diferente. Para a criança, o mundo não é reconhecido como algo fora dela. Reconhecer a exterioridade do mundo implica, para ela, reconhecer os próprios poderes e limites, e é nesse confronto que ela vai se construindo (BENTO, 2011, p. 43).

Para Bento (2011) os contos também ensinam as crianças a enfrentarem sentimentos de

perda e a angústia. Por intermédio deles, as crianças percebem que tudo de ruim que pode acontecer

na vida de uma pessoa pode passar, pois sempre há uma fada para ajudar a resolver os problemas,

bem como as mães, avós, tias ou até mesmo as professoras.

4. O CONTO NA ESCOLA

É interessante trazer para a sala de aula o conto A pequena vendedora de fósforos,

abordando as diferenças sociais existentes e os direitos da criança. Ao ler o conto, percebe-se a

presença de elementos que possibilitam a diferenciação de níveis econômicos e a exclusão, que é

consequência desta característica da sociedade atual.

Faz-se necessário destacar que a abundância não está presente em todos os lares, que

apesar de pouco se repercutir nos meios de comunicação atuais, existe fome, miséria e por

decorrência, há exclusão de muitas pessoas. A exclusão neste caso pode ser relacionada com o

bullying que é cometido com várias crianças, que por ser pobre e ter que trabalhar, a menina

idealizava o mundo que sonhava para si, sempre distante das outras crianças, pois sua infância

resumia-se em ajudar o pai ao vender os fósforos, não lhe restando outra opção além de sonhar com

um futuro próspero.

Além de se trabalhar a literatura com as crianças, há a possibilidade em abordar questões

históricas, pois com a implantação de leis, o trabalho infantil tornou-se crime e visto como

exploração de um incapaz. Porém, apesar da existência da lei, ainda há crianças trabalhando, como

a menina do próprio conto, isto entra em questão, pois é preciso compreender a materialidade

histórica de cada um, considerando o que leva a precisão deste trabalho e o porquê a criança se

submete a realizá-lo.

Verifica-se também a ideologia da religião, pois a menina sofreu tanto em sua vida terrena,

que ao partir ela vislumbra várias cenas, tanto que no momento de sua morte, a avó vem buscá-la

para a salvação eterna, carregando-a para o paraíso.

Faria (2010) considera de fundamental importância levar ao conhecimento dos alunos

textos de versões diferentes, possibilitando uma reflexão sobre as diferenças textuais em textos de

um mesmo autor. E desta forma, sugere que seja trabalhado com as crianças, um livro com mais

ilustrações e outro mais completo e próximo do real. E para uma terceira visão, apresentar um curta

metragem de Rogers Allers e Don Hahn com duração de sete minutos, inspirado no conto A

pequena vendedora de fósforos.

Esse conto quando disponibilizado para as crianças é uma ferramenta imprescindível para

destacar a forma com que a sociedade está estruturada, trata-se de uma obra, pertencente ao gênero

literário do conto, é conciso, contudo é de total relevância por tratar de questões pertinentes a

realidade, de que todos somos seres humanos, mas as condições de vida de cada um se diferem

grandemente, isso de um ponto de vista social.

A utilização deste conto no ensino para crianças visa desencadear uma reflexão sobre a

realidade aliada a uma história fictícia, porém com um cunho voltado para uma mudança

comportamental da sociedade. Facilita uma ampla visualização de temas como descaso social,

relação de pais e filhos, trabalho infantil, direitos das crianças e dos adolescentes, entre outros.

Utilizar esse conto é uma tentativa de desacomodar o leitor perante as diversas ocasiões da

qual presenciamos constantemente. Esse talvez seja um dos motivos que torna essa obra a tanto

tempo sendo lida, analisada e publicada, pois,mantêm em seu conteúdo um tema muito atual.

A partir disso, não encaramos o professor como mero transmissor de conhecimentos, mas

sim como uma ponte para que a criança evolua. Deste modo, acreditamos que a escola seja

responsável:

[...] pela propagação de conhecimento, pode subsidiar a formação pessoal de cada ser humano. Os contos podem ser um importante instrumento pedagógico, por ajudar no processo de simbolização, ao mesmo tempo em que alivia pressões inconscientes. A escola desempenha um papel muito importante, pois é o primeiro ambiente que a criança encontra fora da família (BENTO, 2011, p. 44).

Bento (2011) acredita que a escola procura apoiar de modo apropriado o processo de

formação da consciência e assim acreditamos que a relação entre a criança e o professor é

determinante para o êxito do ensino e da transformação das crianças em adultos históricos e críticos.

A escola tem de libertar a criança de sua identidade com a família e torná-la consciente de

si própria. Nesse processo os contos constituem uma mediação entre o professor e a criança,

ajudando-a na superação de seus problemas interiores, possibilitando que o intelecto possa se

desenvolver.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com respeito a promover experiências na vida infantil, mais adequadas a capacidade de

encontrar sentido na vida, dotando-a de mais significados, Bettelheim (2000) acredita que: “[...]

nada é mais importante que o impacto dos pais e outros que cuidam da criança; em segundo lugar

vem nossa herança cultural, quando transmitida à criança da maneira correta. Quando as crianças

são novas, é a literatura que canaliza melhor este tipo de informação” (p. 12).

Segundo Coelho (1991) a Literatura oral ou Literatura escrita, foram as principais formas

pela qual a história das culturas passou de geração para geração e que nos cabe renovar, tal qual

outroso fizeram, antes de nós. A Literatura Infantil é, portanto, o agente formador para uma nova

mentalidade.

Na verdade, segundo Coelho (1991), a Literatura desde as origens tem a função essencial

de:

[...] atuar sobre as mentes, onde se decidem as vontades ou as ações; e sobre os espíritos, onde se expandem as emoções, paixões, desejos, sentimentos de toda ordem... No encontro com a Literatura (ou com a Arte em geral) os homens têm a oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência de vida, em um grau de intensidade não igualada por nenhuma outra atividade (p. 25).

A figura da criança representada no conto demonstra claramente a imagem que a mesma

tinha no século XIX, em que as crianças não eram consideradas seres em desenvolvimento, mas sim

pequenos adultos. Participavam de orgias, enforcamentos públicos, trabalhavam constantemente

para complementar a renda familiar, é neste último quesito que o conto mais se relaciona. Mesmo

em condições degradantes, de extremo frio e fome a pequena menina precisava vender os fósforos.

Ao analisar o conto fica evidente a perspectiva ético-religiosa do autor Andersen, pela

qual, destaca que as dificuldades da pequena vendedora de fósforos foram sanadas quando esta fez a

passagem para estar junto de Deus, superando assim todas as limitações financeiras e sociais que

possuía, abandonando sua vida terrena de amargura para desfrutar de conforto no céu. Esses

vestígios de religiosidade na postura adotada pelo autor deixam transparecer sua visão de que o

sofrimento da vida física é superado na vida espiritual junto a Deus.

Para Faria (2010) os contos clássicos, em geral, eram obras que pertenciam ao maravilhoso

(fábulas,mitos e lendas) e utilizavam linguagem metafórica, de forma que os intelectualmente

imaturos e as crianças pudessem compreender facilmente. Por estar associada a esse tipo de texto, a

literatura infantil recebeu a mesma denominação,como gêneroinferior e pueril.

A partir do que já foi exposto, acreditamos que o texto literário proporciona o lúdico,

éprazeroso, além de ser um importante instrumento no ensino da leitura e no desenvolvimentoda

aptidão dessa competência.Compreendemos que:

O conto de fadas, assim como a brincadeira, é uma poderosa válvula de escape para que a criança possa enfrentar as dificuldades que ela nem sabe nomear. Através do conto, a criança dá um contorno para o seu conflito, superando-o. Resolução esta que não se dá pela via racional, pois a criança ainda não está cognitivamente pronta para lidar com esses conflitos como um adulto (SIEWERT, p. 7).

REFERÊNCIAS

BENTO, Maria Teresa. O símbolo nos contos de fadas. Monografia (graduação) – Centro Universitário Barão de Mauá. Ribeirão Preto, São Paulo: 2011. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/72276331/TCC-O-SIMBOLICO-NOS-CONTOS-DE-FADAS-MARIA-TERESA-BENTO>Acesso em: 18 set. de 2013.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 14ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática.São Paulo: Editora Ática S.A. 7ª ed., 1991.

_____________________.O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos.São Paulo: DCL, 2003.

Contos de fadas: de Perrault, Grimm, Andersen & outros. Apresentação Ana Maria Luiza; tradução Maria LuizaX. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 204-208.

FARIA, Fernanda Cristina Ribeiro. A estética da recepção contribuindo para oensino de literatura infantil: uma experiênciacom o conto a pequena vendedora de fósforos, de Hans

Christian Andersen (1805-1875).Dissertação (Mestrado) –Universidade Estadual Paulista. Presidente Prudente, São Paulo: 2010.

OLIVEIRA, Véra Beatriz Medeiros Bertol de. A representação da criança nos contos de Hans Christian Andersen: o desvelar de um paradigma.Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Maringá.Maringá, PR: 2009.

SIEWERT, Clarice Steil. Era uma vez: o conto de fadas e a criança. Faculdade de Psicologia de Joinville, ACE. Artigo apresentado para o estágio supervisionado de clínica infantil. Disponível em: <http://www.dionisosteatro.com.br/wp-content/uploads/2011/09/Artigo-O-conto-de-fadas-e-a-crianca.pdf>Acesso em:9 set. de 2013.