as diretrizes fundamentais do projeto do código civil - vol20

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COMENTÁRIOS SOBRE O PROJETO DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO SÉRIE CADERNOS DO CEJ, VOLUME 20 BRASÍLIA 2002

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Page 1: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

COMENTÁRIOS SOBREO PROJETO DO CÓDIGO

CIVIL BRASILEIROSÉRIE CADERNOS DO CEJ,

VOLUME 20

BRASÍLIA2002

Page 2: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

EDITORAÇÃOSecretaria de Pesquisa e Informação Jurídicas do Centro de Estudos Judiciários – SPI/CEJNeide Alves Dias De Sordi – SecretáriaMilra de Lucena Machado Amorim – Subsecretária da Subsecretaria de Divulgação e Editoração

da SPI/CEJLucinda Siqueira Chaves Freire – Diretora da Divisão de Editoração da SPI/CEJSônia Rosana Gomes de Moraes e Menezes - Chefe da Seção de Edição de Textos da SPI/CEJAntônio César do Vale - Chefe da Seção de Revisão de Textos da SPI/CEJRute Maria Barreto Rezende – Servidora da Divisão de Editoração da SPI/CEJ

DIAGRAMAÇÃO E ARTE-FINALAnelize Lenzi Ruas - Servidora da Divisão de Divulgação Institucional da SPI/CEJ

CAPAAnelize Lenzi Ruas - Servidora da Divisão de Divulgação Institucional da SPI/CEJ

ILUSTRAÇÃOEnivaldo Sizino dos Santos - Chefe da Seção de Programação Visual da SPI/CEJ

NOTAS TAQUIGRÁFICASSubsecretaria de Taquigrafia do Superior Tribunal de Justiça

IMPRESSÃODivisão de Serviços Gráficos da Secretaria de Administração do Conselho da Justiça FederalLuiz Alberto Dantas de Carvalho – Diretor

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SUMÁRIO

Apresentação

As diretrizes fundamentais do Projeto do Código CivilMiguel Reale

Direito de FamíliaLuiz Edson Fachin

Capacidade civil e capacidade empresarial: poderes de exercício no Projetodo Novo Código CivilJoão Baptista Villela

Direitos das CoisasRui Geraldo Camargo Viana

Atividade negocialNewton de Lucca

Autonomia privadaFrancisco dos Santos Amaral Neto

AlimentosFrancisco José Cahali

União estável: legislação e projetosÁlvaro Villaça Azevedo

Vícios de consentimento: fraudeHumberto Theodoro Júnior

O princípio da boa-fé nos contratosAntonio Junqueira de Azevedo

Direito Civil e Constituição. Relações do Projeto com a Constituição.Roberto RosasJudith Martins Costa

Page 4: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

APRESENTAÇÃO

O Conselho da Justiça Federal, por meio do seu Centro de Estudos Judiciá-

rios, publica, a partir de notas taquigráficas, os anais do Encontro sobre o Projeto

de Código Civil Brasileiro, neste volume da Série Cadernos do CEJ.

Não obstante a realização do evento ter sido em abril de 2000 – antes da

promulgação da Lei n. 10.406, em 10 de janeiro de 2002, a qual entrará em vigor

um ano após a sua publicação –, tal fato não descarta a importância das conferên-

cias nele proferidas.

Encontrará o leitor, nas páginas que permeiam este fascículo, opiniões

diversas de ilustres personalidades da área jurídica do nosso País, com críticas

tanto a favor como contra o Projeto, o que o levará às suas próprias reflexões e

conclusões.

Pontos polêmicos nas áreas do Direito de Família, Direito Civil, Direito

Constitucional, Direito das Coisas, Direito Comercial, dentre outros, foram realça-

dos, o que instigou a capacidade intelectiva dos participantes e aguçará o senso

crítico daqueles que folhearem as próximas páginas.

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AS DIRETRIZES FUNDAMENTAIS DO PROJETO DO CÓDIGO CIVILMIGUEL REALE

Page 6: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

TRAMITAÇÃO DO PROJETO

O Projeto do Código Civil foi

aprovado pela Câmara dos

Deputados em 1984, após

cuidadoso estudo e debate de 1.063

emendas, o que não deve causar es-

tranheza por tratar-se de uma lei com

cerca de 2.100 artigos. Além de haver

muitas emendas repetidas, a maioria

delas não foi aceita pelo plenário.

Foi relevante a contribuição da

Câmara dos Deputados, graças ao mag-

nífico trabalho dos relatores de cada

uma das seis partes do Projeto, sendo,

afinal, Relator-Geral o saudoso Depu-

tado Ernani Satyro, cujo trabalho não

posso deixar de enaltecer.

Não menos relevante foi a con-

tribuição do Senado Federal que, em

novembro de 1997, aprovou o Projeto

com 332 emendas propostas pela Co-

missão Especial, com base no magnífi-

co parecer final de autoria do eminen-

te Relator-Geral, Senador Josaphat Ma-

rinho, a quem a Nação fica a dever,

bem como ao preclaro Presidente An-

tônio Carlos Magalhães, decisão de tão

grande alcance para a sociedade bra-

sileira.

Sinto-me à vontade para pro-

nunciar-me sobre o Projeto, pois, este,

embora preservado em sua estrutura

e valores iniciais, ultrapassou a pes-

soa de seus elaboradores, os eminen-

tes jurisconsultos José Carlos Moreira

Alves (Parte Geral); Agostinho de

Arruda Alvim (Direito das Obrigações);

Sylvio Marcondes (Direito de Empresa);

Ebert Vianna Chamoum (Direito das

Coisas); Clóvis do Couto e Silva (Direi-

to de Família); Torquato Castro (Direito

das Sucessões), quatro dos quais já fa-

lecidos. A mim me coube o papel de

coordenador-geral, propondo a estru-

tura ou sistemática do Projeto, que foi

aceita pelos colaboradores, sem pre-

juízo, é claro, de elaborar os textos que

considerasse necessário acrescentar

ou substituir, como de fato ocorreu.

Cabe-me esclarecer que a gran-

de demora na manifestação do Sena-

do Federal se deve às profundas alte-

rações políticas que caracterizaram a

passagem do sistema militar para o re-

gime democrático. Sobreveio depois,

a Assembléia Nacional Constituinte,

entendendo os senadores que era ne-

cessário aguardar a nova Constituição,

que poderia alterar as bases da legisla-

ção privada.

A bem ver, porém, a nova Car-

ta Magna, no concernente à Parte Ge-

ral, Obrigações, Direito de Empresa,

Direitos Reais e Sucessões, não fez se-

não confirmar o “sentido social” que

presidiu a feitura do projeto, pouco ou

nada havendo a modificar. Foi apenas

no campo do Direito de Família que

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

sobrevieram mudanças essenciais, que

por sinal vieram corresponder às

emendas oferecidas no Senado pelo

pranteado Senador Nelson Carneiro e

outros. Desse modo foi possível adap-

tar facilmente o projeto ao texto cons-

titucional, conforme já previra ao ma-

nifestar-me sobre elas, em estudo que

fiz a pedido do Relator-Geral na Câma-

ra Alta, o Senador Josaphat Marinho.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Em um país há duas leis funda-

mentais: a Constituição e o Código Ci-

vil. A primeira estabelece a estrutura e

as atribuições do Estado em função do

ser humano e da sociedade civil; a se-

gunda se refere à pessoa humana e à

sociedade civil como tais, abrangendo

suas atividades essenciais. É claro que

nas nações anglo-americanas, de tra-

dição costumeira-jurisprudencial, não

há códigos privados, mas não deixam

de haver normas civis básicas no sis-

tema do common law.

É a razão pela qual costumo

declarar que o Código Civil é “a Consti-

tuição do homem comum”, devendo

cuidar de preferência das normas ge-

rais consagradas ao longo do tempo,

ou então, das regras novas dotadas de

plausível certeza e segurança, não

podendo dar guarida, incontinenti, a

todas as inovações correntes. Por tais

motivos não há como conceber o Có-

digo Civil como se fosse a legislação

toda de caráter privado, pondo-se ele

antes como a “legislação matriz”, a

partir da qual se constituem

“ordenamentos normativos especiais”

de maior ou de menor alcance, como,

por exemplo, a Lei das Sociedades

Anônimas e as que regem as coopera-

tivas, mesmo porque elas transcendem

o campo estrito do Direito Civil, com-

preendendo objetivos e normas de na-

tureza econômica ou técnica, quando

não conhecimentos e exigências espe-

cíficas.

É esse o motivo pelo qual, des-

de o início, fixei como uma das nor-

mas orientadoras da codificação que

me fora confiada a de destinar à legis-

lação especial aditiva todos os assun-

tos que ultrapassassem os lindes da

área civil ou implicassem problemas de

alta especificidade técnica.

Nessa ordem de idéias, não te-

ria sentido inserirem-se no Projeto dis-

positivos sobre inseminação artificial,

desde as mais variadas formas de ge-

ração extra-uterina até a chamada con-

cepção in vitro, pois tais processos

envolvem questões que transbordam

o campo jurídico, alargando-se pelos

domínios da medicina e da engenha-

ria genética, implicando problemas tan-

to de bioética quanto de Direito Admi-

nistrativo e de Direito Processual, a fim

de atenderem as exigências de segu-

Page 8: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

rança e certeza no concernente à ma-

ternidade ou à paternidade. Eis aí uma

esfera onde a legislação especial se põe

como a única apropriada.

A análogas conclusões chega-

ríamos no que se refere a múltiplas ino-

vações de ordem tecnológica ou eco-

nômica, que, ou encontram solução

nas matrizes mesmas do Código Civil,

à luz de seus princípios e de seus insti-

tutos ou figuras, ou, então, somente

poderão ser adequadamente resolvidas

mediante leis especiais.

ESTRUTURA DO CÓDIGO

A iniciativa de um novo Código

Civil não surgiu de repente. Foi, ao con-

trário, conseqüência de duas tentativas

anteriores que já demarcaram as con-

dições que deveriam ser evitadas ou,

então, complementadas.

Em primeiro lugar, abandonou-

se a idéia de dividir o Código Civil, ela-

borando-se, em separado, um Código

das Obrigações. A quase unanimidade

de nossos juristas repudiou a propos-

ta de um Código Civil decepado e sem

sentido de unidade, condenando a eli-

minação da Parte Geral, tradicional em

nosso Direito, desde a Consolidação

das Leis Civis, graças ao gênio criador

de Teixeira de Freitas.

Como responsável pela

codificação, não vacilei no sentido de

preferir uma sistematização ampla,

embora partindo do Código em vigor.

Como já disse, foi fixado o critério de

preservar, sempre que possível, as dis-

posições do Código atual, porquanto,

de certa forma, cada texto legal repre-

senta um patrimônio de pesquisa, de

estudos, de pronunciamentos de um

universo de juristas. Há, por conse-

guinte, todo um saber jurídico acumu-

lado ao longo do tempo, que aconse-

lha a manutenção do válido e eficaz,

ainda que em novos termos. Por outro

lado, é inegável que o Código atual obe-

deceu, repito, como era natural, ao es-

pírito de sua época, quando o indivi-

dual prevalecia sobre o social. É, por

isso, próprio de uma cultura fundamen-

talmente agrária, onde predominava a

população rural e não a urbana. A mu-

dança do Brasil no presente século foi

de tal ordem que o Código não pode-

ria deixar de refletir essas alterações

básicas, uma vez que o Código Civil

não é senão a “Constituição da socie-

dade civil”. Como costumo dizer, e re-

pito, o “Código Civil é a Constituição

do homem comum”.

É preciso, porém, corrigir, des-

de logo, um equívoco que consiste em

dizer que tentamos estabelecer a uni-

dade do Direito Privado. Esse não foi o

objetivo visado. O que na realidade se

fez foi consolidar e aperfeiçoar o que

já estava sendo seguido no País, que

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

era a unidade do direito das obriga-

ções. Como o Código Comercial de

1850 se tornara completamente supe-

rado, não havia mais questões comer-

ciais resolvidas à luz do Código de Co-

mércio, mas sim em função do Código

Civil. Na prática jurisprudencial, essa

unidade das obrigações já era um fato

consagrado, o que se refletiu na idéia

rejeitada de um código só para reger

as obrigações, consoante projeto ela-

borado por jurisconsultos da estatura

de Orozimbo Nonato, Hahnemamm

Guimarães e Philadelpho de Azevedo.

Não vingou também a tentativa de, a

um só tempo, elaborar um Código das

Obrigações, de que foi relator Caio

Mário da Silva Pereira, ao lado de um

Código Civil, com a matéria restante,

conforme projeto de Orlando Gomes.

Depois dessas duas malogradas expe-

riências, só restava manter a unidade

da codificação, enriquecendo-a de no-

vos elementos, levando em conta tam-

bém as contribuições desses dois ilus-

tres jurisconsultos.

A opção pela unidade das obri-

gações nos levou a alterar a ordem da

matéria. O Código atual, como é pró-

prio da sociedade de natureza agrária,

começa com o Direito de Família, pas-

sando pelo Direito de Propriedade e das

Obrigações, até chegar ao das Suces-

sões.

Nosso Projeto, após a Parte Ge-

ral – na qual se enunciam os direitos e

deveres gerais da pessoa humana

como tal, e se estabelecem pressupos-

tos gerais da vida civil –, começa, na

Parte Especial, a disciplinar as obriga-

ções que emergem dos direitos pesso-

ais. Pode-se dizer que, enunciados os

direitos e deveres dos indivíduos, pas-

sa-se a tratar de sua projeção natural

que são as obrigações e os contratos.

É extensa essa disciplina das

obrigações, dado o tratamento unifica-

do das obrigações civis com as obriga-

ções e os contratos.

É extensa essa disciplina das

obrigações, dado o tratamento unifica-

do das obrigações civis com as obriga-

ções empresariais, termo que preferi-

mos adotar, pois a atividade econômi-

ca não se assinala mais, hoje em dia,

por atos de comércio, tendo uma pro-

jeção muito mais ampla, sendo igual-

mente relevantes os de natureza indus-

trial ou financeira.

Em seguida ao Direito das Obri-

gações, passamos a contar com uma

parte nova, que é o Direito de Empre-

sa. Este diz respeito a situações em que

as pessoas se associam e se organi-

zam a fim de, em conjunto, dar eficá-

cia e realidade ao que pactuam. O Di-

reito de Empresa não figura, como tal,

em nenhuma codificação contemporâ-

nea, constituindo, pois, uma inovação.

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Série Cadernos do CEJ, 20

Daí se passa ao Direito das Coi-

sas, sendo o Direito Real visto em ra-

zão do novo conceito de propriedade,

com base no princípio constitucional

de que a função da propriedade é so-

cial, superando-se a compreensão ro-

mana quiritária em função do interes-

se exclusivo do indivíduo, do proprie-

tário ou do possuidor. Em seguida ao

Direito das Coisas é que vem o Direito

de Família e, posteriormente, o Direito

das Sucessões. Houve, por conseguin-

te, uma alteração relevante na estrutu-

ra do Código, a qual não encontra

símile na codificação dos demais paí-

ses.

Quando começamos nosso tra-

balho, tínhamos idéias de conservar,

quando possível, consoante já foi dito,

as disposições do Código atual. Mas, à

medida que os trabalhos foram se de-

senvolvendo, foi-se revelando a possi-

bilidade de nos mantermos inteiramen-

te fiéis a essa diretriz inicial. Problemas

novos exigem formulação nova, sen-

do a linguagem inseparável do concei-

to. Preferiu-se uma linguagem nova,

mais operacional e adequada à preci-

sa interpretação das normas referen-

tes aos problemas atuais. Há, portan-

to, um sentido de atualidade ou de

contemporaneidade ínsito no projeto,

inclusive no tocante à linguagem, eli-

minados que foram arcaísmos e supe-

rados modos de dizer.

O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE

O “sentido social” é uma das

características mais marcantes do Pro-

jeto, em contraste com o sentido indi-

vidualista que condiciona o Código Ci-

vil ainda em vigor. Seria absurdo ne-

gar os altos méritos da obra do insigne

Clóvis Beviláqua, mas é preciso lem-

brar que ele redigiu sua proposta em

fins do século passado, não sendo se-

gredo para ninguém que o mundo nun-

ca mudou como no decorrer do pre-

sente século, assolado por profundos

conflitos sociais e similares.

Se não houve a vitória do socia-

lismo, houve o triunfo da “socialidade”,

fazendo prevalecer os valores coletivos

sobre os individuais, sem perda, po-

rém, do valor fundante da pessoa hu-

mana. Por outro lado, o Projeto se dis-

tingue pela maior aderência à realida-

de contemporânea, com a necessária

revisão dos direitos e deveres dos cin-

co principais personagens do Direito

Privado tradicional: o proprietário, o

contratante, o empresário, o pai de fa-

mília e o testador.

Nosso empenho foi no sentido

de situar tais direitos e deveres no con-

texto da nova sociedade que emergiu

de duas guerras universais, bem como

da revolução tecnológica e da emanci-

pação plena da mulher. É por isso, por

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

exemplo, que acabei propondo que o

“pátrio poder” passasse a denominar-

se “poder familiar”, exercido em con-

junto por ambos os cônjuges em ra-

zão do casal e da prole.

Em virtude do princípio da

socialidade, surgiu também um novo

conceito de posse, a posse-trabalho,

ou posse pro labore, em virtude da qual

o prazo de usucapião de um imóvel é

reduzido, conforme o caso, se os pos-

suidores nele houverem estabelecido

a sua morada, ou realizado investimen-

tos de interesse social e econômico.

Por outro lado, foi revisto e atualizado

o antigo conceito de posse, em conso-

nância com os fins sociais da proprie-

dade.

O PRINCÍPIO DA ETICIDADE

O Código atual peca pelo

rigorismo formal, no sentido de que

tudo se deve resolver mediante precei-

tos normativos expressos, sendo

pouquíssimas as referências à eqüida-

de, à boa-fé, à justa causa e aos de-

mais critérios éticos. Esse espírito

dogmático-formalista levou um grande

mestre do porte de Pontes de Miranda

a qualificar a boa-fé e a eqüidade como

“aberrações jurídicas”, entendendo ele

que, no Direito Positivo, tudo deve ser

resolvido técnica e cientificamente, por

meio de normas expressas, sem apelo

a princípios considerados

metajurídicos. Não acreditamos na ge-

ral plenitude da norma jurídica positi-

va, sendo preferível, em certos casos,

prever o recurso a critérios ético-jurídi-

cos que permitam chegar-se à

“concreção jurídica”, conferindo-se

maior poder ao juiz para encontrar-se

a solução mais justa ou eqüitativa.

O novo Código, por conseguin-

te, confere ao juiz não só poder para

suprir lacunas, mas também para re-

solver, onde e quando previsto, de con-

formidade com valores éticos, ou se a

regra jurídica for deficiente ou

inajustável à especificidade do caso

concreto.

Como se vê, ao elaborar o Pro-

jeto, não nos apegamos ao rigorismo

normativo, pretendendo tudo prever de-

talhada e obrigatoriamente, como se

na experiência jurídica imperasse o

princípio de causalidade próprio das

ciências naturais, nas quais, aliás, se

reconhece cada vez mais o valor do

problemático e o do conjetural.

O que importa em uma

codificação é o seu espírito; é um con-

junto de idéias fundamentais em tor-

no das quais as normas se entrelaçam,

se ordenam e se sistematizam.

Em nosso projeto não prevale-

ce a crença na plenitude hermética do

Direito Positivo, sendo reconhecida a

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Série Cadernos do CEJ, 20

imprescindível eticidade do

ordenamento. O código é um sistema,

um conjunto harmônico de preceitos

que exige a todo instante recurso à

analogia e aos princípios gerais deven-

do ser valorizadas todas as conseqü-

ências da cláusula rebus sic stantibus.

Nesse sentido, é posto o princípio do

equilíbrio econômico dos contratos

como base ética de todo o Direito

obrigacional.

Nesse contexto, abre-se campo

a uma nova figura, que é a da resolu-

ção do contrato como um dos meios

de preservar o equilíbrio contratual.

Hoje em dia, praticamente só se pode

rescindir um contrato em razão de atos

ilícitos. O direito de resolução obede-

ce a uma nova concepção, porque o

contrato desempenha uma função so-

cial, tanto como a propriedade. Reco-

nhece-se, assim, a possibilidade de se

resolver um contrato em virtude de

adventos de situações imprevisíveis

que inesperadamente venham alterar

os dados do problema, tornando a

posição de um dos contratantes exces-

sivamente onerosa.

Tal reconhecimento vem esta-

belecer uma função mais criadora por

parte da Justiça em consonância com

o princípio da eticidade, cujo fulcro

fundamental é o valor da pessoa hu-

mana como fonte de todos os valores.

Como se vê, o novo Código abando-

nou o formalismo técnico-jurídico pró-

prio do individualismo da metade des-

te século, para assumir um sentido mais

aberto e compreensivo, sobretudo

numa época em que o desenvolvimen-

to dos meios de informação vem am-

pliar os vínculos entre os indivíduos e

a comunidade.

O PRINCÍPIO DA OPERABILIDADE

O terceiro princípio que norteou

a feitura deste nosso Projeto – e va-

mos nos limitar a apenas três, não por

um vício de amar o trino, mas porque

não há tempo para tratar de outros, que

estão de certa maneira implícitos nos

que estou analisando – é o princípio

da operabilidade. Ou seja, toda vez que

tivemos de examinar uma norma jurí-

dica, e havia divergência entre ser

enunciada de uma forma ou de outra,

pensamos no ensinamento de Jhering,

que diz que é da essência do Direito a

sua realizabilidade: o Direito é feito para

ser executado; Direito que não se exe-

cuta – já dizia Jhering na sua imagina-

ção criadora – é como chama que não

aquece, luz que não ilumina. O Direito

é feito para ser realizado; é para ser

operado. No fundo, o que é que nós

somos – nós advogados? Somos ope-

radores do Direito: operamos o Códi-

go e as leis, para fazer uma petição ini-

cial, e levamos o resultado de nossa

operação ao juiz, que verifica a legiti-

midade, a certeza, a procedência ou

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

não da nossa operação – o juiz tam-

bém é um operador do Direito; e a sen-

tença é uma renovação da operação

do advogado, segundo o critério pelo

qual julga. Então, é indispensável que

a norma tenha operabilidade, a fim de

evitar uma série de equívocos e de di-

ficuldades que hoje entravam a vida

do Código Civil.

Darei apenas um exemplo.

Quem é que, no Direito Civil brasileiro

ou estrangeiro, até hoje, soube fazer

uma distinção nítida e fora de dúvida,

entre a prescrição e a decadência? Há

as teorias mais cerebrinas e bizantinas

para se distinguir uma coisa da outra.

Devido a esse contraste de idéias, as-

sisti, uma vez, perplexo, num mesmo

mês, a um Tribunal de São Paulo ne-

gar uma apelação interposta por mim

e outros advogados, porque entendia

que o nosso direito estava extinto por

força da decadência; e, poucas sema-

nas depois, ganhávamos, numa outra

Câmara, por entender-se que o prazo

era o da prescrição, que havia sido in-

terrompido! Por isso, o homem comum

olha o Tribunal e fica perplexo. Ora,

quisemos pôr um termo a essa perple-

xidade, de maneira prática, porque o

simples é o sinal da verdade, e não o

bizantino e o complicado.

Preferimos, por tais motivos,

reunir as normas prescricionais, todas

elas, enumerando-as na Parte Geral do

Código. Não haverá dúvida nenhuma:

ou figura no artigo que rege as prescri-

ções, ou então se trata da decadência.

Casos de decadência não figuram na

Parte Geral, a não ser em cinco ou seis

hipóteses em que cabia prevê-la, logo

após, ou melhor, como complemento

do artigo em que era, especificamen-

te, aplicável.

Qual é o tratamento dado à de-

cadência? Há, por exemplo, o direito

do doador de revogar a doação feita,

por ingratidão. Aí, o prazo é tipicamen-

te de decadência. E então a norma

vem acoplada à outra: a norma de

operabilidade está jungida ao direito

material. Como se vê, cada norma de

decadência está acoplada ao preceito

cuja decadência deve ser decretada.

De tal maneira que, com isso, não há

mais possibilidade de alarmantes con-

tradições jurisprudenciais.

O critério da operabilidade leva-

nos, às vezes, a forçarmos um pouco,

digamos assim, os aspectos teoréticos.

Vou dar um exemplo, para mostrar que

prevalece, às vezes, o elemento de

operabilidade sobre o elemento pura-

mente teorético-formal. Qual é o prazo

de responsabilidade de um construtor,

pela obra que entregou, numa emprei-

tada de material e de valor, ou seja, de

mão-de-obra e com fornecimento de

material? É um prazo de cinco anos –

um prazo extenso. Porém estabelece-

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Série Cadernos do CEJ, 20

mos que, não obstante a aparência de

uma norma prescritiva, ela devia ser

colocada como norma de decadência,

para que não houvesse dúvida na ju-

risprudência, nem dúvida na respon-

sabilidade de fazer face àquilo que as-

sumiu como obrigação contratual.

Isso posto, o princípio da

operabilidade leva, também, a redigir

certas normas jurídicas que são nor-

mas abertas, e não normas cerradas,

para que a atividade social mesma, na

sua evolução, venha alterar seu con-

teúdo mediante aquilo que denomino

“estrutura hermenêutica”. Porque, para

mim, a estrutura hermenêutica é um

complemento natural da estrutura

normativa. E é por isso que a doutrina

é fundamental, porque ela é aquele

modelo dogmático e teórico que diz o

que os demais modelos jurídicos sig-

nificam.

Estão verificando que tivemos

em vista esses três princípios e outros

também, que levam em conta a

concreção humana. Poderia acrescen-

tar, aqui, o princípio da concretitude,

que, de certo modo, está implícito no

de operabilidade.

Concretitude, o que é? É a obri-

gação que tem o legislador de não le-

gislar em abstrato, para um indivíduo

perdido na estratosfera, mas, quanto

possível, legislar para o indivíduo situa-

do: legislar para o homem como mari-

do; para a mulher como esposa; para

o filho como um ser subordinado ao

poder familiar. Quer dizer, atender às

situações sociais, à vivência plena do

Código, do direito subjetivo como uma

situação individual; não um direito sub-

jetivo abstrato, mas uma situação sub-

jetiva concreta. Em mais de uma opor-

tunidade ter-se-á ocasião de verificar

que o Código preferiu, sempre, essa

concreção para a disciplina da maté-

ria.

Fixadas essas linhas gerais, ago-

ra desejo focalizar alguns exemplos de

confronto entre o Código atual e o Pro-

jeto do novo Código, que já foi apro-

vado pelo Senado.

INOVAÇÕES IMPRESCINDÍVEIS

Já fiz referência ao caráter ex-

cessivamente individualista do Código

atual, mas, se procuramos corrigir sua

vinculação aos valores de uma supe-

rada sociedade agrária, nem por isso

deixamos de salvaguardar, sempre que

possível, como já salientado, as suas

disposições ainda válidas, especialmen-

te com a conservação da Parte Geral,

a qual foi mantida de acordo com a

grande lição que nos vem de Teixeira

de Freitas.

Houve, porém, necessidade de

atender às novas contribuições da

Page 15: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

civilística contemporânea no que se

refere, por exemplo, à disciplina dos

negócios jurídicos, à necessidade de

regrar unitariamente as obrigações ci-

vis e as mercantis, com mais precisa

distinção entre associação civil e soci-

edade empresária, cuidando de várias

novas figuras contratuais que vieram

enriquecer o Direto das Obrigações,

sem deixar de dar a devida atenção à

preservação do equilíbrio econômico

do contrato, nos casos de onerosidade

excessiva para uma das partes, bem

como às cautelas que devem presidir

os contratos de adesão para salvaguar-

dar os interesses do consumidor.

Além disso, foram

estabelecidas as normas gerais dos tí-

tulos de crédito, mantendo-se a legis-

lação especial para disciplina de suas

diversas figuras; assim como fixadas

regras mais adequadas em matéria de

responsabilidade civil, que o Código

atual ainda subordina à idéia de culpa,

sem reconhecer plena e claramente

os casos em que a responsabilidade

deve ser objetiva, atendendo-se às con-

seqüências inerentes à natureza e à es-

trutura dos atos e negócios jurídicos

como tais.

É difícil enumerar todas as ino-

vações trazidas pelo projeto, desde

uma rigorosa separação entre prescri-

ção e decadência, aquela disciplinada

na Parte Geral, e esta prevista em cada

caso ocorrente – em conexão com o

artigo que lhe diz respeito. Desse modo,

fica superada de vez a interminável

dúvida sobre se determinada disposi-

ção é de prescrição ou de caducida-

de. Por outro lado, merece especial

menção a distinção fundamental entre

Direito Pessoal e Direito Real de Famí-

lia, ou, então, as disposições sobre

condomínio edifício (denominação em

princípio criticada, e que já é de uso

corrente) ou a restauração do antigo

Direito de Superfície sob novas vestes,

o que demonstra que não nos domi-

nou o desejo de só oferecer novida-

des.

Cumpre também salientar que

o projeto não abrange matérias que en-

volvam questões que vão além dos

lindes jurídicos, como é o caso das

sociedades por ações, objeto de lei

especial. Por outro lado, é próprio de

um código albergar somente questões

que se revistam de certa estabilidade,

de certa perspectiva de duração, sen-

do incompatível com novidades ainda

pendentes de maiores estudos, abran-

gendo problemas de ordem científica,

como é o caso já lembrado da fecun-

dação artificial. O projeto limita-se, por

conseguinte, àquilo que é da esfera ci-

vil, deixando para a legislação especi-

al a disciplina de assuntos que dela

extrapolem, como é o caso da “incor-

poração de condomínios edifícios”.

Page 16: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

Eis aí algumas diretrizes de um

Projeto que, repito, não mais nos per-

tence, pois ele foi publicado por três

vezes, recebendo sempre sugestões

que, após o devido estudo, deram lu-

gar a alterações que, progressivamen-

te, vieram aperfeiçoando e atualizan-

do nossa proposta inicial, até as últi-

mas mudanças feitas no Senado. É uma

tolice, por conseguinte, afirmar-se que

o projeto estaria superado por ter sido

proposto à Câmara dos Deputados em

1975. O curioso é que quem apoda o

projeto com a velhice, pleiteia a manu-

tenção do atual Código Civil que é de

1916!

CRÍTICAS APRESSADAS OU INOPORTUNAS

Outra crítica apressada e abso-

lutamente sem sentido diz respeito ao

fato de o Código não ter cuidado da

união estável de pessoas do mesmo

sexo. Essa matéria não é de Direito Ci-

vil, mas sim de Direito Constitucional,

porque a Constituição criou a união

estável entre um homem e uma mu-

lher. De maneira que, para cunhar-se

aquilo que estão querendo, a união

estável dos homossexuais, em primei-

ro lugar seria preciso mudar a Consti-

tuição, o que não era a nossa tarefa e

muito menos a do Senado.

Certas críticas são frutos ape-

nas da ignorância dos textos constitu-

cionais vigentes. O Código só abrange

aquilo que já está, de certa maneira,

consolidado à luz da experiência. É o

motivo pelo qual concordamos com

aqueles que, em determinado momen-

to, entenderam que não deveria fazer

parte do Código a Lei da Sociedade por

Ações. Não apenas em razão das mu-

tações a que ela está continuamente

sujeita – como ainda agora o demons-

tra a recente lei que está dando cam-

po para tantas discussões –, mas tam-

bém porque a lei que rege as socieda-

des anônimas está diretamente vincu-

lada ao mercado de capitais, o que

transcende os lindes da lei civil.

Não se compreende que, ten-

do o Senado Federal aprovado o pro-

jeto com emendas, só podendo estas

ser objeto de apreciação pela Câmara

dos Deputados, certos críticos, que se

mantiveram todos estes anos calados,

vêm, agora, apontar pretensos erros ou

omissões, que, se porventura existen-

tes, somente poderiam ser objeto de

leis autônomas ou posteriores ao novo

Código Civil. Isso tudo apenas demons-

tra que não se tem em vista aperfeiço-

ar a legislação do País, mas tão-somente

mostrar tardio e irrelevante cuidado,

sob o qual não raro se ocultam pre-

conceitos e prevenções.

Por outro lado, críticas surgiram

em flagrante conflito com o texto da

proposta, evidenciando, assim, que

nem sequer houve preocupação de lei-

Page 17: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

tura com a atenção e a serenidade que

exigem os estudos jurídicos, servindo

o Projeto apenas de pretexto para pro-

moção pessoal.

Quanto à alegação de que o

princípio da socialidade acaba geran-

do a massificação e sacrificando a in-

dividualidade, componente essencial

de um Código Civil, trata-se de tolice

tão evidente que não merece nem com-

porta discussão.

Esclarecidas essas questões,

não é demais recordar que os assun-

tos fundamentais da nova codificação

foram por mim explanados, assim

como pelos demais co-autores do pro-

jeto, nas respectivas exposições de

motivos. No que me toca, permito-me

lembrar que publiquei, em 1986, pela

Editora Saraiva, a primeira edição do

presente livro, na qual os interessados

puderam encontrar as diretrizes funda-

mentais a que estou fazendo referên-

cia. A mesma coisa poder-se-á dizer

com relação ao ilustre Ministro Moreira

Alves, que, na mesma época, tratou

também do Projeto, em volume perti-

nente à Parte Geral. De modo que já

há bibliografia auxiliar, além das publi-

cações feitas pelo Congresso Nacional,

que são parte componente essencial

do Projeto, sobretudo depois que ele

foi aprovado pela Câmara dos Deputa-

dos e em seguida pelo Senado Fede-

ral, com o douto e minucioso parecer

de autoria do Senador Josaphat Mari-

nho, incluído na presente edição.

A TRAMITAÇÃO NO SENADO FEDE-

RAL

No Senado Federal logo nos

defrontamos com várias dificuldades.

A obra de codificação coincidiu com o

retorno do País à ordem constitucio-

nal e, por conseguinte, com a idéia de

uma Assembléia Nacional Constituinte,

que era apresentada, consoante já sa-

lientei, como uma fonte de possíveis

alterações profundas que iriam se re-

fletir sobre o Projeto. Isso teve como

conseqüência estancar o processo de

sua apreciação, até que fosse feita a

nova Constituição. A situação não im-

pediu, no entanto, que no Senado fos-

sem apresentadas, no prazo regimen-

tal, 366 emendas, cuja apreciação iria

demandar mais de doze anos.

Isso não obstante, o trabalho no

Senado é merecedor de justa admira-

ção, merecendo referência especial a

decisiva resolução do Relator-Geral,

Senador Josaphat Marinho de chamar

a si a responsabilidade de apreciação

das emendas, submetendo, a

posteriori, as suas propostas à consi-

deração dos Relatores Especiais.

Vê, assim, o leitor, que o Proje-

to não é fruto de improvisação e nem

tampouco representa um trabalho des-

Page 18: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

de logo solidificado e definitivo. Mas,

ao contrário, veio sendo corrigido e

completado ao longo do tempo, de tal

maneira que novas emendas e novas

sugestões foram sempre bem recebi-

das e, objetos de nossa análise. Ape-

sar da morte da maior parte dos mem-

bros da comissão, o Ministro Moreira

Alves e eu, como remanescentes mais

ativos dela, continuamos a dar nossa

colaboração, emitindo pareceres e for-

mulando novas propostas no Senado

Federal, que serviam de base à propos-

ta finalmente apreciada pela Câmara

Alta, após o parecer do mencionado

Relator-Geral *.

O NOVO DIREITO DE FAMÍLIA

E O DE SUCESSÕES

Já havíamos dado grande pas-

so à frente no sentido da igualdade dos

cônjuges. Isso ficou ainda mais acen-

tuado na Constituição, sobretudo no

que se refere à situação dos filhos, por-

quanto a Carta Política de 1988 elimi-

nou toda e qualquer diferença entre fi-

lhos legítimos, naturais, adulterinos,

espúrios ou adotivos.

Essa opção constitucional im-

plicou evidentemente o reexame das

emendas oferecidas por Nelson Carnei-

ro, de tal maneira que foi feita plena

atualização da matéria em consonân-

cia com as novas diretrizes da Carta

Magna vigente, também, no que se re-

fere à “união estável”, a nova entidade

familiar que surge ao lado do matrimô-

nio civil, corrigindo-se o erro da legis-

lação em vigor que a confunde com o

concubinato.

Nota-se que, na Parte Geral,

atende-se, outrossim, às circunstânci-

as da vida contemporânea, adotando-

se novos critérios para estabelecer a

maioridade, que baixou de 21 para 18

anos. É sabido que, em virtude da

Informática e da expansão cultural, as

pessoas amadurecem mais cedo do

que antes. Essa mudança fundamen-

tal refletiu-se também no campo da res-

ponsabilidade relativa: quem passou de

16 anos é até eleitor em todos os pla-

nos da política nacional, desde o mu-

nicípio até a União.

Os exemplos ora dados já são

mais do que suficientes para demons-

trar que houve grande preocupação no

sentido de aproveitar as emendas do

Senado para a atualização do Projeto.

E isso se repetiu nos poderes conferi-

dos aos cônjuges em absoluta igual-

dade, razão pela qual, como já foi dito,

propus, e foi aceito pelo Senador

Josaphat Marinho, que, em vez de

pátrio poder, se falasse em “poder fa-

miliar”, que é uma expressão mais jus-

ta e adequada, porquanto os pais exer-

cem esse poder em função dos inte-

resses do casal e da prole.

No que se refere à igualdade dos

Page 19: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

cônjuges, é preciso atentar ao fato de

que houve alteração radical no tocan-

te ao regime de bens, sendo desneces-

sário recordar que anteriormente pre-

valecia o regime da comunhão univer-

sal, de tal maneira que cada cônjuge

era meeiro, não havendo razão algu-

ma para ser herdeiro. Tendo já a meta-

de do patrimônio, ficava excluída a

idéia de herança. Mas, desde o momen-

to em que passamos do regime da co-

munhão universal para o regime parci-

al de bens com comunhão de aqüestos,

a situação mudou completamente. Se-

ria injusto que o cônjuge somente par-

ticipasse daquilo que é produto co-

mum do trabalho, quando outros bens

podem vir a integrar o patrimônio e ser

objeto de sucessão. Nesse caso, o côn-

juge, quando casado no regime da se-

paração parcial de bens (note-se), con-

corre com os descendentes e com os

ascendentes até a quarta parte da he-

rança. De maneira que são duas as ra-

zões que justificam esse entendimen-

to: de um lado, uma razão de ordem

jurídica, que é a mudança do regime

de bens do casamento; de outro, a

absoluta equiparação do homem e da

mulher, pois a grande beneficiada com

tal dispositivo é, no fundo, mais a mu-

lher do que o homem.

Por outro lado, em matéria

sucessória, não é mais lícito ao testa-

dor vincular bens da legítima a seu bel-

prazer. Ele deve explicar o motivo que

o leva a estabelecer a cláusula

limitadora do exercício de direitos pelo

seu herdeiro, podendo o juiz, em cer-

tas circunstâncias, apreciar a matéria

para verificar se procede a justa causa

invocada.

ADEQUAÇÃO A EXIGÊNCIAS TÉCNI-

CAS

Há, além disso, necessidade de

levar em conta as alterações profun-

das ocorridas no plano técnico e

operacional. Por essas razões, por

exemplo, toda a matéria de escritura-

ção empresarial passa por uma trans-

formação fundamental para que tudo

possa ser feito por meio de processos

eletrônicos, superando-se os entraves

formalistas em matérias de contabili-

dade e de gestão da empresa.

O mesmo espírito pragmático

preside a outros aspectos da vida em-

presarial, notadamente no que se refe-

re às questões disciplinadas na nova

parte especial inserida no projeto, re-

lacionada ao Direito de Empresa – em-

pregada a palavra “empresa” no senti-

do de atividade desenvolvida pelos in-

divíduos ou pelas sociedades a fim de

promover a produção e a circulação

das riquezas, dos bens e dos serviços.

É esse o objetivo fundamental

que rege os diversos tipos de socieda-

des empresariais, não sendo demais

Page 20: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

realçar que, consoante a terminologia

adotada pelo Projeto, as associações

são sempre de natureza civil. Parece

uma distinção somenos, mas de gran-

des conseqüências práticas, porquan-

to cada uma delas é governada por

princípios distintos.

Uma exigência básica de

operabilidade norteia, portanto, toda a

matéria de Direito de Empresa, ade-

quando-o aos imperativos da técnica

contemporânea no campo econômico-

financeiro, sendo estabelecidos precei-

tos que atendem tanto à livre iniciativa

como aos interesses do consumidor.

OUTRAS ATUALIZAÇÕES

É inegável a urgente necessida-

de de se atualizar o Código atual em

várias outras questões. Sendo, por

exemplo, as sociedades por ações es-

truturas complexas que exigem amplos

e custosos quadros funcionais, a disci-

plina normativa das cotas de respon-

sabilidade limitada passou a ter uma

importância cada vez mais acentuada.

De início, as sociedades por cotas eram

relativas a pequenas empresas e ainda

exercem essa função, mas, hoje em

dia, esse tipo de sociedade abrange um

número imenso de agremiações, até

chegarmos às holdings ou

controladoras das grandes estruturas

empresariais. Na verdade vemos socie-

dades anônimas que se entrelaçam

para formar complexos econômicos

sujeitos a uma sociedade por cotas de

responsabilidade limitada.

Por todas essas razões foi dada

uma nova estrutura, bem mais ampla

e diversificada, ao instituto da socieda-

de por cotas de responsabilidade limi-

tada, sendo certo que a lei especial em

vigor está completamente ultrapassa-

da, achando-se a matéria regida se-

gundo princípios de doutrina e à luz

de decisões jurisprudenciais. A propó-

sito desse assunto, para mostrar o cui-

dado que tivemos em atender à Cons-

tituição, lembro que a lei atual sobre

sociedades por cotas de responsabili-

dade limitada permite que se expulse

um sócio que esteja causando danos

à empresa, bastando para tanto mera

decisão majoritária. Fui dos primeiros

juristas a exigir que se respeitasse o

princípio da justa causa, entendendo

que a faculdade de expulsar o sócio

nocivo devia estar prevista no contra-

to, sem o que haveria mero predomí-

nio da maioria. Ora, a Constituição atual

declara no art. 5º que ninguém pode

ser privado de sua liberdade e de seus

bens sem o devido processo legal e

sem o devido contraditório. Em razão

desses dois princípios constitucionais,

mantivemos a possibilidade da elimi-

nação do sócio prejudicial, que esteja

causando dano à sociedade, locuple-

tando-se, às vezes, à custa do

patrimônio social, mas lhe assegura-

Page 21: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

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Page 22: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

DIREITO DE FAMÍLIALUIZ EDSON FACHIN

Page 23: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Lembro-me de uma recente con-

ferência, no ano passado, pro-

ferida por José Saramago na Fa-

culdade de Direito da Universidade de

Coimbra, designada “O Direito e os Si-

nos”. Contou Saramago que, ao final

do século XIII, numa pequena aldeia

ao redor de Florença, numa certa ma-

nhã, um camponês pôs-se, desespera-

damente, a tocar o sino da igreja e isso,

usualmente, representava o nascimen-

to ou o falecimento de alguém, assim

não se sabia a razão pela qual aquele

sino dobrava-se insistentemente: se al-

guém havia nascido ou morrido. Os si-

nos tocaram tanto que o povo acorreu

para a igreja, para saber, de fato, o que

se passava. Quando toda a população

daquela aldeia se encontrava à frente

da porta de entrada da pequena igre-

ja, o camponês parou de tocar e, per-

guntado por que o fazia com tanta in-

sistência, ele respondeu: estou tocan-

do sinos, porque o Direito morreu. As

pessoas questionavam que sentença

tão dura era essa vinda de uma pes-

soa tão humilde. O camponês narrou

um episódio que havia, ao final, redun-

dado na perda de seus bens, de sua

família e um conjunto de fatalidades e

tragédias, que o levaram a concluir que

o Direito havia morrido.

Recupero essa pequena passa-

gem para dizer que, se hoje, no Brasil,

mutatis mutandis deste pequeno exem-

plo figurativo, olharmos o Direito de

Família do início e final do século XX,

posso-lhes atestar que, se os sinos do-

bram, fazem-no para anunciar não a

morte do Direito, mas, sim, o nasci-

mento de um novo, expressivo e signi-

ficativo Direito de Família, consentâneo

com as perplexidades e os paradoxos

que a sociedade brasileira vive neste

momento.

Tivemos uma transformação

fundamental, ao lado do Código Civil

brasileiro, à margem do sistema famili-

ar codificado, que foi gradativamente

construída na legislação esparsa, às

vezes, com cistos, diáteses e alguns

desvios próprios da produção

legislativa dispersa e, sobretudo, por

uma jurisprudência expressiva, que, na

seara do Direito de Família, trouxe ao

Brasil uma contribuição fundamental

para erigir um conjunto novo de prin-

cípios e regras, como, também, por

uma produção doutrinária, uma ativi-

dade intelectual expressiva, que assim

se realizou.

Basta assinalar que, no come-

ço deste século, no momento em que

entrou em vigor o Código Civil brasilei-

ro – ainda vigente –, tínhamos um mo-

delo de família regulado juridicamen-

te, assentado em quatro pontos funda-

mentais, que, no final deste século,

sofreu uma transformação sensível.

Tínhamos o governo jurídico de uma

família exclusivamente

Page 24: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

matrimonializada, hierarquizada,

transpessoal e de natureza patriarcal

como o modelo da grande família com

um número expressivo de filhos. Esse

modelo, oitenta, noventa anos depois,

cede espaço a um texto constitucional

que mantém o casamento, seguramen-

te, como fonte das relações familiares,

mas retira-lhe a exclusividade, para re-

conhecer que também há família quan-

do não há casamento, que o direito de

casar corresponde também ao direito

de não casar ou não permanecer ca-

sado, e para recuperar as relações fa-

miliares ex maritalis, dando sentido à

família como uma comunhão de vida,

uma história que se escreve a quatro

mãos e tem, na sua dimensão sócio-

afetiva, uma relação que transcende o

vínculo formal.

O aspecto hierarquizado, à luz

dos valores deste início de século, fa-

zia fundar a estrutura familiar na lei da

desigualdade, porque desiguais eram

os papéis e as funções dentro da famí-

lia: os papéis e as funções do marido,

da mulher e dos filhos tidos dentro e

fora do casamento. Para os filhos tidos

fora do casamento, o art. 358 do Códi-

go Civil, em verdade, criava uma lei de

interdição, não permitindo que, embo-

ra filhos fossem, do ponto de vista bio-

lógico, consangüíneos, não podiam

realizar o direito de declarar a sua pa-

ternidade, porque o pai estava casado

com outra mulher, que não era a mãe

daquela criança. Essa desigualdade

injustificada cede espaço à lei de igual-

dade. A direção unitária da família cede

espaço à direção diárquica, aberta e

compartilhada.

Além disso, os outros aspectos

do patriarcalismo e da visão

transpessoal da família levaram alguns

juristas a sustentarem com muita ênfa-

se tratar a família de uma pessoa jurí-

dica, o que dá margem a uma visão

eudemonista da família. Há muito tem-

po Andrey Michelle disse: A família não

é uma instituição que se explica por si

só, mas se explica à medida que se

realizam as aspirações de cada um dos

membros que dela participam, com a

realização mínima da felicidade possí-

vel.

Essa visão, que se designa de

eudemonista, compreende também

esse aspecto sócio-afetivo, aliás, mui-

to bem tratado em um trabalho pionei-

ro e exemplar do Prof. João Baptista

Villela, designado “A Desbiologização

da Filiação no Brasil”.

Por isso, quando lhes pergun-

tei, no início, se os sinos hão de do-

brar, respondo-lhes que sim, quer quei-

ramos ou não, para o nascimento de

um novo Direito de Família, que ainda

não se instalou por completo, que ain-

da faz surtir perplexidades e também

paradoxos de um conjunto de fatos

Page 25: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

que nesta seara mexe com alguns va-

lores fundamentais desse microcosmo

estrutural da nossa sociedade, que,

sem dúvida nenhuma, é a família.

Para posicionarmos essa evo-

lução, há de se formular uma pergun-

ta introdutória e a ela procuraremos

dirigir alguma resposta. Para suportar

essa evolução ao largo da codificação

civil, na Constituição, na legislação

esparsa, na jurisprudência e na doutri-

na, para se dar conta desta configura-

ção jurídica, a resposta está em ado-

tarmos uma nova codificação? Ou a

resposta está em reconhecer-se que,

neste momento, antes de pensarmos

em uma nova codificação, será neces-

sário verificar, com efeito, para que e

para quem essa codificação está sen-

do realizada? Quiçá, na virada deste

século, também estejamos na dobra da

constituição de um novo desenho jurí-

dico da família no Brasil, desenho este

cujos contornos e conteúdo não fize-

ram ainda emergir uma disciplina jurí-

dica clara e efetiva que reclame e me-

reça estabilidade. Será, portanto, que,

nessa quadra de valores em transfor-

mação, a resposta de uma codificação

é a resposta que soa mais adequada a

tanto? Essa é a pergunta que vamos

procurar responder; mas, para tanto,

é necessário antes aprofundá-la, para

não encontrarmos uma resposta mui-

to simples, porque estamos entre aque-

les que não vêem, no debate sobre a

codificação, uma percepção

maniqueísta entre o sim e o não, mas

uma questão anterior, que antecede à

dimensão própria da codificação, co-

locando em questão a possibilidade de

se aprofundar o momento histórico e

cultural em que vivemos, e, a partir

desse aprofundamento, verificarmos

se é o momento de codificar ou não

as relações jurídico-familiares. É preci-

so, talvez, apontar cinco aspectos que

se nos afiguram como fundamentais,

para revelar a passagem do tradicional

ao contemporâneo, da família do Có-

digo à família da Constituição, para que

possamos, aí, em face desses cinco as-

pectos, dessa passagem, enfrentarmos

a pergunta formulada.

O primeiro desses aspectos é a

transformação que houve e que desig-

namos como uma espécie de virada

de Copérnico, em termos da lei funda-

mental da família: o Código Civil vigen-

te, ao tempo em que entrou em vigor,

constitui-se indubitavelmente na lei fun-

damental reguladora das relações jurí-

dico-familiares. Esse lugar central ocu-

pado pelo Código está hoje

indisfarçavelmente ocupado pela Cons-

tituição. O Direito de Família brasileiro

contemporâneo é um Direito

constitucionalizado, quer nas regras,

quer nos princípios, porque princípios

e regras compõem a categoria das nor-

mas. Por isso, o princípio constitucio-

nal é norma vinculante, portanto, não

Page 26: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

necessitando, em nosso modo de ver,

da mediação do legislador ordinário

para a aplicação direta e imediata nas

relações interprivadas. Daí porque,

com base nessa perspectiva da eficá-

cia direta e imediata do texto constitu-

cional principiológico ou regulamentar,

entendemos que houve uma mudan-

ça no núcleo da regulação jurídica da

família, antes ocupado pelo Código Ci-

vil e hoje ocupado pela Constituição,

que, de algum modo fez uma espécie

de macrocodificação, porque detalhou

alguns aspectos, como prazo para a

conversão da separação em divórcio,

o que poderíamos dizer que são aspec-

tos próprios da legislação

infraconstitucional. De qualquer sorte,

constitucionalizou-se um conjunto ex-

pressivo de princípios e regras, a partir

do art. 226 da Constituição Federal,

atinentes à família. É por isso que fala-

mos em virada de Copérnico, porque

precisamente nessa órbita celeste dos

astros jurídicos o que estava ao centro

fica à margem, e o centro é o culpado

pela Constituição Federal. Ao contrá-

rio do que se dizia, no início do sécu-

lo, que a Constituição deveria ser lida

à luz do Código, diz-se hoje que o Có-

digo Civil há de ser lido à luz da Consti-

tuição. Esse é o primeiro aspecto de

uma transformação que nos parece

relevante.

A segunda dimensão a pontuar

nessa mudança é a alteração atinente

à estrutura jurídica da família. Eviden-

temente que, do ponto de vista do

modelo jurídico da família, à luz da

partida dessa travessia e do Código Ci-

vil, tínhamos seguramente um modelo

unitário, um modelo exclusivamente

matrimonial. Os filhos eram os tidos

dentro do casamento, e, portanto, o

regime jurídico do Código associava ao

casamento essa legitimidade. Por essa

razão, o Código negava a possibilida-

de do reconhecimento dos filhos

adulterinos, preceito felizmente derru-

bado pela legislação posterior e pela

jurisprudência, que foi decidindo de

modo diverso. De qualquer sorte, as-

sociando a legitimidade dos filhos ao

casamento, o Código instituiu uma proi-

bição que, não obstante discriminatória

e injusta, constituindo, a rigor, um pre-

ceito de exclusão, não admitia o reco-

nhecimento dos filhos ilegítimos.

A alteração que se deu com a

mudança dos valores da cultura e da

história sai dessa razão unitária da fa-

mília e alcança, hoje, um modelo plu-

ral. Seguramente o legislador constitu-

cional no Direito Constitucional de Fa-

mília deu um lugar central à família

matrimonializada, deu um lugar central

ao casamento, mas não lhe deu um

lugar de fonte exclusiva das relações

familiares. Daí por que saímos de uma

visão unitária para uma dimensão plu-

ral da família; saímos daquela percep-

ção transpessoal, em que os interes-

ses da instituição estavam acima do in-

teresse dos membros que a compu-

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

nham, para uma visão eudemonista em

que o que conta na família é, funda-

mentalmente, o conjunto dos interes-

ses dos membros que a compõem e o

direito de cada um deles de realização

pessoal e afetiva. Aliás, isso não se tra-

ta apenas de uma formulação teórica,

mas é por isso que, em uma contribui-

ção exemplar, o Superior Tribunal de

Justiça, logo após a sua criação, co-

meça a admitir o ajuizamento da ação

de investigação de paternidade, inde-

pendentemente do estado civil do

genitor, porque começou a considerar

menos o estado civil do genitor que

poderia estar casado com outra mu-

lher que não a mãe da criança, levan-

do menos em conta, portanto, o que

dizia em 1929, na sua tese de cátedra,

em Recife, Soreano Neto, que era fun-

damental a paz da família, ainda que

para isso fosse necessária uma menti-

ra jurídica. Ao contrário disso, verifi-

cou-se que a paz da família também

deve, antes de mais nada, atender ao

direito legítimo, fundamental, que é o

direito de revelar a paternidade. Nesse

sentido, operou-se essa mudança de

estrutura da família unitária para uma

família de natureza plural.

No terceiro aspecto, que tam-

bém nos soa relevante – no segundo

mencionei uma alteração estrutural –,

observo uma alteração de natureza fun-

cional. A função básica da família co-

dificada, moldada no desenho jurídico

de um País agrário, da grande família,

numerosa, concentrada na necessida-

de até mesmo de mão-de-obra, que

representava uma unidade econômica,

esse modelo originário, que era a rigor

uma unidade de produção, ao final

deste século perde essa característica.

Hoje, do ponto de vista econômico, a

família é quase praticamente uma uni-

dade de consumo. Mais importante do

que isso, o que acentua o conjunto dos

laços familiares ao final deste século é

a possibilidade de salientar nas rela-

ções familiares a valorização

socioafetiva, ou seja, o que dá sentido

à unidade familiar é precisamente cons-

tituir um mínimo de refúgio afetivo, de

intercâmbio afetivo que, mais além do

que a verdade de sangue, embora não

a desconsidere, mais além do que a

consangüinidade, funde uma razão de

ser que une homem e mulher, que une

os pais e os filhos e estes entre si. Nes-

sa medida, portanto, a família perde sua

dimensão econômica como unidade,

mas ganha, por meio do

redimensionamento da afectio, uma

nova função.

No quarto aspecto há uma mu-

dança estrutural no sistema da filiação.

O sistema originário da filiação é, como

disse Guilherme de Oliveira, professor

da Faculdade de Direito da Universida-

de de Coimbra, em um belo trabalho

sobre essa matéria: O critério originá-

rio do nosso Código, que era, também,

Page 28: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

o critério originário do antigo Código

Civil Português, era nupcial; filhos eram

os filhos tidos dentro do casamento.

Os filhos tidos fora do casamento, do

ponto de vista jurídico, não eram filhos.

Aliás, esse é um dos maiores exemplos,

na área da filosofia, tomado por Karl

Engisch na sua obra Introdução ao Pen-

samento Jurídico para dizer como o

Direito e a vida, às vezes, podem an-

dar apartados. Nessa dimensão origi-

nária, o critério nupcial da filiação

correspondia, portanto, a uma frontei-

ra que estabelecia limites na possibili-

dade do reconhecimento forçado ou

voluntário da filiação.

Esse critério nupcial, no trans-

curso do tradicional ao contemporâ-

neo, cede passos a alguns problemas

de grandes paradoxos, mas, de qual-

quer sorte, ao que se designa de crité-

rio biologista da filiação. Hoje, pratica-

mente não há limites para a determi-

nação da verdade biológica. Talvez, aí,

estejamos diante de um dos pontos in-

teressantes para pensarmos se de fato

é esse o modelo adequado.

Há exemplos significativos na ju-

risprudência do Supremo Tribunal Fe-

deral, antes de 1988, sobre essa maté-

ria, especificamente na parte em que

se revela a necessidade de o Brasil de-

bater e a comunidade jurídica

aprofundar o valor jurídico da posse

do estado do filho como um elemento

de equilíbrio entre a exacerbação da

verdade de sangue e a valorização da

dimensão sócio-afetiva da filiação. Há

de se considerar um caso

paradigmático julgado no meu Estado,

Paraná, e depois apreciado em última

instância, à época, pelo Supremo Tri-

bunal Federal que, em determinada

hipótese, marido e mulher, em face de

uma desavença que tiveram, separam-

se transitoriamente por três a quatro

meses; passado esse período, a mu-

lher retorna ao lar, e o casal reconcilia-

se, vivendo juntos por mais 25 anos;

nasce uma criança, que, obviamente,

recebe o patronímico do marido, seu

pressuposto pai que não apenas dá-

lhe o nome, como, também, o trata-

mento que normalmente os pais pro-

curam dar aos filhos: a educação, o

afeto, a formação moral. Vinte e cinco

anos depois o pai falece, e a mãe reve-

la para aquela criança – já adulta e com

plena capacidade jurídica para decidir

o que fazer, inclusive ajuizar uma in-

vestigação de paternidade – que o pai

biológico não era o seu marido, mas

um terceiro, curiosamente detentor de

largas posses patrimoniais. Seguramen-

te, a questão acaba em uma investiga-

ção de paternidade, que o juiz de pri-

meiro grau de uma das Varas de

Curitiba julgou carecedora de ação,

porque levou em conta, nesse caso, o

sistema do Código Civil, que previa a

legitimidade exclusiva do marido para

impugnar os filhos tidos pela mulher

Page 29: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

casada, hoje derrubada pela jurispru-

dência e também pela legislação pos-

terior ao Código. O juiz, vinculado ao

Código Civil, julga preliminarmente pela

carência da ação, e o Tribunal de Jus-

tiça do Paraná reforma a decisão, de-

terminando a realização da perícia para

comprovar se há ou não descendên-

cia consangüínea em relação ao outro

homem. A matéria vai ao Supremo Tri-

bunal Federal que confirma a decisão

do Tribunal. Faz-se a perícia e consta-

ta-se o óbvio: que o pai biológico des-

sa pessoa, ainda vivo, era esse tercei-

ro, e não o marido da mãe. Determina-

se a nulidade do registro como que se

passando uma borracha durante os 25

anos, e, em seguida, torna-se, do pon-

to de vista patrimonial, um herdeiro e,

do ponto de vista do estado da pes-

soa, filho de outro que não o marido

da mãe. Esse é um exemplo que se

colhe da jurisprudência para colocar-

nos a pensar sobre o valor jurídico da

declaração biológica e que, em algu-

mas hipóteses, talvez deva ser equili-

brado com a noção de posse de esta-

do de filho, para saber se o biologismo

dos dias correntes – que torna, na in-

vestigação de paternidade, praticamen-

te os filhos como filhos do laudo, que

constata pelos modernos exames a

descendência – é um caminho a pros-

seguir ou que mereça um

aprofundamento.

Sem embargos, o avanço dos

exames médicos foi de uma importân-

cia transcendental, especialmente para

as mães solteiras que buscavam a in-

vestigação de paternidade, porque co-

locou por terra um argumento veicula-

do exceptio plurium concumbentium

que, ao invés de debater a origem ou

não da filiação, acabava colocando em

questão a suposta honorabilidade da

conduta da mulher em uma orientação

discriminatória, injustificável em rela-

ção à condição feminina. Nisso os exa-

mes trouxeram uma contribuição

exemplar.

De qualquer modo, para resu-

mir este quarto aspecto, saímos de uma

visão nupcial – em que a filiação

extramatrimonial não poderia ser reco-

nhecida – para um critério biologista,

em relação ao qual, nesta quadra em

que vive o Brasil, praticamente, não há

limites, embora haja também um gran-

de debate sobre a condução compul-

sória ou não para a extração do mate-

rial e a realização do respectivo exa-

me. De qualquer sorte, estamos sain-

do de um sistema rígido, marchando

para um outro que se está edificando,

pela força construtiva da jurisprudên-

cia, pela produção doutrinária e por

alguma legislação que, neste aspecto

específico, não tem trazido relevante

contribuição.

O quinto e último aspecto a

mencionar nesta travessia que estou a

referir-me é uma mudança do ponto

de vista dos conceitos nucleares no

Page 30: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

Direito de Família. Em outras palavras,

à luz do sistema do Código Civil brasi-

leiro, ao designarmos pai e mãe, o Có-

digo sabe com segurança a quem

estamos nos referindo.

Nos dias correntes, ao afirmar-

mos o brocardo mater semper certa

est, um ponto de interrogação já cabe

ao final, porque, diante dos mecanis-

mos da engenharia genética e da ges-

tação em favor de outrem, a vulgar-

mente designada barriga de aluguel, a

gravidez não é, por si só, mais uma

prova visível da maternidade. Aliás,

essa é uma das circunstâncias que no

Brasil tem passado à margem de um

rigoroso controle público; o Judiciário

já tem recebido demandas que colo-

cam em xeque todos os direitos

personalíssimos, como a cessão des-

sa parte do corpo, o útero da mulher,

para a gestação em favor de outro.

Esse é também um dos para-

doxos que leva da univocidade

conceitual de maternidade a uma

equivocidade ou seja, uma possibilida-

de de uma fragmentação dessas defi-

nições que não representam mais de

uma maneira monolítica, unitária, uma

verdade segura e clara, tal como é.

No tocante à paternidade, tam-

bém assim se passa. Menciono, rapi-

damente, um caso exemplar – o Bra-

sil, talvez, ainda não tenha tido um caso

tão paradoxal como o que foi julgado

em uma Corte ao sul da França, não

faz muito tempo: uma criança poderia

ter, simultaneamente, três pais. O fato

se passou, em síntese, da seguinte

maneira: marido e mulher separados

de fato; a mulher passa a viver com

outro homem, que é estéril. Desejan-

do ser mãe, ela vai a um banco de

material genético – como se sabe, na

França, ao contrário do Brasil, o con-

trole do Estado sobre o material gené-

tico é efetivo –, e é inseminada artifici-

almente com o material genético de

outro homem. Durante o período de

gravidez, o companheiro promove em

juízo uma ação declaratória de

inexistência de vínculo paternal para

dizer o seguinte: “O meu relacionamen-

to com esta mulher acabou, e o pai da

criança que vai nascer não sou eu.”

Ou o pai é o marido, porque ainda es-

tão formalmente casados, e incide a

presunção pater is est, ou o pai é aque-

le que deu o material genético, porque

biologicamente a criança descende

dele. Como a criança ainda não nas-

ceu, não se forma o trinômio: nomine,

intractatus e fama, que seria, em tese,

necessário para configurar o efeito

constitutivo da posse de estado de fi-

lho e atribuir-lhe a paternidade.

O tribunal colocou-se, portan-

to, diante desse dilema, em tese. Aque-

le nascituro, que mal sabia, no confor-

to do útero materno, o que lhe espera-

Page 31: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

va em vida, poderia, em tese, ter três

pais. Se fosse possível configurar a

posse de estado de filho desde a con-

cepção e não desde o nascimento,

quiçá o companheiro poderia ser ele-

vado à condição de pai socioafetivo,

especialmente, se fosse demonstrado

que ele houvera previamente consen-

tido com a inseminação artificial. Esse

consentimento prévio é uma declara-

ção prévia da assunção da paternida-

de, o que, no caso, não ficou clara-

mente comprovado. Se assim fosse,

poderia ele ser o pai socioafetivo da

mesma forma que essa criança terá,

ou teria, ou teve um pai biológico, cuja

paternidade não pode ser declarada,

porque, nas legislações que já se pro-

nunciaram sobre esse tema, França,

Suíça e Portugal, não é possível a in-

vestigação de paternidade quando se

trata do doador de material genético,

havendo uma interdição a essa revela-

ção.

No Brasil, já há quem sustente

a possibilidade da declaração da ascen-

dência biológica mesmo quando se tra-

tar do doador de material genético, não

apenas para efeito de verificação de

questões atinentes à saúde, mas para

a realização de um direito fundamen-

tal: o direito de conhecer o seu ascen-

dente genético, sem que isso traga vín-

culo patrimonial ou sucessório de na-

tureza alguma. De qualquer sorte, na

França tal não seria possível.

Portanto, se o companheiro não

pode ser pai socioafetivo, porque não

se provou os elementos da posse do

estado, se o doador do material gené-

tico não pode ser declarado pai bioló-

gico, restaria atribuir paternidade ao

marido com o qual a mulher ainda es-

tava casada formalmente, porém sepa-

rada de fato. Acontece que, na Fran-

ça, pela reforma da legislação france-

sa da filiação, de 1973, tomba, auto-

maticamente, a presunção pater is est

quando a filiação não é verossímil. Não

era verossímil que o marido fosse o pai,

porque, certamente, pelas circunstân-

cias dos fatos notórios ali existentes,

não conviviam à época da concepção

e, portanto, ausente a presunção de

coabitação, o que faz tombar, cair, au-

tomaticamente, a presunção de pater-

nidade. Resultado: a criança nasceu e

não tem pai, mas, em tese, poderia ter

tido três pais nessa dimensão.

Este exemplo, publicado no re-

pertório de jurisprudência francesa no

final do ano de 1998, é apenas para

significar o último aspecto que menci-

onei: a mudança dos conceitos da

univocidade para a equivocidade. Se

hoje perguntamos quem é a mãe, tam-

bém há lugar para perguntarmos quem

é o pai. Essa pergunta não tem mais

uma resposta fácil e simples, não por-

que o queiramos, mas porque assim

os fatos contemporâneos, com essa

Page 32: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

velocidade extraordinária, estão a ge-

rar.

Esses cinco aspectos, dentre

tantos outros, são suficientes para nos

revelar as repercussões que toda esta

matéria teve e está tendo na doutrina,

no ensino e na jurisprudência.

Em matéria de jurisprudência,

cito como exemplo um acórdão, já de

algum tempo, que mostra a orientação

que o Superior Tribunal de Justiça deu

a esse tema em setembro de 1991, no

Recurso Especial n. 7.631, Relator o

Ministro Sálvio de Figueiredo: Em face

da nova ordem constitucional que abri-

ga o princípio da igualdade jurídica dos

filhos, possível é o ajuizamento de ação

investigatória contra genitor casado.

Naquele momento, deixou-se à

margem o sistema originário do Códi-

go Civil brasileiro. Aplicava-se o texto

constitucional do princípio da igualda-

de entre todos os filhos. O acórdão di-

zia mais: Em se tratando de direitos fun-

damentais de proteção à família e à

filiação, os preceitos constitucionais

devem merecer exegese construtiva

que repudie discriminações incompa-

tíveis com o desenvolvimento social e

a evolução jurídica.

A evolução da jurisprudência,

os paradoxos dos fatos, toda essa rea-

lidade que estamos a viver, encontram,

agora, como proposta de sua

regulação, o Projeto do Código Civil. A

pergunta é se tal Projeto suporta tanta

complexidade. A resposta, no meu sen-

tir, que se pode sustentar, é que, à luz

dessas questões, o Projeto não conse-

gue suportar todos os aspectos aqui

suscitados.

É bem verdade que, em maté-

ria de família, o Senado Federal – e é

notável o esforço do Senador Josaphat

Marinho – deu um largo, expressivo e

positivo passo quando o Projeto lá es-

teve e foi aprovado em novembro de

1997. Basta ver o conjunto de altera-

ções introduzidas no Senado Federal

como, por exemplo, o estabelecimen-

to da igualdade de direitos entre o ho-

mem e a mulher, que está no Projeto;

a substituição do instituto do pátrio

poder pelo assim chamado “poder ma-

rital”; o reconhecimento da união está-

vel, acabando-se, segundo sustenta o

Senador Josaphat Marinho, com a dis-

tinção entre todos os filhos; a obriga-

ção dos ascendentes do adotante re-

conhecerem o adotado, que tem iguais

parentes; o dever de alimentos que é

mais elastecido; o aumento da idade

para a imposição do regime legal da

separação de bens, evitando a distin-

ção injustificável entre o homem e a

mulher existente atualmente no Códi-

go Civil brasileiro.

Essas alterações estão no Livro

IV, a partir do art. 1.510 do Projeto,

Page 33: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

que, com a redação que saiu do Sena-

do Federal, encontra-se, agora, tal

como foi publicado no Diário da Câ-

mara dos Deputados em 05 de feverei-

ro de 1998, sendo examinado por uma

Comissão Especial. O Relator da parte

de família é o Deputado Antônio Carlos

Biscaia, ex-Procurador da República,

que trata desse tema e que procura

evidenciar alguns desses paradoxos, os

quais completam o estudo desse capí-

tulo do Livro de Direito de Família, com-

posto por 285 artigos.

A estrutura básica do Projeto

está em dividir o Direito de Família em

Direito Pessoal e, depois, em Direito

Patrimonial. O Direito Pessoal cuida,

evidentemente, das relações familiares

de base, e o Direito Patrimonial, do re-

gime de bens e de um conjunto espe-

cífico de questões atinentes ao Direito

de Família.

Para exemplificar as dificulda-

des que tem o Projeto, cito, rapidamen-

te, sem embargo desses elogios que

fiz – e o Projeto no Senado assim o

merece –, alguns aspectos que susci-

tam alguma perplexidade:

O art. 1.626 diz: Não se permi-

te a investigação de maternidade quan-

do tenha por fim atribuir à mulher ca-

sada filho havido fora da sociedade

conjugal.

Se, de um lado, temos a pro-

clamação de que houve nesse Projeto

um reconhecimento do princípio da

igualdade dos filhos, esse dispositivo,

referindo-se à maternidade, cria uma

diferença com a possibilidade dos fi-

lhos do marido serem reconhecidos,

porquanto tal propabilidade não se atri-

bui aos filhos tidos fora do casamento

pela mulher.

Acrescentando, diz o parágra-

fo único: Admite-se a investigação de-

pois de dissolvida a sociedade conju-

gal ou depois de um ano de separação

ininterrupta do casal devidamente com-

provada.

Parece-nos que esse é um dis-

positivo que arrosta o princípio funcio-

nal da igualdade.

Do art. 1.588, pinçarei, rapida-

mente alguns exemplos: Sendo judici-

al a separação, ficarão os filhos me-

nores com o cônjuge inocente.

Traduz o Projeto o grande de-

bate fincado na superação da dimen-

são subjetiva das separações e no di-

vórcio. Cada vez se leva menos em

conta essa inferência da culpa, da res-

ponsabilidade para o efeito da separa-

ção. O Projeto se mantém nessa medi-

da, até porque, como sabemos, origi-

nariamente, foi realizado pela Comis-

são no começo dos anos 70 – na parte

de família, teve a brilhante participação

do Prof. Clóvis do Couto e Silva, da Fa-

Page 34: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

culdade de Direito da Universidade Fe-

deral do Rio Grande do Sul –, à luz de

um conjunto de valores anteriores à

Constituição e ao próprio desenvolvi-

mento jurisprudencial que se deu ex-

pressivamente com a criação do Su-

perior Tribunal de Justiça.

Ademais, em um outro disposi-

tivo, cita: Cabe ao marido o direito de

contestar a paternidade dos filhos nas-

cidos de sua mulher.

Até a expressão “contestar” já

é uma demonstração daquilo que os

processualistas civis de algum tempo,

e com alguma razão, suscitam: a im-

propriedade técnica, mas o problema

está na impropriedade substancial,

embora se tenha retirado o vocábulo

“legitimidade exclusiva”. Não há a in-

trodução da posse do estado de filho;

substitui a expressão “pátrio poder”

pela expressão “poder familiar”; des-

conhece a evolução do pátrio poder

para o dever familiar e que a expres-

são adotada na moderna teoria de fa-

mília é “autoridade parental”. De fato,

os pais, no exercício das suas funções,

inclusive a de colocar limites aos seus

filhos, deverão sempre exercer a auto-

ridade parental. Quando os pais, os

adultos – há muito já se diz –, educam

os filhos, também se educam. Nesse

sentido, portanto, não há um pátrio

poder; há, na verdade, um pátrio de-

ver, ou uma autoridade parental que

constrói uma via de mão dupla.

Enfim, um conjunto de circuns-

tâncias que nos leva a pensar se, de

fato, há resposta para esses paradoxos

que apontamos e se essas mudanças

estão neste Projeto. Há quem entenda

que não se deve cogitar sequer da

codificação. O tempo das codificações

já encontrou o seu ocaso. Há, assim,

já na Itália, todo o trabalho de Natalino

Irte e, mais tarde, de Pedro Barccelloni

e de tantos outros autores que susci-

tam a criação dos microssistemas e a

decodificação do Direito, um dos fe-

nômenos pelos quais estamos a pas-

sar. Além disso, se há essa discussão

geral, própria do Código impugnado –

e dentre nós, há um trabalho expressi-

vo nesse sentido do Prof. Francisco

Amaral, criticando a própria idéia de

uma nova codificação –, a questão está

em saber se, vencida essa etapa, este

Projeto daria conta da realidade. La-

mentavelmente, no nosso sentimento,

se algumas alterações expressivas não

forem introduzidas, teremos um Proje-

to aquém da Constituição de 1988.

Por isso, neste momento, a Co-

missão Especial na Câmara dos Depu-

tados cuida da possibilidade regimen-

tal de se ampliar a cognição restrita que

o Poder Legislativo tem quando retorna

do Senado Federal matéria não altera-

da por ele e que já houvera sido previ-

amente aprovada pela Câmara. Se isso

Page 35: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

ocorrer, quiçá, poder-se-á colocar algu-

ma mudança expressiva nessa parte do

Direito de Família.

Porém, a pergunta que se nos

afigura mais relevante talvez seja a de

saber para que e para quem se pensa

uma codificação. Qual é a sua finalida-

de e quais são os seus destinatários?

Para qual família? Para qual desenho

jurídico, ao final deste século, deseja-

mos realizar um desenho que perceba

essa dimensão sócio-afetiva, que man-

tenha a família e a sua razão de ser,

mas que desamarre os nós, como dis-

se a historiadora francesa Michelle

Pierrot, que mantenha o ninho, mas

que desate alguns nós, permitindo à

família, que, obviamente, não deve es-

tar em decadência, manter-se em um

novo modelo e em uma dimensão

fortificada.

Para isso, talvez, quando os si-

nos da virada deste século dobrarem,

poderemos nos perguntar se, com efei-

to, nessas expressivas mudanças, quer

concordemos com elas ou não, há uma

possibilidade de mantermos um desen-

volvimento jurisprudencial e doutriná-

rio antes e, só depois, alcançar uma

estabilidade e uma perenidade desse

governo jurídico para chegarmos a

uma eventual codificação, se este for

o caminho. É por isso que, nesta ma-

téria, há mais perguntas que respos-

tas.

Como iniciei citando Saramago,

concluo citando-o novamente. Na sua

obra, ao final de o “Evangelho segun-

do Jesus Cristo”, disse que nem alguém

pode fazer todas as perguntas e nem,

também, por isso mesmo, poderá ob-

ter todas as respostas. Nessa matéria,

seguramente, há mais perguntas que

respostas e, quiçá, possamos de qual-

quer modo reconhecer que olhar para

o Direito de Família contemporâneo é

um modo de radiografar o momento

em que vive a sociedade brasileira. Um

momento que, no nosso sentir, ao con-

trário do que possa aparentar, é de um

certo ordenamento. O Direito de Famí-

lia está mais para porto do que para

naufrágio, mas a ancoragem pode não

estar apenas na adoção de um novo

Código; pode estar na coragem de to-

dos nós, juízes, advogados e profes-

sores, continuarmos aprofundando o

debate para que a regulação jurídica

da família seja consentânea com o seu

tempo e espaço.

LUIZ EDSON FACHIN: Professor da Fa-

culdade de Direito da Universidade Fe-

deral do Paraná.

Page 36: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

CAPACIDADE CIVIL E CAPACIDADE EMPRESARIAL: PODERES DE EXERCÍCIONO PROJETO DO NOVO CÓDIGO CIVIL

JOÃO BAPTISTA VILLELA

Page 37: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Tenho algumas notas e uma edi-

ção do Projeto de Código Civil

que reproduz o texto aprovado

pelo Senado e submetido presente-

mente à apreciação da Câmara dos De-

putados.

Gostaria de lembrar, inicialmen-

te, Paulo de Lacerda, eminente cultor

do Direito Civil da primeira metade des-

te século, quando com um

indisfarçável orgulho lembrava que o

Brasil tinha sido palco da primeira gran-

de iniciativa de codificação do Direito

Privado.

Sabe-se que o Direito Privado

sofreu uma espécie de cisma por oca-

sião da Idade Média quando, à vista

de algumas circunstâncias históricas,

muitas delas de caráter acidental, o

Direito Comercial se constituiu fora dos

quadros do Direito Civil. Só para reca-

pitular um pouco, a censura que se deu

naquele momento – porque ela vai,

pela sua infundada doutrina, alimentar

todo o esforço de reunificação do Di-

reito Privado – era ligada, em grande

parte, à decadência do Direito Roma-

no no período da Baixa Idade Média,

que se devia em grande parte, por pa-

radoxal que pareça, à influência do cris-

tianismo, que trouxe um enorme enri-

quecimento ao Direito, à medida que

certas idéias fundamentais, como as de

igualdade e respeito ao mais débil fo-

ram sendo introduzidas no Direito. Por

outro lado, aquele contexto exagera-

do na defesa do economicamente fra-

co e na, em geral, do devedor, retirou

do Direito Romano certos recursos fun-

damentais de proteção ao crédito e a

isso associavam-se a ação e a influên-

cia do Direito Canônico, que vedava,

por uma insuficiente compreensão do

papel do dinheiro, a remuneração pelo

uso do capital, ou seja, havia uma con-

denação peremptória dos canonistas

para que se pagassem juros pelo em-

préstimo de dinheiro. Era uma menta-

lidade fisiocrática que presidia o pen-

samento jurídico na época, porque, aos

cultores do Direito e aos estadistas da

época não se afigurava pensável que

o dinheiro pudesse ser um bem capaz

de frutificar. Se alguém tomasse, por

exemplo, uma semente de trigo e a

deitasse na terra sob condições ade-

quadas, ela frutificaria e a semente, que

era uma, se converteria em milhares

de outras, mas o dinheiro não. Segun-

do se pensava naquele tempo, o dinhei-

ro era impassível de multiplicação; uma

unidade monetária não tinha como se

multiplicar em mais unidades monetá-

rias, daí por que a vedação dos juros

se constituiu num verdadeiro marco

das organizações política, jurídica e

mesmo religiosa naquele momento.

Não é difícil a qualquer um de

nós pensar que, sem defesa do crédi-

to e, sobretudo, sem atividade bancá-

ria, não é possível o desenvolvimento

Page 38: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

do comércio, que se funda basicamen-

te no crédito e na atividade bancária, a

qual, em verdade, é a atividade que

opera o instituto do crédito. As pesso-

as que exerciam atividades de troca

econômica, os chamados “mercado-

res”, não encontrando dentro do Direi-

to Civil as razões e os instrumentos para

dar cobertura aos seus negócios, co-

meçaram a criar instrumentos para re-

gular internamente as suas atividades.

Dessa maneira, começou a se formar

o Direito Comercial, não como um di-

reito comercial, mas como um direito

dos comerciantes, não um jus

mercatio, mas um jus mercatorium.

Essas razões são puramente contingen-

tes, acidentais, e não há nada que in-

dique, do ponto de vista da estrutura

dos valores e dos princípios que regem

os Direitos Civil e Comercial, que elas

constituam objeto de uma dogmática

separada e que não guardem uma cer-

ta unidade, uma certa coerência.

Esse fato foi muito bem apre-

endido aqui no Brasil por Teixeira de

Freitas que, como se sabe, em meio

ao caminho da codificação de que fora

encarregado pelo Governo Imperial,

resolveu rever todo o seu trabalho e

propor que, ao invés de um Código

Civil, se promovesse a unificação do

Direito Privado. Sabe-se que esse é um

dos episódios mais importantes da his-

tória do Direito Privado brasileiro e isso

fez nascer aquilo que Clóvis Beviláqua

chamaria de “a página mais dolorosa

da jurisprudência brasileira” que foi a

carta com que Teixeira de Freitas, ante

à recusa do Governo Imperial de aco-

lher as suas idéias, renunciou à fun-

ção de codificador do Direito Civil. Esse

episódio, por mais doloroso que tenha

sido, marcou, segundo Paulo de

Lacerda, o início de uma reflexão que

depois tomou todo o Ocidente, que foi

o esforço de reconstituir a unidade per-

dida do Direito Privado.

Se a afirmação de Paulo de

Lacerda é acertada ou não, pode-se dis-

cutir, porque, ao mesmo tempo em que

Teixeira de Freitas fazia essas reflexões

aqui no Brasil, um jurista suíço na Eu-

ropa também desenvolvia reflexões se-

melhantes; e trabalharam aproximada-

mente na mesma época e, por isso

mesmo, é um pouco arriscado dizer

que a precedência absoluta é de

Teixeira de Freitas. De qualquer manei-

ra, é claro e inegável que ele precedeu

de muito aquilo que ficou mais conhe-

cido como o grande grito em favor da

reunificação que foi a famosa

prolusione, a aula inaugural que Cesar

Vivante proferiu na Universidade de Bo-

lonha, em 1888, pedindo de novo que

o Direito Privado fosse uno e não mais

dicotomizado como se encontrava des-

de a Idade Média até o fim do século

XIX.

Embora as idéias de Teixeira de

Page 39: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

Freitas não tivessem vingado aqui no

Brasil, curiosamente o sonho da

reunificação do Direito Privado nunca

abandonou a cena jurídica brasileira.

O Governo parecia estar sobretudo

acossado por um imperativo político

de ter um Código Civil. A idéia de tra-

balhar numa outra linha representaria

possivelmente um prolongamento,

uma dilatação do prazo em que se que-

ria um Código Civil, que, naquele tem-

po era, de certa maneira, uma carta de

alforria dos países. O Brasil, já na Cons-

tituição Imperial de 1824, havia se

autoprometido um Código Civil, e nós

caminhávamos para o final do século

sem que esse Código ganhasse a luz

da realidade, o que deixava o Brasil

numa situação de incômoda inferiori-

dade em relação aos outros países lati-

no-americanos. Sabe-se, por exemplo,

que a Bolívia, em 1830, dispunha de

um Código Civil, que não era nada ori-

ginal, não passava de uma cópia do

Código de Napoleão, mas, enfim, po-

dia exibir o seu Código, enquanto que

o Brasil, seguramente a mais importan-

te nação da América Latina, ainda

tateava em busca desse monumento

da sua condição de nação politicamen-

te adulta.

O Governo, preocupado em

acelerar esses trabalhos, não deu ou-

vidos à sugestão de Teixeira de Freitas,

e sabe-se que Clóvis Beviláqua foi en-

carregado da elaboração do Projeto,

que também teve as suas vicissitudes,

mas, finalmente, converteu-se em lei

em 1916. Apesar disso, e até mesmo

enquanto o Projeto Beviláqua estava

não só em curso como em um estágio

avançado, ainda persistia o propósito

de reunificar o Direito Privado antes

que tivéssemos aqui um Código Civil.

Em 1912, o Governo Hermes

da Fonseca encarrega Herculano Mar-

cos Inglês de Sousa de elaborar um

Projeto de Atualização do Código Co-

mercial de 1850, que, como se sabe,

já era, a esse tempo, um Código anti-

go. Herculano, que era um aferrado

partidário da reunificação já poucos

anos antes da aprovação do Projeto do

Código Civil, elaborado por Clóvis

Beviláqua, realiza um projeto de adap-

tação e modernização do Código Co-

mercial brasileiro, mas agrega a este

Projeto um outro destinado a convertê-

lo no que seria um Código de Direito

Privado; chamava-se precisamente “A

iniciativa de Inglês de Sousa”, um Pro-

jeto que seria o Código de todo o Di-

reito Privado nacional. A iniciativa não

teve sucesso; tivemos o Código apro-

vado, que já nasceu desatualizado pelo

seu longo processo de discussão e ela-

boração, e logo começaram a apare-

cer os esforços tendentes a melhorá-lo

de certa forma.

No processo de modernização

do Código Civil reaparece, novamen-

Page 40: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

te, a idéia da unificação do Direito Pri-

vado – ela vai aparecer mais recente-

mente em 1960, com o chamado “ Pro-

jeto Orlando Gomes”. Na década de 60,

já havia dois grandes modelos de uni-

ficação do Direito Privado bem confi-

gurados e delineados no Ocidente: o

que poderíamos chamar de modelo

suíço e modelo italiano. O modelo suí-

ço concretizou-se por meio da adoção

de dois códigos distintos para um úni-

co Direito: o Código das Obrigações,

de 1881, que reunia toda a matéria

obrigacional, e o Código Civil, de 1907,

que disciplinava a matéria de Direito

Privado residual, ou seja, aquilo que

não concernisse diretamente às obri-

gações. Depois, tivemos um modelo di-

ferente na Itália, que já tinha, em 1942,

o precedente suíço, mas se preferiu

uma outra via – na Itália, como se sabe,

unificou-se o Direito Privado dentro do

Código Civil: o Código Civil de 1942,

substituiu o velho “Código Pisanelli”, de

1865, e o Codice del Commercio, de

1882. Chama-se Civil, mas não é um

Código apenas de Direito Civil, é um

verdadeiro Código de Direito Privado.

Tínhamos, quando se deu iní-

cio à Codificação Orlando Gomes, à

nossa frente, esses dois precedentes

históricos. A Comissão Orlando Gomes

optou pelo modelo suíço; então tive-

mos um Projeto de Código Civil e um

outro Projeto de Código das Obriga-

ções. Esses Projetos foram objeto de

uma discussão relativamente mais

ampla do que a que se produziu com

este atual Projeto no País e, converti-

dos em projeto de lei, foram encami-

nhados ao Congresso Nacional, até

que sobreveio o movimento político de

1964, quando então essa iniciativa foi

definitivamente sepultada.

Quando chegamos em 1970, re-

toma-se de novo não a idéia de unifi-

cação do Direito Privado, mas a idéia

de um Código Civil mais moderno,

adaptado às condições do País, já uma

Nação muito industrializada e com bas-

tante movimento de migração do cam-

po para as cidades, que, por sua vez,

determinou uma alteração no perfil das

relações sociais e econômicas do País.

Ao retomar a idéia de um novo Código

Civil novamente reapareceu presente

à mente dos encarregados a idéia de

unificar o Direito Privado, ou seja, nun-

ca se aceitou bem, no Brasil, depois

do alerta de Teixeira de Freitas, a idéia

de que devêssemos ter uma legislação

de Direito Privado compartimentada em

dois códigos distintos. Até 1876, pre-

cisamente 1875, com uma lei que au-

torizou o Governo Imperial a alterar a

estrutura judiciária nessa matéria, o

Brasil chegou a ter uma jurisdição co-

mercial, como tem hoje a França, se-

parada da jurisdição civil. Tivemos os

conhecidos tribunais do comércio que

chegaram a ter atividade no Brasil, mas

nunca concorreram, ao que se tem

Page 41: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

notícia, para que aparecesse, aos

olhos dos observadores mais atentos

e analíticos da realidade nacional, uma

solução politicamente conveniente.

Com o Projeto Miguel Reale

recoloca-se à Comissão o tema da uni-

ficação do Direito Privado. A Comissão

opta pela unificação, mas nesse mo-

mento abandona o modelo suíço e as-

sume o italiano, não mais um Código

de Obrigações e um Código Civil, mas

um único Código que se chamou de

Civil e não de Direito Privado; segundo

aquela idéia de Inglês de Sousa, um

Código de Direito Civil em que toda a

matéria de Direito Privado estivesse

contida. Assim se fez e se converteu

também em projeto de lei e foi envia-

do ao Congresso Nacional.

Se tomarmos como marco ini-

cial da idéia de unificação no Brasil a

advertência de Teixeira de Freitas –

quando realizava, depois de ter feito a

Consolidação das Leis Civis, cometido

pelo Governo Imperial, o seu Projeto,

que nunca chegou a tal, mas ficou

como esboço – podemos dizer que

contabilizamos pelo menos um século

e meio de doutrina de unificação do

Direito Privado, de reflexão acumula-

da sobre as vantagens e, eventualmen-

te, os inconvenientes da unificação do

Direito Privado. Como se uma força

atávica nos impedisse de realizar esse

sonho, mais uma vez essa iniciativa

parece inabilitada para realizar adequa-

damente esse projeto unificador. De

um modo estranho parece que não

conseguimos armar adequadamente a

hipótese da unificação.

Se pudesse usar uma linguagem

de cronista esportivo, diria que não en-

contramos o caminho do gol da unifi-

cação. Todas as iniciativas, de um

modo ou de outro, foram malogradas,

conforme disse, e esta iniciativa, que

não posso dizer ainda malograda, de

qualquer maneira, não constitui uma

solução adequada para a unificação do

Direito Privado. Quem lê o Projeto des-

de as suas versões iniciais, desde o

anteprojeto inicial até a sua última ver-

são, que é esta a que me referi, tem a

impressão de que toda a Parte Geral

foi redigida sobre um suposto modelo

de Código Civil exclusivamente para

matéria civil e não para matéria empre-

sarial, que é o nome sob o qual a ma-

téria de comércio entrou para o Proje-

to.

O que gostaria de mostrar é

como esse encaixe se apresenta atro-

pelado, descosido e longe de fazer com

que o intérprete possa ver entre as dis-

posições da Parte Geral e o livro do

Direito de Empresas uma passagem

natural, que traduza essa idéia de um

corpo unificado de regras, valores e

princípios que são os do Direito Priva-

do. Assim, se tomarmos o art. 5º, que

Page 42: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

é onde está definida a capacidade, va-

mos verificar que houve uma alteração

sobre a qual não vale a pena discutir.

Conquanto o Ministro Moreira Alves in-

sista na sua idéia anterior de colocar a

cessação da menoridade aos 21 anos,

o Projeto, acompanhando a tendência

geral das legislações ocidentais da Ale-

manha, Itália, França etc., baixou para

dezoito anos. Mas, como em outros

ordenamentos jurídicos e como no atu-

al Direito vigente, há a possibilidade de

encontrarem-se caminhos alternativos

para obtenção da capacidade plena

por meio, entre outros expedientes ou

de muitas formas, da emancipação,

que está prevista no parágrafo único

do art. 5º, no qual há uma alínea que

diz:

O artigo está vazado nos se-

guintes termos:

Parágrafo único. Cessará para

os menores a incapacidade:

e) pelo estabelecimento civil ou

comercial ou pela existência de rela-

ção de emprego, desde que, em fun-

ção deles, o menor com dezesseis anos

completos tenha economia própria.

O que há de meritório nesse

dispositivo é o fato de que se criou uma

idade mínima que o Código Civil atual

não estabelece, levantando dúvida so-

bre a partir de que idade pode obter-se

a cessação da menoridade por esta via.

Mas uma demonstração de que a Par-

te Geral não foi concebida para um pro-

jeto unificado está na repetição, pura

e simples, das expressões que o Códi-

go Civil atual usa: estabelecimento ci-

vil ou comercial. Ora, não haveria que

se falar mais em estabelecimento co-

mercial, senão apenas em estabeleci-

mento empresarial, que é aquela idéia

de empresa em que se unifica a ativi-

dade civil e a antiga atividade comerci-

al.

Como se não bastasse esse re-

síduo da velha idéia de um Código ape-

nas Civil, o Projeto – e nisso difere para

pior do Código vigente – diz assim:

(...)pela existência de relação de em-

prego, desde que, em função deles, o

menor com dezesseis anos completos

tenha economia própria. Ora, essa lin-

guagem de que se usa e se abusa hoje,

muitas vezes empregada em sentido

absolutamente impróprio, está a deter-

minar não uma relação de causalida-

de, mas uma relação de dependência.

Se, por exemplo, os preços variam de

acordo com a qualidade, a qualidade

determina o preço; poderia também

pensar que os preços indicam a quali-

dade, mas esta seria outra proposição,

dentro de um outro registro lógico. Se

a qualidade determina o preço, tenho,

no sentido lógico e cronológico, a qua-

lidade antecedente ao preço. Ora, se

trato de economia própria em função

do estabelecimento, estou exigindo que

Page 43: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

o estabelecimento seja também um

prius em relação à economia própria.

Portanto, o que o Projeto está dizendo

é que primeiro tenho de ter o estabele-

cimento e depois tenho de ter a eco-

nomia própria, o que é um desastre

completo. Por quê? Porque a lógica

correta que está presente no Código

Civil hoje, ainda que incompletamente

formulada, é a de que o menor, por

meio da sua diligência, da sua capaci-

dade de planejamento e de consertar

interesses, supre a sua falta de amadu-

recimento biológico, revelando-se uma

pessoa habilitada a operar no mundo

das relações privadas, das relações

sociais e econômicas do Direito Priva-

do.

Em termos atuais, o estabeleci-

mento civil ou comercial explicita uma

capacidade que o menor já tinha. Di-

gamos que o estabelecimento é aque-

le marco de visibilidade que o menor

apresenta e que faz presumir nele tudo

aquilo que é necessário para que se

reconheça o exercício da capacidade

de fato. O Projeto diz que o menor, para

se emancipar, tem de ter economia pró-

pria em função dos estabelecimentos;

portanto, está dizendo, em bom portu-

guês, que ele se estabelece, mas como

ainda não tem economia própria, por-

que esta tem de ser obtida em função

do estabelecimento, ele se estabelece

sem ser capaz, com isso criando um

enorme problema. E, se ele desenvol-

ver o seu estabelecimento num perío-

do em que não tem capacidade, ob-

tendo economia própria por meio des-

sa atividade, então, terá a emancipa-

ção. A primeira pergunta que se faz

aqui é: Quando então surge a emanci-

pação? Já o fato de trabalharmos hoje

com a idéia do estabelecimento – em

termos do Código atual, não é o esta-

belecimento, a unidade física, e sim a

operação de se estabelecer –, se temos

dificuldade de concretizar esse momen-

to preciso em que a capacidade se dá

via estabelecimento, muito mais dificul-

dade teremos quando esse estabeleci-

mento não for mais o elemento

extrínseco revelador da capacidade do

agente, senão apenas o marco em ra-

zão do qual desenvolverá atividades na

condição de incapaz para só depois,

se tiver economia própria, obter a ca-

pacidade plena, o que é um equívoco

completo. Ademais, na lógica do atual

Código vigente, a economia própria

surge, ou entra, como o elemento afe-

ridor de uma capacidade de fato efeti-

va, e no Projeto passaria a entrar como

o resultado de uma administração

frutuosa, de uma administração bem-

sucedida.

Ora, as operações serem bem-

sucedidas nunca foi requisito para a

capacidade. Muitas vezes, a pessoa é

um verdadeiro empresário, tem tino,

tem habilidades e condições, mas não

tem sucesso; basta lembrar aquele que

Page 44: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

foi provavelmente o maior empresário

de toda a história política do Brasil, o

Barão de Mauá, que teve sucessivas

falências. Então, ter sucesso econômi-

co não é elemento revelador de habili-

tação para o exercício de fato do direi-

to, senão um resultado mais ou me-

nos eventual da atividade de empresá-

rio.

Pior é quando o Projeto diz – e

isso é um acréscimo em relação ao Có-

digo vigente – que também a relação

de emprego pode levar à capacidade

plena se, em função dela, o menor ti-

ver economia própria. Pergunto: Há

algo mais inerente à relação de empre-

go do que o salário? E há algo mais

inerente a este do que constituir a ex-

pressão de uma economia própria?

Todo aquele que tem uma relação de

emprego tem, ipso facto, salário, que

é mais próprio do que qualquer outro

rendimento que o menor pudesse ter.

Então, ao dizer dessa forma, o Projeto

está apenas usando de uma tortuosa

perífrase para dizer que a relação de

emprego emancipa.

Bem, se a relação de emprego

emancipa, primeiro, ela está aqui mal

colocada, porque deveria, por identi-

dade ou afinidade de matéria, estar na

alínea c desse parágrafo único, que é

o exercício de emprego público efeti-

vo, e com mais este paradoxo: que

enquanto o exercício do emprego pú-

blico tem de ser efetivo para emanci-

par, a relação de trabalho no mundo

privado, a relação de trabalho que não

seja no serviço público, está dispensa-

da de qualquer outro predicado. A ri-

gor, um contrato de trabalho de expe-

riência, que estabelece uma relação

precaríssima, é suficiente para habili-

tar a pessoa aos atos da vida civil e

para torná-la definitivamente capaz. Os

arts. 3º e 4º tratam da definição das

hipóteses de incapacidade. O art. 3º

diz:

São absolutamente incapazes

de exercer pessoalmente os atos da

vida civil:

II – os que por enfermidade ou

retardo mental não tiverem o necessá-

rio discernimento para a prática des-

ses atos.

Aqui o Projeto passou por cima

de toda a moderna problemática dos

classicamente chamados “intervalos

lúcidos”.

Houve uma mudança funda-

mental na ciência psiquiátrica. Depois

da grande revolução da psiquiatria bio-

lógica, reverteu-se a situação anterior

na qual os casos de enfermidade men-

tal intermitentes se compunham fun-

damentalmente de longos períodos de

enfermidade, intervalados por períodos

de lucidez. Hoje, segundo depoimen-

tos dos especialistas na área médica,

Page 45: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

é possível, por meio do controle por

drogas, se não eliminar totalmente o

período de enfermidade, reverter a si-

tuação para o estado anterior; ou seja,

podemos ter longos períodos de sani-

dade pontuados por pequenos lapsos

de enfermidade. Então, não há mais

sentido estabelecermos uma incapaci-

dade de caráter permanente e duradou-

ro, quando a situação, em razão dos

progressos médicos, mudou radical-

mente.

Mas, ainda aqui, para ficarmos

no art. 3º, há uma solução, absoluta-

mente, a meu ver, estapafúrdia, que se

expressa no inc. III. Nele, na lista dos

absolutamente incapazes, estão aque-

les que, ainda que por motivo transitó-

rio, não possam exprimir sua vontade.

Estes são declarados incapazes, quan-

do, na verdade, eles estão momenta-

neamente incapazes. Mas essa defini-

ção de incapacidade do Código não é

uma descrição de um estado factual

porém, de uma restrição jurídica. Di-

zer que a pessoa que está, por exem-

plo, sob anestésico, é incapaz para os

atos da vida civil no sentido descritivo,

é o mesmo que dizer que o paralítico

está incapacitado de andar.

Na verdade, a pessoa que este-

ja submetida a uma suspensão provi-

sória do seu estado de consciência não

é uma incapaz; está momentaneamen-

te limitada no exercício da sua capaci-

dade. Nenhum de nós que tenha pas-

sado por uma anestesia, por exemplo,

terá sido considerado incapaz para

sempre. Mas o Projeto não limita o tem-

po de duração; ou seja, houve aqui um

concurso de equívocos, entre eles o

do mau uso do verbo “ser” pelo verbo

“estar”. Recordarão todos aquela diver-

tida expressão do então Ministro Eduar-

do Portela, no Governo João

Figueiredo, quando indagado por um

repórter se ainda continuava Ministro.

Respondeu: Não, não sou Ministro; eu

estou Ministro. Ou seja, quis sinalizar

o estado precário da sua condição; ele

continuaria ministro enquanto, natural-

mente, gozasse da designação do Pre-

sidente da República. A pessoa que está

momentaneamente, transitoriamente,

sem condições de exprimir a sua von-

tade, não é incapaz; ela está incapaz.

Mas essa incapacidade, digamos, que

se expressa pelo verbo “estar”, o Códi-

go não tem de anunciá-la. Dizer que a

pessoa que não pode exprimir a sua

vontade é incapaz, nesse sentido

factual, significa uma tautologia; seria

o mesmo que dizer que a pessoa que

é paralítica não pode andar.

Poderia prosseguir nessa análi-

se, mas quero deter-me, ainda que sem

o vagar que gostaria, na parte do Direi-

to de Empresa, que é o Livro II, e onde

a matéria, até então tida por comercial,

encontraria o seu assento próprio. Nele

existe uma definição interessante e

Page 46: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

correta do que seja empresário. Art.

969:

Considera-se empresário o que

exerce, profissionalmente, atividade

econômica organizada para a produ-

ção ou circulação de bens ou de servi-

ços.

Então, a empresarialidade

corresponde exatamente à mesma idéia

de comercialidade que temos hoje no

Brasil. O comerciante não é aquele que

pratica atos de comércio, mas aquele

que faz da mercancia uma atividade

habitual ou profissional. Assim deve ser

também o empresário. A empresa, nes-

se caso, não é vista como uma ativida-

de tópica, episódica, intermitente, mas

como uma condição permanente. Se

é uma condição ou uma atividade, não

teria sentido o que diz o art. 977, quan-

do estabelece a seguinte regra:

Por meio de representante ou

devidamente assistido, poderá o inca-

paz continuar a empresa, antes

exercida por ele enquanto capaz, por

seus pais ou pelo autor de herança.

A hipótese aqui é de uma pes-

soa que é empresário e se vê subita-

mente atingida, por exemplo, por uma

incapacidade superveniente, ou, na

outra hipótese, a de morte.

Se o empresário encontrar-se

atingido por uma incapacidade ou por

uma turbação superveniente dessa ati-

vidade, o natural é que deixe de ser

empresário. Ele não é mais empresá-

rio, porque ser empresário é exercer

uma atividade; se ele não estiver exer-

cendo nenhuma atividade não será

considerado empresário. Claro que

pode ser titular da empresa. Aquela

empresa, como objeto de direito, pode

estar integrada ao seu patrimônio, mas

não se lhe pode dar a condição de con-

tinuar sendo empresário, ou seja, con-

tinuar sob o ficto exercício da ativida-

de empresarial quando está incapaz.

Posso, por meio do instituto da repre-

sentação, cometer a alguém a prática

de atos determinados. Esses atos, pra-

ticados em conformidade com o man-

dato, vinculam o mandante. Assim não

é errado, porque de uso corrente no

foro, que o representante, neste mo-

mento, substitui a pessoa do represen-

tado. Nas petições, por exemplo, o ad-

vogado não diz: Eu, representando fu-

lano de tal. Mas, desde logo: Fulano

de tal vem requerer isso ou aquilo.

Isso é uma substituição em ter-

mos de atos. Mas não posso imaginar

essa substituição em termos de ativi-

dades. Por exemplo: se quero alienar

um imóvel que tenho em Curitiba, pos-

so cometer este poder a um procura-

dor meu, a um mandatário, e ele, no

exercício deste mandato, deslocar-se-

á até Curitiba, comparecerá em cartó-

Page 47: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

rio, ou não, conforme as circunstân-

cias, e lavrará o ato para o qual o in-

vesti.

Posso dizer que esse ato de

vender um imóvel é meu, praticado por

intermédio dele, mas não posso dizer

– seria medianamente equivocado –

que fui a Curitiba, hospedei-me em um

determinado hotel ou almocei no res-

taurante tal, simplesmente, porque o

meu procurador o fez. As atividades

são dele, e são pessoais e infungíveis.

Atividade como tal é infungível. Os atos

praticados no contexto dessas ativida-

des poderão ser imputados ao repre-

sentante. Assim, essa norma do art.

977 subverte, por completo, o enten-

dimento do que seja empresário, do

que seja a atividade empresarial.

Outra anomalia manifesta-se no

art. 981, ainda do livro do Direito de

Empresa, que diz assim:

O empresário casado pode,

sem necessidade de outorga conjugal,

qualquer que seja o regime de bens,

alienar os imóveis que integrem o

patrimônio da empresa ou gravá-los de

ônus real.

Esta é uma solução que, à pri-

meira vista, parece razoável. De fato,

o empresário tem de dispor de uma

mobilidade, de um poder de exercício

maior que o das pessoas que não o

são. Essa agilidade, rapidez e presteza

são inerentes à atividade econômica.

Não posso, porém, criar uma regra des-

se alcance e desse poder sem que es-

teja trabalhando com o empresário

pessoa jurídica e/ou sem que eu te-

nha a definição de um patrimônio se-

parado, de afetação. Posso, perfeita-

mente, imaginar que o empresário in-

dividual tenha um enclave patrimonial

entre os seus bens e que este fique

comprometido ao atendimento das

suas dívidas e das suas obrigações.

Contudo, tenho de definir, demarcar,

mapear esse enclave para submetê-lo

a esse regime. Sob este aspecto, o côn-

juge não estará sendo lesado, porque,

qualquer que seja o regime de bens

do casamento, ainda que seja o da se-

paração, cada um dos cônjuges tem o

interesse legítimo na administração e

na gestão do patrimônio comum, des-

de logo, e mesmo do patrimônio do

cônjuge. Se quero este resultado, ou

seja, se quero criar o que o Direito bra-

sileiro atualmente não oferece, tenho

de ter, por exemplo, a limitação da res-

ponsabilidade do comerciante individu-

al – objeto, há muitos anos, em São

Paulo, de uma tese interessante do Prof.

Sylvio Marcondes Machado. Esta é uma

hipótese que não temos e que nos leva

a uma ficção: a constituição de socie-

dades em que uma pessoa detenha

99% das quotas e uma outra, geralmen-

te alguém de sua confiança, detenha

um por cento. Essa prática existe para

Page 48: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

atender à preocupação saudável de

não se comprometer a segurança pes-

soal e familiar com os atos empresari-

ais – a atividade empresarial é, por ex-

celência, uma atividade de risco –, por

causa da insuficiência dos instrumen-

tos normativos de que dispõe o Direi-

to brasileiro para limitar o comprome-

timento e a responsabilidade do em-

presário individual.

Muito saudável, portanto, a

idéia de se implantar alguma forma de

proteção ao empresário individual para

que ele não fique em estado de inse-

gurança, incerteza, com receio de que

alguma eventual operação irá deixá-lo

completamente sem recursos ou irá

deixar a sua família, seus filhos e sua

mulher, ao desabrigo. Tal idéia é sau-

dável, mas tenho de demarcar o

patrimônio que ficará comprometido

com a atividade empresarial. Não pos-

so, simplesmente, dar ao empresário

o poder de dispensar outorga conju-

gal, se não tenho os limites para os atos

que ele venha a praticar.

Para resumir, na minha percep-

ção, neste particular, no que se refere

aos poderes de exercício, o Projeto se

acha não só mal formulado, mas, mais

uma vez, estranho dentro das regras

que devem ser observadas para que

se obtenha uma efetiva reintegração do

Direito Privado.

JOÃO BAPTISTA VILLELA: Professor

da Universidade Federal de Minas Ge-

rais.

Page 49: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

DIREITO DAS COISASRUI GERALDO CAMARGO VIANA

Page 50: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

A propriedade aparece antes do

constitucionalismo, é fundado-

ra do constitucionalismo, como

inerência ao direito do cidadão, até

como um direito de personalidade,

uma garantia do cidadão. Por isso mes-

mo que, quando houve a reforma cons-

titucional francesa, Marcel Aline, em

1957, colocou um dispositivo fixando

a propriedade como um direito consti-

tucional. Ele não tinha convicção dis-

so, mas dizia: arreceio-me de que um

legislador ordinário – não na expres-

são pejorativa do termo – venha a

modificá-lo, tirando substância deste

importante instituto. Por isso ele o

constitucionalizou.

Hoje vemos que esse ideal bur-

guês voluntarista que caracterizou a Re-

volução Francesa vem perdendo a ên-

fase que dava à centralização de tudo

em um Código Civil. Como foi dito, com

muita propriedade, a Constituição do

cidadão, do homem comum, é, ou se-

ria, o Direito Civil.

No Código Civil, pensava-se que

estaria centralizado todo o Direito Pri-

vado, porque, ali, estavam dispostas e

resolvidas todas as imagináveis ques-

tões que pudessem ocorrer entre as

pessoas, sendo o juiz meramente la

bouche de la loi, a aplicar aquilo que a

lei dizia. Aliás, é de todos sabido o hor-

ror que Napoleão votava à magistratu-

ra. Tivesse sido ele mais alongado nos

seus anos, por certo, quando se co-

meçassem as interpretações do Códi-

go Civil, não teríamos mais juristas na

França. Ele teria resolvido o problema;

tê-los-ia eliminado por ver o Código

insuscetível de interpretação.

Com a evolução econômica,

com as correlatas influências no cam-

po social, a evolução estrutural e o

aumento das populações urbanas que

exigiam contrapartidas céleres no sis-

tema legislativo, os códigos foram se

afrouxando. Hoje, vemos uma pletora

de leis em todos os campos: Direito de

Família, uma série de dispositivos a res-

peito; Direito Empresarial, um excesso

de normas a respeito das empresas;

no conceito da locação dos contratos,

uma inovação; esta está totalmente fora

do Código Civil – se pegarmos o Códi-

go Civil, poderemos constatar que pou-

ca coisa ali sobra.

O nosso Projeto tem quase trin-

ta anos. Não é muito mais do que de-

morou o antigo Projeto de Código Ci-

vil. Digo que aqueles vinte anos, des-

de a Constituição de Teixeira de Freitas

até o Projeto de Clóvis Beviláqua, fo-

ram corridos no andar da carruagem;

mas, hoje, estamos no tempo do dis-

positivo a jato. Esses trinta anos de evo-

lução social representam muito mais

que os vinte anos daquela sociedade

no estado de aquiescência, daquela so-

ciedade estável do princípio do sécu-

Page 51: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

lo. Muita evolução ocorreu e aquele Pro-

jeto, avançado para a época, sofreu

todo o embate da orgia legiferante. Fez-

se necessário o Anteprojeto que come-

çou em 1972. Orgia legiferante a que

alude Mauro Cappelletti em suas refle-

xões sobre o tema, mostrando que o

escopo era manter o sistema do Códi-

go Civil fechado, o que, todavia, não

se conseguiu lograr.

Infere-se que não havia função

promocional do Direito naquela épo-

ca, mas apareceram os ideais

socializantes, o determinado welfare

state, centralizados na Constituição do

México, de 1917. Todos sempre falam

na Constituição de “Weimar”, de 1919,

mas foi o México que implantou essa

concepção de desenvolvimento e so-

cialismo.

Em matéria de propriedade, a

Constituição de “Weimar” é muito im-

portante, principalmente quando nos

trouxe a expressão: a propriedade obri-

ga. O mundo ficou estupefato. Qual o

alcance, qual a valia dessa expressão?

Os doutrinadores começaram a procu-

rar essa discussão.

Na realidade, a Constituição

passou a desempenhar um papel pri-

mordial, mesmo na órbita do Direito

Privado, razão pela qual parece justifi-

car-se o ressurgimento desse chama-

do Direito Civil Constitucional. Essa é

a posição, hoje, da doutrina. Na Fran-

ça, por exemplo, esse fenômeno foi

reconhecido no âmbito de um debate

famoso, publicado na Revista de Direi-

to Constitucional, em 1991.

O fundador do Direito Civil é a

Constituição. O nosso Código já teria,

portanto, este grande pecado, pois o

Projeto é de 1975, e a nossa Constitui-

ção, de 1988. Claro está que ele tem

marcadas inconstitucionalidades, até

porque o nosso projetista não poderia

ter atributo adivinhatório. É certo que

esses pecados maiores puderam ser,

de certa forma, remendados com o ma-

gistral trabalho do Senador Josaphat

Marinho, que procurou compatibilizar

aquela série de dispositivos harmôni-

cos do Projeto de Código Civil com a

nova Constituição, promulgada em

1988. Todavia, isso tudo não é sufici-

ente. Cheguei a achar que no Direito

real, no Direito de Propriedade, seria

até adequado, far-se-ia uma certa adap-

tação, mas é preciso que se respeite o

princípio da dignidade da pessoa hu-

mana, muito falado atualmente.

Na III Conferência Habitat, um

dos nossos ministros plenipotenciários

do Itamarati – e um embaixador – em

uma discussão, arreceava-se de colo-

car a expressão “direito à moradia” na

Carta de Intenções daquela Conferên-

cia. Dizia ele que essa expressão po-

deria levar a população a cobrar esse

Page 52: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

direito na Justiça. Durante os debates,

dizia o ministro: “Concluímos que o

direito à moradia é um direito de natu-

reza programática, ou seja, será obti-

do progressivamente e não pode ser

cobrado na Justiça”. Ledo engano: es-

sas não são normas programáticas ape-

nas, são direitos essenciais. Os direi-

tos do art. 6º da Constituição não são

menos importantes, menos sobrancei-

ros que os do art. 5º, porque eles se

completam.

Em um trabalho de minha au-

toria, demonstrei que, inserindo a ma-

téria no art. 6º, os supositores de que

haveria uma decisão de direitos huma-

nos se enganam. Alejandro Artúcio, por

exemplo, desenvolvendo o tema, mos-

tra a interdependência entre direitos hu-

manos. Eles devem ter a mesma

conotação que os direitos civis, políti-

cos, econômicos, sociais e culturais.

Portanto, o direito do art. 5º e o do art.

6º têm a mesma posição de

imperatividade na Constituição.

É incontroverso que essas re-

gras tenham aplicação imediata pela

imposição do art. 5º da Carta Magna,

porque não se pode evitar o direito à

moradia, já inscrito em tratados inter-

nacionais, é norma obrigatória. Os tra-

tados internacionalizados tornam-se lei

interna. Mesmo quando esses tratados

não são internacionalizados, se subs-

critos pelo Brasil, também tornam-se

uma norma coativa para o nosso siste-

ma.

A matéria que desenvolvi nes-

se trabalho mostra que nessa nova

conotação o direito à moradia é um

direito constitucional que atribui direi-

to aos cidadãos. Esse direito tem mui-

tas implicações e vem alterar essa vi-

são da civilística que não pode ficar

amesquinhada naqueles pequenos

avanços. Os nossos professores eram

tradicionalistas; o Prof. Miguel Reale,

com toda a sua cultura e inteligência,

ainda está em plena efervescência; o

Prof. Agostinho Alvim era um tradicio-

nalista; o Prof. Ebert Chamoun o era

ainda mais, um romanista. Esse é o

Direito Civil voltado ao passado, com

alguns avanços, mas que não compre-

ende os problemas da dignidade hu-

mana.

Por exemplo, citei essa falta de

avanço em um trabalho que realizei há

vinte anos, A Participação do Particu-

lar no Urbanismo. Nesse trabalho, mos-

trei que a solução do Projeto não era

satisfatória ao tratar das ocupações ir-

regulares, um problema constante.

Estamos vendo, hoje, nas cidades, as

ocupações irregulares, que são feitas

de uma hora para outra. Os sem-terra

ou os sem-teto, no caso dos urbanos,

estão totalmente organizados. Tivemos

em São Paulo, a invasão do antigo Hos-

pital Matarazzo, que foi feita, literalmen-

Page 53: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

te, por mil famílias, em meia hora. Es-

tava implantado o problema. Poderia

voltar ao passado, lembrando a nossa

judicatura inicial em Santos, quando o

Ministro Barros Monteiro ainda era jo-

vem, ou a invasão do Paicará no

Guarujá, onde o Tribunal de Justiça de

São Paulo se viu às voltas com uma

invasão de milhares de pessoas naquele

terreno.

Como resolver este problema?

Na estrutura civilística, o Direito Civil é

“padrasto” em relação a esses invaso-

res, que não têm em seu favor nada,

têm a contrariedade da lei e a imposi-

ção dos direitos dos proprietários. O

que eles têm em seu favor? Só a misé-

ria e o desespero, mas a Justiça já apli-

cou, ali, o princípio da dignidade do

homem, o princípio da função social

da propriedade; mandou que se man-

tivessem aqueles ocupantes, afastan-

do o princípio do superficies solo cedit,

atendendo a inúmeros intrusos. Porém,

expeli-los da área ocupada caracteriza-

ria uma situação de comoção social

resultante da necessidade de cumpri-

mento dos julgados proferidos. Cente-

nas e milhares de pessoas iam ficar ao

desabrigo, criando problemas de gra-

ves e profundas repercussões sociais.

Não tinha o Tribunal paulista àquela

época, ainda, um supedâneo constitu-

cional, como temos agora, mas procu-

rou levar a função social a uma digni-

dade maior, afastando o princípio do

superficies solo cedit. O Projeto está

limitado, não atende a essa finalidade

e, nesse ponto, parece ficar anacrôni-

co com um problema de tal magnitu-

de.

O Direito Civil tem de resolver

o problema da moradia e suas implica-

ções civis. A moradia é o grande pro-

blema. A propriedade é o grande direi-

to.

A propriedade tem de atender

à sua função social e isso está impres-

so na Constituição de 1934, com a sua

clareza, quando saiu a expressão con-

tida na Constituição alemã, de

“Weimar”, em uma página memorável,

ontológica, de que a propriedade obri-

ga, dá a notícia, o alcance e a dimen-

são do que vem a ser a função social

da propriedade, mostrando que a pro-

priedade importa na disposição da ri-

queza.

Fala-se muito hoje que o Direi-

to Civil perdeu essa dimensão econô-

mica, mas o Direito Real não; ele é ain-

da um Direito Econômico. O Direito

Real trata dos aspectos econômicos do

Direito e não perde isso. Nesses aspec-

tos econômicos, respeita-se a

titularidade do proprietário, mas se

enfoca hoje uma nova visão, que é

aquela da função social em que o pro-

prietário é o detentor social da rique-

za. Se ele detém a riqueza, que é a ter-

Page 54: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

ra, a propriedade – hoje nem tanto,

mas quando ainda se tinha aquela di-

mensão fisiocrática de que a riqueza é

a terra –, ele é o detentor social da ri-

queza. Logo, se ele detém a riqueza,

só ele pode, e deve, fazê-la frutificar,

ou seja, dar-lhe uma função social. Se

o faz, merece a proteção do Direito e o

apoio do Estado. Se não o faz, por que

lutar por ele? Quando a propriedade

abandonada é invadida, o proprietário

vem pedir socorro ao Estado. Mas in-

teressa ao Estado uma propriedade

estiolada? Logo, a função social tem

de ser dimensionada.

O nosso projeto é tímido a esse

respeito. Temos visto que a jurispru-

dência avançou. Hoje estamos viven-

do uma situação paroxística desse con-

flito entre a segurança da coisa julgada

e o problema da justa indenização.

Estamos com um problema

muito difícil, porque isso resvala com

outro princípio, e os princípios têm de

ser harmônicos. Parece-me que o prin-

cípio da coisa julgada é o superior.

A nossa Constituição de cunho

progressista colocou, no art. 225, o

conceito de desenvolvimento susten-

tado, de meio ambiente que pertence

a todos nós como um direito disperso,

pertencente a toda cidadania. O Proje-

to fala timidamente, ao tratar, no Direi-

to de Vizinhança, da proteção ao sos-

sego, à segurança do vizinho e põe

outros aspectos, como a proteção da

mata, etc. Isso não é Direito de vizi-

nho, mas Direito da Comunidade. En-

tão, o Código também está totalmente

desatualizado neste ponto e precisaria

adequar esses direitos superiores à

comunidade para compatibilizá-los.

Hoje, em uma desapropriação,

não se há de considerar valores. Nós,

quando juízes em São Paulo, chega-

mos a reconhecer indenizações da co-

bertura vegetal, mas hoje teríamos de-

cidido de outro modo.

Em um trabalho admirável, a

Procuradoria de São Paulo está fazen-

do um trabalho de reestudo, de

reaviventação de tudo aquilo que se

fez em matéria de desapropriação, mas

ela não pode voltar ao passado. Ela não

pode recuperar a falha, os deslizes dos

seus antigos funcionários, as faltas as

perícias, até os crimes, vamos dizer

assim, que não foram apurados opor-

tuna e temporaneamente, porque a

coisa julgada tem um prazo para ser

reaviventada.

Temos todos os princípios

constitucionais que precisam ser

atualizados e aplicados e a nossa tími-

da Constituição vem trazer, nessa

ablação do direito de propriedade, es-

sas restrições que até são justas.

Page 55: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

Muito haveria que falar a respei-

to desses temas, como, por exemplo,

o direito à moradia nos arrabaldes e

favelas, de que eu falava há vinte anos.

Hoje há um supedâneo constitucional

para ela, mostrando o anseio dessas

populações de terem a sua moradia.

O projeto trata de institutos tímidos

como o Direito de Superfície, mas não

se limita apenas a questões entre parti-

culares, muito ao contrário, ele mais

terá prestância no uso dos terrenos

públicos, porque é aí que se está fa-

zendo esse direito de ocupação. Histo-

ricamente, o Direito de Superfície,

como todos sabem, apareceu em

Roma com a ocupação do Monte

Aventino pela plebe, que era um ager

publicus. O direito de superfície é me-

lhor aproveitado nessas áreas inúteis

ou inexploradas do Estado, que pode

ceder ao particular.

Portanto, não é no Código Civil

que se vai resolver o problema da mo-

radia mediante o almejado instituto do

Direito de Superfície. A criação da pro-

priedade virtual – esta propriedade am-

bulante da qual posso retirar um valor

econômico e transferir para outro lu-

gar – é outro instituto que mereceria

ser colocado no projeto do Código Ci-

vil e não o vemos.

A locação social que, embora

não seja um verdadeiro direito real, está

implicada com o problema de mora-

dia. Na Alemanha, se o pobre só pode

pagar vinte marcos por sua casa

alugada, mas o imóvel vale cinqüenta,

o pretendente hipossuficiente paga vin-

te e o senhorio recebe cinqüenta, pois

o governo alemão supre os trinta da

diferença. É assim que se faz lá, não é

cortesia com o chapéu alheio, como

aqui no Brasil, onde congelam-se os

aluguéis e cortam-se os direitos do se-

nhorio. Lá, o Estado interfere.

São todos esses institutos que

não tiveram aqui uma adequada solu-

ção. É por isso que nós, que ainda es-

távamos em dúvida sobre a prestância

desse Projeto, reconhecendo que, em

matéria de direitos reais, ainda pode

haver uma transação, uma adaptação,

agora vemos que, com esses novos as-

sento constitucional e institutos que es-

tão surgindo, esses instrumentos não

serão suficientes para resolver a crise

econômica e social que se avizinha.

Apresentado-se o Código Civil, no dia

seguinte teremos a necessidade da sua

reforma.

Aliás, deixa-nos perplexo a ati-

tude do Governo que, ao mesmo tem-

po em que está ultimando a aprova-

ção do Projeto do Código Civil, opta

pela criação de uma comissão para fa-

zer uma consolidação das leis de famí-

lia. Qual é o propósito do Governo?

Na iminência da promulgação do novo

Código Civil, está tramitando, sob a

Page 56: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

orientação do Governo Federal, essa

Comissão presidida pelo Professor Síl-

vio Rodrigues.

Ainda não estou totalmente

convencido, mas me parece que o ca-

minho será por essa fragmentação, e

esse duro e maravilhoso Projeto do

Código estará fadado ao

sucumbimento por ter sido suplanta-

do pela voracidade do tempo,

malgrado o esforço, a autoridade e o

impulso de dois poderosos mestres,

que são o Prof. Miguel Reale e o Minis-

tro Moreira Alves, cujas autoridades

podem ainda dobrar o nosso Congres-

so Nacional.

RUI GERALDO CAMARGO VIANA: Pro-

fessor da Universidade de São Paulo.

Page 57: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

ATIVIDADE NEGOCIALNEWTON DE LUCCA

Page 58: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Não me parece que o Projeto do

Código Civil, pelo menos no

que toca à parte empresarial,

será um desastre ou, de outro lado,

uma salvação. Diria, de maneira bas-

tante sintética, que será praticamente

inócuo, que não trará grandes benefí-

cios nem causará maiores problemas.

Arrisco dizer que, se, por acaso, esse

Projeto fosse aprovado amanhã e pu-

blicado no Diário Oficial, poucas seri-

am as providências que se teria a to-

mar.

A matéria de títulos de crédito

é regulada por convenção internacio-

nal e permanecerá fora do Código; a

parte de títulos de crédito é uma repro-

dução do codice civile italiano de 1942,

conforme repetidamente foi dito pelo

seu saudoso autor, meu Professor, o

eminente Mauro Brandão Lopes. Dizia

ele que essa não era uma questão jurí-

dica, mas, sim, uma questão de políti-

ca legislativa – precisava escolher en-

tre deixar os títulos de crédito em inú-

meros casos ou abrir a porta para a

livre criação de títulos atípicos. Disse

também que seria para regular títulos

atípicos, não para regular letra de câm-

bio, nota promissória, cheque ou du-

plicata; seria para títulos que porventura

surgissem. Um dado que serve como

uma lição histórica é que os títulos de

crédito não foram inventados pelos ju-

ristas, mas pelos comerciantes.

Não vai mudar em nada o regi-

me jurídico do cheque, da nota pro-

missória, da letra de câmbio e, muito

menos, da nossa duplicata. A matéria

da propriedade industrial, do privilégio

do direito da marca está fora: parte re-

gulada por convenção internacional,

parte, pelo nosso Código da Proprie-

dade Industrial. Existem dois artigos no

Projeto sobre a sociedade anônima:

Art. 1.088 Na sociedade anôni-

ma ou companhia, o capital se divide

em ações, obrigando-se cada sócio ou

acionistas somente pelo valor nominal

das que subscrever ou adquirir.

Primeira lição que se aprende

nos bancos acadêmicos é que o capi-

tal, em uma sociedade por ações, é

dividido em ações.

Um outro artigo:

A sociedade anônima rege-se

por lei especial, aplicando-se, nos ca-

sos omissos, as disposições desse Có-

digo.

Em matéria de sociedade anô-

nima, é o que existe. Pergunto-me se

isso resolve, ou seja, um artigo para

dizer o óbvio, o que todos estamos can-

sados de saber e que já está na pró-

pria Lei das Sociedades por Ações; e

um segundo artigo para dizer que se

rege por lei especial e que, na eventu-

al omissão, o Código poderia servir de

Page 59: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

norma supletiva.

Posso asseverar a todos que

não existe norma no Código, nesse Pro-

jeto, que pudesse, eventualmente, ser-

vir de norma supletiva da Lei das Soci-

edades por Ações. Em verdade, a nos-

sa Lei n. 6.404, que teve um remendo

recente com a Lei n. 9.457 – feito prin-

cipalmente para retirar o direito de re-

cesso dos minoritários nos casos de

fusão, incorporação, dado o plano do

Governo de privatizar empresas –, é

uma lei muito mais avançada, tecnica-

mente mais aprimorada que o nosso

Projeto de Código Civil.

Sob o ponto de vista doutriná-

rio, seria uma estultice negar extremo

valor a esse esforço ciclópico que foi

feito pelo Prof. Miguel Reale, pela co-

missão de redação, pelo Senador

Josaphat Marinho – o projeto realmen-

te melhorou em muitos aspectos no

Senado – e pelo Ministro Moreira Alves.

Não tenho a menor dúvida de que esse

esforço é meritório. Mas, no âmbito do

Direito Comercial – não discuto o sig-

nificado dessa codificação nos âmbi-

tos do Direito Civil, do Direito de Famí-

lia, das sucessões e assim por diante –

, tenho ouvido muito mais críticas do

que elogios.

Estamos diante da nova reali-

dade do comércio internacional e do

comércio via internet, o que, evidente-

mente, provoca uma série de questões

jurídicas.

No Brasil, temos somente pro-

jetos que estão tramitando no nosso

Parlamento. A Comissão de Informática

da OAB acabou de entregar nas mãos

do Deputado Michel Temer um projeto

regulando toda a problemática da pro-

teção ao consumidor na internet; o pro-

blema da escrita criptografada, do va-

lor probante dos documentos emitidos

por computador e assim por diante. É

claro que a história está assumindo um

dever tão galopante e descrito de for-

ma impressionante por Oswald

Spengler na sua famosa obra O Ho-

mem e a Técnica, que não consegui-

mos mais sequer determinar que valo-

res históricos são duradouros.

Insisto nesse ponto porque

mais uma vez, o Prof. Miguel Reale fez

uma citação primorosa de Hegel, a qual

transcrevi:

No fundo, quem pôs a questão

nos seus devidos termos foi Hegel, ao

dizer que nada é mais conforme a dig-

nidade de um povo do que a obra

codificadora, desde que realizada com

senso histórico concreto, graças ao

qual se espelha, objetivamente, as for-

mas de querer da nacionalidade e se

preservam as fontes de sua continui-

dade cultural. Toda época é época de

codificação, quando se tem consciên-

Page 60: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

cia de seus valores históricos.

Pergunto: Quais serão os valo-

res históricos que o Prof. Miguel Reale

estaria convencido de que devemos

salvaguardar? No momento atual, em

que tudo se transforma com tal veloci-

dade – segundo muitos filósofos –

como, por exemplo, o filósofo francês

Georges Gursdof e Norberto Bobbio –,

a grande perda da História, atualmen-

te, é a incapacidade crítica de julgar

valores que possam permanecer. Vejo

frases como esta do filósofo Gursdof:

Houve épocas em que o pre-

sente ocupava seu tempo para avan-

çar para o futuro, apoiando-se no pas-

sado. Na fidelidade as tradições

constitutivas da cultura e da vida so-

cial. A história se desenvolvia num rit-

mo lento de uma inteligibilidade

imanente do dever. Essa continuidade

não existe mais. A aceleração do de-

senvolvimento técnico, cultural e so-

cial é um sinal dos tempos em que vi-

vemos. As coisas mudam tão depres-

sa que nem mesmo temos tempo de

tomar consciência da passagem, das

transformações verificadas. Essa

descontinuidade explica o conflito atu-

al entre as gerações. Cada classe etária

carrega consigo certezas e pressupos-

tos que rompem com os da classe

etária anterior. As opiniões não têm

mesmo tempo de amadurecer. Elas de-

saparecem como apareceram para dar

lugar a outras sem qualquer relaciona-

mento com as precedentes. Como nem

um nem outro tem o prazo para se fun-

dar como verdade, a veemência da afir-

mação se substitui ao rigor da demons-

tração.

Poderia citar Merleau-Ponty;

Octávio Paz, Prêmio Nobel da Literatu-

ra; Norberto Bobbio, que, apesar dos

seus mais de noventa anos, ainda nos

brinda com obras de uma lucidez im-

pecável. Há pouco, disse na sua auto-

biografia intelectual:

Cheguei sem perceber e sem,

ao menos por um instante, prever a

idade da velhice que outrora era cha-

mada idade da sabedoria. Antigamen-

te, quando o escoar do tempo era me-

nos acelerado, as transformações his-

tóricas eram mais lentas. Hoje não são

mais. Nas civilizações tradicionais, o

velho sempre representou o guardião

da tradição, o depositário do saber da

comunidade. Anatole France dizia que

os velhos amam demais as próprias

idéias e, por isso, são um obstáculo

ao progresso. Para garantir o progres-

so, os povos primitivos os comiam ou,

então, os colocavam nas academias,

o que é forma de embalsamá-los.

Recordo-me de um momento

emocionante, quando o Prof. Miguel

Reale dizia: Para mim, com a minha

idade, os segundos passam de manei-

Page 61: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

ra diferente, às vezes são milênios. É

incrível como há uma afinidade na

maneira de pensar do grande Norberto

Bobbio e do nosso Prof. Miguel Reale.

São tantas as citações que fica

a indagação expectante: quais são os

valores atuais – nesse momento em que

todos identificam uma profunda deso-

rientação do homem moderno, uma

crise axiológica em quase todos os va-

lores para os quais sempre reverencia-

mos – que, efetivamente, o Projeto do

Código Civil entende que deve preser-

var? A sociedade em comandita sim-

ples? Esses dois artigos da sociedade

por ações? Por exemplo, esse que é

tão jovial quanto pitoresco, o art. 816:

São equiparados ao jogo, sub-

metendo-se como tais ao disposto nos

artigos antecedentes, os contratos, sub-

títulos de bolsa, mercadorias ou valo-

res em que se estipule a liquidação,

exclusivamente pela diferença entre o

preço ajustado e a cotação que eles

tiverem no vencimento no ajuste.

Essa é uma reprodução de um

artigo do nosso Código Civil, em rela-

ção ao qual já o grande Clóvis

Beviláqua deblaterava que essa ques-

tão precisava ser deixada para a legis-

lação comercial, por ser muito mais

dinâmica.

Imaginem hoje dizermos que se

equipara ao jogo um contrato de natu-

reza diferencial, numa época em que

temos uma bolsa de valores e uma

bolsa de mercadorias de futuros, em

que temos contratos de warrant para

garantir posições de compradores e de

vendedores, das flutuações cambiais

e das flutuações de preço. É esse o

valor que queremos preservar?

Infelizmente – é doloroso dizer,

mas é verdade –, o Projeto envelheceu

naturalmente, como tudo, nessa vida.

Foram mais de 25 anos dormitando

nas gavetas do Congresso Nacional,

que suponho sejam de peroba ou de

alguma outra madeira bem dura.

O querido e saudoso Prof.

Sylvio Marcondes escreveu, há 25

anos, a parte que se chamava ativida-

de negocial:

Isso, praticamente, é só para

dar algumas diretrizes, e servirá para

pouco tempo, porque o Código Comer-

cial, a legislação comercial, como di-

zia o grande jurista italiano Mossa, pal-

pita viva, fora dos códigos, na realida-

de do dia-a-dia empresarial.

A matéria foi envelhecendo na-

turalmente, por mais geniais que fos-

sem os juristas. Coloco o verbo no pas-

sado tristemente porque a maioria

morreu. Sobejaram os Prof. Miguel

Reale e Moreira Alves, todos grandes

juristas, avançadíssimos para a sua

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Série Cadernos do CEJ, 20

época, mas os fatos se encarregaram

de deixar para trás.

Por exemplo – e referindo-me

sobre o tema atividade empresarial –,

o que é o Direito Comercial e qual o

seu âmago? É óbvio que não é mais a

teoria dos atos do comércio que está

no Código Comercial de 1850. Não re-

solvemos os problemas atuais com

este Código. Solucionamos tudo com

a legislação extravagante, que vai con-

tinuar fora do Projeto. A matéria

falimentar está totalmente fora. Os con-

tratos modernos, problemas com fran-

quia, leasing, faturização, nada será re-

solvido pelo Projeto. Pergunto-me:

onde estaria a unificação que se pre-

tendia fazer? Tinha razão os Prof. Sylvio

Marcondes e Mossa, quando diziam

que o Direito Comercial palpita vivo

fora dos Códigos, na realidade do dia-

a-dia.

O Prof. Miguel Reale dizia: Esta-

remos adotando a teoria da empresa,

um dos primeiros Códigos a colocar a

teoria da empresa.

Data maxima venia, não é o pri-

meiro. Foi do Código Civil italiano de

1942 que copiamos quase tudo. Disse

com todas as letras na 2.082, se não

me falha a memória: atividade empre-

sária é aquela atividade econômica or-

ganizada para circulação de bens ou

de serviços. Reproduzimos isso.

A teoria da empresa depende-

ria desse Projeto para ser aplicada? Co-

meçaram a dizer – o Prof. Rubens

Requião, saudoso eminente

comercialista do Paraná; depois em São

Paulo o Prof. Fábio Comparato; os sau-

dosos Prof. Oscar Barreto Filho e Joa-

quim Filomeno Costa – que a doutrina

se encarregou de mostrar que a teoria

dos atos de comércio já estava supe-

rada. E a jurisprudência, muito sabia-

mente – ou por conhecimento de cau-

sa, ou por uma espécie de intuição que

os juízes têm – cuidou de introduzir a

teoria da empresa.

Por exemplo, em matéria de re-

novação compulsória da locação, apli-

cou-se totalmente a teoria da empre-

sa. Concedia-se a renovação compul-

sória para alguém que não se caracte-

rizava como comerciante. Não era apli-

cada a teoria dos atos de comércio. O

juiz não pedia o contrato social para

saber se a pessoa possuía ou não di-

reito à renovação compulsória. A juris-

prudência queria saber se existia uma

atividade econômica organizada para

produção ou circulação de bens ou de

serviço; concedeu para escolas, para

hospitais, etc. Em matéria falimentar foi

a mesma coisa. Não estava mais em

causa saber se aquela empresa havia

ou não praticado atos de comércio

para, por exemplo, ter direito ao bene-

fício legal da concordata. Esse benefí-

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

cio foi concedido a pecuaristas em Mi-

nas Gerais, porque se reconheceu que

o que importava era a atividade eco-

nômica organizada e não a eventual

prática de atos comerciais.

A parte da atividade negocial foi

muito bem escrita pelo saudoso Prof.

Sylvio Marcondes. Se vivo fosse, per-

guntaria a ele se deixaria tudo como

está. Intimamente, tenho a certeza de

que, de tudo o que conheci a seu res-

peito, pela visão dinâmica que possuía

do fenômeno societário, do fenômeno

empresarial – se visse o mundo

cibernético de hoje, se visse que o sé-

culo XX foi chamado por um grande

jurista francês, Michael Vasseur, de le

siècle de papier (o século do papel), e

vamos passar agora, no século XXI,

para o século dos bytes, ou seja, a era

da informação –, não tenho a menor

dúvida de que o próprio professor se-

ria o primeiro a dizer que pouco ou

nada essa parte iria acrescentar ao Di-

reito Comercial brasileiro.

Resumindo o meu pensamen-

to em relação a toda essa parte: não

teremos, salvo um ou outro ponto,

maiores problemas. Digo isso porque

há artigos que realmente trarão alguns

problemas se o projeto for aprovado.

Em um ponto estou

irrestritamente de acordo com o Prof.

Miguel Reale: creio que não cabe mais

se discutir matéria que saiu aprovada

da Câmara dos Deputados e ementada

no Senado Federal, senão viraria tra-

gédia grega, que nunca finalizaria. O

Prof. Miguel Reale defende, com ardor,

a idéia de que não é possível:

A quase totalidade das críticas

feitas ao Projeto de Código Civil, já

aprovado pelo Senado Federal e devol-

vido à Câmara dos Deputados, resulta

de duas ignorâncias indesculpáveis: a

primeira, mais grave delas, é a falta de

conhecimento do texto; a segunda, é

quanto ao poder/dever que têm os de-

putados federais de se manifestar, tão-

somente, sobre as alterações

introduzidas pelos senadores, não lhes

sendo dado fazer novos aditamentos.

Efetivamente, a única forma de

isso não se tornar lei no País é se o

Presidente da República vetar ou se o

Poder Executivo retirar do Congresso

Nacional, porque foi iniciativa dele en-

caminhar para lá. A Câmara dos Depu-

tados só poderia pronunciar-se sobre

as emendas feitas no Senado Federal.

É o que está faltando para que esse

tópico venha, efetivamente, a se tor-

nar lei no Brasil.

Como disse, a maior parte é

inócua, mas alguns artigos irão trazer

problemas, como, por exemplo, a no-

ção do que é sociedade controlada:

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Série Cadernos do CEJ, 20

Art. 1.098 É controlada a soci-

edade cujo capital outra sociedade

possua mais de cinqüenta por cento

do capital com direito a voto.

Se ficarmos com esse conceito

de controle, estaremos perdidos. A re-

alidade empresarial de hoje está muito

adiante do que está na própria Lei n.

6.404. A nossa Lei das Sociedades por

Ações é considerada pelos

comercialistas uma das mais avança-

das do mundo em matéria de socieda-

de anônima, talvez perca somente para

a alemã. Aquela é um documento pri-

moroso, que previu, inclusive, a figura

do controle externo, o controle não só

por meio do voto. Vamos retroceder,

considerando controlada quem tem

50%, perdoem-me, mas chega a ser

algo impensável.

Os anos passam celeremente

sobre nós. Como dizia um poeta, meu

amigo, que se foi há pouco tempo, José

Paulo Paes: O tempo sabe fazer as suas

contas – e soube fazer neste caso. É

triste dizer, mas o Projeto já nasceu

velho.

Teria muitos exemplos para dar

sobre o título eletrônico. O Senador

Josaphat Marinho, em nosso último en-

contro em Brasília, disse que estáva-

mos fazendo uma revolução, pois pre-

víamos um título de crédito por via ele-

trônica. Fui procurá-lo após a conferên-

cia para dizer-lhe que, há mais de vin-

te anos, fui para a França a fim de es-

tudar o título emitido por computador.

Escrevi, inclusive, um livro sobre esse

assunto. Convoquei os bancos, e in-

troduzimos no Brasil a chamada “du-

plicata escritural”, que é a cobrança

eletrônica. O Projeto não resolverá

nada. Precisamos fazer o que se fez na

França, onde existe uma lei dando for-

ça executiva para o borderô que acom-

panha as fitas magnéticas. Aqui não

temos sequer a possibilidade de carac-

terizar a apresentação legal do título

para pagamento. Se qualquer um re-

ceber o boleto de cobrança e amanhã

quiser criar dificuldade em relação ao

credor, poderá fazê-lo, porque os ban-

cos não têm sequer o AR guardado de

que mandaram efetivamente o boleto

para cobrança, quer dizer, não se ca-

racteriza juridicamente a apresentação

legal a pagamento da duplicata.

O Ministro Moreira Alves disse-

me que essa questão seria resolvida

por meio de lei especial. É a conclu-

são a que chego: resolveremos os pro-

blemas pendentes com um punhado

de leis especiais, porque, com este

novo Projeto do Código Civil não esta-

remos solucionando nada, pelo menos

na parte relativa ao Direito Comercial.

NEWTON DE LUCCA: Juiz do Tribunal

Regional Federal da 3ª Região.

Page 65: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

AUTONOMIA PRIVADAFRANCISCO DOS SANTOS AMARAL NETO

Page 66: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

A inserção da figura do negócio

jurídico no Projeto do Código

Civil como categoria geral dos

atos jurídicos reintroduz, no Direito Ci-

vil brasileiro, com secular atraso, o de-

bate sobre essa figura jurídica e o res-

pectivo princípio da autonomia priva-

da. Digo “secular atraso” porque já Cló-

vis Beviláqua, considerando os prós e

os contras dessa categoria, achou con-

veniente não inseri-la no Projeto do Có-

digo Civil brasileiro no final do século

passado, isto é, do século XIX. Andou

bem, assim fazendo, por ser o negó-

cio jurídico que está no nosso Projeto

um conceito elaborado pelos

pandectistas e totalmente alheio à nos-

sa tradição jurídica. Sempre defendo

o ponto de vista de que o Direito é um

produto histórico e cultural e que o

nosso Direito tem de ser o reflexo do

nosso pensamento e da nossa cultura.

O negócio jurídico é uma figu-

ra extremamente abstrata, incapaz de

apreender de modo unitário atos de

natureza diversa, como os atos de Di-

reito de Família, os contratos, os testa-

mentos etc. Representa também uma

tendência para um excessivo

conceitualismo jurídico que não con-

diz com a realidade prática do Direito

contemporâneo, marcado pelos novos

conflitos de interesses que é chamado

a resolver. Também no plano ideológi-

co tem-se contestado essa figura, con-

siderada um símbolo do individualis-

mo exacerbado. Contrasta, enfim, com

a realidade concreta do contrato, a sua

mais importante espécie, em nada con-

tribuindo para a realização do Direito.

Isso porque, como sabemos, o Direito

é uma ciência prática, que se destina a

resolver problemas, conflitos de inte-

resses. Estamos, inclusive, substituin-

do gradativamente o chamado “pensa-

mento sistemático do século XIX” por

um pensamento problemático, dentro

do qual, diariamente, nós, operadores,

juízes e advogados, somos levados a

enfrentar novos problemas e a criar

novas respostas, apesar dos modelos

que temos à disposição.

A inclusão dessa figura “negó-

cio jurídico” no nosso Projeto é, toda-

via, coerente com o modelo jurídico

formalista abstrato e dogmático do sé-

culo XIX, principalmente de origem ale-

mã.

Para falar de negócio jurídico,

que é uma categoria extremamente

abstrata, é necessário uma brevíssima

referência à autonomia privada, que é

o poder que os particulares têm de re-

gular, pelo exercício da própria vonta-

de, as relações de que participem, es-

tabelecendo o conteúdo e a respecti-

va disciplina jurídica. Sinônimo da au-

tonomia da vontade para grande parte

da doutrina contemporânea, com ela,

porém, não se confunde. A expressão

“autonomia da vontade”, penso, tem

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

uma conotação subjetiva, psicológica,

enquanto que a autonomia privada

marca o poder da vontade no Direito

de modo objetivo, concreto e real.

Devo dizer que essa teoria da

autonomia privada só se desenvolveu,

e muito, na ciência jurídica alemã e na

italiana. Na ciência jurídica ibérica, par-

ticularmente na portuguesa, e muito

menos no Brasil, não temos obra so-

bre autonomia privada, até porque não

temos uma tradição político-jurídica

que permitisse ao indivíduo exercer

uma atividade que pudesse ser consi-

derada jurígena, isto é, capaz de ter

eficácia jurídica.

Sob o ponto de vista

institucional e estrutural dominante na

Teoria do Direito, a autonomia privada

constitui-se um dos princípios funda-

mentais do sistema de Direito Privado

no reconhecimento da existência de

um âmbito particular de atuação com

eficácia normativa. Trata-se da proje-

ção, no Direito, do personalismo éti-

co, uma concepção axiológica da pes-

soa como centro e destinatário da or-

dem jurídica privada, sem o que a pes-

soa humana, embora formalmente

revestida da titularidade jurídica, nada

mais seria que mero instrumento a ser-

viço da sociedade.

Sob o ponto de vista técnico,

que revela a importância prática do

princípio, a autonomia privada é o po-

der jurídico particular de criar, modifi-

car ou extinguir situações jurídicas pró-

prias ou de outrem. Funciona, como

certas opiniões, como um princípio

informador do sistema jurídico, isto é,

como um princípio aberto no sentido

de que não se apresenta como norma

de Direito, mas como uma idéia dire-

triz ou justificadora da configuração e

funcionamento do próprio sistema ju-

rídico. Funciona ainda como critério

interpretativo, já que aponta o cami-

nho a seguir na pesquisa do sentido e

alcance da norma jurídica, e de que

são exemplos, no Direito brasileiro, os

arts. 85, 1.090, 1.483 e 1.666 do Có-

digo Civil.

O princípio da autonomia pri-

vada faz presumir que, em matéria de

Direito Patrimonial, que é o seu campo

por excelência de aplicação, as normas

jurídicas são de natureza dispositiva ou

supletiva. No caso de serem cogentes,

a sua interpretação é restritiva, como

se vê, por exemplo, com as normas

do art. 1.133 do Código Civil. Tal po-

der não é, porém, originário e ilimita-

do; deriva do ordenamento jurídico que

o reconhece e o exerce nos limites que

fixa, os quais são crescentes quando

da passagem do Estado de Direito para

o estado intervencionista ou

assistencial. Superado esse estado

assistencial pela própria falência que

hoje vemos no Estado, renova-se a

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Série Cadernos do CEJ, 20

importância desse poder, máxime

quando aplicado nas relações novas

da globalização, nos tratados e conven-

ções internacionais, nos contratos ad-

ministrativos, nos contratos econômi-

cos, no Direito da Concorrência etc.

Sua esfera de aplicação é basicamen-

te o Direito Patrimonial; não se aplica,

assim, ou aplica-se de modo

restritíssimo, em matéria de Estado e

capacidade das pessoas e família.

Sempre digo que o casamento

não é negócio jurídico. Pode ser um

bom negócio, mas não negócio jurídi-

co, porque este é expressão da auto-

nomia privada, e no Direito de Família

não temos autonomia privada. Que li-

berdade temos para agir diversamente

do que está no Código? A única vez

que dizemos sim é quando estamos na

frente do padre e ele pergunta: “É da

sua livre e espontânea vontade casar?”

Bom, eles já estão lá. O que vão dizer?

“Sim”. E casam. Fora disso, não temos

condições de modificar nada; não po-

demos modificar o regime de bens;

não podemos modificar, embora algu-

mas pessoas tentem, os efeitos do ca-

samento, que estão no art. 231, que

diz que são efeitos recíprocos a fideli-

dade, a mútua assistência, a coabita-

ção, o sustento, a guarda e a educa-

ção da prole. Mesmo que alguns côn-

juges queiram mudar essa disposição,

e muitos fazem força para mudar, não

há condição, porque isso é cogente;

não há autonomia privada no campo

do Direito de Família.

Eventualmente se diz que o ca-

samento é um negócio jurídico. A meu

ver, não se adota a posição historica-

mente correta que é a de situar o ne-

gócio jurídico exclusivamente no cam-

po patrimonial. O campo de realização

do negócio jurídico é o Direito das Obri-

gações por excelência, em que o con-

trato é a lei, nas suas diversas espéci-

es de liberdade contratual, promessas

de contratar, cláusulas gerais e garan-

tias.

No Direito Sucessório, realiza-

se no testamento o negócio jurídico,

em que a pessoa dispõe dos seus bens

para depois da morte. Os limites da

autonomia privada são a ordem públi-

ca e os bons costumes, entendendo-

se ordem pública como o conjunto de

normas jurídicas que regulam e prote-

gem os interesses fundamentais da so-

ciedade e do Estado e aquelas que, no

Direito Privado, estabelecem as bases

jurídicas fundamentais da ordem eco-

nômica, e dos bons costumes, como

o conjunto de regras morais que for-

mam a mentalidade de um povo e se

expressam em princípios como os da

lealdade contratual, da perempção de

lenocínio, dos contratos matrimoniais,

do jogo etc.

A autonomia privada distingue-

Page 69: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

se da autonomia pública pelo fato de

ser esta o poder atribuído ao Estado,

ou a seus órgãos, de criar direito, nos

limites da sua competência, para a pro-

teção dos interesses fundamentais da

sociedade. Seu objetivo é de natureza

pública; o seu poder é originário e dis-

cricionário. Já na autonomia privada,

os interesses são particulares e seu

exercício é a manifestação de liberda-

de, derivado e reconhecido pela ordem

estatal; seu instrumento é o negócio

jurídico.

O que preocupa é que nós, no

Brasil, continuamos cultivando a ten-

dência à imitação. O Direito, particu-

larmente o Direito Civil, possui quase

trinta séculos de formação histórica e

jurisprudencial, com vários extratos, e

teve, na era moderna, depois do Esta-

do de Direito, uma significativa cons-

trução científica por parte da

pandectística alemã. Vamos copiar mo-

delos estranhos sem que tenhamos

tido as condições culturais e históricas

para esse modelo? Se o negócio jurídi-

co é a expressão desse princípio da

autonomia privada, será que no Brasil

a tivemos e agora podemos estabele-

cer uma figura unitária, geral e abstra-

ta como o negócio jurídico? Na pró-

pria Alemanha começaram a criar uma

outra categoria dos atos jurídicos que

não tivessem as mesmas característi-

cas do negócio jurídico. Por quê? Por-

que eles, que eram os pais da criança,

verificaram que o negócio jurídico não

poderia ter a pretensão de generalida-

de que nós, no Brasil, estamos estabe-

lecendo.

O que me preocupa é essa nos-

sa falta de consciência histórica e cul-

tural que caracteriza quem faz um Pro-

jeto do Código Civil totalmente divorci-

ado da nossa realidade. Nunca disse

que o Projeto envelheceu no prazo de

25 anos. Diria: “Discordo, esse Projeto

já nasceu velho, porque, em 1975, pre-

parou-se um projeto para enfrentar uma

realidade completamente diferente da-

quela que o projeto pretendia realizar.

Naquele projeto, tiradas as pequenas

modificações, com alguns retrocessos,

independente do aspecto material,

como, por exemplo, a reintrodução da

lesão nos contratos, Clóvis Beviláqua

já hesitava em colocar essa figura, e

depois a retirou, porque havia profun-

da controvérsia”.

Se em 1975 vamos fazer o mes-

mo modelo de 1890 ou 1895, como é

que podemos ter a pretensão, nós, ju-

ristas, de realizar justiça em uma soci-

edade conturbada como a nossa, res-

pondendo a novos desafios com mo-

delos antigos?

Ainda uma referência à autono-

mia privada: Quais são as conseqüên-

cias jurídicas do princípio da autono-

mia privada?

Conseqüências imediatas do re-

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Série Cadernos do CEJ, 20

conhecimento da autonomia privada

são, em matéria constitucional, a ga-

rantia da liberdade de iniciativa econô-

mica; no Direito Civil, que é seu cam-

po de excelência, os princípios

contratuais da liberdade contratual, da

força obrigatória dos contratos, do efei-

to relativo dos contratos, do

consensualismo e, no campo

sucessório, o da liberdade de testar e

de estabelecer o conteúdo do testa-

mento.

Para aqueles que aceitam a von-

tade como poder jurídico, o Prof.

Miguel Reale inclui a vontade negocial,

a vontade particular, naquela pirâmide

das fontes do Direito, e o que me pare-

ce importante é a introdução do negó-

cio jurídico, particularmente referido à

temática da autonomia privada, que se

refletirá na questão das fontes do Di-

reito brasileiro. Para os que aceitam a

vontade como poder jurídico, a con-

cepção normativa do negócio jurídico

é a consideração do negócio como fon-

te de normas jurídicas e passa a ser

matéria que se inclui no âmbito da filo-

sofia da Teoria Geral do Direito.

A liberdade de iniciativa econô-

mica: Vejam que a introdução dessa

figura nova – para nós, no negócio ju-

rídico, no Projeto – implica estabelecer

um eixo com a Constituição, no que

diz respeito à liberdade e à iniciativa

econômica, e também um ponto prin-

cipal de subordinação com a figura

concreta – o contrato, que é a princi-

pal espécie do negócio jurídico.

Então, teremos uma linha ou

instituto que vem da Constituição, com

a permissão da liberdade de iniciativa

econômica, depois passando pela figu-

ra abstrata do negócio jurídico e se

concretizando no contrato.

A liberdade de iniciativa econô-

mica é a expressão constitucional da

autonomia privada, como princípio

básico da ordem econômica e social.

São conceitos correlatos, porém não-

coincidentes, havendo entre eles uma

relação instrumental, à medida que

primeiro se realiza por meio do segun-

do e este, por meio do negócio jurídi-

co.

Quais são as críticas que se fa-

zem à autonomia privada? Reporto-me

aos nossos autores estrangeiros, prin-

cipalmente alemães e italianos, que

mais trataram dessa matéria. No Direi-

to brasileiro, que eu saiba, tirando, tal-

vez, o livro de José Abreu sobre Negó-

cios Jurídicos, não há estudos profun-

dos a respeito de autonomia privada.

Em um livro de minha autoria, que já

está na 3ª edição – Editora Renovar –

trato da autonomia privada. Pergunto-

me como os autores brasileiros que

conhecem o assunto inserirão uma

categoria, que é a expressão da auto-

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

nomia privada, no Projeto, sem que

haja um amplo e pleno debate e um

conhecimento maior do que seja a cha-

mada “autonomia privada”?

Quais são as críticas que se

podem fazer à autonomia privada? Sob

o ponto de vista filosófico, alega-se que

é a expressão do mais puro individua-

lismo, e que a esse individualismo se

contrapõem tendências sociais da Ida-

de Contemporânea. O homem é um

ser social que vive, necessariamente,

em grupo, o que lhe impõe inevitáveis

restrições e condicionamentos na sua

capacidade de agir. Também, sob o

ponto de vista moral, demonstra-se que

os princípios da liberdade e da igual-

dade não se realizam harmonicamente.

A igualdade perante a lei é meramente

formal; no campo material, as desigual-

dades são profundas.

O exercício da liberdade

contratual, por exemplo, pode levar os

segmentos sociais mais carentes de

recursos e, por isso mesmo, desprovi-

dos do poder de confronto ou negocia-

ção, a acentuados desníveis econômi-

cos, devendo o Estado intervir para

equilibrar o poder das partes contra-

tantes, por meio de normas imperati-

vas. O legislador pode limitar, assim, a

autonomia privada, para o fim de pro-

teger os pontos mais fracos da relação

jurídica patrimonial – é o que se verifi-

ca nos contratos de consumidor, loca-

ção, empréstimo, seguros, operações

financeiras típicas.

Sob o ponto de vista econômi-

co, pode-se justificar a intervenção do

Estado na organização e disciplina dos

setores básicos da economia, alegan-

do-se a inconveniência, a impossibili-

dade até de se deixar as forças do mer-

cado na condução da economia naci-

onal, principalmente, nos países como

o Brasil, em vias de desenvolvimento,

onde são mais flagrantes as

disparidades econômicas e sociais.

Finalmente – sob o ponto de

vista ideológico –, reconhece-se que o

princípio da autonomia privada encon-

traria a sua razão de ser no mais puro

liberalismo econômico, na época em

que o Estado tinha função mais políti-

ca do que econômica ou social. Era o

Estado de Direito, organizado juridica-

mente para garantir o respeito aos di-

reitos individuais, que encontravam,

nesse princípio, o instrumento da sua

plena realização. Com a revolução in-

dustrial e tecnológica e os problemas

sociais dela decorrentes – com duas

guerras mundiais de permeio –, surgiu

o Estado social intervencionista para

orientar a vida econômica, protegen-

do os mais desfavorecidos e promo-

vendo iguais oportunidades de acesso

aos bens e vantagens da sociedade

contemporânea.

No campo do Direito Civil, ca-

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Série Cadernos do CEJ, 20

minhou-se pretensamente para a sua

socialização, com primados interesses

sociais sobre os individuais e, conse-

qüentemente, a redução do âmbito de

atuação soberana da pessoa no cam-

po de Direito.

O fenômeno da globalização,

com a superação do Estado pós-social

inverteu, porém, essa tendência, am-

pliando-se o campo de atuação do prin-

cípio da autonomia, principalmente nas

relações econômicas internacionais.

Em última análise, a questão da

autonomia privada repõe aquele pro-

blema dos limites entre Estado e socie-

dade civil, entre público e privado –

chamo a atenção para um tema que

não tem sido bem estudado no Brasil,

que diz respeito aos efeitos do Estado

moderno, do Estado de Direito, do Es-

tado burguês, que nasceu da Revolu-

ção Francesa, sobre o Direito Civil. E é

interessante como algumas questões

atuais refletem essa problemática. Em

primeiro lugar, o Estado de Direito, o

Estado moderno, o Estado burguês da

Revolução Francesa criou o chamado

primado da lei: todos cultivamos o

fetichismo da lei; em segundo lugar,

separou nitidamente os Poderes

Legislativo, Executivo e Judiciário, ca-

bendo ao Legislativo a criação do Di-

reito, ao Poder Judiciário, a sua aplica-

ção, e ao Poder Executivo, a execução

das funções administrativas e o respei-

to aos direitos individuais. Há ainda

uma contribuição do Estado de Direi-

to: a nítida separação entre Estado e

sociedade civil, entre público e priva-

do, a crença na generalidade e na abs-

tração das normas jurídicas, a criação

da figura abstrata do sujeito de Direito;

agora, pergunto: isso, criado há duzen-

tos anos, ainda permanece? Hoje, já

não se fala mais que o Poder Legislativo

cria o Direito e o magistrado o aplica.

O magistrado cria a norma jurídica

para o caso que lhe é posto, evidente-

mente sob a orientação dos critérios

estabelecidos na lei. O próprio Poder

Legislativo, que antigamente só elabo-

rava a lei, hoje, também, cria o seu pró-

prio Direito. O Poder Executivo, que

apenas tinha a função executiva, hoje,

cria Direito: já chegam a quase duas

mil as medidas provisórias editadas.

Com relação à questão da abs-

tração e generalização da norma jurí-

dica, que aprendemos nos manuais,

nas faculdades, observamos, hoje, a

criação de normas jurídicas concretas

e individuais. A chamada “figura abs-

trata do sujeito de Direito” está sendo

substituída por novos grupos que par-

ticipam desse pluralismo jurídico. Que-

ro dizer com isso que, no Brasil, ainda

estamos trabalhando com modelos que

vêm do Estado de Direito de duzentos

anos atrás, e não temos condições de

enfrentar uma nova realidade, novos

desafios, a não ser com modelos do

Page 73: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

século passado. Será que a nova soci-

edade – extremamente complexa,

pluralista, fragmentada, cheia de gru-

pos participando do comércio jurídico,

dominada pela ciência e informação –

apresenta os mesmos desafios resolvi-

dos pelo Código de Beviláqua? E vêm

os nossos autores, projetistas, e criam

um Projeto dizendo que manterão a

estrutura do Código Civil, criando al-

guma coisa de novo e introduzindo a

legislação extravagante, que é um ou-

tro problema seríssimo, pois não con-

sidera o Direito Civil como fonte subsi-

diária. A legislação extravagante, em

matéria de interpretação e integração,

dirige-se diretamente à Constituição.

Não podemos colocar o Código Civil

acima da legislação extravagante, mas

ao lado dela; vejamos os casos do Di-

reito do Consumidor.

Essas contradições ou até des-

conhecimento dessas questões de in-

terpretação e integração das fontes do

Direito causam perplexidade em face

da ligeireza com que se procuram cri-

ar soluções jurídicas para novos pro-

blemas com conhecimentos, categori-

as, institutos do século passado.

Uma última referência à auto-

nomia privada, sob um aspecto funcio-

nal. No século passado, a ciência jurí-

dica e o Código Civil estavam no cen-

tro do Universo e, gradativamente, fo-

ram perdendo campo para as Ciências

Sociais e, hoje, o Direito não é apenas

objeto de conhecimento da Ciência

Jurídica; há vários saberes jurídicos –

prova disso são os currículos das fa-

culdades, que instituem logo nos pri-

meiros períodos, o estudo de Sociolo-

gia, Filosofia, Economia e História. O

jurista, hoje, tem de ser interdisciplinar;

não se consegue compreender um fe-

nômeno aparentemente jurídico, sem

que tenhamos uma percepção socio-

lógica, filosófica, econômica e históri-

ca.

No campo da Sociologia, da

funcionalização do instituto jurídico,

diria que falar em função social no Di-

reito significa uma perspectiva não-in-

dividual, sendo um critério de

valoração de situações jurídicas

conexas ao desenvolvimento das ativi-

dades de ordem econômica. A idéia de

função social deve ser entendida, por-

tanto, em relação ao quadro ideológi-

co e sistemático em que se desenvol-

ve, abrindo a discussão em torno da

possibilidade de serem realizados os

interesses sociais, sem desconsiderar

ou eliminar os do indivíduo. Sistemati-

camente, atua no âmbito dos fins bási-

cos da propriedade, da garantia de li-

berdade e, conseqüentemente, da afir-

mação da pessoa. E, ainda, historica-

mente, o recurso à função social de-

monstra a consciência política e jurídi-

ca, se realizados os interesses públi-

cos de modo diverso do até então pro-

Page 74: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

posto pela ciência tradicional do Direi-

to Privado, liberal e capitalista. Neste

particular, pode-se dizer que a crença

na função social do Direito revoga um

dos pontos cardeais do sistema

privatista: o direito subjetivo, modela-

do sobre a estrutura da propriedade

absoluta, o que poderia sugerir uma

certa incompatibilidade entre a idéia de

função social e a própria natureza do

direito subjetivo.

O que se assenta, ao final das

contas, é que a função social configu-

ra-se como princípio superior

ordenador da disciplina, da proprieda-

de e do contrato, legitimando a inter-

venção do Estado, por meio de nor-

mas excepcionais e operando, ainda,

como critério de interpretação jurídica.

A função social é, por isso, um princí-

pio geral, um verdadeiro standard jurí-

dico, uma diretiva mais ou menos fle-

xível, uma indicação programática, que

não colide nem torna ineficazes os di-

reitos subjetivos, orientando-nos, nos

respectivos exercícios, na direção mais

consentânea com o bem comum e a

justiça social. E é precisamente o con-

trato, instrumento da autonomia priva-

da, o campo de maior aceitação dessa

teoria, acolhida, primeiramente, pelo

Código Civil italiano, no art. 1.322, se-

gundo o qual podem as partes deter-

minar livremente o conteúdo do con-

trato nos limites impostos por lei e ce-

lebrar contratos atípicos ou

inominados, desde que destinados a

realizar interesse de tutela, segundo o

ordenamento jurídico. Do mesmo

modo, o Código Civil português, no seu

art. 405, ao dispor que as partes po-

dem livremente fixar o conteúdo do

contrato nos limites da lei e celebrar

contratos diferentes dos previstos no

mesmo Código, completa-se com o art.

280, que fixa limite ao exercício da

autonomia privada, estabelecendo a

nulidade do negócio jurídico, contrá-

rio à ordem pública e aos bons costu-

mes.

Por sua vez, o Projeto do Códi-

go Civil brasileiro dispõe, no seu art.

2.421, que a liberdade de contratar será

exercida em razão e nos limites da fun-

ção social do contrato.

Há de se reconhecer, todavia,

que, não obstante o princípio da auto-

nomia privada apresentar-se bastante

limitado nas possibilidades do seu exer-

cício para a ingerência do Estado na

economia, hoje em dia menor, pela

tendência à privatização e à

desregulamentação que perpassa pe-

las nações desenvolvidas no mundo

ocidental, sob o ponto de vista políti-

co, por outro lado, permanece ainda

como poder de atuação político–jurídi-

ca individual, com eficácia jurídica,

garantia de sobrevivência de realização

dos postulados básicos da liberdade e

do reconhecimento do valor jurídico

Page 75: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

da pessoa humana. O seu instrumen-

to permanecerá sendo o negócio jurí-

dico, mas a sua concretização se faz

nos contratos em menor escala, nas

disposições testamentárias.

Renovo que estamos tentando

enfrentar uma nova realidade com

modelos antigos, o que está condena-

do ao fracasso. Reitero também que

são os operadores do Direito, os advo-

gados e os magistrados, os grandes e

possíveis artífices no processo de cons-

trução jurídica. E quanto a nós, pelo

menos quanto a mim, recordaria o Fi-

lósofo Kant, que, no final do século

XVII, dizia, jocosamente, que nunca se

deveria perguntar aos juristas o que é

o Direito, pois eles não saberiam res-

ponder. Poder-se-ia perguntar-lhes o

que é de direito; isso, talvez, soubes-

sem responder. Dizia também para não

perguntarem a filósofos o que é a ver-

dade, pois temos a liberdade de não

sabermos.

FRANCISCO DOS SANTOS AMARAL

NETO: Professor Titular da Universida-

de Federal do Rio de Janeiro.

Page 76: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

ALIMENTOSFRANCISCO JOSÉ CAHALI

Page 77: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Temos hoje, em matéria de ali-

mentos, algumas dúvidas e

questões que estão sendo de-

batidas. O que verificaremos agora é

se essas tendências que existem nos

tribunais, doutrina e jurisprudência es-

tariam ou não sendo superadas, resol-

vidas pelo Projeto do Código Civil para,

a partir daí, definir se essa mudança

projetada, realmente, tem alguma utili-

dade, justificativa, ou se valeria a pena

manter o que, efetivamente, temos

hoje.

No Direito de Família, a ques-

tão de alimentos, ao lado do

concubinato, é a que mais provoca

movimento no Judiciário; as questões

relacionadas à separação propriamen-

te dita não têm tanta intensidade. A

quantidade de processos envolvendo

concubinato é significativa, em virtude

do novo regramento, e a questão en-

volvendo alimentos, pela matéria em

que se discute a necessidade de sub-

sistência, pois as mudanças econômi-

cas atingem diretamente o padrão de

vida das pessoas e levam à necessida-

de de se pagar mais ou menos pen-

são.

Temos, ainda, algumas ques-

tões pendentes de uma solução defini-

tiva, mas que já encontram um deter-

minado caminho na doutrina e juris-

prudência.

Começaremos a falar a respei-

to da questão da renúncia relacionada

à separação judicial, e não aos alimen-

tos decorrentes de parentesco. Os côn-

juges poderiam promover a renúncia

à pensão num acordo de separação ju-

dicial ou num divórcio? Como essa

matéria vem sendo tratada? É de ex-

trema importância esse assunto e exis-

te divergência no campo doutrinário e

também jurisprudencial.

Na doutrina, fazemos referência

às posições trazidas pelo Prof. Yussef

Cahali, que, inclusive, dedica várias

páginas do seu livro ao assunto, mos-

trando, realmente, a dúvida que existe

a respeito.

Na jurisprudência, temos a

Súmula n. 379 do Supremo Tribunal

Federal, que consignou, antes da Lei

do Divórcio, a impossibilidade de re-

núncia da pensão alimentícia num

acordo de desquite, na época – atual-

mente separação judicial. Ocorre que,

mesmo no Judiciário, tal súmula vem

sendo revista e analisada de outra for-

ma. O próprio Superior Tribunal de Jus-

tiça a vem interpretando de uma outra

maneira e permitindo a renúncia da

pensão alimentícia, contrariando a

súmula. E, nos tribunais estaduais e

mesmo na doutrina, encontramos uma

série de orientações sobre essa ques-

tão, como, por exemplo, decisões do

Tribunal de Justiça do Distrito Federal,

Page 78: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

fiéis à súmula, dizendo que não cabe

a renúncia até mesmo na dissolução

de união estável. Temos outras orien-

tações, por exemplo, do Tribunal de

São Paulo, onde a tendência maior é

admitir a renúncia. Ocorrendo a renún-

cia antes do divórcio, a modificação

poderia ser feita por meio de uma mo-

dificação de cláusula daquele acordo

e, após o divórcio, seria definitiva, não

permitindo uma revisão, uma posição

intermediária. Encontramos, efetiva-

mente, orientações em todos os senti-

dos, mas trata-se de uma questão ain-

da tormentosa e que enseja vários de-

bates na doutrina e jurisprudência.

Outro aspecto que já sinaliza

um determinado caminho é a questão

da revisional de alimentos, também,

entre cônjuges. Existe uma tendência

de limitar essa ação revisional aos ali-

mentos decorrentes só do parentesco.

Há uma orientação antiga, do conheci-

mento de todos, de que aquela pes-

soa, aquela mulher que se separa de

um soldado não teria direito a uma

pensão com base no salário de um ca-

pitão. Trata-se aí de uma decisão com

base no conteúdo, no mérito da ques-

tão, da possibilidade de revisão pelo

aumento de disponibilidade do mari-

do, por força exclusivamente de um

desempenho pessoal; a ex-mulher, que

em nada contribuiu, ficaria privada des-

se benefício. Esta era uma orientação

que vinha prevalecendo, mas, atual-

mente, há um outro passo a ser dado

nessa matéria, com base num acórdão

do Supremo Tribunal Federal, da lavra

do Ministro Marco Aurélio, consignan-

do que, no caso de alimentos decor-

rentes da dissolução de sociedade con-

jugal, não cabe a revisão da pensão. A

revisão da pensão, prevista, de um

lado, no art. 401 do Código Civil, que

trata de alimentos decorrentes do pa-

rentesco, e, de outro, no art. 28 da Lei

do Divórcio, é destinada exclusivamen-

te aos alimentos decorrentes do paren-

tesco. Diz o art. 28 que os alimentos

devidos pelos pais e fixados na sen-

tença de separação poderão ser alte-

rados a qualquer tempo; não fala em

alimentos determinados no processo

de separação. Nesse sentido, é a ori-

entação fixada por esse precedente. A

revisão não seria possível por falta de

interesse jurídico, impossibilidade jurí-

dica do pedido, diferentemente daquela

situação entre soldado e capitão, que

já é propriamente o mérito da ques-

tão.

A questão da revisional de ali-

mentos já é um início de orientação

que, na verdade, demonstra o trata-

mento que vem sendo dado pela juris-

prudência, embora com decisões em

todos os sentidos, em separar os ali-

mentos decorrentes do parentesco dos

decorrentes da dissolução da socieda-

de conjugal.

Page 79: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

A discussão gravita em torno da

natureza jurídica dos alimentos decor-

rentes do parentesco, que é de caráter

assistencial – para a subsistência de

quem os reclama –, para aqueles de-

correntes da dissolução da sociedade

conjugal, que, alegam os autores, teri-

am uma natureza indenizatório-puniti-

va: a intenção de impor ao responsá-

vel pela separação o compromisso de

continuar respondendo pela manuten-

ção, como prolongamento do dever de

mútua assistência, daquele que ficou

privado do auxílio e da expectativa que

possuía com relação ao matrimônio,

em função da separação. O outro, que

o privou dessa expectativa, ficaria, en-

tão, responsável pela sua subsistência.

O que nos importa, neste mo-

mento, é demonstrar que a tendência

tem sido separar a orientação entre os

alimentos decorrentes da dissolução

da sociedade conjugal e aqueles de-

correntes do parentesco. Por que faço

essas considerações aqui, se estamos

analisando o Projeto do Código Civil?

Porque, no Projeto houve uma modifi-

cação dessa estrutura, modelo, que a

jurisprudência e a doutrina – bem ou

mal – já vinham separando. Com o Pro-

jeto do Código Civil, está sendo pro-

posta a inclusão dos alimentos decor-

rentes da dissolução da sociedade con-

jugal no capítulo do Código Civil, em

conjunto, com os alimentos decorren-

tes dos vínculos de parentesco consan-

güíneo. Com essa mudança de estru-

tura, na verdade, teríamos de ter uma

nova formulação de orientação a res-

peito, principalmente, desses dois te-

mas. Não porque, expressamente, haja

uma previsão ou tenha sido posto que

agora não cabe revisional ou cabe nos

alimentos para os ex-cônjuges, ou mes-

mo a questão da renúncia, mas, por-

que, mudando essa estrutura – e, no

meu entender, até contrariando a ten-

dência que vinha sendo adotada pelos

tribunais –, teremos essa relevante re-

percussão na orientação que deverá

agora prevalecer sobre esses dois te-

mas.

A conseqüência será, por exem-

plo, no caso de renúncia, incluídos os

alimentos num único capítulo genéri-

co e com a previsão expressa no art.

1.735 proposto, dizendo que é desca-

bida, que a pensão alimentícia poderá

deixar de ser exercida, mas não renun-

ciada. Naturalmente, esta regra, auto-

maticamente, será aplicada nos alimen-

tos decorrentes da dissolução da socie-

dade conjugal. Não se sabe se, por

opção ou descuido, a realidade será

essa; será analisada a matéria sob ou-

tra conotação, não mais nos alimen-

tos previstos numa lei específica, mas

em conjunto com a regra geral dos ali-

mentos. Embora o art. 1.732 do pró-

prio Projeto sinalize a possibilidade, ao

dizer que, se um dos cônjuges separa-

dos judicialmente vier a necessitar de

Page 80: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

alimentos, será o outro obrigado a

prestá-los, mediante pensão a ser fixa-

da pelo juiz, caso não tenha sido con-

siderado responsável pela separação.

Essa regra, efetivamente, foi para não

mais permitir a renúncia, confirmando

o entendimento da Súmula n. 379.

Uma observação que deverá

também ser objeto de análise é que,

se o Projeto fala em separação judicial,

não se refere ao divórcio. E com o di-

vórcio direto ou por conversão, como

ficaria a questão da renúncia, princi-

palmente hoje, com o divórcio direto,

dotado de um procedimento que aca-

ba sendo muito mais fácil do que o da

própria separação, porque, segundo a

orientação do Superior Tribunal de Jus-

tiça, já sumulada, não precisaria nem

de partilha de bens? Trata-se de uma

situação diferenciada a da separação

e a da conversão do divórcio, embora

controversa. Temos uma regra que fala

em separação e uma outra genérica,

em que não cabe renúncia dos alimen-

tos. Ela será estendida ou não? Como

ficará esse contexto? No momento em

que a tendência era em função do tra-

tamento separado dos dois institutos –

e, no meu entender, merecidamente,

cada um com uma repercussão jurídi-

ca, uma aplicação de determinadas

regras específicas, um tratamento jurí-

dico próprio –, teríamos, enfim, essa

questão.

Com relação à revisão, certa-

mente agora em que tudo está sendo

tratado em conjunto, num mesmo ca-

pítulo, no art. 1.727 proposto, haverá

a sua permissão expressa; não se fala

entre cônjuges ou parentes, apenas,

se, fixados os alimentos, sobrevierem

mudanças na situação patrimonial de

quem os supre ou na de quem os re-

cebe, poderá a parte interessada recla-

mar ao juiz, conforme as circunstân-

cias, exoneração, redução ou agrava-

ção do encargo, ou seja, está contrari-

ando o acórdão – diria até tratar-se de

uma tendência dos nossos tribunais,

permitir a revisão para mais ou para

menos, no caso de alimentos entre

cônjuges. Naturalmente, essa orienta-

ção do Superior Tribunal de Justiça ou

deste acórdão não impede a redução

dos alimentos. Mas isso em função de

outros princípios, por exemplo, o prin-

cípio básico de que ninguém será obri-

gado a prestar alimentos, se disso

ensejar a sua própria necessidade; nin-

guém quer a carência de um, em fun-

ção da prestação de alimentos ao ou-

tro. Em decorrência desse aspecto, a

redução é permitida, como também a

exoneração, mas a revisão para o agra-

vamento do encargo seria não dar a

amplitude que se tem entre os alimen-

tos decorrentes do parentesco. Por

exemplo, o filho do soldado ou do ca-

pitão teria direito em rever sempre a

sua pensão, em função da capacidade

cada vez maior do seu pai, diferente-

mente – repito – da situação dos cônjuges.

Page 81: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

Outra questão é a da transmis-

são da pensão alimentícia. Temos uma

dúvida ainda pendente, pois o Código

Civil estabelece que os alimentos não

se transmitem. Já a matéria, tratada na

Lei do Divórcio, está disposta de for-

ma que a obrigação alimentar se trans-

mite aos herdeiros do devedor. Alguns

comentários ao Código, inclusive, ale-

gam que teria sido revogado o artigo

do Código Civil que trata do assunto –

art. 402 – pela Lei do Divórcio; porém

a tendência é no sentido de que, para

os alimentos decorrentes da separação

judicial, ocorre transmissão; para aque-

les decorrentes do vínculo de paren-

tesco, não, até porque, na maioria das

vezes, quem reclama os alimentos são

herdeiros de quem paga a pensão; au-

tomaticamente eles estariam benefici-

ados com a própria herança e, indire-

tamente, a obrigação recairia sobre

eles, na qualidade de herdeiros. Em-

bora alguns códigos tenham sido re-

vogados, no meu entender, trata-se de

uma situação completamente separa-

da, ou seja, é uma distinção que faço

entre alimentos decorrentes do paren-

tesco e alimentos decorrentes da dis-

solução da sociedade conjugal.

O Projeto trata desse assunto –

art. 1.728 –, dispondo expressamente

que a obrigação de prestar alimentos

não se transmite aos herdeiros do de-

vedor.

Já a emenda do Senado diz que

a obrigação de prestar alimentos trans-

mite-se aos herdeiros do devedor na

forma do art. 1.722, que estabelece

que podem os parentes exigir uns dos

outros os alimentos. Não entendi a

abrangência, a extensão do artigo do

Projeto do Código, que dispõe que se

transmite a obrigação, nos termos do

artigo que fala que a obrigação alimen-

tar existe entre os parentes. Ora, se já

existe pelo art. 1.722, em que medida

seria essa transmissão? No Projeto ori-

ginal não se a transmite; nas emendas

propostas pelo Senado Federal, sim. A

bem da verdade, até hoje, no sistema

atual, com esta dúvida, não se sabe,

ao certo, o que viria a ser essa trans-

missão da obrigação alimentar, até por-

que sempre estudamos em Direito das

Sucessões, que é um direito

personalíssimo, aquele típico exemplo

de obrigação personalística: as obriga-

ções vencidas que automaticamente

se transmitem, pois se trata de uma dí-

vida do espólio.

Enfim, essa regra ainda não tem

grande definição e não é muito discuti-

da, mas voltará a gerar polêmica por-

que, de uma maneira ou de outra, pela

emenda proposta pelo Senado, está se

tratando de uma maneira igual a pen-

são alimentícia entre cônjuges e paren-

tes.

Se pretende cuidar de questões

relacionadas ao Direito de Família, que

se faça uma nova sistemática nos sub-

Page 82: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

títulos dos alimentos, separando o que

é e qual o regime jurídico da obriga-

ção alimentar decorrente do parentes-

co e da obrigação alimentar oriunda

da dissolução da sociedade conjugal.

Que se faça expressamente essa dis-

tinção que deveria ter sido feita, até por

opção, para se ter a consciência dos

efeitos de um ou de outro regime, por-

que, no sistema que temos hoje – não

se sabe se por opção ou um outro ca-

minho, ou, efetivamente, um descui-

do do legislador – vemos artigos relaci-

onados a um regime e a outro, che-

gando a situações curiosas. O primei-

ro artigo – 1.722 – dispõe que podem

os parentes pedir aos outros alimen-

tos de que necessitam para viver – pa-

rentes ou cônjuges – de modo compa-

tível com a sua condição social, inclu-

sive para atender necessidades de sua

educação, quando o beneficiário for

menor. A emenda do Senado Federal

diz: inclusive para atender às necessi-

dades de sua educação; excluiu essa

parte final, em função até de uma ori-

entação tranqüila, de que a obrigação

de pagar a escola não é só até comple-

tar a maioridade, mas até os vinte e

cinco anos. Enfim, tirando essa parte

final, poderia o cônjuge sustentar que

tem direito à educação, a ser fornecida

pelo seu ex-cônjuge, porque, pela re-

dação do artigo, está estabelecido: in-

clusive, para atender as necessidades

de sua educação, quando me parece

que a intenção foi garantir a educação

de um filho, em decorrência do pátrio

poder.

Temos até uma outra questão

sobre o fato de que os alimentos serão

apenas os indispensáveis à subsistên-

cia, quando a situação de necessida-

de resultar de culpa de quem os plei-

teia. Esse artigo é direcionado, natural-

mente, aos alimentos decorrentes da

separação, mas está colocado de uma

maneira abrangente; significa até dizer

que um pai poderia pensar que não

teria de pagar alimentos ao filho, mais

do que o estritamente necessário à sua

subsistência, porque este deu causa à

pensão, quando, por exemplo, poden-

do morar com o pai, preferiu morar com

a mãe. No meu entender, essa regra é

direcionada aos cônjuges.

Se analisarmos vários outros

artigos, verificaremos que tratam de

uma espécie de alimentos, e outras re-

gras são comuns às duas espécies;

mereceria uma sistematização diversa,

o aproveitamento de um Código, uma

modificação legislativa, até para evitar

uma confusão na interpretação, pelas

doutrina e jurisprudência, que pode,

logicamente, causar uma instabilidade

muito grande para toda a sociedade,

porque pode haver uma orientação

adotada num determinado caso, de-

pendendo da Câmara em que venha a

ser julgado, e a mesma situação jurídi-

ca obter um resultado diferente, se

Page 83: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

julgada por outra Câmara. Essa é uma

instabilidade muito ruim, principalmen-

te para a nossa atuação como advoga-

do, pois é muito difícil explicarmos para

um cliente que ele teve um tratamento

com determinado resultado jurídico e

um amigo seu, que teve o julgamento

realizado por outra Câmara, recebeu

um benefício ou um privilégio que ele

almejava. Na verdade, nessa situação,

o cliente culpa, exclusivamente, o ad-

vogado.

Verificaremos agora algumas

novidades e aspectos que são postos

no Projeto do Código Civil que, direta-

mente ou expressamente, não constam

do nosso sistema atual. A primeira de-

las, que considero uma inovação sau-

dável, é a possibilidade de se fixar a

pensão alimentícia decorrente da dis-

solução da sociedade conjugal, mes-

mo ocorrendo a culpa de um dos côn-

juges.

Pelo nosso sistema atual – art.

19 da Lei de Divórcio – só recebe pen-

são alimentícia aquele que não teve

culpa na separação; o responsável pela

separação perderia o direito de

reclamá-la. Essa é uma situação muito

criticada pela doutrina, inclusive pelo

Prof. João Baptista Villela, que tem uma

posição firme, entendendo que não se

deve vincular a responsabilidade da

obrigação alimentar à questão da cul-

pa, mas, ainda hoje, o que tem preva-

lecido, na jurisprudência, principalmen-

te, é que o cônjuge culpado perde o

direito à pensão alimentícia.

Temos, em matéria de alimen-

tos, embora não no sistema legal, mas

na doutrina, a divisão entre alimentos

necessários – naturais – e civis –

côngruos. Os primeiros são os desti-

nados à subsistência de quem os re-

clama, são os indispensáveis à sua so-

brevivência; já os alimentos civis, es-

tabelecidos de acordo com o padrão

de vida da pessoa, com o status, e, no

nosso contexto, na prática, essa dis-

tinção é virtual, transparente, não

identificada, porque não tem resulta-

do, repercussão nenhuma, são fixados,

primeiro, de acordo com a necessida-

de e, segundo, de acordo com o pa-

drão de vida das pessoas, principal-

mente entre cônjuges, mas também

decorrente do parentesco; enfim, essa

é a situação.

O Projeto do Código Civil intro-

duz, na seara legislativa, essa distinção,

como ocorre, inclusive, com outras

ordenações – e posso citar aqui o sis-

tema argentino, o italiano e o chileno –

, estabelecendo que o cônjuge culpa-

do terá direito aos alimentos necessá-

rios, não aos civis – côngruos –, mas

aos indispensáveis à sua subsistência,

e fixa ainda outros requisitos, como

não ter aptidão para o trabalho e ou-

tros parentes a quem reclamá-los. O

Page 84: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

ex-cônjuge ficaria obrigado a pagar a

pensão, mas com essa ressalva garan-

tindo os alimentos estritamente neces-

sários à subsistência. Concordo que

com esta solução acomodamos um

pouco a situação, atendendo à critica

da doutrina, até com base no Direito

alemão, em que a questão da culpa

não pode mais ser discutida para efei-

to de privação da pensão, mas tam-

bém às situações da doutrina, da juris-

prudência e, na verdade, da nossa re-

alidade, de que os alimentos não po-

deriam ser devidos em favor daquele

culpado.

Vejam, por exemplo, a situação

de um marido traído pela esposa com

o seu motorista particular; se for retira-

da toda essa questão da culpa, como

ficaria a questão em função do status

dessa família? Tendo condições, natu-

ralmente, como pressuposto, o ex-ma-

rido, além de ter passado por essa si-

tuação, ficaria ainda obrigado a pagar

pensão à ex-mulher, inclusive para fa-

zer o pagamento do seu motorista, cau-

sador da dissolução desta sociedade

conjugal, mantendo o mesmo padrão

de vida que ela possuía antes. Não me

parece tranqüilo conseguir convencer

a parte, e haveria, com certeza, medi-

das trágicas até em relação a esse con-

texto.

O outro lado – e aproveito aqui

para usar um exemplo posto pelo Prof.

Francisco Amaral do adultério – é o

chamado adultério virtual, pois a iden-

tificação da culpa num processo de

separação desse tipo é um dos proble-

mas mais complexos de se resolver, e

certamente os magistrados têm melho-

res condições de desenvolver isso, por-

que o advogado encontra elementos,

motivos, razões para sustentar a culpa

da parte contrária, mas, para o magis-

trado, deve ser muito difícil identificar

a culpa. Ele tem, principalmente, uma

responsabilidade grande em identificá-

la, não só a que está no processo, mas,

na desavença, dissolução, porque tem

esse grave efeito; a questão do nome

e a patrimonial, hoje, praticamente não

têm esse significado, repercussão, mas

para os alimentos, sim; daí a proble-

mática.

O adultério virtual é aquele em

que o homem já com uma idade mais

avançada, depois dos vinte, trinta anos

de casado passa, realmente, a se en-

volver nessas salas de bate-papo com

outras pessoas. Aliás, comentei com

Hermano Henning, num Programa do

SBT, a respeito de uma reportagem so-

bre internet e essas chamadas salas de

bate-papo, que as pessoas freqüentam,

onde trocam intimidades, fotografias e

relacionam-se por meio do computa-

dor, o que pode ensejar esse chama-

do adultério virtual, como causa, até,

de separação. Mas como prová-lo? A

Page 85: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

esposa observa o marido chegar em

casa todos os dias, jantar calado, ir para

o computador e manter todo o seu re-

lacionamento; ele diverte-se, troca in-

formações, enquanto ela assiste à sua

novela, aos seus programas de televi-

são e aguarda o marido ir deitar-se,

mas ele não vai, porque está no com-

putador. Essa rotina repete-se por um

dia, dois, um mês, três meses, cinco

meses, e o marido comprando equipa-

mentos que envolvem troca de ima-

gens etc., enfim, cercado de outras pes-

soas, por meio do computador, e ela,

sem outras opções, não pode pedir a

separação, pois vive na dependência

exclusiva do marido. O que fazer? Cer-

to dia, ela perde a paciência, pega o

computador e, sem pensar duas vezes,

agride o marido; quebra o monitor, bate

com o teclado na cabeça dele e, a essa

altura, toda a vizinhança aparece para

ver o que está acontecendo. Quem vai

ser considerado culpado nessa sepa-

ração? A mulher, que não se conteve

e, efetivamente, agrediu fisicamente o

marido, tendo contra ela testemunhas,

o porteiro e a polícia que foi chamada.

Ela é a culpada pela separação e teria

uma enorme dificuldade de demons-

trar, num processo, que esta situação

foi ensejada pelo marido, devido ao

seu comportamento.

Trata-se de uma situação deli-

cada, e a identificação da culpa preo-

cupa as pessoas ligadas ao Direito, so-

ciólogos, psicólogos, porque, efetiva-

mente, é difícil identificar o que é cau-

sa e o que é efeito e, de qualquer for-

ma, essa mulher estaria privada da pen-

são alimentícia, porque, com certeza,

no processo, seria considerada culpa-

da pela separação judicial.

Nesse contexto, parece-me que

essa inovação é saudável, positiva,

acomoda a situação; de um lado, ga-

rante a subsistência de uma pessoa que

não teve amparo com outros parentes,

ou condições de trabalho; e, de outro,

preserva a situação de quem não deu

causa à separação, de não ter contra

ele imposta uma obrigação doída – não

é minha a frase, mas todos a conhe-

cem: A parte do corpo humano que

mais dói é o bolso. Então, seria muito

difícil para alguém que não se confor-

ma com a separação e não tenha dado

causa a ela ter de manter o padrão de

vida da pessoa, em função de uma pos-

sibilidade legal a respeito.

Registro aqui a posição do Prof.

Villela em sentido contrário, que até

permite essa fixação com outras

conotações, repercussões, mas, enfim,

de uma maneira geral, não traria esse

vínculo – como hoje existe –, a culpa,

pelo art. 19.

Outra questão que me parece

importante, até por ser uma inovação

saudável, é a da fixação do termo final

Page 86: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

da obrigação alimentar, da sua exone-

ração. Sabemos que o art. 29 da atual

Lei do Divórcio determina que o novo

casamento do cônjuge que recebe pen-

são alimentícia enseja a exoneração da

obrigação alimentar. A Lei n. 8.971, que

trata do assunto, refere-se à nova união

para aliviar ou para exonerar da obri-

gação alimentar o ex-companheiro. Em

função dessa regra, temos uma inter-

pretação jurisprudencial com várias

orientações. Por exemplo, uns admi-

tem que não só o novo casamento,

mas a nova união, enseja a exonera-

ção; outros – neste caso, trata-se de

um acórdão do Tribunal de Justiça de

São Paulo – admitem que até mesmo

uma união estável não leva à exonera-

ção se não houver prova de que o ex-

cônjuge estaria vivendo à custa do

novo companheiro. Ou seja, num ex-

tremo, temos os que afirmam que a

união enseja a exoneração e, no ou-

tro, os que dizem que a união não

enseja a exoneração, a menos que fi-

que caracterizado que o dever de as-

sistência é cumprido pelo atual com-

panheiro. Se não houver a prova, não

haverá exoneração dessa pensão.

Num outro caminho, com base

em decisões do STJ, temos os que de-

fendem que só o concubinato – ou

seja, o fato de a mulher ter relação se-

xual com outras pessoas – não enseja

a exoneração da pensão. Existe um

acórdão contando o caso de uma pes-

soa que teve um filho com um compa-

nheiro e um segundo filho com outro

companheiro e, mesmo nessa situação,

como não eram uniões estáveis, e sim

passageiras, ficou mantida a pensão

alimentícia.

O Projeto do Código Civil esta-

belece nos arts. 1.736 e 1.737 que o

casamento ou o concubinato do cre-

dor da pensão alimentícia determinará

sua extinção. Aduz, também, que se o

cônjuge devedor da obrigação vier a

casar-se, o novo casamento não alte-

rará a obrigação. Até aí, sem proble-

mas. O art. 1.736 diz que ao cônjuge

separado judicialmente não cabem ali-

mentos enquanto viver em

concubinato ou tiver procedimento in-

digno. A posição do Senado, embora

mudando um pouco a redação, tam-

bém mantém esses princípios: novo

casamento, nova união, novo

concubinato e mesmo “procedimento

indigno” do cônjuge que recebe a pen-

são alimentícia. Este conceito de pro-

cedimento indigno é vago e caberia à

jurisprudência estabelecer um limite

para que o preço da pensão alimentí-

cia não seja a fidelidade. Findo o casa-

mento, o dever de fidelidade não exis-

te mais. Considerar a pensão alimentí-

cia como pagamento da castidade do

cônjuge não é correto, mas também

devemos encontrar um equilíbrio, um

limite: até que ponto um comportamen-

to indigno pode ser considerado moti-

Page 87: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

vo para exoneração da pensão?

Há o caso de um cliente, inclu-

sive um cantor famoso, que havia se

separado em função de uma relação

homossexual da ex-mulher. A homos-

sexualidade de sua ex-mulher é reco-

nhecida e assumida, tanto que ela par-

ticipa de movimentos favoráveis à re-

gulamentação das relações homosse-

xuais, e ele ficou com a guarda dos

filhos, na época menores, fixando a

pensão alimentícia em favor dela por

ter sido uma separação amigável e

consensual. Antes, ela tinha o perfil

homossexual, pois manteve relações

com a pessoa, mas, nos últimos anos,

vive com essa parceira homossexual

sem esconder de ninguém, nem dos

filhos. Ele respeita essa posição, ape-

nas não se conforma em pagar pen-

são alimentícia para ela. Como fica a

situação?

Pesquisei a jurisprudência, mas

não encontrei material específico so-

bre relação homossexual. Acredito,

porém, que teria um bom resultado se

trabalhasse com base no direito pro-

posto e com uma interpretação ampla

do art. 29 da Lei do Divórcio, e dei uma

expectativa ao cliente a respeito das

chances de ele conseguir êxito. Na re-

alidade, a sua preocupação não era

com o valor, porque ele tem condições

de pagar a pensão, mas não achava

moralmente correta aquela situação.

Quando estava praticamente contrata-

do, uma vez me perguntou sobre a re-

percussão da ação e se o processo

correria em segredo de Justiça. Respon-

di que sim, mas falou-me que talvez,

no dia em que desse entrada nesse

processo de separação judicial, com

certeza estaria a notícia divulgada nos

jornais e revistas especializadas em tra-

tar da intimidade de pessoas famosas.

Ele, que hoje é evangélico e mantém

atividades religiosas, afirmou-me que

não gostaria de se expor e resolveu

continuar pagando a pensão para não

se envolver num escândalo. Optou,

então, por não propor a ação, ainda

mais porque existiam dúvidas sobre a

vitória da causa, mas no íntimo não se

conforma de maneira nenhuma com a

situação.

Para concluir, não farei muitas

críticas ao Projeto do Código Civil, mas

há várias críticas que se fazem ao Pro-

jeto. Confirmo minha posição de que

não há como aprovar o Código na for-

ma como está posto, principalmente

na parte relacionada ao Direito de Fa-

mília. Um problema objetivo do Proje-

to diz respeito à união estável. Como

ficam os alimentos decorrentes do

concubinato? O Projeto aproveitou al-

gumas regras do outro projeto de re-

gulamentação da união estável que

está em tramitação, tais como caracte-

rização da união estável, deveres e efei-

tos patrimoniais, mas não estabeleceu

Page 88: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

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Page 89: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

UNIÃO ESTÁVEL: LEGISLAÇÃO E PROJETOSÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO

Page 90: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

1 GENERALIDADES

O Projeto do novo Código Civil

originou-se do Anteprojeto de

1972 1 e se converteu no Pro-

jeto de Lei n. 634, de 1975; depois n.

634-B, quando aprovada sua redação

pela Câmara dos Deputados, em 1984.

Esse Projeto tramitou no Senado Fede-

ral (Projeto de Lei da Câmara n. 118,

de 1984), com redação final em 1997.

A elaboração inicial do quarto

livro da Parte Especial, reservado ao

Direito de Família, coube a Clóvis do

Couto e Silva.

O Projeto ingressou no Senado

Federal em 1984² – quatro anos antes,

portanto, de ser promulgada a atual

Constituição, de 05 de outubro de 1988

–, retornando à Câmara dos Deputa-

dos, onde se encontra presentemen-

te³.

2 ANÁLISE DE SEUS ARTIGOS

O Projeto do novo Código Ci-

vil, n. 118, já com a redação final de

1997, dada pelo Senado Federal, cui-

da da união estável, nos arts. 1.735 a

1.739.

Nesse Projeto, volta a exigência

da duração da convivência dos com-

panheiros ser por mais de cinco anos

consecutivos, reduzindo-se o prazo

para três anos, havendo filho comum

(§ 1º), devendo, ainda, a coabitação

existir sob o mesmo teto. Nesse caso,

a ser editado tal entendimento, haverá

a revogação da Súmula n. 382 do Su-

premo Tribunal Federal, que admite que

os companheiros vivam em tetos dis-

tintos. O inconveniente existe, por

exemplo, se já estiverem os compa-

nheiros decididos a viverem juntos,

com prova inequívoca (casamento re-

ligioso, por exemplo), e qualquer de-

les adquirir patrimônio, onerosamente,

antes do complemento desse prazo.

Por outro lado, pode haver início da

união já com filho comum.

Afora outras disposições seme-

lhantes às constantes das leis de 1994

e de 1996 adiante analisadas, o Proje-

to afronta a maior conquista dessa le-

gislação e de nossa jurisprudência,

quando não permite a existência da

união estável, se os companheiros ti-

verem impedimentos matrimoniais e

causas suspensivas (§ 2º do seu art.

1.735). E confirma esse entendimen-

to, ao nosso ver absurdo, contrário à

própria história do instituto, fazendo a

diferença entre união estável e

concubinato, quando assenta, em seu

art. 1.739, que As relações não even-

tuais entre o homem e a mulher, impe-

didos de casar, constituem

concubinato.

A vigorar este último dispositi-

Page 91: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

vo de pré-legislação estarão impossibi-

litados de manter convivência em

união estável os cônjuges separados

de fato ou de direito (separação judi-

cial). Aqui, verdadeiro golpe na histó-

ria do instituto, porque esse preceito

faz, nesse caso, voltarem as conse-

qüências do concubinato, que evolui

à categoria de concubinato puro, que

é hoje a união estável.

Desse modo, quem está sepa-

rado judicialmente, por exemplo, e não

quer divorciar-se, terá de viver sob

concubinato, sem os benefícios da

união estável. No Brasil, é situação no-

tória, admitida, atualmente, pela pró-

pria sociedade, a existência de novas

uniões familiares por pessoas separa-

das de fato, que, certamente, estarão

desprotegidas, se for editado esse tex-

to projetado. Com isso, estaremos re-

trocedendo na história e fazendo vol-

tar as injustiças do passado, principal-

mente contra a mulher brasileira, em

agressão ao próprio Direito Natural. Não

se pode legislar contra a realidade so-

cial.

Estará ferido, com isso, o texto

constitucional, constante do caput do

art. 226, que eliminou todas as discri-

minações contra a família, que é a úni-

ca destinatária da proteção da Lei Mai-

or. Sim, porque quem convive

familiarmente, embora separado de

fato ou de direito, de seu cônjuge, não

agride outra forma de constituição de

família, porque seu casamento já está

rompido.

A própria Lei do Divórcio, n.

6.515, de 26 de dezembro de 1977, já

atestava no § 1º de seu art. 5º, a possi-

bilidade de ruptura da sociedade con-

jugal, pela separação de fato do casal

prolongada por mais de cinco anos

consecutivos, com impossibilidade de

sua reconstituição. Esse prazo de cin-

co foi reduzido para um ano, pela Lei

n. 8.408, de 13 de fevereiro de 1992.

A seu turno, a Constituição Fe-

deral, de 05 de outubro de 1988, pos-

sibilita, pelo § 6º de seu art. 226, a dis-

solução do casamento civil, após pré-

via separação judicial por mais de um

ano nos casos expressos em lei, ou

após comprovada separação de fato

por mais de dois anos.

Como visto, a separação de fato

prolongada, pelos aludidos transcursos

de tempo, pode ocasionar a ruptura da

sociedade conjugal ou, até mesmo, a

dissolução do casamento civil, produ-

zindo efeitos que estariam sendo

ilididos pelo texto do Projeto sob co-

mentário.

A família é o fundamento do

próprio Estado, que será sempre forte

quando houver a fortaleza dos senti-

mentos íntimos e o respeito máximo

Page 92: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

ao ser humano.

Lendo-se o pronunciamento do

Senador Josaphat Marinho 4, Relator-

Geral do Projeto em exame, parece que

o risco de interpretação desse texto de

pré-legislação não será muito acentua-

do, verbis: Estabeleceu-se que a união

estável pode converter-se em casamen-

to mediante requerimento dos compa-

nheiros ao juiz e a sua devida transcri-

ção no registro civil. Também se pre-

viu que, se houver filho comum, a

união estável é reconhecida aos três

anos de convivência. Experimentei em

seguida uma grave dúvida: definida a

união estável, não poderia ignorar que,

na realidade, subsistia o concubinato.

A experiência da vida nos mostra que

ele existe independemente de nossa

vontade. O atual Código Civil nunca

definiu o concubinato. Então, pareceu-

me conveniente, já que se define a

união estável, dar uma noção que ser-

visse de termo distintivo desta. Por ini-

ciativa do relator se inclui esta norma:

o convívio não-eventual do homem e

da mulher que não podem casar cons-

titui o concubinato. Distingue-se, assim,

da união estável. Mas não entramos em

pormenores. Porque essa é daquelas

situações que envolvem tais particula-

ridades e diferenciações na sociedade,

que seria uma imprudência entrar na

especificação reguladora da matéria. O

Supremo Tribunal Federal, que, ao lon-

go do tempo, foi reconhecendo a exis-

tência do concubinato, já declarou que

não é preciso o convívio na mesma

casa para que se configure o

concubinato. E os direitos reconheci-

dos aos companheiros, ou mais dire-

tamente, até então, à companheira, no

concubinato, sempre tiveram tratamen-

to difenciado, conforme a configuração

de cada caso. Houve momentos em

que esses direitos foram reconhecidos

por se entender que havia uma socie-

dade de fato, em outros, porque a com-

panheira apenas tinha concorrido para

a formação do patrimônio, e assim,

sucessivamente. Não convinha, portan-

to – estou convencido disso – estabe-

lecer regras pormenorizadas. Esta é

daquelas situações em que a jurispru-

dência dos tribunais é que vai definir

as normas jurídicas aplicáveis.

Realmente, o Código Civil nun-

ca definiu o concubinato, nem o puro

e nem o impuro, este podendo ser

adulterino ou incestuoso.

Todavia, a atual união estável é

o concubinato puro (não-adulterino e

não-incestuoso).

Desse modo, conceituando o

Projeto o concubinato, não fez diferen-

ça entre uma e outra espécie: se puro

ou impuro.

Na verdade, o concubinato hoje

existente entre pessoas separadas ju-

Page 93: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

dicialmente ou de fato já é qualificado

como puro, como união estável, uma

vez que o separado que vive

concubinariamente não tem qualquer

relacionamento pessoal de família com

seu ex-cônjuge, embora formalmente

permaneçam casados. Ora, neste caso,

não existe comprometimento

adulterino, pois o dever de fidelidade

está extinto. Não há, portanto, com o

novo relacionamento concubinário,

quebra desse mesmo dever.

Assim, sobre essa matéria não

há de se esperar que se estabeleçam

normas, pela “experiência” e pela “ju-

risprudência dos tribunais”, pois elas

já existem consolidadas na doutrina e

nos julgados de nossos tribunais, ten-

do a Lei n. 8.971, de 29 de dezembro

de 1994, em seu art. 1º, já conceitua-

do a união estável como a convivên-

cia de um homem solteiro, separado

judicialmente, divorciado ou viúvo...

Entendo que o cônjuge separado de

fato também se inclui nesse texto, pois

a adulterinidade cessa, nesse passar de

tempo, em que desaparece o dever de

fidelidade pela falta de coabitação dos

cônjuges.

O próprio Projeto do Governo

n. 2.686/96, já analisado atrás, que tra-

mita em nosso Congresso Nacional, em

tentativa de unificação das leis vigen-

tes de 1994 e de 1996, também já es-

tudadas, possibilita a união estável en-

tre separados judicialmente e de fato,

nestes termos: Art. 1º - É reconhecida

como união estável a convivência, por

período superior a cinco anos, sob o

mesmo teto, como se casados fossem,

entre um homem e uma mulher, não

impedidos de realizar matrimônio ou

separados de direito ou de fato dos res-

pectivos cônjuges.

O art. 1.736 do Projeto, a seu

turno, reafirma a existência dos deve-

res de lealdade, respeito e assistência

entre os companheiros, e os de guar-

da, sustento e educação de seus filhos,

tal como existe na Lei n. 9.278/96 (me-

nos o dever de lealdade, previsto no

Projeto do Governo). Todos esses de-

veres já foram anteriormente analisa-

dos.

Admite-se, ainda, no Projeto

sob foco (art. 1.737), a possibilidade

de realização de contrato entre os com-

panheiros, para regulamentação de

suas relações patrimoniais tal como na

Lei de 1996. Assenta esse artigo que,

na ausência de contratação, aplicar-se-

á, no que couber, o regime de comu-

nhão parcial de bens. Malgrado não ser

essa a melhor redação, o dispositivo

da pré-legislação deixa claro que serão

dos companheiros os bens por eles

adquiridos na constância da união es-

tável, a título oneroso, independente-

mente de prova de esforço comum.

Entretanto, não há de existir o rigor do

Page 94: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

regime de bens por comunhão, como

no casamento, de caráter imutável até

que este se dissolva. Chega-se à con-

clusão de que, na união estável, o me-

lhor instituto para justificar essa espé-

cie de comunhão patrimonial é o con-

domínio (não o de mãos juntas).

Pelo art. 1.738, admite-se, no

Projeto sob estudo, que os companhei-

ros requeiram ao juiz a conversão de

sua união estável em casamento, com

o conseqüente assento no registro ci-

vil. Nesse caso, a determinação da

lavratura desse assentamento dispen-

sará o processo de habilitação para o

casamento. Isso, sem muita facilitação,

porque a matéria estará sob os cuida-

dos do Poder Judiciário, que tomará

todas as cautelas para evitar eventuais

simulações.

NOTAS

1 Comissão elaboradora e revisora: Miguel

Reale (Presidente), José Carlos Moreita Alves,

Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes,

Ebert Vianna Chamoum, Clóvis do Couto e Sil-

va e Torquato Castro.

2 Comissão de dez Senadores, com seus

Suplentes, sob a coordenação dos Senadores

Ronaldo Cunha Lima (Presidente), José Ignácio

Ferreira (Vice-Presidente) e Josaphat Marinho

(Relator-Geral).

3 O Relator do Projeto é o Deputado Anto-

nio Carlos Biscaia.

4 Código Civil, Projeto de Lei da Câmara n.

118, de 1984, Redação Final, Senado Federal,

Brasília, 1997, p. 30 e 31.

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO: Profes-

sor da Universidade de São Paulo, da

Universidade Mackenzie e da Fundação

Armando Alvares Penteado – FAAP.

Page 95: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

VÍCIOS DE CONSENTIMENTO: FRAUDEHUMBERTO THEODORO JÚNIOR

Page 96: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Discorrerei sobre os vícios de

consentimento, os vícios ou os

defeitos do negócio jurídico,

especialmente para a fraude, ponto que

reputo vulnerável e equivocado no tra-

tamento do Projeto, porque este foge

da linha do Código de 1916, adotando

como núcleo o negócio jurídico em vez

do ato jurídico – uma tendência de in-

fluência germânica de valorizar como

fato principal, no mundo do Direito Pri-

vado, o negócio jurídico. E tem do ne-

gócio jurídico a idéia de um fenômeno

que, embora seja espécie do gênero

fato jurídico, a noção de espécie é

aquela em que a vontade se manifesta

como o fator mais importante na

delineação dos efeitos jurídicos. O ne-

gócio jurídico é aquele evento que pro-

vém da vontade humana, não de qual-

quer uma, mas sim de uma livre, autô-

noma, em que a regulamentação e a

própria definição dos efeitos se apre-

sentam como o produto da vontade.

O ato jurídico, assim, seria um

subgênero dentro do fato jurídico ge-

ral, que abrangeria, dentro dessa teo-

ria, o negócio jurídico como ato de pura

produção da autonomia da vontade e

o ato jurídico em sentido estrito, que é

aquele ato de vontade vinculada, de

uma vontade não-autônoma, em que

o resultado é muito mais ex lege, ou

seja, muito mais imposto pela lei do

que propriamente pela vontade do

agente. Essa diferença manifesta-se,

por exemplo, entre um contrato e o seu

cumprimento – o pagamento.

Enquanto o contrato expressa

a vontade, o pagamento é ato imposto

pela lei depois que o contrato existe,

de tal maneira que, embora o pagamen-

to possa ser voluntário na sua realiza-

ção, muitas vezes, haverá a coação,

ou seja, sanção estatal para que o pa-

gamento se dê de forma forçada.

Em linhas gerais, isso é a sepa-

ração, a qualificação e a classificação

que predominaram no Projeto, dando

realce ao negócio jurídico como o es-

pelho da autonomia de vontade no

mundo do relacionamento privado

patrimonial.

O capítulo que nos interessa é,

dentro do negócio jurídico, verificar a

sua higidez ou a presença de defeitos

que possam comprometer sua valida-

de ou eficácia. O Projeto está, nesse

ponto, atrasadíssimo, porque simples-

mente cuida de sistematizar a validade

e a nulidade. Não conhece – pelo me-

nos de forma sistemática – o fenôme-

no da ineficácia, que foi largamente de-

senvolvido no século XX com raízes

no século XIX.

O ato, fenômeno ou negócio ju-

rídico, em sentido estrito, realiza-se e

projeta-se em vários planos, não ape-

nas no da validade ou invalidade. Pri-

Page 97: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

meiramente, o negócio se passa no pla-

no da existência, do ser, onde não se

tem uma preocupação imediata com

o efeito, de modo que, antes de ter efei-

to jurídico, uma vontade existe como

vontade, como fenômeno da nature-

za. Onde não há vontade, não se pode

falar em nulidade, pois o ato inexiste.

Porém, declarada a vontade

com o propósito de atingir um efeito,

temos de passar para o segundo pla-

no; materialmente ela existe. Essa von-

tade foi manifestada em condições de,

substancialmente, atingir a qualidade

de negócio jurídico? Nesse caso, a res-

posta pode ser afirmativa ou negativa.

Com relação ao alienado mental e à

criança, por exemplo, não se pode di-

zer que não têm vontade; eles a têm,

mas é irrelevante para o Direito o ato

de uma criança de dez, doze anos,

comprar um objeto. Vontade houve e

se tentou produzir efeito para aquela

vontade, mas a ordem jurídica declara

que o negócio jurídico, para ser váli-

do, exige agente capaz. Então, não

basta a vontade, o ato material de que-

rer, é preciso querer com o benepláci-

to da ordem jurídica, para que a von-

tade entre no plano da validade. O pla-

no da validade é aquele em que, teori-

camente, abstratamente, uma vontade

declarada teria aptidão para produzir,

no momento ou no futuro, a eficácia,

o efeito desejado.

O defeito ou vício de faltar um

elemento substancial na declaração de

vontade pode conduzir a uma falta

completa desse elemento ou afetar

apenas a existência perfeita. Ou seja,

o elemento essencial existe, mas con-

taminado de alguma deficiência que

pode levar a parte prejudicada a con-

testar, a fim de anular, desfazer o ne-

gócio.

O problema ou o fenômeno da

validade admite graus; o negócio pode

ter uma inaptidão completa para pro-

duzir qualquer efeito, ou uma aptidão

para produzir efeitos condicionados à

não-impugnação da parte prejudicada.

Quando a parte prejudicada puder le-

vantar o defeito do elemento formador

do contrato, ou do negócio jurídico,

para dele se liberar em nome desse ví-

cio, teremos então a nulidade relativa,

ou a anulabilidade, que é um vício de

formação do negócio jurídico, intrín-

seco – porque está dentro da vontade

declarada, do ato constitutivo do ne-

gócio jurídico.

Depois desses dois defeitos, os

únicos aos quais o Código se refere são

a nulidade e a anulabilidade, que são

graus de um mesmo fenômeno, e a va-

lidade, que é a exigência daqueles re-

quisitos essenciais para declarar o ato

válido. O Projeto do Código não tem

uma palavra sistemática – como acon-

tece, por exemplo, com o Código atu-

al da Itália e os Códigos modernos –

Page 98: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

sobre o fenômeno que é do terceiro

plano: o da eficácia. Pode muito bem

um negócio ser, existir, valer e não pro-

duzir efeitos, ou não produzir certos

efeitos, ou não produzir efeito algum

no momento. É esse fenômeno que é

chamado de fenômeno da eficácia e

dentro dele é estudado, hoje, no Direi-

to Comparado, dentro do Direito Civil,

o problema da fraude.

Quando se elaborou, no sécu-

lo passado, o Código Civil – de

Beviláqua –, o tema da ineficácia era

muito pobre, pouco desenvolvido e

não constava de nenhum precedente

normativo; existia alguma referência

especulativa em doutrina apenas, e ain-

da não consolidada. Justifica-se, então,

que Beviláqua tenha dado à fraude o

rótulo de anulabilidade porque, pelo

sistema que conhecia de defeitos de

negócios jurídicos, era o que estava à

disposição; aliás, não veio dele esse

rótulo de anulabilidade, e sim de

Teixeira de Freitas, mas ele aproveitou

e encampou a idéia. Via-se logo que o

Código de Beviláqua não queria dar a

esse tipo de nulidade a anulabilidade

da fraude contra credores, uma exten-

são igual à da anulabilidade comum,

porque, ao regular a fraude, a preocu-

pação do legislador era criar um artigo

específico para dizer qual era o efeito

daquele tipo de anulação, quando já

existiam, na parte introdutória de to-

dos os vícios, de todos os defeitos –

nos artigos que tratavam da nulidade,

genericamente –, o efeito da nulidade

e o da anulabilidade, que era o retor-

no ao estado anterior.

Quando se chegou na fraude,

como não era isto o que queria e nun-

ca quis o legislador que cuida da frau-

de, colocou-se um dispositivo que di-

zia que os efeitos da anulação por frau-

de manifestar-se-iam fazendo com que

o bem voltasse para o acervo sobre o

qual se exerceria o direito dos credo-

res prejudicados.

O legislador não estava man-

dando voltar ao status quo, devolver o

bem ao vendedor, ao alienante, ao de-

vedor fraudulento, e sim colocá-lo à

disposição dos credores, e a legislação

posterior, encontrando sistematizado o

fenômeno da ineficácia, abandonou

totalmente a idéia de anulabilidade,

como aconteceu no Código de Proces-

so Civil de 1939, quando se cuidou da

fraude de execução, dispondo-se sim-

plesmente, que o bem alienado em

fraude à execução continuava sujeito

à responsabilidade patrimonial. Em

1945, a Lei de Falências cuidou da ação

revocatória – que, sabidamente, é uma

ação pauliana, da mesma natureza da

fraude contra credores do Código Ci-

vil, apenas emoldurada no quadro da

quebra do comerciante – e também

não adotou o princípio da

anulabilidade; pelo contrário, foi mui-

Page 99: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

to clara, dizendo que os bens, naque-

las condições dos arts. 52 e 53, são

alcançáveis pela arrecadação, pela fa-

lência. No art. 52 está expressamente

disposto: Não produzem efeitos relati-

vamente à massa... e o art. 53 dispõe:

São também revogáveis, perante a mas-

sa..., como se o também estivesse a

indicar que é coisa da mesma nature-

za do art. 52, com uma diferença: o

art. 52 é objetivo, não exige consilio

fraudis e, no art. 53, a revogação im-

porta em valorizar o consilio fraudis.

Pontes de Miranda, escrevendo

a respeito dos dois institutos sobre a

ação pauliana e a Lei de Falências, dis-

se que o legislador poderia optar por

uma anulatória em um instituto, em um

corpo normativo, e, pela ineficácia em

outro corpo, dentro do mesmo

ordenamento jurídico, e que isso não

representaria maior contradição, e o

intérprete não poderia, portanto, ler

ineficácia onde o legislador declarou,

textualmente, anulabilidade.

Data maxima venia do grande

mestre, essa óptica é inaceitável. O tipo

jurídico é um tipo científico; uma cate-

goria jurídica é uma categoria científi-

ca. Não é o rótulo dado pelo legislador

que define a natureza, o tipo ou a cate-

goria. São dados de lógica, filosóficos.

O cientista descobre o tipo, a catego-

ria. O que o legislador pode fazer são

conceitos, mas, dentro deles, o cien-

tista descobre a natureza da coisa, a

sua essência, que não pode ser muda-

da pelo legislador.

Então, se o legislador só conhe-

ce duas palavras, duas idéias, dois con-

ceitos, procura jogá-los dentro das idéi-

as de que dispõe; isso não impede que

o cientista, o jurista, descubra uma di-

ferença entre um instituto e outro, am-

bos sob o mesmo rótulo. O nosso Có-

digo de 1916 não tem uma palavra a

respeito da decadência, mistura deca-

dência e prescrição. E quem é o au-

tor? O Tribunal, que não faz, a todo

instante, a distinção entre decadência

e prescrição? Diremos, então, que no

Direito Civil brasileiro não existe deca-

dência, porque o codificador não teve

a coragem de enfrentar os dois institu-

tos e distingui-los; o mesmo na fraude:

o legislador pecou em relação à siste-

matização, não usou o termo ineficá-

cia, mas fez tudo para dizer que o ato

de alienação do devedor que prejudi-

casse os seus credores seria um ato

inoponível aos credores, porque estes

poderiam continuar a penhorar o ob-

jeto, pois o devedor ultrapassou o li-

mite da disponibilidade, ofendeu a ga-

rantia dos credores e aquele terceiro,

que com ele negociou, assumiu o ris-

co de ter de suportar, no seu

patrimônio, uma responsabilidade por

dívida alheia. Isso não tem nada de

nulidade, de anulabilidade, é um fenô-

meno até muito mais processual do

Page 100: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

que de Direito Civil, embora não de-

fenda a separação rigorosa entre insti-

tutos dos ramos civil e processual. Pen-

so ser o ordenamento jurídico um todo

e essa separação de setores, caso te-

nha influência na essência de alguns

institutos, não tem repercussão nenhu-

ma no conjunto total chamado

ordenamento jurídico, onde tudo tran-

sita de um segmento a outro, e um não

pode dispensar o outro para atingir a

finalidade comum, que é a paz social,

a manutenção da ordem jurídica e do

império da lei.

O fenômeno da responsabilida-

de patrimonial é um fenômeno defen-

dido por Carnelutti para o processo,

porque esta, embora prevista no Direi-

to Material, só atua quando há o

inadimplemento, a violação do direito

subjetivo material. A responsabilidade

patrimonial, que é a sanção prevista

pelo ordenamento jurídico para o

descumprimento das obrigações, não

é dada ao particular, não é disciplina-

da pelo Direito Privado; é dada ao Es-

tado, que a exerce por meio da jurisdi-

ção, exclusivamente. Só a jurisdição

pode expropriar bens do devedor, pe-

netrar no esquema do patrimônio pri-

vado, para cumprir forçosamente a

execução.

O que faz o Projeto a respeito

deste instituto importantíssimo, que é

a fraude contra credores? Copia, ipsis

litteris, os artigos do Código de 1916;

não muda uma palavra e continua ig-

norando a ineficácia, que já aparece

em outros códigos mais modernos,

como no da Itália, como um instituto

separado, catalogado, sistematizado –

genericamente – e depois adotado,

caso a caso. Aqui não temos a previ-

são genérica da ineficácia dentro do

Projeto nem na hora de aplicar o prin-

cipal instituto que interessa à ineficá-

cia – a fraude. Não temos a sua ado-

ção, especificamente; pelo contrário,

o legislador diz que é anulável o ato de

disposição de bens do credor insolven-

te. Repete tudo o que estava no Códi-

go de 1916 e que acarretou, para a

doutrina e jurisprudência, um trabalho

hercúleo durante esses quase cem

anos.

A jurisprudência foi, aos pou-

cos, firmando-se no sentido de que,

embora esteja escrito nulidade ou

anulabilidade no capítulo da fraude, o

que realmente existe ali é uma ineficá-

cia. O Superior Tribunal de Justiça, em

vários acórdãos, já disse isso. Os Tri-

bunais de São Paulo, tanto o de Justi-

ça como os de Alçada Civil, também

já decidiram assim.

Cândido Dinamarco publicou

no seu livro “Fundamentos do Direito

Processual” um capítulo defendendo a

natureza de ineficácia na fraude con-

tra credores no Direito Brasileiro.

Page 101: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

O Prof. Yussef Cahali escreveu,

em um de seus Trabalhos Monumen-

tais, “As Fraudes no Direito Brasileiro”,

que não há diferença substancial en-

tre ação revocatória e ação pauliana, e

que tudo conduz à mesma fraude con-

tra a execução; trata-se da mesma coi-

sa. É prejuízo para o credor, com cria-

ção de insolvência para o devedor. Isso

tem de ser resolvido pelo mesmo sis-

tema, pelo mesmo mecanismo. Não

são as palavras inadequadas, imprópri-

as do legislador, que mudam a nature-

za da coisa.

O Desembargador Nelson

Anada publicou um livro sobre ação

pauliana, defendendo a mesma tese;

modestamente, já escrevi também a

minha, de Titular de Direito Processual

Civil Multidisciplinar, em que analiso a

natureza da sentença pauliana, a par-

tir da natureza do fenômeno civil da

fraude.

E, agora, teremos de enfrentar

uma lei nova, repetindo as idéias de

um Código caduco, dando a idéia de

que o legislador do século XXI está

voltando ao século XIX, pois está usan-

do, depois de todos esses esclareci-

mentos e debates, uma nomenclatura

totalmente superada, para enfrentar um

problema surrado, cansado, do dia-a-

dia dos tribunais e juízes, que pensa-

vam estar saindo dessa angústia, mas

terão de voltar a ela, e fazer uma cria-

ção pretoriana para corrigir o erro

palmar, grosseiro, do legislador.

A observação de Pontes de

Miranda de que o Código ignorou a ine-

ficácia é, mais uma vez – repito –, ina-

dequada, porque a ineficácia está den-

tro do Código a todo instante, sem esse

rótulo. O que se diz, por exemplo, a

respeito da hipoteca? A hipoteca não

registrada vale entre as partes, mas não

perante terceiros. Esse é o fenômeno

da ineficácia, que é o negócio ser váli-

do entre seus agentes, mas não pro-

duzir, no exterior, todo o efeito deseja-

do pelo agente. Na Parte Geral do ato

jurídico do Código de 1916, está dito

que o contrato é de efeito relativo às

partes, não atingindo terceiros, se não

levado ao cartório de registro de títu-

los e documentos; trata-se de uma ine-

ficácia perante terceiros. A doutrina diz,

com relação a contratos firmados por

uma pessoa que, no sistema do Códi-

go Civil, venda ou prometa vender, duas

vezes, o mesmo objeto a pessoas dife-

rentes – contrato de compra e venda –

, que eles não são nulos, nem sequer

anuláveis; são contratos válidos e tra-

ta-se de dois contratos sobre o mesmo

objeto. Quando o segundo ou o tercei-

ro comprar o objeto e receber a tradi-

ção, adquirirá a propriedade, pois os

dois ou os três contratos anteriores

valiam entre as partes, mas não eram

eficazes perante o outro comprador

Page 102: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

que, de boa-fé, comprou do proprietá-

rio, que, como tal, podia vender o bem.

E, assim, encontramos a inefi-

cácia dispersa no Código. A obrigação

condicional, em que o devedor e o cre-

dor ajustam um contrato perfeito, com

todos os elementos essenciais, obser-

vando a fórmula, vinculando-se, é um

contrato que existe, mas não produz

nenhum efeito, enquanto não aconte-

cer o evento futuro e incerto previsto

como condicionante; trata-se de um

negócio válido, sem eficácia. Portanto,

nada impede o intérprete de procurar,

em cada figura, em cada instituto do

Código, a sua verdadeira natureza,

mesmo que o legislador não use a ex-

pressão adequada, científica, técnica.

Não tenho o propósito de de-

molir esse Projeto. Ele tem grandes

avanços, mas também vícios, defeitos,

que nasceram, principalmente, da de-

mora, da sua desatualização em rela-

ção ao progresso da ciência do Direito

e, mais ainda, do progresso da própria

vida em sociedade, que adquiriu um

ritmo de velocidade jamais sonhado e

imaginado pela humanidade, o qual faz

com que coisas e institutos tornem-se

obsoletos, quase num piscar de olhos.

O que acontece, fatalmente,

com um Projeto que foi redigido antes

do computador? Quanta coisa aconte-

ceu no mundo negocial, na família, nas

relações internacionais, nas relações

privadas, na concepção dos próprios

direitos subjetivos, depois que esse

Projeto foi elaborado?

Tomo como parâmetro o tópi-

co que me foi destacado para abordar

e demonstrar que aqui, nos defeitos do

ato jurídico, o Código, por exemplo,

avançou tremendamente no campo da

simulação da fraude contra a lei, no

campo da lesão, no campo do estado

de perigo. Mas, houve uma

“claudicância” gigantesca num institu-

to de aplicação imediata, como é a frau-

de, conservando um instituto do sécu-

lo XIX, com efeito até retroativo por-

que não corresponde nem ao estágio

do momento da jurisprudência.

Teixeira de Freitas adotou a no-

menclatura de anulabilidade e foi pa-

rar no Código argentino, o qual, há trin-

ta anos, foi reformado justamente para

que fosse retirado esse anacronismo,

que era a anulabilidade da fraude, adap-

tando-se à linguagem do Código italia-

no, falando expressamente em ineficá-

cia, em inoponibilidade aos credores.

HUMBERTO THEODORO JÚNIOR: Pro-

fessor da Universidade Federal de Mi-

nas Gerais.

Page 103: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NOS CONTRATOSANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

Page 104: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Discorrerei sobre a boa-fé obje-

tiva, uma espécie de compor-

tamento exigível juridicamen-

te – no caso da nossa conferência, a

dos contratantes.

Não se confunde essa boa-fé ob-

jetiva com a subjetiva que conhecemos

de longa data no Direito Brasileiro, a

qual não representa nenhuma novida-

de.

A boa-fé subjetiva, começando

pelo que é conhecido e sabido, é uma

espécie de conhecimento ou desconhe-

cimento – portanto, algo psíquico nas

pessoas – que o Direito considera es-

pecialmente no campo dos direitos re-

ais. A boa-fé no usucapião encurta o

prazo. A boa-fé na questão de frutos

dá direito ao possuidor sobre frutos,

no caso das benfeitorias, e assim por

diante. Esta boa-fé é um estado de es-

pírito que, naturalmente, entra no su-

porte fático para aquisição de direitos,

principalmente direitos reais.

A boa-fé do nosso tema, é a ob-

jetiva, uma espécie de comportamen-

to, poderíamos dizer, de correção, no

caso, entre contratantes, ou até entre

pré-contratantes na fase, portanto, de

tratativas.

Esta boa-fé objetiva não repre-

senta uma novidade de momento. É,

na verdade, algo que já vem há um

século aproximadamente sendo estu-

dado e explorado na doutrina estran-

geira, especialmente na doutrina ale-

mã.

Então, convém destacar histo-

ricamente a questão da boa-fé objeti-

va. Fá-lo-ia – porque isso vai importar

para o Projeto de Código Civil – da se-

guinte maneira: até o final do século

XIX, o paradigma que nós, juristas, tí-

nhamos para resolver os problemas era

o da lei. Quando emprego essa pala-

vra “paradigma”, não estou entrando

num certo modismo – tenho um pou-

co de repulsa em falar determinadas

palavras que caem no goto do público

e começam a ser usadas e abusadas

na linguagem. Estou falando em

paradigma num sentido bem preciso e

é no sentido geral da ciência. Há um

historiador das ciências que usa a pa-

lavra “paradigma” dizendo que é uma

espécie de modelo de problema e de

solução que uma determinada área do

conhecimento tem numa certa época.

Esse historiador do Direito sustenta que

as ciências evoluem por mudanças de

paradigmas. Ele ensina que, durante

um certo tempo, aquele grupo de pes-

soas dedicado a um certo campo do

conhecimento utiliza um modelo de

solução para os problemas.

Então, nesse tipo de pensamen-

to, exemplificando, no caso das ciên-

cias exatas, teríamos tido a Física de

Page 105: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

Aristóteles durante muito tempo, vin-

do depois Newton, que mudou o

paradigma da Física e, hoje, o de

Einstein, com a Teoria da Relatividade.

Na Geometria, teríamos a Geometria de

Euclides e, depois, a Geometria não-

euclidiana. Na Biologia, teríamos o

paradigma antes de Mendel e da Gené-

tica e, atualmente, temos o da Genéti-

ca. Talvez, até mais importante que

tudo, teríamos tido um paradigma na

história das ciências antes de Darwin e

outro depois de Darwin, com a Teoria

da Evolução. Esse pensamento geral

das ciências pode perfeitamente – e

deve, no meu modo de entender – ser

passado para o campo do Direito, que

também é uma ciência.

O paradigma, até o final do sé-

culo XIX, era o da lei propriamente. Os

nossos pais certamente aprenderam

nas faculdades de Direito que, quando

há um conflito, algum problema, a so-

lução está na lei. E essa lei era rígida,

de certa maneira universal, geral, e não

deveria haver distinções de grupos,

pois a lei era para todos. Essa lei deve-

ria ter uma facti species, uma hipótese

legal muito precisa, porque o papel do

juiz era justamente o de aplicar a lei

de uma maneira automática, silogística.

Como dizia um autor antigo, “o juiz ti-

nha um papel passivo”.

Esse paradigma da lei entrou

em crise no final do século XIX por-

que, embora tenha obtido muito suces-

so em algumas circunstâncias, especi-

almente para o comércio jurídico, que

é um paradigma da lei que dá uma se-

gurança enorme para a população,

nesse jogo dos interesses de ordem

econômica e social, favorecia muito

um determinado tipo de pessoa – o em-

preendedor, o comerciante, por exem-

plo –, mas não favoreceu as classes

que se tornaram cada vez mais pobres.

Então, houve um problema de ordem

social que veio se refletir na primeira

metade do século XX.

Nessa primeira metade do sé-

culo XX, os juristas começaram a ques-

tionar de uma certa maneira o

paradigma da lei; e, então, tivemos

uma série de providências que o mun-

do do Direito foi tomando para que-

brar aquele sistema de ordenamentos

precisos e rígidos. O intuito era o de

dar mais poderes ao juiz. Assim, en-

contramos nesse período uma inflexão

do paradigma da lei para o juiz, o juiz

ativo. A maneira de dar poder ao juiz

corresponde, com o devido respeito ao

Poder Judiciário, a uma visão do Po-

der Judiciário como Poder, porque é o

tempo do Estado todo-poderoso. É cla-

ro que nem todos os países entraram

no esquema de um Estado totalitário.

Mas, mesmo naqueles que mantiveram

o Estado Democrático, a interferência

do Estado foi muito forte e, para isso,

o Estado, inclusive o juiz, como Poder,

Page 106: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

precisava de instrumentos. E os instru-

mentos foram basicamente três,

legislativos, os conceitos jurídicos

indeterminados. Por quê? Porque es-

ses conceitos têm de ser concretiza-

dos pelo juiz. Então, o juiz, de uma

certa maneira, recebe uma delegação

de poder do Legislativo para integrar a

lei com os conceitos jurídicos

indeterminados. Já digo que a boa-fé

objetiva é um conceito jurídico

indeterminado porque significa pura e

simplesmente que as partes devem agir

com correção, e quem dirá o que é a

correção será o juiz. Portanto, o juiz

concretizará tal conceito, que é juridi-

camente indeterminado.

O segundo instrumento

legislativo desse período de mudança

de paradigma para o juiz é o chamado

“paradigma das cláusulas gerais”. É

justamente ainda a boa-fé. Quando

colocada em matéria contratual e quan-

do está dito, por exemplo, no art. 421

do Projeto de Código Civil que os con-

tratantes devem se comportar tanto na

conclusão quanto na execução do con-

trato com boa-fé, estamos diante de

uma cláusula geral, que é muito gené-

rica, justamente para abranger hipóte-

ses não topicamente previstas. Eu di-

ria que, no caso do Direito vigente bra-

sileiro, é tipicamente uma cláusula ge-

ral o art. 159 do Código Civil (da res-

ponsabilidade aquiliana ou

extracontratual), porque tudo aquilo

que não está previsto na parte especi-

al dos atos ilícitos, da liquidação por

atos ilícitos, no caso de morte ou le-

são etc., cai na cláusula geral do art.

159. Então, cláusula geral é um bom

instrumento para o juiz.

Com menos importância, diria

que também era uma técnica legislativa

da primeira metade do século atribuir

ao juiz uma certa discricionariedade na

escolha das sanções da parte de con-

seqüências do ato. Aí não há uma ter-

minologia tão clara quanto o conceito

jurídico indeterminado ou quanto à clá-

usula geral, mas Mengone, um grande

jurista italiano atual, usa a expressão

“livre apreciação do juiz”. Isso está

muito claro para nós.

Para exemplificar, no Estatuto

da Criança e do Adolescente, quando

o juiz pode escolher entre colocar a

criança na FEBEM e chamar os pais,

obrigando-os a assinar um compromis-

so, ou entregar a criança para um ter-

ceiro, que seria uma espécie de famí-

lia substituta, ele pode ter de atribuir

uma ampla gama de providências

àquela conseqüência. E mostro, dian-

te de um quadro de pensamento técni-

co, o seguinte: a propósito de uma re-

gra de Direito, “se ‘a’ é, segue-se ‘b’”,

o que quero dizer agora é que a parte

“segue-se ‘b’” é da livre apreciação do

juiz, enquanto que a primeira parte, “se

‘a’ é”, é aquela em que há o conceito

Page 107: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

jurídico indeterminado. A cláusula ge-

ral, na verdade, abrange as duas coi-

sas: tanto a parte de hipótese quanto a

parte de exposição. Mas, nessas técni-

cas legislativas, isso era perfeitamente

possível.

Começo a fazer uma crítica ao

Projeto de Código Civil. O Projeto está

nesse paradigma do tempo do juiz. O

Prof. Reale claramente diz isso, não só

em conferências, como também escre-

veu sobre o assunto nas apresentações

do Projeto de Código Civil. Esse

paradigma leva a carrear os conflitos

ao Judiciário. Tenho a impressão de

que os momentos que estamos viven-

do não são de sobrecarregar o Poder

Judiciário, é o contrário. Digo, com

uma base histórica, que os alemães, a

propósito das cláusulas gerais e dos

conceitos jurídicos indeterminados,

chegaram até a escrever livros no sen-

tido de fuga para as cláusulas gerais,

para o conceito indeterminado, porque

naquele tempo estava-se saindo da lei

e fugindo para o juiz.

Hoje estamos fugindo do juiz,

porque o Poder Judiciário possui ques-

tões importantes a decidir e deve ficar

limitado aos problemas efetivamente de

ponderação de interesses, os casos

que poderíamos chamar de hard ca-

ses, casos difíceis. Questões simples

como uma rescisão que pode ser feita

por notificação ou mesmo anulações

de ato jurídico ou de negócio jurídico

– em vários países do mundo se faz

isso pelo aviso ou por notificação de

uma parte a outra – não precisam pas-

sar pelo Poder Judiciário.

Então, no meu modo de ver,

estamos mudando de paradigma.

Estamos correndo do juiz. E nisso o

Projeto de Código Civil é exatamente o

contrário dos tempos de hoje, ele está

no paradigma anterior, do começo do

século. Essa é uma crítica severa.

No caso da boa-fé – e agora vou

procurar esmiuçar um pouco este tema

–, como em outros conceitos que eram

do paradigma do juiz, verificamos que

o grande problema que afinal surgiu

depois de se resolver a mudança, sa-

indo daquela rigidez da lei geral e abs-

trata para todos, e atribuindo poder ao

juiz, foi a perda de uma certa seguran-

ça jurídica. Aquela espécie de arbitra-

riedade entregue às autoridades não foi

o ideal na vida prática. Então, procu-

rou-se caminhar para dar algum con-

teúdo àqueles conceitos vagos.

E fazendo um pouco de blague

com aqueles quatro famosos da Revo-

lução Cultural da China, Mao Tsé Tung,

a mulher e mais dois chineses, com-

pondo o bando dos quatro – também

tivemos o que chamo de “bando dos

quatro”, nesse período a que me refe-

ri, de reforço da atividade do juiz, de

Page 108: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

poderes para o juiz, que eram os con-

ceitos de ordem pública, função soci-

al, interesse público e boa-fé. Com es-

ses quatro conceitos, o juiz poderia

decidir o que bem entendesse, ou seja,

podia declarar: Isso não pode valer,

porque vai contra a ordem pública, ou

Esse contrato entre “a” e “b” fere a fun-

ção social. Entretanto, ninguém definia

ordem pública, função social, boa-fé,

nem interesse público; e este último

seria o pior, porque continua a vigorar

até hoje com o mesmo caráter vago.

Leio muito em petições de ad-

vogados, até em artigos de doutrina,

que o interesse público prevalece so-

bre o privado. A frase não diz absolu-

tamente nada, porque não é verdade.

Às vezes a dignidade humana, que é

interesse privado, tem de prevalecer

sobre o interesse público. Então, não

é tão simples assim.

Essas quatro expressões são as

que sofrem uma espécie de tentativa

de ter um certo conteúdo. O que se

procura é acabar com o conceito

axiológico, vazio que está incluído nes-

ses quatro e dar diretrizes materiais

para o Judiciário e até para a autorida-

de do Poder Executivo. Verificamos cla-

ramente que o conceito de função so-

cial não vem mais na Constituição bra-

sileira de 1988 como vinha em 1967,

em 1969, ou até antes. Referido con-

ceito era um instrumento do fascismo

vigoroso na Itália e foi um instrumento

fortíssimo também no regime comunis-

ta, mas, no regime democrático e na

Constituição de 1988, já não vem ape-

nas como função social. Os arts. 182

e 186 da Constituição tratam da fun-

ção social em relação à rural e à urba-

na; ou seja, procura-se dar conteúdo.

O conceito de ordem pública

está em decadência. Estive num con-

gresso internacional de língua france-

sa e verifiquei que, no mundo inteiro,

o conceito de ordem pública está em

decadência. Não estamos sustentando

que não há mais leis de ordem públi-

ca. Evidentemente, há leis cogentes,

mas ninguém utiliza o princípio da or-

dem pública sem um certo conteúdo,

porque quando a lei diz que isso é as-

sim e não pode haver contenção em

contrário, tudo bem. Obedecemos à lei

e nem precisamos qualificá-la de or-

dem pública ou não, mas temos de

obedecê-la, sabendo que ela é cogente.

Hoje, no entanto, o princípio de ordem

pública empregado dessa maneira

axiológica, vazia, não está mais vigo-

rando no pensamento avançado da

doutrina civilista.

Na questão da boa-fé, algo mu-

dou. Quando a jurisprudência alemã

surgiu no começo do século XX pro-

curando enquadrar uma série de hipó-

teses de injustiças concretas por meio

da utilização da boa-fé, esse trabalho

Page 109: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

levou a uma concretização da sua

idéia, que exige pelo menos quatro

pressupostos para que seja utilizada

pelo juiz.

O primeiro pressuposto que jus-

tifica, de uma certa maneira, a expres-

são boa-fé é a correspondência com

as expectativas criadas na outra parte.

Toda vez que alguém se comporta e

cria na outra parte uma série de ex-

pectativas, confiança – daí a palavra

fides –, temos o primeiro e importan-

tíssimo pressuposto: a expectativa.

Mas não basta para aquele que

vê as suas expectativas frustradas ape-

lar para um pedido de indenização ou

outro pedido qualquer de uma provi-

dência. É preciso que esse que tinha

expectativa tenha investido nela. É o

caso da questão da responsabilidade

pré-contratrual, por exemplo, em que

não há contrato e ninguém tem obri-

gação ou qualquer vínculo com o ou-

tro candidato ao contrato. Se o com-

portamento foi tal que criou uma ex-

pectativa, e se a pessoa que teve a ex-

pectativa gastar alguma coisa para fa-

zer o negócio, tal como contratar se-

cretária, perícia e assim por diante, e

depois, abusivamente, o possível con-

tratante romper as negociações, então

temos os dois pressupostos: expecta-

tiva mais investimento.

O terceiro pressuposto é que

seja uma expectativa fundada. O su-

jeito não pode ser um otimista

inveterado, como na história do meni-

no cujo pai não se conformava de ser

ele um otimista e o outro irmão sem-

pre um pessimista. No Natal, o pai dis-

se: Os dois acreditam em Papai Noel;

vou ver o que acontece. Para o meni-

no otimista o pai deixou umas coisas

nojentas, produto do intestino do ca-

valo, e deixou para o pessimista uma

bicicleta. Quando o pai acordou no dia

25, vieram os dois meninos, e o oti-

mista em vez de dizer: Papai, recebi

um resto de coisa do cavalo, disse:

Papai, ganhei um cavalo, só que ele

fugiu. Se o sujeito é otimista desse jei-

to, a expectativa não pode ser levada

em consideração. E o pior é que o pes-

simista quando recebeu a bicicleta dis-

se: Ih, o pneu já está furado. Bom, tudo

isso para mostrar que a expectativa

tem de ser fundada e séria.

Por fim, como quarto pressu-

posto, é preciso que a causa da ex-

pectativa tenha alguma ligação com a

outra parte. Assim, se juntarmos esses

quatro pressupostos, uma ruptura, por

exemplo, das negociações prelimina-

res pode levar à indenização.

Lembro-me dos conterrâneos

da Profa. Judith Martins Costa, particu-

larmente o Ministro Ruy Rosado de

Aguiar e, em homenagem a ela, vou

relatar um caso citado em seu livro

Page 110: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

mostrando bem o que acabo de dizer

sobre responsabilidade pré-contratual.

Era parte a Companhia CICA, que,

como sabemos, é conhecida no Brasil

inteiro como sendo fabricante de mo-

lho de tomate. Essa companhia costu-

mava comprar anualmente safras de

tomates dos agricultores do Rio Gran-

de do Sul. No momento da safra, os

produtores agrícolas compram e têm

plena liberdade para tanto, mas, neste

caso específico do Rio Grande do Sul,

a Companhia CICA, em um determina-

do ano, com interesse de ter tomate

de boa qualidade, distribuiu as semen-

tes para os agricultores gratuitamente;

portanto, criou a expectativa neles de

que a safra de tomates seria compra-

da por ela. Porém, no momento em que

os tomates já estavam produzidos, re-

cusou-se a comprá-los, dizendo que não

tinha prometido fazê-lo, pois estava em

dificuldades, e não era aquele um bom

ano.

Os produtores, no entanto, ha-

viam se fiado naquela situação, e vári-

os deles entraram com ações nos tri-

bunais do Rio Grande do Sul; há pelo

menos quatro delas, todas julgadas

procedentes a favor dos agricultores,

em que foi reconhecida a responsabili-

dade pré-contratual, e há uma em que

o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, espe-

cialmente, reconheceu que era um

caso da regra da boa-fé objetiva, por-

que, embora não houvesse contrato,

foram criadas expectativas, pela outra

parte, que tinham razão de ser, e hou-

ve investimento. Eis os quatro pressu-

postos.

Há mais um conceito vazio em

que a própria doutrina fixou algum con-

teúdo. Quanto a este ponto, estou di-

zendo que mudou o paradigma, por-

que não estamos entregues completa-

mente de mão amarradas, em uma es-

pécie de cheque em branco dado ao

juiz, por meio desses conceitos

indeterminados, especialmente do ban-

do dos quatro.

No caso do Projeto de Código

Civil, infelizmente não há essas diretri-

zes. O Projeto limita-se a dizer que os

contratantes devem comportar-se se-

gundo a boa-fé. Os Códigos modernos

trazem as diretrizes. O Código Civil ho-

landês, em edição trilíngüe inglês/fran-

cês/holandês, ao contrário do que al-

guns defensores do Projeto de Código

Civil têm dito, não foi feito como o Pro-

jeto de Código Civil brasileiro; está cer-

to que é um Código moderno, no sen-

tido de atual, de 1992, no seu início

de vigência, mas não posso deixar de

salientar que aqueles que estão ape-

lando para esse Código, dizendo que

países avançados têm feito Código Ci-

vil, estão de certa maneira induzindo

ao erro a platéia, porque ele foi feito

em vários projetos de lei – esse ponto

é importantíssimo.

Page 111: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

O Código Civil holandês tem

oito livros, cada qual, um projeto de

lei. As deliberações do Parlamento co-

meçaram em 1954, com a introdução

ao Projeto de Código Civil, e prosse-

guiram em 1960, 1962, 1968 e 1972;

cada vez se discutia um livro: O Livro

das Pessoas, o Livro das Pessoas Jurí-

dicas, o Livro da Família, o Livro das

Sucessões e o Livro das Obrigações e

dos Direitos Reais, que foram discuti-

dos juntos, como o direito patrimonial,

mas cada um foi um projeto de lei.

Naturalmente, não vamos po-

der dizer tudo o que se tem a dizer,

mas o que importa é que há muita con-

fusão nas discussões sobre

microssistema, descodificação etc. O

Ministro Moreira Alves fala que há pes-

soas defendendo a descodificação, e

isso não é a orientação dos holande-

ses. Esclarecemos quanto a esse pon-

to.

O grande problema de quem

critica o Projeto de Código Civil é que

o mesmo não foi amplamente discuti-

do pela sociedade e nem pode sê-lo,

nas condições em que vivemos hoje,

porque se levanto uma objeção, como,

por exemplo, “na parte relativa à frau-

de, o Código está atrasado”, outro pro-

fessor diz que, “na parte relativa à união

estável, não é assim”, e outro, diz que

“o nascituro não foi contemplado”, são

temas distintos, porque o Projeto de

Código Civil vai de A até Z com mais

de dois mil artigos, tratando de todas

as matérias. O que está fora de época

é justamente tratar de todos os assun-

tos.

Os holandeses não fizeram

isso, mas discutiram, durante dois

anos, família; depois, nos dois anos

seguintes, sucessões; mais dois anos,

pessoa jurídica; mais quatro anos, obri-

gações. Isso é o que chamo de códi-

gos temáticos, para evitar confusão. O

Ministro Moreira Alves fala em

microssistema; contrariamente a S.

Exa., o Professor Amaral diz que

estamos na idade da descodificação.

O ponto verdadeiro, no meu

modo de ver, é que não estamos em

uma época de descodificação propria-

mente, mas também não estamos em

uma época de um Código Civil unitá-

rio, completo, com todos os assuntos.

Como está no Código Civil holandês,

há projeto por projeto; depois de dis-

cutido, carimba-se e põe-se Código Ci-

vil em cima, mas não se trata de um

Código Civil discutido de ponta a pon-

ta, como se fala no Projeto de Código

Civil, tanto que consta aqui “Código

Europeu de Contratos”. O que os eu-

ropeus estão fazendo nesse conjunto

de países que é a União Européia? Es-

tão discutindo um código temático ape-

nas de contratos, como depois se pode

fazer um Código de Família, ou, um

Page 112: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

Código da Pessoa jurídica, incluindo-

se associações, fundações etc.

O problema nem é um

fracionamento um pouco anárquico de

se falar em descodificação com

microssistemas – isso me dá a impres-

são de pulverização, digamos, de tudo,

e também não é, como quer o Prof.

Reale e o Ministro Moreira Alves, um

projeto completo de muitos assuntos

que não permitem uma discussão; são

códigos temáticos. Estamos, portanto,

em outro tempo onde o Projeto de Có-

digo Civil ficou ultrapassado.

Terminando essa questão da

boa-fé, não há, em primeiro lugar, os

conteúdos que o mundo presente exi-

ge para os conceitos muito vagos; em

segundo lugar, trata-se de um proble-

ma de discussão do tipo de projeto que

não deveria ser completo, de ponta a

ponta.

Mas, no caso específico da boa-

fé, há uma grande insuficiência quan-

to aos momentos contratuais. Está cer-

to que, na linguagem comum, o con-

trato vigora daquele momento em que

é assinado até o momento final em que

é executado. Esse é o momento

contratual. O Projeto do Código prevê

isso como devendo ser o momento da

boa-fé dos contratantes. Porém, além

de tudo, ele é deficiente, porque não

trata do momento inicial, que é aquele

que eu dizia pré-contratual, nem do

momento posterior, chamado “pós-

contratual”.

Quanto à questão do pós-

contratual – tudo isso é matéria nova e

não vejo os assuntos explorados como

deveriam –, convém dizer, não costu-

mo ler em literatura jurídica brasileira

que há uma responsabilidade pós-

contratual e, no entanto, cito três exem-

plos que são tirados da doutrina ale-

mã e da portuguesa: em um deles, um

sujeito vendeu para outro um terreno

com uma vista bastante bonita para um

vale; nessa venda, o vendedor gabou

para o comprador que o imóvel tinha

aquela vista e que não a perderia por-

que era proibido construir em frente

ao terreno. Isso foi verificado pelo com-

prador, que fez o negócio jurídico e até

construiu, segundo a decisão, uma

casa que valia cinco ou seis vezes o

valor do terreno. Porém, depois que o

vendedor já havia recebido tudo e o

negócio estava completo, passada a

propriedade, ele foi à repartição, que

seria equivalente à nossa Prefeitura

Municipal, e lá conseguiu mudar o pla-

no de zoneamento, de forma que fos-

se permitido construir em frente ao ter-

reno que ele havia vendido. Então, ele

comprou o terreno em frente e fez uma

construção. Assim, o mesmo sujeito

que vendeu o lote gabando foi aquele

que depois frustou aquelas expectati-

vas do comprador de ter permanente-

Page 113: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

mente aquela vista. Não havia mais pro-

blema contratual, porque a compra e

venda estava feita e acabada, e a es-

critura, passada e registrada. Mas a boa-

fé é exigida como comportamento tam-

bém na fase pós-contratual. Então, te-

mos essa responsabilidade.

Exemplifico mais dois casos

para que fique bem evidente: uma con-

fecção fez cento e vinte casacos de pele

para uma butique. Naturalmente, tudo

foi acertado e pago, e o assunto foi

encerrado. Porém, quando a dona da

butique começou a vendê-los em um

shopping center, ela verificou, quinze

dias depois, que a butique vizinha es-

tava vendendo os mesmos casacos, ou

seja, o fabricante, a confecção, depois

que fez os casacos para ela, não teve

a boa-fé de não fabricá-los mais, pelo

menos para aquela loja que ele sabia

que era vizinha da outra. Então, houve

quebra da boa-fé.

Quanto ao terceiro caso, diz o

Ministro Moreira Alves não ser muito

claro. O terceiro caso é de um empre-

sário que resolveu construir um hotel

e precisava de carpete; procurou o

melhor preço e encontrou uma casa

que o vendia, mas não o colocava; fez

a compra e pediu à loja que indicasse

um colocador, a qual indicou um co-

nhecido, mas não lhe informou que o

carpete era de um tipo novo. O

colocador, pensando que se tratava de

um carpete comum, usou uma cola que

manchou o carpete inteiro do hotel.

Então, o empresário voltou-se contra a

casa comercial que vendeu o carpete,

porque ela teria, depois de tê-lo vendi-

do, agido de má-fé; ela deveria ter tido

mais cuidado, porque a boa-fé cria de-

veres para os contratantes. Então, te-

mos outro caso de responsabilidade

pós-contratual.

No Código de Defesa do Con-

sumidor, encontrei duas hipóteses que

não têm o nome de responsabilidade

pós-contratual, mas o são. Uma está

no art. 10 e a outra, salvo engano, no

art. 32; são as seguintes: trata-se da

empresa que vende, por exemplo, um

remédio ou um automóvel e verifica,

depois de algum tempo, que há um

perigo para o consumidor. Então, o

Código de Defesa do Consumidor obri-

ga justamente uma aplicação dessa

boa-fé pós-contratual, pois o fornece-

dor deve comunicar aos compradores

o risco que estão correndo, como no

caso do remédio ou do carro, como

vemos muitas vezes.

Então, em tese, poderíamos

pensar que o contrato está acabado,

pois o fornecedor já vendeu e recebeu,

e findou-se o contrato; seria o contrato

post pactum finitum, como dizem os

alemães, usando o latim. Há, nesses

casos, a responsabilidade pós-

contratual de comunicar o risco que

Page 114: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

está havendo.

O segundo caso que vejo no

Código de Defesa do Consumidor diz

respeito àqueles produtos que saem de

linha. O Código determina que o fabri-

cante, por causa do valor ou do tipo

do produto, tem a obrigação de man-

ter durante algum tempo – mas não

fixa o tempo – peças sobressalentes.

Também é responsabilidade pós-

contratual.

ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO:

Professor da Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo.

Page 115: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

DIREITO CIVIL E CONSTITUIÇÃO. RELAÇÕES DO PROJETO COM A CONSTITUIÇÃO.

ROBERTO ROSASJUDITH MARTINS COSTA

Page 116: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

A velha discussão se a Consti-

tuição deve ou não ser

detalhista não é o propósito

deste momento. A realidade é que te-

mos uma Constituição longa, exausti-

va, em que somente o art. 5º já é pon-

to de partida para inúmeras discussões

sobre todos os outros ramos do Direi-

to. Há também outros dispositivos re-

ferentes a assuntos como o Código Tri-

butário, que consta integralmente na

Constituição, a CLT e os direitos soci-

ais. O Direito Civil tem uma série de

implicações, as quais devem ser exa-

minadas à luz da Constituição, do Có-

digo e até em relação às influências

sobre o Projeto do Código Civil.

Fazemos uma abordagem gené-

rica sobre as relações do Projeto do

Código Civil e do Direito Civil com a

própria Constituição. Não se trata de

um estudo feito nem pelos professo-

res de Direito Civil, pelos civilistas, que

não vão à Constituição por não dese-

jarem entrar na seara alheia do Direito

Constitucional, nem pelos

constitucionalistas, que vêem esse dis-

positivo de natureza privada com um

cuidado imenso, com muito afastamen-

to. Ficamos, na verdade, sem um exa-

me mais aprofundado de temas muito

importantes. Na doutrina italiana, inclu-

sive, existe o chamado “Direito Civil

Constitucional”, dispositivos constituci-

onais que têm interferência no Direito

Civil, ou que extraem do próprio Direi-

to Constitucional o Direito Civil.

A primeira abordagem que fa-

remos é em relação ao direito à vida,

que a Constituição estabelece no art.

1º, e o que se entende por ser huma-

no. Daí em diante, chegaremos a ou-

tros aspectos que a própria Constitui-

ção exalta, que são aqueles direitos da

personalidade, os quais vão se proje-

tar em relação ao direito ao nome

como conseqüência da própria perso-

nalidade.

Celebrado pela Constituição no

art. 5º está o direito à imagem, que,

por vezes, a jurisprudência dos tribu-

nais de justiça – especialmente do Su-

perior Tribunal de Justiça – tem enfren-

tado à luz da reprodução de uma pes-

soa, da figura humana na fotografia,

no desenho, enfim, a utilização da ima-

gem de alguém sem autorização, como

uma projeção da própria personalida-

de. Portanto, trata-se do direito que te-

nho de não ser reproduzido ou ser apre-

sentado em qualquer lugar sem minha

autorização, porque aquilo está inseri-

do na minha personalidade.

Por sua vez, isso pode caracte-

rizar aspectos que contribuirão para a

desfiguração de uma determinada pes-

soa quanto ao caráter, à personalida-

de, à exposição, e, por isso, podería-

mos entender “imagem” não somente

como figura, como expressão corpo-

Page 117: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

ral, mas também como a projeção de

uma personalidade.

Desse direito de personalidade

permitir-se-á, também, o que a Consti-

tuição chama de “direito à intimidade”,

aquele em que a pessoa se mantém

reclusa, fora da projeção do debate

geral, daquilo que tem na sua intimida-

de, na sua vida privada, e, portanto,

não pode ser exposta de qualquer for-

ma à execração, ao debate e à exposi-

ção pública em referência àquilo que

não quer que seja levado adiante.

Então, vem a discussão sobre

quais são os limites dessa intimidade e

a proibição dessa exposição em rela-

ção aos homens públicos, que estari-

am fora dessa intimidade, quer seja a

do Presidente da República ao mais

modesto servidor público, quer seja a

do indivíduo em geral. O mais modes-

to servidor também tem a sua intimi-

dade que não pode ser conspurcada

e, por isso, está afastada da vida públi-

ca. O Presidente da República tem di-

reito de viver como quiser dentro da

sua casa, do Palácio, na intimidade

com a sua família; ninguém vai querer

saber o que faz, como vive dentro da

sua casa, como se veste, como se ex-

põe, se dorme no chão, sentado ou

na cama. Isso está interferindo com a

própria vida íntima da pessoa humana

que não pode ser atingida; portanto,

todos têm o direito a essa intimidade.

É importante observar – e isso

aparecerá no conjunto de todo o Pro-

jeto do Código Civil em geral, especial-

mente nos contratos – que a Constitui-

ção diz que a lei respeitará o ato jurídi-

co perfeito e a coisa julgada, especial-

mente em relação àquele.

Devemos examinar que o art.

5º, apesar de ter uma extensão talvez

inigualável em qualquer lei ou qualquer

instrumento legal no mundo, ainda, no

seu § 2º, que, a meu ver, é o mais im-

portante de todos, acresce: Além dos

direitos acima expostos, existem, tam-

bém, como direitos fundamentais,

aqueles inerentes aos princípios demo-

cráticos, à vida, ao comportamento, à

moral (...), e, daí em diante, cada um,

com bom senso, extrairá e colocará

aquilo que o Prof. Washington de Bar-

ros Monteiro dizia quando tratava do

desquite, que, no tempo em que se

chamava “injúria grave” aquilo que

todo bom advogado conseguia enqua-

drar como injúria grave. Não havia uma

definição para isso, qualquer aconteci-

mento no relacionamento conjugal

poderia ser enquadrado como injúria

grave. E aí está o § 2º do art. 5º para a

habilidade do jurista de conseguir co-

locar tudo aquilo que não foi colocado

acima.

Daí extrairemos uma série de

princípios que interessarão no relacio-

namento do Direito Privado, entre eles,

Page 118: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

o relativo à boa-fé. Hoje se sente no

próprio Direito Constitucional que há a

interferência desse princípio da boa-fé,

que se vai projetar no relacionamento

humano, no administrativo e no públi-

co em geral: administrador e adminis-

trado ou na relação entre as pessoas

privadas e, também, na relação da pes-

soa jurídica de Direito Público com ati-

vidade privada em geral.

Em relação aos contratos, o

eminente Mestre Miguel Reale, ontem,

na sua exposição, fez uma série de

observações a partir do conceito de

função social que o contrato deve ter,

por isso, tiramos uma série de evolu-

ções sobre a natureza contratual, mas,

antes de mais nada, o contrato sairá

daquela idéia do pacta sunt servanda,

de uma relação que alguém de mais

força tenha sobre outro, e impõe de-

terminadas condições sobre uma par-

te contratante. Aquilo que sempre se

diz da igualdade das partes contratan-

tes é uma certa ficção, porque, em ge-

ral, no contrato há um mais forte que

diz ao outro que deve aceitar aquelas

determinadas cláusulas e imposições,

principalmente se tiver dinheiro no

meio; quem o tiver é que dirá ao outro

como deve celebrar aquele determina-

do contrato sob pena de não obter o

numerário.

Mas há um aspecto do art. 5º

muito importante para o contrato que

é aquele relativo ao devido processo

legal. No Brasil, hoje, principalmente

no Direito Público, fala-se muito no de-

vido processo legal, principalmente a

partir de 1988, se bem que algumas

decisões judiciais anteriores àquele ano

já abordavam a respeito do devido pro-

cesso legal como uma cópia da Cons-

tituição americana, do the due process

of law.

Mas, no Brasil, há uma idéia do

devido processo legal processual,

quando, na verdade, a idéia america-

na é o devido processo legal substan-

cial. O sistema americano começou

com o devido processo legal proces-

sual, ou seja, o direito das partes em

um processo, igualdade das partes, di-

reito ao contraditório, à prova, à moti-

vação da sentença. Mas esse sistema

evoluiu para muito mais, e, o que hoje

domina, é o devido processo legal

substancial. Entram aí dois princípios

importantes: o da razoabilidade e o da

proporcionalidade. Ora, o que é razoá-

vel e o que é proporcional? Que ato é

razoável, que pode ser praticado e ser

entendido? E que ato é proporcional a

uma determinada situação?

Isso é, na verdade, no Brasil,

uma doutrina nova, os tribunais, prin-

cipalmente o Supremo Tribunal Fede-

ral, têm enfrentado o devido processo

legal substancial, e o próprio Superior

Tribunal de Justiça possui acórdãos tra-

Page 119: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

tando dessa matéria.

O que nos interessa para o con-

trato? Ele terá de ser examinado, tam-

bém, à luz do devido processo legal

substancial quanto à razoabilidade das

cláusulas, das obrigações, dos direitos

e quanto à proporcionalidade de obri-

gações e direitos decorrentes de um

determinado contrato, permitindo, por-

tanto, ao juiz que se faça esse exame

segundo o devido processo legal. Não

é “o processual”, como já estávamos

frisando, mas com muito mais impor-

tância para um exame daquilo que foi

estabelecido pelas duas partes.

Em relação à responsabilidade

civil, a Constituição avançou num ter-

reno que se discutia muito – pratica-

mente, em 1988, já estava desapare-

cendo a discussão –, qual seja, dano

moral. Este veio de longe; quando veio

o Projeto do Código Civil, em 1902,

escreveram dizendo que o projeto Cló-

vis Bevilácqua era velho e, portanto,

ele já estava ultrapassado porque não

tratava de dois assuntos: um, não tra-

tava do dano moral; outro, não tratava

do abuso de direito. E o Clóvis

Beviláqua escreveu um livro enorme,

como os muitos que o Prof. Miguel

Reale já escreveu para poder defender

o Projeto do Código Civil, para dizer

que trata do abuso de direito quando,

no art. 160, diz: Não constitui ato ilíci-

to aqueles praticados no exercício re-

gular de um direito, o que é irregular é

um abuso de direito. E em relação ao

dano moral, ele existe naquele capítu-

lo que trata da liquidação das obriga-

ções, que fala em preço de afeição, as

lesões decorrentes da moral contra os

costumes. Tudo isso vem fechar uma

condição de ordem moral e, portanto,

o dano moral estava previsto também

no Projeto.

Porém, essa discussão em rela-

ção ao dano moral durou vários anos

e muitos resistiram dizendo que não

havia como apagar a dor, o preço de

uma ofensa, como calcular essa dor e

essa ofensa. Aliás, esta é a grande cri-

se da indenização do dano moral até

hoje: fixar qual é o valor. Mas, depois

de certo tempo, a grande doutrina bra-

sileira e a jurisprudência sustentaram

a indenizabilidade do dano moral e o

próprio Supremo Tribunal Federal, há

muitos anos, antes de 1988, já tinha

fixado que o dano moral era

indenizável. Mas discutia-se se ele de-

veria ter repercussão patrimonial ou

não, ou somente a dor poderia ser

indenizável.

A Constituição veio e pôs um

fim a essa discussão, estabelecendo

que é indenizável o dano moral.

Agora há uma certa evolução e

as doutrinas argentina e italiana já es-

tão tratando do dano psicológico, que

Page 120: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

não é o dano moral. Posso estar abala-

do porque o meu time perdeu e vou

ficar constrangido. Moralmente não

estou abalado, mas, por exemplo,

quem torcer por um determinado time

que está perdendo reiteradamente está

abalado e não vai trabalhar, não vai

dormir mais, vai ter briga na casa dele.

Enfim, vai dizer que é um dano psico-

lógico e que alguém vai ter de indeni-

zar esse dano.

No aspecto família, há uma lon-

ga discussão quanto à interferência da

Constituição anterior e da atual em re-

lação ao Projeto do Código Civil, e não

somente em relação ao casamento. A

Constituição atual alterou a redação

que existia nas anteriores: A família é

constituída pelo casamento

indissolúvel, redação desde 1946, al-

terada em parte com a emenda relati-

va ao divórcio.

O Prof. Miguel Reale também já

frisava a igualdade dos cônjuges. Não

há mais aquela idéia de que o marido

é o chefe da sociedade conjugal. E isso

com uma série de projeções; por exem-

plo, a 4ª Turma do Superior Tribunal

de Justiça, da qual é integrante o emi-

nente Ministro Raphael de Barros

Monteiro, já decidiu, em relação àque-

le artigo do Código de Processo Civil,

quanto à competência naquelas ações:

no foro do domicílio da mulher... Se

há igualdade, desaparecerá aquilo que

significa uma desigualdade do próprio

art. 100, naquela fixação de competên-

cias para determinadas demandas de-

rivadas da relação conjugal, porque,

se há igualdade, deveria desaparecer

qualquer discriminação se a mulher ti-

vesse uma situação desigual.

Quanto à expressão “união es-

tável”, também, há uma conseqüência

imensa tirada dessa expressão; já há

duas leis sobre esse tema e já dizem

que há um terceiro projeto aguardan-

do para sair a fim de corrigir os dois

anteriores. Portanto, não é muito está-

vel essa união, porque ela continua ins-

tável até do ponto de vista legislativo.

Também em relação à supera-

ção da desigualdade entre filhos, na-

quela concepção antiga, legítimos e ile-

gítimos (adulterina), e os adotivos,

numa igualdade muito importante. Uma

vez li que não há filhos ilegítimos, os

pais é que são ilegítimos. O filho nun-

ca foi perguntado se queria vir ou não

ao mundo. Portanto, ele compareceu

e não tem de botar o sinete da desi-

gualdade, muito menos o da origem

do nascimento. A conseqüência é que

a Constituição e o Projeto trataram exa-

tamente dessa igualdade, e a mais im-

portante é em relação ao adotivo.

O Prof. Miguel Reale a realçava

em relação ao adotivo e parece-me

muito importante lembrar isso. A ado-

Page 121: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

ção é para efeitos de imposto de ren-

da: alguém quer adotar alguém para

dizer que tem um adotivo e, assim, des-

contar no imposto de renda – não sen-

do uma coisa séria; ou a adoção tem

um lado muito importante de afeição

por uma determinada pessoa e um al-

truísmo sensacional, que é alguém ti-

rar uma criança e trazer para uma fa-

mília, dar um status de família a deter-

minada pessoa que está na

marginalidade, que não tem nem a dig-

nidade de um nome de origem, de pa-

ternidade e maternidade. Por isso a

adoção tem um significado muito es-

pecial. Lei anterior procurou fazer dis-

tinção entre adoção e legitimação ado-

tiva; posteriormente, adoção simples

e adoção plena, numa desigualdade

que ficava muito acentuada ao dizer:

ou é adotivo ou não é.

Sendo adotivo, há necessidade

de se apagar os laços dos pais anterio-

res; e a criança será inserida em uma

determinada família. É claro que os fi-

lhos consangüíneos têm resistência à

adoção. Mas, afinal, não é uma socie-

dade comercial, onde o sócio não quer

que entre outro para impedir os lucros

ou determinadas vantagens, mas, sim,

trata-se de um aspecto social. Quem

deve comandar são os pais e não os

outros filhos que estão ali apenas pela

avidez de obter determinada herança

e, portanto, não querem que ninguém

entre na família. Se pudessem, alguns

até tirariam outros para ficarem como

sócios únicos daquela determinada he-

rança. Realmente, do ponto de vista

moral e ético, não tem sentido.

A nossa Constituição, no seu

art. 5º, menciona o direito à herança.

Nenhum jurista, até hoje, conseguiu

entender por que o direito à herança

está na Constituição. Mas há uma con-

seqüência muito importante para o Di-

reito Civil e para o Projeto, que é a im-

possibilidade total ou absoluta da ex-

clusão de alguém de uma herança, via

incomunicabilidade de bens, indignida-

de, deserdação, que são formas de ti-

rar a herança de determinada pessoa.

Como na Constituição, dizendo

que é assegurado o direito à herança,

pode haver a figura da indignidade? Por

exemplo, o filho que atentou contra a

vida do pai, ou a deserdação desse

mesmo indigno, ou daquele filho que

não cuidou devidamente do pai, da sua

saúde, da sua vida, dos seus alimen-

tos: Há possibilidade dessa sanção?

Acrescento ao Projeto um pon-

to muito importante que é a cláusula

de incomunicabilidade, a qual torna os

bens de uma determinada pessoa in-

comunicáveis; por exemplo, no casa-

mento do seu filho ou descendentes.

Essa incomunicabilidade não deve ser

feita de forma secreta ou que fique na

mente de uma determinada pessoa

Page 122: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

que não quer comunicar por não gos-

tar do genro ou da nora, quer dizer,

fica um pouco secreta do ponto de vis-

ta social e familiar. Mas é claro que, se

ele tem o direito à herança, tem de ha-

ver uma justificação para assegurar a

exclusão.

Em relação à propriedade, vol-

tamos à Constituição naquilo que as-

segura que a propriedade deve ser

exercida segundo uma determinada

função social, para chegar à possibili-

dade da perda da propriedade pela

desapropriação, pelo confisco.

Certo dia, o Prof. Orlando Go-

mes disse-me que a função social da

propriedade muitas vezes mascarava

sua utilização, pois a pessoa plantava

três pés de milho e dizia que já estava

tudo plantado, e que, por isso, havia

uma função social dela. Na verdade,

aquilo ficava no vazio, ele continuava

sem utilizá-la devidamente e, conse-

qüentemente, ficava a terra sem uma

finalidade social.

É preciso exigir uma compro-

vação da utilização da propriedade se-

gundo a sua função social, principal-

mente naquela que poderia ser explo-

rada por outras pessoas. Muitos utili-

zam a sua propriedade, mas prejudi-

cam terceiros, os vizinhos, aqueles que

estão diretamente relacionados com

ela. Hoje, com a poluição e o prejuízo

ao meio ambiente acentuados, tem

muito mais sentido do que a linguagem

do próprio Código – poluir a água de

alguém no capítulo das águas e do di-

reito das coisas. A palavra poluir vem

do latim polluere, e muitos pensam que

essa palavra é nova, por causa de um

assunto que está na moda atualmen-

te, que é o meio ambiente.

Em relação à empresa e ao

empresário, é muito importante um rá-

pido exame dessa matéria, porque a

Constituição tem uma estrutura econô-

mica e, sendo assim, vai preocupar-se

também com as atividades inerentes à

atividade econômica, especialmente

com relação à empresa.

A própria Constituição diz que

a empresa pública é regida pelo direito

das obrigações, e não quer discutir,

porque esse assunto vem da Constitui-

ção anterior, sinalizando que a empre-

sa pública e a sociedade de economia

mista regem-se pelo Direito Tributário,

pelo Direito das Obrigações, e nas re-

lações trabalhistas pelo Direito do Tra-

balho, para que digam que ela é es-

sencialmente privada, ainda que o po-

der público tenha um capital total,

como na empresa pública, ou tenha

uma maioria na sociedade de econo-

mia mista. Dividiremos essas figuras.

Foi o que a Constituição fez de longa

data e está, atualmente, reafirmando.

Em toda estrutura econômica

Page 123: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

da Constituição, a idéia é de livre con-

corrência, livre iniciativa e, portanto,

significa uma grande projeção e impor-

tância para a empresa privada também,

que é a do empresário e está tratada

no Projeto do Código Civil.

O atual Código foi atingido em

alguns pontos por força de dispositi-

vos da Constituição, como em relação

à família ou ao pátrio poder. Mas, se

temos uma norma maior, que fixa uma

diretriz para o Direito Privado, é impor-

tante que haja esse relacionamento.

Isso está progredindo no Brasil, cau-

sando um exame mais aprofundado da

matéria.

ROBERTO ROSAS: Professor da Uni-

versidade de Brasília.

Page 124: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Como pano de fundo da relação

entre a Constituição brasileira

e o Projeto do Código Civil está

um problema maior, teórico e prático,

qual seja, o da relação entre o Direito

Constitucional e o Direito Civil. Essa re-

lação deve ser visualizada, para melhor

compreensão, pela comparação entre

dois modelos: o do passado, que cha-

mo de “modelo da incomu-

nicabilidade”, e o do presente, que cha-

mo de modelo da comunicação e da

complementaridade.

Não há dúvidas de que, princi-

palmente no século XIX, época em que

se cristalizaram os fenômenos do

constitucionalismo e da codificação,

essa relação Constituição e Código

possuía uma configuração muito pre-

cisa. Ambos – Constituição de um lado,

Código de outro – formavam dois mun-

dos que não se tocavam. Andavam pa-

ralelos, como universos de normas que

não se relacionavam senão sob o as-

pecto formal, isto é, quando uma nor-

ma da Constituição superveniente tinha

um sentido absolutamente contrário à

norma do Código Civil; ocorria – e ocor-

re até hoje – o fenômeno da revoga-

ção pela incompatibilidade entre a nor-

ma de menor hierarquia com a de mai-

or hierarquia. Era apenas esse o ponto

de relacionamento entre a Constituição

e o Código Civil.

O modelo da incomunica-

bilidade era uma resposta típica do sé-

culo XIX para essa questão. Isso por-

que temos de partir do exame das con-

cretas constituições e dos concretos

códigos do século XIX. A Constituição

surge como um documento político

que tem como objetivo apenas definir

normas de organização e competên-

cia do Estado. O exemplo francês é

paradigmático. A Constituição france-

sa de 1875 limitava-se a definir o fun-

cionamento dos poderes públicos e as

relações entre os distintos órgãos do

Estado, sem nenhuma alusão às cate-

gorias regidas pelo Direito Privado. Isso

ocorreu nas nossas Constituições de

1824 e 1891.

A Constituição era uma Carta

política que não incidia em outros ra-

mos do Direito, senão em situações

absolutamente excepcionais e margi-

nais. Diante da instabilidade incondici-

onal, tivemos, por exemplo, em 90

anos, seis Constituições e apenas um

Código Civil. Na França, várias consti-

tuições também e, em duzentos anos,

um Código Civil. O Código Civil alçava

como monumento de permanência, de

estabilidade, como uma referência fir-

me e imutável para o direito comum,

enquanto a Constituição era domina-

da pelo princípio da instabilidade.

Um terceiro elemento que con-

sidero fundamental é o próprio caráter

da Constituição. A Constituição contin-

Page 125: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

ha escassos princípios, ao contrário da

Constituição Federal de 1988. O con-

teúdo dos princípios era considerado

meramente programático, de eficácia

contida, e todo o problema da

efetividade das normas constitucionais

passa por essa concepção. A natureza

dos princípios não era sequer conside-

rada normativa. Foi preciso os estudos

mais recentes de Robert Alex, dentre

outros, para afirmar que princípio é

norma jurídica, portanto, tem nature-

za e eficácia normativas. Essa distin-

ção entre princípio e norma servia para

escamotear o problema ou para negar

a natureza normativa dos princípios,

isso do lado da Constituição. O Códi-

go Civil, por sua vez, possuía uma ou-

tra missão, desde a Revolução France-

sa, quando surge a codificação de ex-

purgar o direito dos privados – e isso é

feito pelos privados.

Tratava-se apenas das normas

feitas pelo Estado para os privados. O

Estado pretendia que essas normas

fossem postas, em um documento cha-

mado “código”, de um modo absolu-

tamente incompleto e total; os códigos

eram dominados pela pretensão de ple-

nitude lógica e completude legislativa.

Muitas críticas ao Projeto, por-

que não tratou de informática, de

bioética, decorrem da sobrevivência da

idéia que tem o Código de prever tudo.

Por fim, acreditava-se na exis-

tência de uma dicotomia, absolutamen-

te funda e intransponível com o Direi-

to Público de um lado e o Privado do

outro. Acreditava-se, mais ainda, que

o Direito Privado não tinha caráter so-

cial, quer dizer, como se o caráter so-

cial das normas fosse uma coisa estra-

nha ao Direito Privado. O mais impor-

tante nesse modelo de relacionamen-

to, da incomunicabilidade, era a diver-

sidade valorativa ou axiológica.

Os códigos oitocentistas – e o

nosso Código de 1916 é o último gran-

de código do século XIX, como disse

com razão Pontes de Miranda – eram

fundados no que McPerson chamou de

individualismo possessivo. Além des-

se comprometimento ideológico, essa

pretensão de completude legislativa

fazia com que o Código fosse o único

documento normativo a dar respostas

para os problemas da vida civil. Por

isso, costumo dizer que o modelo da

incomunicabilidade é um modelo da

exclusão, absolutamente totalitário. E

é por isso, também, que a relação Có-

digo e Constituição era basicamente

formal, hierarquizada, não-dialética e

não-complementar. Tal modelo está

completamente alterado e essa relação

se alterou porque, evidentemente, os

dois pólos do dueto – a Constituição e

o Código Civil – mudaram.

Em primeiro lugar, o Direito

Constitucional e a Constituição passam

Page 126: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

a abranger a absorção de matérias que

são substancialmente de outros cam-

pos, mas o que nos interessa é o Direi-

to Civil. Basicamente passa a transfor-

mar em direito positivo, legal, princípi-

os que tradicionalmente eram tidos

como pré-positivos, de formulação

jurisprudencial, por exemplo, the right

to be alone, o direito de ficar sozinho,

a privacidade, construção da jurispru-

dência norte-americana, ou princípios

provindos do direito natural, por exem-

plo, das declarações de direito

iluministas, como o princípio da digni-

dade da pessoa humana etc.

Depois, como segundo fator, a

teoria do Direito Constitucional, forte-

mente influenciada pelos tribunais

constitucionais da Alemanha, Espanha,

Portugal. Hoje a França passa a admi-

tir que princípio é norma, o que acaba

por modificar totalmente a teoria da

interpretação constitucional. E passa a

admitir que a Constituição tem eficá-

cia nas relações interprivadas, isto é,

seus direitos fundamentais, ao invés de

serem oponíveis apenas contra o Esta-

do, passam a ter uma eficácia erga

omnes, inclusive nas relações

interprivadas. A questão é só saber

como se opera essa eficácia: se é ime-

diata, se precisa ou não da mediação

do juiz ou da lei ordinária, do ponto de

vista do Direito Constitucional e da

Constituição.

Do ponto de vista do Direito Ci-

vil, as mais profundas transformações:

desde a segunda metade do século XX,

assistimos ao fenômeno da

funcionalização do direito subjetivo.

Isso começa com o direito de proprie-

dade; a Constituição de Weimar atinge

o pátrio poder, o poder-dever e não

apenas um poder, os direitos de crédi-

to, pela ampliação da figura do abuso,

pela compreensão que o abuso não

contém elementos de ordem subjeti-

va, por exemplo, o dolo, o que já dizia

Pontes de Miranda e Clóvis Beviláqua,

pela incidência do princípio da boa-fé

objetiva etc. Todas essas novas teori-

as vêm dizer só uma coisa: que o direi-

to subjetivo não é o poder da vontade,

como diziam os pandectistas do sécu-

lo passado, ele é um direito-função e,

portanto, é dotado de uma função so-

cial. E, com isso, aquela equiparação

que muita gente ainda faz do Direito

Civil como um Direito individualista e

egoístico “cai por terra”. O Direito Civil

tem sim uma função social e uma for-

te carga social.

Em segundo lugar, isso passa

por um problema de metodologia. Os

códigos, a partir da segunda metade

do século XX, não têm mais aquela

pretensão de tudo abarcar: a preten-

são da plenitude legislativa. São códi-

gos, em um certo sentido, mais mo-

destos. Não são totalitários, abrem es-

paço para a emergência de outras fon-

tes de produção jurídica, tais como a

Page 127: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

sentença judicial, que é fonte de direi-

to positivo e de produção jurídica. No

Projeto há uma quantidade imensa de

referências aos usos e aos costumes

do lugar, isto é, dando um espaço mui-

to grande para aquilo que a doutrina

chama de “poder social” ou “poder da

sociedade”. Realmente, tem o direito

feito pelos privados, e não somente

para os privados; portanto, é um códi-

go que não pretende que tudo já ve-

nha respondido e modestamente abre

espaço para que o Direito Privado – o

direito produzido pela sociedade civil,

que é absolutamente dinâmico – cons-

trua-se e se reconstrua permanente-

mente. Por isso, ele deixa tanta voz para

a jurisprudência, que está em contato

direto com o direito da vida, não o di-

reito dos livros, e é por isso que ele

abre espaço para a sociedade civil por

meio do reconhecimento e do valor

jurídico dos usos.

Em vista disso, o Código não

regula matérias tais como informática

e bioética – não me convenceu o argu-

mento de que esse Código começou a

ser redigido antes da informática. Se

fosse redigido hoje ou daqui a dois

meses, as mudanças na informática

tornar-se-iam superadas.

Evidentemente, isso tem de ser

regulado em leis que fiquem à parte

do Código, o que o Prof. Reale chama

de “leis aditivas”, no sentido de que

são leis que precisam ser modificadas

com muito mais rapidez. Um código

não pode estar sujeito à revisão

legislativa a cada seis meses, porém,

uma lei simples, por exemplo, que re-

gule a bioética, outra área que evolui

com rapidez, pode. Sempre que abro

a Folha de S. Paulo, observo que na

última página do primeiro caderno há

alguma novidade em matéria de gené-

tica e bioética. Isso não pode estar no

Código, que tem uma certa função de

cristalização, de permanência e de con-

tinuidade.

Por último, a idéia do Direito Pri-

vado, o seu princípio fundamental, que

é a autonomia privada, tem por objeto

basicamente as relações patrimoniais,

aquilo que se chama “a lógica proprie-

tária”. Essa idéia cede espaço à noção

de que o Direito Privado constitui tam-

bém, e fundamentalmente, o lugar de

tutela de valores existenciais e não ape-

nas de patrimoniais.

Dessa forma, a jurisprudência

mais recente dos tribunais alemães e

portugueses legitima o princípio da

autonomia privada pelo princípio do li-

vre desenvolvimento da personalidade,

que tanto impulsionou a civilística ale-

mã desde o início do século, e que se

vincula estreitamente a um princípio

constitucional, que é o princípio da dig-

nidade da pessoa.

Vejo, a partir daí, a importância

Page 128: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

da compreensão dessa relação entre

o Projeto e o Código.

As maiores críticas que têm sido

feitas ao Código – não que ele seja

infenso a críticas pontualmente – dizem

respeito ao modelo, porque ele tem clá-

usulas gerais, conceitos

indeterminados, porque não tratou dis-

so ou daquilo. O Projeto de Código

configura uma estrutura que está apta

para receber os valores constitucionais

e trazer para o seu interior essas maté-

rias de Direito Civil que a Constituição

tem tratado. Ele é, portanto, um meio

importantíssimo para expansão da

normatividade dos direitos fundamen-

tais, um Código importantíssimo para

a continuidade do processo e

positivação dos direitos fundamentais

previstos na Constituição. Tenho dito

que ele é um documento de afirma-

ção e expansão da normatividade

constitucional. Em primeiro lugar, em

razão da sua estrutura, realmente não

pretende abarcar tudo, uma vez que

têm matérias que foram deixadas de

fora, porque assim deve ser, pois são

matérias que requerem um certo dina-

mismo; em segundo lugar, em razão

da sua linguagem, o Código tem, em

inúmeras passagens, uma linguagem

de uma tessitura aberta que dará mui-

to trabalho para o juiz, mas exigirá a

sua responsabilidade para que

corresponda à sua direção etimológica:

jurisprudência, e que realmente con-

cretize o Direito.

O fato de o Código conter isso

não significa que não haja o fenôme-

no paralelo na atualidade da fuga do

Judiciário no sentido da resolução das

questões por outras ordens, como ar-

bitragem, enfim outros modos de solu-

ção de conflitos, mas, evidentemente,

o papel e a responsabilidade do juiz

não ficam esmaecidos pela existência

dessa outra forma.

Queria apenas exemplificar es-

sas proposições por meio do exame

concreto do projeto em dois campos,

poderia escolher vários campos, mas

toda escolha importa em amputações,

daí por que escolhi duas.

Primeiro, a modificação da teo-

ria da personalidade e, segundo, a do

fenômeno da relação obrigacional. Sa-

bemos que vigora entre nós o princí-

pio da dignidade da pessoa. Esse é um

princípio de Direito Constitucional e de

Direito Civil. A Constituição Brasileira,

no art. 1º, inc. III, eleva a dignidade da

pessoa à condição de fundamento da

República e o princípio ali expresso não

vem isolado, informa praticamente

todo o catálogo dos direitos fundamen-

tais do art. 5º. Informa, por exemplo,

a igualdade prevista no inc. I, o direito

geral de ação, previsto no inc. II, a li-

berdade religiosa, a liberdade de expres-

são, a tutela da vida privada, da hon-

Page 129: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

ra, da intimidade, da imagem, a

inviolabilidade do domicílio, da corres-

pondência, das comunicações, do si-

gilo processual, os princípios gerais da

atividade econômica, que estão no art.

170, enfim, não só os contidos no art.

5º, mas os outros direitos fundamen-

tais que estão espalhados na Consti-

tuição, por exemplo, em matérias de

ensino, de cultura, de meio ambiente,

de proteção da família, de integridade

física, de usucapião constitucional, de

direito à saúde etc. Todos são direitos

fundamentais que têm a sua raiz, a sua

razão de ser, no princípio da dignida-

de da pessoa.

O Código Civil vigente, de 1916,

não se refere a este princípio, e os

constitucionalistas tratam-no como se

fosse de Direito Constitucional, mas, na

verdade, é de todo o Direito e, funda-

mentalmente, nuclear do Direito Civil.

Orlando de Carvalho, um grande mes-

tre português, diz, com toda a razão,

que, se é inconcebível um Estado de

Direito sem Estado, é inconcebível um

Direito Civil sem civis, sem pessoas.

Portanto, evidentemente que o reco-

nhecimento da pessoa civil constitui o

coração do Direito Civil contemporâ-

neo. É, na verdade, seu problema cen-

tral, porque enseja a abertura para a

discussão dessas tutelas sobre os va-

lores existenciais. O Prof. Roberto Ro-

sas lembrou a ampliação, por exem-

plo, dos casos de responsabilidade ci-

vil para abarcar também os chamados

“danos à vida existencial”, “danos à

vida de relações”. Hoje a jurisprudên-

cia estrangeira está cheia de casos e,

em alguma medida, a nossa jurispru-

dência.

Podemos – sempre fazendo a

comparação com o paradigma anterior

– afirmar que a codificação oitocentista

não contemplava a principal projeção

no campo civil do princípio da digni-

dade da pessoa, que são os direitos

da personalidade. Diria que o Código

Civil vigente traz uma teoria da

pessoalidade, mas não da personalida-

de, e essa é uma distinção importante,

porque, de uma longa tradição, via-se

o ser pessoa apenas como capaz de

contrair direitos e obrigações. Havia

essa equiparação entre pessoa, sujei-

to de direito e capacidade.

Portanto, pessoa, para a ótica

do Código Civil, é aquele sujeito capaz

de contrair direitos e obrigações. Na

verdade, alguns autores atribuem essa

teoria da pessoalidade ao reflexo das

concepções clássicas que tiveram uma

larga força expansionista, inclusive en-

tre nós, considerando que o patrimônio

era a emanação da personalidade.

Com isso, houve uma espécie de

patrimonilização da própria pessoa,

que era vista apenas na sua dimensão

técnica como um ser capaz de contra-

ir direitos e obrigações, visão absolu-

Page 130: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Série Cadernos do CEJ, 20

tamente reducionista. No entanto, a

partir da Segunda Guerra Mundial, a

reflexão ética – que foi ensejada pela

emergência dos direitos fundamentais

de segunda geração e pelo desenvol-

vimento, na Alemanha, pela

pandectística tardia da teoria dos direi-

tos de personalidade – provocou uma

mudança completa nessa perspectiva.

O direito de personalidade, di-

ferentemente do direito da

pessoalidade, é aquele que garante ao

seu sujeito um domínio sobre um se-

tor da sua própria esfera da personali-

dade. São os direitos da própria pes-

soa que resultam do fato de ser pes-

soa, da irredutibilidade essencial do ser

pessoa e, evidentemente, provocam

uma superposição do ético ao técni-

co, porque ensejam a expansão daqui-

lo que Orlando de Carvalho diz que é

a questão central da teoria da perso-

nalidade, a questão do desenvolvimen-

to do chamado “livre desenvolvimen-

to da personalidade” e da sua tutela

pela ordem jurídica, que tem de asse-

gurar condições essenciais para que a

personalidade de cada um de nós se

desenvolva livremente e não sofra ata-

ques injustos.

Hoje, diante da moderna teoria

da personalidade, pessoa tem um sen-

tido global, um sentido unitário como

expressão de todo um conjunto de

ações que leis positivas venham asse-

gurar. É exatamente essa perspectiva

que está por detrás do art. 1º, inc. III,

da Constituição Federal, hoje conside-

rado o princípio fonte de toda a teia

dos direitos de personalidade e, inclu-

sive, elevado à categoria de direito fun-

damental do homem assim consagra-

do pela Declaração dos Direitos da

ONU.

Com base nessa mesma idéia,

a jurisprudência civilística alemã vem

interpretando a dignidade da pessoa

como sendo, além de um direito fun-

damental, um programa constitucional,

portanto, em constante expansão, e

como princípio básico do Estado de-

mocrático de Direito. A jurisprudência

portuguesa, como já havia anunciado,

não só essa como a espanhola e a ita-

liana, vem situando todas as discussões

acerca da autonomia privada nos seus

limites e a sua configuração como uma

das expressões do livre desenvolvimen-

to da personalidade. Entre nós, é bem

verdade, esse princípio ainda tem es-

casso desenvolvimento

jurisprudencial, talvez pela tradição

exegética que ainda domina muito as

nossas escolas, embora haja alguns co-

rajosos acórdãos. Daí a importância do

Projeto, que, já nos anos 70, estava

em consonância com a mais avança-

da civilística, porque,

incontroversamente, contempla os di-

reitos da personalidade, buscando dar

um tratamento sistemático a essa ques-

Page 131: As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil - vol20

Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

tão.

O Projeto dedica aos direitos da

personalidade o Capítulo II do Livro 1º

da Parte Geral, e o elemento articulador

de todo o sistema é o art. 11, que diz:

Com exceção dos casos previs-

tos em lei, os direitos de personalida-

de são intransmissíveis, irrenunciáveis,

não podendo o seu exercício sofrer li-

mitação voluntária.

Tal regra é completada pelo art.

12, que tratará da reparação dos da-

nos aos direitos de personalidade; os

arts. 13 a 15 tratarão da regulamenta-

ção da tutela à integridade física, que

é uma projeção da vida privada; os

arts. 16 a 19, do direito ao nome e da

sua utilização; o art. 20, da preserva-

ção da imagem. No art. 18, inclusive,

não se pode usar o nome “além pro-

paganda comercial”, com isso reco-

lhendo o que a jurisprudência já vinha

oferecendo. O art. 21 contém, ainda,

o que penso ser da maior relevância:

uma cláusula geral de proteção à vida

privada nesse tempo em que ela está

sujeita a ataques não só do Estado,

mas, basicamente, do poder econômi-

co e dos meios de comunicação, mais

forte do que o poder do Estado:

A vida privada da pessoa física

é inviolável, e o juiz, a requerimento

do interessado, adotará as providênci-

as necessárias para impedir ou fazer

cessar ato contrário a esta norma.

Hoje em dia as pessoas famo-

sas é que estão mais sujeitas a revis-

tas, como a “Caras”, a “Chiques e Fa-

mosos”, que se acham no direito de

publicar o que quiserem sobre uma

pessoa, especulando se está ou não

com AIDS simplesmente porque entrou

no hospital. Esta atitude é uma intro-

missão absoluta na vida privada que

quase não há defesa, ou há uma mui-

to pequena por meio da ação de res-

ponsabilidade por danos:

(...)o juiz, a requerimento do in-

teressado, adotará as providências ne-

cessárias para impedir ou fazer cessar

ato contrário a esta norma.

Quais são as providências? Não

está dito, nem deveria, no meu enten-

der.

O Código de Hammurabi era

casuístico. Ele dizia, por exemplo, que,

se o jumento de alguém entrasse no

terreno do vizinho e derrubasse o tarro

de leite, o dono deveria pagar por isso.

Quem deve concretizar as cláusulas

gerais dos conceitos abertos? Eviden-

temente, a jurisprudência é a única for-

ma de um Código não se tornar velho

em seis meses ou em um ano. Este é o

papel da jurisprudência: responsável,

criativa e firme. Então, nesse caso, o

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Série Cadernos do CEJ, 20

juiz deferiu a responsabilidade de

estatuir providências que são feitas ao

juiz. Na Alemanha, isso é feito de uma

forma arbitrária, aleatória? Não. A ju-

risprudência vai, com o tempo, forman-

do grupos de casos de decisão e, por

meio deles, retira-se a norma. No caso

de um ataque por uma revista etc., é

esta a providência. Enfim, conforme a

situação concreta da vida, a jurispru-

dência dará uma resposta e, com o

tempo, paulatinamente, formará esses

grupos de casos.

O Prof. Miguel Reale ensinou

como ninguém que a jurisprudência é

fonte de produção jurídica, pois pro-

duz modelos jurídicos. Costumo dizer

que o juiz é a boca da lei. Ele deve

emprestar sua voz responsável para

que a lei, nesses casos, tenha voz.

Gostaria de falar a respeito do

direito obrigacional. Trago alguns exem-

plos mostrando que, a estabelecer a

dignidade da pessoa humana e a ado-

tar, como uma de suas diretrizes fun-

damentais, a solidariedade social (art.

3º, inc. I, da Constituição), o Projeto,

que é anterior à Constituição, está apto

a receber essas diretrizes fundamentais

porque “solidariedade” é uma expres-

são muito ampla e, evidentemente, pre-

cisa ser concretizada. O Projeto con-

cretiza esses deveres decorrentes da

solidariedade social em inúmeras pas-

sagens, como nos direitos reais em

matéria de direito à empresa. Mas, gos-

taria de examinar, especificamente, no

Direito das Obrigações, alguns artigos.

No art. 112, introduz-se norma

de interpretação dos negócios jurídicos

fundamentada na boa-fé, confiança e

lealdade recíprocas. No art. 152,

reintroduz-se, no Direito brasileiro com

caráter geral, isto é, em todas as rela-

ções regidas pelo Direito Civil e Direito

Comum, o instituto da lesão que havia

sido expurgado por Beviláqua, em

nome da modernidade, do individua-

lismo possessivo da sua época. Por

quê? Porque não é eco distanciar-se do

justo preço e aproveitar-se dos injus-

tos preços. No art. 186, consider-se ato

ilícito que excede manifestamente os

limites impostos pelo seu fim econô-

mico-social, pela boa-fé, pelos bons

costumes, impondo isso aos contratan-

tes.

O art. 316 confere ao juiz o

poder de corrigir a desproporção exis-

tente entre o valor da prestação devi-

da – trata-se de regular o pagamento –

e o momento da execução, caso a des-

proporção seja ocasionada por moti-

vos imprevisíveis. Isso vai apanhar uma

série de casos de enriquecimento

injustificado que hoje a jurisprudência

tem uma certa dificuldade em resolver.

O art. 412 trata da cláusula pe-

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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro

nal. O atual art. 924 do Código Civil

diz que O juiz pode reduzir a cláusula

penal – portanto, é uma faculdade mui-

tas vezes não usada. Naquele introduz-

se um dever: O juiz deve reduzir a cláu-

sula penal quando a desproporção for

muito grande.

O art. 421 acolhe o princípio da

boa-fé objetiva sobre o qual um curso

é pouco para se falar a respeito. O que

é mais importante? O princípio da boa-

fé objetiva não é uma norma para fi-

car no vazio. Ela, concretamente, im-

põe aos participantes do tráfico

negocial uma série de deveres que são

de consideração aos interesses do álter,

da outra parte da relação. Esses deve-

res decorrem da solidariedade social

porque são relações de cooperação.

Com referência às relações

obrigacionais, Emílio Betim já dizia, nos

anos 50, que elas são relações de coo-

peração. As partes contratantes têm

interesses antagônicos, mas devem

desenvolver atividades de cooperação

para que o contrato chegue ao seu

adimplemento. Se, por exemplo, o cre-

dor se recusa a receber o pagamento,

o devedor não pode pagá-lo. É preciso

a colaboração do credor para que o

devedor pague.

O art. 477 trata da resolução

por onerosidade excessiva. Hoje em

dia, a resolução se deve só aos casos

de impossibilidade; aqui, ela se alarga.

A jurisprudência vem construindo isso.

Considera-se que não é justo, não é

eco, não é solidário no trato social, o

locupletamento na relação contratual,

que é de colaboração em razão de uma

excessiva onerosidade. Permite-se,

portanto, a resolução.

Matéria de responsabilidade ci-

vil. O art. 943, caput, fixa o princípio

tradicional de que a indenização se

mede pela extensão do dano. Mas, no

parágrafo único, ele determina ao juiz

que – vejam aí o princípio da

proporcionalidade –, no caso de des-

proporção entre a gravidade da culpa

e o dano, reduza eqüitativamente a in-

denização. Isso é uma projeção do

princípio constitucional da

proporcionalidade em matéria de res-

ponsabilidade civil.

Matéria de função social do con-

trato. A função social não se confunde

com a função coletiva ou de coletivis-

mo dos anos 30. O contrato é a veste

jurídica das operações econômicas. As

operações econômicas, principalmen-

te as de grande impacto social, inte-

ressam a toda a estrutura da socieda-

de, não só aos contratantes. Ninguém

me dirá que um contrato para aquisi-

ção da casa própria, um contrato de

prestação de serviços educacionais,

enfim, contratos com essa dimensão

social não têm função social. É claro

que eles a têm e interessam a toda a

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Série Cadernos do CEJ, 20

sociedade. O Projeto dá um valor

operativo para o princípio da função

social, opera a concreção

especificativa desse princípio condici-

onal e, em um certo sentido, transfor-

ma-se, no Código Civil, em um Projeto

até mais amplo do que o próprio Códi-

go do Consumidor, porque ele não es-

pecifica quais são os casos em que o

julgador deve dizer se há mais função

social ou não para anular determinada

cláusula, como ocorre no Código do

Consumidor, em que isso já vem pre-

determinado. Portanto, ele permite que

esses grupos de casos sejam corrigi-

dos, acrescidos, enfim, construídos

permanentemente.

Um outro capítulo diz respeito

aos usos. Numa série de passagens do

Projeto, por exemplo, no art. 428 e

outros, é reconhecido o espaço para

que a sociedade civil produza, por meio

dos seus usos, a regulação dos seus

interesses. Lógico que não é absoluta-

mente livre, por isso os outros princí-

pios estarão em articulação e em con-

sonância com o Projeto.

A articulação entre a Constitui-

ção e o Projeto. Se não tivéssemos um

Código, ou se tivéssemos um Código

num modelo diferente do atual, seria

bastante difícil, porque não é toda dou-

trina que aceita a eficácia direta dos

direitos fundamentais no Direito Priva-

do – aliás, esta é uma posição absolu-

tamente minoritária, mesmo em termos

internacionais. Ela teria uma dificulda-

de muito grande e, além disso, levaria

uma assistematização. Em que casos

os direitos fundamentais incidiriam di-

retamente no Direito Privado para re-

vogar determinados institutos, para pro-

mover uma outra leitura de instituto?

O que o Projeto faz é justamente con-

ter normas que captam esses valores

fundamentais e os regulam no interior

da disciplina civilística. Por isso, pare-

ce-me que, se o Projeto for aprovado,

esta relação fundamental entre Consti-

tuição e Código poderá ter, entre nós,

um imenso desenvolvimento; depen-

derá, evidentemente, de a magistratu-

ra assumir essa imensa tarefa e respon-

sabilidade, que é sua e não pode ser

delegada para mais ninguém.

JUDITH MARTINS COSTA: Professora

da Faculdade de Direito da Universida-

de Federal do Rio Grande do Sul.