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Reflexões sobre a Súmula 309 do STJ
Ana Luiza Schmidt Lourenço Rodrigues
Promotora de Justiça
Tomamos conhecimento, recentemente, do enunciado
da Súmula n. 309 do STJ, não podendo deixar de externar nossa
indignação ante a manifesta inobservância aos preceitos legais que regulam
a matéria e a própria realidade social vivenciada nas Promotorias de Justiça
de Família.
Diz o enunciado que “O débito alimentar que autoriza
a prisão civil do alimentante é o que compreende as três últimas prestações
anteriores à citação e as que vencerem no curso do processo”.
Embora tenha sido este o entendimento dos Tribunais
nos últimos anos, temos nos batido em sentido oposto, ante a inexistência
de qualquer contradição ou lacuna legal a amparar criação de entendimento
jurisprudencial manifestamente colidente com o interesse social.
- Primeira parte da Súmula 309 do STJ : débito alimentar passível de
prisão restrito às três últimas prestações anteriores à citação -
Os artigos 732 e 733 do Código de Processo Civil
indicam dois caminhos possíveis para a execução de débito alimentar, à
livre escolha do credor: adotado o primeiro rito, o devedor é citado para em
24 horas pagar o débito executado ou indicar bens à penhora; adotado o 1
segundo rito o devedor é citado para em três dias pagar o débito alimentar
atrasado, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de pagamento, sob
pena de prisão.
A adoção de um dos ritos é de livre escolha do credor,
porque o espírito da lei é proteger o alimentando que, na maioria das vezes,
privado dos pagamentos mensais, não detém mínimo conhecimento de
possibilidade de acesso à justiça, deixando acumular o crédito não por
desnecessidade, mas por desinformação ou temor de represálias do
devedor.
Isto porque em nossa sociedade e, em especial, no
âmbito familiar, excluídos os indivíduos afortunados social e
intelectualmente e que detém integral conhecimento de seus direitos,
exercendo a cidadania na forma mais ampla (parcela significativamente
pequena ante a nossa enorme população carente), a grande maioria sofre
reflexos da desinformação e da violência social.
Nesse contexto, o legislador, atento às mazelas
sociais, não impôs ao credor qualquer limitação quanto à adoção de um ou
outro rito executivo. A Súmula 309, ao contrário, ao dispor que “o débito
alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as
três últimas prestações anteriores à citação ...”, restringiu a utilização da
forma coercitiva de execução (art. 733 do CPC), impedindo àquele acesso a
meio de execução rápido e eficaz para garantia de sua subsistência.
Limitar a utilização do rito previsto no art. 733 do
Código de Processo Civil, que prevê forma coercitiva de pagamento do
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débito, aos três últimos meses anteriores à citação, é inverter a ordem de
direito, premiando o devedor renitente e contumaz, fechando os olhos à
nossa realidade social.
Com efeito, a pensão fixada em pecúnia, considerada
a natureza personalíssima do direito a alimentos, deve ser paga
efetivamente em mãos do credor ou seu representante legal, pois constitui
prestação urgente que se submete à administração direta daqueles.
Não concordando o alimentante com o valor da
prestação alimentar mensal ou com a destinação dos recursos conferidos ao
alimentando pelo representante legal, deve socorrer-se de instrumentos
específicos para revisão da obrigação ou fiscalização da conduta daquele,
garantida pelo poder familiar inerente à paternidade.
Não pode, sponte propria, alterar a forma de
pagamento ou suspendê-lo, deixando à míngua o alimentando que necessita
da contribuição mensal para sua subsistência.
Assim, em razão do caráter personalíssimo e urgente
do direito alimentar, o rito da execução é o da preferência do credor,
afastado o rigor do artigo 620 do Código de Processo Civil no âmbito do
direito de família, ainda que o rito adotado seja o mais oneroso ao devedor,
pois a finalidade da escolha é garantir o adimplemento do débito alimentar
e minimizar os efeitos da inércia daquele.
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Com efeito, “Na execução do crédito alimentar, em
que medram necessidades prementes, há a inserção de uma pluralidade
de meios, à escolha do credor, sem dúvida invejável. Além da
expropriação do artigo 647 Código de Processo Civil, dispõe o titular do
crédito o meio de coação pessoal ( artigo 733 e § 1º do Código de
Processo Civil) e o desconto da folha ( artigo 734 do Código de Processo
Civil). O problema nesta subespécie de execução por quantia certa contra
o devedor insolvente radica na demonstração de que o sistema permite,
realmente, a variação desses meios ao líbito do credor sem ofensa ao
princípio de menor gravidade da execução (art. 620 do Código de
Processo Civil), por outro lado, objeta-se ser sumamente injusto submeter
o credor às aguras do processo executivo, ou seja, do meio executório da
expropriação, enquanto ‘a fome não pode aguardar’ ”1.
Ressalte-se, ainda, que não há qualquer imposição
legal ao credor de alimentos no sentido de primeiro executar o alimentante
por quantia certa, exaurindo todos os meios possíveis de satisfação do
crédito, para somente depois pugnar pela medida coativa do artigo 733 do
Código de Processo Civil, podendo optar pelo meio que melhor lhe
assegurará o cumprimento da obrigação, independentemente do lapso
temporal decorrido desde o pagamento da última parcela devida.
Acolher a arbitrariedade do devedor em deixar de
pagar o débito alimentar, premiando-o com a possibilidade de execução
1 Comentários do Código de Processo Civil. Lejur, 1985, vol. IX, nº 341, p. 496/498.4
coercitiva somente com relação aos três últimos meses anteriores à citação
implica em inverter a ordem de direito e o ônus da prova, desrespeitando o
título executivo judicial preexistente e o próprio direito constitucional de
acesso à justiça.
Com efeito, a lei não restringe a execução coercitiva
aos três últimos pagamentos porque o espírito do legislador é assegurar
acesso do alimentando à justiça para garantia de recebimento urgente do
total do valor devido, independentemente do ajuizamento de execuções
distintas, que implicam em postergação da solução do conflito, acrescida de
gastos desnecessários com honorários advocatícios, custas e despesas
processuais, além de sobrecarga dos cartórios (autuações, citações,
intimações, certidões, etc). Ademais, a força coercitiva do rito executivo
previsto no art. 733 é abrandada com a restrição imposta pelos Tribunais: se
o devedor não honra sua obrigação há mais de anos e é citado para
pagamento dos três últimos meses, sob pena de prisão, quitando o período
exigido, não se importará com a solução do débito restante, que dependerá
de nova execução, agora sob o rito do art. 732 (expropriação de bens),
submetida à existência de patrimônio passível de constrição judicial ...
O alimentando, por sua vez, além de não receber
integralmente o crédito, é impelido a novo processo executivo que
possibilita ao alimentante a oposição de embargos, caso exista patrimônio.
Em caso negativo, o alimentando morre na praia ...
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A nosso ver, portanto:
- O enunciado da Súmula n. 309 do STJ restringe a aplicação da lei,
obstando direito constitucional de acesso à justiça (art. 5o inciso LXVII da
Constituição Federal);
- Trunca a prestação jurisdicional;
- Inverte o ônus da prova, por pressupor não possuir o devedor
condições de desincumbir-se da obrigação pecuniária inserta no
título executivo judicial e acumulada em razão de sua própria
torpeza;
- Desconsidera o período de carência imposto ao alimentando que, na
maioria das vezes, para suprir o abandono material decorrente da
inércia do alimentante se vale do empréstimo de terceiros e da ajuda
de familiares;
- Surpreende o alimentando com a inexeqüibilidade do crédito
alimentar quando inexistente patrimônio do devedor passível de
constrição judicial, estimulando a inércia deste e desvios de
patrimônio;
- Desprestigia a força executiva do título judicial e do comando inserto
no art. 733 do CPC, relativo ao cumprimento integral da obrigação
pela coação pessoal;
- Atravanca os ofícios com inúmeras execuções trimestrais, impelindo
o alimentando ao pagamento de verba honorária para o ajuizamento
de cada ação executiva, bem como das custas e despesas processuais,
agravando situação preexistente.
Além de tais prejuízos impostos ao hipossuficiente, ressa
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ltamos o evidente desestímulo ao pagamento, ante a
experiência diária no manejo das ações de execução de alimentos em
que constatamos que o devedor contumaz, renitente, surpreendido
com o decreto de prisão, na maioria das vezes, como por mágica,
reúne recursos para saldar o débito pendente e evitar o cárcere. A
restrição de utilização do rito da coação pessoal somente aos três
últimos meses anteriores à citação redunda em reflexos prejudiciais
quanto ao montante do débito executado, pois desestimula o
pagamento dos valores pretéritos, amenizando o efeito coercitivo da
norma. Este é o espírito puro da lei: surpreender e castigar o devedor
como forma coativa de cumprimento integral da obrigação alimentar
inserta no título executivo judicial. Privar o credor da força executiva
prevista no art. 733 do Código de Processo Civil é inverter a ordem
de direito, pressupondo insolvência que não foi sequer objeto de
apreciação judicial em competente ação revisional de alimentos!
Portanto, a primeira parte do enunciado da Súmula 309 do STJ
penaliza o credor de alimentos, que é obrigado a satisfazer-se
somente com o pagamento de parcela de dívida alimentar acumulada
por inércia do devedor, sendo impelido a percorrer, para recebimento
do restante, a via crucis da execução por quantia certa fundada no art.
732 do CPC (expropriacão de bens). Inexistindo patrimônio passível
de constrição judicial, o devedor é premiado com a suspensão da
execução do débito pretérito decorrente da inércia, da má-fé e do
abandono material imposto ao alimentando.
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Importante salientar-se que a decisão que decreta a prisão civil
do devedor de alimentos é fundamentada, decorrente de justificativa
rejeitada do devedor. Antes do decreto prisional, ao devedor é
concedida oportunidade para, em três dias após a citação, não
efetuado o pagamento, apresentar justificativa do inadimplemento.
Ao devedor de alimentos a lei concede oportunidade de defesa, que é
apreciada judicialmente e que só implica em prisão se constatada sua
inconsistência, a manifesta intenção procrastinatória, o débito
voluntário e inescusável.
Portanto, a restrição temporal imposta pela Súmula 309 para
adoção do rito executivo da coação pessoal (art. 733 do CPC),
inverte a ordem de direito por conceder ao devedor renitente e
contumaz, constatada a inadimplência voluntária e inescusável,
oportunidade para que salde somente parte do débito acumulado,
impondo ao credor sacrifício injustificado, já que a intenção do
legislador é garantir o recebimento integral do débito decorrente da
má-fé do executado.
Também manifestamente incongruente a falta de critério
utilizada para a fixação da restrição executiva imposta pelos
Tribunais e pela primeira parte do enunciado da Súmula questionada:
por que só os últimos três meses anteriores à citação são passíveis de
execução pelo rito do art. 733 do CPC? Por que não doze, dez, cinco
ou um mês? Seria este o prazo porque correspondente ao período
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máximo previsto para a prisão do inadimplente devedor? A natureza
do crédito alimentar é vinculada ao tempo?
Não, o crédito alimentar não perde sua natureza, é direito
personalíssimo, urgente. Assim não fosse não teria o legislador
previsto modalidade especial de execução forçada garantidora do
recebimento imediato do débito alimentar vencido, dando tratamento
diferenciado ao alimentando independentemente do tempo decorrido
desde o pagamento da última prestação alimentar... É injusto retirar
do credor o único meio eficaz de cumprimento da obrigação pelo
devedor, minimizando os efeitos da inércia deste em desprestígio à
fome e ao abandono material ( já que o intelectual e psicológico são
comumente suportados e sequer invocados ...).
Assim, com expediente decorrente de manifesta desobediência
à ordem legal inserta no título executivo judicial, os devedores,
premiados, impelem aos credores o ajuizamento de inúmeras
execuções, emperrando a máquina judiciária e ocasionando
expectativa infindável àqueles, que se vêem sujeitos à administração
da própria rotina familiar pelos Juízos de Família !
De rigor, pois, o prestígio à lei e às expectativas sociais, a fim
de que sejam desestimulados os descumprimentos de títulos
executivos judiciais que, a permanecer a interpretação dos Tribunais,
decorrem de sentenças condenatórias ou homologatórias dissociadas
da realidade das partes, portanto viciadas desde o seu nascedouro ...
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Segunda parte do enunciado da Súmula 309 do STJ -
inclusão de débitos vincendos no curso do processo –
A segunda parte do enunciado da Súmula 309 do STJ, que
admite a inclusão dos débitos vincendos no curso da execução, após
citação do devedor, é medida que afasta a aplicação dos princípios do
contraditório e da ampla defesa, garantidores do desenvolvimento
válido e regular do processo. Isto porque, adotado o rito do art. 733
do CPC, o devedor é citado para, em três dias, efetuar o pagamento,
provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. Optando
o credor pelo rito do art. 732 do CPC, o devedor é citado para, em 24
horas, pagar o débito ou indicar bens à penhora, sendo possível a
oposição de embargos. A inclusão dos débitos vincendos após a
citação impede e dificulta, pois, a defesa do devedor, qualquer que
seja o rito adotado. Fixados os limites da lide não é possível alterar o
credor o seu pedido, inserindo na cobrança débitos vincendos após a
citação válida e restringindo a possibilidade de defesa do devedor.
Assim, só é possível a inclusão de novo valor antes de realizado o ato
citatório (art. 264 do Código de Processo Civil).
Esbarra o enunciado, perigosamente, em inobservância ao
princípio do devido processo legal: “Compreende-se modernamente,
na cláusula do devido processo legal, o direito ao procedimento
adequado: não só deve o procedimento ser conduzido sob o pálio do
contraditório, como também há de ser aderente à realidade social e
consentâneo com a relação de direito material controvertida.
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Entende-se, com essa fórmula, o conjunto de garantias
constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de
suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis
ao correto exercício da jurisdição” (Antonio Carlos de Araújo Cintra,
Ada P. Grinover e Cândido R. Dinamarco – Teoria Geral do
Processo, 15a ed. – Malheiros Editores – 1999 – p.82).
Importante salientarmos a inaplicabilidade, nesse contexto, da
norma inserta do art. 290 do Código de Processo Civil, que prevê a
inclusão, no pedido inicial, independentemente de declaração
expressa do autor, das prestações periódicas inerentes à obrigação,
pois a demanda, no caso, invoca prestação jurisdicional de natureza
condenatória, que não se confunde com o processo executivo
fundado em titulo executivo judicial preexistente!
Portanto, a inclusão das prestações periódicas apontadas no
art. 290 do CPC constitui exceção ao art. 264 do CPC, não prevista
nos ritos especiais de execução de alimentos e só ocorre em ações de
natureza condenatória, onde inexistente título executivo judicial a
embasar execução autônoma.
Com efeito, no processo condenatório, “acolhendo a pretensão
do autor, a decisão afirma a existência do direito e sua violação,
aplicando a sanção correspondente à inobservância da norma
reguladora do conflito de interesses. Essa sanção, que não se
confunde com a sanção de direito material (medida de agravamento
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da situação do obrigado inadimplente), consiste em possibilitar o
acesso à via processual da execução forçada: proferida a sentença
condenatória, passa a ser admissível o processo de execução, que
antes não o era (non est inchoandum ab executione). Em outras
palavras, é a sentença condenatória, entre as demais espécies de
sentença, a única que participa do estabelecimento, a favor do autor,
de um novo direito de ação (ação executiva ou executória), que é o
direito à tutela jurisdicional executiva” (Antonio Carlos de Araújo
Cintra, Ada P. Grinover e Cândido R. Dinamarco – op. cit.- p.303).
Ora, detendo o credor de alimentos título executivo judicial
decorrente de sentença condenatória ou homologatória antecedente,
não lhe é possível a aplicação da exceção prevista no art. 290 do
CPC, restrita à expectativa de sentença condenatória decorrente de
demanda específica, que envolve discussão de mérito acerca de
obrigação consistente em prestação periódica desprovida de
apreciação judicial. A aplicação da exceção destinada somente ao
caso específico implica em nulidade da execução decorrente de
inobservância ao princípio do devido processo legal (que abrange o
contraditório e a ampla defesa), já que, após a citação, completada a
relação processual, o credor não poderá modificar o pedido
(CPC264), salvo se houver autorização do devedor.
A título de curiosidade e observação, também reputamos
manifestamente incabível a cumulação dos dois ritos de execução
(arts. 732 e 733 do CPC) nos mesmos autos, relativos a períodos
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diversos quando, por decisão ex officio, determina o juízo a cisão
dos períodos executados para que os três últimos sejam processados
sob o rito da execução forçada e o pretéritos mediante execução
expropriatória.
Com efeito, tal iniciativa do juízo, a nosso ver, fere a lei e o
próprio princípio da inércia da jurisdição, já que o devedor, antes
mesmo de apresentar sua defesa, é beneficiado, de ofício, com
decisão favorável e divorciada do pedido inicial, em manifesto
prejuízo ao credor!
A impropriedade da cumulação de ritos na mesma execução é
patente ante o disposto no art. 292 e parágrafos do CPC e a
inexistência de previsão específica no processo de execução,
causando tumulto processual e demora da prestação jurisdicional,
circunstâncias que colidem com a urgência do recebimento do
crédito alimentar.
Lembramos, finalmente, que as súmulas, originalmente,
devem suprir lacunas ou contradições, adaptando as leis à realidade
social. Ocorre que a Súmula 309 é diametralmente oposta aos
interesses sociais, prestigiando a inércia e o abandono material,
criando restrição legal inexistente quanto ao período executado e
possibilitando o desprestígio aos princípios constitucionais do acesso
à justiça, do devido processo legal, do contraditório e da ampla
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defesa. Merece, pois, nossa indignação e oposição sistemática para
que não proporcione resultados diversos do espírito do legislador.
Esperamos, com estas reflexões, reaproximar da realidade
social os operadores do direito, que parecem ignorar seus anseios ao
prestigiar o ócio e a inércia dos devedores de alimentos em
desprestígio à urgente necessidade dos alimentandos,
sensibilizando-os no contato com os hipossuficientes, razão maior de
nossa atuação fiscalizatória e protetiva.
São Paulo, 30 de maio de 2005
Ana Luiza Schmidt Lourenço RodriguesPromotora de Justiça
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