artigo teresa 2
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O HUMOR COMO SÍNTESE POSSÍVEL DE UM MUNDO EM CONFLITO
Amalia Cardona Leites
O discurso literário é uma prática social que ao mesmo tempo em que cria uma
realidade própria – a obra - relaciona-se com a realidade na qual está inserido – o
mundo. Ao mediar estas relações, não o faz de maneira ingênua, neutra e direta, de
forma alguma. Uma vez que o discurso é um fazer humano, está fadado a carregar
sempre consigo todas as parcialidades, impurezas e subjetividades inerentes ao homem,
tal qual um filho que, mesmo contra sua vontade, transporta as características e a carga
genética de seus progenitores. Contudo, este filho não será formado apenas pela carga
genética, mas também pela maneira como interage com o mundo ao seu redor. Seguindo
esta analogia, igualmente o discurso estabelece relações de semelhança e diferença com
o meio onde é produzido – algumas destas relações serão mais íntimas e explícitas,
outras mais camufladas e aparentemente distantes, porém todas estarão ali. O que é
preciso é que tenhamos olhos para vê-las.
De tal modo, a questão da representação literária diz respeito a como é
construído este complexo sistema de relações entre obra e mundo, mediado pelo
discurso. Reconhecer a ligação entre o discurso e seu meio (a obra como Imago Mundi,
nas palavras de Bessiére1) é reconhecer que a obra literária possui a função de produzir
um sentido para o mundo no qual ela está inserida. Essa busca por um sentido
transcende a própria obra e, na idade moderna, diz respeito à busca por um sentido da
existência humana como um todo. A modernidade trouxe consigo a multiplicação
violenta de diferentes experiências, conhecimentos, pensamentos e possibilidades de
vida, fazendo estremecer as visões e crenças religiosas, filosóficas, morais e
econômicas (como explica Auerbach2), e o resultado foi o sentimento de perda e de
vazio, que paulatinamente dominaram o ser humano. O abalo de certezas e verdades
antes solidamente estabelecidas significou, ao mesmo tempo, que o mundo era sim
passível de questionamentos e que o homem estava inapelavelmente sozinho com seu
livre-arbítrio, devendo assumir todas as consequências de seus atos.
1 BESSIERE, 1995, p.379
2 AUERBACH, 2002.
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Dentre as manifestações artísticas características da modernidade, o romance é
considerado por teóricos como Lukács e Bakhtin a forma estética que está mais
profundamente ligada ao mundo exterior e que trata da condição de perda e vazio de
forma mais dinâmica. Georg Lukács explicita no prefácio de A Teoria do Romance que
sua obra foi escrita “sob um estado de ânimo de permanente desespero com a situação
mundial3” e demonstra como o surgimento do romance relaciona-se com a idade
moderna por ser a “epopeia de um mundo abandonado por Deus4”. Ao perceber o
conflito como elemento constitutivo deste tipo de narrativa, pois é fruto da busca por
preencher o vazio existencial, Lukács assinala o ‘elemento demoníaco’ do herói
romanesco, que almeja uma totalidade não mais possível.
Podemos perceber razões bem claras para o desespero de Lukács com o
panorama ocidental, uma vez que escreveu A Teoria do Romance entre 1914 e 1915,
enquanto o mundo sofria com a Primeira Guerra Mundial. Após a guerra e pouco mais
de dez anos depois, em 1927, o escritor Hermann Hesse publicava uma de suas mais
famosas obras: O Lobo da Estepe. Alemão radicalizado suíço, Hesse vivenciava o
período entreguerras, marcado por conflitos sociais e econômicos. A Europa perdia sua
posição de liderança no Ocidente e tentava reerguer-se, o que abrira espaço para o
surgimento dos regimes nazistas e fascistas, e fora do continente novas potências
mundiais emergiam: de um lado os Estados Unidos, que em uma década de intenso
desenvolvimento econômico desfrutava das inovações tecnológicas dos “loucos anos
vinte”; e de outro, a União Soviética que, após a morte de Lênin, vivia um período tanto
de rápida industrialização quanto de repressão e totalitarismo com a ascensão de Josef
Stálin ao poder em 1924.
Ao redor deste cenário, no mesmo 1927 em que surgiu O Lobo da Estepe, era
lançado Rumo ao Farol, de Virginia Woolf, e O tempo reencontrado, último volume de
Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Antes de tudo, chama atenção a
coincidência das datas de lançamento destas obras, que à primeira vista não teriam
nenhuma relação entre si. Porém, ao verificarmos que Auerbach, em seu aritgo “A meia
marrom” aproxima Woolf e Proust afirmando que certas peculiaridades – como a
representação consciente pluripessoal, a estratificação temporal, o relaxamento da
conexão com os acontecimentos externos e a mudança da posição da qual se relata
3 LUKÁCS,2000,p.08
4 Ibid, p.89
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estariam todas entrelaçadas e mostrariam certos empenhos, tendências e necessidades
dos escritores e do público. 5
, é impossível deixar de questionar se a obra-prima de
Hesse poderia, de alguma forma, ser incluída em seu estudo. O estudo de Auerbach
dedica-se a analisar as diferentes formas pelas quais os escritores modernos expressam a
subjetividade de suas personagens, e o autor entende a representação pluripessoal da
consciência como a intenção de pesquisar a realidade objetiva de uma personagem por
intermédio de uma aproximação subjetiva múltipla, vinda de diferentes pessoas em
diferentes instantes e buscando atingir a menor distância possível6. Este traço, segundo
ele, seria uma das marcas da diferença entre discurso do romance tradicional, que
comunicaria um conhecimento seguro através do subjetivismo unipessoal, e do romance
moderno, que se utilizaria de diferentes sujeitos com diferentes impressões sobre o
mundo. Auerbach não menciona O Lobo da Estepe neste artigo (nem caberia mencioná-
lo, uma vez que o objeto de sua análise é o fluxo de consciência), mas não podemos
deixar de ver a semelhança destas três obras, contemporâneas entre si, no que diz
respeito à apresentação da personagem de maneira múltipla.
Conforme Auerbach, Virginia Woolf cria em Rumo ao Farol um fluxo de
consciência que é entremeado de outras vozes e não apenas daquela da personagem, e
Proust trabalha em Em busca do tempo perdido com a consciência rememorante, que vê
suas próprias camadas e confronta-as. Tais métodos desintegrariam a realidade exterior
e almejariam uma interpretação mais rica e essencial da mesma. Neste ponto, faz-se
necessária uma análise dos diferentes narradores do romance de Hermann Hesse, para
que então seja possível perceber se a pluralidade de vozes narrativas busca também
compreender de forma mais aprofundada a realidade ou se possui outra razão de ser.
Em O Lobo da Estepe , temos uma obra dividida em três partes, cada uma com
um narrador distinto. A primeira, o “Prefácio do Editor”, traz um narrador que teria
convivido com o protagonista Harry Haller por certo tempo em uma pensão. Ele
pretende narrar em nome de uma coletividade, como podemos perceber pela
reincidência de pronomes e verbos na segunda pessoa do plural, que permeia todo o
prefácio e aparece já a partir da primeira linha: “Este livro contém as anotações que nos
ficaram daquele a quem chamávamos, para usar uma expressão de que ele próprio
5 AUERBACH, 2002. p.492
6 Ibid, p.483
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usualmente se valia, o Lobo da Estepe.7” Esta coletividade é facilmente identificada
como a burguesia, pois o próprio narrador se intitula, em mais de um trecho, como
burguês, abstêmio e não fumante8, e estabelece sua posição de diferença quanto a Haller
de forma ao mesmo tempo curiosa e piedosa, tal como se observasse uma criança,
ignorante do mundo:
Eu estava fascinado e cheio de interesse. (...) Mas, cada vez mais pude ver
que, na realidade, nosso pequeno mundo burguês era querido e admirado lá
da distância de seu espaço vazio, da sua estranheza e da sua condição de
lobo, como algo distante e inatingível para ele, como o lar e a paz, aos quais
nenhum caminho o poderia levar.9
É notório o sentimento de comiseração presente neste trecho, que demonstra
Haller ser visto como incapaz de alcançar a felicidade por não pertencer ao tranquilo e
bem estabelecido mundo burguês. O narrador chega a lastimar a vida “desconsolada,
perdida e inútil”10
que seu vizinho levava e, ao mesmo tempo em que se apresenta como
alguém que desenvolvera um certo tipo de amizade com Harry, afirma querer
“simplesmente, como testemunha, contribuir com algo para a imagem do homem
singular11
”, ao publicar seus escritos. Verificamos que o narrador tenta, em uma
primeira instância, legitimar-se como um guia de leitura confiável do que vem a seguir,
apoiando-se em seu tempo de convivência com Haller e relatando episódios que na
segunda parte da obra, as “Anotações do Lobo da Estepe”, serão também mencionados
de forma extremamente semelhante (como a conversa sobre o pinheirinho da vizinha ou
o encontro no concerto sinfônico). Mas quando o narrador deixa de apenas relatar fatos
e passa a expressar sua opinião nos últimos parágrafos do prefácio, ao qualificar os
escritos como provas de uma “neurose”, “doença” e “enfermidade anímica12
”,
percebemos que ele não é, como afirmara anteriormente, uma “simples testemunha”. De
maneira categórica, declara como as páginas posteriores devem ser compreendidas,:
Significam literalmente uma jornada pelo inferno, uma caminhada algumas
vezes angustiosa, outras cheia de entusiasmo através do caos de um mundo
anímico tenebroso, caminho percorrido com a vontade de atravessar o
inferno, de oferecer a face ao caos, de padecer o mal até o fim.13
7 HESSE,1977,p.1. Grifo meu.
8 Ibid,p.10.
9 Ibid,p.13-14
10 Ibid,p.16
11 Ibid,p.07
12 Ibid,p.18
13 Ibid, p.18. Grifo meu.
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Aqui surgem as perguntas: Por que a necessidade de reafirmar a trajetória de
Harry como uma jornada ao inferno? Com quem dialoga este narrador? A resposta
encontra-se no parágrafo final do prefácio, mais uma vez pelo uso da segunda pessoa do
plural:
Haller pertence àqueles que se comprimem entre duas épocas, que vivem à
margem de toda segurança e inocência, àqueles cujo destino é sofrer toda a
incerteza do destino humano agravada como um tormento e um inferno
pessoais. Nisto, segundo me parece, consiste o sentido que possam ter para
nós suas anotações, e por isso me decidi a publicá-las.14
Neste trecho percebemos que é para a burguesia, coletividade da qual é um
membro orgulhoso, que se dirige todo o esforço do narrador em identificar Harry (e
quem a ele se assemelhe) como um outsider, um estranho. A estratégia de apresentá-lo
repetidas vezes como um sofredor, alguém sem paz e sem lar15
(e aqui as implicações
da perspectiva burguesa da necessidade de um lar ficam evidentes) busca definir a
dicotomia nós-eles. O “nós” do prefácio possui casa, estabilidade financeira, não é dado
a vícios. O “eles” é formado por andarilhos sem família e sem emprego fixo que
padecem sofrimentos espirituais porque esse é seu destino16
. Ao assinalar o sofrimento
como destino daqueles que se desviam da norma burguesa, percebemos que o objetivo
deste primeiro narrador é alertar o leitor e indicar como deve ser compreendido o relato
que virá a seguir. O narrador do prefácio, legítimo representante do mundo burguês, não
critica abertamente o modo de vida de Harry, mas enfatiza as consequências de suas
escolhas - e aqui reside o talento deste discurso. Se a burguesia (não apenas como classe
social, mas como forma de ver o mundo) tem sido capaz de conservar-se ao longo do
tempo, não foi pela eliminação daqueles que questionam sua lógica, mas pelos esforços
de converter os outsiders em bizarras exceções dentro de uma regra geral, dignos de
curiosidade e interesse, mas também de desconfiança e pena - e dos quais se deve evitar
uma grande aproximação, tal como animais em um zoológico.
Na segunda parte do romance, “Anotações do Lobo da Estepe”, temos a história
de Harry Haller narrada em primeira pessoa, com o subtítulo de “Só para loucos”. A
frase restritiva mostra com quem este discurso pretende dialogar, e logo percebemos
que tal como o narrador do prefácio, este segundo narrador identifica-se com uma
14
HESSE, Op.cit,p.19. Grifos meus 15
Ibid,p.14 16
Ibid, p.19
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6
coletividade – a dos “loucos”17
. Harry apresenta-se textualmente como um velho e
descontente senhor18
cuja rotina absolutamente entediante o deprime, e cujos únicos
momentos de alegria encontram-se nas experiências solitárias nas quais desfruta da
“verdadeira cultura”19
. Tal definição de cultura consiste em considerar como mestres
Mozart e Bach na música e Goethe na literatura; classificar o jazz como repugnante e
vulgar e raramente ler um livro moderno. Haller afirma-se como um Lobo da Estepe por
não compreender nem ser compreendido em um mundo cujos ideais faliram, e valoriza
sua solidão como prova da independência conquistada. Mas ao mesmo tempo em que
Harry vê a si como alguém superior, que odeia a burguesia e que é um dos poucos
apreciadores da verdade em um mundo decadente, seus impulsos suicidas e suas
constantes reflexões sobre a natureza humana demonstram o conflito em que vive. Esta
parte da narração da vida de Harry sobre si mesmo, desta forma, aproxima-se (oriunda
de um extremo oposto) da visão construída pelo narrador do prefácio, porque o
apresenta também como um homem que sofre por suas diferenças em relação à
sociedade burguesa. Assim, a oposição entre o “nós”/burgueses e o “nós”/loucos é
confirmada pela voz do próprio Harry – mas não apenas confirmada. Enquanto o
narrador do prefácio enxerga apenas a fuga da norma e entende a posição de outsider de
Harry como a raiz do conflito, Harry vai mais fundo e reconhece existir também dentro
de si duas forças opostas, seus impulsos humanos e instintivos, o homem e o lobo. Esta
coincidência entre o discurso dos dois narradores reafirma a existência do conflito em
um nível social, não apenas psicológico – como uma leitura isolada da segunda parte
poderia indicar. Ou seja, os narradores se encontram em lados opostos, porém tratam
do mesmo problema de diferentes perspectivas.
As anotações do Lobo da Estepe são interrompidas quando ele encontra um
livreto com o título de “O Tratado do Lobo da Estepe” – e uma terceira voz introduz-se
no romance. O Tratado chega às suas mãos através de um homem carregando um
estandarte onde se convocava para uma “Noitada Anarquista” e um “Teatro Mágico”, e
guarda uma relação (que será esclarecida apenas quando Harry retomar a palavra) com
o letreiro afixado a um muro abandonado, visto por ele dias antes. Narrado em terceira
pessoa, o Tratado principia como uma típica história infantil: “Era uma vez um certo
Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um
17
HESSE, op.cit., p.33 18
Ibid,p.22 19
Ibid, p.33
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7
homem, mas não obstante era também um lobo das estepes.”20
Esta forma ficcional,
contudo, distancia-se do conteúdo, que realiza uma análise aprofundada tanto da
psicologia de Harry Haller quanto de sua relação com a burguesia. O Tratado
desconstrói a premissa básica do conflito interno de Harry ao afirmar que o homem é
um ser fragmentado e múltiplo – e não meramente dual, como ele acreditava ser. Mais
ainda, revela o modo pelo qual a força da burguesia reside nos outsiders como ele, e
como o que ele chama de sua parte “homem” é na verdade seu caráter burguês – sua
relação com a “verdadeira cultura” seria o exemplo mais evidente.21
Mas o livreto não
apenas analisa a condição destas contradições, e sim aponta uma saída - o humor. Esta
seria a solução ao “meio-termo fraco e neutro que se chama burguês22
”, a única forma
de unir todos os aspectos da existência humana e aspirar a salvação. Entretanto, tal
como a relação do Tratado com o Teatro Mágico, que nesta altura da obra ainda não é
esclarecida, a indicação do humor como um caminho conciliador na existência humana
parece incompleta e pouco desenvolvida, e sua razão de ser só será percebida quando
visualizarmos a obra em sua totalidade.
O narrador do “Tratado do Lobo da Estepe”, além de revestir-se de autoridade
no aspecto formal através do uso do discurso objetivo, também demonstra pela
argumentação estar em uma posição mais elevada do que os dois narradores anteriores,
uma vez que observa a vida de Harry à distância e é capaz de compreendê-la mais
amplamente, em vista de toda a existência humana. Assim sendo, esta terceira voz
narrativa detém a sabedoria e a capacidade de frieza analítica que falta nas visões
subjetivas do narrador do prefácio e de Harry.
Após o término do “Tratado do Lobo da Estepe”, continuam as “Anotações do
Lobo”, e Harry toma a voz novamente. Reconhecendo o Tratado como uma análise
exata de sua psicologia, acredita que o livreto tenha chegado à suas mãos para ratificar
sua miséria espiritual23
, mas apenas isso. O conflito entre o “lobo” e o “homem” chega
ao ápice quando concorda ir a um jantar com um casal de conhecidos e uma acalorada
discussão travada acerca da guerra e da figura de Goethe o impacta de tal forma que
encara o acontecimento como sua despedida do mundo burguês, moralista e erudito24
.
20
HESSE, op.cita,p.39 21
Ibid, p.50 22
Ibid,p.51 23
Ibid,p.62 24
Ibid,p.76
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8
Com seu lado “lobo” aflorando cada vez mais e decidido a suicidar-se, Harry entra por
acaso em uma hospedaria em que acontece uma grande festa na qual faz amizade com
uma mulher enigmática, bebe, ri e dorme, sonhando com Goethe. Neste ponto a
narrativa começa a tomar um rumo completamente inesperado pois logo entram em
cena, além de Hermínia (a mulher que conhecera na festa), Pablo e Maria.
A carência de Harry pelo fato de conhecer tanto do mundo pelos livros e ao
mesmo tempo ter vivenciado tão pouco começa a ser suprida através da interação com
estas personagens. Tratando-o como uma criança, Hermínia insiste em ensiná-lo a
dançar e o introduz ao mundo do jazz e do fox-trot, despertando a sensibilidade de
Harry para os prazeres da música e do corpo. Na companhia de Pablo, ele aprende
gradualmente a deleitar-se com o uso de drogas, e nas noites passadas na companhia de
Maria experimenta o amor e o sexo em suas mais variadas formas. As três novas
personagens introduzem elementos aparentemente destoantes do resto da narrativa – são
pobres, não eruditas, circulam no mundo da prostituição e do jazz, e possuem uma
cosmovisão completamente distinta da de Harry. Após tanto buscar assemelhar-se aos
“imortais” através de seu intelecto e sofrer com isso uma terrível solidão, o lobo é
completamente acolhido pelo grupo, com o qual vivencia as mais singulares e
transgressoras experiências no que diz respeito a sexo, álcool e drogas. Harry enfim
descobre a cura para sua solidão quando se junta ao que chama de “rumor da
comunidade em festa25
”, aqueles momentos nos quais ao mesmo tempo em que o
indivíduo se submerge na multidão, liberta-se de si mesmo. Esta perspectiva de
comunhão com o outro durante um simples baile, possibilitada pela relação com as
novas personagens, vem de encontro ao individualismo burguês travestido de elevado
intelectualismo, tão presente no Harry anterior. Ao abandonar a vida contemplativa e
começar a ter suas próprias experiências, torna-se uma criança diante de um mundo
desconhecido que se revela proporcionalmente tão maravilhoso quanto afastado da
moral burguesa.
O ápice da transformação de Harry se dará com a entrada, a convite de Pablo, no
Teatro Mágico, onde ele vivencia uma caçada humana, relembra todas as mulheres a
quem amou, assiste à destruição simbólica de sua personalidade dual e conversa com
25
HESSE, op.cit,p.152
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9
Mozart. A experiência absolutamente fantástica encerra não só o episódio do Teatro
Mágico, mas o romance:
Oh! Agora compreendia tudo: compreendia Pablo, compreendia Mozart,
ouvia algures atrás de mim seu riso espantoso, sabia ter em meu bolso
centenas de milhares de figurinhas do jogo da vida, suspeitava emocionado o
sentido, tinha a intenção de iniciar de novo o jogo, de voltar a estremecer
diante de seus desatinos, de voltar a percorrer o inferno do meu interior, não
uma vez, mas sempre.
Da próxima vez saberia jogar melhor. Da próxima vez aprenderia a rir.
Pablo me esperava. Mozart também.26
Notemos primeiramente o retorno da expressão inferno, agora de uma
perspectiva completamente diferente da anterior, a do narrador do prefácio. Harry
encontra-se disposto e animado a percorrê-lo, e portanto neste trecho inferno não mais
se associa ao sofrimento do isolamento ou a uma neurose – como aquela diagnosticada
na primeira parte da obra. O inferno interior percorrido por Harry trata do conhecimento
de si mesmo, de deparar-se com os inúmeros eus (as centenas de milhares de
figurinhas), e somente é possível para aqueles que se dispõem a apostar no jogo da vida
sem medo do que descobrirão. Ainda que a palavra “inferno” seja a mesma no prefácio
e no final da obra, suas implicações são completamente distintas. Harry declara estar
preparado e entusiasmado para vivê-lo não apenas uma, mas inúmeras vezes, enquanto
o primeiro narrador vê como inferno a simples existência “louca” do vizinho, e encara
suas experiências como uma condenação. Caminhar pelo inferno do autoconhecimento,
apostar no jogo da vida: isto é o que Harry compreendeu do que foi explicado em teoria
pelo Tratado e demonstrado na prática pelo Teatro Mágico. Porém, mais interessante
ainda, é o que ele não aprendeu: a rir.
O “Tratado do Lobo da Estepe” esclarece que Harry, apesar de se considerar um
outsider, é tão burguês quanto aqueles à sua volta, e esta revelação origina uma nova
problemática – a de como solucionar tal sofrimento. Considerando que o outsider não é,
de fato, a antítese do burguês, pois estão ambos inseridos na mesma sociedade, o
elemento do humor aparece no Tratado como a única resposta. Esta primeira menção ao
humor integra o santo ao libertino e ao mesmo tempo ao burguês27
, e afirma que a
salvação de Harry residiria exatamente nesta possibilidade, uma vez que o conflito
“nós”/burgueses versus “nós”/loucos não passaria de uma ilusão, e seu sofrimento se
26
HESSE, op.cit, p.197.grifos meus. 27
Ibid,p.51
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daria apenas pela falta de coragem de olhar para dentro de si mesmo e rir de seu caos
interior.
A segunda menção ao humor encontra-se quando Harry descreve o sonho que
tem na hospedaria, em suas Anotações. Neste episódio, reitera a impressão
extremamente sorridente e brincalhona transmitida por Goethe28
que, entre gracejos e
passos de dança, reflete sobre a eternidade e a existência humana. A importância dada
ao humor através da atitude de Goethe aproxima-se da que encontramos no discurso do
Tratado, porém ainda de forma incipiente. É somente quando o Teatro Mágico aparece,
e é apresentado por Pablo, que é possível certificarmo-nos do papel fundamental que o
humor e o riso desempenham na narrativa.
Pablo declara esperar que Harry encontre no teatro grandes motivos de riso, já
que ensiná-lo a rir seria o objetivo de toda aquela representação29
, e classifica o Teatro
Mágico como uma “escola de humor30
” que começaria apenas quando a pessoa deixasse
de levar-se a sério. Contudo, as experiências que se seguem relacionam-se sobretudo
com morte, guerra e tortura, e culminam com o assassinato de Hermínia, perpetrado por
Harry e do qual ele sofre terrível arrependimento. Diante desta aparente contradição
entre o propósito cômico e as ações trágicas, é a figura de Mozart que, gargalhando
“terrivelmente irônico31
”, termina de guiar Harry pelas salas do Teatro e lhe revela
aquilo que ele insiste em não aprender:
Tem de aprender a rir, isso é o que se exige. Tem de compreender o humor da
vida, o humor patibular. (...) O senhor está disposto a qualquer tolice que
careça de humor, meu caro; para tudo que seja patético e destituído de graça.
(...) O senhor está disposto a morrer, seu covarde, mas não a viver. Ao diabo!
Mas terá de viver!32
O discurso de Mozart, que depois se converte em Pablo, aproxima-se daquele do
narrador do Tratado no aspecto conteudístico, pela ênfase dada à importância do humor.
No aspecto formal, contudo, verificamos que a frieza e o distanciamento discursivo do
narrador do Tratado estão ausentes do discurso de Mozart/Pablo, que ressalta a
28
HESSE, op.cit,p.89 29
Ibid,p.159 30
Ibid,p.160. 31
Ibid, p.186 32
Ibid,p.196. Grifo meu.
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importância do riso e do humor ironizando os sofrimentos e perturbações existenciais de
Harry.
A gargalhada de Mozart ressoou sábia e irônica.
- Harry – disse – isto é uma pilhéria. Será possível que esta jovem não
desejava do senhor outra coisa senão que lhe desse uma punhalada? Vá dizer
esta para outro! Bem, pelo menos soube fazê-lo com certa perícia: a pobre
jovem está bem morta. (...) O senhor é sempre patético! Mas tem de aprender
o que é o humor, Harry; o humor é sempre humor patibulário e, em caso de
necessidade, há de aprendê-lo mesmo no patíbulo.33
Chama a atenção a repetição da expressão “humor patibular”, presente também
no trecho citado anteriormente. Ao unir a ideia de humor à ideia de morte na imagem do
patíbulo (estrutura onde são realizadas execuções por enforcamento), Mozart está
ironizando a psicologia de Harry, marcada pela seriedade e pelos impulsos suicidas, ao
reafirmar a necessidade de aprender a rir mesmo na hora da morte. Observamos que, em
O Lobo da Estepe, o humor não está apenas associado ao riso em uma perspectiva
cômica, mas sim a uma perspectiva irônica, como é possível perceber pelo discurso de
Mozart. Assim, temos o humor de duas formas: como ironia e como riso - este último
visto pelo narrador do Tratado como o único elemento capaz de conectar todos os
aspectos da existência humana, por ser o “produto mais genuíno e genial da
humanidade”34
. Na tentativa de compreender e dar um sentido a estas percepções,
lembramos novamente de Lukács e sua Teoria do Romance, escrito mais de dez anos
antes da obra-prima de Hesse.
Ao tratar do significado histórico e filosófico deste tipo de narrativa, Lukács
destaca o conteúdo da ironia como “a mais alta liberdade possível num mundo sem
deus35
”, pois implicaria em conceber o demoníaco presente no sujeito como parte
constitutiva de sua essência, já que deus está ausente. Na visão de Lukács, o demoníaco
é o desejo, a busca pela totalidade, e portanto, origem do conflito e da contradição entre
o homem e o mundo. Nesta contradição residiria justamente a suprema ironia do
romance - de acordo com a origem grega da palavra, ironia significa “interrogação” e
33
HESSE, op.cit,p.194.Grifos meus 34
Ibid,p.52. 35
LUKÁCS, op.cit,p.96
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12
era conhecida no universo helênico como um dos métodos de Sócrates utilizados para
esclarecer e desfazer as ilusões do interlocutor.36
O entendimento de Lukács encontra ressonâncias no de Octavio Paz, que associa
o humor à ambiguidade do herói romanesco, pela primeira vez dotado de um espírito
crítico acerca do mundo a seu redor. Por sua vez, o mundo que este herói questiona é
também ambíguo e oscila entre ser e não ser, e assim o humor tornaria ambíguo tudo o
que toca, convertendo a própria forma romanesca em uma pergunta sobre a realidade da
realidade37
. Ao explicitar que o humor exerce um papel não só sobre o herói, mas
também sobre o romance como forma, Octavio Paz amplia a discussão, que então se
dirige ao estatuto do romance. Neste momento, é imprescindível lembrarmos os estudos
de Mikhail Bakhtin sobre a origem do romance.
Compreendendo que os antigos gêneros paródicos, através do riso e do
plurilinguismo, demonstravam uma outra realidade, contraditória e incapaz de ser
percebida pelos gêneros diretos, Bakhtin percebe que o cenário estava sendo preparado
para o surgimento da palavra romanesca.38
O riso tem o extraordinário poder de aproximar o objeto, ele o coloca na zona
do contato direto, onde se pode apalpá-lo sem cerimônia por todos os lados,
revirá-lo, virá-lo do avesso, examiná-lo de alto a baixo, quebrar o seu
envoltório externo, penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo,
desmembrá-lo, desmascará-lo, desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à
vontade. O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o
mundo, coloca-o em contato familiar, e com isto, prepara-o para uma
investigação absolutamente livre.39
Ao destruir a distância épica, o riso dessacralizaria o objeto e tornaria o
conhecimento verdadeiramente possível através da combinação do cômico e da ironia
socrática com uma investigação séria e livre do mundo e do homem40
. Esse papel
familiarizante do riso, segundo Bakhtin, estaria representado desde a sátira menipéia,
que ao virar do avesso os aspectos nobres do mundo, punha à prova e desmascarava
ideias e ideólogos41
. As afirmações de Bakhtin, somadas ao entendimento de Lukács e
de Paz acerca do riso nos ajudam a compreender qual a representação de mundo que
36
Meio digital: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/socrates/metodosocratico.htm>. Acesso em 18 de dezembro de2013. 37
PAZ,p.85 38
BAKHTIN, 1993,p.378. 39
Ibid, p.413-414 40
Ibid,p.415. 41
Ibid,p.416.
![Page 13: Artigo Teresa 2](https://reader036.vdocuments.pub/reader036/viewer/2022082708/55cf99cf550346d0339f4ad4/html5/thumbnails/13.jpg)
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encontramos em O Lobo da Estepe e por que neste romance o riso e o humor
desempenham um papel fundamental.
Estruturado sobre três diferentes perspectivas, O Lobo da Estepe apresenta o
conflito não apenas em seu conteúdo, mas também em sua forma. A primeira voz
narrativa, do editor que consegue apenas ver seus valores burgueses confirmados ao ser
testemunha do sofrimento de Harry, contrapõe-se à segunda voz narrativa, do próprio
Harry, que busca por felicidade fora da sociedade burguesa. Se aceitarmos a autoridade
e a sabedoria do terceiro narrador, o do Tratado, no que diz respeito à leitura que realiza
(tanto de Harry quanto da sociedade), podemos afirmar que é somente com o acréscimo
desta terceira voz narrativa que os extremos se tocam e visualizamos a síntese do
conflito entre a cosmovisão do primeiro e do segundo narrador. O discurso do Tratado e
as experiências do Teatro Mágico podem ser entendidos como o que Bakhtin chamara
de “argumento experimental e provocador42
”, característico da sátira menipéia, uma vez
que ambos apontam o humor como única síntese possível no jogo de forças entre o
“nós”/burgueses e o “nós”/loucos, inserindo a dimensão mágica e lúdica da existência
como o contraste necessário para que o indivíduo não perca sua humanidade no mundo
burguês ao qual está fadado a permanecer. É através do narrador do Tratado que a obra
adquire outra dimensão, na qual é possível vislumbrar um nível mais profundo de
entendimento acerca da representação de mundo aqui presente. Se não levássemos esta
voz em conta, o que teríamos seria meramente a explicitação dos contrários: uma
narração em primeira pessoa apresentada por um editor que não compartilha dos
mesmos princípios do protagonista. O Tratado é a peça-chave que faz funcionar a
engrenagem do romance, pois a força das ideias expressas por seu narrador é tão grande
que se faz sentir em toda a obra, ressoando nas falas de Hermínia e Pablo e nas
experiências do Teatro Mágico. Ao analisar não só Harry mas a humanidade inteira, o
Tratado faz com que a obra adquira uma dimensão filosófica que guarda relação com o
contexto entreguerras no qual foi produzida. O que se pode depreender, já que o
romance situa o humor como a alternativa possível, é que se o conflito é inevitável tanto
a nível psicológico quanto a nível social, a solução – paradoxal - que resta ao homem é
enfrentar o caos e rir de sua própria condição, e esta seria a única forma possível de
manter sua sanidade.
42
BAKHTIN, op.cit, p.416.
![Page 14: Artigo Teresa 2](https://reader036.vdocuments.pub/reader036/viewer/2022082708/55cf99cf550346d0339f4ad4/html5/thumbnails/14.jpg)
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As vozes narrativas do editor do prefácio e de Harry, portanto, coadunam-se de
forma a exemplificar mais ricamente a argumentação básica do narrador do Tratado.
Através do entrecruzamento e da contradição dos dois primeiros narradores emerge a
sabedoria do terceiro narrador, que apresenta a solução possível para o conflito (tanto a
nível social quanto a nível psicológico) realizando uma espécie de panorama sintético
do mundo. A existência de três diferentes narradores com três diferentes cosmovisões
que convergem para um único fim constrói uma imagem de mundo que se acerca do
estudado por Auerbach em “A meia marrom”. Tomados pelo mesmo propósito, os três
escritores colocaram-no em prática de diferentes formas, e suas inovações técnicas
foram responsáveis pela abertura de novos caminhos para o romance. Enquanto Woolf e
Proust buscavam atingir um maior conhecimento da verdade através da representação
pluripessoal da consciência, em Hermann Hesse encontramos também o anseio por
compreender o mundo ao seu redor através de novas formas estéticas de pesquisar a
realidade. O Lobo da Estepe, ao apresentar narradores que portam diferentes
cosmovisões, subverte não só o padrão do romance narrado de forma unipessoal, mas
também as expectativas que porventura pudéssemos ter quanto a encontrar respostas
filosóficas sobre a existência – o grande aprendizado de Harry consiste exatamente em
reconhecer o que ele ainda não aprendeu, a rir.
BIBLIOGRAFIA:
AUERBACH, Erich. Mímesis. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética (A Teoria do Romance).
3.ed. São Paulo: Unesp, 1993.
BESSIERE, Jean. Literatura e representação. In: ANGENOT, Marc. Teoria Literária.
Lisboa: Dom Quixote, 1995.
HESSE, Hermann. O Lobo da Estepe. 12.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1977.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, 2000.
PAZ, Octavio. El arco y la lira. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica.
1956.