artigo incursões sobre o espaço publico

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Diálogos Latinoamericanos Universidad de Aarhus [email protected] ISSN (Versión impresa): 1600-0110 LATINOAMERICANISTAS 2005 Ana P. Barbosa ALGUMAS INCURSÕES SOBRE O SIGNIFICADO DE ESPAÇO PÚBLICO NOS PENSAMENTOS DE HANNAH ARENDT, JÜRGEN HABERMAS, CHARLES TAYLOR E NELSON SALDANHA Diálogos Latinoamericanos, número 010 Universidad de Aarhus Aarhus, Latinoamericanistas Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal Universidad Autónoma del Estado de México http://redalyc.uaemex.mx

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  • Dilogos LatinoamericanosUniversidad de [email protected] ISSN (Versin impresa): 1600-0110LATINOAMERICANISTAS

    2005 Ana P. Barbosa

    ALGUMAS INCURSES SOBRE O SIGNIFICADO DE ESPAO PBLICO NOS PENSAMENTOS DE HANNAH ARENDT, JRGEN HABERMAS, CHARLES TAYLOR

    E NELSON SALDANHA Dilogos Latinoamericanos, nmero 010

    Universidad de Aarhus Aarhus, Latinoamericanistas

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina y el Caribe, Espaa y Portugal

    Universidad Autnoma del Estado de Mxico

    http://redalyc.uaemex.mx

  • Dilogos Latinoamericanos 10

    Algumas incurses sobre o significado de espao pblico nos pensamentos de Hannah Arendt, Jrgen

    Habermas, Charles Taylor e Nelson Saldanha

    Ana P. Barbosa1

    Todos eles introduziram, se a expresso faz de todo sentido, um pensamento genuinamente filosfico como se fosse uma carga explosiva em uma situao de pesquisa especial. A funo do recalcamento na formao de sintomas, a funo do sagrado na instituio da solidariedade, a funo da adoo de papis na formao da identidade, a modernizao como racionalizao social, o descentramento como conseqncia da abstrao reflexionante de aes, a aquisio lingstica como atividade formadora de hipteses cada um desses ttulos representa um pensamento a se desenvolver filosoficamente e, ao mesmo tempo, uma problemtica passvel de tratamento emprico, mas universalista.2

    Jrgen Habermas

    sugestivo, quanto a essa observao inicial, o repdio de Jrgen

    Habermas ao exclusivismo de uma nica forma de analisar um tema cientfico. Tomando, como referncia, a mistura hbrida de discursos, acentua o valor de se fundamentar um determinado objeto de pesquisa com base em diferentes ticas, as quais podero ser convergentes ou no.

    E aqui se insere o espao pblico. De fato, ao se partir de uma abordagem pluralstica vo-se tratar, neste ensaio, das contribuies de Hannah Arendt e Jrgen Habermas, filsofos que j tinham enfrentado o tema, no final dos anos cinqenta e incio dos sessenta. A primeira, sob o ngulo kantiano, toma o indivduo e a liberdade, como seus principais argumentos tericos de discusso; e o segundo, sob o ngulo marxista, fundamenta sua tese nas idias de classe e de igualdade.

    Um outro filsofo que merecer referncia Charles Taylor, que tambm se debrua sobre o assunto, tendo, como um dos paradigmas, o livro de Jrgen Habermas Mudana Estrutural da Esfera Pblica.

  • Revisitando a obra habermasiana, o autor confere novas nuanas ao espao pblico. Entre elas, encontra-se a influncia dos meios de comunicao de massa, como formadores de opinio, na tomada de decises tanto dos indivduos organizados em comunidade quanto dos governantes eleitos democraticamente.

    E, por fim, faz-se meno ao desenvolvimento do espao pblico no Brasil. Vai-se, para tanto, ao encontro do ensinamento de Nelson Saldanha, no livro O Jardim e a Praa. Ao mostrar como surgiu e se desdobrou a vida pblica e urbana no Pas, do ponto de vista histrico-sociolgico, o autor revela quo incipiente e embrionrio , ainda, o espao pblico ptrio.

    O Espao Pblico de Hannah Arendt

    Para se tratar do espao pblico, recorre-se contraposio entre vida privada e vida pblica e lio de Hannah Arendt, em seu livro A Condio Humana.

    Primeiramente, no tocante vida privada e, mais especificamente, esfera familiar, nota-se que essa foi sendo, no decorrer dos sculos, substituda pelos grupos sociais ou comunidades; mais do que isso, a privacidade, o individualismo e a intimidade, inerentes famlia, foram sendo aambarcados pelo pblico e, ainda, pela idia subjacente de que toda sociedade deve procurar diminuir as diferenas entre homens iguais e desiguais. Tal igualdade determinada por um tipo de comportamento uniforme e, no, pela ao ou discurso. Todos devem ser iguais dentro de uma determinada comunidade. Nesta, no h possibilidade de um indivduo diferenciar-se dos demais por agir em funo de um objetivo particular; todos compartilham de uma opinio ou de um interesse comum.

    A comunidade no desempenha o mesmo papel da esfera privada da famlia, na qual as necessidades humanas mais bsicas so supridas, como a sobrevivncia individual e a continuidade da espcie. Na privacidade do lar, a figura do pater familias, relembrando a Grcia Antiga, destaca-se da dos filhos, da mulher e dos agregados. o provedor de suas necessidades biolgicas; o que tem o poder de determinar a sorte de cada um deles por meio da ao. J nos grupos sociais, pelo fato de existir um pensar coletivo, a privacidade acaba sendo absorvida pelo pblico.

    Hannah Arendt esclarece que, como resultado disso, o prprio processo de manuteno da vida passou a se desenvolver em sociedade e d como exemplo o fato de as comunidades modernas organizarem-se em torno do labor e de o considerarem como fundamental sua sobrevivncia.

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  • necessrio aqui fazer uma distino entre o que o labor, para a autora, e o que o trabalho. O labor est atrelado necessidade biolgica do ser humano; nesse particular, H. Arendt nos coloca no mesmo patamar dos outros animais. O trabalho, ao contrrio, como bem diz Celso Lafer no posfcio de A Condio Humana, no est necessariamente contido no repetitivo ciclo vital da espcie. atravs do trabalho que o homo faber cria coisas extradas da natureza, convertendo o mundo num espao compartilhado pelo homem.3 Em pblico, o labor atinge a sua excelncia que no igualada na intimidade, j que, para haver excelncia, exige-se que estejam presentes outros indivduos.

    Transportando o pensamento terico de H. Arendt para o plano atual da realidade concreta, poderamos nos indagar: Como o capitalismo sobreviveria sem uma organizao do trabalho baseada na fora laborativa do operariado? imprescindvel, aqui, fazer uma pequena digresso para rebater provveis crticas. Poder-se-ia, por exemplo, afirmar que, na atual 3a Revoluo Industrial, o processo de produo de tecnologia baseada na informao to sofisticado que o que se demanda uma mo-de-obra qualificada que tenha o domnio do conhecimento. Esse processo, contudo, no concomitante em todo o mundo. O Brasil e os demais pases da Amrica Latina, no dizer dos gegrafos polticos, esto na fase fordista, ou seja, na fase de mecanizao industrial; um outro exemplo seria o do continente africano, que ainda se encontra na fase de acumulao primitiva de capital. Tendo em vista o desencadear de alguns acontecimentos histricos na frica, que se iniciam com o esprito do neocolonialismo4, passando pela independncia poltica, e no econmica, e pela Guerra Fria at chegar aos dias de hoje, constata-se que, sobretudo, a frica Negra permanece relegada s margens do balanceamento de poder poltico-econmico mundial.

    Nesse sentido, pode-se tomar como base o pensamento do cientista poltico norte-americano Michael Walzer 5 . Reinterpretando-o, pode-se argumentar que os pases centrais ou desenvolvidos, at h bem pouco tempo, recebiam trabalhadores hspedes ou convidados para executar o chamado trabalho duro, ao qual os cidados desses pases no desejavam mais se submeter. Mas, com o passar do tempo, o panorama foi-se mostrando diferente. Isso porque, no final dos anos oitenta, se iniciou um processo de retrao, quanto permisso de ingresso de mo-de-obra estrangeira, por exemplo, na Europa. Solidificou-se a denominada fortaleza Europa concomitantemente com o incio do declnio do Estado do Bem-Estar Social. Na Alemanha, ps- Queda do Muro de Berlin, por exemplo, acirrou-se a disputa pelo mercado de trabalho entre nacionais e estrangeiros naturalizados, sobretudo, os turcos, que haviam imigrado nos

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  • anos sessenta, e se reabriram antigas chagas, como a do movimento neo-nazista, em virtude, entre outros fatores, da reconstruo econmica da ex-Alemanha Oriental e da absoro de sua mo-de-obra, que teve de se ajustar aos novos cnones capitalistas, travestidos sob a alcunha de neo-liberalismo.

    Imagine-se, ento, o que vem sucedendo economicamente e em termos de organizao de trabalho nos pases perifricos ou subdesenvolvidos, em que, no sculo XXI, continuam a reivindicar o simples direito natural vida, ou seja, o direito sobrevivncia, que permanece sendo um tema, para o qual no se logrou qualquer soluo final e concreta. Por esses motivos, em tais naes, a ausncia de uma organizao justa do trabalho ainda uma realidade indiscutvel e a enfrentar, pois inegvel que permanece calcada na explorao do emprego da mo-de-obra operria sem qualificao tecnolgica. Em poucas palavras, as questes e direitos relativos sobrevivncia (Entre eles, esto a alimentao, a sade, a educao, o trabalho, a moradia que se resumem na reivindicao por uma vida mais digna, a um mnimo material ou econmico que seja suficiente para possibilitar a cada homem a chance de existir.), por no terem sido ainda devidamente resolvidos, no foram absolutamente superados por outros concernentes qualidade de vida (paz, preservao e equilbrio do meio-ambiente, direito opo sexual livre, etc.).

    Voltando teoria de H. Arendt, em pblico que cada indivduo levado a desempenhar com excelncia alguma atividade. Resta claro que, pelo fato de a sua capacidade de ao e de discurso ter permanecido restrita esfera da intimidade; na execuo do labor, aquela passou, conseqentemente, a no ter relevncia.

    Em sentido oposto, e s como ilustrao, esclarece a autora de A Condio Humana que, na Grcia Antiga, a ao e o discurso no se restringiam puramente ao mbito domstico; adentravam, sim, na esfera pblica, pois, nessa, os homens encontravam-se pressionados a se distinguir dos demais atravs de seus feitos. Conseqentemente, cada um se mostrava como realmente era. Em suma, diz H. Arendt: a esfera pblica era reservada individualidade.6

    importante, ainda, salientar que a idia de liberdade tambm deve ser debatida, embora, em comunidade, a igualdade seja o bem maior no que se refere justia. Entretanto, como pensar em uma igualdade que ocasione o risco de uniformizar o comportamento de uma determinada comunidade? Isso porque a regra que impe a vontade da maioria pode ser, muitas vezes, tirana como j afirmava Jean-Jacques Rousseau, ou seja, pode sufocar as diferenas que, por ventura, aflorem no seio desse grupo social.

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  • Por exemplo, na sociedade moderna e na atual sociedade de massas, tal igualdade pode tornar equivalentes homens iguais e desiguais, como se fossem membros de uma s famlia que tem um nico interesse ou opinio. A partir dessa viso niveladora da sociedade, o mbito da ao individual entra em declnio em virtude da uniformizao do comportamento. Essa assertiva corroborada por H. Arendt:

    Um fator decisivo que a sociedade, em todos os seus nveis,

    exclui a possibilidade de ao, que antes era exclusiva do lar domstico. Ao invs da ao, a sociedade espera de cada um de seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inmeras e variadas regras, todas elas tendentes a normalizar os seus membros, a faz-los comportarem-se, a abolir a ao espontnea ou a reao inusitada.7 Nesse aspecto, a filsofa oferece a sua contribuio, ao ressaltar o

    papel da liberdade, como pressuposto de qualquer ao humana em esfera pblica. Ao se pensar sobre esse valor liberdade simultaneamente com o da igualdade em uma comunidade, seja ela uma associao de bairro, um clube, um sindicato ou uma igreja, surge, entre outras, a seguinte dvida: Como se apresentam as diferenas, j que, mesmo em um grupo coeso, possvel que haja opinies e aes divergentes? No curso de todo o seu texto, a autora parece dar maior relevo liberdade, porque, s com ela, possvel haver ao. Se, acima de tudo, se admitir que a condio humana da pluralidade8 corresponde ao, no se pode, portanto, pensar em um agir em comunidade que pblica e, no, privada sem liberdade, porque, seno, retornar-se-ia ao dilema da uniformizao do comportamento que ameaa toda sociedade de massa. Da se infere que o valor igualdade no se pode tornar pretexto para uma tirania da maioria.

    Por outro lado, a liberdade, como pressuposto da ao em pblico e em comunidade, deixa de ser exercida, quando os indivduos no vem motivo para se agregarem, com o propsito de influenciar as decises polticas. A fragmentao de um grupo de pessoas ou o isolamento dos indivduos em uma dada sociedade ocasiona, geralmente, a ascenso do autoritarismo. Tal constatao fica mais clara quando se observa a atual sociedade de massas, em que a averso participao poltica conduz a um total descaso sobre quem est ou no exercendo o poder, ou sobre o que este est ou no discursando ou realizando. Entre outros fatores, o autoritarismo, de um lado, e a alienao voluntria das maiorias silenciosas9 ao poltico homem e espao , de outro, atestam a crise da vida pblica na aldeia global de MacLuhan, do consumo e da informao tecnolgica. Particularmente quanto a esse desapreo das

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  • massas, revela o filsofo socialista J. Baudrillard:

    Isso pode ser visualizado na inverso de valor entre histria e cotidianidade, entre esfera pblica e esfera privada. At os anos 60, a histria se impe como tempo forte: o privado e o cotidiano no so mais do que o avesso obscuro da esfera poltica. No melhor dos casos, intervm uma dialtica entre os dois e pode-se pensar que um dia o cotidiano, como o individual, resplandecer alm da histria, no universal. Mas at l s se pode deplorar o recuo das massas sua esfera domstica, sua recusa da histria, da poltica e do universal, e sua absoro na cotidianidade embrutecida do consumo (felizmente elas trabalham, o que lhes garante um estatuto histrico objetivo at o momento da tomada de conscincia). Hoje, inverso do tempo fraco e do tempo forte: comea-se a vislumbrar que o cotidiano, que os homens em sua banalidade at poderiam no ser o reverso insignificante da histria - melhor: que o recuo para o privado at poderia ser um desafio direto ao poltico, uma forma de resistncia ativa manipulao poltica. Os papis se invertem: a banalidade da vida, a vida corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burgus, abjeto e apoltico (inclusive o sexo) que se torna o tempo forte; e a histria e o poltico que se desenvolvem sua acontecimentalidade abstrata algures.10 Paralelamente crise da esfera pblica poltica, no h dvida de

    que a famlia, o lar; enfim, a vida privada no esto tambm imune a essa crise. Qual a soluo para a sociedade ocidental contempornea, na qual a famlia entrou em decadncia; para uma sociedade em que os indivduos j no se sentem membros de um grupo determinado, o qual possa servir como referncia para os seus atos e comportamentos polticos? A teoria comunitarista norte-americana, que se manifesta na dcada de oitenta, busca responder, ainda que no de forma definitiva, a esse tipo de indagao. No entanto, tenciona, pelo menos, constatar que a famlia, comunidade embrionria, j faz parte da memria coletiva recente.

    A ttulo de ilustrao, importante verificar qual a opinio de M. Walzer. Ao apresentar a crtica comunitarista ao liberalismo, sustenta que o liberalismo se desdobra em duas tendncias: associativa e dissociativa. Homens e mulheres, por exemplo, se casam e, posteriormente, podem-se separar mobilidade marital11 , o que acarreta conseqncias contra-comunitrias, ou seja, um lar desfeito leva os filhos desses pais separados a no ter oportunidade de escutar suas estrias contnuas e idnticas12 e, por isso, a no ter capacidade narrativa.13 E esse desarraigamento faz que no tenham a famlia como referncia de suas aes futuras.

    Ressalte-se que M. Walzer tambm cuida de outros tipos de associaes/dissociaes ou mobilidades, entre elas, a social segundo a

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  • qual, os filhos no agem de acordo com a herana da comunidade 14 deixada por seus pais. Buscam construir uma vida diferente, cujos pilares provavelmente no so as mesmas crenas e costumes de suas famlias.

    Como tinha antevisto H. Arendt, no final da dcada de cinqenta, a famlia foi assimilada por outros grupos sociais tnicos, religiosos, culturais, profissionais que tm a funo de ser um referencial para todo o caminhar humano. Assim sendo, apesar de a filsofa ter escrito o seu livro em um outro momento histrico, ela percebeu que o individualismo, cujo propsito a realizao dos interesses pessoais, atravs de discursos e de feitos, e cujo campo de ao inicial a famlia, foi assimilado e, de certa forma, superado pelos grupos sociais. Entretanto, deve-se atentar para o fato de que a fora da ao individual, atravs da argumentao e do dilogo, no pode se dissolver, em sociedade, na uniformizao ditatorial da ausncia de pensamento e da ausncia de ao consciente da coletividade. Isso seria, no mnimo, perigoso, no s no que se refere prpria liberdade individual e aos direitos da decorrentes, mas tambm no que tal hiptese poderia causar permanncia e solidez do prprio Estado-democrtico.

    O Espao Pblico de Jrgen Habermas Pertencente segunda gerao da Escola de Frankfurt, Jrgen

    Habermas foi influenciado pelo marxismo em um primeiro estdio e, nesse aspecto, no se diferencia de seus predecessores: Adorno, Horkheimer e Benjamin. Em seu livro Mudana Estrutural da Esfera Pblica, acompanha a filosofia da Escola, a qual resume, com propriedade, o professor Danilo Marcondes: A Escola de Frankfurt preocupou-se sobretudo com o contexto social e cultural do surgimento das teorias, valores e viso de mundo da sociedade industrial avanada, procurando assim atualizar e desenvolver a teoria marxista enquanto teoria filosfica e sociolgica.15

    Contemporneo de H. Arendt, o filsofo alemo tambm se ocupa do espao pblico, mas sob um enfoque histrico-sociolgico. A autora, de certa forma, como discpula de Kant, confere-lhe um cunho filosfico-poltico. Tal identidade de pensamento se torna mais clara com esta passagem do livro de Celso Lafer:

    ... e Kant, segundo Hannah Arendt, na leitura que faz da Crtica do Juzo, foi um dos poucos que chegou a uma filosofia poltica, pois deu-se conta que, politicamente, no existimos no singular, mas coexistimos no plural. A pluralidade da intersubjetividade requer a comunicao, e esta pressupe o que Kant chama de mentalidade

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  • alargada, isto , um pensar sempre ligado ao pensamento do que o outro pensa.16 Por causa disso, a autora privilegia, em seus escritos, a idia de

    liberdade, de singularidade de cada indivduo, de pluralidade e, por fim, de democracia. H. Arendt , acima de tudo, uma democrata, o que significa que o seu referencial burgus, baseado na Revoluo Francesa. A (r)evoluo, ou melhor, as mudanas na esfera pblica, para ela, so gradativas; em outras palavras, H. Arendt tem pavor violncia e ao terror impostos, em nosso sculo, tanto pelo Nazismo e pelo Stalinismo.

    J o espao pblico de J. Habermas deixando bem claro, na Mudana Estrutural da Esfera Pblica parece estar calcado nos ideais marxistas, o que significa que, para analis-lo, seu ponto de partida no representado puramente pelo indivduo, mas, sim, pelo conflito de classes. Habermas vai estudar o espao pblico burgus de dominao e o seu espraiamento por toda a estrutura e conscincia social, tomando, como principal referncia passvel de crtica, a Idade Moderna e seus desdobramentos liberal e, posteriormente, social-democrata; por sua vez, o estudo de H. Arendt finca-se, sobretudo, em um momento histrico mais longnquo, qual seja a Grcia Antiga, na medida em que a sua idia do que seja pblico passa pela liberdade desenvolvida pelos pensadores gregos.

    Naquele livro, J. Habermas denomina como pblico determinados acontecimentos que so acessveis a qualquer pessoa. As categorias pblico e privado frisa ele nos foram transmitidas pelos gregos por meio da verso romana. A posio de cada indivduo, na esfera pblica da polis, era condicionada pela do dspota no mbito domstico: ...sob o abrigo de sua dominao, faz-se a reproduo da vida, o trabalho dos escravos, o servio das mulheres, transcorrem o nascimento e a morte; o reino da necessidade e da transitoriedade permanece mergulhado nas sombras da esfera privada.17

    Contrapondo-se a ela, apresenta-se a esfera pblica, a qual, para os gregos, tinha uma conotao de aparncia, ou melhor, daquilo que aparece ou torna-se visvel. Alis, tal constatao tambm partilhada por H. Arendt, com o seu mundo da aparncia.

    Quanto a J. Habermas, , ainda, essencial que, no contato existente entre os cidados, apesar de a terem transitado como iguais, os melhores se destacavam atravs dos conflitos que, por ventura, pudessem suceder. Reconhece-se, por conseguinte, que as virtudes aristotlicas s emergiam em tal esfera. Com a releitura romana da esfera pblica grega, ampliou-se o seu entendimento a ponto de consider-la res publica ou um embrio do ordenamento poltico-jurdico. Sem dvida, a partir do surgimento do Estado Moderno, desenvolveu-se esse instituto, mesmo porque, durante a

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  • Idade Mdia, no se fazia distino clara entre o pblico e o privado. como revela o autor:

    Durante a Idade Mdia europia, a contraposio entre

    publicus e privatus, embora corrente, no tinha vnculo de obrigatoriedade. Exatamente a precria tentativa de uma aplicao nas relaes jurdicas da dominao feudal fundiria e de vassalagem fornece, sem querer, indcios de que no existiu uma anttese entre esfera pblica e esfera privada segundo o modelo clssico antigo (ou moderno).18 Mais detalhadamente, se se fosse entender o pas, como a esfera do

    pblico, dever-se-ia admitir que, no feudo, sobre o qual o senhor exercia o seu domnio, existia um poder de segunda ordem que, em razo daquilo que lhe era superior a ordenao do pas , poderia ser considerado privado. E continua Habermas, com suporte em O. Brunner:

    Assim parece-me compreensvel que a autoridade privada

    e pblica fundem-se numa inseparvel unidade, j que ambas so a emanao de um nico poder, sendo tambm compreensvel que estejam ligadas aos bens fundirios e que possam ser tratadas como direitos privados bem adquiridos.19 Lembra Habermas que o status do senhor feudal, ou seja, o fato de

    ser autoridade em seus domnios, transbordava para alm daqueles limites quando dos eventos pblicos, dos dias festivos que requeriam dele a incorporao de determinadas virtudes aristotlicas, como a insgnia (emblemas, armas), hbito (vestimenta, penteado), gesto (forma de saudar, comportamentos) e retrica (forma de falar, o discurso estilizado em geral).20

    Tal condio de representatividade pblica foi transposta para o sculo XVI, o sculo do auge do Humanismo, da movimentada vida nas cortes. O nobre rural e o cavaleiro cristo perderam fora de representao, cedendo lugar para o corteggiano, bem-falante e divertido, que caracterizou essa nova sociedade. Seu grau de sociabilidade foi exercitado no salo de festas da corte. Quanto a esse aspecto, frisa o autor:

    A ltima configurao da representatividade pblica, ao

    mesmo tempo reunida e tornada mais ntida na corte dos monarcas, j uma espcie de reservado, em meio a uma sociedade que ia se separando do Estado. S ento que, num sentido especificamente moderno, separam-se esfera pblica e esfera privada.21

    A partir do sculo XVI, o vocbulo pblico tornou-se sinnimo

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  • de estatal, quer dizer, passou a se referir ao funcionamento das competncias de um aparelho que detinha o monoplio legtimo da fora. o que se denominou de poder de polcia, e o particular, destinatrio de tal poder, era o seu pblico. Em resposta fora ou autoridade e como forma de contrabalanar ambas, constituiu-se a sociedade civil burguesa. As atividades econmicas, antes restritas ao mbito da casa, extrapolaram tais limites e passaram a requerer um intercmbio mercantil mais abrangente.

    Da efervescncia do sistema mercantilista de trocas, emergiu, com todo o mpeto, a imprensa, cujos primeiros jornais apareceram em meados do sculo XVIII. As correspondncias entre particulares, que antes eram privadas e cujo contedo no se pretendeu revelar, passaram a constituir matria de jornais procura de novidades. Tais notcias, entretanto, se submeteram a uma censura extra-oficial patrocinada pela prpria burguesia, de forma que as notcias publicadas no possuam grande relevncia, pois se compunham de informaes do estrangeiro, da corte e de notcias menos importantes relativas ao comrcio, sem contar as novidades dos folhetins. Como resultado, as prprias notcias se tornaram mercadorias em razo de estarem sujeitas s mesmas leis de mercado, como a inteno de aumentar os lucros dos jornais mediante um aumento da tiragem. Naquele meio tempo, a imprensa passou tambm a ser considerada instrumento til para a Administrao divulgar decretos, portarias.

    Os grandes comerciantes (leitores) vieram a assumir uma posio central junto ao ou no pblico, como decorrncia da paulatina exploso da imprensa e do fato de os pequenos comerciantes e artesos terem sido substitudos por eles. Esses homens cultos no se incorporaram vida corteggiana, e o seu domnio na esfera burguesa possibilitou o surgimento tenses entre a cidade e a corte. Ao examinar tal assunto, J. Habermas deduz o seguinte:

    J que, por um lado, um setor privado delimita nitidamente a sociedade em relao ao poder pblico, mas, por outro lado, eleva a reproduo da vida acima dos limites do poder domstico privado, fazendo dela algo de interesse pblico, a referida zona de contato administrativo contnuo torna-se uma zona crtica tambm no sentido de que exige a crtica de um pblico pensante. O pblico pode aceitar esta exigncia tanto mais porque precisa apenas trocar a funo do instrumento com cuja ajuda a administrao j tinha tornado a sociedade uma coisa pblica em sentido estrito: a imprensa.22

    A expresso desses juzos proibidos tornou-se pblica, e tais juzos

    foram assim denominados em virtude de uma esfera pblica que, at aquele

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  • momento, era do poder poltico, mas que se separou dele, com o propsito de obrig-lo a legitimar as suas aes perante a nascente opinio pblica, composta de indivduos que tinham capacidade de discutir e de criticar o que liam.

    Como conseqncia, a esfera pblica ocupou a posio de mediao entre a sociedade burguesa e o poder estatal. Alm disso, o seu pressuposto social passou a ser o mercado liberal que tornou as trocas e a disposio livre da propriedade um assunto privado dos particulares.

    A propsito do privado, com a ascenso da burguesia ao poder poltico, marca das Revolues Liberais dos sculos XVIII e XIX, desenvolveu-se um sistema de normas incorporado em cdigos sendo o Cdigo Civil de Napoleo (1804) a sua obra clssica que deu ensejo ao fortalecimento dessa esfera; em outras palavras, assegurou o intercmbio das pessoas privadas entre si livres de encargos corporativistas e governamentais.23

    A esfera privada, que ocasionou o desdobramento de todas as atividades econmicas sujeitas apenas s leis do livre mercado e do dia-a-dia da vida social burguesa, permaneceu livre da dominao, diga-se, da interveno estatal. Ter de vincular, portanto, as aes do Estado aos limites das normas gerais significou, em outras palavras, proteger ou garantir as liberdades bsicas codificadas em cdigos de Direito Privado do burgus e, ainda, a liberdade do prprio mercado. Em virtude de a atuao do Estado estar restrita ao mbito do Princpio da Legalidade, note-se que a aprovao das leis, sobre as quais e em decorrncia das mesmas o Executivo fundava e exercia o seu poder, advinha da participao da opinio pblica, atravs de seus representantes no Poder Legislativo. A opinio pblica, essencial lembrar, era, em verdade, constituda pela burguesia. E, dessa forma, formou-se o denominado Estado de Direito. Ressalta J. Habermas: O Estado de Direito enquanto Estado burgus estabelece a esfera pblica atuando politicamente como rgo do Estado para assegurar institucionalmente o vnculo entre lei e opinio pblica.24

    Na Constituio, as funes polticas da esfera pblica passaram a ser articuladas de acordo com os interesses econmicos dos burgueses da esfera privada. Os direitos fundamentais inscritos na Lei Fundamental so um exemplo histrico dessa articulao.

    Neste ponto da explanao da posio terica de J. Habermas, foroso recordar que, apesar de o autor no se referir a isto, os direitos humanos passaram a ser objeto de previso tanto das dez primeiras emendas que formam o Bill of Rights da Constituio dos Estados Unidos quanto das restantes que advieram depois da Guerra de Secesso. No tocante experincia constitucional da Frana, o catlogo formado pelas

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  • liberts publiques no fez parte do corpo de artigos dos textos constitucionais desse pas, embora os seus respectivos prembulos tenham mencionado a Declarao de Direitos do Homem e do Cidado de 1789, em que tais liberdades se encontram previstas. Por isso, tem-se admitido que fizeram e fazem ainda hoje (Constituio de 1958) parte do corpo de normas positivadas. Quanto s demais Cartas europias, a partir da Revoluo Liberal de 1830, na Blgica, ensejou-se a normatizao dos direitos fundamentais no interior da Lei Maior. J. Habermas parece no se prender estritamente histria das experincias constitucionais dos pases europeus, j que essas, em sua obra, nada mais so do que uma ponte para que defenda suas posies ideolgicas que, na dcada de sessenta, como j foi mencionado, seguiam a linha marxista.

    Advogando a causa dos direitos fundamentais na Lei Maior, elenca esses direitos e as liberdades civis, que consistem em um no-fazer do Estado, e que se relacionam com:

    1. o pblico pensante liberdade de opinio e de expresso, liberdade de

    imprensa, de reunio e de associao, etc. 2. a funo poltica das pessoas privadas na esfera pblica, como o direito de

    petio, o direito eleitoral e de voto igualitrio 3. o status de liberdade individual fundado na esfera de intimidade da famlia

    patriarcal, abrangendo a liberdade pessoal, inviolabilidade de residncia, etc.

    4. o intercmbio dos proprietrios privados na esfera da sociedade burguesa igualdade perante a lei, garantia da propriedade privada.25 Decorrendo da no-aceitao de uma interveno dominadora do poder pblico na esfera privada burguesa, surgiram tais tipos de Constituio que permitiram ao Estado apenas exercer funes que diziam respeito sua organizao.

    Da noo j exposta de que a atuao estatal passou a ser limitada pelos ditames legais aprovados pelos representantes da opinio pblica, extrai-se que a esfera pblica burguesa orientava-se pelo Princpio do Acesso a Todos. Assim sendo, os indivduos, conhecedores desse princpio, vieram a crer que sua esfera tambm era pblica, de tal forma que todos os homens a ela pertenciam. E essa concepo, assinale-se, nasceu da esfera ntima do lar burgus. Nesse sentido, pode-se interpretar que a esfera pblica, de alguma forma, originou-se da privada, a qual, atravs de um movimento reverso, foi paulatinamente sendo aambarcada por aquela.

    Sobre o Estado de Direito burgus e a garantia conferida s liberdades bsicas, J. Habermas tece suas crticas:

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  • O acesso geral a essa esfera que o Estado de Direito institucionaliza em suas funes polticas precisa ser decidido de antemo atravs da estrutura da sociedade civil burguesa e no, depois, atravs da constituio poltica que esta se d. Uma dimenso pblica , ento, assegurada quando as condies econmicas e sociais oferecem as mesmas chances a todos para preencherem os critrios de acesso: exatamente conquistar as qualificaes da autonomia privada que fazem o homem culto e proprietrio.26

    O indivduo, ingressando nessa sociedade, ganhava o status de

    proprietrio e, como extenso, o de homem. O modelo liberal descrito, de cumprimento irrealizvel para a maior parte dos indivduos, era, como revela o autor, suficientemente verossmil para que o interesse da classe burguesa pudesse ser identificado com o interesse geral (...) Cada um possua, assim, a possibilidade de se tornar um cidado burgus. 27 Conseqentemente, s da classe burguesa que se poderia esperar uma representao do interesse geral, visto que foram os interesses da burguesia que constituram a base da opinio pblica.

    Por fim, acentua o autor que, naquela poca, comearam a surgir as ideologias, medida que se puseram, em um mesmo brao da balana, os anseios dos proprietrios e os dos homens mais simples, o que tornou o discurso de uma classe determinada universalmente aceito.

    importante, nesse passo da exposio, recordar, em linhas gerais, o pensamento de Karl Marx, a que o autor da Escola de Frankfurt se vincula em seu livro. Em particular, importante ressaltar duas obras de Marx que abordam a questo dos direitos fundamentais: A Ideologia Alem (1849) e, sobretudo, A Questo Judaica (1844).

    Seu ponto de partida est na discusso e na crtica dos conceitos de direitos do homem e do cidado que se retiram da Declarao Francesa de 1789. Estabelece diferena entre ambos por estarem os do homem inseridos na categoria de liberdade poltica, de direitos civis; nada mais so do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto , do homem egosta, do homem separado do homem e da comunidade. 28 Ambos resultaram de uma revoluo poltica que, na realidade, no revolucionou as partes integrantes da vida burguesa, de tal modo a submet-las a crticas. O homem, como membro de tal sociedade, fruto puramente de um ato poltico: a Constituio. E , por isso, considerado o verdadeiro homme. Em outras palavras, aquele que se restringe a satisfazer suas necessidades mais imediatas (trabalho, interesses particulares). Mais uma vez, aqui, Marx o diferencia do cidado, frisando que, de fato, se trata de um citoyen no-poltico porque abstrato, artificial, alegrico, moral. O homem real s reconhecido sob a forma de indivduo egosta; e o homem verdadeiro

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  • sob a forma do citoyen abstrato.29Em contrapartida, o cidado real, de que trata, o que se insere em

    um determinado momento histrico e em um conjunto de relaes sociais. Sobre essa viso marxista, Rodolfo Vidal Gmez Alcal acentua o seguinte:

    ... a crtica marxista e ser importante para o progresso do

    conceito dos Direitos Fundamentais, pois, ante a preferncia pela liberdade e pelo poder popular que preconizava a Declarao Francesa, buscar a criao de uma igualdade real e no formal do homem, e a criao no s doutrinal, dos direitos de crdito e inclusive sua sobrevalorizao, para colocar-se acima da liberdade e de seus direitos, para o qual necessitaria de um poder pblico forte, quer dizer, a supeditao da sociedade civil ao Estado.30 A Declarao Francesa, portanto, longe de libertar, exacerbou o

    grau de subordinao de uns em relao a outros, pois se converteu em um instrumento de dominao e produto de uma ideologia capitalista que impede a formao da sociedade real. 31 e, ainda, um instrumento que privilegiou as liberdades negativas sobre as positivas at pelo total desconhecimento da igualdade efetiva. Tal ideologizao acarretou, em suma, a ineficcia dos direitos fundamentais. essa a lio que ensina R. Vidal Gmez Alcal com suporte em Marx.

    Retornando a J. Habermas, ao tratar da esfera pblica, cujo desdobramento o espao pblico burgus de dominao, denuncia, em outros termos e com suporte em Marx, que a opinio falsamente pblica esconde de si mesma o seu verdadeiro carter de mscara do interesse de classe burgus.32 A esfera pblica burguesa se viu, por conseguinte, diante de uma contradio: a inexistncia de pressupostos sociais que no permitiu que todos tivessem efetivamente igualdade de oportunidades ou de chances para lograrem o status de proprietrio e, portanto, para ingressarem na esfera pblica real, que era a de poder e de dominao de cidados proprietrios sobre cidados no-proprietrios. Nesse sentido, o modelo liberal entrou em contradio. Na sociedade real, o Princpio do Acesso a Todos no obteve efetiva aplicao, j que, em uma determinada relao de poder, como a de trabalho ou a poltica, no se equiparavam proprietrios a seres humanos, ou seja, havia uma clara contraposio entre os interesses da classe burguesa e os interesses daquela constituda por assalariados.

    O socilogo faz aluso idia marxista, j exposta, de que o homem privado, como burgus, era tampouco homme, pois, para ele exercer seus interesses cvicos, precisaria retirar-se da realidade burguesa e de sua forma de organizao e caminhar em direo sua individualidade,

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  • ou seja, em direo esfera privada. A conseqente separao entre pblico e privado no garantiu aos demais membros da sociedade que a ideologia de poucos se restringisse s fronteiras dos seus interesses particulares, de classe. Infiltrou-se, sim, na conscincia dos homens mais simples, com o propsito de fortalecer as relaes feudais de poder e de dominao existentes entre o proprietrio culto e o assalariado iletrado. Ressalta Habermas:

    Enquanto, na reproduo da vida social, relaes de poder no tiverem sido efetivamente neutralizadas e a prpria sociedade civil ainda basear-se em poder, nenhum estado de direito pode ser construdo sobre a sua base, substituindo autoridade poltica por autoridade racional. Assim, ento, tambm a dissoluo de relaes feudais de dominao no seio do pblico pensante no a pretensa dissoluo de dominao poltica de modo geral, mas a sua perpetuao em outra forma e o Estado de direito burgus, inclusive a esfera pblica como o princpio central de sua organizao, mera ideologia.33 O modelo marxista propunha que a autonomia privada j no fosse

    mais originria, mas, sim, derivada da esfera pblica, pois decorria de uma autonomia originria que o nmero de cidados, concretamente ampliado, instaurou a partir da socializao dos meios de produo e do exerccio das funes na esfera pblica. Esclarece Habermas:

    As pessoas privadas sero antes pessoas privadas de um

    pblico do que o pblico ser um pblico de pessoas privadas. No lugar da identidade de bourgeois e homme, de proprietrio privado como ser humano, surge a de citoyen e homme; a liberdade do homem privado define-se segundo o papel do homem como cidado; o papel do cidado no se define mais pela liberdade do homem como proprietrio privado. A esfera pblica no intermedia mais, ento, uma sociedade de proprietrios privados para o Estado...34

    A perspectiva histrico-sociolgica do autor alcana meados do

    sculo XX, deixando claro que o Estado Social-Democrata, que se verifica, principalmente, nos pases altamente industrializados, fruto da tradio jurdica do Estado Liberal. Com isso, prope a incluso dos direitos sociais no texto constitucional como direitos fundamentais, tomando como marcos histricos a Constituio de Weimar de 1919, a Declarao da ONU sobre os Direitos do Homem de 1948 e, ainda, a Constituio Francesa de 1946. Com esse propsito, neste excerto dedicado sustentao da interveno imediata do poder pblico no mbito da famlia e da propriedade, mostra o seguinte:

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  • Elas (garantias institucionais da propriedade e da famlia) s passam a ser complementadas por direitos sociais fundamentais porque no ocorre o preenchimento positivo automtico do efeito denegatrio, pois a delimitao de setores livres do Estado quanto ao ir ao encontro dos mecanismos sociais imanentes no mais compensado por uma igualdade de chances, ainda que apenas aproximada, no sentido de participar em indenizaes sociais e em instituies polticas; isso passa a ser, ento assegurado expressamente pelo Estado (...) sob as condies de uma esfera pblica alterada at mesmo estruturalmente.35 Para garantir positivamente os direitos sociais, faz-se necessrio

    ampliar o espao de competncia da participao da sociedade civil no produto social e nas instituies da esfera pblica poltica, a fim de que essa participao seja efetiva. Por isso, em tal esfera pblica poltica agem organizaes sociais ligadas ao Estado (intermediadas por partidos, por exemplo), coligaes econmicas (associaes de proprietrios) e organizaes de massa. Esse pblico organizado de pessoas privadas participa do espao poltico por meio de uma comunicao com o Estado. Depreende o autor dessa nova estrutura de organizao social:

    Junto com os representantes politicamente efetivos das foras culturais e religiosas, essa concorrncia dos interesses privados organizados, frente ao neomercantilismo de um Executivo intervencionista, leva a uma refeudalizao da sociedade medida que, com a delimitao entre setor privado e setor pblico, no s instncias polticas passam a assumir certas funes na esfera da troca de mercadorias e do trabalho social, mas tambm, inversamente, foras sociais passam a assumir funes polticas.36

    Constata, por fim, na esfera pblica poltica do Estado Social-

    Democrata, a obrigao de as organizaes se interporem entre a opinio pblica e o Estado, com o objetivo de exercer uma funo crtica e, no, aclamativa ou de manipulao no tocante publicidade, por exemplo, das leis governamentais ou do jornalismo. Tal ativismo poltico do espao pblico, que representado pela mxima minimalizao objetivamente possvel das decises burocrticas e uma relativizao dos conflitos estruturais de interesses conforme a escala de um interesse geral reconhecvel37, note-se, permevel ao consenso. Tal rearranjo j no mais uma utopia; , sim, uma realidade que adveio da institucionalizao do Estado Liberal e de uma subseqente reformulao ideolgica.

    notrio que a trajetria habermasiana sofreu uma grande metamorfose no tratamento do espao pblico e das questes relacionadas

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  • a direitos fundamentais, justia, entre outras. Em seus livros posteriores, das dcadas de oitenta e noventa, como Conscincia Moral e Agir Comunicativo e Direito e Democracia: Entre Faticidade e Validade, o autor muda a sua perspectiva de histrico-sociolgica para filosfico-jurdica. Abandona a via marxista e vai ao encontro da denominada virada kantiana, tambm empreendida por John Rawls em Uma Teoria da Justia, em 1971, a fim de investigar, entre outros temas, qual a fundamentao dos direitos humanos, moralmente compreendidos, e do contrato que origina a sociedade e suas instituies polticas. Para alcanar esse propsito, explora a razo comunicativa e o espao pblico em que aquela se insere que, alis, tambm foi objeto da Mudana Estrutural da Esfera Pblica, obviamente sob outra perspectiva. Mas em tal esfera, em que sucede a comunicao intersubjetiva que se sujeita interpretao, em que se desenvolve o discurso e se enseja o consenso, o mundo j no apenas o burgus, mas, sim, o da vida, aonde se desdobram as relaes culturais, econmicas e privadas. Diferentemente de outrora, parece acreditar, enfim, que existem paradigmas universais, como os mencionados, que oferecem embasamento terico. Tal como J. Rawls, busca o filsofo encontrar novos fundamentos, por exemplo, para a moral ou a tica, com suporte nos quais se desenrolam as relaes sociais e, de forma integrativa, as jurdicas.

    Examinado o assunto do ponto de vista jurdico, percebeu-se que, nas dcadas de sessenta e setenta do sculo XX, a crise do Direito Constitucional marcou, por exemplo, a histria do constitucionalismo brasileiro. Crise essa que levou o pas e outros tantos da Amrica Latina, a permanecer, por largo tempo, dissociado do mundo da vida. Devido estreiteza dos limites impostos pela forte ascendncia do positivismo de moldes kelseniano sobre a doutrina majoritria do Brasil, verificou-se que temas, como os direitos humanos, no tinha espao poltico-jurdico suficiente para a sua discusso. S com o espancamento dos ltimos resduos ditatoriais, que ocorreu simultaneamente com a instalao da Assemblia Constituinte de 1987, matrias, como essa, puderam reemergir verdadeiramente no imaginrio da reflexo jurdica-nacional. Mas quanto aos pases ricos e democrticos, emergiram, nos mesmos anos setenta, inmeras doutrinas, no campo da teoria da justia, que suscitaram, quanto aos fundamentos, novas interpretaes que mostraram novos e possveis caminhos para a teoria constitucional. E talvez tenha sido um desses caminhos que trilhou J. Habermas. como ensina o professor brasileiro Ricardo Lobo Torres, neste pargrafo endereado ao livro de J. Habermas Direito e Democracia: Entre Faticidade e Validade:

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  • O duplo relacionamento da validade com a faticidade deixa aos atores sociais a escolha entre o caminho objetivo, socialmente delimitado, ou o performativo, a normatividade e com as conseqncias da norma estabelecida processualmente. Essa tenso entre faticidade postula a abertura da ao comunicativa, com a pluralidade dos atores (parte ou observador), de vises tericas (compreensiva ou explicativa), dos papis (juiz, poltico, legislador, cliente ou cidado), ou das posies pragmticas (hermenutica, crtica, analtica), tudo o que condicionar o problema da interpretao, possibilitando a integrao entre Lebenswelt (mundo da vida) e sistema, direito como meio e como instituio.38 Para arrematar este ponto, e ainda na esteira de R. Lobo Torres,

    assevera esse autor que J. Habermas chega, contudo, nos anos noventa, concluso de que, nem os valores, nem os princpios, nem, conseguintemente, a idia de justia podem legitimar o direito, que se reduz validade das prprias regras ticas presentes na comunicao entre os sujeitos e no consenso assim obtido.39

    O Significado da Expresso em Charles Taylor Parte-se, agora, para a viso da esfera pblica do terico canadense

    Charles Taylor. Segundo esse autor, essa pode ser definida da seguinte forma:

    ... um espao, no qual os membros da sociedade esto

    fadados a se encontrar atravs de uma variedade de meios de comunicao: impresso, encontros eletrnicos e cara a cara, a fim de discutir assuntos de interesse comum e assim ser capaz de formar uma identidade de pensamento sobre essas questes.40 possvel, a partir desse conceito inicial, j perceber que, em C.

    Taylor, o espao pblico, est influenciado, sobretudo, pelos meios de comunicao de massa. Nesse sentido, esse plano, no qual a mdia se insere, formador de opinies embora afirme o ensasta que as pessoas formam suas opinies livremente, o que, dentro desse contexto, parece ser questionvel , as quais iro influenciar ou controlar o governo. importante ressaltar, aqui, o que significa opinio pblica para o autor. um produto da reflexo, que emerge da discusso e que reflete um consenso ativamente produzido. Para chegar a essa definio, toma, como paradigma inicial, embora no nico, o livro de J. Habermas Mudana Estrutural da Esfera Pblica.

    Revela, tambm, C. Taylor que as decises do governo tambm interferem nas tomadas de posio da opinio pblica. essa

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  • intercomunicao dentro daquele espao o que estamos assistindo agora pela televiso se reporta ao que estava escrito no jornal de manh, o qual, por sua vez, relata o que a rdio debateu ontem que refletir na opinio de cada membro da sociedade civil. E estes, a seu turno, por meio do debate, da reflexo e do consenso, iro se organizar e chegar a concluses racionais, as quais orientaro o governo. o que se chama de Princpio da Superviso, o qual significa o seguinte: todo procedimento governamental, por exemplo, as deliberaes legislativas, deve ser pblico. Ao mesmo tempo, quando o governo se expe a essa presso da sociedade civil, pode ter de admitir que a legislao tenha de ser modificada, em conformidade com os desgnios dessa opinio pblica.

    Assim que, embora a esfera pblica seja um espao fora do poder e, at mesmo, seja um espao extrapoltico, no sentido de que est desvinculado de qualquer esprito partidrio, h, de certa forma, uma inegvel interao entre ambos. Aluso Experincia Brasileira: O Espao Pblico de Nelson Saldanha

    Num pas em que, historicamente, a vida privada se sobreps

    pblica, o sentido de participao poltica e, sobretudo, de res publica tornou-se deficiente. sobre o controvertido e incipiente desenvolvimento de um espao pblico no Brasil, descrito sob o signo da metfora do jardim e da praa, que o professor Nelson Saldanha se debrua em obra homnima.

    A partir de uma viso histrica, poltica e sociolgica, ou melhor, como ele mesmo parece deixar claro, antropolgico-filosfica, pe, em segundo plano, qualquer busca por um conceito ossificado do que seja pblico a praa ou privado o jardim. E aqui foroso fazer uma comparao com um outro autor Mircea Eliade que, ao caminhar sobre a mesma trilha dos conceitos gerais, das comparaes entre as mltiplas hierofonias e da abastada informao histrica, embora sem seguir um traado contnuo, perquire sobre o significado da religio e, ainda, sobre o objeto da histria das religies. Parecendo advogar a mesma linha filosfica do professor romeno, autor do clssico Tratado da Histria das Religies, N. Saldanha tece consideraes sobre a experincia brasileira sem, com isso, parecer querer esgotar o assunto ou de lhe oferecer um carter definitivo.

    Acompanhando, inicialmente, o ensinamento do socilogo Gilberto Freyre, assevera que, no sculo XIX, o nascimento da vida urbana e pblica deu-se com o triunfo da praa, o qual, por sua vez, coincidiu com o da rua. Mais adiante, aborda a questo do predomnio, ainda hoje presente, das

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  • estruturas feudais leia-se: coronelismo , que retarda e impede a reforma agrria e que manipula as eleies principalmente nos rinces mais atrasados do Pas, do ponto de vista social e econmico. Tambm lembra a emergncia tardia da imprensa e do ensino superior e a excessiva prevalncia do clero que, em momentos cruciais, muito influenciou as decises do Estado. E como ltimo dado histrico importante, o filsofo ressalta que os brasileiros no cultivaram o hbito da violncia pblica no seu sentido institucional, ou seja, no sentido de possibilidade concreta da luta41, o que, para o autor, torna vazia a extenso do significado de povo.

    Com base em tais deformidades histricas nacionais, N. Saldanha defende a tese de que, aqui, sucedeu o predomnio do privado sobre o pblico. Mas ressalta:

    ... vale notar que o fato de no termos tido, no Brasil, uma

    vida pblica com plenitude no significou que tivesse ocorrido a vertente oposta. Ou seja, no quer dizer que tenhamos vivido a ordem privada em seu sentido fundamental, ao menos no sentido do modelo clssico. E ambas as coisas, que so duas carncias, devem ter decorrido de distores dadas na colonizao e no povoamento.42

    Para, nas pginas subseqentes, concluir:

    Somos diversos pases v o recurso ambigidade semntica , somos um territrio exageradamente extenso, e como referncia espacial isto ajuda pouco a aglutinar comunidades com senso poltico homogneo. No podemos, e erro em que certos autores vm incidindo, entender as estruturas scio-polticas nacionais sem levar em conta os dados do passado; nem podemos prender-nos totalmente a eles. Por isto realmente difcil o trabalho de repensar o problema poltico (scio-poltico) do pas. E urgente faz-lo, obviamente, para que se formulem esquemas onde uma ordem pblica complexa e flexvel caiba a todos os pases existentes no Brasil, sem destroncar-se do passado e configurando um projeto nacional adequado em termos de valores e de instituies.43

    Concluso

    Em H. Arendt, restou claro que o indivduo e o valor liberdade (esfera privada) tm papel preponderante em sua viso filosfico-poltica. A sociedade e a igualdade (esfera pblica), por sua vez, se sujeitam s suas crticas, na medida em que favorecem a uniformizao do pensamento, excluem a possibilidade de ao individual e podem tornar-se pretexto para a tirania da vontade da maioria. Pode-se deduzir dessa viso kantiana que a autora confere

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  • prevalncia ao privado em detrimento do pblico. Isso porque parece no restar, na esfera pblica, um espao mnimo para a ao individual, prpria da esfera privada.

    Em sua teoria, J. Habermas privilegia o valor igualdade e o significado de sociedade de classes (esfera pblica). Em outros termos, o seu referencial no burgus, mas, sim, o conflito de classes marxista. Isso porque, de acordo com Marx, o homem real, o cidado real, o que se insere em um determinado momento histrico e em uma sociedade, que se baseia numa igualdade real e, no, formal. A dominao dos homens, cidados-proprietrios, sobre os demais, cidados no-proprietrios, se infiltrou na conscincia de toda a sociedade atravs, por exemplo, da imprensa e das leis, com o objetivo de fortalecer as relaes feudais de poder e de dominao existentes entre o proprietrio culto e o assalariado iletrado. A fim de modificar tal ordem de coisas, a esfera pblica deveria, na opinio de J. Habermas, ter, como base, a socializao dos meios de produo e o exerccio de suas funes. A autonomia, que se verifica na esfera privada, seria uma espcie desse gnero maior, que a esfera pblica.

    Para C. Taylor, o espao pblico pode ser extrapoltico, no sentido de que no est vinculado a qualquer esprito partidrio. Sem dvida, h uma interao entre a opinio pblica, que se forma, atravs do consenso, tendo em vista a influncia dos meios de comunicao de massa, e as decises governamentais, que repercutem na esfera da opinio pblica, atravs do papel exercido pelo Legislativo e pelo Executivo.

    Por fim, segundo a interpretao tambm marxista de N. Saldanha, h um predomnio, no Brasil, da vida privada sobre a pblica. A estrutura feudal do coronelismo, sobretudo, nas regies mais pobres do pas, a emergncia tardia da imprensa e do ensino superior e a excessiva influncia do clero sobre a conscincia nacional so aspectos histricos que revelam a ausncia de formao de um esprito popular, que, no decorrer dos sculos, tivesse proposto a luta armada como possibilidade efetiva de transformao scio-poltica.

    Com base nessas interpretaes de cunho kantiano e marxistas, respectivamente e, sobretudo, de H. Arendt e J. Habermas, podem-se, ainda, ressaltar outros aspectos de matiz filosfico-jurdica. Na viso desses autores, parece que os valores liberdade individual e igualdade social so auto-excludentes. O que se indaga, atravs da anlise de seus textos, que se, de alguma

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  • forma, no se conciliam, sem que um venha a predominar sobre o outro. Uma forma de conciliao foi gerada, por exemplo, pela previso dos direitos sociais nas Cartas Constitucionais e Internacionais do incio e do decorrer do sculo XX. Pergunta-se, entretanto, se esses direitos, que englobam, entre outros, a sade, a educao, a moradia, o trabalho, se converteram realmente em normas fundamentais nos pases latino-americanos e se possibilitaram a transformao da igualdade de direito em igualdade material ou de fato.

    Sem a efetividade social da igualdade material, no h que se falar em liberdade individual. Afinal, so dois valores que se condicionam. Na medida em que se concede a todos os indivduos, materialmente, a mesma igualdade jurdica de oportunidades, esses podem, em sociedade, requerer conscientemente o direito liberdade de participao nas decises democrticas. Poder-se-ia afirmar, portanto, que a liberdade individual uma concretizao da igualdade social. Tal argumentao se condensa na seguinte equao: igualdade de direito = igualdade de fato ou material liberdade individual.

    Por outro lado, ao partir da liberdade individual, poder-se-ia consider-la como base da formao do Poder Legislativo e do Poder Executivo por meio do processo eleitoral, pois influencia a elaborao das leis, no primeiro caso, e as decises administrativas, no segundo. Assim, haveria condies jurdicas para que os indivduos pudessem se tornar iguais. a denominada igualdade de direito. A princpio, mas no necessariamente, a igualdade de direito inclui a igualdade de fato ou material. Essa segunda argumentao se resume na seguinte frmula: liberdade individual igualdade de direito igualdade de fato ou material. Mas nem sempre o que est normatizado revela o que ocorre efetivamente na realidade social.

    No Brasil, a igualdade material, como norteadora da igualdade jurdica, nunca conduziu a uma situao de liberdade individual, pelo simples fato de que nunca existiu, entre os indivduos, igualdade material de oportunidades (igualdade de direito = igualdade de fato ou material liberdade individual). Constitucionalmente, apresenta-se a liberdade como condutora da igualdade jurdica e, quando muito, da material ou de fato. Atravs da interpretao dessa norma pelo Judicirio, h a possibilidade de concretizar materialmente a igualdade jurdica. Tudo depender da ideologia abraada pelo juiz. Se ele privilegia a liberdade, a adoo

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  • da igualdade jurdica e de fato e decide que o Estado tem a tarefa de produzir as condies materiais da igualdade, recairamos na primeira parte da segunda argumentao (liberdade individual igualdade de direito + igualdade de fato ou material). Mas se ele privilegia a liberdade, a adoo da igualdade jurdica e decide que o indivduo deve ser o provedor da sua prpria igualdade material, sem atuao do Estado, ento, recairamos na segunda parte da segunda argumentao (liberdade individual igualdade de direito - igualdade de fato ou material). Com tudo isso, o que se deseja frisar que a liberdade individual, como origem da igualdade entre os indivduos na sociedade brasileira, penetrou, sem dvida, o prprio espao pblico, o qual, por sua vez, continua sendo o da ao de uma minoria detentora dos meios de produo e das funes pblicas. A ao no foi, de forma alguma, relegada ao espao privado. Continua presente na esfera pblica, que, ao se submeter aos interesses e ideologia da classe dominadora determina que tipo de igualdade existir entre os indivduos.

    Notas 1A autora Mestre em Direito Pblico pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Professora de Cincia Poltica e Direito Constitucional e Doutoranda em Direito pela Universidade de Heidelberg. 2HABERMAS, Jrgen. Conscincia Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 30. 3LAFER, Celso. A Poltica e a Condio Humana. In: A Condio Humana. ARENDT, Hannah (aut.). 8a edio. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997, p. 345. 4Como ilustrao, recorre-se ao poema The White Man's Burden de Rudyard Kipling, que emblemtico do processo de expanso neocolonialista europia a partir do sculo XIX e que descreve a seguinte situao:

    Do Homem Branco o fardo a si tome As cruentas guerras de paz Encha bem a boca de Fome E as doenas mande cessar. ................................................................... Faa isso com seus vivos Com seus mortos, assinale-os! Do Homem Branco o fardo tomaste E colheste para si a velha praga: A Reprovao dos que ajudaste, O dio dos que guardaste.

    5WALZER, Michael. Las Esferas de la Justicia. Una Defensa del Pluralismo y la Igualdad. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1997. 6ARENDT, A Condio..., cit., p. 51. 7Id., ibid., p. 50. 8Id., ibid., p. 15. 9BAUDRILLARD, Jean. Sombra das Maiorias Silenciosas. O Fim do Social e o Surgimento

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  • das Massas. So Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 10Id., ibid., p. 35. 11WALZER, Michael. The Communitarian Critique of Liberalism. In: New Communitarian Thinking. Persons, Virtues, Institutions, and Communities. ETZIONI, Amitai (ed.). Charlottesville: University of Virginia,1996, p. 58. 12Id., ibid., p. 59. 13Id., ibid., p. 54. 14Id., ibid., p. 58. 15MARCONDES, Danilo. Iniciao Histria da Filosofia. Dos Pr-Socrticos a Wittgenstein. 2a edio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 264. 16LAFER, Celso. Hannah Arendt. Pensamento, Persuaso e Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 22-23. 17HABERMAS, Jrgen. Mudana Estrutural da Esfera Pblica. Investigaes quanto a uma Categoria da Sociedade Burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 16. 18Id., ibid.,. p. 17 19Id., ibid., p. 18. 20Id., ibid., p. 20. 21Id., ibid., p. 23-24. 22Id., ibid., p. 39. 23Id., ibid., p. 95. 24Id., ibid., p. 101. 25Id., ibid., p. 103. 26Id., ibid., p. 106. 27Id., ibid., p. 107. 28MARX, Karl. A Questo Judaica. Rio de Janeiro: Achiam, p. 30. 29Id., ibid., p. 37. 30 ALCAL. Rodolfo Vidal Gmez. La Ley como Lmite de los Derechos Fundamentales. Mxico: Editorial Porru, 1997, p. 31. 31Id., ibid., p. 31. 32HABERMAS, Mudana Estrutural..., cit., p. 149. 33Id., ibid., p. 151. 34Id., ibid., p. 154-155. 35Id., ibid., p. 263. 36Id., ibid., p. 269. 37Id., ibid., p. 273. 38TORRES, Ricardo Lobo. O Espao Pblico e os Intrpretes da Constituio. Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro: Publicao do Centro de Estudos Jurdicos, no. 50, p. 94, 1997. 39TORRES, Ricardo Lobo. Justia Distributiva: Social, Poltica e Fiscal. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro: Renovar, no 01, p. 105, janeiro-abril, 1995. 40TAYLOR, Charles. Liberal Politics and the Public Sphere. In: New Communitarian Thinking. Persons, Virtues, Institutions, and Communities. ETZIONI, Amitai (ed.). Charlottesville: University Press of Virginia, 1996, p. 185-186, 1996. 41SALDANHA, Nelson. O Jardim e a Praa. O Privado e o Pblico na Vida Social e Histrica. So Paulo: Edusp, 1993, p. 107. 42Id., ibid., p. 105. 43Id., ibid., p. 108. Bibliografia ALCAL, Rodolfo Vidal Gmez. La Ley como Lmite de los Derechos Fundamentales.

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