as fotografías da campanha do exército argentino contra os índios
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Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998
ISBN 85-903587-3-9
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Imagens, “deserto” e memória nacional - As fotograf ías da campanha do Exército argentino contra os índios –1879
Héctor Alimonda* e Juan Ferguson**
“Este não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque. Nesse investir com os singularísimos civilizados que nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiquezas, obedeci ao rigor incoercível da verdade” (Euclides da Cunha, Os Sertões, 1903)
Em 1879, cinco colunas do Exército argentino, com um total de 6.000 soldados,
avançaram da extensa linha de fronteira com os índios (que, do Atlântico até a Cordilheira
dos Andes, atravessava o território nacional inteiro) para o Rio Negro e o “País das Maçãs”
(a atual província de Neuquén). Gesto mais espetacular de um conflito armado impiedoso
que continuaria até 1885, a chamada “Conquista do Deserto” era o desfecho de uma
história prolongada de relações ambíguas entre a sociedade branca e os habitantes nativos
do Pampa e da Patagonia.
Desde princípios do século XVI, ambas as sociedades coexistiram separadas por uma
fronteira, ou “área de contato” 1, permeável, com períodos de paz negociada e com períodos
de tremenda violência mútua, feitos de grandes e pequenos massacres. A partir de 1870,
aberto um novo período de conflitos, os setores dirigentes da sociedade argentina decidiram
adotar uma “solução final” para o problema indígena: a sua eliminação física. Aquela opção
por uma resolução tão drástica do problema não foi resultado, apenas, das novas
possibilidades tecnológicas, oferecidas pelas modernas tecnologias militares, de transportes
e de comunicações (aquela mesma tecnologia poderia ter sido utilizada para favorecer uma
solução de integração, em vez de destruição). De fato, o que estava em jogo era o controle
* Doutor em Ciência Política pela USP; Professor, Área de Sociedade e Agricultura, CPDA/DDAS/ICHS/UFRRJ. ** Mestre em História pela UFF; Doutorando, Área de Sociedade e Agricultura, CPDA/DDAS/ICHS/UFRRJ.
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territorial do Estado Nacional (além da apropriação das terras), completando deste modo a
instauração de uma ordem política e social e a formação do próprio Estado e suas
instituições. O propulsor dinâmico do processo era a expansão da produção agro-
exportadora, a partir do crescimento ligado à economia internacional. De acordo com a
visão de mundo dominante, foi completada deste modo a ocupação do Deserto “ bárbaro”
pela civilização.
Esta visão da campanha de 1879 como “gesto espetacular” é reafirmada quando
examinamos a coleção de cinquenta fotos da mesma existentes na Biblioteca Nacional de
Rio de Janeiro. Para que o espetáculo fosse completo, era necessário seu registro
fotográfico. A fotografia era uma tecnologia do tempo, tão avançada quanto o rifle
Remington, o telégrafo ou a estrada de ferro. A sua utilização, no meio físico do deserto,
acompanhando o desenvolvimento da campanha militar, era, ao mesmo tempo que sua
inscrição simbólica, a confirmação e celebração de que aquele exército era portador de um
nível superior de “civilização” e de que chegava para se apropriar dessas “terras vazias” e
colocá-las em produção.
A guerra contra os índios é apresentada pelos intelectuais, políticos e militares desta
nova geração como uma necessidade fatal. “Conquista do Deserto” que supõe, de fato, a
produção física e simbólica daquele Deserto, a eliminação material dos povos que habitam
nele, mas também a própria negação da sua existência. Operações similares se produziram
e continuam se produzindo em outras situações nacionais, como no Brasil: Warren Dean2 as
vincula com a confrontação entre sociedades que tem modelos radicalmente diferentes de
uso dos recursos naturais; quando duas sociedades compartem o mesmo sistema de
apropriação da natureza, o que se estabelece entre elas é uma fronteira política.3 Não existe
1 PRATT, Mary Louise. Ojos Imperiales - Literatura de viajes y transculturación. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes,1997. 2 DEAN, Warren. A ferro e fogo - A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 3 Sintomáticamente, os mesmos dispositivos discursivos se aplicam à expansão sobre as “terras vazias” do interior brasileiro. Ricardo Ferreira RIBEIRO (“O sertão espiado por fora (os viajantes estrangeiros descobrem o Cerrado Mineiro na primeira metade do século XIX”, Textos CPDA, nº 1, Rio de Janeiro, novembro 1997) apresenta visões do “cerrado” de Minas Gerais, na primeira metade do século XIX, que reproduzem pontualmente imagens da pampa e dos seus habitantes; é notável a dificuldade para definir onde começa o sertão, que sempre está “pra lá” do lugar do enunciador. Outro registro importante é aportado por Ana Maria GALANO (“Particulares de ‘Campo Geral’, novela de Guimarães Rosa”, Novos Estudos CEBRAP, nº 38, São Paulo, março 1994, pp. 206-207): a partir da década de 1970, quando a agroindústria chega ao cerrado para transformá-lo em uma vasta cultura de soja, povoada por pequenos produtores vindos do sul do país, este
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qualquer espaço possível de reconciliação ou de recuperação integradora desses indivíduos
e de suas culturas, e a unanimidade em relação ao projeto de genocídio é total. Este tom
geral supõe um contraste radical com a política de coexistência efetiva das décadas prévias.
O corpus fotográfico
Em 11 de julho de 1879, o jornal La América del Sud de Buenos Aires, comunicou
aos seus leitores que o Sr. Antonio Pozzo tinha se apresentado no escritório correspondente
“pedindo privilégio de marca de fábrica para as vistas fotográficas que tirou de todos os
pontos onde fizera alto a expedição para o Rio Negro.” O “retratista” Pozzo, como aparece
designado em outras fontes da época, tinha acompanhado a coluna comandada pelo General
Roca na expedição para o Deserto, na qualidade do fotógrafo do governo e membro do
Quartel General deste corpo de exército, entre abril e julho do mesmo ano.
Àquela altura do século de XIX não era a primeira vez que a fotografia se tornava
instrumento de propaganda e registrava as campanhas militares. Foi o caso, por exemplo,
das famosas fotos de Roger Fenton sobre a Guerra de Criméia, em 1855, e dos registros
fotográficos da Guerra de Secessão nos Estados Unidos, como o trabalho de Alexander
Gardner na batalha de Gettysburg (1863), e ainda das fotos de William Brady que
acompanham o avanço “transversal” da coluna do general Sherman. Também podemos
lembrar das centenas de fotos da guerra franco-prussiana (1870) e, na América do Sul, as
imagens da guerra contra o Paraguai (1865-1870).
É verdade que este tipo de registro sofria certas limitações técnicas que tiravam todo
o dinamismo das imagens. As pesadas chapas de colódio úmido e a máquina fotográfica de
três pés permitiam poucos deslocamentos. Deveríamos lembrar que o uso de placas secas
espaço é considerado deserto e seus habitantes anteriores desaparecem. “A insistência em falar de deserto chamou minha atenção desde as primeiras entrevistas para um estudo sobre transformações sociais e modernização da agricultura no cerrado mineiro. As superfícies que, nos últimos vinte anos, passaram a ser cultivadas com soja, trigo, café, etc., eram sistemáticamente apresentadas como áreas até então desabitadas ou quase. Ali tudo seria começo (...). O discurso da modernização capitalista da agricultura afirma que a população local (a que por vezes concede fugídia existência) não teria o necessário ‘espírito aventureiro’, a ‘coragem’ ou a ‘mentalidade’ para lançar-se no empreendimento da ‘conquista do cerrado’. Discutir as aptidões de uns ou de outros não leva muito longe. Cai-se na armadilha de uma única modalidade possível de mudanças na utilização dos solos do cerrado, a que foi adotada. E, de quebra, aceita-se um dos principais argumentos da sua legitimação: a de que ali havia um espaço social vazio até a recente vaga de modernização agrícola”.
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preparadas de antemão (placas ao gelatino-brometo) data de 1871 e que a melhoria das
objetivas (anastigmáticas) é feita em 1884.4 Seja como for, por trás de todas estas
iniciativas temos o fato de que durante o século XIX a fotografia era considerada
freqüentemente como uma “prova irrefutável” da realidade, seu analogon perfeito,
portadora de certas características de objetividade muito apreciadas pelo positivismo em
voga.
Se a fotografia era concebida como a reprodução mais perfeita da realidade, essa
capacidade mimética procedia em grande medida da sua natureza técnica, que permitia o
aparecimento de uma imagem de modo “automático” ou “natural”, sem intervenção da mão
humana (em oposição à arte, reino da subjetividade criativa). Mas também (e isto é central)
aquele poder documental poderia ser aplicado à conservação do passado, isto é, como um
autêntico auxiliar da memória.5
Hoje em dia não é mais possível pensar a imagem fotográfica fora do ato que a faz
ser. Em termos mais teóricos: se entendemos fotografia como uma mensagem que é
elaborada através do tempo, considerada como imagem-documento (índice ou marca de
uma materialidade) e como imagem-monumento (símbolo do que, no passado, uma
sociedade achou digno de ser conservado para o futuro), deveríamos concluir que se a
fotografia informa, ela também conforma uma certa visão do mundo. Outrossim, até bem
avançado o século XX, o controle dos meios técnicos de produção cultural foi privilégio
das classes dominantes e dos seus aparatos político-culturais. A fotografia não só favoreceu
a difusão de comportamentos e representações da classe que controlou esses meios, mas
também agiu como um eficiente meio de controle social através da educação do olhar.6 Do
ponto de vista do controle social, a fotografia contribui com seu registro à celebração
daqueles eventos definidos como referenciais, de acordo com a lógica do poder, indicando
o que merecia ser lembrado e a partir de quais códigos iconográficos.
No caso das fotos da expedição ao Rio Negro, produzidas pelo Exército argentino e
que compartilham aquela ideologia da objetividade, a construção de uma memória não só
aparece como um objetivo central, mas é ancorada em referentes histórico-sociais muito
4 FREUND, Gisèle. La fotografía como documento social (2ª ed.). Barcelona, G.Gilli, 1976, p. 95. 5 DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico, (2 ed.), Campinas, Papirus, 1988, pp. 27-33. 6 MAUAD , Ana. “Através da imagem: fotografia e história – interfaces”, Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n 2, dezembro 1996, p. 85-86 e 92.
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concretos. De fato, a conquista do “Deserto” e a sujeição dos índios sinalizam para a
Argentina oficial a origem e a institucionalização da República Conservadora como acordo
básico entre o Exército e a Oligarquia; relação que conta, entre suas características mais
notórias e mais permanentes, uma ação repressiva que se destaca pela sua capacidade para
negar a violência.7
Memória de uma vitória militar sobre o indígena (na verdade, seu extermínio), mas
também memória de uma certa versão da história e da construção do Estado Nacional e
suas instituições: as fotos de 1879 aparecem, para nós, cheias de significações. Sem
pretender esgotar uma análise que requereria uma metodologia muito mais rigorosa,
queremos explorar as fotos partindo da formulação de algumas perguntas dirigidas a elas e
ao seu contexto. Interrogamos a relação entre os dois segmentos que organizam a
mensagem fotográfica: plano da expressão (técnica, estética) e plano do conteúdo (pessoas,
objetos, lugares). Para a questão do contexto, é uma premissa básica adotada aqui a de que
historicamente a fotografia compõe, junto com outros tipos de texto de caráter verbal e não
verbal, a textualidade de determinada época. Tal idéia implica a noção de intertextualidade
para a compreensão das formas de ser de um certo contexto histórico.8
Na atualidade, parte dos registros fotográficos de Antonio Pozzo integra a Coleção
“Da. Thereza Christina Maria”(pertencendo à coleção de fotos do Imperador D. Pedro II)
que fica na Biblioteca Nacional de Rio de Janeiro. São cinquenta fotos em papel
albuminado de 27x38 cm., coladas sobre papelão de 47x63 cm. Este papelão mostra o
brasão da República Argentina e leva impressa a lenda: “República Argentina, Expedición
al Rio Negro, Abril a Julio de 1879”. Ao pé de todas as fotos é lido: “Fotos tomadas por
Antonio Pozzo acompañando al Cuartel General del Ministro de Guerra y Gefe del Ejército
de Operaciones, General Dn Julio A. Roca”. Também cada uma das fotos têm seu título
correspondente em etiquetas coladas sobre o papel fotográfico. Evidentemente, foi feita
uma seleção para obsequiar ao Imperador, já que em arquivos argentinos se conservam
coleções com outras fotografias que não se encontram no Brasil.
7 VIÑAS, David. Indios, Ejército y Frontera. Buenos Aires, Siglo XXI, 1982, p. 11. 8 Ana MAUAD, op.cit., p. 89.
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A produção das imagens
Toda fotografia tem uma história, uma trajetória existencial que começa com a
intenção para que ela exista como tal.9 Então, qual o motivo das fotos de Antonio Pozzo?
Para os próprios contemporâneos, a extensão da linha telegráfica e a incorporação do
rifle Remington foram fatores decisivos na “solução do problema indígena.”. Era o
“progresso”, corporizado naquela tecnologia, que chegava para auxiliar a “civilização” na
liquidação das últimas muralhas da “barbárie”. Sendo assim, não resulta estranho que a
fotografia, uma tecnologia moderna que era localizada no mesmo plano valorativo,
acompanhe a expedição militar de 1879, atendendo a uma exigência implícita: a
autocelebração. Especialmente porque ela vinha para certificar a efetividade de uma
campanha cuidadosamente planejada, onde nenhuma coisa foi deixada ao acaso, e que
começa com a inscrição da sua própria memória.10
O fotógrafo oficial Antonio Pozzo (que vinha trabalhando para o governo pelo menos
desde 1864, quando registrou as imagens da locomotiva “La Porteña”, primeira via férrea
argentina e, não por acaso, outro símbolo do “progresso”) não acompanhou a qualquer uma
das cinco colunas que levaram a cabo a expedição, mas a do Quartel General. Esta coluna,
devemos lembrar, se caracterizou por dois fatos significativos: por ser a única que não
achou índio algum no seu caminho e por chegar no dia 24 de maio, na hora certa, à ilha de
Choele Choel para assistir a uma gigantesca missa de campanha, motivada pela festa
nacional. O general Roca estava tão atento à carga simbólica da expedição que se destacou,
à frente da sua coluna, no dia 22, para ter certeza de que estaria em Choele Choel no dia 25
de maio.
Estas circunstâncias, que não passaram desapercebidas para alguns dos
contemporâneos mais ilustres (Sarmiento a qualificou de “passeio em carruagem pelo
Pampa”), são as que permitem fundar uma visão da campanha de 1879 como “posse
espectacular” por parte de Roca e do Exército. Mas isso é assim se limitamos nossa
referência à coluna principal, já que as colunas laterais completaram eficazmente sua tarefa
9 KOSSOY, Boris. Fotografias e história. São Paulo, Atica, 1989, p. 29. 10 Junto com o corpo principal da coluna foi também um grupo de científicos, entre os quais o francês Ebelot e os alemães Doering e Lorentz; também foram cinco padres, entre eles o capelão da expedição, Antonio Espinosa, mais tarde arcebispo de Buenos Aires.
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de “limpeza” do território. Daquela combinação racional entre uma “parada militar” e esses
“laterais arrasadores”, só a primeira sobrevive no registro fotográfico.
Sendo assim, o que mostram (e como) as fotos de Antonio Pozzo? As fotos registram,
seguindo o itinerário da expedição (entre Carhué e Choele-Choel) os pontos diversos em
que a mesma fez alto e os seus principais protagonistas: acampamentos, fortes e
populações; os oficiais, a tropa, os padres e, em quantidade menor (só 4 fotos do total),
grupos de índios “amigos” e prisioneiros; animais, carros e armas; paisagens e cidades
“novas.” Em forma combinada, o ato de registro e sua memória constroem um dispositivo
narrativo que segue uma ordem precisa e que não é produto do acaso, já que mostra um
caminho de ação e de leitura predeterminados. De modo um tanto evidente, então, o sentido
é contido aqui na proposta daquela linearidade que aponta a uma meta certa, e que é
alcançada de um modo inexorável.11
Os Lugares
Aquela técnica é complementada com outra: uma configuração particular do ponto de
vista e da perspectiva contribuem à padronização da relação entre o espaço representado e o
espaço da representação.12 Com exceção de uma foto (à qual voltaremos mais tarde), o que
vemos são grandes panorâmicas onde os sujeitos e objetos fotografados se perdem numa
imensidão vertiginosa. Ao mesmo tempo, aquela perspectiva fica ressaltada pelos primeiros
planos do chão, em um efeito que lembra a utilização da lente “grande angular” na
fotografia contemporânea.
É verdade que o rígido enquadramento que privilegia o sentido horizontal da foto, a
centralidade do enfoque e uma distribuição equilibrada dos planos formavam parte do
grupo de regras de composição da época, características da estética positivista. Também
não é possível esquecer que existiam limites técnicos (especialmente a rusticidade das
objetivas, que não facilitavam a inclusão de elementos diversos no quadro a distâncias
11 BARTHES, Roland. (Lo obvio y lo obtuso, Barcelona, Paidós, 1995, p.21) define como “sintaxe” o código de conotação onde o significante não está no nível dos fragmentos, mas na própria sucessão. 12 Segundo P. DUBOIS (op.cit., pp. 209-212), a imagem fotográfica vem de um gesto de corte no tempo (ao qual interrompe, fixa ou imobiliza) e do espaço (do qual recorta uma porção). No referente ao espaço, toda fotografia põe em jogo no momento da tomada e com efeitos diversos, uma articulação entre quatro espaços:
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consideráveis). Apesar de tudo, as panorâmicas com grande profundidade de campo foram
uma eleição deliberada do fotógrafo com conseqüências diretas sobre a totalidade do
registro. Significativamente, o que acaba por ser salientado em todas as fotos é uma
característica precisa da percepção do espaço: o “vazio” (horizontes muito distantes, terras
sem limites, grandes espaços, etc.). O “vazio” produzido mediante a eliminação real e
simbólica dos seus habitantes anteriores e que se abre agora como um desafio onde exercer
todas as possibilidades, todos os recursos e vontades do poder civilizatório.
A coleção começa com as fotos do espaço recentemente apropriado (mais da metade
das fotos se ocupam dele). Há alguns anos, Susan Sontag já mostrou a importante função
que sempre cumpriu a fotografia como ajuda no domínio de um espaço no qual nos
sentimos inseguros.13 Mais recentemente, Annateresa Fabris mostrou de que modo algumas
imagens de lugares “vazios” serviram de reforço e justificação para as intenções
expansionistas do colonialismo europeu no século XIX.14 Sendo assim, é possível sustentar
(em princípio) que estas fotos de 1879 tentaram fixar em imagens o disciplinado domínio-
conhecimento de um território que foi percebido como hostil e desconhecido. E também
“construído” como tal no próprio registro, como parece indicá-lo uma menção do padre
Espinosa à tarefa do fotógrafo Pozzo, quando eles seguem um caminho aberto no monte
pelos soldados: “Pozzo tirou a fotografia e pôs os perigos”.15
Além da retórica condenatória contra os índios (que apareciam como a razão
principal da campanha), o verdadeiro objetivo que persegue os expedicionários é de fato a
conquista dessas (aparentemente) ilimitadas extensões de terra patagônica que alimentaram
o imaginário europeu, desde o tempo das primeiras explorações, gerando uma mitologia
não menos extensa. Num trabalho de 1878, verdadeira justificação da iminente conquista,
Estanislao Zeballos (um sócio intelectual da oligarquia do Buenos Aires) é muito claro
quando aponta que “nossa incalculável riqueza futura está lá escondida, na imensa planície,
referencial, representado, de representação e topológico. É a articulação entre o segundo e o terceiro que define corretamente o espaço fotográfico. 13 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Arbor, 1981, p. 9. 14 FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia. Usos e funções no século XIX. São Paulo, Edusp, 1991, pp. 32-33. 15ESPINOSA, Antonio. La Conquista del Desierto. Diario del capellán de la expedición de 1879. Buenos Aires, Comisión Nacional de Homenaje al Teniente General Julio A. Roca, 1939, p. 50.
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e nas montanhas da dura cordilheira”.16 Não nos deve surpreender, então, o fato de que
essas terras já tinham sido alienadas quase totalmente, antes da sua posse efetiva.
Um espaço “vazio” que deveria ser “preenchido”. Mas que espaço e de que modo? O
apelo do presidente Avellaneda, de que era preciso tirar dos índios “os territórios mais ricos
e férteis da República” para ali estabelecer colônias agrícolas com imigrantes europeus
industriosos, não nos deve confundir. Hoje sabemos que a grande propriedade pecuária
nunca deixou de ser privilegiada no processo de ocupação territorial.
Resulta significativo que nas fotos o “vazio” não se limita aos lugares “novos”, mas
também se torna presente lá onde a ocupação era prévia. Seja nas fotos de guarnições como
Carhué, cuja ocupação data de 1876, ou de cidades como Carmen de Patagones, fundada
em 1779, ou das paisagens que cercam estes e outros estabelecimentos do homem branco,
como os fortes, em todos os casos, o que domina é um espaço sem vestígios de agricultura,
de árvores ou de atividade humana produtiva. Mas era um espaço que até aquele tempo
nunca tinha deixado de ser habitado, transitado e simbolizado pelas populações indígenas.
Pareceria como se a paisagem própria do valor de uso das comunidades indígenas se abrisse
agora para o valor de troca dos brancos, sem implicar uma modificação em seus conteúdos.
Em outras palavras: estamos sugerindo que o registro fotográfico de Antonio Pozzo
dá conta, involuntariamente, de uma série singular de simetrias na “área de contato” entre
essas duas sociedades que se enfrentam. Estas simetrias que são denunciadas pelas imagens
e que resultam evidentes nas fontes escritas da época, foram sistematicamente negadas pelo
discurso oficial. É que, de ser reconhecidas, não só teriam horrorizado àquela elite liberal,
tão preocupada em se diferençar da “barbárie”, mas também teriam deslegitimado a solução
militar do problema indígena. Nenhuma evidência trazem essas imagens de que a ocupação
desse território pelos brancos signifique um modelo mais evoluído de vinculação com a
natureza, ou uma incorporação dos avanços da civilização técnica da época.
Os personagens
16 ZEBALLOS, Estanislao S. La Conquista de Quince Mil Leguas. Estudio sobre la traslación de la frontera sur de la República hasta el Rio Negro. Buenos Aires, Hyspamérica, 1986, p. 358.
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Há outro dado que aparece nos fotos de modo paralelo à presença constante do
“vazio”: a ausência quase total de retratos em primeiro plano. A única foto que aparece
deste modo é aquela que mostra ao General Roca e seu Estado Maior em uma parada da
marcha17
Que esses gentlemen da elite buscassem reafirmar seu protagonismo aparecendo
retratados pode parecer um pouco óbvio. Mas é significativo que nenhum outro membro da
expedição consiga chegar até aquele merecedor primeiro plano. Começando com esses
soldados que (inesperadamente?) apresentavam características étnicas muito próximas aos
terríveis inimigos que deviam enfrentar. Deste modo, índios e gaúchos parecem conformar
as duas faces da mesma moeda, e era também uma necessidade do próprio dispositivo de
enunciação fotográfica um ponto de vista longínquo, que borrasse as fisonomias
perigosamente mestiças dos soldados.
Em um trabalho recente e já clássico, o geógrafo francês Romain Gaignard aponta
para estas semelhanças entre índios e gaúchos: “El araucano de la pampa, montado a
caballo, tenía características propias: vestido com el poncho y el chiripá (...) com botas de
potro, se parecía mucho al jinete mestizo, el gaucho. Sus armas eran idénticas (...) Había
una diferencia: el gaucho se alimentaba com carne de vaca, y el araucano com carne de
caballo; quanto aos soldados dos fortes, “despojados de todo, viven como sus adversarios,
del ganado y de la caza. Así, cuando los desertores gauchos de la frontera buscaban refugio
en las tolderías indígenas, las pocas diferencias casi desaparecían.18 Deste modo, o aspecto
externo e o gênero de vida podem ser entendidos como uma outra característica importante
da semelhança entre essas sociedades.
Esta simetria aparecerá, ainda, nas próprias operações militares. O momento decisivo
em que a tendência da guerra fica favorável ao Exército é a partir de 1876, quando Roca
começou a adotar as táticas indígenas, na forma dos chamados malones blancos, incursões
rápidas de cavalaria que alcançavam as tolderías índias. É bom destacar que quando
falamos da semelhança existente entre os dois lados da fronteira, não ignoramos o ódio
17 Coleção “Dona Thereza Christina Maria”, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Armário 8.1.2, foto 5, título “Rincón Grande. El Gral. Roca y su Estado Mayor”. 18 GAIGNARD, Romain. La Pampa Argentina. Buenos Aires, Solar, 1989, pp. 206-209.
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inflamado acumulado durante longos anos de conflitos. Esta circunstância, por si mesma,
criava legitimidade entre a população para o projeto de genocídio dos índios.19
Voltando à análise das fotos, a diferenciação hierárquica entre os oficiais e a tropa é
reafirmada por certas atitudes dos primeiros, que aparecem de um modo constante: em
todas os fotos onde são retratados, Roca e os oficiais assumem aquelas características poses
afetadas do arquétipo burguês do século XIX.20 São imagens estereotipadas de
concentração dominadora, onde a personalidade real desaparece quase completamente,
mais próprias de um estudo fotográfico que de uma campanha tão declaradamente cheia de
perigos. Ou será que, dadas as circunstâncias da própria expedição, talvez não existiram
diferenças importantes entre esses ambientes?. Seja como for, as poses dos oficiais agem
como índices inequívocos que informam aos contemporâneos quem são os conquistadores
desses territórios e que lugar pretendem ocupar na memória da nação. Por outro lado, essas
mesmas poses denotam uma familiaridade com a situação do retrato fotográfico
característica daquilo que, parafraseando Ana María Mauad,21 poderíamos denominar
“educação para o olhar”, e que, por aquele tempo, era patrimônio quase exclusivo das
classes dominantes.
Dentro de uma série de imagens que se caracterizam pela presença sólida do
componente masculino-adulto, destacam-se duas fotos das mulheres e das crianças que
acompanhavam ao exército. Em uma delas22, podemos ver um semicírculo de soldados em
pé, em cujo centro aparecem muitas mulheres e crianças sentadas: elas são as famílias da
tropa. Convenientemente “protegidas” pelos homens, às vezes com crianças no colo e com
lenços que cobrem as suas cabeças, as mulheres ocupam o centro de uma cena que, sem
19 Escreveu Charles Darwin no seu diário de viagem, em 19 de setembro de 1832: “Mientras tomábamos caballos de refresco en la Guardia muchas personas nos acosaron a preguntas sobre el ejército – no he visto nada parecido al entusiasmo por Rosas y el éxito de la ‘más justa de las guerras, porque se hace contra los bárbaros’. Esta expresión – fuerza es confesarlo – se halla perfectamente justificada, pues hasta hace poco ni hombre ni mujer ni caballo estaban libres de los ataques de los indios” (Charles DARWIN, Diario del viaje de un naturalista alrededor del mundo en el navio de S. M. ‘Beagle’, Buenos Aires, El Elefante Blanco, 1997, p. 148). Note-se que Darwin está falando no tempo de Rosas, conhecido por uma paz notável com relação aos índios, a qual aparentemente não diminuiu o ódio para com eles na população da fronteira. E ainda faltam treze anos para 1845, ano da publicação do livro de Sarmiento, Facundo, mas já é comum se referir aos índios como “os bárbaros”. 20 G. FREUND, op.cit., p. 61. 21 Op.cit. 22 Coleção citada, Armário 8.1.2.; foto 10; Título: “Primer campamento al sur del Colorado. Campo del 2 de Línea”.
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dúvida, esteve cuidadosamente preparada. Esta centralidade na composição não
corresponde com o escasso número de fotos que as registram (4% do total).
De fato, aquela atenção escassa não reflete a verdadeira importância que teve, durante
o século XIX, a presença feminina nas campanhas do Exército argentino, fazendo
referência - entre outros episódios - ao Cerco de Montevideo (1812-14); à Guerra do
Paraguai (1865-1870); e à Conquista do Deserto. Segundo Zeballos, em 1878 havia 6000
veteranos e 2000 mulheres no exército da fronteira sul.23
Alfred Ebelot, o engenheiro francês que participou da expedição de 1879 nos fornece
dados mais precisos:
“Los cuerpos de línea reclutan, en sus peregrinaciones por las provincias y llevan com ellos, casi tantas mujeres como soldados. El Estado tolera y hasta favorece este hábito, provee a estas criaturas de buenas raciones en los campamentos, de caballos en caso de marcha y se encarga de la educación de los niños. Ellas no son mujeres de la calle (...) Se ocupan de todas las pequeñas tareas que el gaucho no hace. Un regimiento sin mujeres se ahoga en el disgusto y la suciedad y las deserciones son numerosas. Un jefe se alarma cuando el personal femenino de la tropa disminuye, porque ésto puede ser causa de desmoralización (...) Una vez incorporadas al regimiento, estas reclutas com faldas desarrollan enseguida un espíritu de cuerpo, aprenden a gustar de la vida de cuartel y no la abandonan más”.24
Para evitar essa “desmoralização”, alguns oficiais do Exército não duvidavam em
recorrer ao seqüestro de mulheres entre as populações cristãs para prover à tropa (Ebelot dá
um exemplo de 1874). Verdadeiros malones “ao contrário”, eles são um indicador decisivo
de até que ponto podem ser atenuadas as diferenças entre ambas sociedades.
Mulheres brancas cativas dos índios, mulheres índias capturadas pelos brancos:
protagonistas principais e decisivos de uma miscigenação demográfica e cultural que
acontece na fronteira pampeana. São numerosos os testemunhos sobre cativas brancas que
acabaram se identificando com os índios e se negavam a abandonar as tolderías.
Um conto de Jorge Luis Borges, “História do guerreiro e da cativa”, constitui uma
parábola perfeita do problema da transculturação e merece ser citado amplamente. Em
1872, em Junín, a avó inglesa do narrador, casada com o coronel Francisco Borges,
comandante da fronteira, acha entre os índios capturados uma inglesa cativa.
“Vestía dos mantas coloradas e iba descalza; sus crenchas eran rubias (...) En la cobriza cara, pintarrajeada de colores feroces, los ojos eran de esse azul
23 ZEBALLOS, op.cit., p. 272. 24 EBELOT, Alfredo. Frontera Sur. Recuerdos y relatos de la campaña del desierto. Buenos Aires, Kraft, 1968, p. 204.
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desganado que los ingleses llaman gris (...) Venía del desierto, de Tierra Adentro y todo parecía quedarle chico: la puerta, las paredes, los muebles (...) Quizás las dos mujeres por un instante se sintieron hermanas, estaban lejos de su isla querida y en un increíble país. Mi abuela enunció alguna pregunta; la otra le respondió com dificultad, buscando las palabras y repitiéndolas, como asombrada de un antiguo sabor. Hacía quince años que no hablaba el idioma natal y no le era fácil recuperarlo. Dijo que era de Yorkshire, que sus padres emigraron a Buenos Aires, que los había perdido en un malón, que la habían llevado los indios y que ahora era mujer de un capitanejo, a quién ya había dado dos hijos y que era muy valiente. Eso lo fue diciendo en un inglés rústico, entreverado de araucano y de pampa y detrás del relato se vislumbraba una vida real: los toldos de cuero de caballo, las hogueras de estiércol, los festines de carne chamuscada o de vísceras crudas, las sigilosas marchas al alba; el asalto de los corrales, el alarido y el saqueo, la guerra, el caudaloso arreo de las haciendas por jinetes desnudos, la poligamia, la hediondez y la magia (...) Movida por la lástima y el escándalo, mi abuela la exhortó a no volver. La otra le contestó que era feliz y volvió, esa noche, al desierto. Francisco Borges moriría poco después, en la revolución del 74; quizá mi abuela, entonces, pudo percibir en la otra mujer, también arrebatada y transformada por este continente implacable, un espejo monstruoso de su destino...”25
Por outro lado Ebelot, quando relata o ataque a uma tribo indígena, conta-nos que
algumas das mulheres capturadas acabaram casando com membros da tropa:
“En los primeros días de nuestra llegada a Puán fueron hechos numerosos matrimonios que, faltando una denominación más correcta, llamaremos matrimonios militares. La misma cosa sucedió en Carhué, donde una parte de los prisioneros fue enviada. Las Divisiones casaron allí a los últimos hombres solteros. Sin duda, las indias ganaron com el cambio. Es más fácil amar y servir a los maridos del segundo matrimonio que a aquellos del primero”.26
“O que nos ficará depois da vitória da lei?”23
E como os fotos de Antonio Pozzo representam os índios?. Diz Dubois: “O que uma
foto não mostra é tão importante quanto aquilo que revela”.27 A foto é apresentada, deste
25 BORGES, Jorge Luis. ‘Historia del guerrero y la cautiva”, en Prosa Completa, Barcelona, Bruguera, 1980, pp. 40/41. O conto deu origem a um filme de Edgardo Kozarinsky, De guerreros y cautivas, onde Dominique Sanda interpreta uma alsaciana casada com um coronel da fronteira (Federico Luppi), que encontra uma francesa cativa dos índios. O mesmo tópico aparece na fronteira dos Estados Unidos e foi narrado nada menos que por John Ford, em 1957. No começo de The Searchers (Rastros de ódio, na versão brasileira), os índios atacam a casa de uma família e sequestram uma moça (nada menos que Natalie Wood!). A ação se desenvolve no Texas, imediatamente depois da Guerra de Secessão. Os residentes locais não confiam no exército federal (nortista) e quem parte à procura da moça é o tio (nada menos que o legendário John Wayne!). Depois de muito tempo, aventuras e celulóide, ele encontra a garota, mas só para ouvi-la dizer que não quer abandonar o companheiro índio. 26 EBELOT, op.cit., p.207. 23 MACHADO DE ASSIS sobre Canudos, em crônica publicada em A Semana, 31 de janeiro de 1897. 27 DUBOIS, op. cit., p. 179.
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modo, como uma eleição feita dentro de um grupo de possíveis eleições que não foram
realizadas, e que mantêm com essa uma relação de equivalência ou de oposição.28
Estas definições são absolutamente pertinentes para refletir sobre a representação dos
índios nos fotos da expedição de 1879. Especialmente se lembramos que, como apontamos
acima, no total de cinqüenta fotos os índios aparecem só em quatro (8%); mas se nos
referimos aos prisioneiros daquela campanha esse número cai para uma foto (na qual só há
mulheres e crianças), já que as outras três mostram índios “amigos”, dominados
previamente.
Propomos, então, um primeiro nível de significação relacionada a esses “selvagens” e
“os bárbaros” inimigos: sua ausência do registro. Quê lhes aconteceu?. Por que não
aparecem nas fotos? O engenheiro Ebelot nos confirma uma suspeita: “En la pampa no se
hacen prisioneros” [refere-se aos homens adultos]. “Son aplicadas com todo rigor a los
indios las viejas leyes militares españolas para los bandidos y asaltantes de caminos. Ya es
un gesto de humanidad dispararles, en lugar de infligirles una muerte cruel com golpes de
lanza”.29 O que, de fato, é o que acaba acontecendo na maioria das vezes, como o mesmo
Ebelot testemunha:
“El último recuerdo que tengo de aquel día es la ejecución de dos indios que habían sido tomados prisioneros. Aún puedo verlos, pequeños, gordos, impasibles, en la actitud desconcertada del indio a pie, parados frente al Estado Mayor y respondiendo invariablemente: “No sé”, a todas las preguntas que el intérprete les dirigía, sobre sus jefes, fuerzas y detalles de la invasión. Basta!, dijo simplemente el comandante (...) y se precipitaron sobre ellos a lanzasos. Los dos hombres, com las manos atadas por detrás, corriendo, tropezando y gritando a cada soplo: Señor! Señor! Era todo lo que sabían en castellano (...) mis ojos encontraron outro indio, extendido y muriendo. Un oficial tuvo piedad de él y lo hizo degollar, pero como eso no fue bastante y los estertores eran horribles, le clavaron un cuchillo en el corazón. Quién se había ocupado com satisfacción evidente de esta sangrienta tarea fueron dos guardias nacionales, dos gauchos de la frontera”.30
Mais uma vez devemos ter presente que, embora a coluna de Roca não tenha
enfrentado índio algum, seus lugar-tenentes, sim, o fizeram. É por isso que o fato de que o
fotógrafo não registrasse as violências ou seus efeitos deve ser atribuído a uma decisão do
Exército. Isto teve conseqüências muito concretas para o registro iconográfico: um espaço
“vazio”, construído por imagens estáticas e tranqüilas, onde não aparecem mortos nem
28 MAUAD , op.cit., p. 93. 29 EBELOT, op. cit., p. 123. 30 Ibid., pp. 74-75.
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feridos, acaba apresentando uma guerra “limpa” (sem crueldades), ordenada e
extremamente efetiva. Mas esta circunstância também teria efeitos na construção daquela
memória histórica estatal que se pretende nacional: se essas imagens têm a vantagem de
não assustar o futuro público da Nação para o qual vão dirigidas, elas inscrevem
igualmente, de um modo categórico, a violência como um lugar “apagado”, inaccessível e
cúmplice no corpo social.31
Mas aquela verdadeira operação simbólica, para ser completamente efetiva, não podia
se permitir o “desaparecimento” absoluto dos inimigos. É por isto que alguns dos
sobreviventes, muito bem escolhidos, serão integrados de um modo subordinado no registro
fotográfico. E aqui nós abrimos um segundo nível de significação.
Começemos por uma descrição das três fotos de índios “amigos” ou reduzidos
previamente. A primeira foto é uma imagem de Carhué, guarnição e cidade onde começa o
registro fotográfico.32 Ela mostra um punhado de “toldos” e casas na “periferia” da cidade.
Esses “toldos” não são feitos totalmente de couro (como no deserto), eles também são
feitos com palha, tijolo e terra. Aparecem vários índios sentados, semi-ocultos entre as
moradias que não olham para a máquina fotográfica (é difícil distinguir sua idade ou seu
sexo). Do lado direito da imagem, onde a cidade é localizada, surge uma mulher de pé com
duas crianças, uma delas nos braços e outra segurada pela mão. A mulher não é índia (porta
um vestido).
As outras dois fotos são de Choele Choel, ao lado do Rio Negro, ponto de chegada da
expedição. Em uma delas33 um numeroso grupo de índios muito jovens (ou adolescentes)
está em formação militar no meio do campo; todos vestem uniformes militares e têm o
cabelo muito curto; há três padres que “circulam” pela formação, e um altar com lustres à
esquerda da foto; atrás da linha de índios estão os soldados e alguns oficiais observando a
cena. Na outra foto34 há vários índios adultos em pé, com lança e poncho; vestem uniforme
militar; na frente deles há dois oficiais do exército e um gaúcho sentado bebendo mate; é
um acampamento militar.
31 Esta ausência da violência no registro fotográfico contrasta significativamente com as fotos clássicas da Guerra de Secessão nos Estados Unidos. É notório, inclusive, o caso das fotos de Alexander Gardner no campo de batalha de Gettysburg, onde o fotógrafo manipulou os cadáveres para obter efeitos mais impressionantes ou sensacionalistas. 32 Coleção citada, Armário 8.1.1., nº 8, Título,: “Carhué. Toldería y Población”. 33 Ibid., Armário 8.2.1, nº 3, Título,: “Choele-Choel. Bautismo de indios”.
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Partimos de uma leitura seqüencial35 que, seguindo a progressão cronológica do
registro, o relacione com os personagens e com o que Mauad chama “espaço do objeto”.36
Neste sentido, uma característica que surge com força nas imagens é que os índios
aparecem associados a diferentes objetos externos (casa, altar) e pessoais (uniformes)
próprios da sociedade “branca” ou cristã; assim como também a personagens chave dentro
do ambiente da fronteira (mulheres, padres e oficiais do exército). A premissa que
sugerimos é que esses objetos, agindo como mediadores entre os brancos e os índios,
contribuem para conferir a estes últimos uma posição subordinada, definindo e indicando o
lugar que deveriam ocupar na sociedade “branca.”
Os índios da primeira foto há muito tempo que já não são aqueles do deserto. Eles
foram “integrados na civilização” pelo menos dois anos antes da expedição (Carhué foi
conquistada em 1876). Permitem que vivam nas margens da cidade, porque foram
obrigados a mudar radicalmente a forma e a função do tipo de residência que ocupavam
tradicionalmente: o uso de certos materiais de construção (tijolo, palha e lama) e as
dimensões reduzidas do recinto (mais próprio de uma família monogâmica) fazem com que
esses toldos pareçam ranchos, a vivenda tradicional do gaúcho. Mas há outro sinal
complementar que é a presença daquela mulher com as crianças no centro da imagem. Elas
estão localizadas intencionalmente perto dos índios e tendo as casas do povoado atrás. Mas
aqui, ao contrário do resto das fotos, não há homens ou soldados exercendo uma função
“protetora”. Simplesmente porque já não é mais necessário (e aqui está, para nós, a maior
carga conotativa da mensagem visual). Porque se as mulheres eram a presa favorita dos
índios que as seqüestravam para transformá-las em cativas, a forma pela qual esta mulher
aparece na foto pretende constituir-se em prova irrefutável, tanto do “integração” dos
índios, como de que aqueles tempos estavam chegando ao fim.
Já na foto de Choele Choel, os brilhantes uniformes militares e o batismo refletem o
caráter recente de uma “pacificação” que, porém, já passou alguns pontos chave (pelo
menos a fase prévia de doutrina sem a qual não eram batizados os índios). Entretanto, o
centro da cena é ocupado pelos padres que estão localizados na frente dos índios, segurando
34 Ibid., n º 2, Título,: “Choele-Choel. Indios de Linares”. 35 BARTHES, op.cit. 36 O “espaço do objeto” compreende os objetos fotografados tomados como atributos da imagem fotográfica (A. MAUAD ,op.cit., p.96).
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alguns objetos materiais da sua liturgia, como o altar e as cruzes. A formação dos índios é
localizada na frente do altar. A presença dos oficiais, em segundo plano, fecha a cena e se
oferece como garantia de segurança (acreditamos que essa presença combinada de soldados
e de curas não é casual).
A última foto foi tirada também em Choele Choel. Mostra a vários índios adultos que
provavelmente já mostraram a sua “lealdade” no campo de batalha. Um índice disso são as
lanças que mostram com segurança; outro, o uniforme do exército que usam. Esta leitura é
reforçada pela posição dos oficiais, sentados de costas para os índios e que aparecem em
uma atitude solta, relaxada, sem se preocupar com aquela presença atrás.
Estes três fotos permitem aventurar uma reflexão. Carhué, que foi o ponto de partida
do registro, se constitui agora, inversamente, no ponto de “chegada” simbólico, o destino
que espera os índios. O que os brancos querem e esperam deles é de fato o que vemos lá:
um espaço marginal dentro do mundo “branco”, onde reina a solidão. Em troca, as
formações e os batismos de Choele Choel podem ser lidos como as fases da estrada que
leva àquele destino, como constituindo os passos necessários para a “integração” dos
índios. Um destino que não é o pior porque, lembremos mais uma vez, se trata de índios
que se submeteram “voluntariamente” ao exército, tendo então até mesmo alguns
“direitos”: adoecer em um canto daquela planície que lhes pertenceu, sob o olhar
“compassivo” dos brancos, ou diluir-se absorvidos por aquele mesmo exército que pôs fim
à sua identidade.
As coisas se apresentam um tanto diferentes para os sobreviventes daqueles que
lutaram até o fim. Isto é assim, tanto no registro fotográfico, como no seu destino posterior,
como prisioneiros. A única foto que dá conta deles37 mostra em primeiro plano um
numeroso grupo de mulheres (muito novas) e de crianças índias sentadas no chão no meio
do campo e formando uma linha; entre elas aparecem três curas de pé com um livro em
uma mão, enquanto “circulam” entre os prisioneiros; atrás deste grupo, em segundo plano,
estão alguns oficiais e dois civis (provavelmente alguns dos cientistas da expedição –
Ebelot, talvez?) que observam a cena. Um carro à esquerda e uma tenda militar à direita
“fecham” a cena nas laterais; ao fundo, quase no horizonte, aparece o acampamento militar.
37 Coleção citada, Armário 8.2.1, nº1, Título: “Choele-Choel. Indios prisioneiros. Doctrina”.
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Aqui, a oposição entre índios-sentados e brancos-em pé estabelece uma precisa
hierarquia entre os personagens. Muitas das prisioneiras índias se abraçam e tentam cobrir
sua face ou sua cabeça.38 Se seguimos a premissa anterior, vemos que nenhum objeto
medeia entre eles e os homens brancos. É que provavelmente eles ainda estão muito perto
da “barbárie.” Talvez é por isso que os três padres que aparecem entre os índios repetem
um gesto que remete aos dias da conquista espanhola, sob o olhar atento dos oficiais que
fecham o espaço da foto. A cruz e a espada, um par simbólico que, depois dos turbulentos
anos da revolução e das guerras civis, volta a ser valorizado positivamente, como fundador
de uma nova nacionalidade (e de um novo Estado). É Zeballos quem, abrindo o primeiro
capítulo do seu livro, evoca “la herencia recibida de la Madre Patria que nosotros
conservamos fielmente”, para justificar a nova conquista.
Qual era, em resumo, o destino que esperava esses seres no novo contexto
“civilizado”?. Os prisioneiros foram remetidos (por terra ou através de navios) para Buenos
Aires e reclusos em “campos de detenção.” Um destes campos, na ilha Martín García, no
Rio da Prata, recebeu alguns caciques guerreiros sobreviventes e suas famílias. Eles nunca
sairiam de lá. Outros cativos adultos eram enviados como mão-de-obra forçada para as
plantações de cana de Tucumán, província de origem do General Roca e cenário, naquele
tempo, de um forte desenvolvimento agroindustrial. O destino de outros era seu
recrutamento forçado em unidades do Exército, ou em navios da Marinha.
Outro campo de detenção estava localizado na Praça do Retiro (antigo lugar de
concentração de escravos na época colonial), próximo do centro de Buenos Aires. Naquele
lugar se procedia à “distribuição” das mulheres e das crianças entre as famílias da cidade,
para usá-las como servas. As cenas que se viviam ali causaram a reação de alguns
observadores da época. Apontava um colunista do jornal El Nacional, de Buenos Aires, em
20 de março de 1885:
38 Não podemos deixar de lembrar, vendo esta fotografía, das imagens da tomada de Canudos, onde os prisioneiros (a maioria mulheres e crianças) se amontoam indefesos no chão, abraçados em um último (e inútil) gesto de proteção. Na antepenúltima página de Os Sertões, Euclides da Cunha registra o desaparecimento dos “prisioneiros válidos” de Canudos, “entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante, e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história”. Registra, mas sem fazer comentários, porque, naquela altura, já não acha suficiente “a só fragilidade da palavra humana” (Os Sertões, “Últimos Días”, op.cit., VI). Naturalmente, é imensa a tentação de comparar as fotos de Antonio Pozzo com as que registrou em Canudos o “fotógrafo expedicionário” Flávio de Barros. Seria uma tarefa excessiva para este texto, mas fica como um projeto em aberto para o futuro.
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“...lo que se hacía recientemente era inhumano, porque sacaban los niños de sus madres para, en presencia de ellas y sin piedad, darlas, a pesar de sus gritos y sus súplicas de rodillas y com los brazos dirigidos al cielo. Éste era el espectáculo: un coche llegaba a aquel mercado humano y todos los que lloraban su cruel cautiverio temblaban de miedo (...) La indidada entera se juntaba y trataba de defenderse, unos junto a los otros. Algunos de ellos cubrian su cara, otros miraban resignadamente para el suelo, la madre apretaba al hijo contra su pecho, el padre se ponía en frente para defender a su familia de los avances de la civilización, y todo el mundo quedaba espantado com aquella refinada crueldad, que ellos no concebían en su espíritu salvaje...”39
Era encarregada desta distribuição de prisioneiros a Sociedade de Beneficência, que
também lhes enviava para casas de família do interior do país. Esta Sociedade, formada por
senhoras da burguesia de Buenos Aires, ainda se reservava um último detalhe macabro: nos
seus livros e registros não figura qualquer nome dos índios que passaram pelas suas mãos,
eles nunca foram registrados. Com isso o “desaparecimento” (agora sim) foi completado.
Glosário:
Capitanejo: chefe índio de Segunda categoria.
Malón: expedições de saqueio que os índios realizavam nos territórios controlados pelos
brancos.
Toldería: povoado indígena, formado por tendas feitas de couro e paus.
Bibliografia - ALMEIDA, Cícero Antônio F. de (textos), Canudos: Imagens da Guerra, Rio de Janeiro, Lacerda Ed./Museu da República, 1997.
39 MARTÍNEZ SARASOLA, Carlos. Nuestros paisanos los indios. Buenos Aires, Emecé, 1992, p. 294. É inevitável recorrer mais uma vez às observações (às vezes cínicas, mas sempre lúcidas) do engenheiro Ebelot: “Después de una campaña como la nuestra, en la Argentina se sigue una cruel costumbre. Los niños de poca edad, cuyos padres desaparecieron, son distribuídos sin consideraciones. Las familias distinguidas de Buenos Aires buscan afanosamente a estos jóvenes esclavos, para llamar a las cosas por su verdadero nombre (...) Desde que la esclavitud fue abolida, há sido necesario encontrar esta forma indirecta para seguir llenando las mansiones de servidores, que no sirven para nada” (A. EBELOT, op. cit., p. 208). A parábola é perfeita, porque Ebelot acaba fazendo a mesma coisa (procurando o respaldo nada menos que de Deus!): “Justamente me abandonaba a estas reflexiones cuando iba a escoger un par de indiecitos que el Ministro de Guerra me había concedido. En esto yo hacía como los otros, pero Dios, que lee en los corazones, debe haberme hecho justicia. Yo quería saber, por mi experiencia personal, llevada a cabo cuidadosamente, de lo que es capaz esta raza rechazada e inútil, cuando es tomada a tiempo y bien dirigida”. Da mesma forma que Ebelot, Euclides da Cunha foi obsequiado com um “jaguncinho” sobrevivente de Canudos. Estas circunstâncias quiçá sirvam para qualificar a ambigüidade (confortável em Ebelot, mas trágica e dilacerada em Euclides) destes narradores.
20
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21
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