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Saúde em Debate
ISSN: 0103-1104
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil
Brasil de Araújo, Igor; Alves do Nascimento, Maria Angela; Araújo Assis, Marluce Maria
Modelos de atenção à saúde no PSF: práticas e relações
Saúde em Debate, vol. 34, núm. 84, enero-marzo, 2010, pp. 119-128
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341770014
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ARTIGO ORIGINAL / ORlGINALARTICLE
Modelos de atenção à saúde no PSP: práticas e relações
Health care models in the Family Health Program: practices and relations
Igor Brasil de Araújo I
Maria Angela Alves do Nascimento 2
Marluce Maria Araújo Assis 3
119
I Enfermeiro; membro do Núcleo de
Pesquisa Integrada em Saúde Caleei"a
(Nu Pise) da Universidade Estadual de
Feira de Santana (UEFS).
1 Professora titular do Departamento
de Saúde da UEF5i Doutora emEnfermagem; vice~coordenadorado
NUPISC da UEFS.
3 Professora titular do Departamento
de Saüde da UEFS; Doutora em
Enfermagem; coordenadora do
NUPISC da UEFS; pró-reitora dePesquisa e Pós-graduaç:ío da UEF5;
pesquisadora do ConseUlO Nacional
de Desenvolvimenw CientÍfico e
Tecnológico (CNPq).
RESUMO Trata-se de estudo crítico-reflexivo, que tem como objetivos analisar
as práticas de saúde nas Equipes de Saúde da Família (ESF) e caracterizar os
modelos de atenção à saúde desenvolvidos no Programa Saúde da Família (PSF).
Foram utilizadas como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada
e a observação sistemática; os sujeitos do estudo foram 25 profissionais das ESF
O método de análise de dados se aproximou da hermenêutica-dialética. Os
resultados mostraram que as práticas de saúde no PSF apontam um modelo
médico-hegemônico, juntamente à coprodução de coletivos e subjetividades,
configurando um plano complexo e contraditório de práticas e relações.
PALAVRAS-CHAVE: Atenção à saúde; Atenção primária à saúde; Programa
Saúde da Família; Sistema Único de Saúde
ABSTRACT This critical-reflective study has the goal ofana/yzing the health
care practices in the Fami/y Health Teams, and ofdistinguishing the models of
health care developed in the Fami/y Health Programo Data were collected through
semi-structured interviews and systematic observations; the subjeets ofthe study
were 25profissionais ofthe Fami/y Health Teams. The method ofdata ana/ysis was
c/ose to the hermeneutic dialeetics. The results showed that the health practices of
the Fami/y Health Program point to a medical hegemonic model, along with the
coproduction ofcollecti1Jes and subjectilJities, depicting a complex and conflicting
plan ofpractices and relationships.
KEYWORDS: Health care (public health); Primary health care; Fami/y Health
Program; Single Health System.
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120 ARAÚJO, J. B.; NASCIMENTO, M. A. A.; ASSIS M. M. A. • Modelos de atençáo à saúde no PSF: práticas e relações
INTRODUÇÃO
Este estudo tem como ponto de partida a cons
trução do 'modelo SUS', a partir do direcionamento-dos princípios constitutivos do Sistema Unico de Saúde
(SUS), assegurados na legislação brasileira: integralidade,
equidade e universalidade.
A integralidade se configura num conjunto ar
ticulado e contínuo de ações e serviços preventivos e
curativos, individuais e coletivos, conforme evidencia
Manos (2006, p. 36):
{ ..} construída a partir de atitudes individu
ais amalgamadas que se constroem práticas
sanitárias comprometidas, é vista como forma
pela qual se organizam os serviços e as práticas
de saúde.
Equidade se traduz na noção orientadora de justiça
que deve orientar os planejadores, gestores e trabalhadores
de saúde, no atendimento às demandas que emergem no
cotidiano das práticas. Ou seja, seria o reconhecimento da
desigualdade de necessidades en tre pessoas, grupos e clas
ses sociais, sob o enfoque demográfico, socioeconâmico
e epidemiológico. Nesse processo, a igualdade e a justiça
na oferta de serviços, além da captação de demandas dos
usuários, formam o arquétipo da construção da equidade,
que pode ser indicada pela desigualdade da oferta, indi
retamente proporcional à desigualdade das necessidades,
para ações e serviços de promoção, proteção e recuperação
da saúde (SANTOS, 2004).
A un iversal idade das ações e serviços de saúde deve
ser pensada a partir da construção do Estado democrá
tico de direitos. Isso porque a universalidade constitui
um princípio desse Estado, que garante a cobertura dos
riscos sociais de sua população.
Toma-se como pressuposto a definição de mo
delos de arenção à saúde, enquanto fruto do processo
de formação de relações horizontais (equipe-usuário),
como parte das estruturas de saúde; tais modelos podem
ser definidos como modos de produção constituídos, e
outros tantos inovadores, que aparecem num contexto
de ampla construção de práticas e maneiras de agir em
saúde, configurando processos de "trabalho vivo em
ato'" (MERHY, 1997a, 2002). Complementando essa
ideia, Campos (2006, p. 53) adota a seguinte definição
de modelo:
{ ..} a forma de produção das ações de saúde
na inter-relação entre os serviços de saúde e
o Estado, quanto à organização coletiva das
práticas de saúde, no intuito de produzi-las e
distribuí-las.
Acerca das transformações no âmbito da produção
do cuidado em saúde, Merhy (l997b, 2002) teoriza sobre
o ptocesso de trabalho em saúde, afitmando que esse é,
designadamente, um trabalho vivo. Dessa forma, só existe
em ato, em ação, ou seja, no momento do trabalho em
si, ocorrendo no instante do encontro do trabalhador de
saúde com O usuário; sendo assim, é sempre relacional.-E o momento em que o trabalhador pode agir com certa
autonomia, ainda que esteja sob pressão externa, pois o
trabalho vivo é, eminentemente, instituinte, mesmo que
em graus diversos, já que poderá estar sendo sujeitado aos
procedimentos instituídos. Complementa, ainda:
[..} qualUÚJ se trata de trabalho em saúde, esta
autonomia do trabalho vivo em ato ébem ampla,
I Entendido como práticas de produção de relações no momento em que é produzido o trabaUlO, em ato, sendo essencialmente um trabalho intercessor, ou seja,
que opera na relação entre os diferentes saberes e práticas (MERHY, 1997b).
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ARAÚJO, I. B.; NASCIMENTO, M. A. A.; ASSIS M. M. A. • Modelos de atençJo à saúde no PSF: praticas e relações 121
independente de estarou não sob aforma empresa
rial em relação aos movimentos de 'captura'pelas
tecnologias mais estruturadas (duras e leve-duras)
epelas necessidades. Pois ambas - tecnologias es
truturadas e necessidades - capturam o trabalho
vivo em ato, noprocesso interseçor que, em saúde,
ésempre umprocesso 'quase-estruturado'(MERHY,
1997a, p. 89).
o pensamento de Merhy possibilita discutir os
momentos do processo de trabalho, como momentos de
embates com interesses diversos quase nunca consensuais
sobre as necessidades de rupturas. Aqui, O autor introduz o
conceito de micropolítica, afirmando que cada sujeito social
tem certo grau de aurogoverno - imprime, no cotidiano
das práticas em saúde, distintos processos instituintes que
operam em várias direções dentro desse microespaço.
Diante dessa possibilidade de transformação,
Merhy (l997a) retorna a discussão sobre as ferramentas
tecnológicas apropriadas para confrontar com as sól idas
instituições de saúde. Sobre a questão, aposta nas tec
nologias leves - tecnologia de relações - para ampliar
as possibilidades terapêuticas e redirecionar o modelo
de saúde comprometido com a defesa da vida. Além
disso, traz a ideia ordenada em três tecnologias: a dura,
caracterizada pelo instrumental complexo, incluindo
equipamentos e exames; a leve-dura, que se refere a
saberes profissionais na interseção entre a Clínica e a
Epidemiologia: e o campo das tecnologias leves, que são
as tecnologias de relações, a partir do encontro entre o
trabalhador de saúde e os usuários.
A prática de relações ou tecnologias leves é envol
vida por escuta, fala, acolhimento, responsabilização
e resol ubilidade dos problemas a serem enfrentados.
Constituem-se, assim, as relações entre sujeitos com
capacidade de resolver os problemas da comunidade pela
escuta, os ruídos do cotidiano, a construção de vínculos,
com responsabilidade e humanização.
Por conseguinte, o objeto da recnologia de relações
é a produção de cuidados, e, a partir dela, almeja-se a
cura e a saúde/promoção da saúde, que deve ser orienta
da pela troca de afetos e corresponsabilização, situando
o usuário no centro do processo.
Diante do exposto, o estudo tem como objetivo
analisar as práticas de saúde nas Equipes de Saúde da
Família (ESF), e caracterizar os modelos de atenção à
saúde desenvolvidos no Programa Saúde da Família
(PSF) em Feira de Santana (BA).
CAMINHO METODOLÓGICO
O cenário da pesquisa foi o município de Feira
de Santana (BA), tendo importância como centro co
merciai, inclusive por ser entroncamento rodoviário e
próximo da capital baiana, Salvador. Segundo dados do
DATAsus (BRASIL, 2007), a cidade tem uma média de
544.133 habitantes, dispersos em lU11a área territorial
de 1.363 km'. Atualmente há 156 unidades de saúde,
sendo 114 municipais. A rede municipal é composta
por: 75 Unidades de Saúde da Família com 82 equipes
de Saúde da Família, com um percentual de cobertura do
PSF de 60%, enquanto a zona rural está 100% coberta
(BAHIA, 2008).
Trata-se de um estudo crítico-reflexivo, que uti
lizou como técnicas de coleta de dados a entrevista
semiestruturada e a observação sistemática da prática. Os
sujeitos do estudo foram 25 trabalhadores, incluindo as
seguintes categorias profissionais: médicos, enfermeiros,
odontólogos, técnicos e/ou auxiliares de enfermagem e
agentes comunitários de saúde. Considerou-se a equipe
básica que atua no programa e que possui o atendimento
de saúde bucal. O quantitativo de sujeitos foi definido
por meio da saturação teórico-empírica, ou seja, quan
do os dados começaram a se repetir, de acordo com as
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122 ARAÚJO, J. B.; NASCIMENTO, M. A. A.; ASSIS M. M. A. • Modelos de atençáo à saúde no PSF: práticas e relações
unidades temáticas definidas para o estudo, concluiu
se a coleta das entrevistas. As observações das práticas
duraram 32 horas e foram registradas em um diário de
campo. Os entrevistados foram apresemados a partir da
classificação que receberam, por exemplo, Ent. 01.
Os dados foram coletados no período de maio a
julho de 2007 após O parecer favorável do Comitê de-Etica em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS), sob o protocolo 014/2007.
A análise dos dados se aproximou da hermenêuti
ca-dialética com base em Minayo (1999), sistematizada
em três etapas: ordenação, classificação e análise final dos
dados, que possibilitou uma análise dos elementos sub
jetivos que atravessam a produção da prática, referente
aos diversos momentos de fluxo de usuários na rede de
atendimento SUS.
Ordenação dos dados: essa etapa teve como obje
tivo estabelecer uma identificação do material empírico
coletado no campo de estudo. Assim, no primeiro
contato com O material empírico coletado, realizou-se
a transcrição fiel e em seguida foi feita a leitura preli
minar do material transcrito, organização dos diferentes
dados contemplados nas entrevistas e observações, com
O intuito de estabelecer um mapeamento horizontal do
material empírico coletado no campo de estudo.
Classificação dos dados: tealizada a lei tu ta exaustiva
e 'Rutuante' dos textos contidos nas entrevistas, recortan-
do e realizando a sÍmese vertical ou geral de cada unidade
de análise, o que possibilitou a visualização das ideias
cemrais sobre o tema em foco. As categorias empíricas
foram construídas a partir de algumas convergências en
comradas, o que caracteriza o semido das representações
das Falas ou outtaS formas de expressão, relacionadas ao
objeto de estudo com direcionamento para sistematizar a
análise (AsSIS, 1998). (Veja se ficou bom assim, com um
pomo de seguimemo no meio do parágrafo)
A análise final foi produzida através da símese evi
denciada nas categorias empíricas: Modelos de Atenção
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no Programa Saúde da Família: do Assistencialismo à
Focalização, e Modelo de Atenção à Saúde: as Contra
dições nas Práticas de Relações.
MODELOS DE ATENÇÃO NO PROGRAMA
SAÚDE DA FAMÍLIA: DO ASSISTENCIALISMO
À FOCALIZAÇÃO
Campos (2006) comextualiza o modelo liberal
privatista como O primeiro modelo de atenção por
procedência histórica e predominante no Brasil, caracte
rizado pelo forte viés do assistencialismo. Nesse semido,
práticas subjetivas não são valorizadas, direcionando as
prioridades para os atendimentos rápidos, consul tas,
procedimentos baseados na relação queixa-conduta,
e a resolubilidade é comprometida com os problemas
de saúde das pessoas, pois são resolvidos fora de seu
contexto sócio-político-ambiental.
Para tanto, destacam-se as falas dos entrevistados
14 e 17:
[a resolubilidade} eu acho que ainda é muito
pequena. Aqui é a unidade básica, se atende
consulta, o exame de rotina. {. ..} Tem a parte
básica, que resolve, mas se dependerpra resolver
algum problemas é difícil. (..) a prioridade
clinica. O atendimento clínico, pois afinal a
carência maior é clinica. (Ent. (4).
O mais importante pra mim é o atendimento,
a linha de frente é a chegada do paciente na
unidade de saúde. (Ent. 17).
A partir desses depoimentos e das observações no
PSF, viu-se que na realidade da prática cotidiana a prio
ridade é dada ao atendimento individual e curativista, o
ARAÚJO, I. B.; NASCIMENTO, M. A. A.; ASSIS M. M. A. • Modelos de atençJo à saúde no PSF: praticas e relações 123
que gera um déficit de resolubilidade, tanto no que se
refere à atenção primária quanto nos demais níveis de
complexidade do sistema. Além do mais, O problema
é visto unilateralmente, com enfoque na doença, que
precisa ser 'resolvida', desconsiderando inclusive as
determinações sociais e políticas que envolvem o dia a
dia das pessoas que, consequentemenre, inrerferem no
processo saúde-doença.
Os entrevistados 4 e 9 complementam a visão sobre
a realidade do agir dos rrabalhadores do PSF:
Eu busco tentar resolver o problema dele [usu
ário} de uma fOrma que ele não precise chegar
à médica, que às vezes eu já sei qual vai ser a
resposta dela, entendeu? (Ent. 4).
tu acho que quanto a isso, eu acho que a gente
tá tudo bem, mas o acesso pra alguns é mais
difícil, porque a comunitÚlde aqui é muito
carente, até mesmo a medicação, ou coisa assim,
não tem a condição de comprar e agente fàlta
(Ent. 9).
O entrevistado 4, implicitamente, relaciona a
prática assistencialista a um processo de trabalho
artesanal, em que cada profissional é autónomo
pelo cuidado, caracterizado pela "predominância da
abordagem estritamente técnica, em que o trabalho
de cada área profissional é apreendido como conjunro
de atribuições, tarefas ou atividades" (PEDUZZI, 2001,
p. 104). Ressalta-se, dessa forma, a característica de
um trabalho artesanal, porque cada profissional afasta
para si a resolução de problemas imediatos que acome
tem o usuário, em detrimento à corresponsabilização
e à integração das atividades entre os membros da
equipe. Já o entrevistado 9 apoma a dificuldade de
acesso, também característica do modelo biomédico,
em que:
ocorre desigualdade de acesso dos consumitÚJres
aos serviços. Assim, para a população de maior
poder aquisitivo, estruturou-se especialitÚldes,
e como complemento uma rede de hospitais
altamente especializados e confOrtáveis. Para o
restante, aqueles para quem o Estado compra
serviços, organizou-se vasta rede de Pronto
atendimento, onde a atenção é impessoal e de
pequena resolutivitÚlde, além de inúmeros hos
pitais contratados ou credenciados. (CAMPOS,
2006, p. 54).
Nesse conrexto, a população desprovida de poder
aquisitivo é um obstáculo para a falra de acesso às tecno
logias leves, para a eficácia de cuidados de reabilitação,
porque muitas vezes não consegue recursos para seu
tratamento. Tal obstáculo poderá tanto caracterizar a
falta de acesso como a resolubilidade das necessidades
de saúde que o usuário apresenta.
Concomitante aos depoimentos com enfoque as
sistencial, evidencia-se no campo empírico uma prática
de focalização, tal como a organização dos atendimentos
por grupo populacional específico ou por patologias
presentes, em maior número na população atendida
('formatados' em programas de atenção à criança, mu
lher, idoso, hipertenso e diabético), explicitada aqui nas
falas dos entrevistados.
Porque oPSI; ele é, que éda atenção básica, ele
tem, ele desenvolve Programas. Os progmmas
que são parte do PSFsão hipertensão, diabetes,
saúde tÚl Mulher, do idoso, da criança, do ho
mem ainda ta menos, mas (risos), hanseníase,
tuberculose { ..}. (Ent.3).
A prioridade aqui é hipertensos, diabéticos,
{ ..} criança de Oa 1 ano, isso realmente é uma
prioridade. A gestante também. E as atividades
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124 ARAÚJO, J. B.; NASCIMENTO, M. A. A.; ASSIS M. M. A. • Modelos de atençáo à saúde no PSF: práticas e relações
educativas, eu acho que é pra orientar mesmo
a comunidade (Ent. 21).
(...) a prioridade das ações do PSF são as ações
voltadas aosgrupos: Saúde da criança, idoso, mu
lher. .. {..} oponto chave é a questão educativa.
A gente não trabalha com programas que levem
em conta o ser humano como um todo. A gente
trabalha saúde da mulher, saúde da criança,
hipertenso e diabético, hanseníase (Ent. 24).
Como se vê, os entrevistados 3, 21 e 24 reco
nhecem a prioridade dada às práticas dos programas
verticalizados de atendimento a determinados grupos
populacionais, oferecendo 'pacotes prontos', sem aten
tarem para a individualidade e subjetividade das pessoas,
nem ao seu processo de saúde-doença.
Teixeira (2003, p. 265) evidencia tal realidade ao
afirmar que tais práticas são formatadas:
sob o rótulo das açõesprogramáticas em saúde:
na medida em que tomam como ponto de parti
da, uma reflexão sobre aprogramação enquanto
uma tecnologia que pode ser utilizada para
a reorganização do processo de trabalho. {. ..}
Propõe a delimitação dos objetos de intervenção
no âmbito dos serviços como sendo 'necessidades
sociais de saúde' definidas em fUnção de crité
rios demográficos, socioeconômicos e culturais,
o que promove o estabelecimento de recortes
populacionais.
Ao cruzar os depoimentos apresentados com a ob
servação realizada, percebe-se um forte viés da atenção,
pautada na utilização de conhecimentos e tecnologias
voltadas pata a intetvenção de grupos populacionais
específicos ou problemas específicos que vão aparecendo
na prática do 'trabalho vivo'. A epidemiologia e a imensi-
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ficação dada a alguns problemas aparecem nessa perspec
tiva, voltadas a problemas específicos de determinadas
camadas populacionais, particularmente observadas nas
consultas individuais com atenção à queixa-conduta el
ou nas atividades em grupos focalizados. A assistência
no interior dessas consultas é dirigida a atendimentos
de puericultura, planejamenro familiar, pré-natal, sem
espaço para se vislumbrar um problema posterior que
estivesse ligado indiretamente, pois O enfoque dado era
específico naquele momento à criança, ou à mulher, ou
à gestante, caso estivessem na consulta de atendimento
ao crescimento e desenvolvimento da criança, planeja
mento familiar, ou pré-natal, respectivamente.
MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE: AS
CONTRADlÇÓES NAS PRÁTICAS DE
RELAÇÓES
Diante da análise do modelo médico-centrado com
práticas focalizadas, tem-se clareza de que a mudança
pode ser feita a partir da reorganização do cotidiano do
trabalho, através da inserção da diversidade de saberes
pela equipe multiprofissional do PSF. Contudo os sa
beres devem ser articulados não apenas nas tecnologias
leve-duras e duras, mas também nas tecnologias leves
(das relações) para produzir saúde, respaldadas por rela
ções 'intercessoras', vislumbrada no 'trabalho vivo'.
A tecnologia da relação é reforçada nos depoimen
tos dos entrevistados 9 e 16:
Eu acolho muito bem. Recebo todo mundo
muito bem, até mesmo aqueles que já chegam
'daquele jeito'! (Em. 9).
Acolhimento, acolher aquelas pessoas que real
mente vêm nosprocurar, pois nós todos sabemos
ARAÚJO, I. B.; NASCIMENTO, M. A. A.; ASSIS M. M. A. • Modelos de atençJo à saúde no PSF: praticas e relações 125
que quando vêm nosprocurar éporque tão com
algum problema. Geralmente, quando eles vêm
assim, procurar aqui, quer urna consulta, às
vezes já estar preenchido o 'saldo: mas a gente
sempre dá aquele Jeitinho'de conversar. Então,
oacolhimento éagente nunca deixar opaciente
voltar sem nenhuma esperança (Ent. 16).
Tais fulas demonstram a existência da prática de
relações, com mençáo ao acolhimento aos usuários do
serviço. A fala do entrevistado 16 reafirma o poder que o
trabalho e o desenvolvimento das relações 'intercessoras'
produzem com possibilidades para a abertura de cami
nhos para o diálogo e negociações. Assim, consegue-se
obter a construçáo subjetiva na produçáo do cuidado
em saúde, ou por si mesmo, O cuidado prestado.
Nessa iminência de relações, destaca-se em alguns
depoimentos a evidência do vínculo entre os profis
sionais que atuam no PSF e os usuários desse serviço,
conforme as falas dos entrevistados 5 e 18:
Corno eu já tefilei: a gente já tem um vinculo
maior porque a gente ta aqui nessa equipe há
5 anos. tntão a gente tem um vinculo muito
grande com a comunidade. Eles [os usuários}
participam bastante. Porque, corno a gente
tem esse vinculo, eles têm uma abertura maior
de mostrar de passar o que realmente eles tão
passando (Ent. 5).
Avalio também corno positivo. É corno eu te
disse. Há pessoas que reclamam... Tem pessoas
que reclamam, que dizem que não se deu bem.
Já existe urna intimidade com a comunidade e
com a equipe toda, mas se você me perguntar
dessa forma, eu vou te dizer que é o agente
comunitário de saúde, já pela ficilidade de
morarmos aqui no bairro (Ent. 18).
Da mesma forma que o acolhimento, o vínculo retrata
a relação próxima entre profissional e usuários ao estabelecer
um comato que pode serde forma benéfica para a promoção
da saúde, a partir do momento que se tem a possibilidade de
ouvir com mais acurácia os ruídos do cotidiano do serviço
e interferir de forma positiva na vida das pessoas e famílias,
no intuito de se produzirem cuidados.
Outrossim, destaca-se a fala do entrevistado 18
sobre a importância da inserçáo do agente comunitário
de saúde, como um facilitador da construçáo de vín
culos e relações 'intercessoras' entre a comunidade e os
profissionais do serviço. Nesse sentido, acredita-se que o
contato permanente desse profissional em especial com o
cotidiano da comunidade (inclusive que mora no mesmo
local que os usuários) poderá facilitar esta comunicaçáo
permanente e fortalecer os vínculos.
No sentido de complementar O entendimento da
existência das tecnologias de relações, os entrevistados
1 e 3 mencionam como se constitui a humanizaçáo no
interior das práticas no PSF.
Humanização... para mim, é eu tratar as pes
soas do jeito que eu quero ser tratada. { ..} Pra
mim, a humanização é a pessoa sempre ter um
jeito assim, {..} de tratar as pessoas assim como
você gostaria de ser tratado (Ent. 1).
Porque, se você, além ver de o estado fisico da
pessoa, ver a outra parte, que a pessoa precisa:
o lazer, até aconselha as pessoas, é um pouco
psicólogo e tudo. Então a gente trata a pessoa
corno um ser humano, e não como uma pressão,
ou como um diabetes, ou a doença. A gente ver
o todo (Ent. 3).
Porém, os entrevistados 2 e 10 relativizam as idéias
destacadas anteriormente pelos entrevistados 5, 18, 1 e
3 em relaçáo às práticas das tecnologias leves:
Saúde em Debate. Rio de J~Uleiro, v. 34, n. 84, p. 119- 128, jan.lmar. 20 lO
126 ARAÚJO, J. B.; NASCIMENTO, M. A. A.; ASSIS M. M. A. • Modelos de atençáo à saúde no PSF: práticas e relações
Sobre isso, eu não tenho o que dizer, só que tem
momentos que não agüenta apressão, opessoalda
recepção se estressa naturalmente. A gente acolhe,
mas não é às vezes bem entendido (Ent. 2).
Humanização aqui é nenhuma. Com os pro
fissionais náo tem nenhuma. Com os usuários,
sim, porque a gente conversa, conhece a jàmí
lia, até a mais, mas quando a paciente estar
estressada, não tem humanização nenhuma. É
agressáo mesmo (Ent. 10).
Outrossim, observa-se também que há certos
-aspectos estressores que comprometem a manutençao
de Wlla relaçáo positiva entre trabalhadores e usuários,
possibilitando a utilizaçáo de tecnologias leves como
ferramentas de cuidado e promoçáo da saúde. Na fala do
entrevistado 2, o próprio reconhece a importância que
o acolhimento tem no seu processo de trabalho; porém,
há momentos em que ele é 'quebrado' pelo estresse. Viu
se também na prática que há outras formas de cuidado
que tem maior aproximaçáo com uma prática centrada
no modelo biomédico. Ou seja, valoriza-se o poder da
medicalizaçáo e a queixa-conduta, quando as tecnologias
leves náo sáo, ou náo podem ser utilizadas como ferra
menta. Conforme aponta Campos (2005, p.70):
os profissionais. os grupos, também despertam
sentimentos positivos ou negativos entre os
profissionais que atendem: vontade de curar
ou antipatia, desejo de educar ou de ser livre
um do outro. Ninguém é de pedra, ninguém
é absolutamente racional e frio no trabalho
em saúde, somos afetados pelo modo de ser dos
nossos pacientes.
De outro modo, os entrevistados 11 e 20 trazem
à discussáo a prioridade dada às suas práticas, baseadas
Saúde em Debau, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84. p. 119-128, jan.lmllT. 2010
nas tecnologias leve-duras, numa in ter-relaçáo entre a
Clínica e a Epidemiologia:
Modelo de atenção é dar prioridade aos pro
blemas da minha área, do meu território {..}
então a gente fez um levantamento, avaliou,
fez um diagnóstico da área, daí a gente tratou
de ver que modelo melhor se ajeitaria com a
população que a gente tem. {..} A gente ainda
tem algumas práticas dentro do PSF que são
práticas daquelaforma antiga que trabalhava.
Temos campanha de vacina, não haveria mais
necessidade de campanhas de vacinação desde
quando eu trabalho cada caso. [. ..} Quando isso
tiver consolidado no PSF, essas práticas de cam
panha, elas deverão desaparecer. (Ent. 20).
A gente sempre tenta melhorar, eu sempre
entrego aos meus agentes [ACS} planilhas pra
ver o meu perfil de hipertensos, o meu perfil de
diabéticos, quantos tem plano de saúde, quantos
são acompanhados no posto, quantos pegam
medicação. Além da planilha normal que o
agente tem dele, eu preparo a minha. Além
disso, eu também tenho a minha pLanilha pra
meus adolescentes. (Ent. 11).
As tecnologias leve-duras:
relacionam-se com osaber que aspessoas adqui
rem e se apropriam no modo de pensar e atuar
sobre os casos de saúde, e a tecnologia dura, por
exigir um saber-fazer estruturado, organizado,
que normaliza eé normalizado. (MERHY; MA
GALHÃES JR; FRANCO, 2006, p. 23).
As tecnologias leve-duras identificadas nos depoimen
tos dos entrevistados 11 e 20 se referem à priorizaçáo dada
ARAÚJO, I. B.; NASCI ME!'rrO, M. A A; ASSIS M. M. A. • Modelos de :Hençjo ~ saúde no PSF: práticas e relações 127
às planilhas, ao delineamento epidemiológico e à busca ati
va de doenças, que orientam as ações nesses espaços. Como
menciona o entrevisrado 20 sobre a intensificação vacinal
ao recolher informaçóes acerca das afecções que mais aco
metem a população da área de abrangência do PSF.
Assim, são analisadas as situações e tomadas medi
das de intervenção, a fim de combater os problemas de
saúde de maior risco na comunidade. Já o entrevistado
11 se refere à construção de planilhas criadas pelo pró
prio profissional para mapear com maior fidedignidade
a população a que sua equipe é responsável.
O mesmo entrevistado 20 complementa a sua
fala, informando a utilização de tecnologia leve-dura
para a produção de cuidado, por meio de estratégias
campanhistas e focalizadoras para o enfrentamento de
indicadores correspondentes a uma baixa de cobertura
vacinaI. Traz o indicativo da utilização, porém, das tec
nologias duras e leves no tratamento específico de cada
caso, não sendo mais necessária a cobertura vacinai,
atualmente proposta como alternativa.
CONSIDERAÇÓES FINAIS
As práticas de saúde no PSF de Feira de Santa
na (BA) se traduzem particularmente no processo de
trabalho das equipes, de como O modelo de saúde se
configura nesse cenário, trazendo novas questões para
serem repensadas no espaço concreto de produção do
cuidado em saúde.
A forma com que o PSF se configura no seu íntimo
processo de construção das práticas de saúde caminha
para a confluência de um modelo médico-hegemônico,
com ações focalizadas a grupos específicos da população,
na interseção de contradições no que diz respeito às
tecnologias das relações, com amplitude de concepções
acerca do processo saúde-doença.
O modelo médico hegemônico se mostrou presente
quando se analisou a existência de características rais como:
medicalização; a prática focalizada e baseada na queixa con
dura, com valorização das tecnologias duras e leve-duras.
Porém. aponta-se para a necessidade de apoiar um
projeto em defesa da vida, dos usuários e famílias, bem
como práticas que priorizam o contexto individual e subje
tivo das pessoas que usufruem do serviço com a introdução
de tecnologias leves, rais como o acolhimento, o vínculo e
a humanização numa prática resolutiva e coerente com a
proposra de se realizar práticas em saúde que tenhan1 como
intuito a emancipação, a responsabilização e a autonomia
dos usuários, para definirem os caminhos de suas vidas.
Porém, a contradição nesse aspecto se refere à prática
centrada na queixa-condura e à 'pressão' dos usuários por
atendimentos imediatos de um determinado problema.
Dessa forma, o modelo de atenção desenvolvido no
PSF em ['eira de Santana mostrou que as práticas de saúde
apontam para um modelo médico-hegemônico, juntamente
à coprodução de coletivos esubjetividades, configurando um
plano complexo e contraditório de práticas e relações.
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Recebido: Outubro/Z008
Aceito: Dezembro/2009
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