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A partilha do eu como pragmática da enunciação e performance narrativa contemporânea no romance Flores Artificiais The fragmentation of the self as pragmatics of enunciation and contemporary nar performance in the novel Flores Artificiais Maria Rosa Duarte de Oliveira 2 Valéria Ignácio 3 Resumo : Este trabalho analisa a estratégia narrativa que engendra o romance Flores artificiais de !ui" Ru##ato re#erenciada no desenrai"amento e no des$ertencimen su%eito na contem$oraneidade& O constante e irrevers'vel desl articula as in(meras vo"es e $ontos de vista $resentes nas micronarr obra mobili"a um narrador também em tr*nsito res$onsável $or organi entre as $ersonas do eu/tu e do ele/eles $ara construir uma nova $ragmática da enun Em uma travessia $ontuada $or máscaras de re$resenta+,o e desdobrame o n,o.lugar de #ala de $ersonagens su$er$ostas revela uma #ragmenta+ su%eito mas também da mem/ria tornada imagem e do tem$o& 0 es$aci estrutura narrativa sugere o estilha+amento e a descontinuida incessante e errante movimento de signi#ica+,o do anonimato contem$o uma constru+,o identitária $or meio de um $ro%eto literário centrad linguagem como $remissa é a rela+,o entre alteridades e rastros a e de desvelar a $artilha do eu& Palavras-chave : ragmática da enuncia+,o& artilha do eu& Máscaras de re$resenta+,o& Desterritoriali"a+,o& Abstract : 4his essa5 anal5"es the strateg5 o# the narrative that engenders t b5!ui"Ru##ato re#erenced in theu$rooting and un.belonging 7hichde#ine thesel# in contem$oraneit5& 4he constant and irreversible geogra$hic dis$lacement th voices and $oints o# vie7 $resent in the micro.narratives that constitute that is also in motion res$onsible #or organi"ing an inter7oven game bet he9them to build a ne7 $ragmatic #orm o# enunciation& In a crossing #illed 7ith mas8s re$resentation and the un#olding o# consciences the non.$lace o# quotes #ragmentation nog onl5 o# the sel# but also o# the memor5 turned to imag e1$ressed in the structure o# the narrative suggest the shatteri e1$erience in its incessant e erratic movement o# meaning o# the contem$o search o# identit5 construction through a literar5 $ro%ect centered in t 2 Professora Doutora em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 3 estranda em !iteratura e Crítica !iter"ria #ela Pontifícia Universidade Cat de São Paulo (PUC-SP).

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A partilha do eu como pragmtica da enunciao e performance narrativa contempornea no romance Flores ArtificiaisThe fragmentation of the self as pragmatics of enunciation and contemporary narrative performance in the novel Flores Artificiais

Maria Rosa Duarte de Oliveira[footnoteRef:1] [1: Professora Doutora em Comunicao e Semitica na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP).]

Valria Igncio[footnoteRef:2] [2: Mestranda em Literatura e Crtica Literria pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP).]

Resumo: Este trabalho analisa a estratgia narrativa que engendra o romance Flores artificiais, de Luiz Ruffato, referenciada no desenraizamento e no despertencimento que caracterizam o sujeito na contemporaneidade. O constante e irreversvel deslocamento geogrfico que articula as inmeras vozes e pontos de vista presentes nas micronarrativas que compem a obra mobiliza um narrador tambm em trnsito, responsvel por organizar um imbricado jogo entre as personas do eu/tu e do ele/eles para construir uma nova pragmtica da enunciao. Em uma travessia pontuada por mscaras de representao e desdobramento de conscincias, o no-lugar de fala de personagens superpostas revela uma fragmentao no apenas do sujeito, mas tambm da memria, tornada imagem, e do tempo. A espacialidade impressa na estrutura narrativa sugere o estilhaamento e a descontinuidade da experincia em seu incessante e errante movimento de significao do anonimato contemporneo. Na busca de uma construo identitria, por meio de um projeto literrio centrado na reorganizao da linguagem como premissa, a relao entre alteridades e rastros a estratgia narrativa capaz de desvelar a partilha do eu.Palavras-chave: Pragmtica da enunciao. Partilha do eu. Mscaras de representao. Desterritorializao.

Abstract: This essay analyzes the strategy of the narrative that engenders the novel Flores Artificiais by Luiz Ruffato, referenced in the uprooting and un-belonging which define the self in contemporaneity. The constant and irreversible geographic displacement that articulates countless voices and points of view present in the micro-narratives that constitute the book mobilizes a narrator that is also in motion, responsible for organizing an interwoven game between the selves of I/you and he/them to build a new pragmatic form of enunciation. In a crossing filled with masks of representation and the unfolding of consciences, the non-place of quotes of characters - reveals a fragmentation nog only of the self, but also of the memory turned to image and time. The spatiality expressed in the structure of the narrative suggest the shattering and the discontinuity of the experience in its incessant e erratic movement of meaning of the contemporary anonymity. In the search of identity construction, through a literary project centered in the reorganization of language as premise, is the relation between the otherness and the traces of the strategy of the narrative capable of unveiling the separation of the self.

Keywords: Pragmatics of enunciation. Fragmentatios of the self. Masks of representation. Deterritorialization

A contemporaneidade implode os modelos de relao e de comunicao entre os sujeitos e impe formas alternativas de manifestao e de representao do e no mundo. O esfacelamento da crena em um tempo messinico[footnoteRef:3], a volatilizao dos laos afetivos, a vertiginosa supremacia do mercado e a marcha inconteste de um modelo que privilegia a individualidade exigem, quando no obrigam, a dessubjetivao e a perda da experincia. A literatura contempornea brasileira, como responde a esse fenmeno poltico-social-cultural que faz de um simulacro da desumanizao seu combustvel essencial? [3: Referenciado nas reflexes de Walter Benjamin, atualizadas por Giorgio Agamben: tempo do aqui e do agora, em oposio homogeneidade e ao vazio do tempo cronolgico; de inquietao e interpretao crtica, tambm compreendido como tempo do intervalo (kairs), que permite a transformao qualitativa da experincia.]

generalizao da pergunta, responde-se por meio de um recorte especfico: a anlise da estratgia narrativa que engendra o romance Flores artificiais, de Luiz Ruffato, publicado em 2014. Tendo como cenrio um constante e irreversvel deslocamento geogrfico, um narrador tambm em trnsito atua como eixo na organizao de inmeras vozes e pontos de vista. Mais que isso e talvez a resida a singularidade do romance , articula um imbricado jogo entre as personas do eu/tu e do ele/eles para construir uma nova pragmtica da enunciao em dilogo com o desenraizamento e o despertencimento que caracterizam o sujeito na contemporaneidade.O autor nos oferece alguns comentrios reveladores sobre as escolhas que determinaram a arquitetnica de Flores artificiais. Para alm do desconforto de que se confessa refm a cada nova publicao, destaca que (1) a criao se d a partir de runas, tecidas em um emaranhado de fragmentos que objetivam reconstruir as memrias de um outro; (2) a referncia produo do poeta francs Charles Baudelaire, especialmente no ttulo, que conjuga as Flores (do mal) e os (Parasos) artificiais perspectiva para a leitura; (3) a verossimilhana como desafio contnuo na criao literria torna ainda mais tnues os limiares entre o artifcio e o real, e (4) a percepo de tempo e espao determinada por uma questo formal: de onde estou falando?.Na apresentao do volume, Ruffato comenta a reelaborao do manuscrito Viagens terra alheia, do consultor do Banco Mundial Drio Finetto, e afirma que a seleo de histrias e a sua reescrita resultam, necessariamente, em interferncias no texto original. Cabe assinalar, em relao a esse breve esclarecimento autoral, que o alinhavar das memrias do outro pressupe a construo de um novo tecido escritural, elaborado a partir dos rastros deixados pelo primeiro registro, seja por no contempl-las em sua totalidade ou pela presena de um narrador hipottico, que transforma a experincia vivida em construo ficcional.A aluso, em entrevista do autor, a Baudelaire como referncia para a escolha do ttulo corrobora esse entendimento, seja pela proposta de Flores do mal, de recriar e no apenas fazer eco ao mundo, em um contexto de modernidade e solido, mas tambm pela sugesto do artificialismo como instncia da experincia humana, que tem expresso em Parasos artificiais.Mas so a autoria cruzada e o deslocamento contnuo do narrador, numa travessia pontuada por mscaras de representao e conscincias superpostas distribudas entre oito diferentes narrativas, que fazem emergir os traos mais marcantes da composio do romance. Esse desdobramento de conscincias (selves) e os marcadores (shifters) que sinalizam o jogo entre primeira e terceira pessoa produzem uma nova pragmtica de enunciao. O plano do narrador, definido pelo seu self, manifesta-se no romance por meio de alteridades vrias, como entidades capazes de responder ao seu discurso e torn-lo factvel para o self do leitor.Por isso, a questo colocada pelo prprio autor de onde estou falando? traz o germe do projeto literrio que antecede a produo do romance: o no-lugar da fala do narrador evidencia uma fragmentao no apenas do sujeito, na memria tornada imagem, mas tambm do tempo. Esse territrio sem fronteiras, que se constitui em deslocamento geogrfico, travessia de limiares de jogos ticos, dilogos multiplicados e modos de narrar, imprime o que podemos chamar espacialidade estrutura narrativa. na errncia de movimento forjada no tempo-espao de mltiplos eus, tus e eles que se constri o espao autobiogrfico (lugar e no-lugar) de deslocamento e des-encontro de conscincias em Flores artificiais.

Conscincia de linguagem: o eu/tu como princpio do discursoA orientao dialgica que caracteriza o romance Flores artificiais, para alm da dupla voz gestualizada na reescritura das memrias de um outro, estabelece, a partir do momento em que se constri na pluralidade de falas cruzadas, nova orientao para o discurso. Ou seja, o contraponto de inmeras alteridades, ou lgicas de conscincia, o que permitir ao self do autor/narrador, como instncia axial, responder ou no, por meio de uma ousada arquitetnica discursiva, s questes ideolgicas que governam a existncia humana. Essa busca da construo identitria se d por meio da organizao da linguagem, que pressupe e articula tanto um sistema preexistente e passvel de reproduo como a presena individual e particular de cada sujeito no mundo.Um exame mais detalhado da pessoa como categoria gramatical torna-se, assim, essencial para a compreenso da dupla orientao construda na narrativa. Segundo Barthes, o princpio referido pelo linguista mile Benveniste, de que uma correlao de subjetividade ope duas pessoas, o eu e a pessoa no-eu (isto , o tu) no-pessoa (ele) (BARTHES, 2012, p. 19) pressupe uma polaridade fundadora da linguagem: um eu interior ao enunciado e um tu exterior a ele. A este eu permitido alternar posies com o tu, mas o mesmo no ocorre em relao no-pessoa, o ele. Isso ocorre porque o eu a instncia enunciadora, enquanto o ele sempre referido, est fora da instncia do discurso. A observao desse emaranhado entre enunciao pessoal e apessoal no interior do discurso exige a anlise das construes gramaticais e, em particular, a identificao de marcadores lingusticos, especialmente pronomes, tempos verbais e adjetivos.

O eu de quem escreve eu no o mesmo que o eu que lido por tu. Essa dissimetria fundamental da linguagem, esclarecida por Jespersen e Jakobson sob a noo de shifter ou de encavalamento da mensagem e do cdigo, comea finalmente a preocupar a literatura mostrando-lhe que a intersubjetividade, ou talvez melhor dizendo, a interlocuo, no pode se efetuar pelo simples efeito do voto piedoso relativo aos mritos do dilogo, mas por uma descida profunda, paciente e muitas vezes desviada, no labirinto do sentido. (BARTHES, 2012, p. 21).A diversidade de sentidos inerente correlao entre as conscincias reveladas na interlocuo eu/tu materializa-se em cada uma das narrativas que compem o romance e tambm no alinhavo da desterritorializao que alicera as histrias. a autoridade do outro, multiplicada em micronarrativas, que ir determinar os sentidos do self do narrador, em oposio ao modelo clssico de narrativa autobiogrfica em que a histria individual objeto de um discurso centrado na primeira pessoa. Em Flores artificiais, cria-se uma perspectiva narrativa que no permite a coincidncia do narrador com as personagens, mas estabelece um jogo de enunciao implcito e oculto, muita vez de difcil verificao.Tome-se como exemplo, o trecho da narrativa O tempo presente, que traz um narrador em primeira pessoa em jogo com a terceira pessoa, cruzando discurso citado e discurso indireto, em momentos nos quais possvel identificar tanto um narrador/personagem/testemunha, que conta a histria, como um narrador/autor que interpreta o comportamento do outro.

O senhor... voc, meu querido, talvez no perceba, h coisas, como vou dizer, h coisas que... ultrapassam o nosso entendimento... Quando falava, suas mos buscavam libertar as palavras, como se fossem pssaros aprisionados. Um pequeno, mas barulhento grupo postara-se junto televiso e comentava sobre a enchente que parecia, a cada momento, ganhar fora. [...] Ah, a vida! Suspirou. Quo irnico o deus que outros chamam destino... E, mirando num ponto qualquer da avenida que se revelava alm do vidro-fum embaado, disse, Quando me restava apenas contabilizar os dias no calendrio, me deparei com a descoberta do presente absoluto... Sim, meu caro, o presente absoluto! Sua face se contraiu num enlevo, ausncia que durou segundos. Logo se recomps, dizendo, no como convite, mas ordem a ser acatada, Vamos tomar algo forte, meu amigo. Chamei o garom [...]. (RUFFATO, 2014, p. 48).

A tenso que contamina a narrativa nesse jogo entre a primeira e a terceira pessoa privilegia o pacto fantasmtico ficcional, por libertar o narrador da determinao que exigiria dele um posicionamento exclusivo de sujeito da enunciao. Na tessitura da memria do outro, a identidade fixa do narrador apagada, perdida para o ele. O narrador torna-se um quase enigma, oculto e implcito na validao dos selves, da terceira pessoa.Na arquitetnica desse modelo de construo autobiogrfica, a alternncia entre aproximao e afastamento do narrador que pe o enunciado em evidncia, fragmentando identidades, sem permitir uma interpretao pura de cada uma das vozes que se manifestam, e, consequentemente, multiplicando a perspectiva do real. necessrio observar que, alm de no estar fixo como sujeito da enunciao, o narrador tambm se oculta e cria ambiguidades. Nos intervalos e limiares que se estabelecem entre a pessoa eu/tu e a no-pessoa ele/eles, que permitem revelar a conscincia do self, muitas vezes a orientao da fala, especialmente na utilizao do discurso indireto livre, a estratgia narrativa que d visibilidade conscincia constitutiva do eu. Destaca-se, nesse aspecto, a interpretao de Mikhail Bakhtin:

O problema da orientao da fala para um enunciado do outro tem, tambm, um significado sociolgico da mais alta ordem. A fala , por sua natureza, social. A palavra no um objeto tangvel, mas um meio sempre mvel e altervel de comunicao social. Nunca remete a uma nica conscincia, a uma nica voz. Seu dinamismo consiste em passar de um falante a outro, de um contexto para outro, de uma comunidade social para outra, desta para aquela gerao. [...] De maneira alguma ocorre que cada elemento da comunidade de falantes aprenda a palavra como um elemento neutro da lngua, livre das intenes e desabitada das vozes de seus usurios anteriores. Pelo contrrio, ele recebe a palavra de um outro e conduzida pela voz do outro [...] permeada pelas intenes de outros falantes. (BAKHTIN, 2002, p. 508-509).

O atravessamento das narrativas que compem Flores artificiais privilegia, ainda, por meio da alteridade que responde ao eu que narra em uma cadeia de conexes e complementaridades, a sobrevivncia da cultura de um indivduo nos outros sujeitos. Como aponta Bakhtin, essa refrao expressa nas falas no diretas evidencia um mundo repleto de palavras dos outros e corrobora o entendimento de que o espao autobiogrfico contemporneo criado no romance um espao de conscincias cindidas filosoficamente, entre as orientaes da mente e do mundo. Da, a pluralidade entre percepes e vises de mundo que acentua a desidentificao dos sujeitos.Nessa performance narrativa que reconstri a realidade no mais representando-a, mas mostrando-a em gesto e cena, e tomando como referncia fundadora a partilha do eu, a dessubjetivao articulada nas mscaras do no-eu contribui para o apagamento do narrador em favor de um novo sujeito. Ao mesmo tempo, a enunciao, voz do passado atualizada como Voz[footnoteRef:4] no presente, instaura tambm um processo de subjetivao do outro, estabelecendo um movimento de devir. Essa identidade desprovida de unicidade manifesta-se em limiares de um percurso da memria que traz para a narrativa runas e rastros de experincias diversas. [4: Conforme Benveniste, voz e Voz referem-se a dois planos do discurso e diferentes modos de significao: voz (com minscula) enquanto unidade do signo lingustico, ou que pode ser mostrado, e Voz (com maiscula) como modo especfico de significar o inapreensvel, gerado pelo prprio discurso.]

O discurso de dupla orientao instaurado no espao biogrfico do romance sugere, por meio da construo alicerada em selves, uma percepo de linguagem que tem como consequncia no apenas a fragmentao das imagens do eu, mas tambm do tempo. No labirinto semntico de sentidos e interpretaes possveis, a presena de marcadores textuais e o encavalamento de cdigos, a multiplicao de associaes, as remisses, os silncios e seus ecos contribuem para que a travessia proposta pelo romance instaure-se no somente na relao entre as conscincias, mas em releituras do tempo e do espao.A partir do momento em que a pessoa eu pressupe aproximao e distanciamento nas relaes instauradas com o tu, so estabelecidos vnculos de simetria e dissimetria em relao instncia organizadora da narrativa. Referenciado pelo pronome pessoal eu, que postula automaticamente a presena de um tu (o outro a quem o discurso se dirige), o narrador atua como eixo central das relaes de espao e tempo, estabelecendo as noes de aqui e agora na enunciao. Para isso, vale-se do uso de pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, que assumem o estatuto do nome/pessoa ou o qualificam, e tempos e modos verbais, especialmente o presente, o futuro e o perfeito.A escritura assimtrica que se materializa em uma voz exterior fala do narrador e privilegia um labirinto de sentidos est acompanhada de um conjunto de shifters. So esses marcadores os responsveis por assinalar o tempo na narrativa, explicitando no apenas o agora e o ento, mas contextualizando espacialmente a travessia, por meio do aqui e do l. Para alm dos pronomes determinantes dessa escritura, tambm as formas e os tempos verbais so operadores por excelncia da percepo do tempo narrativo, dos limiares em que acontece esse percurso de incorporao da palavra e da conscincia do outro. Em relao a esses marcadores, necessrio assinalar que a observao das normas gramaticais da lngua essencial para se proceder identificao dos sentidos e particularidades da enunciao.A autonomia dos enunciados j referida confere tambm, e de forma particular, temporalidade e espacialidade ao eu e ao tempo fragmentados. Isso ocorre, por exemplo, no trecho da narrativa Suzana, que, em um dilogo do eu consigo mesmo, sugere essa ambivalncia de tempo e espao, percorrendo passado e presente em direo a um devir. Vale observar, ainda, que, ao se associar a imagens, as lembranas criam diferentes graus de intensidade, imprimindo mais fora ao presente.

Ao ir embora os moradores sempre largavam alguma coisa, um livro, um quadro, garrafas de bebida... Eu gosto disso porque sinto que habito um lugar sinfnico, Suzana falou, [...] Todos os dias deparo-me com uma novidade, e como se estivesse apenas a recuperar algo perdido no tumulto das lembranas... Com isso, incorporo gostos e sentimentos de outras pessoas, e assim amplio minha memria com reminiscncias alheias... (RUFFATO, 2014, p. 130).

O novo lugar narrativo construdo pelo passado, considerado um estado de runas e fragmentos, recupera uma nova dimenso temporal, um no-lugar literrio que remete ao futuro. Esse procedimento de atualizao da lembrana-imagem est, no romance, a servio da construo de uma verdade, por meio de uma voz do passado e da experincia sensvel que ela traz, e de uma Voz tornada presente, constituda no movimento da enunciao e contaminada pelo sentimento contemporneo de despertencimento. A subjetivao do sujeito que se d nesse processo torna-se, assim, expresso de continuidade, de devir. No espao autobiogrfico povoado por selves que caracteriza as diferentes histrias em Flores artificiais como se o discurso fosse um grande palcio e cada cmodo guardasse argumentos e perspectivas diversas. Mas a arquitetnica do romance no permite to facilmente a identificao exata das frases narrativas, que embaralham os discursos das personagens e o relato do narrador, em uma sucesso dinmica de diferentes vozes e entoaes coordenadas, muitas vezes passando do discurso direto a um dilogo velado ou ambguo, entremeado de observaes e intervalos. Nessa contemplao, mesmo que atenta, da recriao que se faz da memria nem sempre as causalidades so aparentes, o que tambm contribui de forma decisiva para o carter verossmil e real.Outro elemento presente nessa narrativa contempornea de Luiz Ruffato, como nova instncia de multiplicao de sentidos, o silncio. Esse espao de potencialidade, em suas diferentes formas, revela-se tambm nicho de polissemia da palavra, por agregar s histrias o no-dito, ou indizvel. Em relao opacidade do no-dito e sua potncia, vale acrescentar que no a um vazio que se faz referncia, mas a uma condio de produo de sentido e de movimento dos sujeitos, como esclarece a terica Eni Puccinelli Orlandi: O silncio no o vazio ou o sem-sentido; ao contrrio, ele o indcio de uma instncia significativa. Isso nos leva compreenso do vazio como um horizonte e no como falta (ORLANDI, 2007, p. 68).A autora observa, ainda, sobre a formao discursiva, a indispensvel presena do silncio como condio para que a linguagem possa constituir-se em formas e significados apreensveis, verbalizveis. Alm disso, como mediador das relaes entre linguagem, mundo e pensamento, sua transparncia passa a propor uma significao de movimento, migrao e incompletude.No-lugar literrioNa travessia que toma para si uma variedade de buscas e descaminhos traados procura de identificao, os planos temporais estabelecem superposio, estilhaamento e descontinuidade do tempo. Essa estratgia composicional confere espacialidade narrativa, como se esta buscasse a ocupao de um territrio.Ao estabelecer tematicamente o deslocamento territorial como argumento privilegiado para os percursos do narrador e das personagens, que esto sempre em movimento, seja pelo resgate da memria ou pelo itinerrio quase nmade das experincias, a narrativa prope uma apropriao espacial tambm por contrastes. Na errncia de movimento acentuada nas histrias torna-se possvel, ento, identificar, alm de certa vulgaridade do presente e de uma busca em direo ao futuro, as caractersticas de um anonimato contemporneo.

Isso foi h mais de cinquenta anos! , ele suspirou, e foi a ltima vez que fizemos alguma coisa que preste, minha filha, a ltima... Depois, nos tornamos o qu? Um pas sem importncia... El Gordo, amuado, quis argumentar, mas Don Carlos antecipou-se, O senhor notou que somos uma nao de velhos e crianas? No h jovens, vo todos embora. Vo para a Espanha, para os Estados Unidos, para o Canad... At para a Austrlia vo... No tm futuro aqui. [...] A ditadura acabou com o Uruguai! (RUFFATO, 2014, p. 62).

O trecho da narrativa El Gordo evidencia essa mobilidade no cruzamento de referncias temporais e espaciais. O lugar do sujeito no mundo contemporneo parece, assim, definir-se em contraponto realidade histrica, orbitando a lgica do tempo para criar um novo lugar de identificao.Na composio literria, esse procedimento formal nos remete a um no-lugar literrio, suporte da coordenada tempo-espao. A narrativa de Ruffato acentua essa experincia em nova pragmtica da enunciao, ao propor, pelo j referido confronto de conscincias ideolgicas apoiado no deslocamento contnuo da escritura, em relaes, conexes e associaes de imagens , o prprio texto como esse no-lugar. tambm essa arquitetnica literria contempornea apoiada em imagens-lembrana que imprime tenso narrativa e contribui de forma singular para a noo de estranhamento referida por Chklovski no ensaio A arte como procedimento. O tratamento dado ao objeto ficcional, como afirma o formalista russo, o que permite o distanciamento, que se d ao obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a durao da percepo, como condio para apreender o mundo por meio de um olhar esttico.

[...] a imagem no um predicado constante para sujeitos variveis. O objetivo da imagem no tornar mais prxima de nossa compreenso a significao que ela traz, mas criar uma percepo particular do objeto, criar uma viso e no o seu reconhecimento. (CHKLOVSKI, 1976, p. 50).

A fragmentao inerente contemporaneidade revela-se, dessa forma, em Flores artificiais, como um imbricado jogo de estratgias de composio, deixando de se manifestar apenas como a representao de uma realidade despedaada para multiplicar-se em um conjunto de procedimentos ficcionais formais que tm no deslocamento contnuo uma referncia essencial. Nesse contexto, para alm da partilha do eu e da reconstruo das memrias de um outro enquanto estratgias nucleares de representao, a lgica que o autor estabelece entre os elementos da composio e a seleo de linguagens, imagens e cdigos que determinam uma nova perspectiva de gnero autobiogrfico. necessrio pontuar que a presente anlise prope apenas uma oportunidade para alargar possibilidades de leitura e entendimento do projeto que engendra o romance, at mesmo por se tratar de um exerccio de abertura de um texto que se coloca, como sugere Barthes, nos limites das regras de enunciao (BARTHES, 2012, p. 68) e que seria, em princpio, paradoxal enquanto manifestao artstica.Em um tempo que articula a perda de experincias limiares, a escritura da memria individual mas, em ltima instncia, no dissociada da coletividade oferecida ao leitor por meio de uma performance narrativa, que rene instncias de manipulao no dilogo com a conscincia e tambm de interpretao de imagens. Diante disso e de uma identidade que no mais ocupa territrio delimitado por fronteiras, o passado s pode ser recriado em um estado de fragmentao e runas, tornado Voz presente em uma nova relao do eu com o outro e em um movimento que no pode prescindir de aguda conscincia de linguagem na organizao da estrutura orgnica de uma enunciao.Ainda uma observao se faz necessria para pontuar que a travessia empreendida nos campos da memria alheia, mesmo que submetida a um conjunto de impresses e pretensos entendimentos, no remete a outra perspectiva alm do despertencimento, do descaminho e do carter condicional da vida humana diante da morte.

[...] No perteno a lugar algum, sou, sempre fui, um estranho, um estrangeiro... No me entreguei vida ela me largou num parque abandonado... [...] Para no sofrer no futuro, padecia no presente... O tempo, este escriturrio burocrtico e insensvel, escarneceu de minha contabilidade esdrxula: polvilhou meus cabelos, retorceu minha espinha, enrugou minha pele, oxidou minhas juntas, espanou meus sonhos. Perambulo pelo mundo, dissipando minhas pegadas, esquecendo-me de que no tenho paradeiro... (RUFFATO, 2014, p. 140).Ainda que analisado sob a tica do exerccio experimental que caracteriza o percurso criativo e o projeto literrio do autor desde Eles eram muitos cavalos (RUFFATO, 2001) e ao longo da srie Inferno Provisrio, publicada em cinco volumes no perodo entre 2005 e 2011, e mesmo reiterando uma marcada herana da tradio realista, como refere Schollhammer em Fico brasileira contempornea (2011), o romance privilegia uma elaborao potica que valoriza a conscincia de linguagem para criar efeitos de imagem do pensamento. Em Flores artificiais, ao extrapolar as referncias da paisagem para debruar-se sobre a geografia do eu em movimento, o que se opera a ampliao da inverso de perspectiva trabalhada nos romances anteriores, tomando a parcialidade das personas eu/tu e ele/eles como instncia reveladora das contradies do sujeito. vlido observar que, nesta obra, a arbitrariedade que parece caracterizar a escolha do elenco de personagens que atravessam o relato autobiogrfico de Drio Finetto cada qual com uma bagagem particular de vivncias e referncias histricas e dos lugares e deslocamentos aleatrios (Buenos Aires, Congo, Juiz de Fora, Beirute etc.) est a servio de uma simultaneidade de perspectivas que corroboram o inacabamento e a multiplicidade do humano. A inusitada pragmtica da enunciao destacada na narrativa, tendo como suporte o deslocamento geogrfico para alm das fronteiras territoriais, no apenas amplia o interesse na anlise do romance, destacando-o no cenrio da produo literria da atualidade, mas sugere nova possibilidade de reflexo sobre os procedimentos de criao esttica que articulam tradio e reinveno da dico narrativa contempornea.

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