as faÇanhas do incomparÁvel mulÁ nasrudin aprumo 97 tipos de dia 98 sozinho no deserto 99 donzela...
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Copyright © Idries Shah, 1966 Copyright © The Estate of Idries Shah Título original TheExploitsoftheIncomparableMullaNasrudin Editor LauraDiPietro Capa, projeto gráfico e diagramação PortasDesign Revisão Claudia Chaves Estelivroatendeàsnormasdoacordoortográficoemvigordesdejaneirode2009.Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
S525 Shah,Idries. AsfaçanhasdoincomparávelMuláNasrudin/IdriesShah;tradução FernandaMiguens.RiodeJaneiro:RoçaNova,2011. 117p.;20cm.–(Filosofiaviva) Traduçãode:TheexploitsoftheincoparableMullaNasrudin. ISBN978-85-62064-06-7 1.Folclore.2.Nasrudin(Personagemlendário).3.Sufismo.4.Contos sufis. I.Título.II.Série.
CDD398.22
2011 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORAROÇANOVALTDA.tel/fax222542-3041editora@rocanova.com.brwww.rocanova.com.brContratodapublicaçãocomTheMarshAgencyLtd.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO HISTÓRIAS 5 A ALTERNATIVA 6 POR QUE ESTAMOS AQUI 7 NUNCA SE SABE QUANDO PODE SER ÚTIL 8 ENTENDE O QUE QUERO DIZER? 9 SE UMA PANELA PODE SE REPRODUZIR 10 O CONTRABANDISTA 11 COMO NASRUDIN CRIOU A VERDADE 12 O GATO E A CARNE 13 AQUI TEM MAIS LUZ 14 O TOLO 15 COZINHANDO COM VELAS 16 O PERIGO NÃO TEM FAVORITOS 17 SAL NÃO É LÃ 18 FAVORES PODEM SER ACIDENTAIS? 19 O ELEMENTO INSUSPEITO 20 OS LADRÕES 21 QUESTÃO DE ALIMENTAÇÃO E QUESTÃO DE LEITURA 22 AVENTURAS NO DESERTO 23 AS CIRCUNSTÂNCIAS ALTERAM OS CASOS 24 A COMIDA DO MANTO 25 O SERMÃO DE NASRUDIN 26 SUA EXCELÊNCIA 33 NASRUDIN E OS SÁBIOS 35 JULGAMENTO 36 PRIMEIRO AS PRIMEIRAS COISAS 38 QUEM DISPAROU?
40 A BOLSA MÁGICA 42 MEDO 44 O MANTO 45 SALVOU A VIDA DELE 47 QUATRO PATAS 48 PERGUNTAS E RESPOSTAS 49 O SIGNO 50 TUDO CULPA DELA 51 OS HÁBITOS DOS ESTRANGEIROS 52 PÉ QUEIMADO 53 LUAS VELHAS 54 A LEI AO PÉ DA LETRA 55 O GATO ESTÁ MOLHADO 56 DORMIR É UMA ATIVIDADE 57 A CRIANÇA É PAI DO HOMEM 58 QUALQUER NINHARIA AJUDA 59 PROFUNDEZAS OCULTAS 60 AO CONTRÁRIO 61 PRINCÍPIOS DO SALVAMENTO DE VIDAS 62 IMPRÓPRIO 63 ESPREITANDO A SI MESMO 64 A NECESSIDADE DELE ERA MAIOR DO QUE A MINHA 65 APANHADO 66 GRAÇAS A... 67 PUXOU AO PAI 68 ACENDA A VELA 69 APRENDENDO DA MANEIRA MAIS DIFÍCIL 70 ALGUMA COISA CAIU 71 O ÚLTIMO DIA 72 ACEITO AS NOVE 73 ELE SABE A RESPOSTA 74 QUAL DEVE SER A APARÊNCIA DE UM PÁSSARO 75 O VÉU 76 SUA POBRE E VELHA MÃE 77 EU A CONHEÇO MELHOR 78 O SEGREDO 79 NÃO PERTURBE OS CAMELOS
80 A FELICIDADE NÃO ESTÁ ONDE VOCÊ A PROCURA 81 CEDO PARA LEVANTAR 82 A MAJESTADE DO MAR 83 OCASIÃO 84 DIVISÃO DE TAREFAS 85 CAUTELA NUNCA É DEMAIS 86 EU SÓ PRECISAVA DE TEMPO 87 CORTE O CONSUMO DE ARREIOS 88 NA CORTE 89 INSTÂNCIAS TEÓRICAS 90 O RITMO DA VIDA 91 A AMOSTRA 92 A CORRESPONDÊNCIA DOS OUTROS 93 POR QUE NÃO ME CONTOU ANTES? 94 OFERTA E DEMANDA 95 O VALOR DO PASSADO 96 APRUMO 97 TIPOS DE DIA 98 SOZINHO NO DESERTO 99 DONZELA EM APUROS 100 INJUSTO 101 O QUE SE PASSOU ANTES... 102 TUDO DE QUE SE PRECISA 103 POR QUE ESTAMOS ESPERANDO? 104 A ENCHENTE 105 O AGOURO 106 NABOS SÃO MAIS DUROS 107 COMO NASRUDIN SOLTOU O VERBO 108 EM PLENA VIDA 110 DESPERTO OU ADORMECIDO? 111 O ATALHO 112 MUDE DE ASSUNTO 113 A CORDA E O CÉU 114 QUEM EU SOU? 115 EU LHES MOSTRARIA 116 APENAS UMA COISA ERRADA COM ELA 117 SOPA DE PATO
Mulá Nasrudin, Chefe dos Dervixes e Senhor de umtesouro oculto, um homem aperfeiçoado... Muitosdizem:“Euqueriaaprender,masaquiencontreiapenasloucura.” No entanto, caso busquem a sabedoriaprofunda em outro lugar, pode ser que não aencontrem.
EnsinamentosdeNasrudin,manuscritodeBokharade1617,porAblahiMutlaq(“OPerfeitoIdiota”)
INTRODUÇÃO
Muitos países reivindicam Mulá Nasrudin como um nativo,emborapoucostenhamidotão longequantoaTurquiaaoexibirseutúmuloerealizaranualmente,emEskishehir–supostolugardo seu nascimento –, um Festival Nasrudin, onde as pessoas sefantasiameencenamasfamosasanedotas.Os gregos, que adotaram algumas coisas dos turcos,
consideram os chistes de Nasrudin como parte do seu própriofolclore. Na Idade Média, as histórias de Nasrudin eram muitoutilizadaspararidicularizarautoridadesabomináveis.Emépocasmais recentes, o Mulá se tornou um herói do povo da UniãoSoviéticaquandoumfilmeoretratousuperando,repetidasvezes,osmalvadosgovernantescapitalistasdopaís. Nasrudin se matiza na figura árabe de Joha, e reaparece no
folcloredaSicília.HistóriasatribuídasnaÁsiaCentral ao corpusde Nasrudin são encontradas protagonizadas pelo personagemrussoBaldakiev,noDonQuixote,eatémesmonomaisantigolivrofrancês,asFables,deMariedeFrance.O Mulá é descrito de várias formas: muito estúpido,
incrivelmente inteligente, possuidor de segredos místicos. Osdervixes o adotam como umpersonagempara ilustrar, em seusensinamentos,asartimanhascaracterísticasdamentehumana.AflexibilidadedeNasrudinétalqueaTurquiarepublicana,ondeasordens dervixes foram reprimidas há quarenta anos, publicafolhetossobreelecomopartedasuaatividadeturística.Os eruditos gastaram muita tinta com Nasrudin, embora,
tradicionalmente, ele não lhes dedicasse muito tempo. Como érelatado que oMulá dissera: “Estou de cabeça para baixo nessavida”,alguns foramtão longeapontode inverterasupostadatada sua morte, numa tentativa de encontrar a verdade sobre aquestão.Ossufis,queacreditamqueaintuiçãoprofundaéoúnicoguia
verdadeiro para o conhecimento, adotam essas históriaspraticamente como exercícios. Eles pedem às pessoas queescolhamalgumasque lhesatraemespecialmenteeasrepassemna mente, apropriando-se delas. Os mestres instrutores dosdervixesdizemquedessamaneirapode-serealizarumavançoemdireçãoaumasabedoriasuperior.Masossufisconcordamcomaquelesquenãoseguemumavia
mística,quetodomundopodefazercomashistóriasdeNasrudinoqueaspessoastêmfeitoaolongodosséculos:desfrutá-las.
IdriesShah,1966
A ALTERNATIVA
“Souumhomemhospitaleiro”, declarouNasrudinaumgrupodeamigosnacasadechá.“Muito bem, então leve-nos para jantar na sua casa”, falou o
maisguloso. Nasrudinreuniuaturmatodaeseguiuparacasa. Quando estavam quase chegando, ele disse: “Irei na frente e
avisareiminhaesposa.Vocêsesperamaqui.”Aoreceberanotícia,aesposadeNasrudinlhedeuumcascudo.
“Nãotemoscomidaemcasa.Mande-osembora.”“Nãopossofazerisso.Minhareputaçãodehomemhospitaleiro
estáemjogo.”“Poisbem,váparaoandardecimaedireiaelesquevocênão
está.”Depoisdequaseumahora,osconvidadosficaramimpacientes
eseaglomeraramàporta,gritando:“Deixe-nosentrar,Nasrudin!”AesposadoMulásaiuedisse:“Nasrudinnãoestá.”“Masnósovimosentraremcasaeestivemosotodotempode
olhonaporta.”Elaficouemsilêncio.OMulá, assistindoa tudodoandarde cima,não conseguiu se
conter e, debruçando-se na janela, gritou: “Eu poderia ter saídopelaportadetrás,nãopoderia?”
POR QUE ESTAMOS AQUI
Certa noite, caminhando por uma estrada deserta, o MuláNasrudinviuumatropadecavaleirosvindonadireçãodele.Suaimaginação começou a trabalhar: viu-se capturado e vendidocomoescravo,ouforçadoaentrarnoexército. Nasrudin saiu correndo, escalouomurodeumcemitérioe se
deitounumasepulturaaberta.Perplexos com esse comportamento estranho, os homens –
viajanteshonestos–oseguiram.Encontraram-noestirado,tensoetremendo.“O que está fazendo nesse túmulo? Vimos você sair em
disparada.Podemosajudá-lo?”“Sóporquevocêconsegueformularumaperguntanãosignifica
que exista uma resposta simples para ela”, replicou oMulá, queagora compreendera o que tinha acontecido. “Tudo depende doseupontodevista.Noentanto,sequeremmesmosaber:euestouaquiporcausadevocêsevocêsestãoaquiporminhacausa.”
NUNCA SE SABE QUANDO PODE SER ÚTIL
Nasrudin algumas vezes levava pessoas para viajar no seubarco. Um dia, um pedagogo melindroso o contratou paraatravessarumriomuitolargo.Assim que embarcaram, o erudito perguntou se a travessia
seriaturbulenta.“Nãomeperguntanadadisso”,falouNasrudin.“Vocênuncaestudougramática?”“Não”,respondeuoMulá.“Nessecaso,metadedasuavidafoidesperdiçada.”OMulánãodissenada.Logo, uma terrível tempestade desabou. O barquinho frágil e
descontroladodoMulácomeçouaseencherdeágua.Elesevirouparaocompanheiroeperguntou:“Vocêalgumavez
aprendeuanadar?”“Não”,respondeuopedante.“Nesse caso, professor, TODA a sua vida está perdida, pois
estamosafundando.”
ENTENDE O QUE QUERO DIZER?
Nasrudin estava jogando punhados de migalhas em volta dacasa. “Oqueestáfazendo?”,alguémlheperguntou. “Mantendoostigresafastados.”“Masnãoexistemtigresporessasbandas,Nasrudin.” “Exatamente”,respondeu.“Eficaz,não?”
SE UMA PANELA PODE SE REPRODUZIR
Umdia,Nasrudinemprestousuaspanelasparaumvizinhoqueestavadandoumbanquete.Ovizinhoasdevolveueacrescentoumaisuma–umapanelabempequenininha. “Oqueéisso?”,perguntouNasrudin.“De acordo com a lei, estou lhe dando o filhote da sua
propriedade,quenasceuenquantoaspanelasestavamsobmeuscuidados”,respondeuogaiato. Pouco tempodepois,Nasrudinpegou emprestadas as panelas
dovizinho,masnãoasdevolveu. Ohomemapareceuparabuscá-las. “Ai!”, exclamou Nasrudin. “Elas estão mortas. Nós
estabelecemosquepanelassãomortais,nãofoi?”
O CONTRABANDISTA
Nasrudin costumava atravessar a fronteira da Pérsia com aGrécianolombodeumburro.Levavasempredoiscestosdepalhae voltava caminhando sem eles. Todas as vezes os guardas orevistavamembuscadecontrabando.Nuncaencontraramnada.“Oqueestátransportando,Nasrudin?”“Souumcontrabandista”,elerespondia.Anos depois, aparentando cada vez mais prosperidade,
NasrudinsemudouparaoEgito.Lá,umdoshomensdaalfândegaoencontrou. “Diga-me,Mulá,agoraquevocêestáforadajurisdiçãodaPérsia
e da Grécia, vivendo aqui com tamanho luxo, o quecontrabandeavaequenuncaconseguimospegá-lo?”“Burros.”
COMO NASRUDIN CRIOU A VERDADE
“As leis, por si só, não tornam as pessoas melhores”, disseNasrudin ao rei; “elas devem praticar certas coisas a fim de sesintonizarem com a verdade interior. Essa forma de verdade seassemelha,apenasligeiramente,àverdadeaparente.”O rei decidiu que poderia, e iria, fazer com que as pessoas
observassem a verdade. Ele faria com que praticassem asinceridade. Entrava-se nessa cidade por uma ponte. Nessa ponte, o rei
construiu uma forca. No dia seguinte, ao amanhecer, quando osportõesforamabertos,oCapitãodaGuardaestavaposicionadoalicomseupelotão,prontoparainspecionartodosqueentravam.Umaproclamação foi feita: “Todos serão interrogados.Aquele
que disser a verdade, poderá entrar. Aquele que mentir, seráenforcado.”Nasrudindeuumpassoàfrente.“Ondeestáindo?”“Estou a caminho de ser enforcado”, respondeu Nasrudin,
calmamente.“Nãoacreditamosemvocê!”“Muitobem,seoqueeudisseémentira,enforquem-me!”“Mas se o enforcarmos por mentir, transformaremos em
verdadeoquevocêdisse!”“Exatamente. Agora vocês sabem o que é a verdade... a SUA
verdade!”
O GATO E A CARNE
Nasrudin entregou à sua esposa um tanto de carne para quecozinhasseparaosconvidados.Quandoarefeiçãofoiservida,nãohaviacarne.Elatinhacomido.“Ogatocomeutudo,umquiloemeiodecarne”,disseaesposa.Nasrudinpôsogatonabalança.Elepesavaumquiloemeio.“Seesteéogato”,perguntouNasrudin,“ondeestáacarne?Se,
poroutrolado,estaéacarne,ondeestáogato?”
AQUI TEM MAIS LUZ
AlguémviuNasrudinprocurandoalgumacoisanochão. “Oquevocêperdeu,Mulá?” “Minhachave”,elerespondeu.Então, osdois se ajoelharameprocurarampor ela.Depoisde
algumtempo,ooutrohomemperguntou:“Ondeexatamentevocêadeixoucair?”“Naminhaprópriacasa.”“Então,porqueestáprocurandoaqui?”“Aquitemmaisluzdoquedentrodaminhaprópriacasa.”
O TOLO
Umfilósofo,tendoagendadoumdebatecomNasrudin,foiatéacasadeleenãooencontrou.Furioso, pegou um pedaço de giz e escreveu na porta de
Nasrudin:“PalermaEstúpido”.Assimquechegouemcasaeviuaquilo,Narsudincorreuparaa
casadofilósofo.“Eumeesqueciquevocêviriaepeçodesculpaspornãoestar
emcasa.Éclaroquemelembreidonossoencontroassimqueviquevocêtinhadeixadoseunomenaporta.”
COZINHANDO COM VELAS
Nasrudin apostou que poderia passar uma noite numamontanhapróximaesobreviver,apesardogeloedaneve. Váriosapostadoresnacasadecháconcordaramemarbitrar. Nasrudinpegouumlivroeumavela,eatravessouanoitemais
fria que já tinha visto. Pela manhã, quase morto, reclamou seudinheiro.“Vocênãotinhamesmonadaparaaquecê-lo?”,perguntaramos
aldeões.“Nada.”“Nemmesmoumavela?” “Sim,eutinhaumavela.”“Entãoaapostaestácancelada.”Narsudinnãodiscutiu.Alguns meses depois, convidou as mesmas pessoas para um
banquete em casa. Elas se sentaramna salade estar, esperandopelacomida.Horassepassaram.Então,elascomeçaramamurmurarsobreacomida.“Vamos até a cozinha ver como andam as coisas”, disse
Nasrudin.Todosmarcharamaté a cozinha. Lá, encontraramumapanela
enorme com água, sob a qual queimava uma vela. A água nãoestavanemmesmomorna.“Aindanãoestápronto”, comentouoMulá. “Nãoseiporque...
estáaídesdeontem.”
O PERIGO NÃO TEM FAVORITOS
UmasenhoralevouofilhopequenoàescoladoMulá.“Elesecomportamuitomal”,explicou,“equeroqueoassuste.”OMuláadotouumaposturaameaçadora,osolhosflamejandoe
acararetorcida.Elesaltoudeumladoparaooutroe,derepente,saiucorrendo
doedifício.Amulherdesmaiou.QuandorecobrouossentidoselaesperoupeloMulá,queretornoulentaesobriamente.“Pediqueassustasseogaroto,nãoquemeassustasse!”“Prezada senhora”, replicou o Mulá, “não viu o quanto eu
também fiquei com medo de mim? Quando o perigo ameaça,ameaçaatodosdamesmamaneira.”
SAL NÃO É LÃ
Um dia, o Mulá levava um burro carregado de sal para omercadoeatravessouumriachocomoasno.Osalsedissolveu.OMuláficoufuriosocomaperdadacarga.Oburroficousaltitantedealívio.De outra vez que passou pelo mesmo caminho, o Mulá
transportavaumacargade lã.Depoisqueoanimalatravessouoriacho, a lã ficou completamente ensopada e muito pesada. Oburrocambaleousobacargaencharcada.“Ah!”,gritouoMuláparaoburro.“Vocêpensouquesairiamais
levetodavezquepassassepelaágua,nãopensou?”
FAVORES PODEM SER ACIDENTAIS?
OburrodeNasrudincorreuatéumalagoaparabeberágua.Asbordaserammuitoíngremeseoanimalestavaprestesaperderoequilíbrio e cair, quando os sapos na água começaram a coaxarmuitoalto.Isso assustou tanto o asno que ele se empinou e, assim, foi
capaz de se salvar. Nasrudin atirou um punhado demoedas naágua,exclamando:“Sapos,vocêsmefizeramumfavor.Issoéparavocêscelebrarem!”
O ELEMENTO INSUSPEITO
Dois homens discutiam, demadrugada, embaixo da janela deNasrudin.Eleselevantou,enrolou-seemseuúnicocobertorefoicorrendoatéláforaparaverseconseguiaacabarcomobarulho.Quandotentouargumentarcomosbêbados,umdelesagarrou
ocobertoreosdoissaíramemdisparada.“Sobre o que estavam discutindo?”, perguntou a esposa de
Nasrudinquandoeleentrouemcasa.“Devia ser sobre o cobertor. Quando o pegaram, a briga
terminou.”
OS LADRÕES
Aoouviralguémsemovimentandodentrodecasa,oMuláficoucommedoeseescondeunoarmário.No decorrer da busca, os dois ladrões abriram a porta do
armárioeoencontraramencolhidoali.“Porqueestáseescondendodenós?”,perguntouumdeles.“Estoumeescondendodevergonhapornãohavernadanessa
casaquemereçaaatençãodevocês.”
QUESTÃO DE ALIMENTAÇÃO E QUESTÃO DE LEITURA
Nasrudin estava levando para casa um pouco de fígado quetinhaacabadodecomprar.Naoutramão, carregavaumareceitadetortadefígadoqueumamigolhedera.Derepente,umabutredeuumrasanteelevouofígadoembora.“Seutolo!”,gritouNasrudin.“Vocêpodeatéterlevadoacarne,
masareceitaaindaestácomigo!”
AVENTURAS NO DESERTO
“Quando estava no deserto”, contou, um dia, Nasrudin, “boteipara correr uma tribo inteira de beduínos horríveis esanguinários.”“Como?”“Fácil.Simplesmentecorri,eelescorreramatrásdemim.”
AS CIRCUNSTÂNCIAS ALTERAM OS CASOS
Chovia a cântaros. Aga Akil, o homem mais beato da cidade,corria para se abrigar. “Como ousa fugir da dádiva de Deus, dolíquidodoParaíso?”,vociferouparaeleNasrudin.“Comohomemdevotovocêdeveriasaberqueachuvaéumabênçãoparatodaacriação.”OAga ficoupreocupadoemmantersuareputação. “Nãohavia
pensado na chuva dessa forma”, murmurou; e, diminuindo opasso,chegouemcasaensopado.Éclaroquepegouumresfriado.Pouco tempo depois, ele estava na janela enrolado em
cobertores quando avistou Nasrudin correndo da chuva a todavelocidade, e o desafiou: “Por que está fugindo das bênçãosdivinas,Nasrudin?Comoousarecusarabênçãoquehánachuva?”“Ah”, respondeuNasrudin, “parece que você não percebe que
nãoqueromaculá-lacommeuspés.”
A COMIDA DO MANTO
Nasrudinouviudizerqueumbanqueteestavasendooferecidonumacidadepróximaequetodosestavamconvidados.Elefoiatélá omais rápido que pôde. Quando omestre de cerimônias viuNasrudin num manto esfarrapado, acomodou-o no lugar maisdiscreto, longe da maravilhosa mesa onde as pessoas maisimportanteseramservidascomtodasashonras.Nasrudin viu que levaria pelo menos uma hora para que os
garçons chegassem até o lugar onde estava sentado. Então,levantou-seefoiparacasa.Chegando lá, vestiu-se com um manto e um turbante de
zibelinamagníficoseretornouaobanquete.Assimqueosarautosdoemir,seuanfitrião,viramaquelaesplêndidafigura,começaramabaterostamboresdeboas-vindaseasoarostrompetesdeumamaneiracondizentecomumvisitantedealtonível.Omordomoempessoasaiudopalácioeconduziuomagnífico
Nasrudin a um lugar quase ao lado do emir. Um pratomaravilhoso foi imediatamente colocado à sua frente. Semhesitar, Nasrudin começou a esfregar punhados de comida nomantoenoturbante.“Vossa Eminência”, disse o príncipe, “estou curioso quanto a
seushábitosalimentares,quesão,paramim,umanovidade.”“Nadadeespecial”,explicouNasrudin.“Omantometrouxeaté
aqui,trouxe-meacomida.Certamenteelemereceumaparte.”
O SERMÃO DE NASRUDIN
Um dia, os aldeões pensaram que pregariam uma peça emNasrudin. Como tinha a reputação de ser um homem santo dealgumaespéciepoucodefinida, foramaté ele e lhepediramquepregasseumsermãonamesquita.Eleconcordou.Chegado o dia, Nasrudin subiu no púlpito e falou: “Ó, povo!
Vocêssabemoquevoulhesdizer?”“Não,nãosabemos”,gritaram.“Até que saibam, não poderei dizer. Vocês são ignorantes
demais”, esbravejou o Mulá, tomado de indignação por essaspessoas tão ignaras desperdiçarem seu tempo. Ele desceu dopúlpitoefoiparacasa.Um tanto constrangida, uma delegação foi novamente até a
casadeNasrudinelhepediuquepregassenasexta-feiraseguinte,odiadaoração.Nasrudincomeçouosermãocomamesmaperguntadeantes.
Dessa vez, a congregação respondeu em uníssono: “Sim, nóssabemos.”“Nessecaso”,disseoMulá,“nãoénecessárioqueeuosdetenha
aquipormaistempo.Podemir.”Evoltouparacasa.Convencido a pregar pela terceira sexta-feira consecutiva, ele
começouodiscursocomoantes:“Vocêssabemounãosabem?”Acongregaçãoestavapreparada. “Algunsdenóssabem,outrosnão.”“Excelente!”, exclamou Nasrudin. “Então, que aqueles que
sabemcomuniquemseuconhecimentoàquelesquenãosabem.”Efoiparacasa.
SUA EXCELÊNCIA
Porumasériedemal-entendidosecoincidências,Nasrudinseviu,umdia,nasaladeaudiênciasdoimperadordaPérsia.O Shahinshah estava rodeado de nobres egocêntricos,
governadoresdeprovíncia,cortesãoseconspiradoresdetodosostipos. Cada um reivindicava para si a nomeação como chefe daembaixadaquelogopartiriaparaaÍndia.A paciência do imperador estava chegando ao fim, e ele
levantouacabeçaacimadamassaqueoimportunava,invocandomentalmenteaajudadosCéusparadecidirquemescolher.SeusolhostoparamcomMuláNasrudin.“Esse será o embaixador”, anunciou. “E agora, deixem-me em
paz.”Deram a Nasrudin ricos trajes; e um enorme baú com rubis,
diamantes,esmeraldaseobrasdeartesempreçolhefoiconfiado:presentedoShahinshahparaoGrão-Mogol.Os cortesãos, entretanto, não se deram por vencidos. Unidos
poressaafrontaàssuasreivindicações,decidiramtramaraquedadoMulá.Primeiro,invadiramseualojamentoeroubaramasjoias,quedividiramentreeles,substituindo-asporterraparadarpeso.Então, convocaram Nasrudin, determinados a arruinar suaembaixada,aencrencá-loe,dequebra,desacreditartambémseuamoesenhor.“Parabéns,grandeNasrudin”,disserameles. “Oqueordenoua
Fonte da Sabedoria, o Pavão do Mundo, deve ser a essência detodoosaber.Portanto,nósosaudamos.Mashádoispontossobreos quais podemos aconselhá-lo, pois sabemos como devem secomportarosemissáriosdiplomáticos.”“Ficareiagradecidopeloquemedisserem”,falouNasrudin.“Muitobem”,disseochefedosconspiradores.“Aprimeiracoisa
équevocêdeveserhumilde.Assim,paramostrarquãomodestovocê é, não deve exibir nenhum sinal de importância. Quando
chegaràÍndia,vocêentraráemtantasmesquitasquantopuderearrecadarádinheiropara simesmo.A segunda coisa équedeveobservar a etiqueta da corte do país ao qual foi enviado. IssosignificaqueirásereferiraoGrão-Mogolcomo‘aLuaCheia’.”“Masessenãoéumtítulodoimperadorpersa?”“NãonaÍndia.”Assim,Nasrudinpartiu.Quandosedespediram,oimperadorda
Pérsia lhe disse: “Tenha cuidado, Nasrudin. Mantenha-se fiel àetiqueta, pois o Mogol é um imperador poderoso e temos queimpressioná-lo,massem,deformaalguma,afrontá-lo.”“Estoubempreparado,Majestade”,disseNasrudin.Tão logo adentrou o território indiano, Nasrudin foi até uma
mesquita, subiunopúlpitoebradou: “Ó,povo!VejamemmimorepresentantedaSombradeAllahsobreaterra!OEixodoGlobo!Tiremodinheirodobolso,poisestoufazendoumacoleta.”Ele repetiu isso em cadamesquita que encontrou por todo o
caminhodesdeoBaluchistãoatéaimperialDélhi.Nasrudinarrecadouumagrandequantidadededinheiro.“Faça
o que quiser com o dinheiro”, os conselheiros lhe haviam dito,“poiseleéfrutodocrescimentointuitivoedadoação,ecomotalseu uso criará sua própria demanda.” Tudo o que eles queriamque acontecesse era que o Mulá fosse exposto ao ridículo porarrecadardinheirodessamaneira“sem-vergonha”.“Osantodeveviver da sua santidade”, urrou Nasrudin de mesquita emmesquita.“Nãodevoenãoesperoexplicaçãoalguma.Paravocês,o dinheiro é algo a ser acumulado depois de ser obtido. Vocêspodem trocá-lo por coisas materiais. Para mim, é parte de ummecanismo. Sou o representante de uma força natural decrescimentointuitivo,doaçãoedesembolso.” Agora,comosabemos,obemmuitasvezesdecorredeummal
aparente, e vice-versa. Aqueles que pensaram que Nasrudinestava forrando o próprio bolso não contribuíram. Por algumarazão, seus negócios não prosperaram. Aqueles tidos comocrédulos e que deram dinheiro, enriqueceram de maneiramisteriosa.Masvoltemosànossahistória.SentadonoTronodoPavão,emDélhi,oimperadoranalisavaos
relatórios diários trazidos pelos mensageiros, descrevendo o
progresso do embaixador persa. A princípio, ele não conseguiaencontrarsentidoneles.Então,reuniuoconselho.“Cavalheiros”,disse,“esseNasrudindeveser,defato,umsanto
ou um dos divinamente guiados. Quem já ouviu falar de maisalguém violando o princípio de que não se deve tentar obterdinheiro sem uma razão plausível, para que seus motivos nãosejaminterpretadoserroneamente?”“Que sua sombra jamaisdiminua”, eles replicaram. “Ó Infinita
ExtensãodeTodaaSabedoria,concordamos.SeháhomensassimnaPérsia,devemostercuidado,poissuaascendênciamoralsobrenossaperspectivamaterialistaéevidente.”Então,ummensageirochegoudaPérsiacomumacartasecreta
naqualosespiõesdoMogolnacorteimperialreportavam:“MuláNasrudinéumhomemsemimportâncianaPérsia.Foiescolhidocompletamente ao acaso para ser embaixador. Não podemoscompreenderarazãoparaoShahinshahnãosermaisseletivo.”OMogolreuniuoconselhoedisse:“IncomparáveisPássarosdo
Paraíso! Um pensamento semanifestou paramim. O imperadordaPérsiaescolheuumhomemaoacasopara representar todaanação. Isso pode significar que é tão confiante da qualidadeuniforme de seu povo que, para ele, QUALQUER UM ESTÁQUALIFICADO PARA EMPREENDER A DELICADA TAREFA DEEMBAIXADORNASUBLIMECORTEDEDÉLHI!Issomostraograude perfeição que alcançaram, os impressionantes e infalíveispoderes intuitivos cultivados entre eles. Devemos reconsiderarnosso desejo de invadir a Pérsia, pois um povo assim poderiafacilmente subjugar nossos exércitos. A sociedade deles estáorganizadaembasesdiferentesdasnossas.”“O senhor está certo, Guerreiro Maior nas Fronteiras!”,
bradaramosnobresindianos.Porfim,NasrudinchegouàcidadedeDélhi.Montavaseuvelho
burroeeraseguidoporsuaescolta,sobrecarregadaporcontadossacosdedinheiroqueelehaviacoletadonasmesquitas.Aarcadotesouro estava instalada sobre um elefante, de tão grande epesadaqueera.Nasrudinfoirecebidopelomestredecerimôniasnoportãode
Délhi.Oimperadorestavasentadocomseusnobresnumimenso
pátio,aSaladeRecepçãodosEmbaixadores.Elaforaplanejadademaneira que a entrada era baixa. Como consequência, osembaixadores eram sempre obrigados a desmontar de seuscavalosechegaràSupremaPresençaapé,dandoaimpressãodepedintes.Apenasumigualpoderiacavalgaratéapresençadeumimperador.Nunca nenhum embaixador havia chegado montado num
burro, e portanto, não havia nada que impedisse Nasrudin detrotardiretamentepelaportaatéoPódioImperial.O rei indiano e seus cortesãos trocaramolhares significativos
diantedesseato.Nasrudin desmontou alegremente, referiu-se ao rei como “a
LuaCheia”epediuqueobaúcomotesourofossetrazido.Quando a tampa foi aberta, e a terra revelada, houve um
momentodeconsternação.“Émelhornãodizernada”,pensouNasrudin,“poisnãohánada
adizerquepossamitigarisso.”Então,permaneceuemsilêncio.OMogol sussurroupara seuvizir: “Oque isso significa?Éum
insultoàSupremaEminência?”Incapaz de acreditar nisso, o vizir refletiu desesperadamente.
Então,deusuainterpretação.“É um ato simbólico, Presença”, murmurou. “O Embaixador
quer dizer que o reconhece como o Senhor da Terra. Ele não ochamoude‘aLuaCheia’?”O Mogol relaxou. “Estamos satisfeitos com a oferenda do
Shahinshahpersa,poisnãocarecemosderiquezaseapreciamosasutilezametafísicadamensagem.”“Fui instruídoadizerque issoé tudooque temosparaVossa
Majestade”, falouNasrudin, lembrando-se da “frase essencial aosedarpresentes”,quelheensinaramosconspiradoresnaPérsia.“Isso significa que a Pérsia não vai nos ceder nem mais um
palmo do seu solo”, sussurrou para o rei o intérprete depresságios.“Diga a seu senhor que entendemos”, replicou sorrindo o
Mogol. “Mas há outro ponto: se sou a Lua Cheia, o que é oimperadorpersa?”“EleéaLuaNova”,respondeuNasrudin,automaticamente.
“ALuaCheiaémaismaduraedámaisluzqueaLuaNova,maisjovemqueela”,sussurrouoastrólogodacorteparaoMogol.“Estamos satisfeitos”, disse o indiano, encantado. “Você pode
voltar para a Pérsia e dizer para a LuaNova que a Lua Cheia asaúda.”Os espiões persas na corte de Délhi imediatamente enviaram
um relato completo desse encontro para o Shahinshah. Elesacrescentaram que era notório que o imperador Mogol ficaraimpressionado e temeroso de planejar uma guerra contra ospersasporcausadaatuaçãodeNasrudin.Quando o Mulá retornou, o Shahinshah o recebeu numa
audiêncialotada.“Estoumaisdoquesatisfeito,amigoNasrudin”,disse, “com os resultados dos seus métodos pouco ortodoxos.Nosso país está a salvo, e isso significa que não haveránecessidadealgumadeprestarcontasdas joiasoudacoletanasmesquitas. De hoje em diante, você será conhecido pelo títuloespecialdeSafir,Emissário.”“Mas,VossaMajestade”,sibilouovizir,“essehomeméculpado
de alta traição, ou pior! Temos provas de que atribuiu aoimperador da Índia um de vossos títulos, mostrando, portanto,lealdade a ele e trazendo desonra a um de vossos magníficosatributos.”“Sim”,esbravejouoShahinshah,“ossábiosdisseramque ‘para
cada perfeição há uma imperfeição’. Nasrudin! Por que mechamoudeLuaNova?”“Nãoconheçooprotocolo”,respondeuNasrudin,“masseiquea
Lua Cheia está prestes a minguar e a Lua Nova ainda estácrescendo,tendoàsuafrenteasmaioresglórias.”Ohumordoimperadormudou.“PrendamAnwar,ogrão-vizir!”,
ordenou.“Mulá,eulheofereçoopostodegrão-vizir!”“O quê?”, exclamou Nasrudin. “Como eu poderia aceitar esse
cargodepoisdevercommeusprópriosolhosoqueaconteceuaomeupredecessor?”E o que aconteceu às joias e aos tesouros que os perversos
cortesãos usurparam da arca do tesouro? Essa é uma outrahistória. Como disse o incomparável Nasrudin: “Apenas ascriançaseoestúpidobuscamcausaeefeitonamesmahistória.”
NASRUDIN E OS SÁBIOS
Filósofos, lógicos e doutores em direito reuniram-se na corteparainterrogarNasrudin.Eraumcasosério,poiseleadmitirateridodealdeiaemaldeiadizendo:“Ospretensoshomenssábiossãoignorantes,irresolutoseconfusos.” ElefoiacusadodedebilitarasegurançadoEstado.“Vocêpodefalarprimeiro”,disseoreiaNasrudin.“Quepapéisepenassejamtrazidos”,disseoMulá.Papéisepenasforamtrazidos.“Queessematerialsejadistribuídoparacadaumdosprimeiros
seteeruditos.”Omaterialfoidistribuído.“Que cada um, separadamente, escreva uma resposta para a
pergunta:‘Oqueépão?’”Assimfoifeito.Ospapéisforamentreguesaorei,queosleuemvozalta.Oprimeirodizia:“Pãoéumalimento.”Osegundo:“Farinhaeágua.”Oterceiro:“UmadádivadeDeus.”Oquarto:“Massaassada.”O quinto: “Mutável, de acordo com o que se quer dizer com
‘pão’.” Osexto:“Umasubstâncianutritiva.”Osétimo:“Ninguémrealmentesabe.”“Quando eles decidirem o que é pão”, disse Nasrudin, “será
possível decidirem outras coisas como, por exemplo, se estoucerto ou errado. Pode-se confiar questões de avaliação ejulgamentoapessoasassim?Éounãoestranhoquenãoconsigamconcordar sobre uma coisa que comem todos os dias, porémsejamunânimesquantoaeuserumherege?”
JULGAMENTO
Quando o Mulá era juiz na aldeia, uma figura desgrenhadaadentrouotribunalclamandoporjustiça.“Fui atacado e roubado bem na saída desta aldeia!”, gritou.
“Deve ter sido alguém daqui. Exijo que encontre o culpado. Elepegoumeumanto,minhaespadaeatéminhasbotas.”“Vejamos”, disse o Mulá, “ele não levou a camisa, que, como
possover,aindaestáusando?”“Não,nãolevou.”“Sendoassim,elenãoeradessaaldeia.Aquiascoisassãofeitas
deformaminuciosa.Nãopossoinvestigarseucaso.”
PRIMEIRO AS PRIMEIRAS COISAS
Paraosufi,talvezomaiorabsurdonavidasejaamaneiracomoas pessoas anseiam pelas coisas – como o conhecimento, porexemplo – sem o equipamento básico para adquiri-las. Elassupõem que só precisam de “dois olhos, um nariz e uma boca”,comodizNasrudin.Nosufismo,umapessoanãopodeaprenderatéqueestejanum
estado em que possa perceber o que está aprendendo, e o quesignifica.Umdia,Nasrudinfoiatéumpoçoafimdeensinaressepontoa
umdiscípulo quequeria conhecer “a verdade”. Nasrudin levouconsigoodiscípuloeumcântaro. OMulápuxouumbalded’águaeoderramounocântaro.Então,
puxouumoutrobaldeeoderramounovamente.Quandoestavaentornando o terceiro balde, o discípulo não se conteve mais edisse:“Mulá,aáguaestáescoando.Essecântaronãotemfundo.”Nasrudin olhou para ele indignado. “Estou tentando encher o
cântaro.Paraverquandoestará cheio,meusolhosestão fixadosnogargalo,nãonofundo. Quandoeuviraáguasubirnogargalo,o cântaro estará cheio. O que o fundo tem a ver com isso?Somentequandoeuestiverinteressadonofundodocântaroéqueolhareiparaele.”Épor issoqueos sufisnão falamsobre coisasprofundas com
pessoas que não estão preparadas para cultivar o poder doaprendizado; algo que só pode ser ensinado por um mestre aalguém que seja suficientemente esclarecido a ponto de dizer:“Ensine-meaaprender.”Há um ditado sufi: “Ignorância é orgulho e orgulho é
ignorância. O homem que diz ‘não tenho que ser ensinado aaprender’ é orgulhoso e ignorante.” Nessa história, Nasrudinilustraaidentidadedessesdoisestadosqueoserhumanocomumconsideracomosendoduascoisasdiferentes.
Deacordocomatécnicaconhecidacomo“opróbrio”,Nasrudinestava desempenhando o papel do homem ignorante na suacharadadocântaro.Esseéumpapelconhecidodatécnicasufi.O discípulo ponderou sobre a lição, relacionando-a a outras
açõesabsurdasdoMulá.Umasemanadepois,elefoiatéNasrudine disse: “Ensine-me sobre o cântaro. Agora estou pronto paraaprender.”
QUEM DISPAROU?
A feira estava em plena agitação, e o discípulomais velho deNarsudin lhe perguntou se seria permitido a ele e a seuscompanheirosvisitá-la.“Certamente”, disse Nasrudin, “pois essa é uma oportunidade
idealdeprosseguircomoensinamentoprático.”OMulá se encaminhou diretamente para a barraca de tiro ao
alvo, uma das maiores atrações, pois grandes prêmios eramoferecidosparaquemacertassebemnamosca.ComoaparecimentodoMuláeseurebanho,osmoradoresda
cidade se aglomeraram.QuandoNasrudin pegou um arco e trêsflechas, a tensão aumentou. Aqui, certamente, ficariademonstradoqueNasrudin,àsvezes,sesuperava...“Estudem-mecomatenção.”OMuláflexionouoarco,empurrou
o gorro para trás da cabeça como um soldado, miroucautelosamenteeatirou.Aflechapassoumuitolongedoalvo.Houve um alarido de escárnio da multidão, e os pupilos de
Nasrudin se agitaram apreensivos, murmurando uns com osoutros. O Mulá se virou e os encarou. “Silêncio! Essa foi umademonstração de como o soldado atira. Ele,muitas vezes, passalonge do alvo. É por isso que perde guerras. No momento queatirei, eu estava identificado com um soldado. Disse a mimmesmo:‘Souumsoldado,atirandonoinimigo.’”Eleapanhouasegundaflecha,deslizou-aparadentrodoarcoe
puxouacorda. Aflechacaiuameiocaminhodoalvo.Houveumsilênciomortal. “Agora”, disse Nasrudin para sua trupe, “vocês assistiram ao
disparo de um homem que estava ansioso demais para atirar eque, alémdisso, tendo falhado na sua primeira tentativa, estavanervosodemaisparaseconcentrar.Aflechanãochegou.”Até mesmo o dono da barraca estava fascinado com as
explicações. O Mulá se virou despreocupadamente para o alvo,
mirouedeixousuaflechavoar.Eleacertoubemnamosca.Comvagar proposital, ele inspecionou os prêmios, escolheu o
quemaisgostouecomeçouaseretirar.Irrompeuumaalgazarra.“Silêncio!”, gritouNasrudin. “Queumde vocêsmepergunte o
quetodosqueremsaber.”Por um momento ninguém falou. Então, um caipira avançou
arrastando os pés e disse: “Queremos saber qual de vocêsdisparouaterceiraflecha.”“Aquela?Ah,aquelafuieu.”
A BOLSA MÁGICA
Umcamelôqueplanejavamontarbarracanapraçadomercadoviu Nasrudin vindo na direção dele contando um punhado demoedas. Ele o deteve imediatamente. Com alguma sorte,conseguiriaaplicarumgolpe.“Vocêmepareceumhomemcomumapercepçãoexcepcional”,
disseaNasrudin.“Gostariadeumembornalmágico?”“Oqueelepodefazer?” “Apenasolheeveja.”O ilusionista colocou a mão na bolsa e retirou primeiro um
coelho, depois uma bola e, finalmente, uma planta que crescianumvaso.Nasrudinrapidamentelhedeuodinheiroquelevava.“Sóumacoisa”,disseoilusionistatentandoganhartempopara
seguircaminho,“nãoairrite.Essasbolsassãotemperamentais.Enãocontenadaàspessoassobreisso.Nofim,tudovaidarcerto.”Nasrudin tinha planejado passar o resto da tarde na casa de
chá,mas agora estava tão entusiasmado que seguiu direto paracasacomabolsanasmãos.Aospoucos,foificandomuitoquente,eeleficoucansadoecomsede. OMulásesentounabeiradaestrada.“Bolsamágica”,ordenou,
“dê-meumcopod’água.”Elecolocouamãodentrodabolsa,masestavavazia.“Ah”, pensou Nasrudin, “talvez esteja apenas dando coelhos,
bolaseplantasporqueétemperamental.”Eleachouquenãofariamalalgumtestá-la.“Certo,então,dê-meumcoelho.”Nenhumcoelhoapareceu. “Não fique irritada comigo, eu simplesmente não entendo de
bolsasmágicas.” Uma vez, quando seu burro ficou irritado, lembrouNasrudin,
elelhecomprouumembornal.Então,voltouàcidademontadonoburroecomprouumburroparaonovoembornal.
“Oqueestáfazendocomdoisburros?”,alguémexclamou.“Você não entende”, replicou oMulá. “Não são dois burros. É
umburrocomseuembornal,eumembornalcomseuburro.”
MEDO
Nasrudin caminhava por uma estrada deserta numa noiteenluarada,quandoouviuumroncoquepareciavirdealgumlugarsob seus pés. De repente, ficou com medo e estava prestes acorrer quando tropeçou num dervixe que estava deitado,parcialmenteencoberto,numavalaquecavaraparasimesmo. “Quemévocê?”,balbuciouoMulá.“Souumdervixeeesteémeulugardecontemplação.”“Vaiterquemedeixarcompartilhá-locomvocê.Seuroncome
aterrorizouenãopossoseguiradianteestanoite.”“Pegue a outra ponta desse cobertor, então”, disse o dervixe,
sem entusiasmo, “e deite-se aqui. Por favor, fique quieto, poisestou emvigília. É partedeuma complicada série de exercícios.Amanhã, tenho que mudar o padrão e não vou tolerarinterrupções.”Nasrudin adormeceu por um tempo. Depois, acordou com
muitasede.“Estoucomsede”,disseaodervixe.“Voltepelaestrada,ondeháumriacho.”“Não,aindaestoucommedo.”“Farei issoparavocê,então,”disseodervixe.Afinaldecontas,
proveráguaéumaobrigaçãosagradanoOriente.“Não,nãová.Tereimedodeficarsozinho.”“Pegueessafacaparasedefender”,disseodervixe.Enquantoooutroestavafora,Nasrudinseassustouaindamais,
suando em bicas de pura ansiedade, que tentou dissiparimaginandocomoatacariaqualquerdemônioqueoameaçasse. Nesseinstanteodervixevoltou.“Mantenhadistânciaouvoumatá-lo!”,ameaçouNasrudin.“Massouodervixe”,respondeu.“Não me importa quem seja. Você pode ser um demônio
disfarçado. Além domais, você tem a cabeça e as sobrancelhas
raspadas!” Os dervixes daquela Ordem raspam a cabeça e assobrancelhas.“Mas eu vim lhe trazer água! Você está com sede! Não se
lembra?”“Nãotentemeagradar,Demônio!”“Masessavalaquevocêestáocupandoéminha!”“Queazaroseu,não?Vaiterqueencontraroutrolugar.”“Acho que sim”, respondeu o dervixe, “mas tenho certeza de
quenãoentendinada.”“Uma coisa eu posso lhe dizer”, falou Nasrudin: “o medo é
multidirecional.” “Ele certamenteparece sermais forte que a sede, a sanidade,
ouapropriedadedeoutraspessoas”,replicouodervixe.“E não é preciso que você o sinta para sofrer comele!”, disse
Nasrudin.
O MANTO
Jalal,umvelhoamigodeNasrudin,visitou-ocertodia.OMuládisse: “Estou encantado em vê-lo depois de tanto tempo.Entretanto, estava prestes a iniciar uma série de visitas. Venha,acompanhe-meepoderemosconversar.”“Empreste-meummantodecente”,disseJalal,“pois,comopode
ver,nãoestouvestidoadequadamenteparavisitas.”Nasrudinlheemprestouummantomuitobonito.Naprimeiracasa,Nasrudinapresentouseuamigo.“Esseémeu
velhocompanheiro,Jalal,masomantoqueestávestindoémeu!”A caminho da aldeia vizinha, Jalal comentou: “Que coisa
realmente estúpida de se dizer, ‘omanto émeu’! Não façamaisisso.”Nasrudinprometeuquenãofaria.Quando estavam sentados confortavelmente na casa seguinte,
Nasrudindisse:“EsseéJalal,umvelhoamigoqueveiomevisitar.Masomanto...omantoédele!”Quando partiram, Jalal estava tão irritado quanto da vez
anterior.“Porquedisseaquilo?Estálouco?”“Só quis compensar. Agora estamos quites”, respondeu
Nasrudin.“Se não se importa”, disse Jalal, lenta e cautelosamente, “não
devemos mais falar sobre o manto.” E Nasrudin prometeu quenãofalaria.No terceiro e último lugar de visitação, Nasrudin disse:
“Deixe-meapresentar Jalal,meu amigo. E omanto, omantoqueestá vestindo... Mas não devemos falar nada sobre o manto,devemos?”
SALVOU A VIDA DELE
Nasrudin, quando estava na Índia, passou perto de umaconstrução de aparência estranha, à entrada da qual estavasentado um eremita. Tinha um ar de abstração e calma, eNasrudin pensou em fazer algum tipo de contato com ele.“Certamente”, refletiu, “um filósofo devoto como eu deve teralgumacoisaemcomumcomesseindivíduovirtuoso.”“Souumiogue”,disseoanacoreta,emrespostaaoMulá,“eme
dedico ao serviço de todas as coisas vivas, especialmente dospássarosedospeixes.”“Porfavor,permitaquemejunteavocê”,disseNasrudin,“pois,
comosuspeitara,temosalgoemcomum.Seussentimentosmuitomeagradam,porque,certavez,umpeixesalvouminhavida.”“Que maravilha!”, exclamou o iogue. “Ficarei encantado de
admiti-lo em nosso círculo. Em todos esses anos de devoção àcausa dos animais, nunca tive o privilégio de estabelecercomunhãotãoíntimacomelesquantovocê.Salvousuavida!Issoconfirmaamplamentenossadoutrinadequetodooreinoanimalestáinterligado.”Assim,Nasrudin se sentou como ioguepor algumas semanas
contemplando o umbigo e aprendendo diversas ginásticascuriosas.Finalmente, o iogue pediu a Nasrudin: “Caso se sinta capaz,
agora que nos conhecemos melhor, de me comunicar suaexperiênciasupremacomopeixesalva-vida, ficareimaisdoquehonrado.”“Não tenho tanta certeza”, respondeu o Mulá, “agora que
conheço melhor suas ideias.” Mas o iogue o pressionou, comlágrimasnosolhos,chamando-ode“Mestre”eesfregandoatestanapoeiradochãodiantedele.“Muitobem,seinsiste”,disseNasrudin.“Emboraeunãoesteja
muitosegurodequevocêestejapronto–usandosuamaneirade
falar – para a revelação que tenho a fazer. O peixe certamentesalvou minha vida. Eu estava à beira da inanição quando opesquei.Elemeforneceualimentoportrêsdias.”
QUATRO PATAS
“Quesetragaalimentoparaosquadrúpedes”,bradouumnobreafetadoesoberbo,aodesmontardocavalonopátiodeNasrudin,“equeeusejaconduzidoaaposentosconfortáveisondepossameregalarcomumarefeiçãoadequada.”Era difícil não atender aos membros da corte do sultão, e
Nasrudincorreuparacumprirasordens.Quando o intruso estava acomodado no melhor sofá,
bebericando o café de Nasrudin, o Mulá trouxe o kazi(magistrado)paraconhecê-lo.“Ó,grandenobre”,perguntouNasrudin,“vocêtemterras?”“Ummilhãodejaribes.”“Eusaquadrúpedesparaarar?”“Sim,certamente.”“Compraria de mim duas dúzias de quadrúpedes por cinco
peçasdepratacadaum?”O aristocrata sabia que animais para a aragem valiam cem
peçasdeprata.Eleavidamenteconcordou.Nasrudinsaiuecomprouvinteequatrocoelhosporumapeça
depratacada.Eleapresentouosquadrúpedesparaonobre.Onobrerecorreuaokazi.“Devemoscumprira leiaopéda letra”,disseopedante, “eeu
confirmoaalegaçãodequecoelhostêmquatropatas.”
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Houve uma grande inquietação no país e o rei enviou uma“delegação cultural” pelas aldeias para tranquilizar a população.Em todos os lugares, as pessoas ficarammuito impressionadas,pois a delegação representava um conjunto imenso deconhecimentoeespecializações.Umera escritor, outro sacerdote, um terceiro eramembroda
família real. Havia um advogado, um soldado e um mercador,alémdemuitosoutros.Emcadaaldeiaqueparavam,convocavamumaassembleianoespaçoabertomaispróximo,easpessoassereuniamefaziamperguntas.Quando chegaram à vila de Nasrudin, umamultidão liderada
pelo prefeito lhes deu as boas-vindas. Perguntas foram feitas erespondidas, e todos foram influenciados, em algum nível, pelorefinamentoepelaimportânciadadelegação. Nasrudinchegoutarde,masporserumacelebridade local, foi
empurradoparafrente.“Oqueestãofazendoaqui?”,perguntou.O presidente da mesa sorriu compassivamente. “Somos um
grupodeespecialistaseestamosaquipararespondera todasasperguntasqueaspessoasnãopodemresponderporsimesmas.Equemévocê?”“Ah,eu?”,disseNasrudindeimproviso.“Émelhorqueeuesteja
aínaplataforma.”Elesubiueficouaoladodosdignitários.“Vejam,estouaquipararesponderàsperguntasparaasquais
vocês não têm respostas. Que tal começarmos com algumas dascoisasquedesconcertamvocês,doutoscavalheiros?”
O SIGNO1
Nasrudinalegouconhecerasestrelas.“Sobquesignovocênasceu,Mulá?”“PropriedadePrivada–Afaste-se!”“Não,não,osignodozodíaco.”“Ah,entendi.Osignodoburro.”“Signodoburro?Nãomelembrodesse.”“Bem, você émais velho do que eu. Sabe, apareceram alguns
signosnovosdesdeasuaépoca.”
1 The Sign, no original. A palavra sign em inglês pode significar tanto signo
zodiacalquantotabuletaouplaca.(N.E.)
TUDO CULPA DELA
Nasrudin tentava colocar um novilho no curral, mas ele serecusava a entrar. Então, foi até a mãe do animal e começou arepreendê-la.“Porquevocêestágritandocomessavaca?”,alguémperguntou
aNasrudin.“Étudoculpadela”,elerespondeu,“poisdeveriatê-loensinado
melhor.”
OS HÁBITOS DOS ESTRANGEIROS
Nasrudininvadiuumpomarecomeçouacolherdamascos.Derepente, o jardineiro o viu. O Mulá imediatamente subiu numaárvore.“Oqueestáfazendoaqui?”,perguntouojardineiro.“Cantando.Souumrouxinol.”“Certo,rouxinol,deixe-meouvirseucanto.”Nasrudin gorjeou algumasnotas desafinadas, tãodiferentede
umpássaroqueojardineirogargalhou.“Nuncaouviessetipoderouxinol”,comentou.“Vocêevidentementenuncaviajou”,disseoMulá.“Euescolhia
cançãodeumrouxinolraroeexótico.”
PÉ QUEIMADO
UmanalfabetofoiatéNasrudinelhepediuqueescrevesseumacarta. “Nãoposso”,respondeuoMulá,“poisqueimeimeupé.”“Oqueissotemavercomescreverumacarta?”“Comoninguémconseguelerminhaletra,souobrigadoaviajar
até o lugar para interpretar a carta que escrevi. E meu pé estádolorido;assim,nãoháporqueescreveracarta,há?”
LUAS VELHAS
“Oque fazemcoma lua velhaquandoháuma luanova?”, umbrincalhãoperguntouaNasrudin. “Elesapicotam.Cadaluavelhafornecequarentaestrelas.”
A LEI AO PÉ DA LETRA
Nasrudin encontrou na rua um anel valioso. Ele queria ficarcom o anel, mas de acordo com a lei, aquele que encontra umobjeto temque ir até apraçadomercadoe anunciaro fato trêsvezesemvozalta.Às três da manhã o Mulá foi até a praça e gritou três vezes:
“Encontreiumanelassim-assado.”Aoterceirogrito,aspessoascomeçaramaaparecernasruas. “Doquesetrata,Mulá?”,perguntaram.“Aleideterminaumatriplarepetição”,respondeuNasrudin,“e
peloqueseipossoinfringiraleiseeudisseramesmacoisaumaquartavez.Maseulhesdireioutracoisa:souoproprietáriodeumaneldediamantes,sim,senhores.”
O GATO ESTÁ MOLHADO
Nasrudin arranjou um emprego de vigia. Um dia, o patrão ochamouelheperguntouseestavachovendo.“Tenhoqueirverosultão, mas a tintura do meu manto favorito não estácompletamente fixada. Se estiver chovendo, o manto ficaráarruinado.”Acontece que Nasrudin era muito preguiçoso; e, além disso,
orgulhava-sedeserummestredadedução.Ogatotinhaacabadodeentrarcomoumraio,completamenteensopado.“Patrão”,disseele,“estáchovendomuito.”O patrão levou algum tempo para se arrumar com outra
indumentária;saiuedescobriuquenãoestavachovendo.Ogatoestava encharcado porque alguém jogara água nele paraespantá-lo. Nasrudinfoidemitido.
DORMIR É UMA ATIVIDADE
Nasrudin queria roubar frutas de uma barraca, mas o donomantinhaumaraposacomovigia. Eleouviuohomemdizerparaa raposa: “Asraposassãomais
espertasqueoscães,eeuqueroquevocêtomecontadabarracacom astúcia. Sempre há ladrões rondando. Quando vir alguémfazendoalgumacoisa,pergunte-seporqueeleestáfazendoissoesepodeestarrelacionadoàsegurançadabarraca.” Quando o homem foi embora, a raposa foi para frente da
barracaeolhouparaNasrudinespreitandonumgramadodoladooposto. Imediatamente, Nasrudin se deitou e fechou os olhos. Araposapensou:“Dormirnãoéfazeralgumacoisa.”ÀmedidaqueobservavaNasrudin,araposatambémcomeçou
asesentircansada.Elasedeitoueadormeceu.Então, Nasrudin passou sorrateiramente por ela e roubou
algumasfrutas.
A CRIANÇA É PAI DO HOMEM
Nasrudinchegouaumacorridadecavalosabertaa todosquequisessem participar montado no mais lento dos bois. Todomundogargalhou;umboinãoconseguecorrer.“Maseuovi,quandoeraapenasumnovilho,corrermaisrápido
que um cavalo”, disse Nasrudin. “Por que não correria maisrápidoagoraqueestámaior?”
QUALQUER NINHARIA AJUDA
Nasrudincarregouoasnocomlenhae,emvezdesesentarnasela,montousobreumadastoras. “Porquenãosesentanasela?”,alguémperguntou.“O quê? E somar meu peso ao que o pobre animal tem que
carregar?Meupesoestánamadeira,evaipermaneceraí.”
PROFUNDEZAS OCULTAS
Umdia,oMuláestavanomercadoeviupássarosàvendaporquinhentosréiscada.“Meupássaro,queémaiorquequalquerumdesses,valemuitomais”,pensou.No dia seguinte, levou sua ave de estimação ao mercado.
Ninguém lhe oferecia mais de cinquenta réis por ela. O Mulácomeçou a esbravejar: “Ó, povo! Isso é uma desgraça! Ontemvocês vendiam pássaros com a metade desse tamanho por dezvezesmais.”Alguém o interrompeu. “Nasrudin, aqueles eram papagaios,
pássarosfalantes.Elesvalemmaisporquefalam.”“Tolo!”, gritou Nasrudin. “Você valoriza aqueles pássaros só
porque sabem falar. Esse aqui, que tem pensamentosmaravilhosose,alémdisso,nãoincomodaaspessoastagarelando,vocêrejeita.”
AO CONTRÁRIO
Nasrudin foi visitado por alguns estudantes que lheperguntaram se poderiam ouvir suas lições. Ele concordou etodos saíram em direção ao anfiteatro, andando atrás do Mulá,quemontounoburrocomorostoviradoparaorabodoanimal.As pessoas começaram a olhar fixamente para ele. Pensaram
queoMuládeviaserumtoloeosestudantesqueoseguiammaistolosainda.Quem,afinaldecontas,segueumhomemquemontaaocontrárionumburro?Depois de um tempo, os estudantes começaram a ficar
inquietos e perguntaram ao Mulá: “Ó, Mulá! As pessoas estãoolhandoparanós.Porqueestámontadodessamaneira?”Nasrudinfranziuocenho.“Vocêsestãorefletindomaissobreo
que as pessoas pensam do que sobre o que estamos fazendo”,respondeu. “Vou lhes explicar. Se vocês caminhassem naminhafrente estariam me desrespeitando, porque voltariam as costasparamim.Seeuandasseatrásdevocêsaconteceriaomesmo.Seeu fosse à frente, dando as costas para vocês, isso mostrariadesrespeitoporvocês.Essaéaúnicamaneiradefazê-lo.”
PRINCÍPIOS DO SALVAMENTO DE VIDAS
Nasrudinnão tinha certeza comqual entreduasmulhereselesecasaria.Umdia,asduasoencurralarameperguntaramqualeleamavamais. “Situemaquestãonumcontextopráticoetentareiresponder”,
eledisse.“Se nós duas caíssemos no rio, qual das duas você salvaria?”,
indagouamenoremaisbonita.OMulá se voltoupara aoutra, umamulher grandalhona,mas
abastada,eperguntou:“Vocêsabenadar,minhaquerida?”
IMPRÓPRIO
“Pegueessesacoeleve-oparaminhacasa”,ordenouNasrudinaumcarregadornomercado.“Souseucriado,Effendi.Ondeficasuacasa?”O Mulá olhou horrorizado para o homem. “Você é um
arruaceiro mal afamado e, provavelmente, um ladrão. Achamesmoqueeulhediriaondeficaminhacasa?”
ESPREITANDO A SI MESMO
Anoite iaaltaquandoBedar,oVigia,pegouNasrudindo ladodeforadacasaforçandoajaneladopróprioquarto.“O que está fazendo, Nasrudin? Ficou trancado do lado de
fora?”“Silêncio!Dizemqueandoenquantodurmo.Estoutentandome
pegardesurpresaedescobrir.”
A NECESSIDADE DELE ERA MAIOR DO QUE A MINHA
Certodia,oMulátrouxeparacasaumabarradesabãoepediuàesposaquelavassesuacamisa.Assimqueelacomeçouaensaboá-la,umenormecorvodeuum
rasante,agarrouosabãoevoouparalonge,pousandonogalhodeumaárvore.Eladeuumgritofurioso.O Mulá saiu da casa correndo. “O que aconteceu, minha
querida?”“Estava prestes a lavar sua camisa quando aquele corvo
enormemergulhoueroubouosabão!”O Mulá ficou completamente impassível. “Olhe para a cor da
minha camisa e olhe para a roupa do corvo. A necessidade deleera,semdúvida,maiordoqueaminha.Quebomqueelefoicapazdeobtersabão,mesmoqueàsminhascustas.”
APANHADO
O rei enviouumamissão secretapelo interior para encontrarumhomemmodestoquepudessesernomeado juiz.Nasrudinseinteiroudofato.Quando a delegação, fazendo-se passar por um grupo de
viajantes, visitou Nasrudin, os integrantes perceberam que eleusavaumarededepescaestendidasobreosombros.“Porqueestávestindoessarede?”,umdelesperguntou.“Apenasparamelembrardaminhaorigemhumilde,poisjáfui
pescador.”Nasrudinfoinomeadojuizcombasenessesentimentonobre.Umdia,visitandoo tribunal,umdosoficiaisqueohaviavisto
naquela ocasião perguntou: “O que aconteceu com sua rede,Nasrudin?”“Certamente,nãoexisteanecessidadedeumarede”,respondeu
oMulá-Juiz,“umavezqueopeixejáfoiapanhado.”
GRAÇAS A...
Nasrudinviu,napenumbra,umvultobranconojardim,epediuàesposaquelhepassasseoarcoeasflechas.Eleacertouoobjetoefoiláforaveroqueera.Voltouquasetendoumcolapso.“Foi por um triz. Imagine só: se eu estivesse naquela minha
camisapenduradaaliparasecar,euteriamorrido.Elafoiatingidabemnocoração.”
PUXOU AO PAI
Alguns dos rebentos doMulá estavam brincando ao redor dacasaealguémperguntouaopequeno:“Oqueéumaberinjela?”Oprimogênito imediatamenterespondeu: “Umbezerrocorde
malvaqueaindanãoabriuosolhos.”Exultante de satisfação, oMulá pegou omenino nos braços e
beijou-lheacabeçaeospés.“Escutousó? Igualzinhoaopai!Eeununca lhedissenada;ele
mesmoinventou!”
ACENDA A VELA
Nasrudinestavasentadoconversandocomumamigoaocairdanoite.“Acendaumavela”,ohomemfalou,“porqueestáescuroagora.
Temumabemdoseuladoesquerdo.”“Comopossodistinguirdireitaeesquerdanoescuro,seutolo?”,
perguntouoMulá.
APRENDENDO DA MANEIRA MAIS DIFÍCIL
Se você disser algo para alguém usando palavras demais, éprovável que elas resvalem e não sejam absorvidas. Métodospráticossãocruciais.Nasrudin estava trabalhando no telhado de casa quando um
faquirochamouládebaixo.OMuládesceu,eohomemlhedisse:“Dê-meumaesmola.”“Porquenãogritoulogo?”,perguntouoMulá.“Tivevergonha”,respondeuohomem.“Não tenha falso orgulho”, disse Nasrudin, “venha até o
telhado.”Assim que chegaram ao topo da casa, e Nasrudin já tinha
recomeçado a trabalhar, ele disse ao homem: “Não, não tenhonenhumaesmolaparalhedar.”
ALGUMA COISA CAIU
Ao ouvir um baque tremendo, a esposa de Nasrudin correuparaoquarto.“Nãohánadacomquesepreocupar”,disseoMulá,“foiapenas
meumantoquecaiunochão.”“Oquê?Efezumbarulhãodesses?”“Sim,naquelemomento,euestavadentrodele.”
O ÚLTIMO DIA
Os vizinhos de Nasrudin cobiçavam seu cordeiro cevado e,frequentemente,tentavampersuadi-loamataroanimalparaumbanquete. Planos e mais planos falharam, até que, um dia,convenceram Nasrudin de que o mundo acabaria em vinte equatro horas. “Nesse caso”, disse o Mulá, “podemos muito bemcomerocordeiro.”Então,fizeramumbanquete.Quando terminaram de comer, tiraram os casacos e se
deitaram para dormir. Depois de muitas horas, os convidadosacordaramedescobriramqueNasrudinhaviaempilhadotodasasroupasnumafogueiraeateadofogo. Eles uivaram de raiva, mas Nasrudin ficou calmo: “Meus
irmãos,amanhãéofimdomundo,lembram-se?Quenecessidadevocêsterãodassuasroupas?”
ACEITO AS NOVE
Num sonho, Nasrudin se viu contandomoedas. Quando tinhanove moedas de prata na mão, o doador invisível parou dedoá-las. “Tenhoqueterdez!”,Nasrudingritoutãoaltoqueacordou.Reparandoquetodoodinheirohaviadesaparecido,elefechou
osolhosnovamente emurmurou: “Tudobem, então; devolva asmoedas,aceitoasnove.”
ELE SABE A RESPOSTA
O touro de um turcomano arrombou a cerca de Nasrudin ecorreudevoltaparaodono.Nasrudinseguiuoanimalecomeçouachicoteá-lo.“Comoousaaçoitarmeutouro?”,urrouoselvagemturcomano.“Nãosemetanisso,você”,disseNasrudin,“elesabeoporquê.O
assuntoéentrenósdois.”
QUAL DEVE SER A APARÊNCIA DE UM PÁSSARO
Um dia, Nasrudin encontrou um falcão exausto pousado noparapeitodajanela. Elenuncatinhavistoumpássarodesses.“Pobrezinho”,disse,“comopôdechegaraesseestado?”Ele cortou as garras do falcão e o bico até que ficasse reto, e
aparou-lheaspenas.“Agoravocêseparecemaiscomumpássaro”,disseNasrudin.
O VÉU
EraodiadasbodasdoMulá.Ocasamentoforaarranjadoeelenuncatinhavistoorostodanoiva.Depoisdacerimônia,quandoelaremoveuovéu,elesedeucontadequeelaeraterrivelmentefeia.Enquanto ainda estava atordoado com o choque, ela lhe
perguntou: “Agora,meu amor, dê-me suas ordens. Na frente dequemdevopermanecercobertaeparaquemtereipermissãodemostrarmeurosto?”“Mostre seu rosto para quem quiser”, gemeu o Mulá, “desde
quenãoomostreparamim.”
SUA POBRE E VELHA MÃE
AesposadeNasrudin,zangadacomoMuláporalgumarazão,trouxe a sopa fervendo para a mesa, esperando que o maridoqueimasse a boca com ela. Assim que colocou a sopa na mesa,esqueceu-seedeuumgolesemesfriá-la.Seusolhosseencheramde lágrimas, mas ela ainda esperava que o Mulá tomasse umpoucodasopafervendo.“Porqueestáchorando?”,eleperguntou.“Minhapobreevelhamãe,poucoantesdemorrer,tomouuma
sopacomoessa.Alembrançamefezchorar.”Nasrudin voltou para sua sopa e deu um grande gole. As
lágrimaslogocomeçaramacorrerpelasbochechas.“Ora,Nasrudin,comcertezavocênãoestáchorando?” “Sim,estou”,respondeuoMulá,“estouchorandoaopensarque
suapobreevelhamãemorreuedeixouvocêviva.”
EU A CONHEÇO MELHOR
AspessoascorreramparacontaraoMuláqueasogradelecaírano rio. “Ela será arrastada para omar, pois a corrente é muitorápidaaqui!”,gritaram.Sem hesitar um momento sequer, Nasrudin pulou no rio e
começouanadarcontraacorrenteza.“Não!”, gritaram. “Rio abaixo! Esse é o único jeito que uma
pessoapodeserlevadadaqui.”“Escutem!”,disseoMulá, ofegante.“Conheçoamãedaminha
mulher. Se todas as outras pessoas são arrastadas rio abaixo, olugarparaprocurarporelaérioacima.”
O SEGREDO
Um aspirante a discípulo aborreceu Nasrudin fazendo umaperguntaatrásdaoutra.OMulárespondeuatodasesedeucontade que o homem não estava completamente satisfeito, emboraestivesse,defato,fazendoprogresso.Finalmente, o homem disse: “Mestre, preciso de uma
orientaçãomaisexplícita.”“Qualéoproblema?”“Emboraeuestejaprogredindo,e tenhaquecontinuara fazer
ascoisasque faço,quero irmaisrápido.Por favor,conte-meumsegredo,comoouvidizerquevocêfazcomosoutros.”“Voulhecontarquandovocêestiverpronto.” Maistarde,ohomemvoltouaomesmotema.“Muito bem. Você sabe que sua necessidade é tentar me
igualar?”“Sim.”“Podeguardarumsegredo?”“Jamaiscontariaaninguém.” “Então observe que eu posso guardar um segredo tão bem
quantovocê.”
NÃO PERTURBE OS CAMELOS
Nasrudin perambulava por um cemitério quando tropeçou ecaiu num túmulo velho. Começando a imaginar como seriaquando estivessemorto, ouviu umbarulho.Nomesmo instante,passou-lhe pela cabeça que o Anjo do Juizo Final estava vindopara buscá-lo – embora se tratasse apenas de uma caravana decamelospassandoporali.OMuládeuumsaltoecaiuporcimadeummuro,espantando
diversoscamelos.Oscameleiroslhederampauladas.Ele correu para casa abalado. Sua esposa lhe perguntou qual
eraoproblemaeporqueestavaatrasado. “Estivemorto”,respondeuoMulá.Interessada, apesar de tudo, ela perguntou a Nasrudin como
era.“Não é de forma alguma ruim, amenos que você perturbe os
camelos.Aívocêapanha.”
A FELICIDADE NÃO ESTÁ ONDE VOCÊ A PROCURA
Nasrudin viu um homem sentado desconsolado à beira daestradaeperguntouoqueoafligia.“Não há nada que interesse na vida, irmão”, respondeu o
homem. “Tenho capital suficiente para não precisar trabalhar eestou nessa viagem apenas para buscar algo mais interessantequeavidaquetenhoemcasa.Atéagora,nãoencontrei.”Semdizerumapalavra,Nasrudinagarrouabolsadoviajantee
disparou comelapela estrada, correndo comouma lebre. Comoconheciaaárea,pôdetomarumaboadistância.A estrada ficou tortuosa e Nasrudin cortou caminho, logo
voltandoàestradaprincipal,muitoàfrentedohomemquehaviaroubado. Ele colocou a bolsa na beira da estrada e esperouescondidoatéqueooutrooalcançasse.Logo,odesventuradoviajanteapareceu,seguindopelaestrada
tortuosa,maisinfelizdoquenuncaporcausadaperda.Assimqueviuseuspertences,correuatéelesgritandodealegria.“Essaéumamaneiradeproduzirfelicidade”,disseNasrudin.
CEDO PARA LEVANTAR
“Nasrudin,meufilho,acordecedotodasasmanhãs.”“Porque,pai?”“É um bom hábito. Uma vez, levantei-me ao amanhecer, saí
paracaminhareencontreinaestradaumsacodeouro.”“Comovocêsabequenãofoiperdidonanoiteanterior?”“Essenãoéoponto.Emtodocaso,osaconãoestavalánanoite
anterior.Eurepareinisso.”“Então,acordarcedonãotrazsorteparatodomundo.Ohomem
queperdeuoourodeveteracordadomaiscedodoquevocê.”
A MAJESTADE DO MAR
As ondas se lançavammajestosamente contra as rochas, umacrista de espuma branca sobre a curvatura azul-escuro. Tendoessa visão pela primeira vez, Nasrudin foi momentaneamentetomadopelaemoção.Então aproximou-se, pegou um pouco de água nas mãos em
conchaeaprovou.“Ora”,disseoMulá,“epensarquealgocomtaispretensõesnão
serveparabeber.”
OCASIÃO
“Oqueédestino?”,umeruditoperguntouaNasrudin.“Uma sucessão interminável de eventos entrelaçados, um
influenciandoooutro.”“Essarespostaépoucosatisfatória.Acreditoemcausaeefeito.”“Muitobem”,disseoMulá, “vejaaquilo.”Eleapontouparaum
cortejopassandonarua.“Aquele homem está sendo levado para a forca. Será porque
alguémdeuaeleumamoedadeprataeocapacitouacomprarafaca com que cometeu o assassinato; ou porque alguém o viufazê-lo;ouporqueninguémodeteve?”
DIVISÃO DE TAREFAS
Umbarco,noqualoMuláeraoúnicopassageiro, foipegoporumtufão.Ocapitãoeatripulação,tendofeitotodoopossívelparasalvarobarco,ajoelharam-seecomeçaramarezar.OMulápermaneceucalmamentedepé.Ocapitãoabriuosolhos,viuoMuláparadoali, levantou-sede
umsaltoegritou: “Ajoelhe-se!Você,umhomemdevoto,deveriaestarrezandoconosco!”Nasrudin não se moveu. “Sou apenas um passageiro. Tudo o
queserefereàsegurançadessebarcoéresponsabilidadesua,nãominha.”
CAUTELA NUNCA É DEMAIS
A mulher do Mulá tinha uma amiga e costumava lhe dar acomidaqueNasrudintraziaparaojantar.Umdiaeleperguntou:“Comopodeserqueeutragacomidaparacasaenuncaaveja?”“Ogatorouba.”Nasrudin correu para pegar seu machado e começou a
trancá-lonumacaixa.“Porqueestáfazendoisso?”,perguntousuamulher.“Estouescondendoomachado”,respondeuoMulá,“porquese
ogatoécapazderoubarumpedaçodecarnequevalecentavos,époucoprovávelqueignoreummachadoquevaledezvezesmais.”
EU SÓ PRECISAVA DE TEMPO
OMulá comprouumburro.Alguém lhedissequedeveriadarao animal uma certa quantidade de comida todos os dias. Eleachou que era muito. Decidiu que tentaria acostumá-lo commenos.Assim,acadadia,reduzia-lhearação.Finalmente,quandoficoureduzidoaquasecomidanenhuma,o
burrotombouemorreu.“Que pena”, lamentou o Mulá. “Se eu tivesse tido um pouco
mais de tempo antes dele morrer, poderia tê-lo acostumado avivercomabsolutamentenada.”
CORTE O CONSUMO DE ARREIOS
Nasrudin foi visitar um amigo doente bem a tempo de ver omédicochegar.OhomemficounacasamenosdeumminutoeavelocidadedodiagnósticoespantouoMulá.Primeiro,omédicoolhoualínguadopaciente,depois,fezuma
brevepausa. Entãodisse: “Você tem comidomaçãs verdes. Parecomisso.Estarábemempoucosdias.”Esquecendo-se de tudo mais, o Mulá foi correndo até lá fora
atrásdomédico.“Diga-me,doutor”,arquejou,“porfavor,diga-mecomofazisso.”“É muito simples, quando se tem experiência em distinguir
situaçõesdiversas”, respondeuomédico. “Veja,assimquesoubeque o homem tinha uma dor de estômago, procurei uma causa.Quandoentreinoquartododoente,viummontedesementesdemaçãverdesobsuacama.Orestoeraóbvio.”Nasrudinagradeceupelalição.De outra vez que foi visitar um amigo, a esposa do homem
atendeuaporta.“Mulá”,disseela,“nãoprecisamosdeumfilósofo,masdeummédico.Meumaridoestácomdordeestômago.”“Nãopensequeo filósofonãopode ser ummédico, senhora”,
replicouNasrudin,forçandoaentradanoquartodopaciente.Odoenteestavagemendonumacama.Nasrudin foidiretoaté
lá,olhouembaixodacamaechamouamulhernoquarto.“Nada sério”, disse, “ele ficará bem em poucos dias. Mas a
senhoratemquefazercomqueeleparedecomerselaserédeas.”
NA CORTE
Um dia, Nasrudin apareceu na corte usando um magníficoturbante. Ele sabia que o rei o admiraria e, consequentemente, talvez
conseguissevendê-loparaorei.“Quanto pagou por esse maravilhoso turbante, Mulá?”,
perguntouorei.“Milpeçasdeouro,Majestade.”Um vizir que percebeu o que o Mulá estava tentando fazer,
sussurrou para o rei: “Somente um tolo pagaria tanto por umturbante.”Oreiperguntou:“Porquepagouessaquantia?Nuncaouvifalar
deumturbantequecustassemilmoedasdeouro.”“Ah,VossaMajestade,pagueiessaquantiaporquesabiaqueno
mundointeirosóhaviaumreiquecomprariaalgoparecido.”O rei ordenou que fosse dado a Nasrudin duas mil peças de
ouroeficoucomoturbante,satisfeitocomoelogio.“Você pode conhecer o valor dos turbantes”, disse oMulá ao
vizir,“maseuconheçoafraquezadosreis.”
INSTÂNCIAS TEÓRICAS
“Paraondevai,Mulá?”“Vouatéacidade.”“Então,émelhordeixarseuburroparatrás,poisháladrõesna
estradaealguémpoderiaroubá-lo.”Nasrudinachouqueseriamaisseguromontarnoburrodoque
deixá-lo no estábulo em casa, onde poderia ser roubado damesmaforma.Assim,seuamigolheemprestouumaespadaparaquepudesse
sedefender.Numtrechodesertodaestrada,eleviuumhomemandandoem
suadireção. “Deve ser um bandido”, disse Nasrudin a simesmo. “Voume
anteciparaele.”O viajante inocente tomou um susto quando, assim que
estavamaoalcancedavoz,oMulágritou:“Aquiestáumaespada,vocêpodeficarcomela.Agoramedeixeficarcommeuburro.”O viajante concordou e pegou a espada, encantado com a
própriasorte.Quando voltou para casa, oMulá disse ao amigo: “Você tinha
todarazão,sabe,espadassãocoisasmuitoúteis.Asuamesalvouoburro.”
O RITMO DA VIDA
“Porquenãopodemos irmais rápido?”,opatrãodeNasrudinlhe perguntou um dia. “Toda vez que lhe peço para fazer algo,vocêfazporpartes.Realmente,nãohánecessidadealgumade iraomercadotrêsvezesparacomprartrêsovos.”Nasrudinprometeusecorrigir.Opatrãoficoudoente.“Chameomédico,Nasrudin.”OMulásaiuevoltoucomumahordadepessoas. “Aquiestáo
médico,patrão.Eeutrouxetambémosoutros.”“Quemsãoosoutros?”“Seomédicopedirumcataplasma,eutrouxeohomemqueos
prepara, o assistente dele e os homens que fornecem osingredientes,casoprecisemosdemuitoscataplasmas.Ocarvoeiroestáaquiparaverquantocarvãoseránecessárioparaaqueceraágua para fazer os cataplasmas. Está aqui também opapa-defunto,casoosenhornãosobreviva.”
A AMOSTRA
Umdia,sentadonacasadechá,Nasrudinficouimpressionadocom a retórica de um erudito viajado. Quando questionado porum dos companheiros sobre determinado ponto, o sábio sacouum livro do bolso e o atirou sobre a mesa: “Esse é meutestemunho!Eeumesmooescrevi.”Um homem que sabia não apenas ler, mas também escrever,
era uma raridade. E um homem que havia escrito um livro! Osaldeõestrataramopedantecomprofundorespeito.Alguns dias depois,MuláNasrudin apareceuna casa de chá e
perguntousealguémqueriacomprarumacasa.“Diga-nosalgosobreacasa,Mulá”,pediram,“poisnemmesmo
sabíamosquetinhaumacasaprópria.”“Asaçõesfalammaisaltoqueaspalavras!”,gritouNasrudin.Eletirouumtijolodobolsoeoatirousobreamesaàsuafrente.“Esse é meu testemunho. Vejam que qualidade! E eu mesmo
construíacasa.”
A CORRESPONDÊNCIA DOS OUTROS
Nasrudin não sabia escrever muito bem. Sua habilidade paralereraaindapior.Maseramaisletradodoqueosoutrosaldeões,e umdia concordou em redigir uma carta de um caipira para oirmão.“Agora releia para mim”, disse o homem, “pois quero ter
certezadequenãoestáfaltandonada.”OMulá olhou fixamentepara os garranchos. Constatandoque
não conseguiria ir além de “Meu querido irmão”, disse: “Nãoconsigodecifrá-la.Nãotenhocertezaseaspróximaspalavrassão‘saber’ou‘fazer’,e‘antes’ou‘coração’.”“Masissoéterrível.Quemvaileracartasevocênãoconsegue?”“Meubomhomem”,respondeuNasrudin,“issonãoéproblema
meu.Meutrabalhoéescreveracarta,nãolê-la.”“Alémdisso”,concordouoaldeão,completamenteconvencido,
“nãoestáendereçadaavocê,está?”
POR QUE NÃO ME CONTOU ANTES?
Nasrudin e um discípulo estavam na estrada. Toda vez quechegavamaumacasagrande,apresentavam-seàporta,àmaneiradosdervixesviajantes.Recebiamcomida,eáguatambém.Nasrudin costumava comer tanto quanto podia e depois se
deitar para dormir. O discípulo comia um pouco, depois sesacudiae,então,comiamais.Passadoalgunsdias,oMuláperguntouaodiscípuloporquese
alimentavademodotãoestranho.“Bem,Mestre, euperceboquese comoumpouco,emseguida
bebo um pouco de água e depois assento tudo me sacudindo,consigocomermais.”Nasrudin tirou a sandália e deu umas palmadas no jovem:
“Como ousa esconder de mim um segredo tão valioso? Ó, empensar na quantidade de comida que desperdicei por não sermais capaz de comê-la! Eu sabia que o limite da ingestão dealimentodeveriaestarmuitoalémdoqueeuconseguiaatingir.Olimitedasaciedadeé,afinaldecontas,estourar.”
OFERTA E DEMANDA
SuaMajestadeImperialoShahinshahchegouinesperadamenteàcasadechádaqualNasrudinficaraencarregado.Oimperadorpediuumomelete.“Agora devemos prosseguir com a caça”, disse para o Mulá.
“Então,quantolhedevo?”“Paraosenhoreseuscincocompanheiros,osomeletescustam
milmoedasdeouro.”Oimperadorergueuassobrancelhas.“Osovosdevemsermuitocarosporaqui.Sãotãorarosassim?”“Nãosãoosovosquesãorarosporaqui,Majestade...rarassão
asvisitasdereis.”
O VALOR DO PASSADO
Nasrudin foi enviado pelo rei para investigar o saber dediversostiposdemestresmísticosorientais.Todoslhecontaramhistórias de milagres e os ditos do fundador e dos grandesmestresdesuaescola,mortoshámuitotempo.Ao retornar, apresentou o relatório, que continha uma única
palavra:“Cenouras”.Nasrudinfoiintimadoaseexplicar.Eledisseaorei:“Amelhor
parte está enterrada.Poucos sabem–à exceçãodo fazendeiro –pelo verde que há o laranja sob o solo. Se não cultivá-la, vai sedeteriorar;háummontedeasnosassociadosaela.”
APRUMO
Nasrudineumamigoforamaumrestauranteedecidiram,poreconomia,dividirumpratodeberinjelas.Eles discutiram fervorosamente se as berinjelas deveriam ser
recheadasoufritas.Cansado e faminto, Nasrudin se deu por vencido e foram
pedidasberinjelasrecheadas.Derepente,enquantoesperavam,ocompanheirodeNasrudin
teveumcolapso,epareciamuitomal.Nasrudinpuloudacadeira.“Vaibuscarummédico?”,perguntoualguémnamesaaolado.“Não,seutolo!”,exclamouNasrudin.“Vouverseétardedemais
paramudaropedido.”
TIPOS DE DIA
UmhomemparouNasrudine lheperguntouqualeraodiadasemana.“Nãosaberialhedizer”,respondeuoMulá.“Souumestrangeiro
por essas bandas. Não sei quais dias da semana eles têm poraqui.”
SOZINHO NO DESERTO
Nasrudinvagavaporumatrilhanodesertoquandoencontroutrêsárabesfuriosos.Elesestavamdiscutindo.“Há três possíveis explicações para o surgimento dos
minaretes”, disseram. “Acabamos de ouvir falar delas e estamosargumentandosobrequaléacorreta.”Nasrudin não sabia ao certo. “Contem-me suas teorias e as
avaliarei.”“Elescaíramdocéu”,disseoprimeiro.“Eles foram construídos num poço e depois içados”, disse o
segundo.“Elescresceramcomocactos”,disseoterceiro.Ecadahomempuxouumafacaparareforçaraversão.Nasrudin falou: “Vocês todos estão errados. Os minaretes
foram construídos por gigantes de épocas remotas, que tinhammaioralcancedoquenós.”
DONZELA EM APUROS
Numanoitedeverão,Nasrudinpasseavaaoladodeumjardimmurado quando resolveu investigar que delícias haveria ali. Eleescalou o muro e viu uma linda donzela nos braços de ummonstromedonho,umaapariçãodeformada,comolhepareceu.Semhesitarumsegundo,ocavalheirescoNasrudinsaltoupara
o jardim e pôs a besta para correr com uma série de golpes emaldições.Quando se virou para receber os agradecimentos da donzela,
ela o acertou no olho. Os enormes criados agarraram o Mulá,atiraram-nodevoltaàruaedepoisoespancaram.Deitado ali, meio inconsciente, Nasrudin escutou a mulher
chorando histericamente por seu amante, que ele tinhaafugentado.“Gosto não se discute”, pensou Nasrudin. Depois desse
episódio, ele passou amancar e usar um tampão no olho;mas,durante suas caminhadas, não foi convidado por nenhumadonzelaparaentraremseujardim.
INJUSTO
Nasrudin entrou na cidade de Kônia pela primeira vez. Ficouimediatamenteimpressionadocomaquantidadedelojasdedoce.Seuapetiteseaguçou.Eleentrounumadessaslojasecomeçouadevorarumatorta.Certodequenãoreceberianadadaquelafiguraesfarrapada,o
proprietáriocorreuatéNasrudineoesbofeteou.“Quetipodecidadeéessa”,perguntouoMulá,“umlugaronde
batemnumhomemassimquecomeçaacomer?”
O QUE SE PASSOU ANTES...
Numbeco escuro, um ágil batedor de carteiras tentou roubarNasrudin.OMuláfoirápidodemaisparaele,ehouveumembateviolento.Porfim,Nasrudinderrubouohomemnochão.Nesse momento, uma mulher caridosa que passava por ali
gritou:“Seubruto!Deixeesserapazinhoselevantarelhedêumachance.”“Madame”, disse Nasrudin, ofegante, “a senhora ignora o
trabalhoquetiveparaderrubá-lo.”
TUDO DE QUE SE PRECISA
“Vou enforcá-lo”, ameaçouum rei ignorante e cruel que tinhaouvidofalardospoderesdeNasrudin,“sevocênãoprovarqueéummístico.”“Vejo coisas estranhas”, disse imediatamente Nasrudin, “um
pássarodouradonocéu,demôniossobaterra.”“Comopodeveratravésdeobjetossólidos?Comopodevertão
longenocéu?”“Medoétudodequeseprecisa”,respondeuNasrudin.
POR QUE ESTAMOS ESPERANDO?
Três mil epicuristas célebres foram convidados para umbanquete no palácio do califa, em Bagdá. Nasrudin, por algumengano,estavaentreeles.Esse era um evento anual, e a cada ano, o prato principal
superavaodobanqueteanterior,poisareputaçãodegrandezadocalifatinhaquesermantidaesuperada.MasNasrudinestavaaliapenaspelacomida.Depoisdeumalongaespera–cerimôniaspreparatórias,canto
e dança –, uma grande quantitade de travessas de prata foitrazida.Emcadauma,colocadaentrecincoconvidados,haviaumpavão inteiro assado, decorado com bico e asas artificiais, mascomestíveis, e com a plumagem reluzindo de pedras preciosasaçucaradas.Houve um suspiro de prazer entre os gourmets na mesa de
Nasrudin, quando deitaram os olhos sobre aquela suprema ecriativaobradearte.Ninguém parecia fazer qualquer movimento em direção à
comida.OMuláestavafaminto.Derepente,eledeuumsaltoeberrou:
“Tudo bem! Eu admito que tem uma aparência estranha. Masprovavelmenteécomida.Vamoscomê-laantesqueelanoscoma!”
A ENCHENTE
“Oreifoibenevolentecomigo”,umhomemcontavaaNasrudin.“Planteitrigoeaschuvavieram.Elesoubedosmeusproblemasemecompensoupelosdanoscausadospelaenchente.”OMulápensouporummomento.“Diga-me”,perguntou,“comosecausaumaenchente?”
O AGOURO
Orei estavademauhumor.Aodeixaropaláciopara ir caçar,avistouNasrudin.“Dá azar ver um mulá quando se está a caminho de uma
caçada!”, gritou para os guardas. “Não deixem que eleme olhe;tirem-nodocaminhoachicotadas!”Elesassimfizeram. Acontecequeacaçadafoibemsucedida.OreimandouchamarNasrudin.“Desculpe,Mulá. Pensei que você fosse ummau agouro. Você
nãoera,comoficouevidente.”“VOCÊ pensou que eu fosse um mau agouro?”, exclamou
Nasrudin.“VOCÊolhaparamimerecebeumabolsadecaçacheia.Eu olho para VOCÊ e recebo uma chicotada. Quem é um mauagouroparaquem?”
NABOS SÃO MAIS DUROS
Certo dia, o Mulá resolveu levar para o rei alguns dosexcelentesnabosquehaviacultivado.No caminho, encontrou um amigo que o aconselhou a dar de
presentealgomaisrefinado,comofigosouazeitonas.Ele comprou alguns figos, e o rei, que estava de bom humor,
aceitou-oseorecompensou.Na semana seguinte, comprou algumas laranjas enormes e as
levouparaopalácio.MasoreiestavademauhumoreatirouaslaranjasemNasrudin,machucando-o.Quandoserecuperou,oMulácompreendeuaverdade. “Agora entendo”, disse, “as pessoas levam coisasmenores em
vezdepesadas,porquequandoseébombardeadonãomachucatanto.Sefossemaquelesnabos,euteriamorrido.”
COMO NASRUDIN SOLTOU O VERBO
“Um dia, um maravilhoso cavalo foi trazido à presença dopríncipe em cuja corte eu me encontrava”, contou Nasrudin.“Ninguémconseguiamontá-loporqueeraumcorcelmuitoarisco.De repente, no calordomeuorgulho ebravura, gritei: ‘Nenhumdevocêsousamontaresseesplêndidocavalo;nenhumdevocês!Nenhum de vocês consegue se manter no seu lombo!’ E melancei.”Alguémperguntou:“Oqueaconteceu?”“Tambémnãoconseguimontá-lo”,respondeuoMulá.
EM PLENA VIDA
Na época em que os tártaros conquistaram a Ásia Ocidental,Nasrudin pregava sermões numa mesquita. Ele não apoiavaTamerlão. TamerlãoouviudizerqueoMuláeracontraelee,vestidocomo
umdervixe,entrousorrateiramentenamesquita.“Deus vai derrotar os tártaros”, declarouNasrudin, no fim do
sermão.“Elenãovaiatenderassuaspreces”,disseodervixe,dandoum
passoàfrente.“Eporquenão?”,perguntouNasrudin.“Porquevocêsestãosendopunidospeloquefizeramepeloque
não fizeram. Existe tal coisa como causa e efeito. Como podealguémserpunidoporfazeralgoqueéemsiumcastigo?”Nasrudincomeçouasesentirdesconfortável,poisosdervixes
devemserlevadosasério.“Quem é você e qual o seu nome?”, perguntouNasrudin, com
certaarrogância.“EusouumdervixeemeunomeéTimur.”Aoouvirisso,algunsdacongregaçãoselevantaramcomarcoe
flechas nas mãos. Eram membros da horda dos tártarosdisfarçados.Nasrudincompreendeutudodeumestalo.“Poracasoseunometerminacom‘Coxo’?”“Sim”,respondeuodervixe.22. O nome de Tamerlão em turcomano é Timur-i-Lenk, que
significaTimur,OCoxo.(N.E.)Nasrudin se virou para a congregação, que estava petrificada
de medo, e disse: “Irmãos, realizamos uma oração dacongregação. Agora, daremos início ao serviço funerário dacongregação.”Timur,oCoxo,achoutantagraçaquedispensouosguerreirose
DESPERTO OU ADORMECIDO?
Umdia,Nasrudinnotouqueuma estradanovamaravilhosa –umaShah-Rahou“EstradadoRei”–haviasidoconstruídaacertadistânciada sua casa. “Issoé algoque tenhoqueexperimentar”,pensou.Ele caminhou pela estrada por um longo tempo quando,
finalmente, o sono o venceu. Ao despertar, descobriu que seuturbantetinhadesaparecido;alguémohaviaroubado.Nodiaseguinte,elevoltouàestradanaesperançadeencontrar
algumapista do ladrão. Andou pormuitos quilômetros no calordoverãoe,maisumavez,parouparadormirumpouco.Foi despertado pelo estardalhaço de cascos de cavalo e o
tilintar de arreios. Uma patrulha se aproximava: soldados daGuarda Real com ar feroz escoltavam um prisioneiro. Tomadopela curiosidade, Nasrudin os interceptou e perguntou o queestavaacontecendo.“Estamoslevandoestehomemparaserdecapitado”,respondeu
o capitão, “pois é um sentinela dessa estrada e o encontramosadormecido.”“Para mim chega”, disse Nasrudin. “Podem ficar com sua
estrada.Aquelequenela adormeceperdeo chapéuoua cabeça.Quemsabequalseriaaterceiracoisaaseperder?”E essa é a origemdo provérbio persa: “Aquele que dorme na
estradaperdeochapéuouacabeça.”Nesse momento, Nasrudin sentiu que a esposa o sacudia.
“Desperte”,disseela.“Éfrustrante”,gemeuoMulá,“oquevocêchamade ‘desperto’
euchamode‘adormecido’.”
O ATALHO
Andandoparacasanumamaravilhosamanhã,Nasrudinachouqueseriaumaboaideiapegarumatalhopelobosque.“Porque”,perguntou a si mesmo, “caminhar por uma estrada poeirentaquando posso estar em comunhão com a natureza, escutar ospássaroseolharasflores?Esteé,defato,umdiaespecial;umdiaparaempreendimentosafortunados!”Assim dizendo, ele se lançou bosque adentro. Não havia ido
muito longe, entretanto, quando caiu num fosso, onde ficoudeitadorefletindo.“Não é um dia tão afortunado, afinal”, meditou. “Na verdade,
ainda bem que peguei esse atalho. Se coisas assim podemacontecer num cenário bonito como esse, o que não teria meacontecidonaquelaestradaabominável?”
MUDE DE ASSUNTO
Numa tardeopressivamentequente,Nasrudinviuumhomemcaminhandoemsuadireçãopelaestradapoeirenta.Elecarregavaumenormecachodeuvasquepareciamsuculentas.Umapequenaadulaçãopoderiavalerumauva.“Ó,grandeshaykh,dê-mealgumasuvas”,pediuNasrudin.“Não sou um shaykh”, respondeu o dervixe, pois era um
daquelesviajantescontemplativosqueabominamqualquerformaafetadadelinguagem. “Trata-se de um homem de importância ainda maior e eu o
desrespeitei”, pensou o Mulá. Então, disse em voz alta:“Walahadrat-a(Alteza)!Dê-meapenasumauva!”“EunãosouumaAlteza!”,rosnouodervixe.“Bem, não me diga o que você é ou provavelmente
descobriremosqueessasnãosãouvas,também!Vamosmudardeassunto.”
A CORDA E O CÉU
Ummístico sufi parouNasrudinna rua.Para testar seoMuláerasensívelaoconhecimentointerior,elefezumsinal,apontandoparaocéu. O sufi queria dizer: “Existe apenas uma verdade que tudo
abarca.”O companheiro de Nasrudin, um homem comum, pensou: “O
sufiestálouco.Pergunto-mequeprecauçõesNasrudinvaitomar.”Nasrudin olhou dentro da bolsa, tirou um rolo de corda e o
entregouaocompanheiro.“Excelente”,pensouocompanheiro. “Seelese tornarviolento,
nósoamarraremos.” O sufi compreendeu o que Nasrudin queria dizer: “A
humanidadecomumtentaencontraraverdadepormétodos tãoinadequadosquantotentarsubiraocéucomumacorda.”
QUEM EU SOU?
Depoisdeumalongajornada,Nasrudinseencontrouemmeioàmultidão em Bagdá. Era o maior lugar que já vira, e as ruasabarrotadasdegenteodeixaramconfuso.“Pergunto-me como as pessoas conseguem se orientar, saber
quemsão,numlugarcomoesse”,refletiu.Então, pensou: “Devome lembrar bem demim, do contrário,
possomeperder.”Dirigiu-se apressado para o caravançarai. Um gaiato estava
sentadonumacamapróximadadele.Nasrudinpensouemfazerasesta, mas havia um problema: como encontrar a si mesmonovamentequandoacordasse.Eleseabriucomseuvizinho.“Simples”, disse o brincalhão. “Aqui está uma bexiga inflável.
Amarre-a na perna e vá dormir. Quando acordar, procure pelohomemcomobalão.Essehomemserávocê.”“Queideiaexcelente!”,exclamouNasrudin.Algumashorasdepois,oMuláacordou.Procuroupelabexigae
a encontrou amarrada à perna do gaiato. “Sim, aquele sou eu”,pensou.Então,numfrenesidemedocomeçouaespancarooutrohomem: “Acorde! Alguma coisa aconteceu, como imaginei! Suaideianãofoiboa!”Ohomemacordoueperguntouqualeraoproblema.Nasrudin
apontouparaobalão.“Possodistinguir,pelabexiga,quevocêéeu.Mas,sevocêéeu...quem,peloamordeDeus,EUSOU?”
EU LHES MOSTRARIA
“Algumas pessoas”, disse o Mulá para si mesmo certo dia,“estãomortas quando parecem estar vivas. Outras, por sua vez,estão vivas quando parecem estar mortas. Como podemosdistinguirseumhomemestámortoouvivo?”Elerepetiuessaúltimasentençatãoaltoquesuaesposaouviu.
Ela disse a ele: “Seu tolo! Se asmãos e os pés estão bem frios,podetercertezadequeohomemestámorto.”Nãomuitotempodepois,Nasrudincortavamadeiranafloresta
quando percebeu que suas extremidades estavam quasecongeladaspelofriolancinante. “Amorte”,disse, “parece terseabatidosobremim.Osmortos
não cortammadeira; eles se deitam respeitavelmente, pois nãotêmnecessidadedemovimentofísico.”Elesedeitousobumaárvore.Uma alcateia, estimulada pelos sofrimentos durante aquele
invernorigoroso,epensandoqueohomemestavamorto,atacouoburrodeNasrudineodevorou.“Assiméavida!”,refletiuoMulá.“Umacoisaestácondicionada
à outra. Se eu estivesse vivo, vocês não teriam tomado taisliberdadescommeuburro.”
APENAS UMA COISA ERRADA COM ELA
Um dia, caminhando com um discípulo, o Mulá Nasrudin viupelaprimeiraveznavidaumabelapaisagemlacustre.“Queencantador!”,exclamou.“Masseaomenos,seaomenos...”“Seaomenosoque,Mestre?”“Seaomenosnãotivessemcolocadoáguanela!”
SOPA DE PATO
UmparenteveiodointeriorvisitarNasrudinetrouxeumpato.Nasrudinficouagradecido,cozinhouaaveeacompartilhoucomseuconvidado.Poucotempodepois,umoutrovisitantechegou.Eleeraamigo,
como disse, “do homem que lhe deu o pato”. Nasrudin oalimentoutambém.Isso aconteceu várias vezes. A casa de Nasrudin havia se
tornado comoum restaurante para visitantes de fora da cidade.Todo mundo era amigo, em algum grau, do doador original dopato.Finalmente,Nasrudinseexasperou.Umdia,umestranhobateu
à porta e se apresentou: “Sou o amigo do amigo do amigo dohomemquelhetrouxeopatodointerior.” “Entre”,disseNasrudin.Eles se sentaram à mesa e Nasrudin pediu à esposa que
trouxesseasopa.O convidado a experimentou; não parecia ser nadamais que
águaquente.“Queespéciedesopaéessa?”,perguntouaoMulá.“Essa”,respondeuNasrudin,“éasopadasopadasopadopato.