as diretrizes fundamentais do projeto do código civil - vol20
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COMENTÁRIOS SOBREO PROJETO DO CÓDIGO
CIVIL BRASILEIROSÉRIE CADERNOS DO CEJ,
VOLUME 20
BRASÍLIA2002
EDITORAÇÃOSecretaria de Pesquisa e Informação Jurídicas do Centro de Estudos Judiciários – SPI/CEJNeide Alves Dias De Sordi – SecretáriaMilra de Lucena Machado Amorim – Subsecretária da Subsecretaria de Divulgação e Editoração
da SPI/CEJLucinda Siqueira Chaves Freire – Diretora da Divisão de Editoração da SPI/CEJSônia Rosana Gomes de Moraes e Menezes - Chefe da Seção de Edição de Textos da SPI/CEJAntônio César do Vale - Chefe da Seção de Revisão de Textos da SPI/CEJRute Maria Barreto Rezende – Servidora da Divisão de Editoração da SPI/CEJ
DIAGRAMAÇÃO E ARTE-FINALAnelize Lenzi Ruas - Servidora da Divisão de Divulgação Institucional da SPI/CEJ
CAPAAnelize Lenzi Ruas - Servidora da Divisão de Divulgação Institucional da SPI/CEJ
ILUSTRAÇÃOEnivaldo Sizino dos Santos - Chefe da Seção de Programação Visual da SPI/CEJ
NOTAS TAQUIGRÁFICASSubsecretaria de Taquigrafia do Superior Tribunal de Justiça
IMPRESSÃODivisão de Serviços Gráficos da Secretaria de Administração do Conselho da Justiça FederalLuiz Alberto Dantas de Carvalho – Diretor
SUMÁRIO
Apresentação
As diretrizes fundamentais do Projeto do Código CivilMiguel Reale
Direito de FamíliaLuiz Edson Fachin
Capacidade civil e capacidade empresarial: poderes de exercício no Projetodo Novo Código CivilJoão Baptista Villela
Direitos das CoisasRui Geraldo Camargo Viana
Atividade negocialNewton de Lucca
Autonomia privadaFrancisco dos Santos Amaral Neto
AlimentosFrancisco José Cahali
União estável: legislação e projetosÁlvaro Villaça Azevedo
Vícios de consentimento: fraudeHumberto Theodoro Júnior
O princípio da boa-fé nos contratosAntonio Junqueira de Azevedo
Direito Civil e Constituição. Relações do Projeto com a Constituição.Roberto RosasJudith Martins Costa
APRESENTAÇÃO
O Conselho da Justiça Federal, por meio do seu Centro de Estudos Judiciá-
rios, publica, a partir de notas taquigráficas, os anais do Encontro sobre o Projeto
de Código Civil Brasileiro, neste volume da Série Cadernos do CEJ.
Não obstante a realização do evento ter sido em abril de 2000 – antes da
promulgação da Lei n. 10.406, em 10 de janeiro de 2002, a qual entrará em vigor
um ano após a sua publicação –, tal fato não descarta a importância das conferên-
cias nele proferidas.
Encontrará o leitor, nas páginas que permeiam este fascículo, opiniões
diversas de ilustres personalidades da área jurídica do nosso País, com críticas
tanto a favor como contra o Projeto, o que o levará às suas próprias reflexões e
conclusões.
Pontos polêmicos nas áreas do Direito de Família, Direito Civil, Direito
Constitucional, Direito das Coisas, Direito Comercial, dentre outros, foram realça-
dos, o que instigou a capacidade intelectiva dos participantes e aguçará o senso
crítico daqueles que folhearem as próximas páginas.
AS DIRETRIZES FUNDAMENTAIS DO PROJETO DO CÓDIGO CIVILMIGUEL REALE
TRAMITAÇÃO DO PROJETO
O Projeto do Código Civil foi
aprovado pela Câmara dos
Deputados em 1984, após
cuidadoso estudo e debate de 1.063
emendas, o que não deve causar es-
tranheza por tratar-se de uma lei com
cerca de 2.100 artigos. Além de haver
muitas emendas repetidas, a maioria
delas não foi aceita pelo plenário.
Foi relevante a contribuição da
Câmara dos Deputados, graças ao mag-
nífico trabalho dos relatores de cada
uma das seis partes do Projeto, sendo,
afinal, Relator-Geral o saudoso Depu-
tado Ernani Satyro, cujo trabalho não
posso deixar de enaltecer.
Não menos relevante foi a con-
tribuição do Senado Federal que, em
novembro de 1997, aprovou o Projeto
com 332 emendas propostas pela Co-
missão Especial, com base no magnífi-
co parecer final de autoria do eminen-
te Relator-Geral, Senador Josaphat Ma-
rinho, a quem a Nação fica a dever,
bem como ao preclaro Presidente An-
tônio Carlos Magalhães, decisão de tão
grande alcance para a sociedade bra-
sileira.
Sinto-me à vontade para pro-
nunciar-me sobre o Projeto, pois, este,
embora preservado em sua estrutura
e valores iniciais, ultrapassou a pes-
soa de seus elaboradores, os eminen-
tes jurisconsultos José Carlos Moreira
Alves (Parte Geral); Agostinho de
Arruda Alvim (Direito das Obrigações);
Sylvio Marcondes (Direito de Empresa);
Ebert Vianna Chamoum (Direito das
Coisas); Clóvis do Couto e Silva (Direi-
to de Família); Torquato Castro (Direito
das Sucessões), quatro dos quais já fa-
lecidos. A mim me coube o papel de
coordenador-geral, propondo a estru-
tura ou sistemática do Projeto, que foi
aceita pelos colaboradores, sem pre-
juízo, é claro, de elaborar os textos que
considerasse necessário acrescentar
ou substituir, como de fato ocorreu.
Cabe-me esclarecer que a gran-
de demora na manifestação do Sena-
do Federal se deve às profundas alte-
rações políticas que caracterizaram a
passagem do sistema militar para o re-
gime democrático. Sobreveio depois,
a Assembléia Nacional Constituinte,
entendendo os senadores que era ne-
cessário aguardar a nova Constituição,
que poderia alterar as bases da legisla-
ção privada.
A bem ver, porém, a nova Car-
ta Magna, no concernente à Parte Ge-
ral, Obrigações, Direito de Empresa,
Direitos Reais e Sucessões, não fez se-
não confirmar o “sentido social” que
presidiu a feitura do projeto, pouco ou
nada havendo a modificar. Foi apenas
no campo do Direito de Família que
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
sobrevieram mudanças essenciais, que
por sinal vieram corresponder às
emendas oferecidas no Senado pelo
pranteado Senador Nelson Carneiro e
outros. Desse modo foi possível adap-
tar facilmente o projeto ao texto cons-
titucional, conforme já previra ao ma-
nifestar-me sobre elas, em estudo que
fiz a pedido do Relator-Geral na Câma-
ra Alta, o Senador Josaphat Marinho.
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Em um país há duas leis funda-
mentais: a Constituição e o Código Ci-
vil. A primeira estabelece a estrutura e
as atribuições do Estado em função do
ser humano e da sociedade civil; a se-
gunda se refere à pessoa humana e à
sociedade civil como tais, abrangendo
suas atividades essenciais. É claro que
nas nações anglo-americanas, de tra-
dição costumeira-jurisprudencial, não
há códigos privados, mas não deixam
de haver normas civis básicas no sis-
tema do common law.
É a razão pela qual costumo
declarar que o Código Civil é “a Consti-
tuição do homem comum”, devendo
cuidar de preferência das normas ge-
rais consagradas ao longo do tempo,
ou então, das regras novas dotadas de
plausível certeza e segurança, não
podendo dar guarida, incontinenti, a
todas as inovações correntes. Por tais
motivos não há como conceber o Có-
digo Civil como se fosse a legislação
toda de caráter privado, pondo-se ele
antes como a “legislação matriz”, a
partir da qual se constituem
“ordenamentos normativos especiais”
de maior ou de menor alcance, como,
por exemplo, a Lei das Sociedades
Anônimas e as que regem as coopera-
tivas, mesmo porque elas transcendem
o campo estrito do Direito Civil, com-
preendendo objetivos e normas de na-
tureza econômica ou técnica, quando
não conhecimentos e exigências espe-
cíficas.
É esse o motivo pelo qual, des-
de o início, fixei como uma das nor-
mas orientadoras da codificação que
me fora confiada a de destinar à legis-
lação especial aditiva todos os assun-
tos que ultrapassassem os lindes da
área civil ou implicassem problemas de
alta especificidade técnica.
Nessa ordem de idéias, não te-
ria sentido inserirem-se no Projeto dis-
positivos sobre inseminação artificial,
desde as mais variadas formas de ge-
ração extra-uterina até a chamada con-
cepção in vitro, pois tais processos
envolvem questões que transbordam
o campo jurídico, alargando-se pelos
domínios da medicina e da engenha-
ria genética, implicando problemas tan-
to de bioética quanto de Direito Admi-
nistrativo e de Direito Processual, a fim
de atenderem as exigências de segu-
Série Cadernos do CEJ, 20
rança e certeza no concernente à ma-
ternidade ou à paternidade. Eis aí uma
esfera onde a legislação especial se põe
como a única apropriada.
A análogas conclusões chega-
ríamos no que se refere a múltiplas ino-
vações de ordem tecnológica ou eco-
nômica, que, ou encontram solução
nas matrizes mesmas do Código Civil,
à luz de seus princípios e de seus insti-
tutos ou figuras, ou, então, somente
poderão ser adequadamente resolvidas
mediante leis especiais.
ESTRUTURA DO CÓDIGO
A iniciativa de um novo Código
Civil não surgiu de repente. Foi, ao con-
trário, conseqüência de duas tentativas
anteriores que já demarcaram as con-
dições que deveriam ser evitadas ou,
então, complementadas.
Em primeiro lugar, abandonou-
se a idéia de dividir o Código Civil, ela-
borando-se, em separado, um Código
das Obrigações. A quase unanimidade
de nossos juristas repudiou a propos-
ta de um Código Civil decepado e sem
sentido de unidade, condenando a eli-
minação da Parte Geral, tradicional em
nosso Direito, desde a Consolidação
das Leis Civis, graças ao gênio criador
de Teixeira de Freitas.
Como responsável pela
codificação, não vacilei no sentido de
preferir uma sistematização ampla,
embora partindo do Código em vigor.
Como já disse, foi fixado o critério de
preservar, sempre que possível, as dis-
posições do Código atual, porquanto,
de certa forma, cada texto legal repre-
senta um patrimônio de pesquisa, de
estudos, de pronunciamentos de um
universo de juristas. Há, por conse-
guinte, todo um saber jurídico acumu-
lado ao longo do tempo, que aconse-
lha a manutenção do válido e eficaz,
ainda que em novos termos. Por outro
lado, é inegável que o Código atual obe-
deceu, repito, como era natural, ao es-
pírito de sua época, quando o indivi-
dual prevalecia sobre o social. É, por
isso, próprio de uma cultura fundamen-
talmente agrária, onde predominava a
população rural e não a urbana. A mu-
dança do Brasil no presente século foi
de tal ordem que o Código não pode-
ria deixar de refletir essas alterações
básicas, uma vez que o Código Civil
não é senão a “Constituição da socie-
dade civil”. Como costumo dizer, e re-
pito, o “Código Civil é a Constituição
do homem comum”.
É preciso, porém, corrigir, des-
de logo, um equívoco que consiste em
dizer que tentamos estabelecer a uni-
dade do Direito Privado. Esse não foi o
objetivo visado. O que na realidade se
fez foi consolidar e aperfeiçoar o que
já estava sendo seguido no País, que
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
era a unidade do direito das obriga-
ções. Como o Código Comercial de
1850 se tornara completamente supe-
rado, não havia mais questões comer-
ciais resolvidas à luz do Código de Co-
mércio, mas sim em função do Código
Civil. Na prática jurisprudencial, essa
unidade das obrigações já era um fato
consagrado, o que se refletiu na idéia
rejeitada de um código só para reger
as obrigações, consoante projeto ela-
borado por jurisconsultos da estatura
de Orozimbo Nonato, Hahnemamm
Guimarães e Philadelpho de Azevedo.
Não vingou também a tentativa de, a
um só tempo, elaborar um Código das
Obrigações, de que foi relator Caio
Mário da Silva Pereira, ao lado de um
Código Civil, com a matéria restante,
conforme projeto de Orlando Gomes.
Depois dessas duas malogradas expe-
riências, só restava manter a unidade
da codificação, enriquecendo-a de no-
vos elementos, levando em conta tam-
bém as contribuições desses dois ilus-
tres jurisconsultos.
A opção pela unidade das obri-
gações nos levou a alterar a ordem da
matéria. O Código atual, como é pró-
prio da sociedade de natureza agrária,
começa com o Direito de Família, pas-
sando pelo Direito de Propriedade e das
Obrigações, até chegar ao das Suces-
sões.
Nosso Projeto, após a Parte Ge-
ral – na qual se enunciam os direitos e
deveres gerais da pessoa humana
como tal, e se estabelecem pressupos-
tos gerais da vida civil –, começa, na
Parte Especial, a disciplinar as obriga-
ções que emergem dos direitos pesso-
ais. Pode-se dizer que, enunciados os
direitos e deveres dos indivíduos, pas-
sa-se a tratar de sua projeção natural
que são as obrigações e os contratos.
É extensa essa disciplina das
obrigações, dado o tratamento unifica-
do das obrigações civis com as obriga-
ções e os contratos.
É extensa essa disciplina das
obrigações, dado o tratamento unifica-
do das obrigações civis com as obriga-
ções empresariais, termo que preferi-
mos adotar, pois a atividade econômi-
ca não se assinala mais, hoje em dia,
por atos de comércio, tendo uma pro-
jeção muito mais ampla, sendo igual-
mente relevantes os de natureza indus-
trial ou financeira.
Em seguida ao Direito das Obri-
gações, passamos a contar com uma
parte nova, que é o Direito de Empre-
sa. Este diz respeito a situações em que
as pessoas se associam e se organi-
zam a fim de, em conjunto, dar eficá-
cia e realidade ao que pactuam. O Di-
reito de Empresa não figura, como tal,
em nenhuma codificação contemporâ-
nea, constituindo, pois, uma inovação.
Série Cadernos do CEJ, 20
Daí se passa ao Direito das Coi-
sas, sendo o Direito Real visto em ra-
zão do novo conceito de propriedade,
com base no princípio constitucional
de que a função da propriedade é so-
cial, superando-se a compreensão ro-
mana quiritária em função do interes-
se exclusivo do indivíduo, do proprie-
tário ou do possuidor. Em seguida ao
Direito das Coisas é que vem o Direito
de Família e, posteriormente, o Direito
das Sucessões. Houve, por conseguin-
te, uma alteração relevante na estrutu-
ra do Código, a qual não encontra
símile na codificação dos demais paí-
ses.
Quando começamos nosso tra-
balho, tínhamos idéias de conservar,
quando possível, consoante já foi dito,
as disposições do Código atual. Mas, à
medida que os trabalhos foram se de-
senvolvendo, foi-se revelando a possi-
bilidade de nos mantermos inteiramen-
te fiéis a essa diretriz inicial. Problemas
novos exigem formulação nova, sen-
do a linguagem inseparável do concei-
to. Preferiu-se uma linguagem nova,
mais operacional e adequada à preci-
sa interpretação das normas referen-
tes aos problemas atuais. Há, portan-
to, um sentido de atualidade ou de
contemporaneidade ínsito no projeto,
inclusive no tocante à linguagem, eli-
minados que foram arcaísmos e supe-
rados modos de dizer.
O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE
O “sentido social” é uma das
características mais marcantes do Pro-
jeto, em contraste com o sentido indi-
vidualista que condiciona o Código Ci-
vil ainda em vigor. Seria absurdo ne-
gar os altos méritos da obra do insigne
Clóvis Beviláqua, mas é preciso lem-
brar que ele redigiu sua proposta em
fins do século passado, não sendo se-
gredo para ninguém que o mundo nun-
ca mudou como no decorrer do pre-
sente século, assolado por profundos
conflitos sociais e similares.
Se não houve a vitória do socia-
lismo, houve o triunfo da “socialidade”,
fazendo prevalecer os valores coletivos
sobre os individuais, sem perda, po-
rém, do valor fundante da pessoa hu-
mana. Por outro lado, o Projeto se dis-
tingue pela maior aderência à realida-
de contemporânea, com a necessária
revisão dos direitos e deveres dos cin-
co principais personagens do Direito
Privado tradicional: o proprietário, o
contratante, o empresário, o pai de fa-
mília e o testador.
Nosso empenho foi no sentido
de situar tais direitos e deveres no con-
texto da nova sociedade que emergiu
de duas guerras universais, bem como
da revolução tecnológica e da emanci-
pação plena da mulher. É por isso, por
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
exemplo, que acabei propondo que o
“pátrio poder” passasse a denominar-
se “poder familiar”, exercido em con-
junto por ambos os cônjuges em ra-
zão do casal e da prole.
Em virtude do princípio da
socialidade, surgiu também um novo
conceito de posse, a posse-trabalho,
ou posse pro labore, em virtude da qual
o prazo de usucapião de um imóvel é
reduzido, conforme o caso, se os pos-
suidores nele houverem estabelecido
a sua morada, ou realizado investimen-
tos de interesse social e econômico.
Por outro lado, foi revisto e atualizado
o antigo conceito de posse, em conso-
nância com os fins sociais da proprie-
dade.
O PRINCÍPIO DA ETICIDADE
O Código atual peca pelo
rigorismo formal, no sentido de que
tudo se deve resolver mediante precei-
tos normativos expressos, sendo
pouquíssimas as referências à eqüida-
de, à boa-fé, à justa causa e aos de-
mais critérios éticos. Esse espírito
dogmático-formalista levou um grande
mestre do porte de Pontes de Miranda
a qualificar a boa-fé e a eqüidade como
“aberrações jurídicas”, entendendo ele
que, no Direito Positivo, tudo deve ser
resolvido técnica e cientificamente, por
meio de normas expressas, sem apelo
a princípios considerados
metajurídicos. Não acreditamos na ge-
ral plenitude da norma jurídica positi-
va, sendo preferível, em certos casos,
prever o recurso a critérios ético-jurídi-
cos que permitam chegar-se à
“concreção jurídica”, conferindo-se
maior poder ao juiz para encontrar-se
a solução mais justa ou eqüitativa.
O novo Código, por conseguin-
te, confere ao juiz não só poder para
suprir lacunas, mas também para re-
solver, onde e quando previsto, de con-
formidade com valores éticos, ou se a
regra jurídica for deficiente ou
inajustável à especificidade do caso
concreto.
Como se vê, ao elaborar o Pro-
jeto, não nos apegamos ao rigorismo
normativo, pretendendo tudo prever de-
talhada e obrigatoriamente, como se
na experiência jurídica imperasse o
princípio de causalidade próprio das
ciências naturais, nas quais, aliás, se
reconhece cada vez mais o valor do
problemático e o do conjetural.
O que importa em uma
codificação é o seu espírito; é um con-
junto de idéias fundamentais em tor-
no das quais as normas se entrelaçam,
se ordenam e se sistematizam.
Em nosso projeto não prevale-
ce a crença na plenitude hermética do
Direito Positivo, sendo reconhecida a
Série Cadernos do CEJ, 20
imprescindível eticidade do
ordenamento. O código é um sistema,
um conjunto harmônico de preceitos
que exige a todo instante recurso à
analogia e aos princípios gerais deven-
do ser valorizadas todas as conseqü-
ências da cláusula rebus sic stantibus.
Nesse sentido, é posto o princípio do
equilíbrio econômico dos contratos
como base ética de todo o Direito
obrigacional.
Nesse contexto, abre-se campo
a uma nova figura, que é a da resolu-
ção do contrato como um dos meios
de preservar o equilíbrio contratual.
Hoje em dia, praticamente só se pode
rescindir um contrato em razão de atos
ilícitos. O direito de resolução obede-
ce a uma nova concepção, porque o
contrato desempenha uma função so-
cial, tanto como a propriedade. Reco-
nhece-se, assim, a possibilidade de se
resolver um contrato em virtude de
adventos de situações imprevisíveis
que inesperadamente venham alterar
os dados do problema, tornando a
posição de um dos contratantes exces-
sivamente onerosa.
Tal reconhecimento vem esta-
belecer uma função mais criadora por
parte da Justiça em consonância com
o princípio da eticidade, cujo fulcro
fundamental é o valor da pessoa hu-
mana como fonte de todos os valores.
Como se vê, o novo Código abando-
nou o formalismo técnico-jurídico pró-
prio do individualismo da metade des-
te século, para assumir um sentido mais
aberto e compreensivo, sobretudo
numa época em que o desenvolvimen-
to dos meios de informação vem am-
pliar os vínculos entre os indivíduos e
a comunidade.
O PRINCÍPIO DA OPERABILIDADE
O terceiro princípio que norteou
a feitura deste nosso Projeto – e va-
mos nos limitar a apenas três, não por
um vício de amar o trino, mas porque
não há tempo para tratar de outros, que
estão de certa maneira implícitos nos
que estou analisando – é o princípio
da operabilidade. Ou seja, toda vez que
tivemos de examinar uma norma jurí-
dica, e havia divergência entre ser
enunciada de uma forma ou de outra,
pensamos no ensinamento de Jhering,
que diz que é da essência do Direito a
sua realizabilidade: o Direito é feito para
ser executado; Direito que não se exe-
cuta – já dizia Jhering na sua imagina-
ção criadora – é como chama que não
aquece, luz que não ilumina. O Direito
é feito para ser realizado; é para ser
operado. No fundo, o que é que nós
somos – nós advogados? Somos ope-
radores do Direito: operamos o Códi-
go e as leis, para fazer uma petição ini-
cial, e levamos o resultado de nossa
operação ao juiz, que verifica a legiti-
midade, a certeza, a procedência ou
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
não da nossa operação – o juiz tam-
bém é um operador do Direito; e a sen-
tença é uma renovação da operação
do advogado, segundo o critério pelo
qual julga. Então, é indispensável que
a norma tenha operabilidade, a fim de
evitar uma série de equívocos e de di-
ficuldades que hoje entravam a vida
do Código Civil.
Darei apenas um exemplo.
Quem é que, no Direito Civil brasileiro
ou estrangeiro, até hoje, soube fazer
uma distinção nítida e fora de dúvida,
entre a prescrição e a decadência? Há
as teorias mais cerebrinas e bizantinas
para se distinguir uma coisa da outra.
Devido a esse contraste de idéias, as-
sisti, uma vez, perplexo, num mesmo
mês, a um Tribunal de São Paulo ne-
gar uma apelação interposta por mim
e outros advogados, porque entendia
que o nosso direito estava extinto por
força da decadência; e, poucas sema-
nas depois, ganhávamos, numa outra
Câmara, por entender-se que o prazo
era o da prescrição, que havia sido in-
terrompido! Por isso, o homem comum
olha o Tribunal e fica perplexo. Ora,
quisemos pôr um termo a essa perple-
xidade, de maneira prática, porque o
simples é o sinal da verdade, e não o
bizantino e o complicado.
Preferimos, por tais motivos,
reunir as normas prescricionais, todas
elas, enumerando-as na Parte Geral do
Código. Não haverá dúvida nenhuma:
ou figura no artigo que rege as prescri-
ções, ou então se trata da decadência.
Casos de decadência não figuram na
Parte Geral, a não ser em cinco ou seis
hipóteses em que cabia prevê-la, logo
após, ou melhor, como complemento
do artigo em que era, especificamen-
te, aplicável.
Qual é o tratamento dado à de-
cadência? Há, por exemplo, o direito
do doador de revogar a doação feita,
por ingratidão. Aí, o prazo é tipicamen-
te de decadência. E então a norma
vem acoplada à outra: a norma de
operabilidade está jungida ao direito
material. Como se vê, cada norma de
decadência está acoplada ao preceito
cuja decadência deve ser decretada.
De tal maneira que, com isso, não há
mais possibilidade de alarmantes con-
tradições jurisprudenciais.
O critério da operabilidade leva-
nos, às vezes, a forçarmos um pouco,
digamos assim, os aspectos teoréticos.
Vou dar um exemplo, para mostrar que
prevalece, às vezes, o elemento de
operabilidade sobre o elemento pura-
mente teorético-formal. Qual é o prazo
de responsabilidade de um construtor,
pela obra que entregou, numa emprei-
tada de material e de valor, ou seja, de
mão-de-obra e com fornecimento de
material? É um prazo de cinco anos –
um prazo extenso. Porém estabelece-
Série Cadernos do CEJ, 20
mos que, não obstante a aparência de
uma norma prescritiva, ela devia ser
colocada como norma de decadência,
para que não houvesse dúvida na ju-
risprudência, nem dúvida na respon-
sabilidade de fazer face àquilo que as-
sumiu como obrigação contratual.
Isso posto, o princípio da
operabilidade leva, também, a redigir
certas normas jurídicas que são nor-
mas abertas, e não normas cerradas,
para que a atividade social mesma, na
sua evolução, venha alterar seu con-
teúdo mediante aquilo que denomino
“estrutura hermenêutica”. Porque, para
mim, a estrutura hermenêutica é um
complemento natural da estrutura
normativa. E é por isso que a doutrina
é fundamental, porque ela é aquele
modelo dogmático e teórico que diz o
que os demais modelos jurídicos sig-
nificam.
Estão verificando que tivemos
em vista esses três princípios e outros
também, que levam em conta a
concreção humana. Poderia acrescen-
tar, aqui, o princípio da concretitude,
que, de certo modo, está implícito no
de operabilidade.
Concretitude, o que é? É a obri-
gação que tem o legislador de não le-
gislar em abstrato, para um indivíduo
perdido na estratosfera, mas, quanto
possível, legislar para o indivíduo situa-
do: legislar para o homem como mari-
do; para a mulher como esposa; para
o filho como um ser subordinado ao
poder familiar. Quer dizer, atender às
situações sociais, à vivência plena do
Código, do direito subjetivo como uma
situação individual; não um direito sub-
jetivo abstrato, mas uma situação sub-
jetiva concreta. Em mais de uma opor-
tunidade ter-se-á ocasião de verificar
que o Código preferiu, sempre, essa
concreção para a disciplina da maté-
ria.
Fixadas essas linhas gerais, ago-
ra desejo focalizar alguns exemplos de
confronto entre o Código atual e o Pro-
jeto do novo Código, que já foi apro-
vado pelo Senado.
INOVAÇÕES IMPRESCINDÍVEIS
Já fiz referência ao caráter ex-
cessivamente individualista do Código
atual, mas, se procuramos corrigir sua
vinculação aos valores de uma supe-
rada sociedade agrária, nem por isso
deixamos de salvaguardar, sempre que
possível, como já salientado, as suas
disposições ainda válidas, especialmen-
te com a conservação da Parte Geral,
a qual foi mantida de acordo com a
grande lição que nos vem de Teixeira
de Freitas.
Houve, porém, necessidade de
atender às novas contribuições da
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
civilística contemporânea no que se
refere, por exemplo, à disciplina dos
negócios jurídicos, à necessidade de
regrar unitariamente as obrigações ci-
vis e as mercantis, com mais precisa
distinção entre associação civil e soci-
edade empresária, cuidando de várias
novas figuras contratuais que vieram
enriquecer o Direto das Obrigações,
sem deixar de dar a devida atenção à
preservação do equilíbrio econômico
do contrato, nos casos de onerosidade
excessiva para uma das partes, bem
como às cautelas que devem presidir
os contratos de adesão para salvaguar-
dar os interesses do consumidor.
Além disso, foram
estabelecidas as normas gerais dos tí-
tulos de crédito, mantendo-se a legis-
lação especial para disciplina de suas
diversas figuras; assim como fixadas
regras mais adequadas em matéria de
responsabilidade civil, que o Código
atual ainda subordina à idéia de culpa,
sem reconhecer plena e claramente
os casos em que a responsabilidade
deve ser objetiva, atendendo-se às con-
seqüências inerentes à natureza e à es-
trutura dos atos e negócios jurídicos
como tais.
É difícil enumerar todas as ino-
vações trazidas pelo projeto, desde
uma rigorosa separação entre prescri-
ção e decadência, aquela disciplinada
na Parte Geral, e esta prevista em cada
caso ocorrente – em conexão com o
artigo que lhe diz respeito. Desse modo,
fica superada de vez a interminável
dúvida sobre se determinada disposi-
ção é de prescrição ou de caducida-
de. Por outro lado, merece especial
menção a distinção fundamental entre
Direito Pessoal e Direito Real de Famí-
lia, ou, então, as disposições sobre
condomínio edifício (denominação em
princípio criticada, e que já é de uso
corrente) ou a restauração do antigo
Direito de Superfície sob novas vestes,
o que demonstra que não nos domi-
nou o desejo de só oferecer novida-
des.
Cumpre também salientar que
o projeto não abrange matérias que en-
volvam questões que vão além dos
lindes jurídicos, como é o caso das
sociedades por ações, objeto de lei
especial. Por outro lado, é próprio de
um código albergar somente questões
que se revistam de certa estabilidade,
de certa perspectiva de duração, sen-
do incompatível com novidades ainda
pendentes de maiores estudos, abran-
gendo problemas de ordem científica,
como é o caso já lembrado da fecun-
dação artificial. O projeto limita-se, por
conseguinte, àquilo que é da esfera ci-
vil, deixando para a legislação especi-
al a disciplina de assuntos que dela
extrapolem, como é o caso da “incor-
poração de condomínios edifícios”.
Série Cadernos do CEJ, 20
Eis aí algumas diretrizes de um
Projeto que, repito, não mais nos per-
tence, pois ele foi publicado por três
vezes, recebendo sempre sugestões
que, após o devido estudo, deram lu-
gar a alterações que, progressivamen-
te, vieram aperfeiçoando e atualizan-
do nossa proposta inicial, até as últi-
mas mudanças feitas no Senado. É uma
tolice, por conseguinte, afirmar-se que
o projeto estaria superado por ter sido
proposto à Câmara dos Deputados em
1975. O curioso é que quem apoda o
projeto com a velhice, pleiteia a manu-
tenção do atual Código Civil que é de
1916!
CRÍTICAS APRESSADAS OU INOPORTUNAS
Outra crítica apressada e abso-
lutamente sem sentido diz respeito ao
fato de o Código não ter cuidado da
união estável de pessoas do mesmo
sexo. Essa matéria não é de Direito Ci-
vil, mas sim de Direito Constitucional,
porque a Constituição criou a união
estável entre um homem e uma mu-
lher. De maneira que, para cunhar-se
aquilo que estão querendo, a união
estável dos homossexuais, em primei-
ro lugar seria preciso mudar a Consti-
tuição, o que não era a nossa tarefa e
muito menos a do Senado.
Certas críticas são frutos ape-
nas da ignorância dos textos constitu-
cionais vigentes. O Código só abrange
aquilo que já está, de certa maneira,
consolidado à luz da experiência. É o
motivo pelo qual concordamos com
aqueles que, em determinado momen-
to, entenderam que não deveria fazer
parte do Código a Lei da Sociedade por
Ações. Não apenas em razão das mu-
tações a que ela está continuamente
sujeita – como ainda agora o demons-
tra a recente lei que está dando cam-
po para tantas discussões –, mas tam-
bém porque a lei que rege as socieda-
des anônimas está diretamente vincu-
lada ao mercado de capitais, o que
transcende os lindes da lei civil.
Não se compreende que, ten-
do o Senado Federal aprovado o pro-
jeto com emendas, só podendo estas
ser objeto de apreciação pela Câmara
dos Deputados, certos críticos, que se
mantiveram todos estes anos calados,
vêm, agora, apontar pretensos erros ou
omissões, que, se porventura existen-
tes, somente poderiam ser objeto de
leis autônomas ou posteriores ao novo
Código Civil. Isso tudo apenas demons-
tra que não se tem em vista aperfeiço-
ar a legislação do País, mas tão-somente
mostrar tardio e irrelevante cuidado,
sob o qual não raro se ocultam pre-
conceitos e prevenções.
Por outro lado, críticas surgiram
em flagrante conflito com o texto da
proposta, evidenciando, assim, que
nem sequer houve preocupação de lei-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
tura com a atenção e a serenidade que
exigem os estudos jurídicos, servindo
o Projeto apenas de pretexto para pro-
moção pessoal.
Quanto à alegação de que o
princípio da socialidade acaba geran-
do a massificação e sacrificando a in-
dividualidade, componente essencial
de um Código Civil, trata-se de tolice
tão evidente que não merece nem com-
porta discussão.
Esclarecidas essas questões,
não é demais recordar que os assun-
tos fundamentais da nova codificação
foram por mim explanados, assim
como pelos demais co-autores do pro-
jeto, nas respectivas exposições de
motivos. No que me toca, permito-me
lembrar que publiquei, em 1986, pela
Editora Saraiva, a primeira edição do
presente livro, na qual os interessados
puderam encontrar as diretrizes funda-
mentais a que estou fazendo referên-
cia. A mesma coisa poder-se-á dizer
com relação ao ilustre Ministro Moreira
Alves, que, na mesma época, tratou
também do Projeto, em volume perti-
nente à Parte Geral. De modo que já
há bibliografia auxiliar, além das publi-
cações feitas pelo Congresso Nacional,
que são parte componente essencial
do Projeto, sobretudo depois que ele
foi aprovado pela Câmara dos Deputa-
dos e em seguida pelo Senado Fede-
ral, com o douto e minucioso parecer
de autoria do Senador Josaphat Mari-
nho, incluído na presente edição.
A TRAMITAÇÃO NO SENADO FEDE-
RAL
No Senado Federal logo nos
defrontamos com várias dificuldades.
A obra de codificação coincidiu com o
retorno do País à ordem constitucio-
nal e, por conseguinte, com a idéia de
uma Assembléia Nacional Constituinte,
que era apresentada, consoante já sa-
lientei, como uma fonte de possíveis
alterações profundas que iriam se re-
fletir sobre o Projeto. Isso teve como
conseqüência estancar o processo de
sua apreciação, até que fosse feita a
nova Constituição. A situação não im-
pediu, no entanto, que no Senado fos-
sem apresentadas, no prazo regimen-
tal, 366 emendas, cuja apreciação iria
demandar mais de doze anos.
Isso não obstante, o trabalho no
Senado é merecedor de justa admira-
ção, merecendo referência especial a
decisiva resolução do Relator-Geral,
Senador Josaphat Marinho de chamar
a si a responsabilidade de apreciação
das emendas, submetendo, a
posteriori, as suas propostas à consi-
deração dos Relatores Especiais.
Vê, assim, o leitor, que o Proje-
to não é fruto de improvisação e nem
tampouco representa um trabalho des-
Série Cadernos do CEJ, 20
de logo solidificado e definitivo. Mas,
ao contrário, veio sendo corrigido e
completado ao longo do tempo, de tal
maneira que novas emendas e novas
sugestões foram sempre bem recebi-
das e, objetos de nossa análise. Ape-
sar da morte da maior parte dos mem-
bros da comissão, o Ministro Moreira
Alves e eu, como remanescentes mais
ativos dela, continuamos a dar nossa
colaboração, emitindo pareceres e for-
mulando novas propostas no Senado
Federal, que serviam de base à propos-
ta finalmente apreciada pela Câmara
Alta, após o parecer do mencionado
Relator-Geral *.
O NOVO DIREITO DE FAMÍLIA
E O DE SUCESSÕES
Já havíamos dado grande pas-
so à frente no sentido da igualdade dos
cônjuges. Isso ficou ainda mais acen-
tuado na Constituição, sobretudo no
que se refere à situação dos filhos, por-
quanto a Carta Política de 1988 elimi-
nou toda e qualquer diferença entre fi-
lhos legítimos, naturais, adulterinos,
espúrios ou adotivos.
Essa opção constitucional im-
plicou evidentemente o reexame das
emendas oferecidas por Nelson Carnei-
ro, de tal maneira que foi feita plena
atualização da matéria em consonân-
cia com as novas diretrizes da Carta
Magna vigente, também, no que se re-
fere à “união estável”, a nova entidade
familiar que surge ao lado do matrimô-
nio civil, corrigindo-se o erro da legis-
lação em vigor que a confunde com o
concubinato.
Nota-se que, na Parte Geral,
atende-se, outrossim, às circunstânci-
as da vida contemporânea, adotando-
se novos critérios para estabelecer a
maioridade, que baixou de 21 para 18
anos. É sabido que, em virtude da
Informática e da expansão cultural, as
pessoas amadurecem mais cedo do
que antes. Essa mudança fundamen-
tal refletiu-se também no campo da res-
ponsabilidade relativa: quem passou de
16 anos é até eleitor em todos os pla-
nos da política nacional, desde o mu-
nicípio até a União.
Os exemplos ora dados já são
mais do que suficientes para demons-
trar que houve grande preocupação no
sentido de aproveitar as emendas do
Senado para a atualização do Projeto.
E isso se repetiu nos poderes conferi-
dos aos cônjuges em absoluta igual-
dade, razão pela qual, como já foi dito,
propus, e foi aceito pelo Senador
Josaphat Marinho, que, em vez de
pátrio poder, se falasse em “poder fa-
miliar”, que é uma expressão mais jus-
ta e adequada, porquanto os pais exer-
cem esse poder em função dos inte-
resses do casal e da prole.
No que se refere à igualdade dos
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
cônjuges, é preciso atentar ao fato de
que houve alteração radical no tocan-
te ao regime de bens, sendo desneces-
sário recordar que anteriormente pre-
valecia o regime da comunhão univer-
sal, de tal maneira que cada cônjuge
era meeiro, não havendo razão algu-
ma para ser herdeiro. Tendo já a meta-
de do patrimônio, ficava excluída a
idéia de herança. Mas, desde o momen-
to em que passamos do regime da co-
munhão universal para o regime parci-
al de bens com comunhão de aqüestos,
a situação mudou completamente. Se-
ria injusto que o cônjuge somente par-
ticipasse daquilo que é produto co-
mum do trabalho, quando outros bens
podem vir a integrar o patrimônio e ser
objeto de sucessão. Nesse caso, o côn-
juge, quando casado no regime da se-
paração parcial de bens (note-se), con-
corre com os descendentes e com os
ascendentes até a quarta parte da he-
rança. De maneira que são duas as ra-
zões que justificam esse entendimen-
to: de um lado, uma razão de ordem
jurídica, que é a mudança do regime
de bens do casamento; de outro, a
absoluta equiparação do homem e da
mulher, pois a grande beneficiada com
tal dispositivo é, no fundo, mais a mu-
lher do que o homem.
Por outro lado, em matéria
sucessória, não é mais lícito ao testa-
dor vincular bens da legítima a seu bel-
prazer. Ele deve explicar o motivo que
o leva a estabelecer a cláusula
limitadora do exercício de direitos pelo
seu herdeiro, podendo o juiz, em cer-
tas circunstâncias, apreciar a matéria
para verificar se procede a justa causa
invocada.
ADEQUAÇÃO A EXIGÊNCIAS TÉCNI-
CAS
Há, além disso, necessidade de
levar em conta as alterações profun-
das ocorridas no plano técnico e
operacional. Por essas razões, por
exemplo, toda a matéria de escritura-
ção empresarial passa por uma trans-
formação fundamental para que tudo
possa ser feito por meio de processos
eletrônicos, superando-se os entraves
formalistas em matérias de contabili-
dade e de gestão da empresa.
O mesmo espírito pragmático
preside a outros aspectos da vida em-
presarial, notadamente no que se refe-
re às questões disciplinadas na nova
parte especial inserida no projeto, re-
lacionada ao Direito de Empresa – em-
pregada a palavra “empresa” no senti-
do de atividade desenvolvida pelos in-
divíduos ou pelas sociedades a fim de
promover a produção e a circulação
das riquezas, dos bens e dos serviços.
É esse o objetivo fundamental
que rege os diversos tipos de socieda-
des empresariais, não sendo demais
Série Cadernos do CEJ, 20
realçar que, consoante a terminologia
adotada pelo Projeto, as associações
são sempre de natureza civil. Parece
uma distinção somenos, mas de gran-
des conseqüências práticas, porquan-
to cada uma delas é governada por
princípios distintos.
Uma exigência básica de
operabilidade norteia, portanto, toda a
matéria de Direito de Empresa, ade-
quando-o aos imperativos da técnica
contemporânea no campo econômico-
financeiro, sendo estabelecidos precei-
tos que atendem tanto à livre iniciativa
como aos interesses do consumidor.
OUTRAS ATUALIZAÇÕES
É inegável a urgente necessida-
de de se atualizar o Código atual em
várias outras questões. Sendo, por
exemplo, as sociedades por ações es-
truturas complexas que exigem amplos
e custosos quadros funcionais, a disci-
plina normativa das cotas de respon-
sabilidade limitada passou a ter uma
importância cada vez mais acentuada.
De início, as sociedades por cotas eram
relativas a pequenas empresas e ainda
exercem essa função, mas, hoje em
dia, esse tipo de sociedade abrange um
número imenso de agremiações, até
chegarmos às holdings ou
controladoras das grandes estruturas
empresariais. Na verdade vemos socie-
dades anônimas que se entrelaçam
para formar complexos econômicos
sujeitos a uma sociedade por cotas de
responsabilidade limitada.
Por todas essas razões foi dada
uma nova estrutura, bem mais ampla
e diversificada, ao instituto da socieda-
de por cotas de responsabilidade limi-
tada, sendo certo que a lei especial em
vigor está completamente ultrapassa-
da, achando-se a matéria regida se-
gundo princípios de doutrina e à luz
de decisões jurisprudenciais. A propó-
sito desse assunto, para mostrar o cui-
dado que tivemos em atender à Cons-
tituição, lembro que a lei atual sobre
sociedades por cotas de responsabili-
dade limitada permite que se expulse
um sócio que esteja causando danos
à empresa, bastando para tanto mera
decisão majoritária. Fui dos primeiros
juristas a exigir que se respeitasse o
princípio da justa causa, entendendo
que a faculdade de expulsar o sócio
nocivo devia estar prevista no contra-
to, sem o que haveria mero predomí-
nio da maioria. Ora, a Constituição atual
declara no art. 5º que ninguém pode
ser privado de sua liberdade e de seus
bens sem o devido processo legal e
sem o devido contraditório. Em razão
desses dois princípios constitucionais,
mantivemos a possibilidade da elimi-
nação do sócio prejudicial, que esteja
causando dano à sociedade, locuple-
tando-se, às vezes, à custa do
patrimônio social, mas lhe assegura-
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DIREITO DE FAMÍLIALUIZ EDSON FACHIN
Lembro-me de uma recente con-
ferência, no ano passado, pro-
ferida por José Saramago na Fa-
culdade de Direito da Universidade de
Coimbra, designada “O Direito e os Si-
nos”. Contou Saramago que, ao final
do século XIII, numa pequena aldeia
ao redor de Florença, numa certa ma-
nhã, um camponês pôs-se, desespera-
damente, a tocar o sino da igreja e isso,
usualmente, representava o nascimen-
to ou o falecimento de alguém, assim
não se sabia a razão pela qual aquele
sino dobrava-se insistentemente: se al-
guém havia nascido ou morrido. Os si-
nos tocaram tanto que o povo acorreu
para a igreja, para saber, de fato, o que
se passava. Quando toda a população
daquela aldeia se encontrava à frente
da porta de entrada da pequena igre-
ja, o camponês parou de tocar e, per-
guntado por que o fazia com tanta in-
sistência, ele respondeu: estou tocan-
do sinos, porque o Direito morreu. As
pessoas questionavam que sentença
tão dura era essa vinda de uma pes-
soa tão humilde. O camponês narrou
um episódio que havia, ao final, redun-
dado na perda de seus bens, de sua
família e um conjunto de fatalidades e
tragédias, que o levaram a concluir que
o Direito havia morrido.
Recupero essa pequena passa-
gem para dizer que, se hoje, no Brasil,
mutatis mutandis deste pequeno exem-
plo figurativo, olharmos o Direito de
Família do início e final do século XX,
posso-lhes atestar que, se os sinos do-
bram, fazem-no para anunciar não a
morte do Direito, mas, sim, o nasci-
mento de um novo, expressivo e signi-
ficativo Direito de Família, consentâneo
com as perplexidades e os paradoxos
que a sociedade brasileira vive neste
momento.
Tivemos uma transformação
fundamental, ao lado do Código Civil
brasileiro, à margem do sistema famili-
ar codificado, que foi gradativamente
construída na legislação esparsa, às
vezes, com cistos, diáteses e alguns
desvios próprios da produção
legislativa dispersa e, sobretudo, por
uma jurisprudência expressiva, que, na
seara do Direito de Família, trouxe ao
Brasil uma contribuição fundamental
para erigir um conjunto novo de prin-
cípios e regras, como, também, por
uma produção doutrinária, uma ativi-
dade intelectual expressiva, que assim
se realizou.
Basta assinalar que, no come-
ço deste século, no momento em que
entrou em vigor o Código Civil brasilei-
ro – ainda vigente –, tínhamos um mo-
delo de família regulado juridicamen-
te, assentado em quatro pontos funda-
mentais, que, no final deste século,
sofreu uma transformação sensível.
Tínhamos o governo jurídico de uma
família exclusivamente
Série Cadernos do CEJ, 20
matrimonializada, hierarquizada,
transpessoal e de natureza patriarcal
como o modelo da grande família com
um número expressivo de filhos. Esse
modelo, oitenta, noventa anos depois,
cede espaço a um texto constitucional
que mantém o casamento, seguramen-
te, como fonte das relações familiares,
mas retira-lhe a exclusividade, para re-
conhecer que também há família quan-
do não há casamento, que o direito de
casar corresponde também ao direito
de não casar ou não permanecer ca-
sado, e para recuperar as relações fa-
miliares ex maritalis, dando sentido à
família como uma comunhão de vida,
uma história que se escreve a quatro
mãos e tem, na sua dimensão sócio-
afetiva, uma relação que transcende o
vínculo formal.
O aspecto hierarquizado, à luz
dos valores deste início de século, fa-
zia fundar a estrutura familiar na lei da
desigualdade, porque desiguais eram
os papéis e as funções dentro da famí-
lia: os papéis e as funções do marido,
da mulher e dos filhos tidos dentro e
fora do casamento. Para os filhos tidos
fora do casamento, o art. 358 do Códi-
go Civil, em verdade, criava uma lei de
interdição, não permitindo que, embo-
ra filhos fossem, do ponto de vista bio-
lógico, consangüíneos, não podiam
realizar o direito de declarar a sua pa-
ternidade, porque o pai estava casado
com outra mulher, que não era a mãe
daquela criança. Essa desigualdade
injustificada cede espaço à lei de igual-
dade. A direção unitária da família cede
espaço à direção diárquica, aberta e
compartilhada.
Além disso, os outros aspectos
do patriarcalismo e da visão
transpessoal da família levaram alguns
juristas a sustentarem com muita ênfa-
se tratar a família de uma pessoa jurí-
dica, o que dá margem a uma visão
eudemonista da família. Há muito tem-
po Andrey Michelle disse: A família não
é uma instituição que se explica por si
só, mas se explica à medida que se
realizam as aspirações de cada um dos
membros que dela participam, com a
realização mínima da felicidade possí-
vel.
Essa visão, que se designa de
eudemonista, compreende também
esse aspecto sócio-afetivo, aliás, mui-
to bem tratado em um trabalho pionei-
ro e exemplar do Prof. João Baptista
Villela, designado “A Desbiologização
da Filiação no Brasil”.
Por isso, quando lhes pergun-
tei, no início, se os sinos hão de do-
brar, respondo-lhes que sim, quer quei-
ramos ou não, para o nascimento de
um novo Direito de Família, que ainda
não se instalou por completo, que ain-
da faz surtir perplexidades e também
paradoxos de um conjunto de fatos
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
que nesta seara mexe com alguns va-
lores fundamentais desse microcosmo
estrutural da nossa sociedade, que,
sem dúvida nenhuma, é a família.
Para posicionarmos essa evo-
lução, há de se formular uma pergun-
ta introdutória e a ela procuraremos
dirigir alguma resposta. Para suportar
essa evolução ao largo da codificação
civil, na Constituição, na legislação
esparsa, na jurisprudência e na doutri-
na, para se dar conta desta configura-
ção jurídica, a resposta está em ado-
tarmos uma nova codificação? Ou a
resposta está em reconhecer-se que,
neste momento, antes de pensarmos
em uma nova codificação, será neces-
sário verificar, com efeito, para que e
para quem essa codificação está sen-
do realizada? Quiçá, na virada deste
século, também estejamos na dobra da
constituição de um novo desenho jurí-
dico da família no Brasil, desenho este
cujos contornos e conteúdo não fize-
ram ainda emergir uma disciplina jurí-
dica clara e efetiva que reclame e me-
reça estabilidade. Será, portanto, que,
nessa quadra de valores em transfor-
mação, a resposta de uma codificação
é a resposta que soa mais adequada a
tanto? Essa é a pergunta que vamos
procurar responder; mas, para tanto,
é necessário antes aprofundá-la, para
não encontrarmos uma resposta mui-
to simples, porque estamos entre aque-
les que não vêem, no debate sobre a
codificação, uma percepção
maniqueísta entre o sim e o não, mas
uma questão anterior, que antecede à
dimensão própria da codificação, co-
locando em questão a possibilidade de
se aprofundar o momento histórico e
cultural em que vivemos, e, a partir
desse aprofundamento, verificarmos
se é o momento de codificar ou não
as relações jurídico-familiares. É preci-
so, talvez, apontar cinco aspectos que
se nos afiguram como fundamentais,
para revelar a passagem do tradicional
ao contemporâneo, da família do Có-
digo à família da Constituição, para que
possamos, aí, em face desses cinco as-
pectos, dessa passagem, enfrentarmos
a pergunta formulada.
O primeiro desses aspectos é a
transformação que houve e que desig-
namos como uma espécie de virada
de Copérnico, em termos da lei funda-
mental da família: o Código Civil vigen-
te, ao tempo em que entrou em vigor,
constitui-se indubitavelmente na lei fun-
damental reguladora das relações jurí-
dico-familiares. Esse lugar central ocu-
pado pelo Código está hoje
indisfarçavelmente ocupado pela Cons-
tituição. O Direito de Família brasileiro
contemporâneo é um Direito
constitucionalizado, quer nas regras,
quer nos princípios, porque princípios
e regras compõem a categoria das nor-
mas. Por isso, o princípio constitucio-
nal é norma vinculante, portanto, não
Série Cadernos do CEJ, 20
necessitando, em nosso modo de ver,
da mediação do legislador ordinário
para a aplicação direta e imediata nas
relações interprivadas. Daí porque,
com base nessa perspectiva da eficá-
cia direta e imediata do texto constitu-
cional principiológico ou regulamentar,
entendemos que houve uma mudan-
ça no núcleo da regulação jurídica da
família, antes ocupado pelo Código Ci-
vil e hoje ocupado pela Constituição,
que, de algum modo fez uma espécie
de macrocodificação, porque detalhou
alguns aspectos, como prazo para a
conversão da separação em divórcio,
o que poderíamos dizer que são aspec-
tos próprios da legislação
infraconstitucional. De qualquer sorte,
constitucionalizou-se um conjunto ex-
pressivo de princípios e regras, a partir
do art. 226 da Constituição Federal,
atinentes à família. É por isso que fala-
mos em virada de Copérnico, porque
precisamente nessa órbita celeste dos
astros jurídicos o que estava ao centro
fica à margem, e o centro é o culpado
pela Constituição Federal. Ao contrá-
rio do que se dizia, no início do sécu-
lo, que a Constituição deveria ser lida
à luz do Código, diz-se hoje que o Có-
digo Civil há de ser lido à luz da Consti-
tuição. Esse é o primeiro aspecto de
uma transformação que nos parece
relevante.
A segunda dimensão a pontuar
nessa mudança é a alteração atinente
à estrutura jurídica da família. Eviden-
temente que, do ponto de vista do
modelo jurídico da família, à luz da
partida dessa travessia e do Código Ci-
vil, tínhamos seguramente um modelo
unitário, um modelo exclusivamente
matrimonial. Os filhos eram os tidos
dentro do casamento, e, portanto, o
regime jurídico do Código associava ao
casamento essa legitimidade. Por essa
razão, o Código negava a possibilida-
de do reconhecimento dos filhos
adulterinos, preceito felizmente derru-
bado pela legislação posterior e pela
jurisprudência, que foi decidindo de
modo diverso. De qualquer sorte, as-
sociando a legitimidade dos filhos ao
casamento, o Código instituiu uma proi-
bição que, não obstante discriminatória
e injusta, constituindo, a rigor, um pre-
ceito de exclusão, não admitia o reco-
nhecimento dos filhos ilegítimos.
A alteração que se deu com a
mudança dos valores da cultura e da
história sai dessa razão unitária da fa-
mília e alcança, hoje, um modelo plu-
ral. Seguramente o legislador constitu-
cional no Direito Constitucional de Fa-
mília deu um lugar central à família
matrimonializada, deu um lugar central
ao casamento, mas não lhe deu um
lugar de fonte exclusiva das relações
familiares. Daí por que saímos de uma
visão unitária para uma dimensão plu-
ral da família; saímos daquela percep-
ção transpessoal, em que os interes-
ses da instituição estavam acima do in-
teresse dos membros que a compu-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
nham, para uma visão eudemonista em
que o que conta na família é, funda-
mentalmente, o conjunto dos interes-
ses dos membros que a compõem e o
direito de cada um deles de realização
pessoal e afetiva. Aliás, isso não se tra-
ta apenas de uma formulação teórica,
mas é por isso que, em uma contribui-
ção exemplar, o Superior Tribunal de
Justiça, logo após a sua criação, co-
meça a admitir o ajuizamento da ação
de investigação de paternidade, inde-
pendentemente do estado civil do
genitor, porque começou a considerar
menos o estado civil do genitor que
poderia estar casado com outra mu-
lher que não a mãe da criança, levan-
do menos em conta, portanto, o que
dizia em 1929, na sua tese de cátedra,
em Recife, Soreano Neto, que era fun-
damental a paz da família, ainda que
para isso fosse necessária uma menti-
ra jurídica. Ao contrário disso, verifi-
cou-se que a paz da família também
deve, antes de mais nada, atender ao
direito legítimo, fundamental, que é o
direito de revelar a paternidade. Nesse
sentido, operou-se essa mudança de
estrutura da família unitária para uma
família de natureza plural.
No terceiro aspecto, que tam-
bém nos soa relevante – no segundo
mencionei uma alteração estrutural –,
observo uma alteração de natureza fun-
cional. A função básica da família co-
dificada, moldada no desenho jurídico
de um País agrário, da grande família,
numerosa, concentrada na necessida-
de até mesmo de mão-de-obra, que
representava uma unidade econômica,
esse modelo originário, que era a rigor
uma unidade de produção, ao final
deste século perde essa característica.
Hoje, do ponto de vista econômico, a
família é quase praticamente uma uni-
dade de consumo. Mais importante do
que isso, o que acentua o conjunto dos
laços familiares ao final deste século é
a possibilidade de salientar nas rela-
ções familiares a valorização
socioafetiva, ou seja, o que dá sentido
à unidade familiar é precisamente cons-
tituir um mínimo de refúgio afetivo, de
intercâmbio afetivo que, mais além do
que a verdade de sangue, embora não
a desconsidere, mais além do que a
consangüinidade, funde uma razão de
ser que une homem e mulher, que une
os pais e os filhos e estes entre si. Nes-
sa medida, portanto, a família perde sua
dimensão econômica como unidade,
mas ganha, por meio do
redimensionamento da afectio, uma
nova função.
No quarto aspecto há uma mu-
dança estrutural no sistema da filiação.
O sistema originário da filiação é, como
disse Guilherme de Oliveira, professor
da Faculdade de Direito da Universida-
de de Coimbra, em um belo trabalho
sobre essa matéria: O critério originá-
rio do nosso Código, que era, também,
Série Cadernos do CEJ, 20
o critério originário do antigo Código
Civil Português, era nupcial; filhos eram
os filhos tidos dentro do casamento.
Os filhos tidos fora do casamento, do
ponto de vista jurídico, não eram filhos.
Aliás, esse é um dos maiores exemplos,
na área da filosofia, tomado por Karl
Engisch na sua obra Introdução ao Pen-
samento Jurídico para dizer como o
Direito e a vida, às vezes, podem an-
dar apartados. Nessa dimensão origi-
nária, o critério nupcial da filiação
correspondia, portanto, a uma frontei-
ra que estabelecia limites na possibili-
dade do reconhecimento forçado ou
voluntário da filiação.
Esse critério nupcial, no trans-
curso do tradicional ao contemporâ-
neo, cede passos a alguns problemas
de grandes paradoxos, mas, de qual-
quer sorte, ao que se designa de crité-
rio biologista da filiação. Hoje, pratica-
mente não há limites para a determi-
nação da verdade biológica. Talvez, aí,
estejamos diante de um dos pontos in-
teressantes para pensarmos se de fato
é esse o modelo adequado.
Há exemplos significativos na ju-
risprudência do Supremo Tribunal Fe-
deral, antes de 1988, sobre essa maté-
ria, especificamente na parte em que
se revela a necessidade de o Brasil de-
bater e a comunidade jurídica
aprofundar o valor jurídico da posse
do estado do filho como um elemento
de equilíbrio entre a exacerbação da
verdade de sangue e a valorização da
dimensão sócio-afetiva da filiação. Há
de se considerar um caso
paradigmático julgado no meu Estado,
Paraná, e depois apreciado em última
instância, à época, pelo Supremo Tri-
bunal Federal que, em determinada
hipótese, marido e mulher, em face de
uma desavença que tiveram, separam-
se transitoriamente por três a quatro
meses; passado esse período, a mu-
lher retorna ao lar, e o casal reconcilia-
se, vivendo juntos por mais 25 anos;
nasce uma criança, que, obviamente,
recebe o patronímico do marido, seu
pressuposto pai que não apenas dá-
lhe o nome, como, também, o trata-
mento que normalmente os pais pro-
curam dar aos filhos: a educação, o
afeto, a formação moral. Vinte e cinco
anos depois o pai falece, e a mãe reve-
la para aquela criança – já adulta e com
plena capacidade jurídica para decidir
o que fazer, inclusive ajuizar uma in-
vestigação de paternidade – que o pai
biológico não era o seu marido, mas
um terceiro, curiosamente detentor de
largas posses patrimoniais. Seguramen-
te, a questão acaba em uma investiga-
ção de paternidade, que o juiz de pri-
meiro grau de uma das Varas de
Curitiba julgou carecedora de ação,
porque levou em conta, nesse caso, o
sistema do Código Civil, que previa a
legitimidade exclusiva do marido para
impugnar os filhos tidos pela mulher
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
casada, hoje derrubada pela jurispru-
dência e também pela legislação pos-
terior ao Código. O juiz, vinculado ao
Código Civil, julga preliminarmente pela
carência da ação, e o Tribunal de Jus-
tiça do Paraná reforma a decisão, de-
terminando a realização da perícia para
comprovar se há ou não descendên-
cia consangüínea em relação ao outro
homem. A matéria vai ao Supremo Tri-
bunal Federal que confirma a decisão
do Tribunal. Faz-se a perícia e consta-
ta-se o óbvio: que o pai biológico des-
sa pessoa, ainda vivo, era esse tercei-
ro, e não o marido da mãe. Determina-
se a nulidade do registro como que se
passando uma borracha durante os 25
anos, e, em seguida, torna-se, do pon-
to de vista patrimonial, um herdeiro e,
do ponto de vista do estado da pes-
soa, filho de outro que não o marido
da mãe. Esse é um exemplo que se
colhe da jurisprudência para colocar-
nos a pensar sobre o valor jurídico da
declaração biológica e que, em algu-
mas hipóteses, talvez deva ser equili-
brado com a noção de posse de esta-
do de filho, para saber se o biologismo
dos dias correntes – que torna, na in-
vestigação de paternidade, praticamen-
te os filhos como filhos do laudo, que
constata pelos modernos exames a
descendência – é um caminho a pros-
seguir ou que mereça um
aprofundamento.
Sem embargos, o avanço dos
exames médicos foi de uma importân-
cia transcendental, especialmente para
as mães solteiras que buscavam a in-
vestigação de paternidade, porque co-
locou por terra um argumento veicula-
do exceptio plurium concumbentium
que, ao invés de debater a origem ou
não da filiação, acabava colocando em
questão a suposta honorabilidade da
conduta da mulher em uma orientação
discriminatória, injustificável em rela-
ção à condição feminina. Nisso os exa-
mes trouxeram uma contribuição
exemplar.
De qualquer modo, para resu-
mir este quarto aspecto, saímos de uma
visão nupcial – em que a filiação
extramatrimonial não poderia ser reco-
nhecida – para um critério biologista,
em relação ao qual, nesta quadra em
que vive o Brasil, praticamente, não há
limites, embora haja também um gran-
de debate sobre a condução compul-
sória ou não para a extração do mate-
rial e a realização do respectivo exa-
me. De qualquer sorte, estamos sain-
do de um sistema rígido, marchando
para um outro que se está edificando,
pela força construtiva da jurisprudên-
cia, pela produção doutrinária e por
alguma legislação que, neste aspecto
específico, não tem trazido relevante
contribuição.
O quinto e último aspecto a
mencionar nesta travessia que estou a
referir-me é uma mudança do ponto
de vista dos conceitos nucleares no
Série Cadernos do CEJ, 20
Direito de Família. Em outras palavras,
à luz do sistema do Código Civil brasi-
leiro, ao designarmos pai e mãe, o Có-
digo sabe com segurança a quem
estamos nos referindo.
Nos dias correntes, ao afirmar-
mos o brocardo mater semper certa
est, um ponto de interrogação já cabe
ao final, porque, diante dos mecanis-
mos da engenharia genética e da ges-
tação em favor de outrem, a vulgar-
mente designada barriga de aluguel, a
gravidez não é, por si só, mais uma
prova visível da maternidade. Aliás,
essa é uma das circunstâncias que no
Brasil tem passado à margem de um
rigoroso controle público; o Judiciário
já tem recebido demandas que colo-
cam em xeque todos os direitos
personalíssimos, como a cessão des-
sa parte do corpo, o útero da mulher,
para a gestação em favor de outro.
Esse é também um dos para-
doxos que leva da univocidade
conceitual de maternidade a uma
equivocidade ou seja, uma possibilida-
de de uma fragmentação dessas defi-
nições que não representam mais de
uma maneira monolítica, unitária, uma
verdade segura e clara, tal como é.
No tocante à paternidade, tam-
bém assim se passa. Menciono, rapi-
damente, um caso exemplar – o Bra-
sil, talvez, ainda não tenha tido um caso
tão paradoxal como o que foi julgado
em uma Corte ao sul da França, não
faz muito tempo: uma criança poderia
ter, simultaneamente, três pais. O fato
se passou, em síntese, da seguinte
maneira: marido e mulher separados
de fato; a mulher passa a viver com
outro homem, que é estéril. Desejan-
do ser mãe, ela vai a um banco de
material genético – como se sabe, na
França, ao contrário do Brasil, o con-
trole do Estado sobre o material gené-
tico é efetivo –, e é inseminada artifici-
almente com o material genético de
outro homem. Durante o período de
gravidez, o companheiro promove em
juízo uma ação declaratória de
inexistência de vínculo paternal para
dizer o seguinte: “O meu relacionamen-
to com esta mulher acabou, e o pai da
criança que vai nascer não sou eu.”
Ou o pai é o marido, porque ainda es-
tão formalmente casados, e incide a
presunção pater is est, ou o pai é aque-
le que deu o material genético, porque
biologicamente a criança descende
dele. Como a criança ainda não nas-
ceu, não se forma o trinômio: nomine,
intractatus e fama, que seria, em tese,
necessário para configurar o efeito
constitutivo da posse de estado de fi-
lho e atribuir-lhe a paternidade.
O tribunal colocou-se, portan-
to, diante desse dilema, em tese. Aque-
le nascituro, que mal sabia, no confor-
to do útero materno, o que lhe espera-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
va em vida, poderia, em tese, ter três
pais. Se fosse possível configurar a
posse de estado de filho desde a con-
cepção e não desde o nascimento,
quiçá o companheiro poderia ser ele-
vado à condição de pai socioafetivo,
especialmente, se fosse demonstrado
que ele houvera previamente consen-
tido com a inseminação artificial. Esse
consentimento prévio é uma declara-
ção prévia da assunção da paternida-
de, o que, no caso, não ficou clara-
mente comprovado. Se assim fosse,
poderia ele ser o pai socioafetivo da
mesma forma que essa criança terá,
ou teria, ou teve um pai biológico, cuja
paternidade não pode ser declarada,
porque, nas legislações que já se pro-
nunciaram sobre esse tema, França,
Suíça e Portugal, não é possível a in-
vestigação de paternidade quando se
trata do doador de material genético,
havendo uma interdição a essa revela-
ção.
No Brasil, já há quem sustente
a possibilidade da declaração da ascen-
dência biológica mesmo quando se tra-
tar do doador de material genético, não
apenas para efeito de verificação de
questões atinentes à saúde, mas para
a realização de um direito fundamen-
tal: o direito de conhecer o seu ascen-
dente genético, sem que isso traga vín-
culo patrimonial ou sucessório de na-
tureza alguma. De qualquer sorte, na
França tal não seria possível.
Portanto, se o companheiro não
pode ser pai socioafetivo, porque não
se provou os elementos da posse do
estado, se o doador do material gené-
tico não pode ser declarado pai bioló-
gico, restaria atribuir paternidade ao
marido com o qual a mulher ainda es-
tava casada formalmente, porém sepa-
rada de fato. Acontece que, na Fran-
ça, pela reforma da legislação france-
sa da filiação, de 1973, tomba, auto-
maticamente, a presunção pater is est
quando a filiação não é verossímil. Não
era verossímil que o marido fosse o pai,
porque, certamente, pelas circunstân-
cias dos fatos notórios ali existentes,
não conviviam à época da concepção
e, portanto, ausente a presunção de
coabitação, o que faz tombar, cair, au-
tomaticamente, a presunção de pater-
nidade. Resultado: a criança nasceu e
não tem pai, mas, em tese, poderia ter
tido três pais nessa dimensão.
Este exemplo, publicado no re-
pertório de jurisprudência francesa no
final do ano de 1998, é apenas para
significar o último aspecto que menci-
onei: a mudança dos conceitos da
univocidade para a equivocidade. Se
hoje perguntamos quem é a mãe, tam-
bém há lugar para perguntarmos quem
é o pai. Essa pergunta não tem mais
uma resposta fácil e simples, não por-
que o queiramos, mas porque assim
os fatos contemporâneos, com essa
Série Cadernos do CEJ, 20
velocidade extraordinária, estão a ge-
rar.
Esses cinco aspectos, dentre
tantos outros, são suficientes para nos
revelar as repercussões que toda esta
matéria teve e está tendo na doutrina,
no ensino e na jurisprudência.
Em matéria de jurisprudência,
cito como exemplo um acórdão, já de
algum tempo, que mostra a orientação
que o Superior Tribunal de Justiça deu
a esse tema em setembro de 1991, no
Recurso Especial n. 7.631, Relator o
Ministro Sálvio de Figueiredo: Em face
da nova ordem constitucional que abri-
ga o princípio da igualdade jurídica dos
filhos, possível é o ajuizamento de ação
investigatória contra genitor casado.
Naquele momento, deixou-se à
margem o sistema originário do Códi-
go Civil brasileiro. Aplicava-se o texto
constitucional do princípio da igualda-
de entre todos os filhos. O acórdão di-
zia mais: Em se tratando de direitos fun-
damentais de proteção à família e à
filiação, os preceitos constitucionais
devem merecer exegese construtiva
que repudie discriminações incompa-
tíveis com o desenvolvimento social e
a evolução jurídica.
A evolução da jurisprudência,
os paradoxos dos fatos, toda essa rea-
lidade que estamos a viver, encontram,
agora, como proposta de sua
regulação, o Projeto do Código Civil. A
pergunta é se tal Projeto suporta tanta
complexidade. A resposta, no meu sen-
tir, que se pode sustentar, é que, à luz
dessas questões, o Projeto não conse-
gue suportar todos os aspectos aqui
suscitados.
É bem verdade que, em maté-
ria de família, o Senado Federal – e é
notável o esforço do Senador Josaphat
Marinho – deu um largo, expressivo e
positivo passo quando o Projeto lá es-
teve e foi aprovado em novembro de
1997. Basta ver o conjunto de altera-
ções introduzidas no Senado Federal
como, por exemplo, o estabelecimen-
to da igualdade de direitos entre o ho-
mem e a mulher, que está no Projeto;
a substituição do instituto do pátrio
poder pelo assim chamado “poder ma-
rital”; o reconhecimento da união está-
vel, acabando-se, segundo sustenta o
Senador Josaphat Marinho, com a dis-
tinção entre todos os filhos; a obriga-
ção dos ascendentes do adotante re-
conhecerem o adotado, que tem iguais
parentes; o dever de alimentos que é
mais elastecido; o aumento da idade
para a imposição do regime legal da
separação de bens, evitando a distin-
ção injustificável entre o homem e a
mulher existente atualmente no Códi-
go Civil brasileiro.
Essas alterações estão no Livro
IV, a partir do art. 1.510 do Projeto,
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
que, com a redação que saiu do Sena-
do Federal, encontra-se, agora, tal
como foi publicado no Diário da Câ-
mara dos Deputados em 05 de feverei-
ro de 1998, sendo examinado por uma
Comissão Especial. O Relator da parte
de família é o Deputado Antônio Carlos
Biscaia, ex-Procurador da República,
que trata desse tema e que procura
evidenciar alguns desses paradoxos, os
quais completam o estudo desse capí-
tulo do Livro de Direito de Família, com-
posto por 285 artigos.
A estrutura básica do Projeto
está em dividir o Direito de Família em
Direito Pessoal e, depois, em Direito
Patrimonial. O Direito Pessoal cuida,
evidentemente, das relações familiares
de base, e o Direito Patrimonial, do re-
gime de bens e de um conjunto espe-
cífico de questões atinentes ao Direito
de Família.
Para exemplificar as dificulda-
des que tem o Projeto, cito, rapidamen-
te, sem embargo desses elogios que
fiz – e o Projeto no Senado assim o
merece –, alguns aspectos que susci-
tam alguma perplexidade:
O art. 1.626 diz: Não se permi-
te a investigação de maternidade quan-
do tenha por fim atribuir à mulher ca-
sada filho havido fora da sociedade
conjugal.
Se, de um lado, temos a pro-
clamação de que houve nesse Projeto
um reconhecimento do princípio da
igualdade dos filhos, esse dispositivo,
referindo-se à maternidade, cria uma
diferença com a possibilidade dos fi-
lhos do marido serem reconhecidos,
porquanto tal propabilidade não se atri-
bui aos filhos tidos fora do casamento
pela mulher.
Acrescentando, diz o parágra-
fo único: Admite-se a investigação de-
pois de dissolvida a sociedade conju-
gal ou depois de um ano de separação
ininterrupta do casal devidamente com-
provada.
Parece-nos que esse é um dis-
positivo que arrosta o princípio funcio-
nal da igualdade.
Do art. 1.588, pinçarei, rapida-
mente alguns exemplos: Sendo judici-
al a separação, ficarão os filhos me-
nores com o cônjuge inocente.
Traduz o Projeto o grande de-
bate fincado na superação da dimen-
são subjetiva das separações e no di-
vórcio. Cada vez se leva menos em
conta essa inferência da culpa, da res-
ponsabilidade para o efeito da separa-
ção. O Projeto se mantém nessa medi-
da, até porque, como sabemos, origi-
nariamente, foi realizado pela Comis-
são no começo dos anos 70 – na parte
de família, teve a brilhante participação
do Prof. Clóvis do Couto e Silva, da Fa-
Série Cadernos do CEJ, 20
culdade de Direito da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul –, à luz de
um conjunto de valores anteriores à
Constituição e ao próprio desenvolvi-
mento jurisprudencial que se deu ex-
pressivamente com a criação do Su-
perior Tribunal de Justiça.
Ademais, em um outro disposi-
tivo, cita: Cabe ao marido o direito de
contestar a paternidade dos filhos nas-
cidos de sua mulher.
Até a expressão “contestar” já
é uma demonstração daquilo que os
processualistas civis de algum tempo,
e com alguma razão, suscitam: a im-
propriedade técnica, mas o problema
está na impropriedade substancial,
embora se tenha retirado o vocábulo
“legitimidade exclusiva”. Não há a in-
trodução da posse do estado de filho;
substitui a expressão “pátrio poder”
pela expressão “poder familiar”; des-
conhece a evolução do pátrio poder
para o dever familiar e que a expres-
são adotada na moderna teoria de fa-
mília é “autoridade parental”. De fato,
os pais, no exercício das suas funções,
inclusive a de colocar limites aos seus
filhos, deverão sempre exercer a auto-
ridade parental. Quando os pais, os
adultos – há muito já se diz –, educam
os filhos, também se educam. Nesse
sentido, portanto, não há um pátrio
poder; há, na verdade, um pátrio de-
ver, ou uma autoridade parental que
constrói uma via de mão dupla.
Enfim, um conjunto de circuns-
tâncias que nos leva a pensar se, de
fato, há resposta para esses paradoxos
que apontamos e se essas mudanças
estão neste Projeto. Há quem entenda
que não se deve cogitar sequer da
codificação. O tempo das codificações
já encontrou o seu ocaso. Há, assim,
já na Itália, todo o trabalho de Natalino
Irte e, mais tarde, de Pedro Barccelloni
e de tantos outros autores que susci-
tam a criação dos microssistemas e a
decodificação do Direito, um dos fe-
nômenos pelos quais estamos a pas-
sar. Além disso, se há essa discussão
geral, própria do Código impugnado –
e dentre nós, há um trabalho expressi-
vo nesse sentido do Prof. Francisco
Amaral, criticando a própria idéia de
uma nova codificação –, a questão está
em saber se, vencida essa etapa, este
Projeto daria conta da realidade. La-
mentavelmente, no nosso sentimento,
se algumas alterações expressivas não
forem introduzidas, teremos um Proje-
to aquém da Constituição de 1988.
Por isso, neste momento, a Co-
missão Especial na Câmara dos Depu-
tados cuida da possibilidade regimen-
tal de se ampliar a cognição restrita que
o Poder Legislativo tem quando retorna
do Senado Federal matéria não altera-
da por ele e que já houvera sido previ-
amente aprovada pela Câmara. Se isso
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
ocorrer, quiçá, poder-se-á colocar algu-
ma mudança expressiva nessa parte do
Direito de Família.
Porém, a pergunta que se nos
afigura mais relevante talvez seja a de
saber para que e para quem se pensa
uma codificação. Qual é a sua finalida-
de e quais são os seus destinatários?
Para qual família? Para qual desenho
jurídico, ao final deste século, deseja-
mos realizar um desenho que perceba
essa dimensão sócio-afetiva, que man-
tenha a família e a sua razão de ser,
mas que desamarre os nós, como dis-
se a historiadora francesa Michelle
Pierrot, que mantenha o ninho, mas
que desate alguns nós, permitindo à
família, que, obviamente, não deve es-
tar em decadência, manter-se em um
novo modelo e em uma dimensão
fortificada.
Para isso, talvez, quando os si-
nos da virada deste século dobrarem,
poderemos nos perguntar se, com efei-
to, nessas expressivas mudanças, quer
concordemos com elas ou não, há uma
possibilidade de mantermos um desen-
volvimento jurisprudencial e doutriná-
rio antes e, só depois, alcançar uma
estabilidade e uma perenidade desse
governo jurídico para chegarmos a
uma eventual codificação, se este for
o caminho. É por isso que, nesta ma-
téria, há mais perguntas que respos-
tas.
Como iniciei citando Saramago,
concluo citando-o novamente. Na sua
obra, ao final de o “Evangelho segun-
do Jesus Cristo”, disse que nem alguém
pode fazer todas as perguntas e nem,
também, por isso mesmo, poderá ob-
ter todas as respostas. Nessa matéria,
seguramente, há mais perguntas que
respostas e, quiçá, possamos de qual-
quer modo reconhecer que olhar para
o Direito de Família contemporâneo é
um modo de radiografar o momento
em que vive a sociedade brasileira. Um
momento que, no nosso sentir, ao con-
trário do que possa aparentar, é de um
certo ordenamento. O Direito de Famí-
lia está mais para porto do que para
naufrágio, mas a ancoragem pode não
estar apenas na adoção de um novo
Código; pode estar na coragem de to-
dos nós, juízes, advogados e profes-
sores, continuarmos aprofundando o
debate para que a regulação jurídica
da família seja consentânea com o seu
tempo e espaço.
LUIZ EDSON FACHIN: Professor da Fa-
culdade de Direito da Universidade Fe-
deral do Paraná.
CAPACIDADE CIVIL E CAPACIDADE EMPRESARIAL: PODERES DE EXERCÍCIONO PROJETO DO NOVO CÓDIGO CIVIL
JOÃO BAPTISTA VILLELA
Tenho algumas notas e uma edi-
ção do Projeto de Código Civil
que reproduz o texto aprovado
pelo Senado e submetido presente-
mente à apreciação da Câmara dos De-
putados.
Gostaria de lembrar, inicialmen-
te, Paulo de Lacerda, eminente cultor
do Direito Civil da primeira metade des-
te século, quando com um
indisfarçável orgulho lembrava que o
Brasil tinha sido palco da primeira gran-
de iniciativa de codificação do Direito
Privado.
Sabe-se que o Direito Privado
sofreu uma espécie de cisma por oca-
sião da Idade Média quando, à vista
de algumas circunstâncias históricas,
muitas delas de caráter acidental, o
Direito Comercial se constituiu fora dos
quadros do Direito Civil. Só para reca-
pitular um pouco, a censura que se deu
naquele momento – porque ela vai,
pela sua infundada doutrina, alimentar
todo o esforço de reunificação do Di-
reito Privado – era ligada, em grande
parte, à decadência do Direito Roma-
no no período da Baixa Idade Média,
que se devia em grande parte, por pa-
radoxal que pareça, à influência do cris-
tianismo, que trouxe um enorme enri-
quecimento ao Direito, à medida que
certas idéias fundamentais, como as de
igualdade e respeito ao mais débil fo-
ram sendo introduzidas no Direito. Por
outro lado, aquele contexto exagera-
do na defesa do economicamente fra-
co e na, em geral, do devedor, retirou
do Direito Romano certos recursos fun-
damentais de proteção ao crédito e a
isso associavam-se a ação e a influên-
cia do Direito Canônico, que vedava,
por uma insuficiente compreensão do
papel do dinheiro, a remuneração pelo
uso do capital, ou seja, havia uma con-
denação peremptória dos canonistas
para que se pagassem juros pelo em-
préstimo de dinheiro. Era uma menta-
lidade fisiocrática que presidia o pen-
samento jurídico na época, porque, aos
cultores do Direito e aos estadistas da
época não se afigurava pensável que
o dinheiro pudesse ser um bem capaz
de frutificar. Se alguém tomasse, por
exemplo, uma semente de trigo e a
deitasse na terra sob condições ade-
quadas, ela frutificaria e a semente, que
era uma, se converteria em milhares
de outras, mas o dinheiro não. Segun-
do se pensava naquele tempo, o dinhei-
ro era impassível de multiplicação; uma
unidade monetária não tinha como se
multiplicar em mais unidades monetá-
rias, daí por que a vedação dos juros
se constituiu num verdadeiro marco
das organizações política, jurídica e
mesmo religiosa naquele momento.
Não é difícil a qualquer um de
nós pensar que, sem defesa do crédi-
to e, sobretudo, sem atividade bancá-
ria, não é possível o desenvolvimento
Série Cadernos do CEJ, 20
do comércio, que se funda basicamen-
te no crédito e na atividade bancária, a
qual, em verdade, é a atividade que
opera o instituto do crédito. As pesso-
as que exerciam atividades de troca
econômica, os chamados “mercado-
res”, não encontrando dentro do Direi-
to Civil as razões e os instrumentos para
dar cobertura aos seus negócios, co-
meçaram a criar instrumentos para re-
gular internamente as suas atividades.
Dessa maneira, começou a se formar
o Direito Comercial, não como um di-
reito comercial, mas como um direito
dos comerciantes, não um jus
mercatio, mas um jus mercatorium.
Essas razões são puramente contingen-
tes, acidentais, e não há nada que in-
dique, do ponto de vista da estrutura
dos valores e dos princípios que regem
os Direitos Civil e Comercial, que elas
constituam objeto de uma dogmática
separada e que não guardem uma cer-
ta unidade, uma certa coerência.
Esse fato foi muito bem apre-
endido aqui no Brasil por Teixeira de
Freitas que, como se sabe, em meio
ao caminho da codificação de que fora
encarregado pelo Governo Imperial,
resolveu rever todo o seu trabalho e
propor que, ao invés de um Código
Civil, se promovesse a unificação do
Direito Privado. Sabe-se que esse é um
dos episódios mais importantes da his-
tória do Direito Privado brasileiro e isso
fez nascer aquilo que Clóvis Beviláqua
chamaria de “a página mais dolorosa
da jurisprudência brasileira” que foi a
carta com que Teixeira de Freitas, ante
à recusa do Governo Imperial de aco-
lher as suas idéias, renunciou à fun-
ção de codificador do Direito Civil. Esse
episódio, por mais doloroso que tenha
sido, marcou, segundo Paulo de
Lacerda, o início de uma reflexão que
depois tomou todo o Ocidente, que foi
o esforço de reconstituir a unidade per-
dida do Direito Privado.
Se a afirmação de Paulo de
Lacerda é acertada ou não, pode-se dis-
cutir, porque, ao mesmo tempo em que
Teixeira de Freitas fazia essas reflexões
aqui no Brasil, um jurista suíço na Eu-
ropa também desenvolvia reflexões se-
melhantes; e trabalharam aproximada-
mente na mesma época e, por isso
mesmo, é um pouco arriscado dizer
que a precedência absoluta é de
Teixeira de Freitas. De qualquer manei-
ra, é claro e inegável que ele precedeu
de muito aquilo que ficou mais conhe-
cido como o grande grito em favor da
reunificação que foi a famosa
prolusione, a aula inaugural que Cesar
Vivante proferiu na Universidade de Bo-
lonha, em 1888, pedindo de novo que
o Direito Privado fosse uno e não mais
dicotomizado como se encontrava des-
de a Idade Média até o fim do século
XIX.
Embora as idéias de Teixeira de
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
Freitas não tivessem vingado aqui no
Brasil, curiosamente o sonho da
reunificação do Direito Privado nunca
abandonou a cena jurídica brasileira.
O Governo parecia estar sobretudo
acossado por um imperativo político
de ter um Código Civil. A idéia de tra-
balhar numa outra linha representaria
possivelmente um prolongamento,
uma dilatação do prazo em que se que-
ria um Código Civil, que, naquele tem-
po era, de certa maneira, uma carta de
alforria dos países. O Brasil, já na Cons-
tituição Imperial de 1824, havia se
autoprometido um Código Civil, e nós
caminhávamos para o final do século
sem que esse Código ganhasse a luz
da realidade, o que deixava o Brasil
numa situação de incômoda inferiori-
dade em relação aos outros países lati-
no-americanos. Sabe-se, por exemplo,
que a Bolívia, em 1830, dispunha de
um Código Civil, que não era nada ori-
ginal, não passava de uma cópia do
Código de Napoleão, mas, enfim, po-
dia exibir o seu Código, enquanto que
o Brasil, seguramente a mais importan-
te nação da América Latina, ainda
tateava em busca desse monumento
da sua condição de nação politicamen-
te adulta.
O Governo, preocupado em
acelerar esses trabalhos, não deu ou-
vidos à sugestão de Teixeira de Freitas,
e sabe-se que Clóvis Beviláqua foi en-
carregado da elaboração do Projeto,
que também teve as suas vicissitudes,
mas, finalmente, converteu-se em lei
em 1916. Apesar disso, e até mesmo
enquanto o Projeto Beviláqua estava
não só em curso como em um estágio
avançado, ainda persistia o propósito
de reunificar o Direito Privado antes
que tivéssemos aqui um Código Civil.
Em 1912, o Governo Hermes
da Fonseca encarrega Herculano Mar-
cos Inglês de Sousa de elaborar um
Projeto de Atualização do Código Co-
mercial de 1850, que, como se sabe,
já era, a esse tempo, um Código anti-
go. Herculano, que era um aferrado
partidário da reunificação já poucos
anos antes da aprovação do Projeto do
Código Civil, elaborado por Clóvis
Beviláqua, realiza um projeto de adap-
tação e modernização do Código Co-
mercial brasileiro, mas agrega a este
Projeto um outro destinado a convertê-
lo no que seria um Código de Direito
Privado; chamava-se precisamente “A
iniciativa de Inglês de Sousa”, um Pro-
jeto que seria o Código de todo o Di-
reito Privado nacional. A iniciativa não
teve sucesso; tivemos o Código apro-
vado, que já nasceu desatualizado pelo
seu longo processo de discussão e ela-
boração, e logo começaram a apare-
cer os esforços tendentes a melhorá-lo
de certa forma.
No processo de modernização
do Código Civil reaparece, novamen-
Série Cadernos do CEJ, 20
te, a idéia da unificação do Direito Pri-
vado – ela vai aparecer mais recente-
mente em 1960, com o chamado “ Pro-
jeto Orlando Gomes”. Na década de 60,
já havia dois grandes modelos de uni-
ficação do Direito Privado bem confi-
gurados e delineados no Ocidente: o
que poderíamos chamar de modelo
suíço e modelo italiano. O modelo suí-
ço concretizou-se por meio da adoção
de dois códigos distintos para um úni-
co Direito: o Código das Obrigações,
de 1881, que reunia toda a matéria
obrigacional, e o Código Civil, de 1907,
que disciplinava a matéria de Direito
Privado residual, ou seja, aquilo que
não concernisse diretamente às obri-
gações. Depois, tivemos um modelo di-
ferente na Itália, que já tinha, em 1942,
o precedente suíço, mas se preferiu
uma outra via – na Itália, como se sabe,
unificou-se o Direito Privado dentro do
Código Civil: o Código Civil de 1942,
substituiu o velho “Código Pisanelli”, de
1865, e o Codice del Commercio, de
1882. Chama-se Civil, mas não é um
Código apenas de Direito Civil, é um
verdadeiro Código de Direito Privado.
Tínhamos, quando se deu iní-
cio à Codificação Orlando Gomes, à
nossa frente, esses dois precedentes
históricos. A Comissão Orlando Gomes
optou pelo modelo suíço; então tive-
mos um Projeto de Código Civil e um
outro Projeto de Código das Obriga-
ções. Esses Projetos foram objeto de
uma discussão relativamente mais
ampla do que a que se produziu com
este atual Projeto no País e, converti-
dos em projeto de lei, foram encami-
nhados ao Congresso Nacional, até
que sobreveio o movimento político de
1964, quando então essa iniciativa foi
definitivamente sepultada.
Quando chegamos em 1970, re-
toma-se de novo não a idéia de unifi-
cação do Direito Privado, mas a idéia
de um Código Civil mais moderno,
adaptado às condições do País, já uma
Nação muito industrializada e com bas-
tante movimento de migração do cam-
po para as cidades, que, por sua vez,
determinou uma alteração no perfil das
relações sociais e econômicas do País.
Ao retomar a idéia de um novo Código
Civil novamente reapareceu presente
à mente dos encarregados a idéia de
unificar o Direito Privado, ou seja, nun-
ca se aceitou bem, no Brasil, depois
do alerta de Teixeira de Freitas, a idéia
de que devêssemos ter uma legislação
de Direito Privado compartimentada em
dois códigos distintos. Até 1876, pre-
cisamente 1875, com uma lei que au-
torizou o Governo Imperial a alterar a
estrutura judiciária nessa matéria, o
Brasil chegou a ter uma jurisdição co-
mercial, como tem hoje a França, se-
parada da jurisdição civil. Tivemos os
conhecidos tribunais do comércio que
chegaram a ter atividade no Brasil, mas
nunca concorreram, ao que se tem
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
notícia, para que aparecesse, aos
olhos dos observadores mais atentos
e analíticos da realidade nacional, uma
solução politicamente conveniente.
Com o Projeto Miguel Reale
recoloca-se à Comissão o tema da uni-
ficação do Direito Privado. A Comissão
opta pela unificação, mas nesse mo-
mento abandona o modelo suíço e as-
sume o italiano, não mais um Código
de Obrigações e um Código Civil, mas
um único Código que se chamou de
Civil e não de Direito Privado; segundo
aquela idéia de Inglês de Sousa, um
Código de Direito Civil em que toda a
matéria de Direito Privado estivesse
contida. Assim se fez e se converteu
também em projeto de lei e foi envia-
do ao Congresso Nacional.
Se tomarmos como marco ini-
cial da idéia de unificação no Brasil a
advertência de Teixeira de Freitas –
quando realizava, depois de ter feito a
Consolidação das Leis Civis, cometido
pelo Governo Imperial, o seu Projeto,
que nunca chegou a tal, mas ficou
como esboço – podemos dizer que
contabilizamos pelo menos um século
e meio de doutrina de unificação do
Direito Privado, de reflexão acumula-
da sobre as vantagens e, eventualmen-
te, os inconvenientes da unificação do
Direito Privado. Como se uma força
atávica nos impedisse de realizar esse
sonho, mais uma vez essa iniciativa
parece inabilitada para realizar adequa-
damente esse projeto unificador. De
um modo estranho parece que não
conseguimos armar adequadamente a
hipótese da unificação.
Se pudesse usar uma linguagem
de cronista esportivo, diria que não en-
contramos o caminho do gol da unifi-
cação. Todas as iniciativas, de um
modo ou de outro, foram malogradas,
conforme disse, e esta iniciativa, que
não posso dizer ainda malograda, de
qualquer maneira, não constitui uma
solução adequada para a unificação do
Direito Privado. Quem lê o Projeto des-
de as suas versões iniciais, desde o
anteprojeto inicial até a sua última ver-
são, que é esta a que me referi, tem a
impressão de que toda a Parte Geral
foi redigida sobre um suposto modelo
de Código Civil exclusivamente para
matéria civil e não para matéria empre-
sarial, que é o nome sob o qual a ma-
téria de comércio entrou para o Proje-
to.
O que gostaria de mostrar é
como esse encaixe se apresenta atro-
pelado, descosido e longe de fazer com
que o intérprete possa ver entre as dis-
posições da Parte Geral e o livro do
Direito de Empresas uma passagem
natural, que traduza essa idéia de um
corpo unificado de regras, valores e
princípios que são os do Direito Priva-
do. Assim, se tomarmos o art. 5º, que
Série Cadernos do CEJ, 20
é onde está definida a capacidade, va-
mos verificar que houve uma alteração
sobre a qual não vale a pena discutir.
Conquanto o Ministro Moreira Alves in-
sista na sua idéia anterior de colocar a
cessação da menoridade aos 21 anos,
o Projeto, acompanhando a tendência
geral das legislações ocidentais da Ale-
manha, Itália, França etc., baixou para
dezoito anos. Mas, como em outros
ordenamentos jurídicos e como no atu-
al Direito vigente, há a possibilidade de
encontrarem-se caminhos alternativos
para obtenção da capacidade plena
por meio, entre outros expedientes ou
de muitas formas, da emancipação,
que está prevista no parágrafo único
do art. 5º, no qual há uma alínea que
diz:
O artigo está vazado nos se-
guintes termos:
Parágrafo único. Cessará para
os menores a incapacidade:
e) pelo estabelecimento civil ou
comercial ou pela existência de rela-
ção de emprego, desde que, em fun-
ção deles, o menor com dezesseis anos
completos tenha economia própria.
O que há de meritório nesse
dispositivo é o fato de que se criou uma
idade mínima que o Código Civil atual
não estabelece, levantando dúvida so-
bre a partir de que idade pode obter-se
a cessação da menoridade por esta via.
Mas uma demonstração de que a Par-
te Geral não foi concebida para um pro-
jeto unificado está na repetição, pura
e simples, das expressões que o Códi-
go Civil atual usa: estabelecimento ci-
vil ou comercial. Ora, não haveria que
se falar mais em estabelecimento co-
mercial, senão apenas em estabeleci-
mento empresarial, que é aquela idéia
de empresa em que se unifica a ativi-
dade civil e a antiga atividade comerci-
al.
Como se não bastasse esse re-
síduo da velha idéia de um Código ape-
nas Civil, o Projeto – e nisso difere para
pior do Código vigente – diz assim:
(...)pela existência de relação de em-
prego, desde que, em função deles, o
menor com dezesseis anos completos
tenha economia própria. Ora, essa lin-
guagem de que se usa e se abusa hoje,
muitas vezes empregada em sentido
absolutamente impróprio, está a deter-
minar não uma relação de causalida-
de, mas uma relação de dependência.
Se, por exemplo, os preços variam de
acordo com a qualidade, a qualidade
determina o preço; poderia também
pensar que os preços indicam a quali-
dade, mas esta seria outra proposição,
dentro de um outro registro lógico. Se
a qualidade determina o preço, tenho,
no sentido lógico e cronológico, a qua-
lidade antecedente ao preço. Ora, se
trato de economia própria em função
do estabelecimento, estou exigindo que
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
o estabelecimento seja também um
prius em relação à economia própria.
Portanto, o que o Projeto está dizendo
é que primeiro tenho de ter o estabele-
cimento e depois tenho de ter a eco-
nomia própria, o que é um desastre
completo. Por quê? Porque a lógica
correta que está presente no Código
Civil hoje, ainda que incompletamente
formulada, é a de que o menor, por
meio da sua diligência, da sua capaci-
dade de planejamento e de consertar
interesses, supre a sua falta de amadu-
recimento biológico, revelando-se uma
pessoa habilitada a operar no mundo
das relações privadas, das relações
sociais e econômicas do Direito Priva-
do.
Em termos atuais, o estabeleci-
mento civil ou comercial explicita uma
capacidade que o menor já tinha. Di-
gamos que o estabelecimento é aque-
le marco de visibilidade que o menor
apresenta e que faz presumir nele tudo
aquilo que é necessário para que se
reconheça o exercício da capacidade
de fato. O Projeto diz que o menor, para
se emancipar, tem de ter economia pró-
pria em função dos estabelecimentos;
portanto, está dizendo, em bom portu-
guês, que ele se estabelece, mas como
ainda não tem economia própria, por-
que esta tem de ser obtida em função
do estabelecimento, ele se estabelece
sem ser capaz, com isso criando um
enorme problema. E, se ele desenvol-
ver o seu estabelecimento num perío-
do em que não tem capacidade, ob-
tendo economia própria por meio des-
sa atividade, então, terá a emancipa-
ção. A primeira pergunta que se faz
aqui é: Quando então surge a emanci-
pação? Já o fato de trabalharmos hoje
com a idéia do estabelecimento – em
termos do Código atual, não é o esta-
belecimento, a unidade física, e sim a
operação de se estabelecer –, se temos
dificuldade de concretizar esse momen-
to preciso em que a capacidade se dá
via estabelecimento, muito mais dificul-
dade teremos quando esse estabeleci-
mento não for mais o elemento
extrínseco revelador da capacidade do
agente, senão apenas o marco em ra-
zão do qual desenvolverá atividades na
condição de incapaz para só depois,
se tiver economia própria, obter a ca-
pacidade plena, o que é um equívoco
completo. Ademais, na lógica do atual
Código vigente, a economia própria
surge, ou entra, como o elemento afe-
ridor de uma capacidade de fato efeti-
va, e no Projeto passaria a entrar como
o resultado de uma administração
frutuosa, de uma administração bem-
sucedida.
Ora, as operações serem bem-
sucedidas nunca foi requisito para a
capacidade. Muitas vezes, a pessoa é
um verdadeiro empresário, tem tino,
tem habilidades e condições, mas não
tem sucesso; basta lembrar aquele que
Série Cadernos do CEJ, 20
foi provavelmente o maior empresário
de toda a história política do Brasil, o
Barão de Mauá, que teve sucessivas
falências. Então, ter sucesso econômi-
co não é elemento revelador de habili-
tação para o exercício de fato do direi-
to, senão um resultado mais ou me-
nos eventual da atividade de empresá-
rio.
Pior é quando o Projeto diz – e
isso é um acréscimo em relação ao Có-
digo vigente – que também a relação
de emprego pode levar à capacidade
plena se, em função dela, o menor ti-
ver economia própria. Pergunto: Há
algo mais inerente à relação de empre-
go do que o salário? E há algo mais
inerente a este do que constituir a ex-
pressão de uma economia própria?
Todo aquele que tem uma relação de
emprego tem, ipso facto, salário, que
é mais próprio do que qualquer outro
rendimento que o menor pudesse ter.
Então, ao dizer dessa forma, o Projeto
está apenas usando de uma tortuosa
perífrase para dizer que a relação de
emprego emancipa.
Bem, se a relação de emprego
emancipa, primeiro, ela está aqui mal
colocada, porque deveria, por identi-
dade ou afinidade de matéria, estar na
alínea c desse parágrafo único, que é
o exercício de emprego público efeti-
vo, e com mais este paradoxo: que
enquanto o exercício do emprego pú-
blico tem de ser efetivo para emanci-
par, a relação de trabalho no mundo
privado, a relação de trabalho que não
seja no serviço público, está dispensa-
da de qualquer outro predicado. A ri-
gor, um contrato de trabalho de expe-
riência, que estabelece uma relação
precaríssima, é suficiente para habili-
tar a pessoa aos atos da vida civil e
para torná-la definitivamente capaz. Os
arts. 3º e 4º tratam da definição das
hipóteses de incapacidade. O art. 3º
diz:
São absolutamente incapazes
de exercer pessoalmente os atos da
vida civil:
II – os que por enfermidade ou
retardo mental não tiverem o necessá-
rio discernimento para a prática des-
ses atos.
Aqui o Projeto passou por cima
de toda a moderna problemática dos
classicamente chamados “intervalos
lúcidos”.
Houve uma mudança funda-
mental na ciência psiquiátrica. Depois
da grande revolução da psiquiatria bio-
lógica, reverteu-se a situação anterior
na qual os casos de enfermidade men-
tal intermitentes se compunham fun-
damentalmente de longos períodos de
enfermidade, intervalados por períodos
de lucidez. Hoje, segundo depoimen-
tos dos especialistas na área médica,
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
é possível, por meio do controle por
drogas, se não eliminar totalmente o
período de enfermidade, reverter a si-
tuação para o estado anterior; ou seja,
podemos ter longos períodos de sani-
dade pontuados por pequenos lapsos
de enfermidade. Então, não há mais
sentido estabelecermos uma incapaci-
dade de caráter permanente e duradou-
ro, quando a situação, em razão dos
progressos médicos, mudou radical-
mente.
Mas, ainda aqui, para ficarmos
no art. 3º, há uma solução, absoluta-
mente, a meu ver, estapafúrdia, que se
expressa no inc. III. Nele, na lista dos
absolutamente incapazes, estão aque-
les que, ainda que por motivo transitó-
rio, não possam exprimir sua vontade.
Estes são declarados incapazes, quan-
do, na verdade, eles estão momenta-
neamente incapazes. Mas essa defini-
ção de incapacidade do Código não é
uma descrição de um estado factual
porém, de uma restrição jurídica. Di-
zer que a pessoa que está, por exem-
plo, sob anestésico, é incapaz para os
atos da vida civil no sentido descritivo,
é o mesmo que dizer que o paralítico
está incapacitado de andar.
Na verdade, a pessoa que este-
ja submetida a uma suspensão provi-
sória do seu estado de consciência não
é uma incapaz; está momentaneamen-
te limitada no exercício da sua capaci-
dade. Nenhum de nós que tenha pas-
sado por uma anestesia, por exemplo,
terá sido considerado incapaz para
sempre. Mas o Projeto não limita o tem-
po de duração; ou seja, houve aqui um
concurso de equívocos, entre eles o
do mau uso do verbo “ser” pelo verbo
“estar”. Recordarão todos aquela diver-
tida expressão do então Ministro Eduar-
do Portela, no Governo João
Figueiredo, quando indagado por um
repórter se ainda continuava Ministro.
Respondeu: Não, não sou Ministro; eu
estou Ministro. Ou seja, quis sinalizar
o estado precário da sua condição; ele
continuaria ministro enquanto, natural-
mente, gozasse da designação do Pre-
sidente da República. A pessoa que está
momentaneamente, transitoriamente,
sem condições de exprimir a sua von-
tade, não é incapaz; ela está incapaz.
Mas essa incapacidade, digamos, que
se expressa pelo verbo “estar”, o Códi-
go não tem de anunciá-la. Dizer que a
pessoa que não pode exprimir a sua
vontade é incapaz, nesse sentido
factual, significa uma tautologia; seria
o mesmo que dizer que a pessoa que
é paralítica não pode andar.
Poderia prosseguir nessa análi-
se, mas quero deter-me, ainda que sem
o vagar que gostaria, na parte do Direi-
to de Empresa, que é o Livro II, e onde
a matéria, até então tida por comercial,
encontraria o seu assento próprio. Nele
existe uma definição interessante e
Série Cadernos do CEJ, 20
correta do que seja empresário. Art.
969:
Considera-se empresário o que
exerce, profissionalmente, atividade
econômica organizada para a produ-
ção ou circulação de bens ou de servi-
ços.
Então, a empresarialidade
corresponde exatamente à mesma idéia
de comercialidade que temos hoje no
Brasil. O comerciante não é aquele que
pratica atos de comércio, mas aquele
que faz da mercancia uma atividade
habitual ou profissional. Assim deve ser
também o empresário. A empresa, nes-
se caso, não é vista como uma ativida-
de tópica, episódica, intermitente, mas
como uma condição permanente. Se
é uma condição ou uma atividade, não
teria sentido o que diz o art. 977, quan-
do estabelece a seguinte regra:
Por meio de representante ou
devidamente assistido, poderá o inca-
paz continuar a empresa, antes
exercida por ele enquanto capaz, por
seus pais ou pelo autor de herança.
A hipótese aqui é de uma pes-
soa que é empresário e se vê subita-
mente atingida, por exemplo, por uma
incapacidade superveniente, ou, na
outra hipótese, a de morte.
Se o empresário encontrar-se
atingido por uma incapacidade ou por
uma turbação superveniente dessa ati-
vidade, o natural é que deixe de ser
empresário. Ele não é mais empresá-
rio, porque ser empresário é exercer
uma atividade; se ele não estiver exer-
cendo nenhuma atividade não será
considerado empresário. Claro que
pode ser titular da empresa. Aquela
empresa, como objeto de direito, pode
estar integrada ao seu patrimônio, mas
não se lhe pode dar a condição de con-
tinuar sendo empresário, ou seja, con-
tinuar sob o ficto exercício da ativida-
de empresarial quando está incapaz.
Posso, por meio do instituto da repre-
sentação, cometer a alguém a prática
de atos determinados. Esses atos, pra-
ticados em conformidade com o man-
dato, vinculam o mandante. Assim não
é errado, porque de uso corrente no
foro, que o representante, neste mo-
mento, substitui a pessoa do represen-
tado. Nas petições, por exemplo, o ad-
vogado não diz: Eu, representando fu-
lano de tal. Mas, desde logo: Fulano
de tal vem requerer isso ou aquilo.
Isso é uma substituição em ter-
mos de atos. Mas não posso imaginar
essa substituição em termos de ativi-
dades. Por exemplo: se quero alienar
um imóvel que tenho em Curitiba, pos-
so cometer este poder a um procura-
dor meu, a um mandatário, e ele, no
exercício deste mandato, deslocar-se-
á até Curitiba, comparecerá em cartó-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
rio, ou não, conforme as circunstân-
cias, e lavrará o ato para o qual o in-
vesti.
Posso dizer que esse ato de
vender um imóvel é meu, praticado por
intermédio dele, mas não posso dizer
– seria medianamente equivocado –
que fui a Curitiba, hospedei-me em um
determinado hotel ou almocei no res-
taurante tal, simplesmente, porque o
meu procurador o fez. As atividades
são dele, e são pessoais e infungíveis.
Atividade como tal é infungível. Os atos
praticados no contexto dessas ativida-
des poderão ser imputados ao repre-
sentante. Assim, essa norma do art.
977 subverte, por completo, o enten-
dimento do que seja empresário, do
que seja a atividade empresarial.
Outra anomalia manifesta-se no
art. 981, ainda do livro do Direito de
Empresa, que diz assim:
O empresário casado pode,
sem necessidade de outorga conjugal,
qualquer que seja o regime de bens,
alienar os imóveis que integrem o
patrimônio da empresa ou gravá-los de
ônus real.
Esta é uma solução que, à pri-
meira vista, parece razoável. De fato,
o empresário tem de dispor de uma
mobilidade, de um poder de exercício
maior que o das pessoas que não o
são. Essa agilidade, rapidez e presteza
são inerentes à atividade econômica.
Não posso, porém, criar uma regra des-
se alcance e desse poder sem que es-
teja trabalhando com o empresário
pessoa jurídica e/ou sem que eu te-
nha a definição de um patrimônio se-
parado, de afetação. Posso, perfeita-
mente, imaginar que o empresário in-
dividual tenha um enclave patrimonial
entre os seus bens e que este fique
comprometido ao atendimento das
suas dívidas e das suas obrigações.
Contudo, tenho de definir, demarcar,
mapear esse enclave para submetê-lo
a esse regime. Sob este aspecto, o côn-
juge não estará sendo lesado, porque,
qualquer que seja o regime de bens
do casamento, ainda que seja o da se-
paração, cada um dos cônjuges tem o
interesse legítimo na administração e
na gestão do patrimônio comum, des-
de logo, e mesmo do patrimônio do
cônjuge. Se quero este resultado, ou
seja, se quero criar o que o Direito bra-
sileiro atualmente não oferece, tenho
de ter, por exemplo, a limitação da res-
ponsabilidade do comerciante individu-
al – objeto, há muitos anos, em São
Paulo, de uma tese interessante do Prof.
Sylvio Marcondes Machado. Esta é uma
hipótese que não temos e que nos leva
a uma ficção: a constituição de socie-
dades em que uma pessoa detenha
99% das quotas e uma outra, geralmen-
te alguém de sua confiança, detenha
um por cento. Essa prática existe para
Série Cadernos do CEJ, 20
atender à preocupação saudável de
não se comprometer a segurança pes-
soal e familiar com os atos empresari-
ais – a atividade empresarial é, por ex-
celência, uma atividade de risco –, por
causa da insuficiência dos instrumen-
tos normativos de que dispõe o Direi-
to brasileiro para limitar o comprome-
timento e a responsabilidade do em-
presário individual.
Muito saudável, portanto, a
idéia de se implantar alguma forma de
proteção ao empresário individual para
que ele não fique em estado de inse-
gurança, incerteza, com receio de que
alguma eventual operação irá deixá-lo
completamente sem recursos ou irá
deixar a sua família, seus filhos e sua
mulher, ao desabrigo. Tal idéia é sau-
dável, mas tenho de demarcar o
patrimônio que ficará comprometido
com a atividade empresarial. Não pos-
so, simplesmente, dar ao empresário
o poder de dispensar outorga conju-
gal, se não tenho os limites para os atos
que ele venha a praticar.
Para resumir, na minha percep-
ção, neste particular, no que se refere
aos poderes de exercício, o Projeto se
acha não só mal formulado, mas, mais
uma vez, estranho dentro das regras
que devem ser observadas para que
se obtenha uma efetiva reintegração do
Direito Privado.
JOÃO BAPTISTA VILLELA: Professor
da Universidade Federal de Minas Ge-
rais.
DIREITO DAS COISASRUI GERALDO CAMARGO VIANA
A propriedade aparece antes do
constitucionalismo, é fundado-
ra do constitucionalismo, como
inerência ao direito do cidadão, até
como um direito de personalidade,
uma garantia do cidadão. Por isso mes-
mo que, quando houve a reforma cons-
titucional francesa, Marcel Aline, em
1957, colocou um dispositivo fixando
a propriedade como um direito consti-
tucional. Ele não tinha convicção dis-
so, mas dizia: arreceio-me de que um
legislador ordinário – não na expres-
são pejorativa do termo – venha a
modificá-lo, tirando substância deste
importante instituto. Por isso ele o
constitucionalizou.
Hoje vemos que esse ideal bur-
guês voluntarista que caracterizou a Re-
volução Francesa vem perdendo a ên-
fase que dava à centralização de tudo
em um Código Civil. Como foi dito, com
muita propriedade, a Constituição do
cidadão, do homem comum, é, ou se-
ria, o Direito Civil.
No Código Civil, pensava-se que
estaria centralizado todo o Direito Pri-
vado, porque, ali, estavam dispostas e
resolvidas todas as imagináveis ques-
tões que pudessem ocorrer entre as
pessoas, sendo o juiz meramente la
bouche de la loi, a aplicar aquilo que a
lei dizia. Aliás, é de todos sabido o hor-
ror que Napoleão votava à magistratu-
ra. Tivesse sido ele mais alongado nos
seus anos, por certo, quando se co-
meçassem as interpretações do Códi-
go Civil, não teríamos mais juristas na
França. Ele teria resolvido o problema;
tê-los-ia eliminado por ver o Código
insuscetível de interpretação.
Com a evolução econômica,
com as correlatas influências no cam-
po social, a evolução estrutural e o
aumento das populações urbanas que
exigiam contrapartidas céleres no sis-
tema legislativo, os códigos foram se
afrouxando. Hoje, vemos uma pletora
de leis em todos os campos: Direito de
Família, uma série de dispositivos a res-
peito; Direito Empresarial, um excesso
de normas a respeito das empresas;
no conceito da locação dos contratos,
uma inovação; esta está totalmente fora
do Código Civil – se pegarmos o Códi-
go Civil, poderemos constatar que pou-
ca coisa ali sobra.
O nosso Projeto tem quase trin-
ta anos. Não é muito mais do que de-
morou o antigo Projeto de Código Ci-
vil. Digo que aqueles vinte anos, des-
de a Constituição de Teixeira de Freitas
até o Projeto de Clóvis Beviláqua, fo-
ram corridos no andar da carruagem;
mas, hoje, estamos no tempo do dis-
positivo a jato. Esses trinta anos de evo-
lução social representam muito mais
que os vinte anos daquela sociedade
no estado de aquiescência, daquela so-
ciedade estável do princípio do sécu-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
lo. Muita evolução ocorreu e aquele Pro-
jeto, avançado para a época, sofreu
todo o embate da orgia legiferante. Fez-
se necessário o Anteprojeto que come-
çou em 1972. Orgia legiferante a que
alude Mauro Cappelletti em suas refle-
xões sobre o tema, mostrando que o
escopo era manter o sistema do Códi-
go Civil fechado, o que, todavia, não
se conseguiu lograr.
Infere-se que não havia função
promocional do Direito naquela épo-
ca, mas apareceram os ideais
socializantes, o determinado welfare
state, centralizados na Constituição do
México, de 1917. Todos sempre falam
na Constituição de “Weimar”, de 1919,
mas foi o México que implantou essa
concepção de desenvolvimento e so-
cialismo.
Em matéria de propriedade, a
Constituição de “Weimar” é muito im-
portante, principalmente quando nos
trouxe a expressão: a propriedade obri-
ga. O mundo ficou estupefato. Qual o
alcance, qual a valia dessa expressão?
Os doutrinadores começaram a procu-
rar essa discussão.
Na realidade, a Constituição
passou a desempenhar um papel pri-
mordial, mesmo na órbita do Direito
Privado, razão pela qual parece justifi-
car-se o ressurgimento desse chama-
do Direito Civil Constitucional. Essa é
a posição, hoje, da doutrina. Na Fran-
ça, por exemplo, esse fenômeno foi
reconhecido no âmbito de um debate
famoso, publicado na Revista de Direi-
to Constitucional, em 1991.
O fundador do Direito Civil é a
Constituição. O nosso Código já teria,
portanto, este grande pecado, pois o
Projeto é de 1975, e a nossa Constitui-
ção, de 1988. Claro está que ele tem
marcadas inconstitucionalidades, até
porque o nosso projetista não poderia
ter atributo adivinhatório. É certo que
esses pecados maiores puderam ser,
de certa forma, remendados com o ma-
gistral trabalho do Senador Josaphat
Marinho, que procurou compatibilizar
aquela série de dispositivos harmôni-
cos do Projeto de Código Civil com a
nova Constituição, promulgada em
1988. Todavia, isso tudo não é sufici-
ente. Cheguei a achar que no Direito
real, no Direito de Propriedade, seria
até adequado, far-se-ia uma certa adap-
tação, mas é preciso que se respeite o
princípio da dignidade da pessoa hu-
mana, muito falado atualmente.
Na III Conferência Habitat, um
dos nossos ministros plenipotenciários
do Itamarati – e um embaixador – em
uma discussão, arreceava-se de colo-
car a expressão “direito à moradia” na
Carta de Intenções daquela Conferên-
cia. Dizia ele que essa expressão po-
deria levar a população a cobrar esse
Série Cadernos do CEJ, 20
direito na Justiça. Durante os debates,
dizia o ministro: “Concluímos que o
direito à moradia é um direito de natu-
reza programática, ou seja, será obti-
do progressivamente e não pode ser
cobrado na Justiça”. Ledo engano: es-
sas não são normas programáticas ape-
nas, são direitos essenciais. Os direi-
tos do art. 6º da Constituição não são
menos importantes, menos sobrancei-
ros que os do art. 5º, porque eles se
completam.
Em um trabalho de minha au-
toria, demonstrei que, inserindo a ma-
téria no art. 6º, os supositores de que
haveria uma decisão de direitos huma-
nos se enganam. Alejandro Artúcio, por
exemplo, desenvolvendo o tema, mos-
tra a interdependência entre direitos hu-
manos. Eles devem ter a mesma
conotação que os direitos civis, políti-
cos, econômicos, sociais e culturais.
Portanto, o direito do art. 5º e o do art.
6º têm a mesma posição de
imperatividade na Constituição.
É incontroverso que essas re-
gras tenham aplicação imediata pela
imposição do art. 5º da Carta Magna,
porque não se pode evitar o direito à
moradia, já inscrito em tratados inter-
nacionais, é norma obrigatória. Os tra-
tados internacionalizados tornam-se lei
interna. Mesmo quando esses tratados
não são internacionalizados, se subs-
critos pelo Brasil, também tornam-se
uma norma coativa para o nosso siste-
ma.
A matéria que desenvolvi nes-
se trabalho mostra que nessa nova
conotação o direito à moradia é um
direito constitucional que atribui direi-
to aos cidadãos. Esse direito tem mui-
tas implicações e vem alterar essa vi-
são da civilística que não pode ficar
amesquinhada naqueles pequenos
avanços. Os nossos professores eram
tradicionalistas; o Prof. Miguel Reale,
com toda a sua cultura e inteligência,
ainda está em plena efervescência; o
Prof. Agostinho Alvim era um tradicio-
nalista; o Prof. Ebert Chamoun o era
ainda mais, um romanista. Esse é o
Direito Civil voltado ao passado, com
alguns avanços, mas que não compre-
ende os problemas da dignidade hu-
mana.
Por exemplo, citei essa falta de
avanço em um trabalho que realizei há
vinte anos, A Participação do Particu-
lar no Urbanismo. Nesse trabalho, mos-
trei que a solução do Projeto não era
satisfatória ao tratar das ocupações ir-
regulares, um problema constante.
Estamos vendo, hoje, nas cidades, as
ocupações irregulares, que são feitas
de uma hora para outra. Os sem-terra
ou os sem-teto, no caso dos urbanos,
estão totalmente organizados. Tivemos
em São Paulo, a invasão do antigo Hos-
pital Matarazzo, que foi feita, literalmen-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
te, por mil famílias, em meia hora. Es-
tava implantado o problema. Poderia
voltar ao passado, lembrando a nossa
judicatura inicial em Santos, quando o
Ministro Barros Monteiro ainda era jo-
vem, ou a invasão do Paicará no
Guarujá, onde o Tribunal de Justiça de
São Paulo se viu às voltas com uma
invasão de milhares de pessoas naquele
terreno.
Como resolver este problema?
Na estrutura civilística, o Direito Civil é
“padrasto” em relação a esses invaso-
res, que não têm em seu favor nada,
têm a contrariedade da lei e a imposi-
ção dos direitos dos proprietários. O
que eles têm em seu favor? Só a misé-
ria e o desespero, mas a Justiça já apli-
cou, ali, o princípio da dignidade do
homem, o princípio da função social
da propriedade; mandou que se man-
tivessem aqueles ocupantes, afastan-
do o princípio do superficies solo cedit,
atendendo a inúmeros intrusos. Porém,
expeli-los da área ocupada caracteriza-
ria uma situação de comoção social
resultante da necessidade de cumpri-
mento dos julgados proferidos. Cente-
nas e milhares de pessoas iam ficar ao
desabrigo, criando problemas de gra-
ves e profundas repercussões sociais.
Não tinha o Tribunal paulista àquela
época, ainda, um supedâneo constitu-
cional, como temos agora, mas procu-
rou levar a função social a uma digni-
dade maior, afastando o princípio do
superficies solo cedit. O Projeto está
limitado, não atende a essa finalidade
e, nesse ponto, parece ficar anacrôni-
co com um problema de tal magnitu-
de.
O Direito Civil tem de resolver
o problema da moradia e suas implica-
ções civis. A moradia é o grande pro-
blema. A propriedade é o grande direi-
to.
A propriedade tem de atender
à sua função social e isso está impres-
so na Constituição de 1934, com a sua
clareza, quando saiu a expressão con-
tida na Constituição alemã, de
“Weimar”, em uma página memorável,
ontológica, de que a propriedade obri-
ga, dá a notícia, o alcance e a dimen-
são do que vem a ser a função social
da propriedade, mostrando que a pro-
priedade importa na disposição da ri-
queza.
Fala-se muito hoje que o Direi-
to Civil perdeu essa dimensão econô-
mica, mas o Direito Real não; ele é ain-
da um Direito Econômico. O Direito
Real trata dos aspectos econômicos do
Direito e não perde isso. Nesses aspec-
tos econômicos, respeita-se a
titularidade do proprietário, mas se
enfoca hoje uma nova visão, que é
aquela da função social em que o pro-
prietário é o detentor social da rique-
za. Se ele detém a riqueza, que é a ter-
Série Cadernos do CEJ, 20
ra, a propriedade – hoje nem tanto,
mas quando ainda se tinha aquela di-
mensão fisiocrática de que a riqueza é
a terra –, ele é o detentor social da ri-
queza. Logo, se ele detém a riqueza,
só ele pode, e deve, fazê-la frutificar,
ou seja, dar-lhe uma função social. Se
o faz, merece a proteção do Direito e o
apoio do Estado. Se não o faz, por que
lutar por ele? Quando a propriedade
abandonada é invadida, o proprietário
vem pedir socorro ao Estado. Mas in-
teressa ao Estado uma propriedade
estiolada? Logo, a função social tem
de ser dimensionada.
O nosso projeto é tímido a esse
respeito. Temos visto que a jurispru-
dência avançou. Hoje estamos viven-
do uma situação paroxística desse con-
flito entre a segurança da coisa julgada
e o problema da justa indenização.
Estamos com um problema
muito difícil, porque isso resvala com
outro princípio, e os princípios têm de
ser harmônicos. Parece-me que o prin-
cípio da coisa julgada é o superior.
A nossa Constituição de cunho
progressista colocou, no art. 225, o
conceito de desenvolvimento susten-
tado, de meio ambiente que pertence
a todos nós como um direito disperso,
pertencente a toda cidadania. O Proje-
to fala timidamente, ao tratar, no Direi-
to de Vizinhança, da proteção ao sos-
sego, à segurança do vizinho e põe
outros aspectos, como a proteção da
mata, etc. Isso não é Direito de vizi-
nho, mas Direito da Comunidade. En-
tão, o Código também está totalmente
desatualizado neste ponto e precisaria
adequar esses direitos superiores à
comunidade para compatibilizá-los.
Hoje, em uma desapropriação,
não se há de considerar valores. Nós,
quando juízes em São Paulo, chega-
mos a reconhecer indenizações da co-
bertura vegetal, mas hoje teríamos de-
cidido de outro modo.
Em um trabalho admirável, a
Procuradoria de São Paulo está fazen-
do um trabalho de reestudo, de
reaviventação de tudo aquilo que se
fez em matéria de desapropriação, mas
ela não pode voltar ao passado. Ela não
pode recuperar a falha, os deslizes dos
seus antigos funcionários, as faltas as
perícias, até os crimes, vamos dizer
assim, que não foram apurados opor-
tuna e temporaneamente, porque a
coisa julgada tem um prazo para ser
reaviventada.
Temos todos os princípios
constitucionais que precisam ser
atualizados e aplicados e a nossa tími-
da Constituição vem trazer, nessa
ablação do direito de propriedade, es-
sas restrições que até são justas.
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
Muito haveria que falar a respei-
to desses temas, como, por exemplo,
o direito à moradia nos arrabaldes e
favelas, de que eu falava há vinte anos.
Hoje há um supedâneo constitucional
para ela, mostrando o anseio dessas
populações de terem a sua moradia.
O projeto trata de institutos tímidos
como o Direito de Superfície, mas não
se limita apenas a questões entre parti-
culares, muito ao contrário, ele mais
terá prestância no uso dos terrenos
públicos, porque é aí que se está fa-
zendo esse direito de ocupação. Histo-
ricamente, o Direito de Superfície,
como todos sabem, apareceu em
Roma com a ocupação do Monte
Aventino pela plebe, que era um ager
publicus. O direito de superfície é me-
lhor aproveitado nessas áreas inúteis
ou inexploradas do Estado, que pode
ceder ao particular.
Portanto, não é no Código Civil
que se vai resolver o problema da mo-
radia mediante o almejado instituto do
Direito de Superfície. A criação da pro-
priedade virtual – esta propriedade am-
bulante da qual posso retirar um valor
econômico e transferir para outro lu-
gar – é outro instituto que mereceria
ser colocado no projeto do Código Ci-
vil e não o vemos.
A locação social que, embora
não seja um verdadeiro direito real, está
implicada com o problema de mora-
dia. Na Alemanha, se o pobre só pode
pagar vinte marcos por sua casa
alugada, mas o imóvel vale cinqüenta,
o pretendente hipossuficiente paga vin-
te e o senhorio recebe cinqüenta, pois
o governo alemão supre os trinta da
diferença. É assim que se faz lá, não é
cortesia com o chapéu alheio, como
aqui no Brasil, onde congelam-se os
aluguéis e cortam-se os direitos do se-
nhorio. Lá, o Estado interfere.
São todos esses institutos que
não tiveram aqui uma adequada solu-
ção. É por isso que nós, que ainda es-
távamos em dúvida sobre a prestância
desse Projeto, reconhecendo que, em
matéria de direitos reais, ainda pode
haver uma transação, uma adaptação,
agora vemos que, com esses novos as-
sento constitucional e institutos que es-
tão surgindo, esses instrumentos não
serão suficientes para resolver a crise
econômica e social que se avizinha.
Apresentado-se o Código Civil, no dia
seguinte teremos a necessidade da sua
reforma.
Aliás, deixa-nos perplexo a ati-
tude do Governo que, ao mesmo tem-
po em que está ultimando a aprova-
ção do Projeto do Código Civil, opta
pela criação de uma comissão para fa-
zer uma consolidação das leis de famí-
lia. Qual é o propósito do Governo?
Na iminência da promulgação do novo
Código Civil, está tramitando, sob a
Série Cadernos do CEJ, 20
orientação do Governo Federal, essa
Comissão presidida pelo Professor Síl-
vio Rodrigues.
Ainda não estou totalmente
convencido, mas me parece que o ca-
minho será por essa fragmentação, e
esse duro e maravilhoso Projeto do
Código estará fadado ao
sucumbimento por ter sido suplanta-
do pela voracidade do tempo,
malgrado o esforço, a autoridade e o
impulso de dois poderosos mestres,
que são o Prof. Miguel Reale e o Minis-
tro Moreira Alves, cujas autoridades
podem ainda dobrar o nosso Congres-
so Nacional.
RUI GERALDO CAMARGO VIANA: Pro-
fessor da Universidade de São Paulo.
ATIVIDADE NEGOCIALNEWTON DE LUCCA
Não me parece que o Projeto do
Código Civil, pelo menos no
que toca à parte empresarial,
será um desastre ou, de outro lado,
uma salvação. Diria, de maneira bas-
tante sintética, que será praticamente
inócuo, que não trará grandes benefí-
cios nem causará maiores problemas.
Arrisco dizer que, se, por acaso, esse
Projeto fosse aprovado amanhã e pu-
blicado no Diário Oficial, poucas seri-
am as providências que se teria a to-
mar.
A matéria de títulos de crédito
é regulada por convenção internacio-
nal e permanecerá fora do Código; a
parte de títulos de crédito é uma repro-
dução do codice civile italiano de 1942,
conforme repetidamente foi dito pelo
seu saudoso autor, meu Professor, o
eminente Mauro Brandão Lopes. Dizia
ele que essa não era uma questão jurí-
dica, mas, sim, uma questão de políti-
ca legislativa – precisava escolher en-
tre deixar os títulos de crédito em inú-
meros casos ou abrir a porta para a
livre criação de títulos atípicos. Disse
também que seria para regular títulos
atípicos, não para regular letra de câm-
bio, nota promissória, cheque ou du-
plicata; seria para títulos que porventura
surgissem. Um dado que serve como
uma lição histórica é que os títulos de
crédito não foram inventados pelos ju-
ristas, mas pelos comerciantes.
Não vai mudar em nada o regi-
me jurídico do cheque, da nota pro-
missória, da letra de câmbio e, muito
menos, da nossa duplicata. A matéria
da propriedade industrial, do privilégio
do direito da marca está fora: parte re-
gulada por convenção internacional,
parte, pelo nosso Código da Proprie-
dade Industrial. Existem dois artigos no
Projeto sobre a sociedade anônima:
Art. 1.088 Na sociedade anôni-
ma ou companhia, o capital se divide
em ações, obrigando-se cada sócio ou
acionistas somente pelo valor nominal
das que subscrever ou adquirir.
Primeira lição que se aprende
nos bancos acadêmicos é que o capi-
tal, em uma sociedade por ações, é
dividido em ações.
Um outro artigo:
A sociedade anônima rege-se
por lei especial, aplicando-se, nos ca-
sos omissos, as disposições desse Có-
digo.
Em matéria de sociedade anô-
nima, é o que existe. Pergunto-me se
isso resolve, ou seja, um artigo para
dizer o óbvio, o que todos estamos can-
sados de saber e que já está na pró-
pria Lei das Sociedades por Ações; e
um segundo artigo para dizer que se
rege por lei especial e que, na eventu-
al omissão, o Código poderia servir de
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
norma supletiva.
Posso asseverar a todos que
não existe norma no Código, nesse Pro-
jeto, que pudesse, eventualmente, ser-
vir de norma supletiva da Lei das Soci-
edades por Ações. Em verdade, a nos-
sa Lei n. 6.404, que teve um remendo
recente com a Lei n. 9.457 – feito prin-
cipalmente para retirar o direito de re-
cesso dos minoritários nos casos de
fusão, incorporação, dado o plano do
Governo de privatizar empresas –, é
uma lei muito mais avançada, tecnica-
mente mais aprimorada que o nosso
Projeto de Código Civil.
Sob o ponto de vista doutriná-
rio, seria uma estultice negar extremo
valor a esse esforço ciclópico que foi
feito pelo Prof. Miguel Reale, pela co-
missão de redação, pelo Senador
Josaphat Marinho – o projeto realmen-
te melhorou em muitos aspectos no
Senado – e pelo Ministro Moreira Alves.
Não tenho a menor dúvida de que esse
esforço é meritório. Mas, no âmbito do
Direito Comercial – não discuto o sig-
nificado dessa codificação nos âmbi-
tos do Direito Civil, do Direito de Famí-
lia, das sucessões e assim por diante –
, tenho ouvido muito mais críticas do
que elogios.
Estamos diante da nova reali-
dade do comércio internacional e do
comércio via internet, o que, evidente-
mente, provoca uma série de questões
jurídicas.
No Brasil, temos somente pro-
jetos que estão tramitando no nosso
Parlamento. A Comissão de Informática
da OAB acabou de entregar nas mãos
do Deputado Michel Temer um projeto
regulando toda a problemática da pro-
teção ao consumidor na internet; o pro-
blema da escrita criptografada, do va-
lor probante dos documentos emitidos
por computador e assim por diante. É
claro que a história está assumindo um
dever tão galopante e descrito de for-
ma impressionante por Oswald
Spengler na sua famosa obra O Ho-
mem e a Técnica, que não consegui-
mos mais sequer determinar que valo-
res históricos são duradouros.
Insisto nesse ponto porque
mais uma vez, o Prof. Miguel Reale fez
uma citação primorosa de Hegel, a qual
transcrevi:
No fundo, quem pôs a questão
nos seus devidos termos foi Hegel, ao
dizer que nada é mais conforme a dig-
nidade de um povo do que a obra
codificadora, desde que realizada com
senso histórico concreto, graças ao
qual se espelha, objetivamente, as for-
mas de querer da nacionalidade e se
preservam as fontes de sua continui-
dade cultural. Toda época é época de
codificação, quando se tem consciên-
Série Cadernos do CEJ, 20
cia de seus valores históricos.
Pergunto: Quais serão os valo-
res históricos que o Prof. Miguel Reale
estaria convencido de que devemos
salvaguardar? No momento atual, em
que tudo se transforma com tal veloci-
dade – segundo muitos filósofos –
como, por exemplo, o filósofo francês
Georges Gursdof e Norberto Bobbio –,
a grande perda da História, atualmen-
te, é a incapacidade crítica de julgar
valores que possam permanecer. Vejo
frases como esta do filósofo Gursdof:
Houve épocas em que o pre-
sente ocupava seu tempo para avan-
çar para o futuro, apoiando-se no pas-
sado. Na fidelidade as tradições
constitutivas da cultura e da vida so-
cial. A história se desenvolvia num rit-
mo lento de uma inteligibilidade
imanente do dever. Essa continuidade
não existe mais. A aceleração do de-
senvolvimento técnico, cultural e so-
cial é um sinal dos tempos em que vi-
vemos. As coisas mudam tão depres-
sa que nem mesmo temos tempo de
tomar consciência da passagem, das
transformações verificadas. Essa
descontinuidade explica o conflito atu-
al entre as gerações. Cada classe etária
carrega consigo certezas e pressupos-
tos que rompem com os da classe
etária anterior. As opiniões não têm
mesmo tempo de amadurecer. Elas de-
saparecem como apareceram para dar
lugar a outras sem qualquer relaciona-
mento com as precedentes. Como nem
um nem outro tem o prazo para se fun-
dar como verdade, a veemência da afir-
mação se substitui ao rigor da demons-
tração.
Poderia citar Merleau-Ponty;
Octávio Paz, Prêmio Nobel da Literatu-
ra; Norberto Bobbio, que, apesar dos
seus mais de noventa anos, ainda nos
brinda com obras de uma lucidez im-
pecável. Há pouco, disse na sua auto-
biografia intelectual:
Cheguei sem perceber e sem,
ao menos por um instante, prever a
idade da velhice que outrora era cha-
mada idade da sabedoria. Antigamen-
te, quando o escoar do tempo era me-
nos acelerado, as transformações his-
tóricas eram mais lentas. Hoje não são
mais. Nas civilizações tradicionais, o
velho sempre representou o guardião
da tradição, o depositário do saber da
comunidade. Anatole France dizia que
os velhos amam demais as próprias
idéias e, por isso, são um obstáculo
ao progresso. Para garantir o progres-
so, os povos primitivos os comiam ou,
então, os colocavam nas academias,
o que é forma de embalsamá-los.
Recordo-me de um momento
emocionante, quando o Prof. Miguel
Reale dizia: Para mim, com a minha
idade, os segundos passam de manei-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
ra diferente, às vezes são milênios. É
incrível como há uma afinidade na
maneira de pensar do grande Norberto
Bobbio e do nosso Prof. Miguel Reale.
São tantas as citações que fica
a indagação expectante: quais são os
valores atuais – nesse momento em que
todos identificam uma profunda deso-
rientação do homem moderno, uma
crise axiológica em quase todos os va-
lores para os quais sempre reverencia-
mos – que, efetivamente, o Projeto do
Código Civil entende que deve preser-
var? A sociedade em comandita sim-
ples? Esses dois artigos da sociedade
por ações? Por exemplo, esse que é
tão jovial quanto pitoresco, o art. 816:
São equiparados ao jogo, sub-
metendo-se como tais ao disposto nos
artigos antecedentes, os contratos, sub-
títulos de bolsa, mercadorias ou valo-
res em que se estipule a liquidação,
exclusivamente pela diferença entre o
preço ajustado e a cotação que eles
tiverem no vencimento no ajuste.
Essa é uma reprodução de um
artigo do nosso Código Civil, em rela-
ção ao qual já o grande Clóvis
Beviláqua deblaterava que essa ques-
tão precisava ser deixada para a legis-
lação comercial, por ser muito mais
dinâmica.
Imaginem hoje dizermos que se
equipara ao jogo um contrato de natu-
reza diferencial, numa época em que
temos uma bolsa de valores e uma
bolsa de mercadorias de futuros, em
que temos contratos de warrant para
garantir posições de compradores e de
vendedores, das flutuações cambiais
e das flutuações de preço. É esse o
valor que queremos preservar?
Infelizmente – é doloroso dizer,
mas é verdade –, o Projeto envelheceu
naturalmente, como tudo, nessa vida.
Foram mais de 25 anos dormitando
nas gavetas do Congresso Nacional,
que suponho sejam de peroba ou de
alguma outra madeira bem dura.
O querido e saudoso Prof.
Sylvio Marcondes escreveu, há 25
anos, a parte que se chamava ativida-
de negocial:
Isso, praticamente, é só para
dar algumas diretrizes, e servirá para
pouco tempo, porque o Código Comer-
cial, a legislação comercial, como di-
zia o grande jurista italiano Mossa, pal-
pita viva, fora dos códigos, na realida-
de do dia-a-dia empresarial.
A matéria foi envelhecendo na-
turalmente, por mais geniais que fos-
sem os juristas. Coloco o verbo no pas-
sado tristemente porque a maioria
morreu. Sobejaram os Prof. Miguel
Reale e Moreira Alves, todos grandes
juristas, avançadíssimos para a sua
Série Cadernos do CEJ, 20
época, mas os fatos se encarregaram
de deixar para trás.
Por exemplo – e referindo-me
sobre o tema atividade empresarial –,
o que é o Direito Comercial e qual o
seu âmago? É óbvio que não é mais a
teoria dos atos do comércio que está
no Código Comercial de 1850. Não re-
solvemos os problemas atuais com
este Código. Solucionamos tudo com
a legislação extravagante, que vai con-
tinuar fora do Projeto. A matéria
falimentar está totalmente fora. Os con-
tratos modernos, problemas com fran-
quia, leasing, faturização, nada será re-
solvido pelo Projeto. Pergunto-me:
onde estaria a unificação que se pre-
tendia fazer? Tinha razão os Prof. Sylvio
Marcondes e Mossa, quando diziam
que o Direito Comercial palpita vivo
fora dos Códigos, na realidade do dia-
a-dia.
O Prof. Miguel Reale dizia: Esta-
remos adotando a teoria da empresa,
um dos primeiros Códigos a colocar a
teoria da empresa.
Data maxima venia, não é o pri-
meiro. Foi do Código Civil italiano de
1942 que copiamos quase tudo. Disse
com todas as letras na 2.082, se não
me falha a memória: atividade empre-
sária é aquela atividade econômica or-
ganizada para circulação de bens ou
de serviços. Reproduzimos isso.
A teoria da empresa depende-
ria desse Projeto para ser aplicada? Co-
meçaram a dizer – o Prof. Rubens
Requião, saudoso eminente
comercialista do Paraná; depois em São
Paulo o Prof. Fábio Comparato; os sau-
dosos Prof. Oscar Barreto Filho e Joa-
quim Filomeno Costa – que a doutrina
se encarregou de mostrar que a teoria
dos atos de comércio já estava supe-
rada. E a jurisprudência, muito sabia-
mente – ou por conhecimento de cau-
sa, ou por uma espécie de intuição que
os juízes têm – cuidou de introduzir a
teoria da empresa.
Por exemplo, em matéria de re-
novação compulsória da locação, apli-
cou-se totalmente a teoria da empre-
sa. Concedia-se a renovação compul-
sória para alguém que não se caracte-
rizava como comerciante. Não era apli-
cada a teoria dos atos de comércio. O
juiz não pedia o contrato social para
saber se a pessoa possuía ou não di-
reito à renovação compulsória. A juris-
prudência queria saber se existia uma
atividade econômica organizada para
produção ou circulação de bens ou de
serviço; concedeu para escolas, para
hospitais, etc. Em matéria falimentar foi
a mesma coisa. Não estava mais em
causa saber se aquela empresa havia
ou não praticado atos de comércio
para, por exemplo, ter direito ao bene-
fício legal da concordata. Esse benefí-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
cio foi concedido a pecuaristas em Mi-
nas Gerais, porque se reconheceu que
o que importava era a atividade eco-
nômica organizada e não a eventual
prática de atos comerciais.
A parte da atividade negocial foi
muito bem escrita pelo saudoso Prof.
Sylvio Marcondes. Se vivo fosse, per-
guntaria a ele se deixaria tudo como
está. Intimamente, tenho a certeza de
que, de tudo o que conheci a seu res-
peito, pela visão dinâmica que possuía
do fenômeno societário, do fenômeno
empresarial – se visse o mundo
cibernético de hoje, se visse que o sé-
culo XX foi chamado por um grande
jurista francês, Michael Vasseur, de le
siècle de papier (o século do papel), e
vamos passar agora, no século XXI,
para o século dos bytes, ou seja, a era
da informação –, não tenho a menor
dúvida de que o próprio professor se-
ria o primeiro a dizer que pouco ou
nada essa parte iria acrescentar ao Di-
reito Comercial brasileiro.
Resumindo o meu pensamen-
to em relação a toda essa parte: não
teremos, salvo um ou outro ponto,
maiores problemas. Digo isso porque
há artigos que realmente trarão alguns
problemas se o projeto for aprovado.
Em um ponto estou
irrestritamente de acordo com o Prof.
Miguel Reale: creio que não cabe mais
se discutir matéria que saiu aprovada
da Câmara dos Deputados e ementada
no Senado Federal, senão viraria tra-
gédia grega, que nunca finalizaria. O
Prof. Miguel Reale defende, com ardor,
a idéia de que não é possível:
A quase totalidade das críticas
feitas ao Projeto de Código Civil, já
aprovado pelo Senado Federal e devol-
vido à Câmara dos Deputados, resulta
de duas ignorâncias indesculpáveis: a
primeira, mais grave delas, é a falta de
conhecimento do texto; a segunda, é
quanto ao poder/dever que têm os de-
putados federais de se manifestar, tão-
somente, sobre as alterações
introduzidas pelos senadores, não lhes
sendo dado fazer novos aditamentos.
Efetivamente, a única forma de
isso não se tornar lei no País é se o
Presidente da República vetar ou se o
Poder Executivo retirar do Congresso
Nacional, porque foi iniciativa dele en-
caminhar para lá. A Câmara dos Depu-
tados só poderia pronunciar-se sobre
as emendas feitas no Senado Federal.
É o que está faltando para que esse
tópico venha, efetivamente, a se tor-
nar lei no Brasil.
Como disse, a maior parte é
inócua, mas alguns artigos irão trazer
problemas, como, por exemplo, a no-
ção do que é sociedade controlada:
Série Cadernos do CEJ, 20
Art. 1.098 É controlada a soci-
edade cujo capital outra sociedade
possua mais de cinqüenta por cento
do capital com direito a voto.
Se ficarmos com esse conceito
de controle, estaremos perdidos. A re-
alidade empresarial de hoje está muito
adiante do que está na própria Lei n.
6.404. A nossa Lei das Sociedades por
Ações é considerada pelos
comercialistas uma das mais avança-
das do mundo em matéria de socieda-
de anônima, talvez perca somente para
a alemã. Aquela é um documento pri-
moroso, que previu, inclusive, a figura
do controle externo, o controle não só
por meio do voto. Vamos retroceder,
considerando controlada quem tem
50%, perdoem-me, mas chega a ser
algo impensável.
Os anos passam celeremente
sobre nós. Como dizia um poeta, meu
amigo, que se foi há pouco tempo, José
Paulo Paes: O tempo sabe fazer as suas
contas – e soube fazer neste caso. É
triste dizer, mas o Projeto já nasceu
velho.
Teria muitos exemplos para dar
sobre o título eletrônico. O Senador
Josaphat Marinho, em nosso último en-
contro em Brasília, disse que estáva-
mos fazendo uma revolução, pois pre-
víamos um título de crédito por via ele-
trônica. Fui procurá-lo após a conferên-
cia para dizer-lhe que, há mais de vin-
te anos, fui para a França a fim de es-
tudar o título emitido por computador.
Escrevi, inclusive, um livro sobre esse
assunto. Convoquei os bancos, e in-
troduzimos no Brasil a chamada “du-
plicata escritural”, que é a cobrança
eletrônica. O Projeto não resolverá
nada. Precisamos fazer o que se fez na
França, onde existe uma lei dando for-
ça executiva para o borderô que acom-
panha as fitas magnéticas. Aqui não
temos sequer a possibilidade de carac-
terizar a apresentação legal do título
para pagamento. Se qualquer um re-
ceber o boleto de cobrança e amanhã
quiser criar dificuldade em relação ao
credor, poderá fazê-lo, porque os ban-
cos não têm sequer o AR guardado de
que mandaram efetivamente o boleto
para cobrança, quer dizer, não se ca-
racteriza juridicamente a apresentação
legal a pagamento da duplicata.
O Ministro Moreira Alves disse-
me que essa questão seria resolvida
por meio de lei especial. É a conclu-
são a que chego: resolveremos os pro-
blemas pendentes com um punhado
de leis especiais, porque, com este
novo Projeto do Código Civil não esta-
remos solucionando nada, pelo menos
na parte relativa ao Direito Comercial.
NEWTON DE LUCCA: Juiz do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região.
AUTONOMIA PRIVADAFRANCISCO DOS SANTOS AMARAL NETO
A inserção da figura do negócio
jurídico no Projeto do Código
Civil como categoria geral dos
atos jurídicos reintroduz, no Direito Ci-
vil brasileiro, com secular atraso, o de-
bate sobre essa figura jurídica e o res-
pectivo princípio da autonomia priva-
da. Digo “secular atraso” porque já Cló-
vis Beviláqua, considerando os prós e
os contras dessa categoria, achou con-
veniente não inseri-la no Projeto do Có-
digo Civil brasileiro no final do século
passado, isto é, do século XIX. Andou
bem, assim fazendo, por ser o negó-
cio jurídico que está no nosso Projeto
um conceito elaborado pelos
pandectistas e totalmente alheio à nos-
sa tradição jurídica. Sempre defendo
o ponto de vista de que o Direito é um
produto histórico e cultural e que o
nosso Direito tem de ser o reflexo do
nosso pensamento e da nossa cultura.
O negócio jurídico é uma figu-
ra extremamente abstrata, incapaz de
apreender de modo unitário atos de
natureza diversa, como os atos de Di-
reito de Família, os contratos, os testa-
mentos etc. Representa também uma
tendência para um excessivo
conceitualismo jurídico que não con-
diz com a realidade prática do Direito
contemporâneo, marcado pelos novos
conflitos de interesses que é chamado
a resolver. Também no plano ideológi-
co tem-se contestado essa figura, con-
siderada um símbolo do individualis-
mo exacerbado. Contrasta, enfim, com
a realidade concreta do contrato, a sua
mais importante espécie, em nada con-
tribuindo para a realização do Direito.
Isso porque, como sabemos, o Direito
é uma ciência prática, que se destina a
resolver problemas, conflitos de inte-
resses. Estamos, inclusive, substituin-
do gradativamente o chamado “pensa-
mento sistemático do século XIX” por
um pensamento problemático, dentro
do qual, diariamente, nós, operadores,
juízes e advogados, somos levados a
enfrentar novos problemas e a criar
novas respostas, apesar dos modelos
que temos à disposição.
A inclusão dessa figura “negó-
cio jurídico” no nosso Projeto é, toda-
via, coerente com o modelo jurídico
formalista abstrato e dogmático do sé-
culo XIX, principalmente de origem ale-
mã.
Para falar de negócio jurídico,
que é uma categoria extremamente
abstrata, é necessário uma brevíssima
referência à autonomia privada, que é
o poder que os particulares têm de re-
gular, pelo exercício da própria vonta-
de, as relações de que participem, es-
tabelecendo o conteúdo e a respecti-
va disciplina jurídica. Sinônimo da au-
tonomia da vontade para grande parte
da doutrina contemporânea, com ela,
porém, não se confunde. A expressão
“autonomia da vontade”, penso, tem
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
uma conotação subjetiva, psicológica,
enquanto que a autonomia privada
marca o poder da vontade no Direito
de modo objetivo, concreto e real.
Devo dizer que essa teoria da
autonomia privada só se desenvolveu,
e muito, na ciência jurídica alemã e na
italiana. Na ciência jurídica ibérica, par-
ticularmente na portuguesa, e muito
menos no Brasil, não temos obra so-
bre autonomia privada, até porque não
temos uma tradição político-jurídica
que permitisse ao indivíduo exercer
uma atividade que pudesse ser consi-
derada jurígena, isto é, capaz de ter
eficácia jurídica.
Sob o ponto de vista
institucional e estrutural dominante na
Teoria do Direito, a autonomia privada
constitui-se um dos princípios funda-
mentais do sistema de Direito Privado
no reconhecimento da existência de
um âmbito particular de atuação com
eficácia normativa. Trata-se da proje-
ção, no Direito, do personalismo éti-
co, uma concepção axiológica da pes-
soa como centro e destinatário da or-
dem jurídica privada, sem o que a pes-
soa humana, embora formalmente
revestida da titularidade jurídica, nada
mais seria que mero instrumento a ser-
viço da sociedade.
Sob o ponto de vista técnico,
que revela a importância prática do
princípio, a autonomia privada é o po-
der jurídico particular de criar, modifi-
car ou extinguir situações jurídicas pró-
prias ou de outrem. Funciona, como
certas opiniões, como um princípio
informador do sistema jurídico, isto é,
como um princípio aberto no sentido
de que não se apresenta como norma
de Direito, mas como uma idéia dire-
triz ou justificadora da configuração e
funcionamento do próprio sistema ju-
rídico. Funciona ainda como critério
interpretativo, já que aponta o cami-
nho a seguir na pesquisa do sentido e
alcance da norma jurídica, e de que
são exemplos, no Direito brasileiro, os
arts. 85, 1.090, 1.483 e 1.666 do Có-
digo Civil.
O princípio da autonomia pri-
vada faz presumir que, em matéria de
Direito Patrimonial, que é o seu campo
por excelência de aplicação, as normas
jurídicas são de natureza dispositiva ou
supletiva. No caso de serem cogentes,
a sua interpretação é restritiva, como
se vê, por exemplo, com as normas
do art. 1.133 do Código Civil. Tal po-
der não é, porém, originário e ilimita-
do; deriva do ordenamento jurídico que
o reconhece e o exerce nos limites que
fixa, os quais são crescentes quando
da passagem do Estado de Direito para
o estado intervencionista ou
assistencial. Superado esse estado
assistencial pela própria falência que
hoje vemos no Estado, renova-se a
Série Cadernos do CEJ, 20
importância desse poder, máxime
quando aplicado nas relações novas
da globalização, nos tratados e conven-
ções internacionais, nos contratos ad-
ministrativos, nos contratos econômi-
cos, no Direito da Concorrência etc.
Sua esfera de aplicação é basicamen-
te o Direito Patrimonial; não se aplica,
assim, ou aplica-se de modo
restritíssimo, em matéria de Estado e
capacidade das pessoas e família.
Sempre digo que o casamento
não é negócio jurídico. Pode ser um
bom negócio, mas não negócio jurídi-
co, porque este é expressão da auto-
nomia privada, e no Direito de Família
não temos autonomia privada. Que li-
berdade temos para agir diversamente
do que está no Código? A única vez
que dizemos sim é quando estamos na
frente do padre e ele pergunta: “É da
sua livre e espontânea vontade casar?”
Bom, eles já estão lá. O que vão dizer?
“Sim”. E casam. Fora disso, não temos
condições de modificar nada; não po-
demos modificar o regime de bens;
não podemos modificar, embora algu-
mas pessoas tentem, os efeitos do ca-
samento, que estão no art. 231, que
diz que são efeitos recíprocos a fideli-
dade, a mútua assistência, a coabita-
ção, o sustento, a guarda e a educa-
ção da prole. Mesmo que alguns côn-
juges queiram mudar essa disposição,
e muitos fazem força para mudar, não
há condição, porque isso é cogente;
não há autonomia privada no campo
do Direito de Família.
Eventualmente se diz que o ca-
samento é um negócio jurídico. A meu
ver, não se adota a posição historica-
mente correta que é a de situar o ne-
gócio jurídico exclusivamente no cam-
po patrimonial. O campo de realização
do negócio jurídico é o Direito das Obri-
gações por excelência, em que o con-
trato é a lei, nas suas diversas espéci-
es de liberdade contratual, promessas
de contratar, cláusulas gerais e garan-
tias.
No Direito Sucessório, realiza-
se no testamento o negócio jurídico,
em que a pessoa dispõe dos seus bens
para depois da morte. Os limites da
autonomia privada são a ordem públi-
ca e os bons costumes, entendendo-
se ordem pública como o conjunto de
normas jurídicas que regulam e prote-
gem os interesses fundamentais da so-
ciedade e do Estado e aquelas que, no
Direito Privado, estabelecem as bases
jurídicas fundamentais da ordem eco-
nômica, e dos bons costumes, como
o conjunto de regras morais que for-
mam a mentalidade de um povo e se
expressam em princípios como os da
lealdade contratual, da perempção de
lenocínio, dos contratos matrimoniais,
do jogo etc.
A autonomia privada distingue-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
se da autonomia pública pelo fato de
ser esta o poder atribuído ao Estado,
ou a seus órgãos, de criar direito, nos
limites da sua competência, para a pro-
teção dos interesses fundamentais da
sociedade. Seu objetivo é de natureza
pública; o seu poder é originário e dis-
cricionário. Já na autonomia privada,
os interesses são particulares e seu
exercício é a manifestação de liberda-
de, derivado e reconhecido pela ordem
estatal; seu instrumento é o negócio
jurídico.
O que preocupa é que nós, no
Brasil, continuamos cultivando a ten-
dência à imitação. O Direito, particu-
larmente o Direito Civil, possui quase
trinta séculos de formação histórica e
jurisprudencial, com vários extratos, e
teve, na era moderna, depois do Esta-
do de Direito, uma significativa cons-
trução científica por parte da
pandectística alemã. Vamos copiar mo-
delos estranhos sem que tenhamos
tido as condições culturais e históricas
para esse modelo? Se o negócio jurídi-
co é a expressão desse princípio da
autonomia privada, será que no Brasil
a tivemos e agora podemos estabele-
cer uma figura unitária, geral e abstra-
ta como o negócio jurídico? Na pró-
pria Alemanha começaram a criar uma
outra categoria dos atos jurídicos que
não tivessem as mesmas característi-
cas do negócio jurídico. Por quê? Por-
que eles, que eram os pais da criança,
verificaram que o negócio jurídico não
poderia ter a pretensão de generalida-
de que nós, no Brasil, estamos estabe-
lecendo.
O que me preocupa é essa nos-
sa falta de consciência histórica e cul-
tural que caracteriza quem faz um Pro-
jeto do Código Civil totalmente divorci-
ado da nossa realidade. Nunca disse
que o Projeto envelheceu no prazo de
25 anos. Diria: “Discordo, esse Projeto
já nasceu velho, porque, em 1975, pre-
parou-se um projeto para enfrentar uma
realidade completamente diferente da-
quela que o projeto pretendia realizar.
Naquele projeto, tiradas as pequenas
modificações, com alguns retrocessos,
independente do aspecto material,
como, por exemplo, a reintrodução da
lesão nos contratos, Clóvis Beviláqua
já hesitava em colocar essa figura, e
depois a retirou, porque havia profun-
da controvérsia”.
Se em 1975 vamos fazer o mes-
mo modelo de 1890 ou 1895, como é
que podemos ter a pretensão, nós, ju-
ristas, de realizar justiça em uma soci-
edade conturbada como a nossa, res-
pondendo a novos desafios com mo-
delos antigos?
Ainda uma referência à autono-
mia privada: Quais são as conseqüên-
cias jurídicas do princípio da autono-
mia privada?
Conseqüências imediatas do re-
Série Cadernos do CEJ, 20
conhecimento da autonomia privada
são, em matéria constitucional, a ga-
rantia da liberdade de iniciativa econô-
mica; no Direito Civil, que é seu cam-
po de excelência, os princípios
contratuais da liberdade contratual, da
força obrigatória dos contratos, do efei-
to relativo dos contratos, do
consensualismo e, no campo
sucessório, o da liberdade de testar e
de estabelecer o conteúdo do testa-
mento.
Para aqueles que aceitam a von-
tade como poder jurídico, o Prof.
Miguel Reale inclui a vontade negocial,
a vontade particular, naquela pirâmide
das fontes do Direito, e o que me pare-
ce importante é a introdução do negó-
cio jurídico, particularmente referido à
temática da autonomia privada, que se
refletirá na questão das fontes do Di-
reito brasileiro. Para os que aceitam a
vontade como poder jurídico, a con-
cepção normativa do negócio jurídico
é a consideração do negócio como fon-
te de normas jurídicas e passa a ser
matéria que se inclui no âmbito da filo-
sofia da Teoria Geral do Direito.
A liberdade de iniciativa econô-
mica: Vejam que a introdução dessa
figura nova – para nós, no negócio ju-
rídico, no Projeto – implica estabelecer
um eixo com a Constituição, no que
diz respeito à liberdade e à iniciativa
econômica, e também um ponto prin-
cipal de subordinação com a figura
concreta – o contrato, que é a princi-
pal espécie do negócio jurídico.
Então, teremos uma linha ou
instituto que vem da Constituição, com
a permissão da liberdade de iniciativa
econômica, depois passando pela figu-
ra abstrata do negócio jurídico e se
concretizando no contrato.
A liberdade de iniciativa econô-
mica é a expressão constitucional da
autonomia privada, como princípio
básico da ordem econômica e social.
São conceitos correlatos, porém não-
coincidentes, havendo entre eles uma
relação instrumental, à medida que
primeiro se realiza por meio do segun-
do e este, por meio do negócio jurídi-
co.
Quais são as críticas que se fa-
zem à autonomia privada? Reporto-me
aos nossos autores estrangeiros, prin-
cipalmente alemães e italianos, que
mais trataram dessa matéria. No Direi-
to brasileiro, que eu saiba, tirando, tal-
vez, o livro de José Abreu sobre Negó-
cios Jurídicos, não há estudos profun-
dos a respeito de autonomia privada.
Em um livro de minha autoria, que já
está na 3ª edição – Editora Renovar –
trato da autonomia privada. Pergunto-
me como os autores brasileiros que
conhecem o assunto inserirão uma
categoria, que é a expressão da auto-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
nomia privada, no Projeto, sem que
haja um amplo e pleno debate e um
conhecimento maior do que seja a cha-
mada “autonomia privada”?
Quais são as críticas que se
podem fazer à autonomia privada? Sob
o ponto de vista filosófico, alega-se que
é a expressão do mais puro individua-
lismo, e que a esse individualismo se
contrapõem tendências sociais da Ida-
de Contemporânea. O homem é um
ser social que vive, necessariamente,
em grupo, o que lhe impõe inevitáveis
restrições e condicionamentos na sua
capacidade de agir. Também, sob o
ponto de vista moral, demonstra-se que
os princípios da liberdade e da igual-
dade não se realizam harmonicamente.
A igualdade perante a lei é meramente
formal; no campo material, as desigual-
dades são profundas.
O exercício da liberdade
contratual, por exemplo, pode levar os
segmentos sociais mais carentes de
recursos e, por isso mesmo, desprovi-
dos do poder de confronto ou negocia-
ção, a acentuados desníveis econômi-
cos, devendo o Estado intervir para
equilibrar o poder das partes contra-
tantes, por meio de normas imperati-
vas. O legislador pode limitar, assim, a
autonomia privada, para o fim de pro-
teger os pontos mais fracos da relação
jurídica patrimonial – é o que se verifi-
ca nos contratos de consumidor, loca-
ção, empréstimo, seguros, operações
financeiras típicas.
Sob o ponto de vista econômi-
co, pode-se justificar a intervenção do
Estado na organização e disciplina dos
setores básicos da economia, alegan-
do-se a inconveniência, a impossibili-
dade até de se deixar as forças do mer-
cado na condução da economia naci-
onal, principalmente, nos países como
o Brasil, em vias de desenvolvimento,
onde são mais flagrantes as
disparidades econômicas e sociais.
Finalmente – sob o ponto de
vista ideológico –, reconhece-se que o
princípio da autonomia privada encon-
traria a sua razão de ser no mais puro
liberalismo econômico, na época em
que o Estado tinha função mais políti-
ca do que econômica ou social. Era o
Estado de Direito, organizado juridica-
mente para garantir o respeito aos di-
reitos individuais, que encontravam,
nesse princípio, o instrumento da sua
plena realização. Com a revolução in-
dustrial e tecnológica e os problemas
sociais dela decorrentes – com duas
guerras mundiais de permeio –, surgiu
o Estado social intervencionista para
orientar a vida econômica, protegen-
do os mais desfavorecidos e promo-
vendo iguais oportunidades de acesso
aos bens e vantagens da sociedade
contemporânea.
No campo do Direito Civil, ca-
Série Cadernos do CEJ, 20
minhou-se pretensamente para a sua
socialização, com primados interesses
sociais sobre os individuais e, conse-
qüentemente, a redução do âmbito de
atuação soberana da pessoa no cam-
po de Direito.
O fenômeno da globalização,
com a superação do Estado pós-social
inverteu, porém, essa tendência, am-
pliando-se o campo de atuação do prin-
cípio da autonomia, principalmente nas
relações econômicas internacionais.
Em última análise, a questão da
autonomia privada repõe aquele pro-
blema dos limites entre Estado e socie-
dade civil, entre público e privado –
chamo a atenção para um tema que
não tem sido bem estudado no Brasil,
que diz respeito aos efeitos do Estado
moderno, do Estado de Direito, do Es-
tado burguês, que nasceu da Revolu-
ção Francesa, sobre o Direito Civil. E é
interessante como algumas questões
atuais refletem essa problemática. Em
primeiro lugar, o Estado de Direito, o
Estado moderno, o Estado burguês da
Revolução Francesa criou o chamado
primado da lei: todos cultivamos o
fetichismo da lei; em segundo lugar,
separou nitidamente os Poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário, ca-
bendo ao Legislativo a criação do Di-
reito, ao Poder Judiciário, a sua aplica-
ção, e ao Poder Executivo, a execução
das funções administrativas e o respei-
to aos direitos individuais. Há ainda
uma contribuição do Estado de Direi-
to: a nítida separação entre Estado e
sociedade civil, entre público e priva-
do, a crença na generalidade e na abs-
tração das normas jurídicas, a criação
da figura abstrata do sujeito de Direito;
agora, pergunto: isso, criado há duzen-
tos anos, ainda permanece? Hoje, já
não se fala mais que o Poder Legislativo
cria o Direito e o magistrado o aplica.
O magistrado cria a norma jurídica
para o caso que lhe é posto, evidente-
mente sob a orientação dos critérios
estabelecidos na lei. O próprio Poder
Legislativo, que antigamente só elabo-
rava a lei, hoje, também, cria o seu pró-
prio Direito. O Poder Executivo, que
apenas tinha a função executiva, hoje,
cria Direito: já chegam a quase duas
mil as medidas provisórias editadas.
Com relação à questão da abs-
tração e generalização da norma jurí-
dica, que aprendemos nos manuais,
nas faculdades, observamos, hoje, a
criação de normas jurídicas concretas
e individuais. A chamada “figura abs-
trata do sujeito de Direito” está sendo
substituída por novos grupos que par-
ticipam desse pluralismo jurídico. Que-
ro dizer com isso que, no Brasil, ainda
estamos trabalhando com modelos que
vêm do Estado de Direito de duzentos
anos atrás, e não temos condições de
enfrentar uma nova realidade, novos
desafios, a não ser com modelos do
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
século passado. Será que a nova soci-
edade – extremamente complexa,
pluralista, fragmentada, cheia de gru-
pos participando do comércio jurídico,
dominada pela ciência e informação –
apresenta os mesmos desafios resolvi-
dos pelo Código de Beviláqua? E vêm
os nossos autores, projetistas, e criam
um Projeto dizendo que manterão a
estrutura do Código Civil, criando al-
guma coisa de novo e introduzindo a
legislação extravagante, que é um ou-
tro problema seríssimo, pois não con-
sidera o Direito Civil como fonte subsi-
diária. A legislação extravagante, em
matéria de interpretação e integração,
dirige-se diretamente à Constituição.
Não podemos colocar o Código Civil
acima da legislação extravagante, mas
ao lado dela; vejamos os casos do Di-
reito do Consumidor.
Essas contradições ou até des-
conhecimento dessas questões de in-
terpretação e integração das fontes do
Direito causam perplexidade em face
da ligeireza com que se procuram cri-
ar soluções jurídicas para novos pro-
blemas com conhecimentos, categori-
as, institutos do século passado.
Uma última referência à auto-
nomia privada, sob um aspecto funcio-
nal. No século passado, a ciência jurí-
dica e o Código Civil estavam no cen-
tro do Universo e, gradativamente, fo-
ram perdendo campo para as Ciências
Sociais e, hoje, o Direito não é apenas
objeto de conhecimento da Ciência
Jurídica; há vários saberes jurídicos –
prova disso são os currículos das fa-
culdades, que instituem logo nos pri-
meiros períodos, o estudo de Sociolo-
gia, Filosofia, Economia e História. O
jurista, hoje, tem de ser interdisciplinar;
não se consegue compreender um fe-
nômeno aparentemente jurídico, sem
que tenhamos uma percepção socio-
lógica, filosófica, econômica e históri-
ca.
No campo da Sociologia, da
funcionalização do instituto jurídico,
diria que falar em função social no Di-
reito significa uma perspectiva não-in-
dividual, sendo um critério de
valoração de situações jurídicas
conexas ao desenvolvimento das ativi-
dades de ordem econômica. A idéia de
função social deve ser entendida, por-
tanto, em relação ao quadro ideológi-
co e sistemático em que se desenvol-
ve, abrindo a discussão em torno da
possibilidade de serem realizados os
interesses sociais, sem desconsiderar
ou eliminar os do indivíduo. Sistemati-
camente, atua no âmbito dos fins bási-
cos da propriedade, da garantia de li-
berdade e, conseqüentemente, da afir-
mação da pessoa. E, ainda, historica-
mente, o recurso à função social de-
monstra a consciência política e jurídi-
ca, se realizados os interesses públi-
cos de modo diverso do até então pro-
Série Cadernos do CEJ, 20
posto pela ciência tradicional do Direi-
to Privado, liberal e capitalista. Neste
particular, pode-se dizer que a crença
na função social do Direito revoga um
dos pontos cardeais do sistema
privatista: o direito subjetivo, modela-
do sobre a estrutura da propriedade
absoluta, o que poderia sugerir uma
certa incompatibilidade entre a idéia de
função social e a própria natureza do
direito subjetivo.
O que se assenta, ao final das
contas, é que a função social configu-
ra-se como princípio superior
ordenador da disciplina, da proprieda-
de e do contrato, legitimando a inter-
venção do Estado, por meio de nor-
mas excepcionais e operando, ainda,
como critério de interpretação jurídica.
A função social é, por isso, um princí-
pio geral, um verdadeiro standard jurí-
dico, uma diretiva mais ou menos fle-
xível, uma indicação programática, que
não colide nem torna ineficazes os di-
reitos subjetivos, orientando-nos, nos
respectivos exercícios, na direção mais
consentânea com o bem comum e a
justiça social. E é precisamente o con-
trato, instrumento da autonomia priva-
da, o campo de maior aceitação dessa
teoria, acolhida, primeiramente, pelo
Código Civil italiano, no art. 1.322, se-
gundo o qual podem as partes deter-
minar livremente o conteúdo do con-
trato nos limites impostos por lei e ce-
lebrar contratos atípicos ou
inominados, desde que destinados a
realizar interesse de tutela, segundo o
ordenamento jurídico. Do mesmo
modo, o Código Civil português, no seu
art. 405, ao dispor que as partes po-
dem livremente fixar o conteúdo do
contrato nos limites da lei e celebrar
contratos diferentes dos previstos no
mesmo Código, completa-se com o art.
280, que fixa limite ao exercício da
autonomia privada, estabelecendo a
nulidade do negócio jurídico, contrá-
rio à ordem pública e aos bons costu-
mes.
Por sua vez, o Projeto do Códi-
go Civil brasileiro dispõe, no seu art.
2.421, que a liberdade de contratar será
exercida em razão e nos limites da fun-
ção social do contrato.
Há de se reconhecer, todavia,
que, não obstante o princípio da auto-
nomia privada apresentar-se bastante
limitado nas possibilidades do seu exer-
cício para a ingerência do Estado na
economia, hoje em dia menor, pela
tendência à privatização e à
desregulamentação que perpassa pe-
las nações desenvolvidas no mundo
ocidental, sob o ponto de vista políti-
co, por outro lado, permanece ainda
como poder de atuação político–jurídi-
ca individual, com eficácia jurídica,
garantia de sobrevivência de realização
dos postulados básicos da liberdade e
do reconhecimento do valor jurídico
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
da pessoa humana. O seu instrumen-
to permanecerá sendo o negócio jurí-
dico, mas a sua concretização se faz
nos contratos em menor escala, nas
disposições testamentárias.
Renovo que estamos tentando
enfrentar uma nova realidade com
modelos antigos, o que está condena-
do ao fracasso. Reitero também que
são os operadores do Direito, os advo-
gados e os magistrados, os grandes e
possíveis artífices no processo de cons-
trução jurídica. E quanto a nós, pelo
menos quanto a mim, recordaria o Fi-
lósofo Kant, que, no final do século
XVII, dizia, jocosamente, que nunca se
deveria perguntar aos juristas o que é
o Direito, pois eles não saberiam res-
ponder. Poder-se-ia perguntar-lhes o
que é de direito; isso, talvez, soubes-
sem responder. Dizia também para não
perguntarem a filósofos o que é a ver-
dade, pois temos a liberdade de não
sabermos.
FRANCISCO DOS SANTOS AMARAL
NETO: Professor Titular da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro.
ALIMENTOSFRANCISCO JOSÉ CAHALI
Temos hoje, em matéria de ali-
mentos, algumas dúvidas e
questões que estão sendo de-
batidas. O que verificaremos agora é
se essas tendências que existem nos
tribunais, doutrina e jurisprudência es-
tariam ou não sendo superadas, resol-
vidas pelo Projeto do Código Civil para,
a partir daí, definir se essa mudança
projetada, realmente, tem alguma utili-
dade, justificativa, ou se valeria a pena
manter o que, efetivamente, temos
hoje.
No Direito de Família, a ques-
tão de alimentos, ao lado do
concubinato, é a que mais provoca
movimento no Judiciário; as questões
relacionadas à separação propriamen-
te dita não têm tanta intensidade. A
quantidade de processos envolvendo
concubinato é significativa, em virtude
do novo regramento, e a questão en-
volvendo alimentos, pela matéria em
que se discute a necessidade de sub-
sistência, pois as mudanças econômi-
cas atingem diretamente o padrão de
vida das pessoas e levam à necessida-
de de se pagar mais ou menos pen-
são.
Temos, ainda, algumas ques-
tões pendentes de uma solução defini-
tiva, mas que já encontram um deter-
minado caminho na doutrina e juris-
prudência.
Começaremos a falar a respei-
to da questão da renúncia relacionada
à separação judicial, e não aos alimen-
tos decorrentes de parentesco. Os côn-
juges poderiam promover a renúncia
à pensão num acordo de separação ju-
dicial ou num divórcio? Como essa
matéria vem sendo tratada? É de ex-
trema importância esse assunto e exis-
te divergência no campo doutrinário e
também jurisprudencial.
Na doutrina, fazemos referência
às posições trazidas pelo Prof. Yussef
Cahali, que, inclusive, dedica várias
páginas do seu livro ao assunto, mos-
trando, realmente, a dúvida que existe
a respeito.
Na jurisprudência, temos a
Súmula n. 379 do Supremo Tribunal
Federal, que consignou, antes da Lei
do Divórcio, a impossibilidade de re-
núncia da pensão alimentícia num
acordo de desquite, na época – atual-
mente separação judicial. Ocorre que,
mesmo no Judiciário, tal súmula vem
sendo revista e analisada de outra for-
ma. O próprio Superior Tribunal de Jus-
tiça a vem interpretando de uma outra
maneira e permitindo a renúncia da
pensão alimentícia, contrariando a
súmula. E, nos tribunais estaduais e
mesmo na doutrina, encontramos uma
série de orientações sobre essa ques-
tão, como, por exemplo, decisões do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal,
Série Cadernos do CEJ, 20
fiéis à súmula, dizendo que não cabe
a renúncia até mesmo na dissolução
de união estável. Temos outras orien-
tações, por exemplo, do Tribunal de
São Paulo, onde a tendência maior é
admitir a renúncia. Ocorrendo a renún-
cia antes do divórcio, a modificação
poderia ser feita por meio de uma mo-
dificação de cláusula daquele acordo
e, após o divórcio, seria definitiva, não
permitindo uma revisão, uma posição
intermediária. Encontramos, efetiva-
mente, orientações em todos os senti-
dos, mas trata-se de uma questão ain-
da tormentosa e que enseja vários de-
bates na doutrina e jurisprudência.
Outro aspecto que já sinaliza
um determinado caminho é a questão
da revisional de alimentos, também,
entre cônjuges. Existe uma tendência
de limitar essa ação revisional aos ali-
mentos decorrentes só do parentesco.
Há uma orientação antiga, do conheci-
mento de todos, de que aquela pes-
soa, aquela mulher que se separa de
um soldado não teria direito a uma
pensão com base no salário de um ca-
pitão. Trata-se aí de uma decisão com
base no conteúdo, no mérito da ques-
tão, da possibilidade de revisão pelo
aumento de disponibilidade do mari-
do, por força exclusivamente de um
desempenho pessoal; a ex-mulher, que
em nada contribuiu, ficaria privada des-
se benefício. Esta era uma orientação
que vinha prevalecendo, mas, atual-
mente, há um outro passo a ser dado
nessa matéria, com base num acórdão
do Supremo Tribunal Federal, da lavra
do Ministro Marco Aurélio, consignan-
do que, no caso de alimentos decor-
rentes da dissolução de sociedade con-
jugal, não cabe a revisão da pensão. A
revisão da pensão, prevista, de um
lado, no art. 401 do Código Civil, que
trata de alimentos decorrentes do pa-
rentesco, e, de outro, no art. 28 da Lei
do Divórcio, é destinada exclusivamen-
te aos alimentos decorrentes do paren-
tesco. Diz o art. 28 que os alimentos
devidos pelos pais e fixados na sen-
tença de separação poderão ser alte-
rados a qualquer tempo; não fala em
alimentos determinados no processo
de separação. Nesse sentido, é a ori-
entação fixada por esse precedente. A
revisão não seria possível por falta de
interesse jurídico, impossibilidade jurí-
dica do pedido, diferentemente daquela
situação entre soldado e capitão, que
já é propriamente o mérito da ques-
tão.
A questão da revisional de ali-
mentos já é um início de orientação
que, na verdade, demonstra o trata-
mento que vem sendo dado pela juris-
prudência, embora com decisões em
todos os sentidos, em separar os ali-
mentos decorrentes do parentesco dos
decorrentes da dissolução da socieda-
de conjugal.
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
A discussão gravita em torno da
natureza jurídica dos alimentos decor-
rentes do parentesco, que é de caráter
assistencial – para a subsistência de
quem os reclama –, para aqueles de-
correntes da dissolução da sociedade
conjugal, que, alegam os autores, teri-
am uma natureza indenizatório-puniti-
va: a intenção de impor ao responsá-
vel pela separação o compromisso de
continuar respondendo pela manuten-
ção, como prolongamento do dever de
mútua assistência, daquele que ficou
privado do auxílio e da expectativa que
possuía com relação ao matrimônio,
em função da separação. O outro, que
o privou dessa expectativa, ficaria, en-
tão, responsável pela sua subsistência.
O que nos importa, neste mo-
mento, é demonstrar que a tendência
tem sido separar a orientação entre os
alimentos decorrentes da dissolução
da sociedade conjugal e aqueles de-
correntes do parentesco. Por que faço
essas considerações aqui, se estamos
analisando o Projeto do Código Civil?
Porque, no Projeto houve uma modifi-
cação dessa estrutura, modelo, que a
jurisprudência e a doutrina – bem ou
mal – já vinham separando. Com o Pro-
jeto do Código Civil, está sendo pro-
posta a inclusão dos alimentos decor-
rentes da dissolução da sociedade con-
jugal no capítulo do Código Civil, em
conjunto, com os alimentos decorren-
tes dos vínculos de parentesco consan-
güíneo. Com essa mudança de estru-
tura, na verdade, teríamos de ter uma
nova formulação de orientação a res-
peito, principalmente, desses dois te-
mas. Não porque, expressamente, haja
uma previsão ou tenha sido posto que
agora não cabe revisional ou cabe nos
alimentos para os ex-cônjuges, ou mes-
mo a questão da renúncia, mas, por-
que, mudando essa estrutura – e, no
meu entender, até contrariando a ten-
dência que vinha sendo adotada pelos
tribunais –, teremos essa relevante re-
percussão na orientação que deverá
agora prevalecer sobre esses dois te-
mas.
A conseqüência será, por exem-
plo, no caso de renúncia, incluídos os
alimentos num único capítulo genéri-
co e com a previsão expressa no art.
1.735 proposto, dizendo que é desca-
bida, que a pensão alimentícia poderá
deixar de ser exercida, mas não renun-
ciada. Naturalmente, esta regra, auto-
maticamente, será aplicada nos alimen-
tos decorrentes da dissolução da socie-
dade conjugal. Não se sabe se, por
opção ou descuido, a realidade será
essa; será analisada a matéria sob ou-
tra conotação, não mais nos alimen-
tos previstos numa lei específica, mas
em conjunto com a regra geral dos ali-
mentos. Embora o art. 1.732 do pró-
prio Projeto sinalize a possibilidade, ao
dizer que, se um dos cônjuges separa-
dos judicialmente vier a necessitar de
Série Cadernos do CEJ, 20
alimentos, será o outro obrigado a
prestá-los, mediante pensão a ser fixa-
da pelo juiz, caso não tenha sido con-
siderado responsável pela separação.
Essa regra, efetivamente, foi para não
mais permitir a renúncia, confirmando
o entendimento da Súmula n. 379.
Uma observação que deverá
também ser objeto de análise é que,
se o Projeto fala em separação judicial,
não se refere ao divórcio. E com o di-
vórcio direto ou por conversão, como
ficaria a questão da renúncia, princi-
palmente hoje, com o divórcio direto,
dotado de um procedimento que aca-
ba sendo muito mais fácil do que o da
própria separação, porque, segundo a
orientação do Superior Tribunal de Jus-
tiça, já sumulada, não precisaria nem
de partilha de bens? Trata-se de uma
situação diferenciada a da separação
e a da conversão do divórcio, embora
controversa. Temos uma regra que fala
em separação e uma outra genérica,
em que não cabe renúncia dos alimen-
tos. Ela será estendida ou não? Como
ficará esse contexto? No momento em
que a tendência era em função do tra-
tamento separado dos dois institutos –
e, no meu entender, merecidamente,
cada um com uma repercussão jurídi-
ca, uma aplicação de determinadas
regras específicas, um tratamento jurí-
dico próprio –, teríamos, enfim, essa
questão.
Com relação à revisão, certa-
mente agora em que tudo está sendo
tratado em conjunto, num mesmo ca-
pítulo, no art. 1.727 proposto, haverá
a sua permissão expressa; não se fala
entre cônjuges ou parentes, apenas,
se, fixados os alimentos, sobrevierem
mudanças na situação patrimonial de
quem os supre ou na de quem os re-
cebe, poderá a parte interessada recla-
mar ao juiz, conforme as circunstân-
cias, exoneração, redução ou agrava-
ção do encargo, ou seja, está contrari-
ando o acórdão – diria até tratar-se de
uma tendência dos nossos tribunais,
permitir a revisão para mais ou para
menos, no caso de alimentos entre
cônjuges. Naturalmente, essa orienta-
ção do Superior Tribunal de Justiça ou
deste acórdão não impede a redução
dos alimentos. Mas isso em função de
outros princípios, por exemplo, o prin-
cípio básico de que ninguém será obri-
gado a prestar alimentos, se disso
ensejar a sua própria necessidade; nin-
guém quer a carência de um, em fun-
ção da prestação de alimentos ao ou-
tro. Em decorrência desse aspecto, a
redução é permitida, como também a
exoneração, mas a revisão para o agra-
vamento do encargo seria não dar a
amplitude que se tem entre os alimen-
tos decorrentes do parentesco. Por
exemplo, o filho do soldado ou do ca-
pitão teria direito em rever sempre a
sua pensão, em função da capacidade
cada vez maior do seu pai, diferente-
mente – repito – da situação dos cônjuges.
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
Outra questão é a da transmis-
são da pensão alimentícia. Temos uma
dúvida ainda pendente, pois o Código
Civil estabelece que os alimentos não
se transmitem. Já a matéria, tratada na
Lei do Divórcio, está disposta de for-
ma que a obrigação alimentar se trans-
mite aos herdeiros do devedor. Alguns
comentários ao Código, inclusive, ale-
gam que teria sido revogado o artigo
do Código Civil que trata do assunto –
art. 402 – pela Lei do Divórcio; porém
a tendência é no sentido de que, para
os alimentos decorrentes da separação
judicial, ocorre transmissão; para aque-
les decorrentes do vínculo de paren-
tesco, não, até porque, na maioria das
vezes, quem reclama os alimentos são
herdeiros de quem paga a pensão; au-
tomaticamente eles estariam benefici-
ados com a própria herança e, indire-
tamente, a obrigação recairia sobre
eles, na qualidade de herdeiros. Em-
bora alguns códigos tenham sido re-
vogados, no meu entender, trata-se de
uma situação completamente separa-
da, ou seja, é uma distinção que faço
entre alimentos decorrentes do paren-
tesco e alimentos decorrentes da dis-
solução da sociedade conjugal.
O Projeto trata desse assunto –
art. 1.728 –, dispondo expressamente
que a obrigação de prestar alimentos
não se transmite aos herdeiros do de-
vedor.
Já a emenda do Senado diz que
a obrigação de prestar alimentos trans-
mite-se aos herdeiros do devedor na
forma do art. 1.722, que estabelece
que podem os parentes exigir uns dos
outros os alimentos. Não entendi a
abrangência, a extensão do artigo do
Projeto do Código, que dispõe que se
transmite a obrigação, nos termos do
artigo que fala que a obrigação alimen-
tar existe entre os parentes. Ora, se já
existe pelo art. 1.722, em que medida
seria essa transmissão? No Projeto ori-
ginal não se a transmite; nas emendas
propostas pelo Senado Federal, sim. A
bem da verdade, até hoje, no sistema
atual, com esta dúvida, não se sabe,
ao certo, o que viria a ser essa trans-
missão da obrigação alimentar, até por-
que sempre estudamos em Direito das
Sucessões, que é um direito
personalíssimo, aquele típico exemplo
de obrigação personalística: as obriga-
ções vencidas que automaticamente
se transmitem, pois se trata de uma dí-
vida do espólio.
Enfim, essa regra ainda não tem
grande definição e não é muito discuti-
da, mas voltará a gerar polêmica por-
que, de uma maneira ou de outra, pela
emenda proposta pelo Senado, está se
tratando de uma maneira igual a pen-
são alimentícia entre cônjuges e paren-
tes.
Se pretende cuidar de questões
relacionadas ao Direito de Família, que
se faça uma nova sistemática nos sub-
Série Cadernos do CEJ, 20
títulos dos alimentos, separando o que
é e qual o regime jurídico da obriga-
ção alimentar decorrente do parentes-
co e da obrigação alimentar oriunda
da dissolução da sociedade conjugal.
Que se faça expressamente essa dis-
tinção que deveria ter sido feita, até por
opção, para se ter a consciência dos
efeitos de um ou de outro regime, por-
que, no sistema que temos hoje – não
se sabe se por opção ou um outro ca-
minho, ou, efetivamente, um descui-
do do legislador – vemos artigos relaci-
onados a um regime e a outro, che-
gando a situações curiosas. O primei-
ro artigo – 1.722 – dispõe que podem
os parentes pedir aos outros alimen-
tos de que necessitam para viver – pa-
rentes ou cônjuges – de modo compa-
tível com a sua condição social, inclu-
sive para atender necessidades de sua
educação, quando o beneficiário for
menor. A emenda do Senado Federal
diz: inclusive para atender às necessi-
dades de sua educação; excluiu essa
parte final, em função até de uma ori-
entação tranqüila, de que a obrigação
de pagar a escola não é só até comple-
tar a maioridade, mas até os vinte e
cinco anos. Enfim, tirando essa parte
final, poderia o cônjuge sustentar que
tem direito à educação, a ser fornecida
pelo seu ex-cônjuge, porque, pela re-
dação do artigo, está estabelecido: in-
clusive, para atender as necessidades
de sua educação, quando me parece
que a intenção foi garantir a educação
de um filho, em decorrência do pátrio
poder.
Temos até uma outra questão
sobre o fato de que os alimentos serão
apenas os indispensáveis à subsistên-
cia, quando a situação de necessida-
de resultar de culpa de quem os plei-
teia. Esse artigo é direcionado, natural-
mente, aos alimentos decorrentes da
separação, mas está colocado de uma
maneira abrangente; significa até dizer
que um pai poderia pensar que não
teria de pagar alimentos ao filho, mais
do que o estritamente necessário à sua
subsistência, porque este deu causa à
pensão, quando, por exemplo, poden-
do morar com o pai, preferiu morar com
a mãe. No meu entender, essa regra é
direcionada aos cônjuges.
Se analisarmos vários outros
artigos, verificaremos que tratam de
uma espécie de alimentos, e outras re-
gras são comuns às duas espécies;
mereceria uma sistematização diversa,
o aproveitamento de um Código, uma
modificação legislativa, até para evitar
uma confusão na interpretação, pelas
doutrina e jurisprudência, que pode,
logicamente, causar uma instabilidade
muito grande para toda a sociedade,
porque pode haver uma orientação
adotada num determinado caso, de-
pendendo da Câmara em que venha a
ser julgado, e a mesma situação jurídi-
ca obter um resultado diferente, se
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
julgada por outra Câmara. Essa é uma
instabilidade muito ruim, principalmen-
te para a nossa atuação como advoga-
do, pois é muito difícil explicarmos para
um cliente que ele teve um tratamento
com determinado resultado jurídico e
um amigo seu, que teve o julgamento
realizado por outra Câmara, recebeu
um benefício ou um privilégio que ele
almejava. Na verdade, nessa situação,
o cliente culpa, exclusivamente, o ad-
vogado.
Verificaremos agora algumas
novidades e aspectos que são postos
no Projeto do Código Civil que, direta-
mente ou expressamente, não constam
do nosso sistema atual. A primeira de-
las, que considero uma inovação sau-
dável, é a possibilidade de se fixar a
pensão alimentícia decorrente da dis-
solução da sociedade conjugal, mes-
mo ocorrendo a culpa de um dos côn-
juges.
Pelo nosso sistema atual – art.
19 da Lei de Divórcio – só recebe pen-
são alimentícia aquele que não teve
culpa na separação; o responsável pela
separação perderia o direito de
reclamá-la. Essa é uma situação muito
criticada pela doutrina, inclusive pelo
Prof. João Baptista Villela, que tem uma
posição firme, entendendo que não se
deve vincular a responsabilidade da
obrigação alimentar à questão da cul-
pa, mas, ainda hoje, o que tem preva-
lecido, na jurisprudência, principalmen-
te, é que o cônjuge culpado perde o
direito à pensão alimentícia.
Temos, em matéria de alimen-
tos, embora não no sistema legal, mas
na doutrina, a divisão entre alimentos
necessários – naturais – e civis –
côngruos. Os primeiros são os desti-
nados à subsistência de quem os re-
clama, são os indispensáveis à sua so-
brevivência; já os alimentos civis, es-
tabelecidos de acordo com o padrão
de vida da pessoa, com o status, e, no
nosso contexto, na prática, essa dis-
tinção é virtual, transparente, não
identificada, porque não tem resulta-
do, repercussão nenhuma, são fixados,
primeiro, de acordo com a necessida-
de e, segundo, de acordo com o pa-
drão de vida das pessoas, principal-
mente entre cônjuges, mas também
decorrente do parentesco; enfim, essa
é a situação.
O Projeto do Código Civil intro-
duz, na seara legislativa, essa distinção,
como ocorre, inclusive, com outras
ordenações – e posso citar aqui o sis-
tema argentino, o italiano e o chileno –
, estabelecendo que o cônjuge culpa-
do terá direito aos alimentos necessá-
rios, não aos civis – côngruos –, mas
aos indispensáveis à sua subsistência,
e fixa ainda outros requisitos, como
não ter aptidão para o trabalho e ou-
tros parentes a quem reclamá-los. O
Série Cadernos do CEJ, 20
ex-cônjuge ficaria obrigado a pagar a
pensão, mas com essa ressalva garan-
tindo os alimentos estritamente neces-
sários à subsistência. Concordo que
com esta solução acomodamos um
pouco a situação, atendendo à critica
da doutrina, até com base no Direito
alemão, em que a questão da culpa
não pode mais ser discutida para efei-
to de privação da pensão, mas tam-
bém às situações da doutrina, da juris-
prudência e, na verdade, da nossa re-
alidade, de que os alimentos não po-
deriam ser devidos em favor daquele
culpado.
Vejam, por exemplo, a situação
de um marido traído pela esposa com
o seu motorista particular; se for retira-
da toda essa questão da culpa, como
ficaria a questão em função do status
dessa família? Tendo condições, natu-
ralmente, como pressuposto, o ex-ma-
rido, além de ter passado por essa si-
tuação, ficaria ainda obrigado a pagar
pensão à ex-mulher, inclusive para fa-
zer o pagamento do seu motorista, cau-
sador da dissolução desta sociedade
conjugal, mantendo o mesmo padrão
de vida que ela possuía antes. Não me
parece tranqüilo conseguir convencer
a parte, e haveria, com certeza, medi-
das trágicas até em relação a esse con-
texto.
O outro lado – e aproveito aqui
para usar um exemplo posto pelo Prof.
Francisco Amaral do adultério – é o
chamado adultério virtual, pois a iden-
tificação da culpa num processo de
separação desse tipo é um dos proble-
mas mais complexos de se resolver, e
certamente os magistrados têm melho-
res condições de desenvolver isso, por-
que o advogado encontra elementos,
motivos, razões para sustentar a culpa
da parte contrária, mas, para o magis-
trado, deve ser muito difícil identificar
a culpa. Ele tem, principalmente, uma
responsabilidade grande em identificá-
la, não só a que está no processo, mas,
na desavença, dissolução, porque tem
esse grave efeito; a questão do nome
e a patrimonial, hoje, praticamente não
têm esse significado, repercussão, mas
para os alimentos, sim; daí a proble-
mática.
O adultério virtual é aquele em
que o homem já com uma idade mais
avançada, depois dos vinte, trinta anos
de casado passa, realmente, a se en-
volver nessas salas de bate-papo com
outras pessoas. Aliás, comentei com
Hermano Henning, num Programa do
SBT, a respeito de uma reportagem so-
bre internet e essas chamadas salas de
bate-papo, que as pessoas freqüentam,
onde trocam intimidades, fotografias e
relacionam-se por meio do computa-
dor, o que pode ensejar esse chama-
do adultério virtual, como causa, até,
de separação. Mas como prová-lo? A
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
esposa observa o marido chegar em
casa todos os dias, jantar calado, ir para
o computador e manter todo o seu re-
lacionamento; ele diverte-se, troca in-
formações, enquanto ela assiste à sua
novela, aos seus programas de televi-
são e aguarda o marido ir deitar-se,
mas ele não vai, porque está no com-
putador. Essa rotina repete-se por um
dia, dois, um mês, três meses, cinco
meses, e o marido comprando equipa-
mentos que envolvem troca de ima-
gens etc., enfim, cercado de outras pes-
soas, por meio do computador, e ela,
sem outras opções, não pode pedir a
separação, pois vive na dependência
exclusiva do marido. O que fazer? Cer-
to dia, ela perde a paciência, pega o
computador e, sem pensar duas vezes,
agride o marido; quebra o monitor, bate
com o teclado na cabeça dele e, a essa
altura, toda a vizinhança aparece para
ver o que está acontecendo. Quem vai
ser considerado culpado nessa sepa-
ração? A mulher, que não se conteve
e, efetivamente, agrediu fisicamente o
marido, tendo contra ela testemunhas,
o porteiro e a polícia que foi chamada.
Ela é a culpada pela separação e teria
uma enorme dificuldade de demons-
trar, num processo, que esta situação
foi ensejada pelo marido, devido ao
seu comportamento.
Trata-se de uma situação deli-
cada, e a identificação da culpa preo-
cupa as pessoas ligadas ao Direito, so-
ciólogos, psicólogos, porque, efetiva-
mente, é difícil identificar o que é cau-
sa e o que é efeito e, de qualquer for-
ma, essa mulher estaria privada da pen-
são alimentícia, porque, com certeza,
no processo, seria considerada culpa-
da pela separação judicial.
Nesse contexto, parece-me que
essa inovação é saudável, positiva,
acomoda a situação; de um lado, ga-
rante a subsistência de uma pessoa que
não teve amparo com outros parentes,
ou condições de trabalho; e, de outro,
preserva a situação de quem não deu
causa à separação, de não ter contra
ele imposta uma obrigação doída – não
é minha a frase, mas todos a conhe-
cem: A parte do corpo humano que
mais dói é o bolso. Então, seria muito
difícil para alguém que não se confor-
ma com a separação e não tenha dado
causa a ela ter de manter o padrão de
vida da pessoa, em função de uma pos-
sibilidade legal a respeito.
Registro aqui a posição do Prof.
Villela em sentido contrário, que até
permite essa fixação com outras
conotações, repercussões, mas, enfim,
de uma maneira geral, não traria esse
vínculo – como hoje existe –, a culpa,
pelo art. 19.
Outra questão que me parece
importante, até por ser uma inovação
saudável, é a da fixação do termo final
Série Cadernos do CEJ, 20
da obrigação alimentar, da sua exone-
ração. Sabemos que o art. 29 da atual
Lei do Divórcio determina que o novo
casamento do cônjuge que recebe pen-
são alimentícia enseja a exoneração da
obrigação alimentar. A Lei n. 8.971, que
trata do assunto, refere-se à nova união
para aliviar ou para exonerar da obri-
gação alimentar o ex-companheiro. Em
função dessa regra, temos uma inter-
pretação jurisprudencial com várias
orientações. Por exemplo, uns admi-
tem que não só o novo casamento,
mas a nova união, enseja a exonera-
ção; outros – neste caso, trata-se de
um acórdão do Tribunal de Justiça de
São Paulo – admitem que até mesmo
uma união estável não leva à exonera-
ção se não houver prova de que o ex-
cônjuge estaria vivendo à custa do
novo companheiro. Ou seja, num ex-
tremo, temos os que afirmam que a
união enseja a exoneração e, no ou-
tro, os que dizem que a união não
enseja a exoneração, a menos que fi-
que caracterizado que o dever de as-
sistência é cumprido pelo atual com-
panheiro. Se não houver a prova, não
haverá exoneração dessa pensão.
Num outro caminho, com base
em decisões do STJ, temos os que de-
fendem que só o concubinato – ou
seja, o fato de a mulher ter relação se-
xual com outras pessoas – não enseja
a exoneração da pensão. Existe um
acórdão contando o caso de uma pes-
soa que teve um filho com um compa-
nheiro e um segundo filho com outro
companheiro e, mesmo nessa situação,
como não eram uniões estáveis, e sim
passageiras, ficou mantida a pensão
alimentícia.
O Projeto do Código Civil esta-
belece nos arts. 1.736 e 1.737 que o
casamento ou o concubinato do cre-
dor da pensão alimentícia determinará
sua extinção. Aduz, também, que se o
cônjuge devedor da obrigação vier a
casar-se, o novo casamento não alte-
rará a obrigação. Até aí, sem proble-
mas. O art. 1.736 diz que ao cônjuge
separado judicialmente não cabem ali-
mentos enquanto viver em
concubinato ou tiver procedimento in-
digno. A posição do Senado, embora
mudando um pouco a redação, tam-
bém mantém esses princípios: novo
casamento, nova união, novo
concubinato e mesmo “procedimento
indigno” do cônjuge que recebe a pen-
são alimentícia. Este conceito de pro-
cedimento indigno é vago e caberia à
jurisprudência estabelecer um limite
para que o preço da pensão alimentí-
cia não seja a fidelidade. Findo o casa-
mento, o dever de fidelidade não exis-
te mais. Considerar a pensão alimentí-
cia como pagamento da castidade do
cônjuge não é correto, mas também
devemos encontrar um equilíbrio, um
limite: até que ponto um comportamen-
to indigno pode ser considerado moti-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
vo para exoneração da pensão?
Há o caso de um cliente, inclu-
sive um cantor famoso, que havia se
separado em função de uma relação
homossexual da ex-mulher. A homos-
sexualidade de sua ex-mulher é reco-
nhecida e assumida, tanto que ela par-
ticipa de movimentos favoráveis à re-
gulamentação das relações homosse-
xuais, e ele ficou com a guarda dos
filhos, na época menores, fixando a
pensão alimentícia em favor dela por
ter sido uma separação amigável e
consensual. Antes, ela tinha o perfil
homossexual, pois manteve relações
com a pessoa, mas, nos últimos anos,
vive com essa parceira homossexual
sem esconder de ninguém, nem dos
filhos. Ele respeita essa posição, ape-
nas não se conforma em pagar pen-
são alimentícia para ela. Como fica a
situação?
Pesquisei a jurisprudência, mas
não encontrei material específico so-
bre relação homossexual. Acredito,
porém, que teria um bom resultado se
trabalhasse com base no direito pro-
posto e com uma interpretação ampla
do art. 29 da Lei do Divórcio, e dei uma
expectativa ao cliente a respeito das
chances de ele conseguir êxito. Na re-
alidade, a sua preocupação não era
com o valor, porque ele tem condições
de pagar a pensão, mas não achava
moralmente correta aquela situação.
Quando estava praticamente contrata-
do, uma vez me perguntou sobre a re-
percussão da ação e se o processo
correria em segredo de Justiça. Respon-
di que sim, mas falou-me que talvez,
no dia em que desse entrada nesse
processo de separação judicial, com
certeza estaria a notícia divulgada nos
jornais e revistas especializadas em tra-
tar da intimidade de pessoas famosas.
Ele, que hoje é evangélico e mantém
atividades religiosas, afirmou-me que
não gostaria de se expor e resolveu
continuar pagando a pensão para não
se envolver num escândalo. Optou,
então, por não propor a ação, ainda
mais porque existiam dúvidas sobre a
vitória da causa, mas no íntimo não se
conforma de maneira nenhuma com a
situação.
Para concluir, não farei muitas
críticas ao Projeto do Código Civil, mas
há várias críticas que se fazem ao Pro-
jeto. Confirmo minha posição de que
não há como aprovar o Código na for-
ma como está posto, principalmente
na parte relacionada ao Direito de Fa-
mília. Um problema objetivo do Proje-
to diz respeito à união estável. Como
ficam os alimentos decorrentes do
concubinato? O Projeto aproveitou al-
gumas regras do outro projeto de re-
gulamentação da união estável que
está em tramitação, tais como caracte-
rização da união estável, deveres e efei-
tos patrimoniais, mas não estabeleceu
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UNIÃO ESTÁVEL: LEGISLAÇÃO E PROJETOSÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO
1 GENERALIDADES
O Projeto do novo Código Civil
originou-se do Anteprojeto de
1972 1 e se converteu no Pro-
jeto de Lei n. 634, de 1975; depois n.
634-B, quando aprovada sua redação
pela Câmara dos Deputados, em 1984.
Esse Projeto tramitou no Senado Fede-
ral (Projeto de Lei da Câmara n. 118,
de 1984), com redação final em 1997.
A elaboração inicial do quarto
livro da Parte Especial, reservado ao
Direito de Família, coube a Clóvis do
Couto e Silva.
O Projeto ingressou no Senado
Federal em 1984² – quatro anos antes,
portanto, de ser promulgada a atual
Constituição, de 05 de outubro de 1988
–, retornando à Câmara dos Deputa-
dos, onde se encontra presentemen-
te³.
2 ANÁLISE DE SEUS ARTIGOS
O Projeto do novo Código Ci-
vil, n. 118, já com a redação final de
1997, dada pelo Senado Federal, cui-
da da união estável, nos arts. 1.735 a
1.739.
Nesse Projeto, volta a exigência
da duração da convivência dos com-
panheiros ser por mais de cinco anos
consecutivos, reduzindo-se o prazo
para três anos, havendo filho comum
(§ 1º), devendo, ainda, a coabitação
existir sob o mesmo teto. Nesse caso,
a ser editado tal entendimento, haverá
a revogação da Súmula n. 382 do Su-
premo Tribunal Federal, que admite que
os companheiros vivam em tetos dis-
tintos. O inconveniente existe, por
exemplo, se já estiverem os compa-
nheiros decididos a viverem juntos,
com prova inequívoca (casamento re-
ligioso, por exemplo), e qualquer de-
les adquirir patrimônio, onerosamente,
antes do complemento desse prazo.
Por outro lado, pode haver início da
união já com filho comum.
Afora outras disposições seme-
lhantes às constantes das leis de 1994
e de 1996 adiante analisadas, o Proje-
to afronta a maior conquista dessa le-
gislação e de nossa jurisprudência,
quando não permite a existência da
união estável, se os companheiros ti-
verem impedimentos matrimoniais e
causas suspensivas (§ 2º do seu art.
1.735). E confirma esse entendimen-
to, ao nosso ver absurdo, contrário à
própria história do instituto, fazendo a
diferença entre união estável e
concubinato, quando assenta, em seu
art. 1.739, que As relações não even-
tuais entre o homem e a mulher, impe-
didos de casar, constituem
concubinato.
A vigorar este último dispositi-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
vo de pré-legislação estarão impossibi-
litados de manter convivência em
união estável os cônjuges separados
de fato ou de direito (separação judi-
cial). Aqui, verdadeiro golpe na histó-
ria do instituto, porque esse preceito
faz, nesse caso, voltarem as conse-
qüências do concubinato, que evolui
à categoria de concubinato puro, que
é hoje a união estável.
Desse modo, quem está sepa-
rado judicialmente, por exemplo, e não
quer divorciar-se, terá de viver sob
concubinato, sem os benefícios da
união estável. No Brasil, é situação no-
tória, admitida, atualmente, pela pró-
pria sociedade, a existência de novas
uniões familiares por pessoas separa-
das de fato, que, certamente, estarão
desprotegidas, se for editado esse tex-
to projetado. Com isso, estaremos re-
trocedendo na história e fazendo vol-
tar as injustiças do passado, principal-
mente contra a mulher brasileira, em
agressão ao próprio Direito Natural. Não
se pode legislar contra a realidade so-
cial.
Estará ferido, com isso, o texto
constitucional, constante do caput do
art. 226, que eliminou todas as discri-
minações contra a família, que é a úni-
ca destinatária da proteção da Lei Mai-
or. Sim, porque quem convive
familiarmente, embora separado de
fato ou de direito, de seu cônjuge, não
agride outra forma de constituição de
família, porque seu casamento já está
rompido.
A própria Lei do Divórcio, n.
6.515, de 26 de dezembro de 1977, já
atestava no § 1º de seu art. 5º, a possi-
bilidade de ruptura da sociedade con-
jugal, pela separação de fato do casal
prolongada por mais de cinco anos
consecutivos, com impossibilidade de
sua reconstituição. Esse prazo de cin-
co foi reduzido para um ano, pela Lei
n. 8.408, de 13 de fevereiro de 1992.
A seu turno, a Constituição Fe-
deral, de 05 de outubro de 1988, pos-
sibilita, pelo § 6º de seu art. 226, a dis-
solução do casamento civil, após pré-
via separação judicial por mais de um
ano nos casos expressos em lei, ou
após comprovada separação de fato
por mais de dois anos.
Como visto, a separação de fato
prolongada, pelos aludidos transcursos
de tempo, pode ocasionar a ruptura da
sociedade conjugal ou, até mesmo, a
dissolução do casamento civil, produ-
zindo efeitos que estariam sendo
ilididos pelo texto do Projeto sob co-
mentário.
A família é o fundamento do
próprio Estado, que será sempre forte
quando houver a fortaleza dos senti-
mentos íntimos e o respeito máximo
Série Cadernos do CEJ, 20
ao ser humano.
Lendo-se o pronunciamento do
Senador Josaphat Marinho 4, Relator-
Geral do Projeto em exame, parece que
o risco de interpretação desse texto de
pré-legislação não será muito acentua-
do, verbis: Estabeleceu-se que a união
estável pode converter-se em casamen-
to mediante requerimento dos compa-
nheiros ao juiz e a sua devida transcri-
ção no registro civil. Também se pre-
viu que, se houver filho comum, a
união estável é reconhecida aos três
anos de convivência. Experimentei em
seguida uma grave dúvida: definida a
união estável, não poderia ignorar que,
na realidade, subsistia o concubinato.
A experiência da vida nos mostra que
ele existe independemente de nossa
vontade. O atual Código Civil nunca
definiu o concubinato. Então, pareceu-
me conveniente, já que se define a
união estável, dar uma noção que ser-
visse de termo distintivo desta. Por ini-
ciativa do relator se inclui esta norma:
o convívio não-eventual do homem e
da mulher que não podem casar cons-
titui o concubinato. Distingue-se, assim,
da união estável. Mas não entramos em
pormenores. Porque essa é daquelas
situações que envolvem tais particula-
ridades e diferenciações na sociedade,
que seria uma imprudência entrar na
especificação reguladora da matéria. O
Supremo Tribunal Federal, que, ao lon-
go do tempo, foi reconhecendo a exis-
tência do concubinato, já declarou que
não é preciso o convívio na mesma
casa para que se configure o
concubinato. E os direitos reconheci-
dos aos companheiros, ou mais dire-
tamente, até então, à companheira, no
concubinato, sempre tiveram tratamen-
to difenciado, conforme a configuração
de cada caso. Houve momentos em
que esses direitos foram reconhecidos
por se entender que havia uma socie-
dade de fato, em outros, porque a com-
panheira apenas tinha concorrido para
a formação do patrimônio, e assim,
sucessivamente. Não convinha, portan-
to – estou convencido disso – estabe-
lecer regras pormenorizadas. Esta é
daquelas situações em que a jurispru-
dência dos tribunais é que vai definir
as normas jurídicas aplicáveis.
Realmente, o Código Civil nun-
ca definiu o concubinato, nem o puro
e nem o impuro, este podendo ser
adulterino ou incestuoso.
Todavia, a atual união estável é
o concubinato puro (não-adulterino e
não-incestuoso).
Desse modo, conceituando o
Projeto o concubinato, não fez diferen-
ça entre uma e outra espécie: se puro
ou impuro.
Na verdade, o concubinato hoje
existente entre pessoas separadas ju-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
dicialmente ou de fato já é qualificado
como puro, como união estável, uma
vez que o separado que vive
concubinariamente não tem qualquer
relacionamento pessoal de família com
seu ex-cônjuge, embora formalmente
permaneçam casados. Ora, neste caso,
não existe comprometimento
adulterino, pois o dever de fidelidade
está extinto. Não há, portanto, com o
novo relacionamento concubinário,
quebra desse mesmo dever.
Assim, sobre essa matéria não
há de se esperar que se estabeleçam
normas, pela “experiência” e pela “ju-
risprudência dos tribunais”, pois elas
já existem consolidadas na doutrina e
nos julgados de nossos tribunais, ten-
do a Lei n. 8.971, de 29 de dezembro
de 1994, em seu art. 1º, já conceitua-
do a união estável como a convivên-
cia de um homem solteiro, separado
judicialmente, divorciado ou viúvo...
Entendo que o cônjuge separado de
fato também se inclui nesse texto, pois
a adulterinidade cessa, nesse passar de
tempo, em que desaparece o dever de
fidelidade pela falta de coabitação dos
cônjuges.
O próprio Projeto do Governo
n. 2.686/96, já analisado atrás, que tra-
mita em nosso Congresso Nacional, em
tentativa de unificação das leis vigen-
tes de 1994 e de 1996, também já es-
tudadas, possibilita a união estável en-
tre separados judicialmente e de fato,
nestes termos: Art. 1º - É reconhecida
como união estável a convivência, por
período superior a cinco anos, sob o
mesmo teto, como se casados fossem,
entre um homem e uma mulher, não
impedidos de realizar matrimônio ou
separados de direito ou de fato dos res-
pectivos cônjuges.
O art. 1.736 do Projeto, a seu
turno, reafirma a existência dos deve-
res de lealdade, respeito e assistência
entre os companheiros, e os de guar-
da, sustento e educação de seus filhos,
tal como existe na Lei n. 9.278/96 (me-
nos o dever de lealdade, previsto no
Projeto do Governo). Todos esses de-
veres já foram anteriormente analisa-
dos.
Admite-se, ainda, no Projeto
sob foco (art. 1.737), a possibilidade
de realização de contrato entre os com-
panheiros, para regulamentação de
suas relações patrimoniais tal como na
Lei de 1996. Assenta esse artigo que,
na ausência de contratação, aplicar-se-
á, no que couber, o regime de comu-
nhão parcial de bens. Malgrado não ser
essa a melhor redação, o dispositivo
da pré-legislação deixa claro que serão
dos companheiros os bens por eles
adquiridos na constância da união es-
tável, a título oneroso, independente-
mente de prova de esforço comum.
Entretanto, não há de existir o rigor do
Série Cadernos do CEJ, 20
regime de bens por comunhão, como
no casamento, de caráter imutável até
que este se dissolva. Chega-se à con-
clusão de que, na união estável, o me-
lhor instituto para justificar essa espé-
cie de comunhão patrimonial é o con-
domínio (não o de mãos juntas).
Pelo art. 1.738, admite-se, no
Projeto sob estudo, que os companhei-
ros requeiram ao juiz a conversão de
sua união estável em casamento, com
o conseqüente assento no registro ci-
vil. Nesse caso, a determinação da
lavratura desse assentamento dispen-
sará o processo de habilitação para o
casamento. Isso, sem muita facilitação,
porque a matéria estará sob os cuida-
dos do Poder Judiciário, que tomará
todas as cautelas para evitar eventuais
simulações.
NOTAS
1 Comissão elaboradora e revisora: Miguel
Reale (Presidente), José Carlos Moreita Alves,
Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes,
Ebert Vianna Chamoum, Clóvis do Couto e Sil-
va e Torquato Castro.
2 Comissão de dez Senadores, com seus
Suplentes, sob a coordenação dos Senadores
Ronaldo Cunha Lima (Presidente), José Ignácio
Ferreira (Vice-Presidente) e Josaphat Marinho
(Relator-Geral).
3 O Relator do Projeto é o Deputado Anto-
nio Carlos Biscaia.
4 Código Civil, Projeto de Lei da Câmara n.
118, de 1984, Redação Final, Senado Federal,
Brasília, 1997, p. 30 e 31.
ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO: Profes-
sor da Universidade de São Paulo, da
Universidade Mackenzie e da Fundação
Armando Alvares Penteado – FAAP.
VÍCIOS DE CONSENTIMENTO: FRAUDEHUMBERTO THEODORO JÚNIOR
Discorrerei sobre os vícios de
consentimento, os vícios ou os
defeitos do negócio jurídico,
especialmente para a fraude, ponto que
reputo vulnerável e equivocado no tra-
tamento do Projeto, porque este foge
da linha do Código de 1916, adotando
como núcleo o negócio jurídico em vez
do ato jurídico – uma tendência de in-
fluência germânica de valorizar como
fato principal, no mundo do Direito Pri-
vado, o negócio jurídico. E tem do ne-
gócio jurídico a idéia de um fenômeno
que, embora seja espécie do gênero
fato jurídico, a noção de espécie é
aquela em que a vontade se manifesta
como o fator mais importante na
delineação dos efeitos jurídicos. O ne-
gócio jurídico é aquele evento que pro-
vém da vontade humana, não de qual-
quer uma, mas sim de uma livre, autô-
noma, em que a regulamentação e a
própria definição dos efeitos se apre-
sentam como o produto da vontade.
O ato jurídico, assim, seria um
subgênero dentro do fato jurídico ge-
ral, que abrangeria, dentro dessa teo-
ria, o negócio jurídico como ato de pura
produção da autonomia da vontade e
o ato jurídico em sentido estrito, que é
aquele ato de vontade vinculada, de
uma vontade não-autônoma, em que
o resultado é muito mais ex lege, ou
seja, muito mais imposto pela lei do
que propriamente pela vontade do
agente. Essa diferença manifesta-se,
por exemplo, entre um contrato e o seu
cumprimento – o pagamento.
Enquanto o contrato expressa
a vontade, o pagamento é ato imposto
pela lei depois que o contrato existe,
de tal maneira que, embora o pagamen-
to possa ser voluntário na sua realiza-
ção, muitas vezes, haverá a coação,
ou seja, sanção estatal para que o pa-
gamento se dê de forma forçada.
Em linhas gerais, isso é a sepa-
ração, a qualificação e a classificação
que predominaram no Projeto, dando
realce ao negócio jurídico como o es-
pelho da autonomia de vontade no
mundo do relacionamento privado
patrimonial.
O capítulo que nos interessa é,
dentro do negócio jurídico, verificar a
sua higidez ou a presença de defeitos
que possam comprometer sua valida-
de ou eficácia. O Projeto está, nesse
ponto, atrasadíssimo, porque simples-
mente cuida de sistematizar a validade
e a nulidade. Não conhece – pelo me-
nos de forma sistemática – o fenôme-
no da ineficácia, que foi largamente de-
senvolvido no século XX com raízes
no século XIX.
O ato, fenômeno ou negócio ju-
rídico, em sentido estrito, realiza-se e
projeta-se em vários planos, não ape-
nas no da validade ou invalidade. Pri-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
meiramente, o negócio se passa no pla-
no da existência, do ser, onde não se
tem uma preocupação imediata com
o efeito, de modo que, antes de ter efei-
to jurídico, uma vontade existe como
vontade, como fenômeno da nature-
za. Onde não há vontade, não se pode
falar em nulidade, pois o ato inexiste.
Porém, declarada a vontade
com o propósito de atingir um efeito,
temos de passar para o segundo pla-
no; materialmente ela existe. Essa von-
tade foi manifestada em condições de,
substancialmente, atingir a qualidade
de negócio jurídico? Nesse caso, a res-
posta pode ser afirmativa ou negativa.
Com relação ao alienado mental e à
criança, por exemplo, não se pode di-
zer que não têm vontade; eles a têm,
mas é irrelevante para o Direito o ato
de uma criança de dez, doze anos,
comprar um objeto. Vontade houve e
se tentou produzir efeito para aquela
vontade, mas a ordem jurídica declara
que o negócio jurídico, para ser váli-
do, exige agente capaz. Então, não
basta a vontade, o ato material de que-
rer, é preciso querer com o benepláci-
to da ordem jurídica, para que a von-
tade entre no plano da validade. O pla-
no da validade é aquele em que, teori-
camente, abstratamente, uma vontade
declarada teria aptidão para produzir,
no momento ou no futuro, a eficácia,
o efeito desejado.
O defeito ou vício de faltar um
elemento substancial na declaração de
vontade pode conduzir a uma falta
completa desse elemento ou afetar
apenas a existência perfeita. Ou seja,
o elemento essencial existe, mas con-
taminado de alguma deficiência que
pode levar a parte prejudicada a con-
testar, a fim de anular, desfazer o ne-
gócio.
O problema ou o fenômeno da
validade admite graus; o negócio pode
ter uma inaptidão completa para pro-
duzir qualquer efeito, ou uma aptidão
para produzir efeitos condicionados à
não-impugnação da parte prejudicada.
Quando a parte prejudicada puder le-
vantar o defeito do elemento formador
do contrato, ou do negócio jurídico,
para dele se liberar em nome desse ví-
cio, teremos então a nulidade relativa,
ou a anulabilidade, que é um vício de
formação do negócio jurídico, intrín-
seco – porque está dentro da vontade
declarada, do ato constitutivo do ne-
gócio jurídico.
Depois desses dois defeitos, os
únicos aos quais o Código se refere são
a nulidade e a anulabilidade, que são
graus de um mesmo fenômeno, e a va-
lidade, que é a exigência daqueles re-
quisitos essenciais para declarar o ato
válido. O Projeto do Código não tem
uma palavra sistemática – como acon-
tece, por exemplo, com o Código atu-
al da Itália e os Códigos modernos –
Série Cadernos do CEJ, 20
sobre o fenômeno que é do terceiro
plano: o da eficácia. Pode muito bem
um negócio ser, existir, valer e não pro-
duzir efeitos, ou não produzir certos
efeitos, ou não produzir efeito algum
no momento. É esse fenômeno que é
chamado de fenômeno da eficácia e
dentro dele é estudado, hoje, no Direi-
to Comparado, dentro do Direito Civil,
o problema da fraude.
Quando se elaborou, no sécu-
lo passado, o Código Civil – de
Beviláqua –, o tema da ineficácia era
muito pobre, pouco desenvolvido e
não constava de nenhum precedente
normativo; existia alguma referência
especulativa em doutrina apenas, e ain-
da não consolidada. Justifica-se, então,
que Beviláqua tenha dado à fraude o
rótulo de anulabilidade porque, pelo
sistema que conhecia de defeitos de
negócios jurídicos, era o que estava à
disposição; aliás, não veio dele esse
rótulo de anulabilidade, e sim de
Teixeira de Freitas, mas ele aproveitou
e encampou a idéia. Via-se logo que o
Código de Beviláqua não queria dar a
esse tipo de nulidade a anulabilidade
da fraude contra credores, uma exten-
são igual à da anulabilidade comum,
porque, ao regular a fraude, a preocu-
pação do legislador era criar um artigo
específico para dizer qual era o efeito
daquele tipo de anulação, quando já
existiam, na parte introdutória de to-
dos os vícios, de todos os defeitos –
nos artigos que tratavam da nulidade,
genericamente –, o efeito da nulidade
e o da anulabilidade, que era o retor-
no ao estado anterior.
Quando se chegou na fraude,
como não era isto o que queria e nun-
ca quis o legislador que cuida da frau-
de, colocou-se um dispositivo que di-
zia que os efeitos da anulação por frau-
de manifestar-se-iam fazendo com que
o bem voltasse para o acervo sobre o
qual se exerceria o direito dos credo-
res prejudicados.
O legislador não estava man-
dando voltar ao status quo, devolver o
bem ao vendedor, ao alienante, ao de-
vedor fraudulento, e sim colocá-lo à
disposição dos credores, e a legislação
posterior, encontrando sistematizado o
fenômeno da ineficácia, abandonou
totalmente a idéia de anulabilidade,
como aconteceu no Código de Proces-
so Civil de 1939, quando se cuidou da
fraude de execução, dispondo-se sim-
plesmente, que o bem alienado em
fraude à execução continuava sujeito
à responsabilidade patrimonial. Em
1945, a Lei de Falências cuidou da ação
revocatória – que, sabidamente, é uma
ação pauliana, da mesma natureza da
fraude contra credores do Código Ci-
vil, apenas emoldurada no quadro da
quebra do comerciante – e também
não adotou o princípio da
anulabilidade; pelo contrário, foi mui-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
to clara, dizendo que os bens, naque-
las condições dos arts. 52 e 53, são
alcançáveis pela arrecadação, pela fa-
lência. No art. 52 está expressamente
disposto: Não produzem efeitos relati-
vamente à massa... e o art. 53 dispõe:
São também revogáveis, perante a mas-
sa..., como se o também estivesse a
indicar que é coisa da mesma nature-
za do art. 52, com uma diferença: o
art. 52 é objetivo, não exige consilio
fraudis e, no art. 53, a revogação im-
porta em valorizar o consilio fraudis.
Pontes de Miranda, escrevendo
a respeito dos dois institutos sobre a
ação pauliana e a Lei de Falências, dis-
se que o legislador poderia optar por
uma anulatória em um instituto, em um
corpo normativo, e, pela ineficácia em
outro corpo, dentro do mesmo
ordenamento jurídico, e que isso não
representaria maior contradição, e o
intérprete não poderia, portanto, ler
ineficácia onde o legislador declarou,
textualmente, anulabilidade.
Data maxima venia do grande
mestre, essa óptica é inaceitável. O tipo
jurídico é um tipo científico; uma cate-
goria jurídica é uma categoria científi-
ca. Não é o rótulo dado pelo legislador
que define a natureza, o tipo ou a cate-
goria. São dados de lógica, filosóficos.
O cientista descobre o tipo, a catego-
ria. O que o legislador pode fazer são
conceitos, mas, dentro deles, o cien-
tista descobre a natureza da coisa, a
sua essência, que não pode ser muda-
da pelo legislador.
Então, se o legislador só conhe-
ce duas palavras, duas idéias, dois con-
ceitos, procura jogá-los dentro das idéi-
as de que dispõe; isso não impede que
o cientista, o jurista, descubra uma di-
ferença entre um instituto e outro, am-
bos sob o mesmo rótulo. O nosso Có-
digo de 1916 não tem uma palavra a
respeito da decadência, mistura deca-
dência e prescrição. E quem é o au-
tor? O Tribunal, que não faz, a todo
instante, a distinção entre decadência
e prescrição? Diremos, então, que no
Direito Civil brasileiro não existe deca-
dência, porque o codificador não teve
a coragem de enfrentar os dois institu-
tos e distingui-los; o mesmo na fraude:
o legislador pecou em relação à siste-
matização, não usou o termo ineficá-
cia, mas fez tudo para dizer que o ato
de alienação do devedor que prejudi-
casse os seus credores seria um ato
inoponível aos credores, porque estes
poderiam continuar a penhorar o ob-
jeto, pois o devedor ultrapassou o li-
mite da disponibilidade, ofendeu a ga-
rantia dos credores e aquele terceiro,
que com ele negociou, assumiu o ris-
co de ter de suportar, no seu
patrimônio, uma responsabilidade por
dívida alheia. Isso não tem nada de
nulidade, de anulabilidade, é um fenô-
meno até muito mais processual do
Série Cadernos do CEJ, 20
que de Direito Civil, embora não de-
fenda a separação rigorosa entre insti-
tutos dos ramos civil e processual. Pen-
so ser o ordenamento jurídico um todo
e essa separação de setores, caso te-
nha influência na essência de alguns
institutos, não tem repercussão nenhu-
ma no conjunto total chamado
ordenamento jurídico, onde tudo tran-
sita de um segmento a outro, e um não
pode dispensar o outro para atingir a
finalidade comum, que é a paz social,
a manutenção da ordem jurídica e do
império da lei.
O fenômeno da responsabilida-
de patrimonial é um fenômeno defen-
dido por Carnelutti para o processo,
porque esta, embora prevista no Direi-
to Material, só atua quando há o
inadimplemento, a violação do direito
subjetivo material. A responsabilidade
patrimonial, que é a sanção prevista
pelo ordenamento jurídico para o
descumprimento das obrigações, não
é dada ao particular, não é disciplina-
da pelo Direito Privado; é dada ao Es-
tado, que a exerce por meio da jurisdi-
ção, exclusivamente. Só a jurisdição
pode expropriar bens do devedor, pe-
netrar no esquema do patrimônio pri-
vado, para cumprir forçosamente a
execução.
O que faz o Projeto a respeito
deste instituto importantíssimo, que é
a fraude contra credores? Copia, ipsis
litteris, os artigos do Código de 1916;
não muda uma palavra e continua ig-
norando a ineficácia, que já aparece
em outros códigos mais modernos,
como no da Itália, como um instituto
separado, catalogado, sistematizado –
genericamente – e depois adotado,
caso a caso. Aqui não temos a previ-
são genérica da ineficácia dentro do
Projeto nem na hora de aplicar o prin-
cipal instituto que interessa à ineficá-
cia – a fraude. Não temos a sua ado-
ção, especificamente; pelo contrário,
o legislador diz que é anulável o ato de
disposição de bens do credor insolven-
te. Repete tudo o que estava no Códi-
go de 1916 e que acarretou, para a
doutrina e jurisprudência, um trabalho
hercúleo durante esses quase cem
anos.
A jurisprudência foi, aos pou-
cos, firmando-se no sentido de que,
embora esteja escrito nulidade ou
anulabilidade no capítulo da fraude, o
que realmente existe ali é uma ineficá-
cia. O Superior Tribunal de Justiça, em
vários acórdãos, já disse isso. Os Tri-
bunais de São Paulo, tanto o de Justi-
ça como os de Alçada Civil, também
já decidiram assim.
Cândido Dinamarco publicou
no seu livro “Fundamentos do Direito
Processual” um capítulo defendendo a
natureza de ineficácia na fraude con-
tra credores no Direito Brasileiro.
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
O Prof. Yussef Cahali escreveu,
em um de seus Trabalhos Monumen-
tais, “As Fraudes no Direito Brasileiro”,
que não há diferença substancial en-
tre ação revocatória e ação pauliana, e
que tudo conduz à mesma fraude con-
tra a execução; trata-se da mesma coi-
sa. É prejuízo para o credor, com cria-
ção de insolvência para o devedor. Isso
tem de ser resolvido pelo mesmo sis-
tema, pelo mesmo mecanismo. Não
são as palavras inadequadas, imprópri-
as do legislador, que mudam a nature-
za da coisa.
O Desembargador Nelson
Anada publicou um livro sobre ação
pauliana, defendendo a mesma tese;
modestamente, já escrevi também a
minha, de Titular de Direito Processual
Civil Multidisciplinar, em que analiso a
natureza da sentença pauliana, a par-
tir da natureza do fenômeno civil da
fraude.
E, agora, teremos de enfrentar
uma lei nova, repetindo as idéias de
um Código caduco, dando a idéia de
que o legislador do século XXI está
voltando ao século XIX, pois está usan-
do, depois de todos esses esclareci-
mentos e debates, uma nomenclatura
totalmente superada, para enfrentar um
problema surrado, cansado, do dia-a-
dia dos tribunais e juízes, que pensa-
vam estar saindo dessa angústia, mas
terão de voltar a ela, e fazer uma cria-
ção pretoriana para corrigir o erro
palmar, grosseiro, do legislador.
A observação de Pontes de
Miranda de que o Código ignorou a ine-
ficácia é, mais uma vez – repito –, ina-
dequada, porque a ineficácia está den-
tro do Código a todo instante, sem esse
rótulo. O que se diz, por exemplo, a
respeito da hipoteca? A hipoteca não
registrada vale entre as partes, mas não
perante terceiros. Esse é o fenômeno
da ineficácia, que é o negócio ser váli-
do entre seus agentes, mas não pro-
duzir, no exterior, todo o efeito deseja-
do pelo agente. Na Parte Geral do ato
jurídico do Código de 1916, está dito
que o contrato é de efeito relativo às
partes, não atingindo terceiros, se não
levado ao cartório de registro de títu-
los e documentos; trata-se de uma ine-
ficácia perante terceiros. A doutrina diz,
com relação a contratos firmados por
uma pessoa que, no sistema do Códi-
go Civil, venda ou prometa vender, duas
vezes, o mesmo objeto a pessoas dife-
rentes – contrato de compra e venda –
, que eles não são nulos, nem sequer
anuláveis; são contratos válidos e tra-
ta-se de dois contratos sobre o mesmo
objeto. Quando o segundo ou o tercei-
ro comprar o objeto e receber a tradi-
ção, adquirirá a propriedade, pois os
dois ou os três contratos anteriores
valiam entre as partes, mas não eram
eficazes perante o outro comprador
Série Cadernos do CEJ, 20
que, de boa-fé, comprou do proprietá-
rio, que, como tal, podia vender o bem.
E, assim, encontramos a inefi-
cácia dispersa no Código. A obrigação
condicional, em que o devedor e o cre-
dor ajustam um contrato perfeito, com
todos os elementos essenciais, obser-
vando a fórmula, vinculando-se, é um
contrato que existe, mas não produz
nenhum efeito, enquanto não aconte-
cer o evento futuro e incerto previsto
como condicionante; trata-se de um
negócio válido, sem eficácia. Portanto,
nada impede o intérprete de procurar,
em cada figura, em cada instituto do
Código, a sua verdadeira natureza,
mesmo que o legislador não use a ex-
pressão adequada, científica, técnica.
Não tenho o propósito de de-
molir esse Projeto. Ele tem grandes
avanços, mas também vícios, defeitos,
que nasceram, principalmente, da de-
mora, da sua desatualização em rela-
ção ao progresso da ciência do Direito
e, mais ainda, do progresso da própria
vida em sociedade, que adquiriu um
ritmo de velocidade jamais sonhado e
imaginado pela humanidade, o qual faz
com que coisas e institutos tornem-se
obsoletos, quase num piscar de olhos.
O que acontece, fatalmente,
com um Projeto que foi redigido antes
do computador? Quanta coisa aconte-
ceu no mundo negocial, na família, nas
relações internacionais, nas relações
privadas, na concepção dos próprios
direitos subjetivos, depois que esse
Projeto foi elaborado?
Tomo como parâmetro o tópi-
co que me foi destacado para abordar
e demonstrar que aqui, nos defeitos do
ato jurídico, o Código, por exemplo,
avançou tremendamente no campo da
simulação da fraude contra a lei, no
campo da lesão, no campo do estado
de perigo. Mas, houve uma
“claudicância” gigantesca num institu-
to de aplicação imediata, como é a frau-
de, conservando um instituto do sécu-
lo XIX, com efeito até retroativo por-
que não corresponde nem ao estágio
do momento da jurisprudência.
Teixeira de Freitas adotou a no-
menclatura de anulabilidade e foi pa-
rar no Código argentino, o qual, há trin-
ta anos, foi reformado justamente para
que fosse retirado esse anacronismo,
que era a anulabilidade da fraude, adap-
tando-se à linguagem do Código italia-
no, falando expressamente em ineficá-
cia, em inoponibilidade aos credores.
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR: Pro-
fessor da Universidade Federal de Mi-
nas Gerais.
O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NOS CONTRATOSANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO
Discorrerei sobre a boa-fé obje-
tiva, uma espécie de compor-
tamento exigível juridicamen-
te – no caso da nossa conferência, a
dos contratantes.
Não se confunde essa boa-fé ob-
jetiva com a subjetiva que conhecemos
de longa data no Direito Brasileiro, a
qual não representa nenhuma novida-
de.
A boa-fé subjetiva, começando
pelo que é conhecido e sabido, é uma
espécie de conhecimento ou desconhe-
cimento – portanto, algo psíquico nas
pessoas – que o Direito considera es-
pecialmente no campo dos direitos re-
ais. A boa-fé no usucapião encurta o
prazo. A boa-fé na questão de frutos
dá direito ao possuidor sobre frutos,
no caso das benfeitorias, e assim por
diante. Esta boa-fé é um estado de es-
pírito que, naturalmente, entra no su-
porte fático para aquisição de direitos,
principalmente direitos reais.
A boa-fé do nosso tema, é a ob-
jetiva, uma espécie de comportamen-
to, poderíamos dizer, de correção, no
caso, entre contratantes, ou até entre
pré-contratantes na fase, portanto, de
tratativas.
Esta boa-fé objetiva não repre-
senta uma novidade de momento. É,
na verdade, algo que já vem há um
século aproximadamente sendo estu-
dado e explorado na doutrina estran-
geira, especialmente na doutrina ale-
mã.
Então, convém destacar histo-
ricamente a questão da boa-fé objeti-
va. Fá-lo-ia – porque isso vai importar
para o Projeto de Código Civil – da se-
guinte maneira: até o final do século
XIX, o paradigma que nós, juristas, tí-
nhamos para resolver os problemas era
o da lei. Quando emprego essa pala-
vra “paradigma”, não estou entrando
num certo modismo – tenho um pou-
co de repulsa em falar determinadas
palavras que caem no goto do público
e começam a ser usadas e abusadas
na linguagem. Estou falando em
paradigma num sentido bem preciso e
é no sentido geral da ciência. Há um
historiador das ciências que usa a pa-
lavra “paradigma” dizendo que é uma
espécie de modelo de problema e de
solução que uma determinada área do
conhecimento tem numa certa época.
Esse historiador do Direito sustenta que
as ciências evoluem por mudanças de
paradigmas. Ele ensina que, durante
um certo tempo, aquele grupo de pes-
soas dedicado a um certo campo do
conhecimento utiliza um modelo de
solução para os problemas.
Então, nesse tipo de pensamen-
to, exemplificando, no caso das ciên-
cias exatas, teríamos tido a Física de
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
Aristóteles durante muito tempo, vin-
do depois Newton, que mudou o
paradigma da Física e, hoje, o de
Einstein, com a Teoria da Relatividade.
Na Geometria, teríamos a Geometria de
Euclides e, depois, a Geometria não-
euclidiana. Na Biologia, teríamos o
paradigma antes de Mendel e da Gené-
tica e, atualmente, temos o da Genéti-
ca. Talvez, até mais importante que
tudo, teríamos tido um paradigma na
história das ciências antes de Darwin e
outro depois de Darwin, com a Teoria
da Evolução. Esse pensamento geral
das ciências pode perfeitamente – e
deve, no meu modo de entender – ser
passado para o campo do Direito, que
também é uma ciência.
O paradigma, até o final do sé-
culo XIX, era o da lei propriamente. Os
nossos pais certamente aprenderam
nas faculdades de Direito que, quando
há um conflito, algum problema, a so-
lução está na lei. E essa lei era rígida,
de certa maneira universal, geral, e não
deveria haver distinções de grupos,
pois a lei era para todos. Essa lei deve-
ria ter uma facti species, uma hipótese
legal muito precisa, porque o papel do
juiz era justamente o de aplicar a lei
de uma maneira automática, silogística.
Como dizia um autor antigo, “o juiz ti-
nha um papel passivo”.
Esse paradigma da lei entrou
em crise no final do século XIX por-
que, embora tenha obtido muito suces-
so em algumas circunstâncias, especi-
almente para o comércio jurídico, que
é um paradigma da lei que dá uma se-
gurança enorme para a população,
nesse jogo dos interesses de ordem
econômica e social, favorecia muito
um determinado tipo de pessoa – o em-
preendedor, o comerciante, por exem-
plo –, mas não favoreceu as classes
que se tornaram cada vez mais pobres.
Então, houve um problema de ordem
social que veio se refletir na primeira
metade do século XX.
Nessa primeira metade do sé-
culo XX, os juristas começaram a ques-
tionar de uma certa maneira o
paradigma da lei; e, então, tivemos
uma série de providências que o mun-
do do Direito foi tomando para que-
brar aquele sistema de ordenamentos
precisos e rígidos. O intuito era o de
dar mais poderes ao juiz. Assim, en-
contramos nesse período uma inflexão
do paradigma da lei para o juiz, o juiz
ativo. A maneira de dar poder ao juiz
corresponde, com o devido respeito ao
Poder Judiciário, a uma visão do Po-
der Judiciário como Poder, porque é o
tempo do Estado todo-poderoso. É cla-
ro que nem todos os países entraram
no esquema de um Estado totalitário.
Mas, mesmo naqueles que mantiveram
o Estado Democrático, a interferência
do Estado foi muito forte e, para isso,
o Estado, inclusive o juiz, como Poder,
Série Cadernos do CEJ, 20
precisava de instrumentos. E os instru-
mentos foram basicamente três,
legislativos, os conceitos jurídicos
indeterminados. Por quê? Porque es-
ses conceitos têm de ser concretiza-
dos pelo juiz. Então, o juiz, de uma
certa maneira, recebe uma delegação
de poder do Legislativo para integrar a
lei com os conceitos jurídicos
indeterminados. Já digo que a boa-fé
objetiva é um conceito jurídico
indeterminado porque significa pura e
simplesmente que as partes devem agir
com correção, e quem dirá o que é a
correção será o juiz. Portanto, o juiz
concretizará tal conceito, que é juridi-
camente indeterminado.
O segundo instrumento
legislativo desse período de mudança
de paradigma para o juiz é o chamado
“paradigma das cláusulas gerais”. É
justamente ainda a boa-fé. Quando
colocada em matéria contratual e quan-
do está dito, por exemplo, no art. 421
do Projeto de Código Civil que os con-
tratantes devem se comportar tanto na
conclusão quanto na execução do con-
trato com boa-fé, estamos diante de
uma cláusula geral, que é muito gené-
rica, justamente para abranger hipóte-
ses não topicamente previstas. Eu di-
ria que, no caso do Direito vigente bra-
sileiro, é tipicamente uma cláusula ge-
ral o art. 159 do Código Civil (da res-
ponsabilidade aquiliana ou
extracontratual), porque tudo aquilo
que não está previsto na parte especi-
al dos atos ilícitos, da liquidação por
atos ilícitos, no caso de morte ou le-
são etc., cai na cláusula geral do art.
159. Então, cláusula geral é um bom
instrumento para o juiz.
Com menos importância, diria
que também era uma técnica legislativa
da primeira metade do século atribuir
ao juiz uma certa discricionariedade na
escolha das sanções da parte de con-
seqüências do ato. Aí não há uma ter-
minologia tão clara quanto o conceito
jurídico indeterminado ou quanto à clá-
usula geral, mas Mengone, um grande
jurista italiano atual, usa a expressão
“livre apreciação do juiz”. Isso está
muito claro para nós.
Para exemplificar, no Estatuto
da Criança e do Adolescente, quando
o juiz pode escolher entre colocar a
criança na FEBEM e chamar os pais,
obrigando-os a assinar um compromis-
so, ou entregar a criança para um ter-
ceiro, que seria uma espécie de famí-
lia substituta, ele pode ter de atribuir
uma ampla gama de providências
àquela conseqüência. E mostro, dian-
te de um quadro de pensamento técni-
co, o seguinte: a propósito de uma re-
gra de Direito, “se ‘a’ é, segue-se ‘b’”,
o que quero dizer agora é que a parte
“segue-se ‘b’” é da livre apreciação do
juiz, enquanto que a primeira parte, “se
‘a’ é”, é aquela em que há o conceito
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
jurídico indeterminado. A cláusula ge-
ral, na verdade, abrange as duas coi-
sas: tanto a parte de hipótese quanto a
parte de exposição. Mas, nessas técni-
cas legislativas, isso era perfeitamente
possível.
Começo a fazer uma crítica ao
Projeto de Código Civil. O Projeto está
nesse paradigma do tempo do juiz. O
Prof. Reale claramente diz isso, não só
em conferências, como também escre-
veu sobre o assunto nas apresentações
do Projeto de Código Civil. Esse
paradigma leva a carrear os conflitos
ao Judiciário. Tenho a impressão de
que os momentos que estamos viven-
do não são de sobrecarregar o Poder
Judiciário, é o contrário. Digo, com
uma base histórica, que os alemães, a
propósito das cláusulas gerais e dos
conceitos jurídicos indeterminados,
chegaram até a escrever livros no sen-
tido de fuga para as cláusulas gerais,
para o conceito indeterminado, porque
naquele tempo estava-se saindo da lei
e fugindo para o juiz.
Hoje estamos fugindo do juiz,
porque o Poder Judiciário possui ques-
tões importantes a decidir e deve ficar
limitado aos problemas efetivamente de
ponderação de interesses, os casos
que poderíamos chamar de hard ca-
ses, casos difíceis. Questões simples
como uma rescisão que pode ser feita
por notificação ou mesmo anulações
de ato jurídico ou de negócio jurídico
– em vários países do mundo se faz
isso pelo aviso ou por notificação de
uma parte a outra – não precisam pas-
sar pelo Poder Judiciário.
Então, no meu modo de ver,
estamos mudando de paradigma.
Estamos correndo do juiz. E nisso o
Projeto de Código Civil é exatamente o
contrário dos tempos de hoje, ele está
no paradigma anterior, do começo do
século. Essa é uma crítica severa.
No caso da boa-fé – e agora vou
procurar esmiuçar um pouco este tema
–, como em outros conceitos que eram
do paradigma do juiz, verificamos que
o grande problema que afinal surgiu
depois de se resolver a mudança, sa-
indo daquela rigidez da lei geral e abs-
trata para todos, e atribuindo poder ao
juiz, foi a perda de uma certa seguran-
ça jurídica. Aquela espécie de arbitra-
riedade entregue às autoridades não foi
o ideal na vida prática. Então, procu-
rou-se caminhar para dar algum con-
teúdo àqueles conceitos vagos.
E fazendo um pouco de blague
com aqueles quatro famosos da Revo-
lução Cultural da China, Mao Tsé Tung,
a mulher e mais dois chineses, com-
pondo o bando dos quatro – também
tivemos o que chamo de “bando dos
quatro”, nesse período a que me refe-
ri, de reforço da atividade do juiz, de
Série Cadernos do CEJ, 20
poderes para o juiz, que eram os con-
ceitos de ordem pública, função soci-
al, interesse público e boa-fé. Com es-
ses quatro conceitos, o juiz poderia
decidir o que bem entendesse, ou seja,
podia declarar: Isso não pode valer,
porque vai contra a ordem pública, ou
Esse contrato entre “a” e “b” fere a fun-
ção social. Entretanto, ninguém definia
ordem pública, função social, boa-fé,
nem interesse público; e este último
seria o pior, porque continua a vigorar
até hoje com o mesmo caráter vago.
Leio muito em petições de ad-
vogados, até em artigos de doutrina,
que o interesse público prevalece so-
bre o privado. A frase não diz absolu-
tamente nada, porque não é verdade.
Às vezes a dignidade humana, que é
interesse privado, tem de prevalecer
sobre o interesse público. Então, não
é tão simples assim.
Essas quatro expressões são as
que sofrem uma espécie de tentativa
de ter um certo conteúdo. O que se
procura é acabar com o conceito
axiológico, vazio que está incluído nes-
ses quatro e dar diretrizes materiais
para o Judiciário e até para a autorida-
de do Poder Executivo. Verificamos cla-
ramente que o conceito de função so-
cial não vem mais na Constituição bra-
sileira de 1988 como vinha em 1967,
em 1969, ou até antes. Referido con-
ceito era um instrumento do fascismo
vigoroso na Itália e foi um instrumento
fortíssimo também no regime comunis-
ta, mas, no regime democrático e na
Constituição de 1988, já não vem ape-
nas como função social. Os arts. 182
e 186 da Constituição tratam da fun-
ção social em relação à rural e à urba-
na; ou seja, procura-se dar conteúdo.
O conceito de ordem pública
está em decadência. Estive num con-
gresso internacional de língua france-
sa e verifiquei que, no mundo inteiro,
o conceito de ordem pública está em
decadência. Não estamos sustentando
que não há mais leis de ordem públi-
ca. Evidentemente, há leis cogentes,
mas ninguém utiliza o princípio da or-
dem pública sem um certo conteúdo,
porque quando a lei diz que isso é as-
sim e não pode haver contenção em
contrário, tudo bem. Obedecemos à lei
e nem precisamos qualificá-la de or-
dem pública ou não, mas temos de
obedecê-la, sabendo que ela é cogente.
Hoje, no entanto, o princípio de ordem
pública empregado dessa maneira
axiológica, vazia, não está mais vigo-
rando no pensamento avançado da
doutrina civilista.
Na questão da boa-fé, algo mu-
dou. Quando a jurisprudência alemã
surgiu no começo do século XX pro-
curando enquadrar uma série de hipó-
teses de injustiças concretas por meio
da utilização da boa-fé, esse trabalho
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
levou a uma concretização da sua
idéia, que exige pelo menos quatro
pressupostos para que seja utilizada
pelo juiz.
O primeiro pressuposto que jus-
tifica, de uma certa maneira, a expres-
são boa-fé é a correspondência com
as expectativas criadas na outra parte.
Toda vez que alguém se comporta e
cria na outra parte uma série de ex-
pectativas, confiança – daí a palavra
fides –, temos o primeiro e importan-
tíssimo pressuposto: a expectativa.
Mas não basta para aquele que
vê as suas expectativas frustradas ape-
lar para um pedido de indenização ou
outro pedido qualquer de uma provi-
dência. É preciso que esse que tinha
expectativa tenha investido nela. É o
caso da questão da responsabilidade
pré-contratrual, por exemplo, em que
não há contrato e ninguém tem obri-
gação ou qualquer vínculo com o ou-
tro candidato ao contrato. Se o com-
portamento foi tal que criou uma ex-
pectativa, e se a pessoa que teve a ex-
pectativa gastar alguma coisa para fa-
zer o negócio, tal como contratar se-
cretária, perícia e assim por diante, e
depois, abusivamente, o possível con-
tratante romper as negociações, então
temos os dois pressupostos: expecta-
tiva mais investimento.
O terceiro pressuposto é que
seja uma expectativa fundada. O su-
jeito não pode ser um otimista
inveterado, como na história do meni-
no cujo pai não se conformava de ser
ele um otimista e o outro irmão sem-
pre um pessimista. No Natal, o pai dis-
se: Os dois acreditam em Papai Noel;
vou ver o que acontece. Para o meni-
no otimista o pai deixou umas coisas
nojentas, produto do intestino do ca-
valo, e deixou para o pessimista uma
bicicleta. Quando o pai acordou no dia
25, vieram os dois meninos, e o oti-
mista em vez de dizer: Papai, recebi
um resto de coisa do cavalo, disse:
Papai, ganhei um cavalo, só que ele
fugiu. Se o sujeito é otimista desse jei-
to, a expectativa não pode ser levada
em consideração. E o pior é que o pes-
simista quando recebeu a bicicleta dis-
se: Ih, o pneu já está furado. Bom, tudo
isso para mostrar que a expectativa
tem de ser fundada e séria.
Por fim, como quarto pressu-
posto, é preciso que a causa da ex-
pectativa tenha alguma ligação com a
outra parte. Assim, se juntarmos esses
quatro pressupostos, uma ruptura, por
exemplo, das negociações prelimina-
res pode levar à indenização.
Lembro-me dos conterrâneos
da Profa. Judith Martins Costa, particu-
larmente o Ministro Ruy Rosado de
Aguiar e, em homenagem a ela, vou
relatar um caso citado em seu livro
Série Cadernos do CEJ, 20
mostrando bem o que acabo de dizer
sobre responsabilidade pré-contratual.
Era parte a Companhia CICA, que,
como sabemos, é conhecida no Brasil
inteiro como sendo fabricante de mo-
lho de tomate. Essa companhia costu-
mava comprar anualmente safras de
tomates dos agricultores do Rio Gran-
de do Sul. No momento da safra, os
produtores agrícolas compram e têm
plena liberdade para tanto, mas, neste
caso específico do Rio Grande do Sul,
a Companhia CICA, em um determina-
do ano, com interesse de ter tomate
de boa qualidade, distribuiu as semen-
tes para os agricultores gratuitamente;
portanto, criou a expectativa neles de
que a safra de tomates seria compra-
da por ela. Porém, no momento em que
os tomates já estavam produzidos, re-
cusou-se a comprá-los, dizendo que não
tinha prometido fazê-lo, pois estava em
dificuldades, e não era aquele um bom
ano.
Os produtores, no entanto, ha-
viam se fiado naquela situação, e vári-
os deles entraram com ações nos tri-
bunais do Rio Grande do Sul; há pelo
menos quatro delas, todas julgadas
procedentes a favor dos agricultores,
em que foi reconhecida a responsabili-
dade pré-contratual, e há uma em que
o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, espe-
cialmente, reconheceu que era um
caso da regra da boa-fé objetiva, por-
que, embora não houvesse contrato,
foram criadas expectativas, pela outra
parte, que tinham razão de ser, e hou-
ve investimento. Eis os quatro pressu-
postos.
Há mais um conceito vazio em
que a própria doutrina fixou algum con-
teúdo. Quanto a este ponto, estou di-
zendo que mudou o paradigma, por-
que não estamos entregues completa-
mente de mão amarradas, em uma es-
pécie de cheque em branco dado ao
juiz, por meio desses conceitos
indeterminados, especialmente do ban-
do dos quatro.
No caso do Projeto de Código
Civil, infelizmente não há essas diretri-
zes. O Projeto limita-se a dizer que os
contratantes devem comportar-se se-
gundo a boa-fé. Os Códigos modernos
trazem as diretrizes. O Código Civil ho-
landês, em edição trilíngüe inglês/fran-
cês/holandês, ao contrário do que al-
guns defensores do Projeto de Código
Civil têm dito, não foi feito como o Pro-
jeto de Código Civil brasileiro; está cer-
to que é um Código moderno, no sen-
tido de atual, de 1992, no seu início
de vigência, mas não posso deixar de
salientar que aqueles que estão ape-
lando para esse Código, dizendo que
países avançados têm feito Código Ci-
vil, estão de certa maneira induzindo
ao erro a platéia, porque ele foi feito
em vários projetos de lei – esse ponto
é importantíssimo.
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
O Código Civil holandês tem
oito livros, cada qual, um projeto de
lei. As deliberações do Parlamento co-
meçaram em 1954, com a introdução
ao Projeto de Código Civil, e prosse-
guiram em 1960, 1962, 1968 e 1972;
cada vez se discutia um livro: O Livro
das Pessoas, o Livro das Pessoas Jurí-
dicas, o Livro da Família, o Livro das
Sucessões e o Livro das Obrigações e
dos Direitos Reais, que foram discuti-
dos juntos, como o direito patrimonial,
mas cada um foi um projeto de lei.
Naturalmente, não vamos po-
der dizer tudo o que se tem a dizer,
mas o que importa é que há muita con-
fusão nas discussões sobre
microssistema, descodificação etc. O
Ministro Moreira Alves fala que há pes-
soas defendendo a descodificação, e
isso não é a orientação dos holande-
ses. Esclarecemos quanto a esse pon-
to.
O grande problema de quem
critica o Projeto de Código Civil é que
o mesmo não foi amplamente discuti-
do pela sociedade e nem pode sê-lo,
nas condições em que vivemos hoje,
porque se levanto uma objeção, como,
por exemplo, “na parte relativa à frau-
de, o Código está atrasado”, outro pro-
fessor diz que, “na parte relativa à união
estável, não é assim”, e outro, diz que
“o nascituro não foi contemplado”, são
temas distintos, porque o Projeto de
Código Civil vai de A até Z com mais
de dois mil artigos, tratando de todas
as matérias. O que está fora de época
é justamente tratar de todos os assun-
tos.
Os holandeses não fizeram
isso, mas discutiram, durante dois
anos, família; depois, nos dois anos
seguintes, sucessões; mais dois anos,
pessoa jurídica; mais quatro anos, obri-
gações. Isso é o que chamo de códi-
gos temáticos, para evitar confusão. O
Ministro Moreira Alves fala em
microssistema; contrariamente a S.
Exa., o Professor Amaral diz que
estamos na idade da descodificação.
O ponto verdadeiro, no meu
modo de ver, é que não estamos em
uma época de descodificação propria-
mente, mas também não estamos em
uma época de um Código Civil unitá-
rio, completo, com todos os assuntos.
Como está no Código Civil holandês,
há projeto por projeto; depois de dis-
cutido, carimba-se e põe-se Código Ci-
vil em cima, mas não se trata de um
Código Civil discutido de ponta a pon-
ta, como se fala no Projeto de Código
Civil, tanto que consta aqui “Código
Europeu de Contratos”. O que os eu-
ropeus estão fazendo nesse conjunto
de países que é a União Européia? Es-
tão discutindo um código temático ape-
nas de contratos, como depois se pode
fazer um Código de Família, ou, um
Série Cadernos do CEJ, 20
Código da Pessoa jurídica, incluindo-
se associações, fundações etc.
O problema nem é um
fracionamento um pouco anárquico de
se falar em descodificação com
microssistemas – isso me dá a impres-
são de pulverização, digamos, de tudo,
e também não é, como quer o Prof.
Reale e o Ministro Moreira Alves, um
projeto completo de muitos assuntos
que não permitem uma discussão; são
códigos temáticos. Estamos, portanto,
em outro tempo onde o Projeto de Có-
digo Civil ficou ultrapassado.
Terminando essa questão da
boa-fé, não há, em primeiro lugar, os
conteúdos que o mundo presente exi-
ge para os conceitos muito vagos; em
segundo lugar, trata-se de um proble-
ma de discussão do tipo de projeto que
não deveria ser completo, de ponta a
ponta.
Mas, no caso específico da boa-
fé, há uma grande insuficiência quan-
to aos momentos contratuais. Está cer-
to que, na linguagem comum, o con-
trato vigora daquele momento em que
é assinado até o momento final em que
é executado. Esse é o momento
contratual. O Projeto do Código prevê
isso como devendo ser o momento da
boa-fé dos contratantes. Porém, além
de tudo, ele é deficiente, porque não
trata do momento inicial, que é aquele
que eu dizia pré-contratual, nem do
momento posterior, chamado “pós-
contratual”.
Quanto à questão do pós-
contratual – tudo isso é matéria nova e
não vejo os assuntos explorados como
deveriam –, convém dizer, não costu-
mo ler em literatura jurídica brasileira
que há uma responsabilidade pós-
contratual e, no entanto, cito três exem-
plos que são tirados da doutrina ale-
mã e da portuguesa: em um deles, um
sujeito vendeu para outro um terreno
com uma vista bastante bonita para um
vale; nessa venda, o vendedor gabou
para o comprador que o imóvel tinha
aquela vista e que não a perderia por-
que era proibido construir em frente
ao terreno. Isso foi verificado pelo com-
prador, que fez o negócio jurídico e até
construiu, segundo a decisão, uma
casa que valia cinco ou seis vezes o
valor do terreno. Porém, depois que o
vendedor já havia recebido tudo e o
negócio estava completo, passada a
propriedade, ele foi à repartição, que
seria equivalente à nossa Prefeitura
Municipal, e lá conseguiu mudar o pla-
no de zoneamento, de forma que fos-
se permitido construir em frente ao ter-
reno que ele havia vendido. Então, ele
comprou o terreno em frente e fez uma
construção. Assim, o mesmo sujeito
que vendeu o lote gabando foi aquele
que depois frustou aquelas expectati-
vas do comprador de ter permanente-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
mente aquela vista. Não havia mais pro-
blema contratual, porque a compra e
venda estava feita e acabada, e a es-
critura, passada e registrada. Mas a boa-
fé é exigida como comportamento tam-
bém na fase pós-contratual. Então, te-
mos essa responsabilidade.
Exemplifico mais dois casos
para que fique bem evidente: uma con-
fecção fez cento e vinte casacos de pele
para uma butique. Naturalmente, tudo
foi acertado e pago, e o assunto foi
encerrado. Porém, quando a dona da
butique começou a vendê-los em um
shopping center, ela verificou, quinze
dias depois, que a butique vizinha es-
tava vendendo os mesmos casacos, ou
seja, o fabricante, a confecção, depois
que fez os casacos para ela, não teve
a boa-fé de não fabricá-los mais, pelo
menos para aquela loja que ele sabia
que era vizinha da outra. Então, houve
quebra da boa-fé.
Quanto ao terceiro caso, diz o
Ministro Moreira Alves não ser muito
claro. O terceiro caso é de um empre-
sário que resolveu construir um hotel
e precisava de carpete; procurou o
melhor preço e encontrou uma casa
que o vendia, mas não o colocava; fez
a compra e pediu à loja que indicasse
um colocador, a qual indicou um co-
nhecido, mas não lhe informou que o
carpete era de um tipo novo. O
colocador, pensando que se tratava de
um carpete comum, usou uma cola que
manchou o carpete inteiro do hotel.
Então, o empresário voltou-se contra a
casa comercial que vendeu o carpete,
porque ela teria, depois de tê-lo vendi-
do, agido de má-fé; ela deveria ter tido
mais cuidado, porque a boa-fé cria de-
veres para os contratantes. Então, te-
mos outro caso de responsabilidade
pós-contratual.
No Código de Defesa do Con-
sumidor, encontrei duas hipóteses que
não têm o nome de responsabilidade
pós-contratual, mas o são. Uma está
no art. 10 e a outra, salvo engano, no
art. 32; são as seguintes: trata-se da
empresa que vende, por exemplo, um
remédio ou um automóvel e verifica,
depois de algum tempo, que há um
perigo para o consumidor. Então, o
Código de Defesa do Consumidor obri-
ga justamente uma aplicação dessa
boa-fé pós-contratual, pois o fornece-
dor deve comunicar aos compradores
o risco que estão correndo, como no
caso do remédio ou do carro, como
vemos muitas vezes.
Então, em tese, poderíamos
pensar que o contrato está acabado,
pois o fornecedor já vendeu e recebeu,
e findou-se o contrato; seria o contrato
post pactum finitum, como dizem os
alemães, usando o latim. Há, nesses
casos, a responsabilidade pós-
contratual de comunicar o risco que
Série Cadernos do CEJ, 20
está havendo.
O segundo caso que vejo no
Código de Defesa do Consumidor diz
respeito àqueles produtos que saem de
linha. O Código determina que o fabri-
cante, por causa do valor ou do tipo
do produto, tem a obrigação de man-
ter durante algum tempo – mas não
fixa o tempo – peças sobressalentes.
Também é responsabilidade pós-
contratual.
ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO:
Professor da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
DIREITO CIVIL E CONSTITUIÇÃO. RELAÇÕES DO PROJETO COM A CONSTITUIÇÃO.
ROBERTO ROSASJUDITH MARTINS COSTA
A velha discussão se a Consti-
tuição deve ou não ser
detalhista não é o propósito
deste momento. A realidade é que te-
mos uma Constituição longa, exausti-
va, em que somente o art. 5º já é pon-
to de partida para inúmeras discussões
sobre todos os outros ramos do Direi-
to. Há também outros dispositivos re-
ferentes a assuntos como o Código Tri-
butário, que consta integralmente na
Constituição, a CLT e os direitos soci-
ais. O Direito Civil tem uma série de
implicações, as quais devem ser exa-
minadas à luz da Constituição, do Có-
digo e até em relação às influências
sobre o Projeto do Código Civil.
Fazemos uma abordagem gené-
rica sobre as relações do Projeto do
Código Civil e do Direito Civil com a
própria Constituição. Não se trata de
um estudo feito nem pelos professo-
res de Direito Civil, pelos civilistas, que
não vão à Constituição por não dese-
jarem entrar na seara alheia do Direito
Constitucional, nem pelos
constitucionalistas, que vêem esse dis-
positivo de natureza privada com um
cuidado imenso, com muito afastamen-
to. Ficamos, na verdade, sem um exa-
me mais aprofundado de temas muito
importantes. Na doutrina italiana, inclu-
sive, existe o chamado “Direito Civil
Constitucional”, dispositivos constituci-
onais que têm interferência no Direito
Civil, ou que extraem do próprio Direi-
to Constitucional o Direito Civil.
A primeira abordagem que fa-
remos é em relação ao direito à vida,
que a Constituição estabelece no art.
1º, e o que se entende por ser huma-
no. Daí em diante, chegaremos a ou-
tros aspectos que a própria Constitui-
ção exalta, que são aqueles direitos da
personalidade, os quais vão se proje-
tar em relação ao direito ao nome
como conseqüência da própria perso-
nalidade.
Celebrado pela Constituição no
art. 5º está o direito à imagem, que,
por vezes, a jurisprudência dos tribu-
nais de justiça – especialmente do Su-
perior Tribunal de Justiça – tem enfren-
tado à luz da reprodução de uma pes-
soa, da figura humana na fotografia,
no desenho, enfim, a utilização da ima-
gem de alguém sem autorização, como
uma projeção da própria personalida-
de. Portanto, trata-se do direito que te-
nho de não ser reproduzido ou ser apre-
sentado em qualquer lugar sem minha
autorização, porque aquilo está inseri-
do na minha personalidade.
Por sua vez, isso pode caracte-
rizar aspectos que contribuirão para a
desfiguração de uma determinada pes-
soa quanto ao caráter, à personalida-
de, à exposição, e, por isso, podería-
mos entender “imagem” não somente
como figura, como expressão corpo-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
ral, mas também como a projeção de
uma personalidade.
Desse direito de personalidade
permitir-se-á, também, o que a Consti-
tuição chama de “direito à intimidade”,
aquele em que a pessoa se mantém
reclusa, fora da projeção do debate
geral, daquilo que tem na sua intimida-
de, na sua vida privada, e, portanto,
não pode ser exposta de qualquer for-
ma à execração, ao debate e à exposi-
ção pública em referência àquilo que
não quer que seja levado adiante.
Então, vem a discussão sobre
quais são os limites dessa intimidade e
a proibição dessa exposição em rela-
ção aos homens públicos, que estari-
am fora dessa intimidade, quer seja a
do Presidente da República ao mais
modesto servidor público, quer seja a
do indivíduo em geral. O mais modes-
to servidor também tem a sua intimi-
dade que não pode ser conspurcada
e, por isso, está afastada da vida públi-
ca. O Presidente da República tem di-
reito de viver como quiser dentro da
sua casa, do Palácio, na intimidade
com a sua família; ninguém vai querer
saber o que faz, como vive dentro da
sua casa, como se veste, como se ex-
põe, se dorme no chão, sentado ou
na cama. Isso está interferindo com a
própria vida íntima da pessoa humana
que não pode ser atingida; portanto,
todos têm o direito a essa intimidade.
É importante observar – e isso
aparecerá no conjunto de todo o Pro-
jeto do Código Civil em geral, especial-
mente nos contratos – que a Constitui-
ção diz que a lei respeitará o ato jurídi-
co perfeito e a coisa julgada, especial-
mente em relação àquele.
Devemos examinar que o art.
5º, apesar de ter uma extensão talvez
inigualável em qualquer lei ou qualquer
instrumento legal no mundo, ainda, no
seu § 2º, que, a meu ver, é o mais im-
portante de todos, acresce: Além dos
direitos acima expostos, existem, tam-
bém, como direitos fundamentais,
aqueles inerentes aos princípios demo-
cráticos, à vida, ao comportamento, à
moral (...), e, daí em diante, cada um,
com bom senso, extrairá e colocará
aquilo que o Prof. Washington de Bar-
ros Monteiro dizia quando tratava do
desquite, que, no tempo em que se
chamava “injúria grave” aquilo que
todo bom advogado conseguia enqua-
drar como injúria grave. Não havia uma
definição para isso, qualquer aconteci-
mento no relacionamento conjugal
poderia ser enquadrado como injúria
grave. E aí está o § 2º do art. 5º para a
habilidade do jurista de conseguir co-
locar tudo aquilo que não foi colocado
acima.
Daí extrairemos uma série de
princípios que interessarão no relacio-
namento do Direito Privado, entre eles,
Série Cadernos do CEJ, 20
o relativo à boa-fé. Hoje se sente no
próprio Direito Constitucional que há a
interferência desse princípio da boa-fé,
que se vai projetar no relacionamento
humano, no administrativo e no públi-
co em geral: administrador e adminis-
trado ou na relação entre as pessoas
privadas e, também, na relação da pes-
soa jurídica de Direito Público com ati-
vidade privada em geral.
Em relação aos contratos, o
eminente Mestre Miguel Reale, ontem,
na sua exposição, fez uma série de
observações a partir do conceito de
função social que o contrato deve ter,
por isso, tiramos uma série de evolu-
ções sobre a natureza contratual, mas,
antes de mais nada, o contrato sairá
daquela idéia do pacta sunt servanda,
de uma relação que alguém de mais
força tenha sobre outro, e impõe de-
terminadas condições sobre uma par-
te contratante. Aquilo que sempre se
diz da igualdade das partes contratan-
tes é uma certa ficção, porque, em ge-
ral, no contrato há um mais forte que
diz ao outro que deve aceitar aquelas
determinadas cláusulas e imposições,
principalmente se tiver dinheiro no
meio; quem o tiver é que dirá ao outro
como deve celebrar aquele determina-
do contrato sob pena de não obter o
numerário.
Mas há um aspecto do art. 5º
muito importante para o contrato que
é aquele relativo ao devido processo
legal. No Brasil, hoje, principalmente
no Direito Público, fala-se muito no de-
vido processo legal, principalmente a
partir de 1988, se bem que algumas
decisões judiciais anteriores àquele ano
já abordavam a respeito do devido pro-
cesso legal como uma cópia da Cons-
tituição americana, do the due process
of law.
Mas, no Brasil, há uma idéia do
devido processo legal processual,
quando, na verdade, a idéia america-
na é o devido processo legal substan-
cial. O sistema americano começou
com o devido processo legal proces-
sual, ou seja, o direito das partes em
um processo, igualdade das partes, di-
reito ao contraditório, à prova, à moti-
vação da sentença. Mas esse sistema
evoluiu para muito mais, e, o que hoje
domina, é o devido processo legal
substancial. Entram aí dois princípios
importantes: o da razoabilidade e o da
proporcionalidade. Ora, o que é razoá-
vel e o que é proporcional? Que ato é
razoável, que pode ser praticado e ser
entendido? E que ato é proporcional a
uma determinada situação?
Isso é, na verdade, no Brasil,
uma doutrina nova, os tribunais, prin-
cipalmente o Supremo Tribunal Fede-
ral, têm enfrentado o devido processo
legal substancial, e o próprio Superior
Tribunal de Justiça possui acórdãos tra-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
tando dessa matéria.
O que nos interessa para o con-
trato? Ele terá de ser examinado, tam-
bém, à luz do devido processo legal
substancial quanto à razoabilidade das
cláusulas, das obrigações, dos direitos
e quanto à proporcionalidade de obri-
gações e direitos decorrentes de um
determinado contrato, permitindo, por-
tanto, ao juiz que se faça esse exame
segundo o devido processo legal. Não
é “o processual”, como já estávamos
frisando, mas com muito mais impor-
tância para um exame daquilo que foi
estabelecido pelas duas partes.
Em relação à responsabilidade
civil, a Constituição avançou num ter-
reno que se discutia muito – pratica-
mente, em 1988, já estava desapare-
cendo a discussão –, qual seja, dano
moral. Este veio de longe; quando veio
o Projeto do Código Civil, em 1902,
escreveram dizendo que o projeto Cló-
vis Bevilácqua era velho e, portanto,
ele já estava ultrapassado porque não
tratava de dois assuntos: um, não tra-
tava do dano moral; outro, não tratava
do abuso de direito. E o Clóvis
Beviláqua escreveu um livro enorme,
como os muitos que o Prof. Miguel
Reale já escreveu para poder defender
o Projeto do Código Civil, para dizer
que trata do abuso de direito quando,
no art. 160, diz: Não constitui ato ilíci-
to aqueles praticados no exercício re-
gular de um direito, o que é irregular é
um abuso de direito. E em relação ao
dano moral, ele existe naquele capítu-
lo que trata da liquidação das obriga-
ções, que fala em preço de afeição, as
lesões decorrentes da moral contra os
costumes. Tudo isso vem fechar uma
condição de ordem moral e, portanto,
o dano moral estava previsto também
no Projeto.
Porém, essa discussão em rela-
ção ao dano moral durou vários anos
e muitos resistiram dizendo que não
havia como apagar a dor, o preço de
uma ofensa, como calcular essa dor e
essa ofensa. Aliás, esta é a grande cri-
se da indenização do dano moral até
hoje: fixar qual é o valor. Mas, depois
de certo tempo, a grande doutrina bra-
sileira e a jurisprudência sustentaram
a indenizabilidade do dano moral e o
próprio Supremo Tribunal Federal, há
muitos anos, antes de 1988, já tinha
fixado que o dano moral era
indenizável. Mas discutia-se se ele de-
veria ter repercussão patrimonial ou
não, ou somente a dor poderia ser
indenizável.
A Constituição veio e pôs um
fim a essa discussão, estabelecendo
que é indenizável o dano moral.
Agora há uma certa evolução e
as doutrinas argentina e italiana já es-
tão tratando do dano psicológico, que
Série Cadernos do CEJ, 20
não é o dano moral. Posso estar abala-
do porque o meu time perdeu e vou
ficar constrangido. Moralmente não
estou abalado, mas, por exemplo,
quem torcer por um determinado time
que está perdendo reiteradamente está
abalado e não vai trabalhar, não vai
dormir mais, vai ter briga na casa dele.
Enfim, vai dizer que é um dano psico-
lógico e que alguém vai ter de indeni-
zar esse dano.
No aspecto família, há uma lon-
ga discussão quanto à interferência da
Constituição anterior e da atual em re-
lação ao Projeto do Código Civil, e não
somente em relação ao casamento. A
Constituição atual alterou a redação
que existia nas anteriores: A família é
constituída pelo casamento
indissolúvel, redação desde 1946, al-
terada em parte com a emenda relati-
va ao divórcio.
O Prof. Miguel Reale também já
frisava a igualdade dos cônjuges. Não
há mais aquela idéia de que o marido
é o chefe da sociedade conjugal. E isso
com uma série de projeções; por exem-
plo, a 4ª Turma do Superior Tribunal
de Justiça, da qual é integrante o emi-
nente Ministro Raphael de Barros
Monteiro, já decidiu, em relação àque-
le artigo do Código de Processo Civil,
quanto à competência naquelas ações:
no foro do domicílio da mulher... Se
há igualdade, desaparecerá aquilo que
significa uma desigualdade do próprio
art. 100, naquela fixação de competên-
cias para determinadas demandas de-
rivadas da relação conjugal, porque,
se há igualdade, deveria desaparecer
qualquer discriminação se a mulher ti-
vesse uma situação desigual.
Quanto à expressão “união es-
tável”, também, há uma conseqüência
imensa tirada dessa expressão; já há
duas leis sobre esse tema e já dizem
que há um terceiro projeto aguardan-
do para sair a fim de corrigir os dois
anteriores. Portanto, não é muito está-
vel essa união, porque ela continua ins-
tável até do ponto de vista legislativo.
Também em relação à supera-
ção da desigualdade entre filhos, na-
quela concepção antiga, legítimos e ile-
gítimos (adulterina), e os adotivos,
numa igualdade muito importante. Uma
vez li que não há filhos ilegítimos, os
pais é que são ilegítimos. O filho nun-
ca foi perguntado se queria vir ou não
ao mundo. Portanto, ele compareceu
e não tem de botar o sinete da desi-
gualdade, muito menos o da origem
do nascimento. A conseqüência é que
a Constituição e o Projeto trataram exa-
tamente dessa igualdade, e a mais im-
portante é em relação ao adotivo.
O Prof. Miguel Reale a realçava
em relação ao adotivo e parece-me
muito importante lembrar isso. A ado-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
ção é para efeitos de imposto de ren-
da: alguém quer adotar alguém para
dizer que tem um adotivo e, assim, des-
contar no imposto de renda – não sen-
do uma coisa séria; ou a adoção tem
um lado muito importante de afeição
por uma determinada pessoa e um al-
truísmo sensacional, que é alguém ti-
rar uma criança e trazer para uma fa-
mília, dar um status de família a deter-
minada pessoa que está na
marginalidade, que não tem nem a dig-
nidade de um nome de origem, de pa-
ternidade e maternidade. Por isso a
adoção tem um significado muito es-
pecial. Lei anterior procurou fazer dis-
tinção entre adoção e legitimação ado-
tiva; posteriormente, adoção simples
e adoção plena, numa desigualdade
que ficava muito acentuada ao dizer:
ou é adotivo ou não é.
Sendo adotivo, há necessidade
de se apagar os laços dos pais anterio-
res; e a criança será inserida em uma
determinada família. É claro que os fi-
lhos consangüíneos têm resistência à
adoção. Mas, afinal, não é uma socie-
dade comercial, onde o sócio não quer
que entre outro para impedir os lucros
ou determinadas vantagens, mas, sim,
trata-se de um aspecto social. Quem
deve comandar são os pais e não os
outros filhos que estão ali apenas pela
avidez de obter determinada herança
e, portanto, não querem que ninguém
entre na família. Se pudessem, alguns
até tirariam outros para ficarem como
sócios únicos daquela determinada he-
rança. Realmente, do ponto de vista
moral e ético, não tem sentido.
A nossa Constituição, no seu
art. 5º, menciona o direito à herança.
Nenhum jurista, até hoje, conseguiu
entender por que o direito à herança
está na Constituição. Mas há uma con-
seqüência muito importante para o Di-
reito Civil e para o Projeto, que é a im-
possibilidade total ou absoluta da ex-
clusão de alguém de uma herança, via
incomunicabilidade de bens, indignida-
de, deserdação, que são formas de ti-
rar a herança de determinada pessoa.
Como na Constituição, dizendo
que é assegurado o direito à herança,
pode haver a figura da indignidade? Por
exemplo, o filho que atentou contra a
vida do pai, ou a deserdação desse
mesmo indigno, ou daquele filho que
não cuidou devidamente do pai, da sua
saúde, da sua vida, dos seus alimen-
tos: Há possibilidade dessa sanção?
Acrescento ao Projeto um pon-
to muito importante que é a cláusula
de incomunicabilidade, a qual torna os
bens de uma determinada pessoa in-
comunicáveis; por exemplo, no casa-
mento do seu filho ou descendentes.
Essa incomunicabilidade não deve ser
feita de forma secreta ou que fique na
mente de uma determinada pessoa
Série Cadernos do CEJ, 20
que não quer comunicar por não gos-
tar do genro ou da nora, quer dizer,
fica um pouco secreta do ponto de vis-
ta social e familiar. Mas é claro que, se
ele tem o direito à herança, tem de ha-
ver uma justificação para assegurar a
exclusão.
Em relação à propriedade, vol-
tamos à Constituição naquilo que as-
segura que a propriedade deve ser
exercida segundo uma determinada
função social, para chegar à possibili-
dade da perda da propriedade pela
desapropriação, pelo confisco.
Certo dia, o Prof. Orlando Go-
mes disse-me que a função social da
propriedade muitas vezes mascarava
sua utilização, pois a pessoa plantava
três pés de milho e dizia que já estava
tudo plantado, e que, por isso, havia
uma função social dela. Na verdade,
aquilo ficava no vazio, ele continuava
sem utilizá-la devidamente e, conse-
qüentemente, ficava a terra sem uma
finalidade social.
É preciso exigir uma compro-
vação da utilização da propriedade se-
gundo a sua função social, principal-
mente naquela que poderia ser explo-
rada por outras pessoas. Muitos utili-
zam a sua propriedade, mas prejudi-
cam terceiros, os vizinhos, aqueles que
estão diretamente relacionados com
ela. Hoje, com a poluição e o prejuízo
ao meio ambiente acentuados, tem
muito mais sentido do que a linguagem
do próprio Código – poluir a água de
alguém no capítulo das águas e do di-
reito das coisas. A palavra poluir vem
do latim polluere, e muitos pensam que
essa palavra é nova, por causa de um
assunto que está na moda atualmen-
te, que é o meio ambiente.
Em relação à empresa e ao
empresário, é muito importante um rá-
pido exame dessa matéria, porque a
Constituição tem uma estrutura econô-
mica e, sendo assim, vai preocupar-se
também com as atividades inerentes à
atividade econômica, especialmente
com relação à empresa.
A própria Constituição diz que
a empresa pública é regida pelo direito
das obrigações, e não quer discutir,
porque esse assunto vem da Constitui-
ção anterior, sinalizando que a empre-
sa pública e a sociedade de economia
mista regem-se pelo Direito Tributário,
pelo Direito das Obrigações, e nas re-
lações trabalhistas pelo Direito do Tra-
balho, para que digam que ela é es-
sencialmente privada, ainda que o po-
der público tenha um capital total,
como na empresa pública, ou tenha
uma maioria na sociedade de econo-
mia mista. Dividiremos essas figuras.
Foi o que a Constituição fez de longa
data e está, atualmente, reafirmando.
Em toda estrutura econômica
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
da Constituição, a idéia é de livre con-
corrência, livre iniciativa e, portanto,
significa uma grande projeção e impor-
tância para a empresa privada também,
que é a do empresário e está tratada
no Projeto do Código Civil.
O atual Código foi atingido em
alguns pontos por força de dispositi-
vos da Constituição, como em relação
à família ou ao pátrio poder. Mas, se
temos uma norma maior, que fixa uma
diretriz para o Direito Privado, é impor-
tante que haja esse relacionamento.
Isso está progredindo no Brasil, cau-
sando um exame mais aprofundado da
matéria.
ROBERTO ROSAS: Professor da Uni-
versidade de Brasília.
Como pano de fundo da relação
entre a Constituição brasileira
e o Projeto do Código Civil está
um problema maior, teórico e prático,
qual seja, o da relação entre o Direito
Constitucional e o Direito Civil. Essa re-
lação deve ser visualizada, para melhor
compreensão, pela comparação entre
dois modelos: o do passado, que cha-
mo de “modelo da incomu-
nicabilidade”, e o do presente, que cha-
mo de modelo da comunicação e da
complementaridade.
Não há dúvidas de que, princi-
palmente no século XIX, época em que
se cristalizaram os fenômenos do
constitucionalismo e da codificação,
essa relação Constituição e Código
possuía uma configuração muito pre-
cisa. Ambos – Constituição de um lado,
Código de outro – formavam dois mun-
dos que não se tocavam. Andavam pa-
ralelos, como universos de normas que
não se relacionavam senão sob o as-
pecto formal, isto é, quando uma nor-
ma da Constituição superveniente tinha
um sentido absolutamente contrário à
norma do Código Civil; ocorria – e ocor-
re até hoje – o fenômeno da revoga-
ção pela incompatibilidade entre a nor-
ma de menor hierarquia com a de mai-
or hierarquia. Era apenas esse o ponto
de relacionamento entre a Constituição
e o Código Civil.
O modelo da incomunica-
bilidade era uma resposta típica do sé-
culo XIX para essa questão. Isso por-
que temos de partir do exame das con-
cretas constituições e dos concretos
códigos do século XIX. A Constituição
surge como um documento político
que tem como objetivo apenas definir
normas de organização e competên-
cia do Estado. O exemplo francês é
paradigmático. A Constituição france-
sa de 1875 limitava-se a definir o fun-
cionamento dos poderes públicos e as
relações entre os distintos órgãos do
Estado, sem nenhuma alusão às cate-
gorias regidas pelo Direito Privado. Isso
ocorreu nas nossas Constituições de
1824 e 1891.
A Constituição era uma Carta
política que não incidia em outros ra-
mos do Direito, senão em situações
absolutamente excepcionais e margi-
nais. Diante da instabilidade incondici-
onal, tivemos, por exemplo, em 90
anos, seis Constituições e apenas um
Código Civil. Na França, várias consti-
tuições também e, em duzentos anos,
um Código Civil. O Código Civil alçava
como monumento de permanência, de
estabilidade, como uma referência fir-
me e imutável para o direito comum,
enquanto a Constituição era domina-
da pelo princípio da instabilidade.
Um terceiro elemento que con-
sidero fundamental é o próprio caráter
da Constituição. A Constituição contin-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
ha escassos princípios, ao contrário da
Constituição Federal de 1988. O con-
teúdo dos princípios era considerado
meramente programático, de eficácia
contida, e todo o problema da
efetividade das normas constitucionais
passa por essa concepção. A natureza
dos princípios não era sequer conside-
rada normativa. Foi preciso os estudos
mais recentes de Robert Alex, dentre
outros, para afirmar que princípio é
norma jurídica, portanto, tem nature-
za e eficácia normativas. Essa distin-
ção entre princípio e norma servia para
escamotear o problema ou para negar
a natureza normativa dos princípios,
isso do lado da Constituição. O Códi-
go Civil, por sua vez, possuía uma ou-
tra missão, desde a Revolução France-
sa, quando surge a codificação de ex-
purgar o direito dos privados – e isso é
feito pelos privados.
Tratava-se apenas das normas
feitas pelo Estado para os privados. O
Estado pretendia que essas normas
fossem postas, em um documento cha-
mado “código”, de um modo absolu-
tamente incompleto e total; os códigos
eram dominados pela pretensão de ple-
nitude lógica e completude legislativa.
Muitas críticas ao Projeto, por-
que não tratou de informática, de
bioética, decorrem da sobrevivência da
idéia que tem o Código de prever tudo.
Por fim, acreditava-se na exis-
tência de uma dicotomia, absolutamen-
te funda e intransponível com o Direi-
to Público de um lado e o Privado do
outro. Acreditava-se, mais ainda, que
o Direito Privado não tinha caráter so-
cial, quer dizer, como se o caráter so-
cial das normas fosse uma coisa estra-
nha ao Direito Privado. O mais impor-
tante nesse modelo de relacionamen-
to, da incomunicabilidade, era a diver-
sidade valorativa ou axiológica.
Os códigos oitocentistas – e o
nosso Código de 1916 é o último gran-
de código do século XIX, como disse
com razão Pontes de Miranda – eram
fundados no que McPerson chamou de
individualismo possessivo. Além des-
se comprometimento ideológico, essa
pretensão de completude legislativa
fazia com que o Código fosse o único
documento normativo a dar respostas
para os problemas da vida civil. Por
isso, costumo dizer que o modelo da
incomunicabilidade é um modelo da
exclusão, absolutamente totalitário. E
é por isso, também, que a relação Có-
digo e Constituição era basicamente
formal, hierarquizada, não-dialética e
não-complementar. Tal modelo está
completamente alterado e essa relação
se alterou porque, evidentemente, os
dois pólos do dueto – a Constituição e
o Código Civil – mudaram.
Em primeiro lugar, o Direito
Constitucional e a Constituição passam
Série Cadernos do CEJ, 20
a abranger a absorção de matérias que
são substancialmente de outros cam-
pos, mas o que nos interessa é o Direi-
to Civil. Basicamente passa a transfor-
mar em direito positivo, legal, princípi-
os que tradicionalmente eram tidos
como pré-positivos, de formulação
jurisprudencial, por exemplo, the right
to be alone, o direito de ficar sozinho,
a privacidade, construção da jurispru-
dência norte-americana, ou princípios
provindos do direito natural, por exem-
plo, das declarações de direito
iluministas, como o princípio da digni-
dade da pessoa humana etc.
Depois, como segundo fator, a
teoria do Direito Constitucional, forte-
mente influenciada pelos tribunais
constitucionais da Alemanha, Espanha,
Portugal. Hoje a França passa a admi-
tir que princípio é norma, o que acaba
por modificar totalmente a teoria da
interpretação constitucional. E passa a
admitir que a Constituição tem eficá-
cia nas relações interprivadas, isto é,
seus direitos fundamentais, ao invés de
serem oponíveis apenas contra o Esta-
do, passam a ter uma eficácia erga
omnes, inclusive nas relações
interprivadas. A questão é só saber
como se opera essa eficácia: se é ime-
diata, se precisa ou não da mediação
do juiz ou da lei ordinária, do ponto de
vista do Direito Constitucional e da
Constituição.
Do ponto de vista do Direito Ci-
vil, as mais profundas transformações:
desde a segunda metade do século XX,
assistimos ao fenômeno da
funcionalização do direito subjetivo.
Isso começa com o direito de proprie-
dade; a Constituição de Weimar atinge
o pátrio poder, o poder-dever e não
apenas um poder, os direitos de crédi-
to, pela ampliação da figura do abuso,
pela compreensão que o abuso não
contém elementos de ordem subjeti-
va, por exemplo, o dolo, o que já dizia
Pontes de Miranda e Clóvis Beviláqua,
pela incidência do princípio da boa-fé
objetiva etc. Todas essas novas teori-
as vêm dizer só uma coisa: que o direi-
to subjetivo não é o poder da vontade,
como diziam os pandectistas do sécu-
lo passado, ele é um direito-função e,
portanto, é dotado de uma função so-
cial. E, com isso, aquela equiparação
que muita gente ainda faz do Direito
Civil como um Direito individualista e
egoístico “cai por terra”. O Direito Civil
tem sim uma função social e uma for-
te carga social.
Em segundo lugar, isso passa
por um problema de metodologia. Os
códigos, a partir da segunda metade
do século XX, não têm mais aquela
pretensão de tudo abarcar: a preten-
são da plenitude legislativa. São códi-
gos, em um certo sentido, mais mo-
destos. Não são totalitários, abrem es-
paço para a emergência de outras fon-
tes de produção jurídica, tais como a
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
sentença judicial, que é fonte de direi-
to positivo e de produção jurídica. No
Projeto há uma quantidade imensa de
referências aos usos e aos costumes
do lugar, isto é, dando um espaço mui-
to grande para aquilo que a doutrina
chama de “poder social” ou “poder da
sociedade”. Realmente, tem o direito
feito pelos privados, e não somente
para os privados; portanto, é um códi-
go que não pretende que tudo já ve-
nha respondido e modestamente abre
espaço para que o Direito Privado – o
direito produzido pela sociedade civil,
que é absolutamente dinâmico – cons-
trua-se e se reconstrua permanente-
mente. Por isso, ele deixa tanta voz para
a jurisprudência, que está em contato
direto com o direito da vida, não o di-
reito dos livros, e é por isso que ele
abre espaço para a sociedade civil por
meio do reconhecimento e do valor
jurídico dos usos.
Em vista disso, o Código não
regula matérias tais como informática
e bioética – não me convenceu o argu-
mento de que esse Código começou a
ser redigido antes da informática. Se
fosse redigido hoje ou daqui a dois
meses, as mudanças na informática
tornar-se-iam superadas.
Evidentemente, isso tem de ser
regulado em leis que fiquem à parte
do Código, o que o Prof. Reale chama
de “leis aditivas”, no sentido de que
são leis que precisam ser modificadas
com muito mais rapidez. Um código
não pode estar sujeito à revisão
legislativa a cada seis meses, porém,
uma lei simples, por exemplo, que re-
gule a bioética, outra área que evolui
com rapidez, pode. Sempre que abro
a Folha de S. Paulo, observo que na
última página do primeiro caderno há
alguma novidade em matéria de gené-
tica e bioética. Isso não pode estar no
Código, que tem uma certa função de
cristalização, de permanência e de con-
tinuidade.
Por último, a idéia do Direito Pri-
vado, o seu princípio fundamental, que
é a autonomia privada, tem por objeto
basicamente as relações patrimoniais,
aquilo que se chama “a lógica proprie-
tária”. Essa idéia cede espaço à noção
de que o Direito Privado constitui tam-
bém, e fundamentalmente, o lugar de
tutela de valores existenciais e não ape-
nas de patrimoniais.
Dessa forma, a jurisprudência
mais recente dos tribunais alemães e
portugueses legitima o princípio da
autonomia privada pelo princípio do li-
vre desenvolvimento da personalidade,
que tanto impulsionou a civilística ale-
mã desde o início do século, e que se
vincula estreitamente a um princípio
constitucional, que é o princípio da dig-
nidade da pessoa.
Vejo, a partir daí, a importância
Série Cadernos do CEJ, 20
da compreensão dessa relação entre
o Projeto e o Código.
As maiores críticas que têm sido
feitas ao Código – não que ele seja
infenso a críticas pontualmente – dizem
respeito ao modelo, porque ele tem clá-
usulas gerais, conceitos
indeterminados, porque não tratou dis-
so ou daquilo. O Projeto de Código
configura uma estrutura que está apta
para receber os valores constitucionais
e trazer para o seu interior essas maté-
rias de Direito Civil que a Constituição
tem tratado. Ele é, portanto, um meio
importantíssimo para expansão da
normatividade dos direitos fundamen-
tais, um Código importantíssimo para
a continuidade do processo e
positivação dos direitos fundamentais
previstos na Constituição. Tenho dito
que ele é um documento de afirma-
ção e expansão da normatividade
constitucional. Em primeiro lugar, em
razão da sua estrutura, realmente não
pretende abarcar tudo, uma vez que
têm matérias que foram deixadas de
fora, porque assim deve ser, pois são
matérias que requerem um certo dina-
mismo; em segundo lugar, em razão
da sua linguagem, o Código tem, em
inúmeras passagens, uma linguagem
de uma tessitura aberta que dará mui-
to trabalho para o juiz, mas exigirá a
sua responsabilidade para que
corresponda à sua direção etimológica:
jurisprudência, e que realmente con-
cretize o Direito.
O fato de o Código conter isso
não significa que não haja o fenôme-
no paralelo na atualidade da fuga do
Judiciário no sentido da resolução das
questões por outras ordens, como ar-
bitragem, enfim outros modos de solu-
ção de conflitos, mas, evidentemente,
o papel e a responsabilidade do juiz
não ficam esmaecidos pela existência
dessa outra forma.
Queria apenas exemplificar es-
sas proposições por meio do exame
concreto do projeto em dois campos,
poderia escolher vários campos, mas
toda escolha importa em amputações,
daí por que escolhi duas.
Primeiro, a modificação da teo-
ria da personalidade e, segundo, a do
fenômeno da relação obrigacional. Sa-
bemos que vigora entre nós o princí-
pio da dignidade da pessoa. Esse é um
princípio de Direito Constitucional e de
Direito Civil. A Constituição Brasileira,
no art. 1º, inc. III, eleva a dignidade da
pessoa à condição de fundamento da
República e o princípio ali expresso não
vem isolado, informa praticamente
todo o catálogo dos direitos fundamen-
tais do art. 5º. Informa, por exemplo,
a igualdade prevista no inc. I, o direito
geral de ação, previsto no inc. II, a li-
berdade religiosa, a liberdade de expres-
são, a tutela da vida privada, da hon-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
ra, da intimidade, da imagem, a
inviolabilidade do domicílio, da corres-
pondência, das comunicações, do si-
gilo processual, os princípios gerais da
atividade econômica, que estão no art.
170, enfim, não só os contidos no art.
5º, mas os outros direitos fundamen-
tais que estão espalhados na Consti-
tuição, por exemplo, em matérias de
ensino, de cultura, de meio ambiente,
de proteção da família, de integridade
física, de usucapião constitucional, de
direito à saúde etc. Todos são direitos
fundamentais que têm a sua raiz, a sua
razão de ser, no princípio da dignida-
de da pessoa.
O Código Civil vigente, de 1916,
não se refere a este princípio, e os
constitucionalistas tratam-no como se
fosse de Direito Constitucional, mas, na
verdade, é de todo o Direito e, funda-
mentalmente, nuclear do Direito Civil.
Orlando de Carvalho, um grande mes-
tre português, diz, com toda a razão,
que, se é inconcebível um Estado de
Direito sem Estado, é inconcebível um
Direito Civil sem civis, sem pessoas.
Portanto, evidentemente que o reco-
nhecimento da pessoa civil constitui o
coração do Direito Civil contemporâ-
neo. É, na verdade, seu problema cen-
tral, porque enseja a abertura para a
discussão dessas tutelas sobre os va-
lores existenciais. O Prof. Roberto Ro-
sas lembrou a ampliação, por exem-
plo, dos casos de responsabilidade ci-
vil para abarcar também os chamados
“danos à vida existencial”, “danos à
vida de relações”. Hoje a jurisprudên-
cia estrangeira está cheia de casos e,
em alguma medida, a nossa jurispru-
dência.
Podemos – sempre fazendo a
comparação com o paradigma anterior
– afirmar que a codificação oitocentista
não contemplava a principal projeção
no campo civil do princípio da digni-
dade da pessoa, que são os direitos
da personalidade. Diria que o Código
Civil vigente traz uma teoria da
pessoalidade, mas não da personalida-
de, e essa é uma distinção importante,
porque, de uma longa tradição, via-se
o ser pessoa apenas como capaz de
contrair direitos e obrigações. Havia
essa equiparação entre pessoa, sujei-
to de direito e capacidade.
Portanto, pessoa, para a ótica
do Código Civil, é aquele sujeito capaz
de contrair direitos e obrigações. Na
verdade, alguns autores atribuem essa
teoria da pessoalidade ao reflexo das
concepções clássicas que tiveram uma
larga força expansionista, inclusive en-
tre nós, considerando que o patrimônio
era a emanação da personalidade.
Com isso, houve uma espécie de
patrimonilização da própria pessoa,
que era vista apenas na sua dimensão
técnica como um ser capaz de contra-
ir direitos e obrigações, visão absolu-
Série Cadernos do CEJ, 20
tamente reducionista. No entanto, a
partir da Segunda Guerra Mundial, a
reflexão ética – que foi ensejada pela
emergência dos direitos fundamentais
de segunda geração e pelo desenvol-
vimento, na Alemanha, pela
pandectística tardia da teoria dos direi-
tos de personalidade – provocou uma
mudança completa nessa perspectiva.
O direito de personalidade, di-
ferentemente do direito da
pessoalidade, é aquele que garante ao
seu sujeito um domínio sobre um se-
tor da sua própria esfera da personali-
dade. São os direitos da própria pes-
soa que resultam do fato de ser pes-
soa, da irredutibilidade essencial do ser
pessoa e, evidentemente, provocam
uma superposição do ético ao técni-
co, porque ensejam a expansão daqui-
lo que Orlando de Carvalho diz que é
a questão central da teoria da perso-
nalidade, a questão do desenvolvimen-
to do chamado “livre desenvolvimen-
to da personalidade” e da sua tutela
pela ordem jurídica, que tem de asse-
gurar condições essenciais para que a
personalidade de cada um de nós se
desenvolva livremente e não sofra ata-
ques injustos.
Hoje, diante da moderna teoria
da personalidade, pessoa tem um sen-
tido global, um sentido unitário como
expressão de todo um conjunto de
ações que leis positivas venham asse-
gurar. É exatamente essa perspectiva
que está por detrás do art. 1º, inc. III,
da Constituição Federal, hoje conside-
rado o princípio fonte de toda a teia
dos direitos de personalidade e, inclu-
sive, elevado à categoria de direito fun-
damental do homem assim consagra-
do pela Declaração dos Direitos da
ONU.
Com base nessa mesma idéia,
a jurisprudência civilística alemã vem
interpretando a dignidade da pessoa
como sendo, além de um direito fun-
damental, um programa constitucional,
portanto, em constante expansão, e
como princípio básico do Estado de-
mocrático de Direito. A jurisprudência
portuguesa, como já havia anunciado,
não só essa como a espanhola e a ita-
liana, vem situando todas as discussões
acerca da autonomia privada nos seus
limites e a sua configuração como uma
das expressões do livre desenvolvimen-
to da personalidade. Entre nós, é bem
verdade, esse princípio ainda tem es-
casso desenvolvimento
jurisprudencial, talvez pela tradição
exegética que ainda domina muito as
nossas escolas, embora haja alguns co-
rajosos acórdãos. Daí a importância do
Projeto, que, já nos anos 70, estava
em consonância com a mais avança-
da civilística, porque,
incontroversamente, contempla os di-
reitos da personalidade, buscando dar
um tratamento sistemático a essa ques-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
tão.
O Projeto dedica aos direitos da
personalidade o Capítulo II do Livro 1º
da Parte Geral, e o elemento articulador
de todo o sistema é o art. 11, que diz:
Com exceção dos casos previs-
tos em lei, os direitos de personalida-
de são intransmissíveis, irrenunciáveis,
não podendo o seu exercício sofrer li-
mitação voluntária.
Tal regra é completada pelo art.
12, que tratará da reparação dos da-
nos aos direitos de personalidade; os
arts. 13 a 15 tratarão da regulamenta-
ção da tutela à integridade física, que
é uma projeção da vida privada; os
arts. 16 a 19, do direito ao nome e da
sua utilização; o art. 20, da preserva-
ção da imagem. No art. 18, inclusive,
não se pode usar o nome “além pro-
paganda comercial”, com isso reco-
lhendo o que a jurisprudência já vinha
oferecendo. O art. 21 contém, ainda,
o que penso ser da maior relevância:
uma cláusula geral de proteção à vida
privada nesse tempo em que ela está
sujeita a ataques não só do Estado,
mas, basicamente, do poder econômi-
co e dos meios de comunicação, mais
forte do que o poder do Estado:
A vida privada da pessoa física
é inviolável, e o juiz, a requerimento
do interessado, adotará as providênci-
as necessárias para impedir ou fazer
cessar ato contrário a esta norma.
Hoje em dia as pessoas famo-
sas é que estão mais sujeitas a revis-
tas, como a “Caras”, a “Chiques e Fa-
mosos”, que se acham no direito de
publicar o que quiserem sobre uma
pessoa, especulando se está ou não
com AIDS simplesmente porque entrou
no hospital. Esta atitude é uma intro-
missão absoluta na vida privada que
quase não há defesa, ou há uma mui-
to pequena por meio da ação de res-
ponsabilidade por danos:
(...)o juiz, a requerimento do in-
teressado, adotará as providências ne-
cessárias para impedir ou fazer cessar
ato contrário a esta norma.
Quais são as providências? Não
está dito, nem deveria, no meu enten-
der.
O Código de Hammurabi era
casuístico. Ele dizia, por exemplo, que,
se o jumento de alguém entrasse no
terreno do vizinho e derrubasse o tarro
de leite, o dono deveria pagar por isso.
Quem deve concretizar as cláusulas
gerais dos conceitos abertos? Eviden-
temente, a jurisprudência é a única for-
ma de um Código não se tornar velho
em seis meses ou em um ano. Este é o
papel da jurisprudência: responsável,
criativa e firme. Então, nesse caso, o
Série Cadernos do CEJ, 20
juiz deferiu a responsabilidade de
estatuir providências que são feitas ao
juiz. Na Alemanha, isso é feito de uma
forma arbitrária, aleatória? Não. A ju-
risprudência vai, com o tempo, forman-
do grupos de casos de decisão e, por
meio deles, retira-se a norma. No caso
de um ataque por uma revista etc., é
esta a providência. Enfim, conforme a
situação concreta da vida, a jurispru-
dência dará uma resposta e, com o
tempo, paulatinamente, formará esses
grupos de casos.
O Prof. Miguel Reale ensinou
como ninguém que a jurisprudência é
fonte de produção jurídica, pois pro-
duz modelos jurídicos. Costumo dizer
que o juiz é a boca da lei. Ele deve
emprestar sua voz responsável para
que a lei, nesses casos, tenha voz.
Gostaria de falar a respeito do
direito obrigacional. Trago alguns exem-
plos mostrando que, a estabelecer a
dignidade da pessoa humana e a ado-
tar, como uma de suas diretrizes fun-
damentais, a solidariedade social (art.
3º, inc. I, da Constituição), o Projeto,
que é anterior à Constituição, está apto
a receber essas diretrizes fundamentais
porque “solidariedade” é uma expres-
são muito ampla e, evidentemente, pre-
cisa ser concretizada. O Projeto con-
cretiza esses deveres decorrentes da
solidariedade social em inúmeras pas-
sagens, como nos direitos reais em
matéria de direito à empresa. Mas, gos-
taria de examinar, especificamente, no
Direito das Obrigações, alguns artigos.
No art. 112, introduz-se norma
de interpretação dos negócios jurídicos
fundamentada na boa-fé, confiança e
lealdade recíprocas. No art. 152,
reintroduz-se, no Direito brasileiro com
caráter geral, isto é, em todas as rela-
ções regidas pelo Direito Civil e Direito
Comum, o instituto da lesão que havia
sido expurgado por Beviláqua, em
nome da modernidade, do individua-
lismo possessivo da sua época. Por
quê? Porque não é eco distanciar-se do
justo preço e aproveitar-se dos injus-
tos preços. No art. 186, consider-se ato
ilícito que excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econô-
mico-social, pela boa-fé, pelos bons
costumes, impondo isso aos contratan-
tes.
O art. 316 confere ao juiz o
poder de corrigir a desproporção exis-
tente entre o valor da prestação devi-
da – trata-se de regular o pagamento –
e o momento da execução, caso a des-
proporção seja ocasionada por moti-
vos imprevisíveis. Isso vai apanhar uma
série de casos de enriquecimento
injustificado que hoje a jurisprudência
tem uma certa dificuldade em resolver.
O art. 412 trata da cláusula pe-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
nal. O atual art. 924 do Código Civil
diz que O juiz pode reduzir a cláusula
penal – portanto, é uma faculdade mui-
tas vezes não usada. Naquele introduz-
se um dever: O juiz deve reduzir a cláu-
sula penal quando a desproporção for
muito grande.
O art. 421 acolhe o princípio da
boa-fé objetiva sobre o qual um curso
é pouco para se falar a respeito. O que
é mais importante? O princípio da boa-
fé objetiva não é uma norma para fi-
car no vazio. Ela, concretamente, im-
põe aos participantes do tráfico
negocial uma série de deveres que são
de consideração aos interesses do álter,
da outra parte da relação. Esses deve-
res decorrem da solidariedade social
porque são relações de cooperação.
Com referência às relações
obrigacionais, Emílio Betim já dizia, nos
anos 50, que elas são relações de coo-
peração. As partes contratantes têm
interesses antagônicos, mas devem
desenvolver atividades de cooperação
para que o contrato chegue ao seu
adimplemento. Se, por exemplo, o cre-
dor se recusa a receber o pagamento,
o devedor não pode pagá-lo. É preciso
a colaboração do credor para que o
devedor pague.
O art. 477 trata da resolução
por onerosidade excessiva. Hoje em
dia, a resolução se deve só aos casos
de impossibilidade; aqui, ela se alarga.
A jurisprudência vem construindo isso.
Considera-se que não é justo, não é
eco, não é solidário no trato social, o
locupletamento na relação contratual,
que é de colaboração em razão de uma
excessiva onerosidade. Permite-se,
portanto, a resolução.
Matéria de responsabilidade ci-
vil. O art. 943, caput, fixa o princípio
tradicional de que a indenização se
mede pela extensão do dano. Mas, no
parágrafo único, ele determina ao juiz
que – vejam aí o princípio da
proporcionalidade –, no caso de des-
proporção entre a gravidade da culpa
e o dano, reduza eqüitativamente a in-
denização. Isso é uma projeção do
princípio constitucional da
proporcionalidade em matéria de res-
ponsabilidade civil.
Matéria de função social do con-
trato. A função social não se confunde
com a função coletiva ou de coletivis-
mo dos anos 30. O contrato é a veste
jurídica das operações econômicas. As
operações econômicas, principalmen-
te as de grande impacto social, inte-
ressam a toda a estrutura da socieda-
de, não só aos contratantes. Ninguém
me dirá que um contrato para aquisi-
ção da casa própria, um contrato de
prestação de serviços educacionais,
enfim, contratos com essa dimensão
social não têm função social. É claro
que eles a têm e interessam a toda a
Série Cadernos do CEJ, 20
sociedade. O Projeto dá um valor
operativo para o princípio da função
social, opera a concreção
especificativa desse princípio condici-
onal e, em um certo sentido, transfor-
ma-se, no Código Civil, em um Projeto
até mais amplo do que o próprio Códi-
go do Consumidor, porque ele não es-
pecifica quais são os casos em que o
julgador deve dizer se há mais função
social ou não para anular determinada
cláusula, como ocorre no Código do
Consumidor, em que isso já vem pre-
determinado. Portanto, ele permite que
esses grupos de casos sejam corrigi-
dos, acrescidos, enfim, construídos
permanentemente.
Um outro capítulo diz respeito
aos usos. Numa série de passagens do
Projeto, por exemplo, no art. 428 e
outros, é reconhecido o espaço para
que a sociedade civil produza, por meio
dos seus usos, a regulação dos seus
interesses. Lógico que não é absoluta-
mente livre, por isso os outros princí-
pios estarão em articulação e em con-
sonância com o Projeto.
A articulação entre a Constitui-
ção e o Projeto. Se não tivéssemos um
Código, ou se tivéssemos um Código
num modelo diferente do atual, seria
bastante difícil, porque não é toda dou-
trina que aceita a eficácia direta dos
direitos fundamentais no Direito Priva-
do – aliás, esta é uma posição absolu-
tamente minoritária, mesmo em termos
internacionais. Ela teria uma dificulda-
de muito grande e, além disso, levaria
uma assistematização. Em que casos
os direitos fundamentais incidiriam di-
retamente no Direito Privado para re-
vogar determinados institutos, para pro-
mover uma outra leitura de instituto?
O que o Projeto faz é justamente con-
ter normas que captam esses valores
fundamentais e os regulam no interior
da disciplina civilística. Por isso, pare-
ce-me que, se o Projeto for aprovado,
esta relação fundamental entre Consti-
tuição e Código poderá ter, entre nós,
um imenso desenvolvimento; depen-
derá, evidentemente, de a magistratu-
ra assumir essa imensa tarefa e respon-
sabilidade, que é sua e não pode ser
delegada para mais ninguém.
JUDITH MARTINS COSTA: Professora
da Faculdade de Direito da Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul.