as condições do estudo sociológico dos linchamentos no brasil

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ESTUDOS AVANÇADOS 9 (25), 1995 295 As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil JOSÉ DE SOUZA MARTINS S LINCHAMENTOS VÊM ganhando notoriedade no Brasil nos últimos vinte anos. Eles têm ocorrido mais ou menos paralelamente a outras duas formas de comportamento coletivo: os saques e os quebra-quebras. Na verdade, os linchamentos não são uma novidade na sociedade brasileira. Há re- gistros documentais de formas de justiçamento desse tipo no país já na primeira metade do século XVIII, antes mesmo que aparecesse a palavra que o designa. Os jornais brasileiros do final do século XIX, aproximadamente a partir das vésperas da abolição da escravatura negra, trazem freqüentes notícias de linchamentos nos Estados Unidos, mas também, no Brasil. Eram linchamentos de motivação racial, contra negros, mas também contra seus protetores brancos. Nessa época, a palavra linchamento já era de uso corrente no vocabulário brasileiro. É significativo que as três formas de protesto popular citadas tenham des- pertado menos a atenção dos cientistas sociais brasileiros do que os movimentos sociais organizados. Não é demais lembrar que a elaboração teórica do comporta- mento coletivo antecedeu a formulação do conceito (e das teorias) de movimento social. Cada uma dessas formas de protesto, porém, motivou um número muito reduzido de estudos sociológicos e antropológicos (1). Em parte, em decorrência do modismo do estudo dos movimentos sociais e da suposição do primado da organização como meio de manifestação da vontade social e política das chamadas classes populares. Mas, também, em decorrência da dificuldade para tratar sociologicamente de processos sociais em conflito com o pressuposto moderno da razão. E, finalmente, em parte também, em conseqüência da discutível supo- sição de que os movimentos sociais constituem formas de ação coletiva mais desenvolvidas e acabadas do que as do comportamento coletivo. Não deixa de chamar a atenção do pesquisador que na Enciclopédia Internacional de Ciências Sociais o verbete comportamento coletivo tenha sido substituído por movimentos sociais (2). Outra dificuldade, certamente, é a decorrente do fenômeno em si. O linchamento, como as outras duas formas de manifestação coletiva indicadas, resulta da decisão quase sempre repentina, impensada, de motivação súbita e, de modo geral, imprevisível. Sendo legalmente modalidades de delito, os participantes O

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José de Souza Martins - As condições do estudosociológico dos linchamentosno Brasil

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  • ESTUDOS AVANADOS 9 (25), 1995 295

    As condies do estudosociolgico dos linchamentosno BrasilJOS DE SOUZA MARTINS

    S LINCHAMENTOS VM ganhando notoriedade no Brasil nos ltimos vinteanos. Eles tm ocorrido mais ou menos paralelamente a outras duasformas de comportamento coletivo: os saques e os quebra-quebras. Na

    verdade, os linchamentos no so uma novidade na sociedade brasileira. H re-gistros documentais de formas de justiamento desse tipo no pas j na primeirametade do sculo XVIII, antes mesmo que aparecesse a palavra que o designa. Osjornais brasileiros do final do sculo XIX, aproximadamente a partir das vsperasda abolio da escravatura negra, trazem freqentes notcias de linchamentosnos Estados Unidos, mas tambm, no Brasil. Eram linchamentos de motivaoracial, contra negros, mas tambm contra seus protetores brancos. Nessa poca,a palavra linchamento j era de uso corrente no vocabulrio brasileiro.

    significativo que as trs formas de protesto popular citadas tenham des-pertado menos a ateno dos cientistas sociais brasileiros do que os movimentossociais organizados. No demais lembrar que a elaborao terica do comporta-mento coletivo antecedeu a formulao do conceito (e das teorias) de movimentosocial. Cada uma dessas formas de protesto, porm, motivou um nmero muitoreduzido de estudos sociolgicos e antropolgicos (1). Em parte, em decorrnciado modismo do estudo dos movimentos sociais e da suposio do primado daorganizao como meio de manifestao da vontade social e poltica das chamadasclasses populares. Mas, tambm, em decorrncia da dificuldade para tratarsociologicamente de processos sociais em conflito com o pressuposto modernoda razo. E, finalmente, em parte tambm, em conseqncia da discutvel supo-sio de que os movimentos sociais constituem formas de ao coletiva maisdesenvolvidas e acabadas do que as do comportamento coletivo. No deixa dechamar a ateno do pesquisador que na Enciclopdia Internacional de CinciasSociais o verbete comportamento coletivo tenha sido substitudo por movimentossociais (2). Outra dificuldade, certamente, a decorrente do fenmeno em si. Olinchamento, como as outras duas formas de manifestao coletiva indicadas,resulta da deciso quase sempre repentina, impensada, de motivao sbita e, demodo geral, imprevisvel. Sendo legalmente modalidades de delito, os participantes

    O

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    dessas manifestaes prontamente se recolhem ao anonimato. Assim como a po-lcia dificilmente encontra uma testemunha da ocorrncia, tambm o pesquisa-dor tem poucas possibilidades de localizar informantes que lhe permitamreconstituir o acontecimento com o cuidado que desejaria.

    Por outro lado, a literatura sociolgica disponvel sobre o tema dos lincha-mentos basicamente americana. As indicaes existentes e o meu prprio estu-do preliminar sobre o tema sugerem diferenas entre os linchamentos nos Esta-dos Unidos e os linchamentos no Brasil. L, a motivao racista da violncia e oproblema do Sul dominaram o interesse dos estudiosos. Algo prximo dos nos-sos casos de linchamentos no sculo XIX. A relao entre linchadores e vtimasaparece claramente demarcada por uma linha de casta. Aqui, ao contrrio, no setem informao suficiente sobre distines raciais na prtica dos linchamentos. verdade que h indcios de que o negro vtima predileta de linchadores (3).Mas, h indcios, tambm, de negros participando de linchamentos de negros.Fica difcil, pois, assumir o preconceito racial como motivao fundamentaldessa forma de justiamento. claro, e sabemos todos, que o ocultamento dopreconceito e da discriminao raciais opera acentuadamente no nosso caso,introduzindo uma dificuldade adicional no estudo dessa modalidade de vio-lncia coletiva.

    Os estudos americanos indicam, no entanto, aspectos do problema cujaobservao pode ser pertinente no caso brasileiro. As estudos sobre o Sul dosEstados Unidos sugerem que ali os linchamentos, em sua fase mais aguda, entre1870 e 1930, tiveram um objetivo social alm daquele que poderia ser indicadocomo o motivo imediato da violncia, que era freqentemente o da violao damulher branca pelo homem negro: o enquadramento da populao negra noslimites de sua casta. Os brancos sentiam-se ameaados pelos negros em duasfrentes: no mercado de trabalho e no poder. As hipteses dos socilogos ameri-canos tratam de dar conta dessas fontes de disputa, produzidas seja pela deca-dncia dos agricultores brancos, empobrecidos pela perda da terra e impelidos auma redefinio de suas relaes sociais j no mais como proprietrios, mascomo arrendatrios e parceiros, seja pela extenso de direitos polticos virtuaisaos negros com o fim da escravido e a derrota do Sul na Guerra Civil (4). Essesestudos indicam, sociologicamente, que a motivao racial para o lincha-mento apenas racionalizao que a sugere naquelas circunstncias. A crise socialque leva prtica do justiamento tem uma raiz mais profunda. De um lado, mani-festa-se como deteriorao de uma hierarquia social pr-existente e a conse-qente reduo das condies de vida de uma parcela da populao (no caso,branca, proprietria e partcipe do poder) quelas condies, tidas como atribu-tos de categorias sociais inferiores, desprovidas de direitos sociais e polticos. Deoutro, manifesta-se como invaso de mbitos e direitos por categorias sociaisdeles at ento excludas, como ocorre com o direito de voto aos novos cidadosoriginados da abolio da escravatura nos Estados Unidos.

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    Em ambos os casos, estamos diante de um processo de mudana social, dealterao na hierarquia das classes e grupos sociais, que se expressa e se tornasocialmente visvel pela decadncia e no pela ascenso social. Ao menos, estamosdiante de circunstncias em que a incorporao cidadania de um grupo atento dela excludo, como o dos ex-escravos, interpretada por grupos domi-nantes como indicao de degradao social de todos e no como indicao dedesenvolvimento social. A derrota do Sul na Guerra Civil introduziu um compo-nente nesse processo que no pode ser subestimado. A rgida sociedade daplantation foi, na verdade, alcanada por transformaes que lhe chegavam defora para dentro. O fim da escravido e a extenso dos direitos civis aos negrosforam imposies do norte industrial e desenvolvido, o qual alm do mais estavaimpedindo que os interesses territoriais dos grandes proprietrios sulistas seestendessem s terras do oeste americano, asseguradas ocupao da economiafamiliar dos agricultores de ideologia liberal. Concretamente, as transformaeseconmicas e sociais conduzidas pelo Norte enclausuraram o Sul, impondo idias einstituies liberais a uma sociedade sem alternativas econmicas. Os linchamentosno Sul parecem indicar uma tentativa dos brancos, alcanados pela decadncia, depreservar as linhas de casta e seus privilgios mesmo onde e quando eles j notinham mais sentido nem viabilidade econmica, impondo predominantemente aosnegros a inferioridade e a sujeio por meio do terror da violncia privada.

    A sociedade americana conheceu duas modalidades sociais de prtica doslinchamentos: o mob lynching e o vigilantism. Nesse sentido h, tambm, dife-renas com relao sociedade brasileira. Os linchamentos que aqui ocorremso predominantemente do tipo mob lynching, grupos que se organizam sbita eespontaneamente para justiar rapidamente uma pessoa que pode ser ou no serculpada do delito que lhe atribuem. um tipo de justiamento cuja lgica estsubjacente ao acontecimento em si e raramente pode ser explicado de modo racio-nal pelos participantes. Mais raro aqui, embora ocorram, so os linchamentos prati-cados por grupos de vigilantes. Esses grupos notabilizaram-se no Oeste americanoe foram consagrados pelos filmes do gnero western.

    Tambm no Sul dos Estados Unidos houve vigilantismo, praticado numacerta fase da histria da KU KLUX KLAN. O tpico vigilantismo, porm, est associado expanso da fronteira e ocupao do Oeste americano. Os justiamentos nessecaso decorriam da ao de grupos organizados que impunham valores morais enormas de conduta atravs do julgamento rpido e sem apelao da prpriacomunidade. Essa forma de punio vem da tradio puritana e os estudiosos sereferem a muitos casos desse tipo desde, pelo menos, o incio do sculo XVIII. Nomeu modo de ver, os linchamentos praticados pelos vigilantes tinham motivaoe contedo substancialmente diferentes dos praticados contra os negros no Suldos Estados Unidos. Se no Sul o objetivo era o de manter a populao negra noslimites de sua casta, dissuadindo-a de invocar os direitos assegurados nas leis, no

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    Oeste o objetivo era o oposto: desencadear uma pedagogia da violncia com oobjetivo de impor o acatamento da moralidade puritana tradicional, a ordem e alei. verdade que em ambos os casos, o pretexto para linchar derivava de algumdelito, pelo qual, no Sul, um branco no seria necessariamente linchado e, noOeste, um respeitador da lei e da moral no o seria, a no ser por engano. Nosdois casos, a inspirao dos linchadores era conservadora e orientada para a pre-servao da ordem que se acreditava ameaada. No Oeste, mais claramente, aao dos vigilantes procurava preservar uma ordem anterior e impedir que anova sociedade, em gestao no espao novo da fronteira, escapasse dos valorese orientaes tradicionais da sociedade. A ao dos vigilantes definia, assim, umacerta concepo do estranho e do estranhamento, do forasteiro e estrangeiro,criando um poderoso e violento mecanismo de controle social e uma pedagogiada ordem que ressocializava os adventcios e os enquadrava nos princpios datradio puritana.

    Nos dois casos, uma outra diferena com relao aos linchamentos na so-ciedade brasileira: na Amrica, eram predominantemente rurais, mesmo no Oes-te recm-ocupado onde o urbano mal se constitura. No Brasil, so predominan-temente urbanos, embora haja registros de linchamentos rurais e outros envol-vendo membros de populaes indgenas (nos quais, portanto, a motivao racialest claramente presente). Alm disso, a tradio puritana ofereceu um articuladoquadro de referncia para a prtica do justiamento dos que se distanciavam dosvalores e das normas dominantes. Com ele, os linchamentos, tanto no sul comono Oeste (como os mais antigos, no Leste), ganhavam imediatamente significa-o e podiam ser racionalmente explicados at pelo homem comum, pois tantose justificavam pelo racismo quanto pela moralidade tradicional. No nosso caso,no h, ainda, um quadro de referncia que permita situar e explicar imediatamenteos linchamentos do perodo recente.

    nesse sentido que os aspectos dos linchamentos considerados secundriospelos pesquisadores americanos podem ser mais centrais e mais explicativos nocaso brasileiro. Se nos Estados Unidos h claramente um carter pedaggico naprtica do linchamento, no caso brasileiro a tentativa de impor valores e normasde conduta no evidente. Os linchamentos que aqui ocorrem, pela forma queassumem e pelo carter ritual que parecem ter, so claramente punitivos. claroque o eram tambm nos Estados Unidos. Mas, ali, os diferentes estudos mos-tram que os linchadores pretendiam, com sua violncia, alcanar prioritariamentemais do que a prpria vtima. Aqui, as indicaes sugerem que os linchadoresquerem atingir fundamentalmente a prpria vtima, no havendo ntidas preocu-paes com as vtimas potenciais. Provisoriamente, pode-se dizer que aqui aindapredominam fortemente os componentes irracionais do comportamento coletivo.Aqui, o objetivo no o de prevenir o crime por meio da aterrorizao, mas o depuni-lo com redobrada crueldade em relao ao delito que o motiva. Aqui, olinchamento claramente vingativo.

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    No nosso caso, os linchamentos sugerem que h um arraigado sistema devalores subjacente ao comportamento coletivo violento. E, ao mesmo tempo,uma combinao difcil entre tal sistema e os valores racionais da lei e da justia.H uma dupla moral envolvida nessas ocorrncias a popular e a legal. Na verda-de, esta ltima est sendo julgada por aquela. A legitimidade desta est em ques-to. Com seu ato, os linchadores indicam que h violaes insuportveis de nor-mas e valores, mesmo para um delinqente preso: no perodo recente h vrioscasos de presos que lincham companheiros de cela quando sobre eles pesa aacusao de estupro de crianas.

    A questo central esta: por que a populao lincha? A partir do conheci-mento que se tem de diferentes modalidades de linchamento em diferentes luga-res do pas, a hiptese mais provvel a de que a populao lincha para punir, massobretudo para indicar seu desacordo com alternativas de mudana social que vio-lam concepes, valores e normas de conduta tradicionais, relativas a uma certaconcepo do humano. Uma hiptese decorrente a de que o linchamento umaforma incipiente de participao democrtica na construo (ou reconstruo) dasociedade, de proclamao e afirmao de valores sociais, incipiente e contraditriaporque afirma a soberania do povo, mas nega a racionalidade impessoal da justi-a e do direito.

    O linchamento no uma manifestao de desordem, mas dequestionamento da desordem. Ao mesmo tempo, questionamento do poder edas instituies que, justamente em nome da impessoalidade da lei, deveriamassegurar a manuteno dos valores e dos cdigos. Se nos Estados Unidos aselites locais, especialmente no Oeste, tomaram nas mos a obedincia lei, atra-vs dos vigilantes, no nosso caso, as elites no tm demonstrado identificaocom a justia de rua. Ao contrrio, quando participam de linchamentos, comotem acontecido nas grandes cidades do interior, fazem-no procurando ocultarsua participao, limitando-se ao carter punitivo do seu ato. Essa ambigidadeparece indicar que a tradio poltica do poder pessoal, no Brasil, est em crise.Ela tem sido forte ao longo do tempo, dispensando, portanto, a prtica da parti-cipao coletiva na justia de rua, pois, para isso, as elites dispunham e dispemde jagunos e pistoleiros.

    Finalmente, no nosso caso, os linchamentos parecem estar associados precria constituio do urbano. Nesse sentido, aparentemente combinam-sesituaes e motivaes que tanto existiram nos mob lynching quanto na ao dosvigilantes, nos Estados Unidos. Aqui tambm os linchamentos se adensam nasreas perifricas de cidades como So Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, ondejustamente se concentram os migrantes do campo, recentes ou no, privados daterra e do trabalho regular, vivendo no limite da economia estvel e da sociedadeorganizada, como ocorria com os brancos empobrecidos no Sul dos EstadosUnidos, principais envolvidos na prtica de tal violncia. Ao mesmo tempo, uma

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    populao dividida entre a desmoralizao completa e a desesperada necessidadede afirmao dos valores mais tradicionais da famlia e da vizinhana. nessembito que a ameaa da desagregao social se torna mais visvel e mais provvel. nele, tambm, que ganham visibilidade os provveis agentes concretos da rup-tura, do perigo e da alternativa prxima e ameaadora que a de vtima perma-nente da delinqncia ou, mesmo, a de delinqente.

    As fontes de informao para o estudo sociolgico dos linchamentos soprecrias, como j indiquei. H claramente duas alternativas apontadas pela tra-dio dos estudos americanos e que no so diferentes entre ns. Uma a dosestudos de caso (5). Com o tempo tal linha de investigao deveria ser estimuladapara que fornecesse detalhes explicativos a respeito da insero dessa modalidadede violncia nos processos sociais mais amplos. Outra, a da sistematizao dasinformaes disponveis em quadros informativos amplos que permitam o estu-do comparativo das ocorrncias. Nesse caso, a fonte disponvel a do noticiriodos jornais. Lembro que nos Estados Unidos, a maioria dos estudos sobrelinchamentos tem como fonte e base um elenco de casos ocorridos entre 1889 e1918 informado pelos jornais (6). A segunda orientao indispensvel paraque a primeira se situe num quadro de referncia que d conta das tendncias econdies do problema. Alis, nos Estados Unidos, os estudos de caso doslinchamentos vieram na sucesso de um grande nmero de estudos de correla-es baseadas no levantamento geral e preliminar das informaes sobre o temadivulgadas pelos peridicos.

    Com a pesquisa em curso, meu objetivo produzir um elenco semelhantede casos ocorridos no Brasil. As informaes publicadas pelos jornais so deta-lhadas e oferecem dados sociologicamente relevantes para o exame das hiptesesconsideradas. O fato de que esse catlogo de casos possa ser publicado abrecaminho para que outros estudos sejam desenvolvidas sobre o tema. Mas, oobjetivo principal o de realizar um estudo de causas, circunstncias e ritos doslinchamentos no perodo recente. Os linchamentos criam situaes que podemser tratadas experimentalmente como tentativas de (re)inveno social, atravsde comparaes das diferentes ocorrncias. Atravs de seu estudo possvel su-gerir alternativas de interpretao para as complicadas mudanas que esto ocor-rendo na sociedade brasileira desde os anos sessenta, claramente marcadas peladesagregao social.

    Meus estudos sobre linchamentos no Brasil no pesquisa concluda, masexecuo de um projeto de acompanhamento de casos desse tipo de violncia. Oj realizado levantamento de 515 casos e a definio do quadro de variveis queo material permite formular possibilita algumas consideraes sobre o tema.Possibilita, sobretudo nesta fase, consideraes sobre as prprias condies derealizao de um estudo sobre o assunto entre ns.

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    O levantamento bibliogrfico, a localizao e reproduo do material sem pequena parte puderam ser feitos no Brasil, onde escassa a literaturaespecializada a respeito. A maior parte do levantamento de dados foi feita naFrana e, sobretudo, na Inglaterra, aproveitando oportunidades de viagens dopesquisador a esses pases. O exame inicial do material coletado sugeriu serpossvel desdobr-lo em nmero de variveis maior do que o inicialmenteprevisto, ampliando as possibilidades da anlise sociolgica, especialmente noque se refere aos aspectos propriamente rituais e interativos do linchamento.

    A principal fonte de dados para esse tipo de comportamento coletivo onoticirio dos jornais, como j comentado, tal como se deu nos Estados Unidos.Ocorrncia sbita, impensada, exploso passional determinada por fortuita com-binao de circunstncias, os linchamentos no se situam entre os acontecimentosprevisveis, que viabilizem a pesquisa sociolgica planejada e a presena testemunhaldo pesquisador. Mesmo que fosse possvel alguma previso, ainda assim haveriaproblemas adicionais. Dos 515 casos de linchamentos e tentativas de linchamentoarrolados, identificados e classificados at agora, vrios sugerem que, ainda quesejam iminentes as circunstncias de sua ocorrncia, o desenlace pode demorarmuitas horas, muitos dias e at muitas semanas. E, muitas vezes, nem mesmo sedar. Embora o ato em si esteja marcado, aparentemente, por sbita espontanei-dade, os dados sugerem que os linchamentos decorrem da combinao de doisimpulsos de ritmos diferentes: a constatao e interpretao de uma violao denorma social essencial, que corresponde ao que se poderia provisoriamente en-tender como fase de julgamento popular do delito o reconhecimento de queum crime grave foi cometido (a gravidade do crime, porm, nada tem a ver coma gravidade definida nas leis e cdigos jurdicos). Os dados colhidos indicam queessa fase de julgamento, tanto individual quanto coletivo, pode ser rpida (coisade minutos) ou relativamente lenta (dias, semanas), mas de qualquer modo relativamente mais demorada do que a fase seguinte, a da aplicao da pena, dolinchamento propriamente dito. Esse segundo impulso pode se desdobrar demodo incrivelmente rpido, dependendo apenas dos ndices de participao e cruel-dade envolvidos (pode levar de cinco a vinte minutos e, excepcionalmente, mais).

    A ampla literatura sociolgica que pude examinar nesta fase da pesquisa,relativa sobretudo ao pas que tem a mais dramtica histria de linchamentos, osEstados Unidos, sugere que a prpria orientao interpretativa dos pesquisado-res confundiu-se e dividiu-se com relao a esses dois momentos do processo. Amaioria dos socilogos, inspirados sobretudo na obra de Le Bon (7), concen-trou seu interesse no segundo momento, contraditoriamente, porm, buscandocausas estruturais para explicar acontecimentos no-estruturais. o caso dosestudos que intentaram estabelecer correlaes entre o preo do algodo no Sul dosEstados Unidos, a piora nas condies de vida dos agricultores brancos e pobres, aconcorrncia do negro no mercado de trabalho e a ocorrncia de linchamentos (8).

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    Essa correlao pode ser estabelecida positivamente nos casos em que a vtima negra. Mas, deixa sem explicao o grande nmero de linchamentos no Oeste ame-ricano, em que as vtimas no eram negras e a motivao no era necessariamenteracial (9). As mesmas causas estruturais, porm, podem provavelmente explicarvrios outros fenmenos sociais, sem que se lhes possa atribuir a qualidade decausas de linchamentos. De qualquer modo, os estudos referidos, embora no orealizem de forma satisfatria, indicam haver circunstncias imediatas, no limiar doirracional, que atuam decisivamente no comportamento dos grupos que lincham.

    Nos ltimos anos, surgiram novas perspectivas para o estudo dos lincha-mentos, elaboradas pelos historiadores, indicadas em estudos de caso e baseadasem demorados e trabalhosos registros de histria oral. Nesses estudos, tem sidopossvel resgatar evidncias de que os elementos que aparecem como causa ime-diata dos linchamentos j esto presentes no cotidiano das relaes sociais, em-bora no possam ser captados atravs de estudos de causas propriamente estru-turais desse tipo de violncia. Alm disso, os estudos de caso relativizam enor-memente os muitos preconceitos envolvidos em apressados julgamentos expres-sos no noticirio dos jornais, que tem sido, em vrios pases, a principal fonte dedados para o estudo do problema. Os estudos retrospectivos de casos, realizadosnos Estados Unidos, so igualmente indicativos das reais dificuldades para seobter informao direta, de primeira mo, de testemunhas eventuais. Meio scu-lo depois das ocorrncias, as testemunhas ainda pedem o anonimato e tememver-se expostas a represlias simplesmente pelo fato de contarem o que sabemsobre esses acontecimentos do passado. Ou seja, mantm ainda hoje o mesmotemor que tinham quando os acontecimentos se deram.

    Os estudos de caso mostram claramente que o linchamento envolve maisdo que sbita e solidria deciso de matar algum de forma violenta e coletiva-mente. H uma certa idia de corpo, de pertencimento, envolvida na ocorrncia.Evidentemente, isso mais claro nos inmeros linchamentos ocorridos em pe-quenas localidades rurais, onde todos se conhecem. No caso brasileiro, em quepredominam linchamentos nas grandes cidades, como So Paulo, Rio de Janeiroe Salvador, a situao de anonimato patente em muitas das ocorrncias, embo-ra no em todas. Dificilmente, no futuro, ser possvel realizar estudos detalha-dos de caso, como est se fazendo agora nos Estados Unidos. Mas, onde oslinchamentos so praticados pela ao de grupos de vizinhana, seja no interiorseja nas grandes capitais, o material disponvel j indica que a prpria polcia temdificuldade para obter informaes que lhe permitam caracterizar o crime e indiciarparticipantes. Muitas vezes, os moradores silenciam at mesmo sobre a identida-de do linchado, embora saibam, evidentemente, a quem lincharam e o porqu.Mesmo tendo em conta que, no Brasil, uma significativa proporo de lincha-mentos praticada por grupos de vizinhana, preciso considerar, tambm, queocorrem na maior parte em bairros de concentrao de migrantes, marcados porgrande mobilidade. Ser difcil localizar os participantes no futuro, quando determi-nada distncia no tempo facilitar o estudo retrospectivo das ocorrncias.

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    Procurei testar a possibilidade de alguma previso no comportamento depossveis grupos de linchadores, anotando e acompanhando casos que, no no-ticirio da imprensa, se desenhavam nitidamente com os mesmos contornos e pos-sveis motivaes de ocorrncias delituosas que culminaram em linchamentos. Namaioria dos casos que acompanhei, o desenlace no foi o linchamento nem mesmoa tentativa de linchamento. O que torna praticamente intil o uso desse recursopara identificao de possveis ocorrncias e eventualmente a realizao de umtrabalho documental diverso do que se pode fazer atravs do noticirio de jor-nais. De qualquer modo, haveria a sempre um problema tico, sobretudo para opesquisador: diante da previsibilidade de um linchamento, seria lcito no agirpara preveni-lo ao invs de simplesmente agir para document-lo?

    O uso do material jornalstico no estudo sociolgico de linchamentos, nosEstados Unidos, teve dois momentos distintos. Nos estudos iniciais, mais antigos,foi utilizado material colhido diretamente pelos pesquisadores, ao acaso de cir-cunstncias e possibilidades. Num segundo momento, os dados foram retros-pectivamente colhidos e classificados sistematicamente por institutos de pesquisa,interessados sobretudo em caracterizar o racismo que estava na raiz das motivaespara linchar. O material dessas fontes, de qualquer modo coletado em jornais,passou a ser e at hoje a base principal de realizao de estudos sociolgicos ehistricos sobre o problema. No Brasil, o jornal a nica fonte sistemtica e,ainda assim, limitada pela casualidade do acesso do pesquisador a publicaesque tenham notcias sobre o assunto. Alm disso, ocasional e excepcionalmente,amigos me remetem recortes de diferentes regies do Brasil (10). Porm, demodo algum possvel, por enquanto, mesmo com recursos, ainda que modestos,obter um levantamento razoavelmente completo de ocorrncias em todo o pas,sobretudo em pequenas localidades de regies remotas onde linchamentos estoacontecendo, mas cujas notcias jamais chegam aos jornais (11). desejvel,porm, que se tenha aqui, no futuro, sries histricas, como as que foram produzi-das nos Estados Unidos, mediante pesquisa em centenas de jornais de todo o pas.

    De qualquer modo, o arquivo que organizei at agora , provavelmente, omais completo e criterioso com relao ao Brasil. Embora haja as limitaesindicadas quanto representatividade estatstica dos casos noticiados, o materialcolhido rico de informaes e detalhes sociologicamente relevantes. Conseguidistribuir as informaes jornalsticas por 72 variveis, o que permite testar eanalisar um grande nmero de associaes de dados e verificar caractersticas eregularidades essenciais para o estudo sociolgico do problema. Esse detalhamentono foi feito nos estudos americanos, limitados, no geral, a indagaes sobre aspossveis grandes causas dos linchamentos e, portanto, a meia dzia de variveis.Mesmo assim, no se trata de nmero que possa ser considerado amostra dealgum modo probabilisticamente representativa do universo de linchamentos nopas. Algumas indicaes relativas ao estado da Bahia so reveladoras das limitaesque, nesse particular, tm os dados colhidos em jornais.

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    A prpria imprensa difundiu, em diferentes ocasies, a propsito de novoslinchamentos naquele estado, informaes liberadas pela Polcia quanto a nmerosoficiais dessas ocorrncias, durante determinado perodo at aquele momento.

    O quadro o seguinte:

    Tabela 1Linchamentos no estado da Bahia

    (1988/1991)

    (A) (B) % B/A Linchamentos Linchamentos

    Ano ocorridos noticiados

    1988 105 5 4.8

    1989 103 12 11.7

    1990 105 36 34.3

    1991 79 27 34.2

    Mesmo que aleatoriamente, pode-se projetar esses ndices para o conjuntodo pas e presumir que os dados registrados pela imprensa, na melhor das hip-teses, correspondem a cerca de um tero do total de ocorrncias. O prprioquadro indica, porm, que a ateno dos jornais pelos casos de linchamentocresceu paulatinamente e s chegou a um tero das ocorrncias quando se tomouconscincia de que era alto o seu nmero. O mesmo no aconteceu em outrosestados. Em So Paulo, em diversas ocasies, linchamentos ou tentativas delinchamento divulgados pela televiso no foram noticiados pelos jornais. O quesugere que alm de interesse limitado por esse tipo de comportamento coletivo,os jornais devem ter noticiado seletivamente as ocorrncias. Nos Estados Unidos,estudos sobre o problema demonstraram que os linchamentos chegavam aosgrandes jornais apenas quando havia na localidade algum correspondente dasgrandes agncias noticiosas (12). Para o caso brasileiro, se tomarmos como refe-rncia os dois jornais at agora mais representados neste levantamento (O Estadode S. Paulo e Folha de S. Paulo), veremos que os mesmos tm correspondentesapenas em capitais e cidades principais do prprio estado de So Paulo. Prova-velmente, linchamentos ocorridos em regies interioranas e mesmo ruraissequer chegaram ao conhecimento dos correspondentes, fazendo supor queforam noticiados predominantemente determinados tipos de linchamentos, decaracterstica mais claramente urbana, e menos os propriamente rurais.

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    Com relao aos casos americanos, h diferenas na documentao. Foimacabro trao dos linchamentos, sobretudo no Sul dos Estados Unidos, foto-grafar o cadver do linchado, ainda dependurado numa rvore ou num poste,para venda e exibio da fotografia a curiosos e participantes (sem contar a distri-buio de pedaos do cadver, como orelhas e dedos, a ttulo de lembrana e,provavelmente, prova de participao no ato punitivo). Talvez porque aquelestenham sido predominantemente linchamentos comunitrios, praticados porpopulaes que haviam incorporado a fotografia como um documento corri-queiro da crnica local. Esse procedimento no acontece com as populaes daslocalidades brasileiras nas quais tem ocorrido esse tipo de violncia. Houve,entretanto, a conhecida exceo quanto ao vdeo feito por um amador, em Matup(Mato Grosso), com o objetivo de vend-lo a algum canal de televiso, e queregistrou o momento em que trs assaltantes foram queimados vivos pela multi-do. Paralelamente a isso, porm, a prpria televiso tem transmitido, ao vivo,tentativas de linchamento e at os prprios linchamentos, como ocorreu h poucono interior do Paran, quando, entre outros, um mdico e um policial foramlinchados. Isso traz um novo tipo de documento ao estudo, que no houve nocaso dos estudos americanos. Sobretudo importante, porque permite obter-seevidncias visuais muito expressivas tanto da ocorrncia quanto do comporta-mento dos participantes. Essas evidncias so principalmente importantes noexame dos aspectos propriamente rituais dos linchamentos.

    O propsito de dar destaque dimenso ritual dos linchamentos exeqvelsobretudo porque os jornais, com grande freqncia, se interessam pelos deta-lhes da execuo violenta, que so, na verdade, indicadores de ritos sacrificiais.Os 515 casos j arquivados e analisados, monstram que as notcias de peridicosoferecem consistentes informaes, sem que o redator saiba, s vezes minuciosas,sobre os aspectos propriamente rituais dos linchamentos. O redator prope-seapenas a noticiar uma ocorrncia anormal e chocante, dando dela os detalhesque lhe chegam s mos. No sabe, porm, nem tem a inteno de faz-lo, queest relatando detalhes de um rito sacrificial de raiz ancestral, o qual expressaprocessos de desagregao social, de precria constituio do urbano e procla-mao de uma concepo de vida conservadora e pr-urbana. Nada deve serfiltrado neste uso da notcia de jornal, para que se possa ter uma rica compreensosociolgica dessas ocorrncias, isto , de seus significados no s os imediatos(que so os que norteiam a construo da notcia), mas tambm os mais profundose ocultos (os que a explicam). O que importa, nessa orientao terica, no alinha, mas a entrelinha. A objetividade no a da construo do dado, que estfora do alcance e da interveno do pesquisador, como ocorre no caso dos docu-mentos histricos, mas do socilogo que os l, situa e interpreta.

    O arrolamento feito at agora indica com clareza que a ocorrncia de umsimples linchamento numa localidade rompe certos constrangimentos sociais

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    prtica da violncia direta: em muitos lugares, um primeiro linchamento , comfacilidade, seguido de outros, ainda que com o passar do tempo (13). o queabre caminho para a eficcia do imaginrio arcaico na ao do homem comum esua exploso intensa na rotina cotidiana da populao. Portanto, est indicado ao que interessa: alteraes na orientao da mudana social, de valores, normas epadres de comportamento e, sobretudo, padres de interao.

    Esses aspectos rituais, alis, tm sido analisados, no caso americano, muitomais por estudiosos da literatura, j que na fico que se tem captado e registradoos aspectos dramticos e simblicos da violncia racial que se consuma atravsdos linchamentos. significativo que esses aspectos estejam ausentes da literaturasociolgica. Talvez, justamente, porque ela ficou muito dependente dos aspectosexteriores e formais do noticirio de jornal, mas tambm porque se interessouquase exclusivamente pelos que se envolvem na ao de linchamento e no pelasvtimas de tal violncia.

    O material j coletado, relativo aos 515 linchamentos e tentativas delinchamento para o perodo de 1970 a 1994, envolve um total de 739 vtimas(366 foram mortas, 69 feridas, 233 salvas, 50 escaparam e no h informaespara 21 delas). Esses linchamentos e tentativas esto assim distribudos porregies e perodos:

    Tabela 2Brasil - Linchamentos

    por perodo e por regio, 1970-1994 (Em %)

    Regio At 1984 Aps 1984

    Norte 7.8 8.3Nordeste 6.4 34.2Sudeste 82.3 48.2Sul 2.1 4.5

    Centro-oeste 1.4 4.8 (N=100 %) (141) (374)

    O principal, porm, ter podido organizar um extenso formulrio e clas-sificar os diferentes aspectos de cada caso, de modo a analisar associaes minu-ciosas entre eles. Embora o levantamento realizado no possibilite fazer previ-ses probabilsticas, permite analisar com riqueza de detalhes as associaes detraos, caractersticas e componentes dos casos arrolados. A consistncia qualita-tiva dos dados animadora e certamente abre amplas possibilidades de acompa-nhamento dos desdobramentos da prtica do linchamento no Brasil.

  • ESTUDOS AVANADOS 9 (25), 1995 307

    Ao mesmo tempo, como j mencionei, encontrei severas dificuldades paralocalizar, no Brasil, uma significativa bibliografia de comparao relativa a outrospases, e, mesmo a orientaes tericas no estudo do problema. Aproveitei duasviagens ao exterior para realizar demorado e completo levantamento bibliogrfico,primeiramente, na Maison des Sciences de lHomme, em Paris. A partir de refern-cias indiretas contidas em estudos sobre outros temas e de indicaes em dife-rentes indexadores, consegui organizar, no Brasil, uma listagem inicial de textos.Desses, aqui encontrei menos de 10% dos listados. Em Paris, localizei outros 20%.Finalmente, em uma estada mais demorada na Universidade de Cambridge(Inglaterra) ampliei consideravelmente essa lista, localizando os demais 70% dostextos arrolados, num total de noventa e seis artigos e livros (14). Esse materialj foi todo lido, analisado e corresponde maior parte da bibliografia j produzidasobre o tema.

    Defini e calculei ndices de participao e de atrocidade nos linchamentospara nmero expressivo de ocorrncias. Houve possibilidade de calcular os doisndices, nos mesmos casos, para um nmero que ultrapassa consideravelmente ode casos em que se pde fazer clculos similares nos linchamentos americanos.Nos Estados Unidos foi possvel faz-lo para 60 linchamentos, ocorridos noperodo de 1899 a 1946 (15). Na minha pesquisa, at agora, foram calculadosndices para 138 casos acontecidos entre 1970 e 1994, mais do que o dobro dosamericanos. Essa disparidade se explica pela limitao do nmero de variveisconsideradas quando se produziu o levantamento bsico de notcias de jornaisat hoje utilizado pela maioria dos estudiosos do tema nos Estados Unidos.Esses ndices so importantes para determinar alteraes nos aspectos qualitativosda prtica de linchamento. O ndice de atrocidade, tendo como ponto mediano0.25 (numa escala de zero a cinco), sugere equilibrada distribuio dos casos em49.6% de baixa atrocidade e 50.4% de alta atrocidade. Agrupei os casos em doisperodos: at 1984 (29.6%) e a partir de 1985 (70.4%). As mudanas de orientaodas multides tm sido pequenas e comparativamente tambm pequenas as varia-es em diversas situaes.

    Tabela 3Atrocidade nos linchamentos no Brasil,

    conforme a regio (Em %)

    Regio Baixa atrocidade Alta atrocidade

    Norte 10.1 8.6 Nordeste 30.9 31.4 Sudeste 56.1 49.3 Sul 0.7 8.6 Centro-oeste 2.2 2.1 Total (N=100%) (139) (140) Obs.: Os 279 casos correspondem queles em relao aos quais

    foi possvel calcular o ndice de atrocidade.

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    Tabela 4Brasil - Distribuio dos ndices de participao, conforme o motivo do

    linchamento outentativa de linchamento (Em %)

    Motivo Alta Baixa

    Ftil 6.7 12.3 Crime contra a pessoa 57.9 34.0 Crime contra a pessoa e a propriedade 22.0 11.3 Crime contra a propriedade 23.4 38.6 Sem indicao - 3.8 Total (N=100 %) (164) (106)

    * * *

    Os linchamentos so mais do que um problema social; so expresses dra-mticas de complicados processos de desagregao social e, tambm, de buscade um padro de sociabilidade diferente daquele que se anuncia atravs dastendncias desagregadoras. Seria pobre a interpretao que se limitasse a v-loscomo manifestao de conservadorismo ou, ao contrrio, a neles ver indicaode uma conduta cidad e inovadora; antes, necessrio neles resgatar a dimensopropriamente dramtica do medo e da busca, ingredientes que muitas vezes acom-panham os processos de mudana social.

    O tema do linchamento um desses temas reveladores da realidade maisprofunda de uma sociedade, de seus nexos mais ocultos e ativos. Nos linchamentosse faz presente a dimenso mais oculta do nosso imaginrio, sobretudo nas formaselaboradas e cruis de execuo das vtimas. A centralidade do corpo nesse imagi-nrio explode nas aes de linchamento, quando pacficos transeuntes, pacficosvizinhos, devotados parentes e pais se envolvem na execuo de algum, a quem,s vezes, esto ligados por vnculos de sangue, s vezes o prprio filho. E, sobre-tudo, quando se envolvem na mutilao, na castrao e na queima da vtimaainda viva. A forma que entre ns assume a chamada justia popular est muitodistante do romantismo ingnuo que tem marcado to fundo estudos sobre acultura popular em nosso pas e o discurso abstrato sobre a cidadania.

    Notas

    1 Sobre linchamentos no Brasil, cf. Maria Victoria Benevides, Linchamentos: violncia ejustia popular, In: Roberto Da Matta et alii, Violncia brasileira, So Paulo, Brasiliense,

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    1982, p. 93-101; Jos de Souza Martins, Linchamentos: a vida por um fio. In: Travessia,ano II, n. 4, p. 21-27. So Paulo, Centro de Estudos Migratrios, maio-ago. 1989.Em Menandro & Souza h um bom levantamento comentado da modesta bibliografiabrasileira sobre o tema, caracterizada pelo predomnio de comentrios jornalsticos(ainda que escritos por cientistas sociais) e reduzido nmero de textos baseados empesquisa e arrolamento de dados. Cf. Paulo Rogrio M. Menandro & Ldio de Souza,Linchamentos no Brasil: a justia que no tarda, mas falha. Vitria (ES), FundaoCeciliano Abel de Almeida, 1991.

    2 Cf. Joseph R. Gusfield, The study of social movements. In: David C. Sills (ed.),International encyclopedia of the social sciences, v. 14, s.l., The MacMillan Company &The Free Press, 1968, p. 445-452. Em 1961, num conhecido ensaio de Blumer, osmovimentos sociais apareciam como um subcampo no estudo do comportamento coletivo.Cf. Herbert Blumer, Comportamento coletivo. In: Alfred McClung Lee (ed.), Princ-pios de sociologia, trad. Francisco M. D. Leo et alii, So Paulo, Editora Herder, 1962,p. 207-272.

    3 So escassssimos os dados sobre a cor das vtimas de linchamentos e tentativas delinchamento no material que examinei. Esses dados apenas permitem supor que, nasocorrncias, h predomnio de negros com relao a brancos. Menandro & Souza,porm, embora enfrentando a mesma carncia de dados, conseguiram quantificar al-guns casos e indicar que, para uma populao negra de 5.9%, 39.6% das vtimas delinchamento eram negras. Cf. Paulo Rogrio M. Menandro & Ldio de Souza, ob. cit.,p. 112-113. H, contudo, problema com essa comparao, pois os autores esto con-siderando linchamentos ocorridos ao longo de largo perodo de tempo e os dadossobre a populao negra do Brasil referem-se unicamente ao ano de 1980.

    4 Cf. Jay Corzine, Lin Huff-Corzine & James C. Creech, The tenant labor market andlynching in the south: a test of split labor market theory. In: Sociological inquiry, v. 58,n. 3, p. 261-278, Summer 1988; Stewart E. Tolnay; E. M. Beck & James L. Massey,Black lynchings: the power threat hypothesis revisited. In: Social forces, v. 67, n. 3, p.605-640, march 1989; E. M. Beck & Stewart E. Tolnay, The killing fields of the deepsouth: the market for cotton and the lynching of blacks, 1882-1930. In: AmericanSociological Review, v. 55, n. 4, p. 526-539, Aug. 1990.

    5 O livro de Rodolpho Telarolli, Poder local na Repblica Velha, So Paulo, Cia. EditoraNacional, 1977, contm abundantes informaes sobre um caso de duplo linchamentono interior de So Paulo, no sculo xix. De certo modo, quase um estudo de casosobre linchamento, mais do que um estudo sobre o poder local. um trabalho quemostra claramente a viabilidade de detalhados estudos de caso sobre esse tipo de vio-lncia no Brasil do passado.

    6 Os poucos casos de estudos brasileiros sobre linchamentos, baseados em pesquisasempricas, tambm se apiam em notcias publicadas pelos jornais. Cf. Paulo RogrioM. Menandro & Ldio de Souza, ob. cit., passim.

    7 Cf. Gustave Le Bon, The crowd: a study of the popular mind. Harmondsworth, PenguinBooks, 1977.

    8 Entre outros, sobre o tema, cf. E. M. Beck & Steward E. Tolnay, The killing fields ofthe deep South: the market for cotton and the lynching of blacks, 1882-1930, cit.

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    9 Sobre a raa das vtimas de linchamento e a distribuio das ocorrncias por estado, cf.James Elbert Cutler, Linch-law: an investigation into the history of lynching in the UnitedStates. New Jersey, Patterson Smith, Montclair, 1969. Hugh Davis Graham & TedRobert Gurr (eds.), The history of violence in America, New York, Frederick A. Praeger,Publishers, 1969.

    10 As notcias sobre linchamentos utilizadas para compor o arquivo desta pesquisa pro-cedem aleatoriamente dos seguintes jornais e revistas: A Provncia do Par (Belm,PA); A Tarde (Salvador, BA); Correio da Bahia (Salvador, BA); Dirio do GrandeABC (Santo. Andr, SP); Dirio Popular (So Paulo, SP); Folha de S. Paulo (SoPaulo, SP); Folha da Tarde (So Paulo, SP); Isto /Senhor; Jornal da Bahia (Salvador,BA); Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ); Jornal da Tarde (So Paulo, SP); NotciasPopulares (So Paulo, SP); O Estado (Porto Velho, RO); O Estado de S. Paulo (SoPaulo, SP); O Globo (Rio de Janeiro, RJ); O Imparcial (Belm, PA); O Liberal (Belm,PA); Tribuna da Bahia (Salvador, BA); Veja.

    11 Em So Flix do Araguaia (MT) ocorreram pelo menos dois linchamentos, masnenhum deles foi noticiado como tal nos jornais a que tive acesso.

    12 Cf. David Snyder & William R. Kelly, Conflict intensity, media sensitivity and thevalidity of newspaper data. In: American Sociological Review, v. 42, n. 1, Feb. 1977.

    13 Cf. Jos de Souza Martins, loc. cit., p. 24-25.

    14 Esses textos foram localizados principalmente na University Library, na biblioteca doInstitute of Criminology e na Seeley Historical Library.

    15 Cf. Brian Mullen, Atrocity as a function of lynch-mob composition: a self-attentionperspective. In: Personality and Social Psychology Bulletin, v. 12, n. 2, p. 191, June1986.

    Jos de Souza Martins, socilogo, professor de Sociologia da Vida Cotidiana no Depar-tamento de Sociologia da FFLCH-USP, fellow de Trinity Hall e professor titular da CtedraSimn Bolivar (1993/94) da Universidade de Cambridge.