as imunidades de jurisdição na justiça brasileira - guido fernandes silva soares

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As imunidades de jurisdição na justiça brasileira - Guido Fernandes Silva Soares. Artigo

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  • AS IMUNIDADES DE JURISDIO NA JUSTIA TRABALHISTA BRASILEIRA*

    Guido Fernando Silva Soares Professor Associado do Departamento de Direito Internacional

    da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo1

    Resumo: Nas causas, at recentemente julgadas pela Justia brasileira,

    relativas a contratos de trabalhos entre indivduo submetidos lei brasileira e misses diplomticas ou reparties consulares sediadas no Brasil, havia o entendimento de que existiriam imunidades de jurisdio, e m virtude de serem os empregadores diplomatas ou cnsules estrangeiros. Recente jurisprudncia do STF, e m matria trabalhista, passou a considerar que aqueles contratos so relaes entre indivduos submetidos lei brasileira e, diretamente, Estados estrangeiros, aos quais no se aplicam as regras sobre imunidades de jurisdio, reservadas a diplomatas e cnsules estrangeiros.

    Abstract: Until recently in the cases decided by Brazilian Courts relating

    to labour contracts between individuais submited to the Brazilian L a w and foreign diplomatic missions or consular agencies, there was the rule that they were covered by foreign sovereign immunities, due to the fact that employers were foreign diplomats or consuls. Recent cases of the Federal Supreme Court, however, in the matter of labour relations, have decided that such labour contracts

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    O tema das imunidades de jurisdio, invocado perante tribunais dos Estados, recente no Direito Internacional, embora o fenmeno, em algumas de suas manifestaes (em particular, no relativo a diplomatas e pessoal lotado e m reparties consulares) possa ser vislumbrado em pocas antigas, na medida e m que pessoas ou lugares estavam fora da jurisdio local das autoridades. Assim, os governantes estrangeiros recebidos em visita oficial, seus emissrios (em particular em pocas de guerras ou de hostilidades), eram considerados como pessoas que no podiam ser submetidas s autoridades da cidade ou do povo que visitavam. D a mesma forma, alguns lugares, considerados sagrados, como os templos ou cemitrios, eram colocados sob a proteo dos deuses (no caso da Grcia antiga, dos deuses do Olimpo, e no dos deuses locais, os deuses epnimos), o que lhes dava o privilgio de poder oferecer asilo a perseguidos pelas autoridades, ou de serem lugares de refgio e refrigrio, nas pocas de guerras localizadas (como o Templo de Epidauro).

    N a sua origem, pois, as denominadas imunidades de jurisdio tinham u m efeito pleno. As mencionadas pessoas e lugares eram consideradas acima da lei local, no unicamente nos seus aspectos processuais, mas, na verdade, no sentido de estarem supra legem, em virtude de serem regidos por uma lei supra-humana, a lei divina. Tais concepes sofrero algumas variaes na histria do Direito Internacional, e, na Idade Mdia (quando imperava o conceito de que a lei tinha uma eficcia unicamente pessoal, e em que o territrio no era ainda o elemento fundamental para determinar a eficcia e vigncia do direito), as imunidades, sobretudo dos governantes estrangeiros, ou de seus enviados diplomticos, eram explicadas com base num costume prprio das organizaes estamentais daquele perodo: "par in parem non habe judicium",

    C o m a derrocada do personalismo do direito, conforme vigente no perodo medieval e a instaurao do Estado, fortemente assentado numa base territorial, as imunidades passaram a ser explicadas pelo princpio da "extraterritorialidade" Aquelas pessoas e lugares eram, por uma fico, consideradas como se estivessem "fora do territrio", e sua situao de no-submisso lei local era devida ao fato de serem elas verdadeiras extenses fsicas do governante estrangeiro, no caso de lugares imunes, ou de representao direta, no caso de enviados diplomticos. O grande expoente da

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    teoria da extraterritorialidade foi Hugo Grotius (1583-1645), considerado como u m dos fundadores do Direito Internacional.

    Algo tardou para que a teoria da extraterritorialidade de Hugo Grotius fosse suplantada por outra, a de Emric Vattel (1714-1767), segundo a qual, o fundamento dos privilgios e imunidades de locais e pessoas se baseiam no respeito devido funo que exercem 'ne impediaur officium") ou sua representatividade ("ne impediaur legatio"). N a verdade, tal a teoria atual, conforme se pode depreender dos prembulos das duas convenes internacionais que regulam o exerccio das funes diplomticas (a Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas, de 18 de abril de 1961, promulgada no Brasil com o Decreto n. 56.435 de 08.06.1965) e das funes consulares (a Conveno de Viena sobre Relaes Consulares, de 24 de abril de 1963, promulgada com o Decreto n. 61.078 de 26.06.1967). Eis seus termos:

    ^reconhecendo que a finalidade de tais privilgios e imunidades no beneficiar indivduos, mas sim, a de garantir o eficaz desempenho das funes diplomticas, em seu carter de represenanes dos Esados..." (Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas);

    "convencidos de que a finalidade de ais privilgios no beneficiar indivduos, mas assegurar o eficaz desempenho das reparties consulares, em nome de seus respectivos Estados..." (Conveno de Viena sobre Relaes Consulares).

    Conforme dissemos, o tema das imunidades de jurisdio recente nos dias atuais, em especial, no que se refere sua invocao constante perante tribunais dos Estados. E m pocas anteriores, as imunidades e os privilgios de diplomatas e cnsules estrangeiros eram postuladas perante os prprios governantes que os recebiam (ou seja, os Poderes Executivos, e m suas mais variadas manifestaes, como o Chefe de Estado, a autoridade policial ou dos Ministrios Pblicos, a administrao tributria geral ou a alfandegria, etc.) e, nos raros casos e m que os Poderes Judicirios eram chamados a pronunciar-se, o faziam por questes personalssimas relacionadas diretamente a diplomatas ou cnsules estrangeiros (como as questes de cobrana de dvidas pessoais, aes

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    sucessrias, e e m notveis e clebres questes de natureza criminal, estas, em geral, ligadas a crimes de alta traio, espionagem, etc). As primeiras questes que a doutrina internacional aponta, relacionadas a decises judiciais dos tribunais internos dos Estados, sobre imunidades de jurisdio, dizem respeito a atos praticados, no no exerccio das funes diplomticas ou consulares, mas em assuntos relativos prpria participao do Estado estrangeiro em atividades corriqueiras no territrio dos Estados que recebiam os agentes estrangeiros.

    N a verdade, a emergncia do tema das imunidades de jurisdio (e, conseqentemente, o tema das imunidades de execuo) na sua verso corrente nos dias atuais, ou seja, das imunidades do prprio Estado estrangeiro, deve ser creditada, pelo menos, a dois fenmenos tpicos do sculo X X :

    a. a freqncia da prtica de determinados atos pelo prprio Estado, que, e m pocas anteriores, se tinha abstido de realizar, dada a concepo dominante de que se tratava de u m campo reservado aos particulares (a concepo liberal de que ao Estado estavam proibidas atividades de interveno no domnio econmico, cidadela reservada iniciativa privada, onde imperava o mais pleno princpio da autonomia da vontade dos contratantes particulares);

    b. a superao do princpio de que a Administrao Pblica, por ser u m rgo do Estado, no poderia submeter-se jurisdio dos tribunais do seu prprio Estado, u m a vez que se tinha a concepo generalizada de que a ao dos Poderes Executivos seria sempre conforme s normas jurdicas (era a regra to bem expressa pela Common Law inglesa: "the King can do no wrong", ou melhor dito, "the Queen can do no wrong", pois poca da Rainha Victoria que se pode ter como imperante tal princpio da legalidade intrnseca dos atos do Governo e da sua inatacabilidade perante os tribunais nacionais).

    Ora, na medida e m que se torna corrente a prtica pelo prprio Estado de atos anteriormente reservados iniciativa dos particulares, e e m que os Poderes Judicirios estendem sua jurisdio para abarcar os atos assim praticados, comeam a surgir os primeiros casos em que so invocadas as imunidades do Estado estrangeiro perante os tribunais daqueles Estados, seja onde esto postados seus agentes diplomticos ou consulares, seja onde seus atos produziro efeitos. Foi assim que, aos poucos, e m particular na jurisprudncia federal dos E U A , foi surgindo a distino entre, de u m lado, as questes das imunidades de jurisdio (foreign sovereign immunities), para os atos praticados

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    pelos agentes do Estado estrangeiro, e de outro lado, as questes relacionadas com os efeitos no territrio de u m Estado, dos atos praticados pelo Estado estrangeiro alhures (o princpio oAc of Sae Docrine).

    U m a questo curiosa a ser desvendada aquela relativa s razes da freqncia crescente com que os funcionrios dos Estados estrangeiros tm sido trazidos s barras dos tribunais judicirios nacionais dos Estados, na atualidade. U m levantamento das questes versadas, pelo menos nas Capitais (onde se localizam as misses diplomticas) e nas grandes cidades (onde esto as reparties consulares) revelassem, talvez, tratar-se de u m agigantamento das representaes estrangeiras e a presena, cada vez maior nos pases, de estrangeiros residentes portadores de privilgios e imunidades, bem como u m crescimento das atribuies das citadas representaes, com as conseqentes questes relacionadas a contratos de trabalho com pessoas locais, questes de inadimplncia de contratos de locao de imveis por funcionrios estrangeiros, ou ainda, de acidentes de trnsito, envolvendo diplomatas ou cnsules estrangeiros. Os raros casos de natureza criminal, na verdade, no tm sido apreciados pelos tribunais, tendo-se, antes, preferido u m a soluo diplomtica de pedir a retirada compulsria dos funcionrios estrangeiros do territrio nacional, pelo acionamento do mecanismo da declarao de "persona non grata" (previsto nas convenes internacionais).

    Por outro lado, tm ocorrido casos resultantes de inadimplncia de contratos de construo de imveis para sede das representaes estrangeiras, ou ainda, outros relativos a pagamento de dbitos da prpria misso diplomtica ou da representao consular estrangeiras, que, por serem atos do prprio Estado estrangeiro, no podem, em princpio, ser assimilveis aos atos de seus agentes no exterior. Na verdade, o assunto complexo, e por isso mesmo, dissemos "em princpio", uma vez que variam os sistemas relacionados com a posse ou propriedade de imveis e m territrio estrangeiro, para fins da representao diplomtica ou da sede de uma repartio consular. H pases e m que o Estado que adquire ou aluga, em nome prprio, o imvel; outros, e m que so proibidas a posse e a propriedade por Estados estrangeiros, de quaisquer imveis, ainda que para fins de representao oficial (e, por conseguinte, o Chefe da Misso diplomtica ou da repartio consular que os adquire ou aluga, e m nome prprio). N o direito brasileiro, a lei probe a governos estrangeiros, bem como a

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    organizaes que tenham constitudo, que dirijam ou nas quais hajam investido funes pblicas, de adquirir bens imveis ou suscetveis de desapropriao, salvo no caso de aquisio da propriedade dos prdios necessrios sede dos representantes diplomticos ou dos agentes consulares, nestes compreendidos, os imveis para residncia dos Agentes Diplomticos e membros da Misso das respectivas misses diplomticas (Lei de Introduo ao Cdigo Civil, art. 11, 2Q e 3fi, bem como a Lei n. 4331 de 01.06.1964, art. lc).

    O que se pode, desde j, acentuar e o que faremos no decorrer do presente artigo que se trata de questes distintas:

    a. de u m lado, as imunidades diplomticas e consulares, reguladas pelas normas escritas e mais ou menos precisas de duas convenes internacionais, as j citadas Convenes de Viena de 1961 e de 1963, portanto jus scriptum, devidamente incorporadas s legislaes domsticas da maioria dos Estados na atualidade;

    b. de outro, as imunidades do prprio Estado estrangeiro, que no so reguladas por qualquer norma escrita de Direito Internacional Geral, salvo a Conveno da Basilia, de 16 de maio de 1962, "Conveno Europia sobre Imunidades do Estado e Protocolo Adicional" (ainda no vigente na esfera internacional dos Estados-partes) mas sim tm sido reguladas por leis escritas internas de alguns Estados, por sinal, pertencentes ao sistema da Common Law, como: os E U A (legislao federal, o Foreign Sovereign Immunities Ac 1976, conhecido como FSIA), o Reino Unido (State ImmunityAct 1978), Canad (State ImmunityAct 1982), Austrlia (Foreign Saes Immunities Act 1985), Paquisto, e frica do Sul, em 1981 e Singapura (Sae Immunity Act 1979). N o caso brasileiro, como veremos, a construo d norma no segundo caso, ou seja, das imunidades do prprio Estado estrangeiro, de origem jurisprudncia!, em particular, originria da jurisprudncia gerada em questes laborais, motivo pelo qual elegemos a jurisdio trabalhista como ponto de anlise do tema das imunidades de jurisdio.

    E m u m campo de tal maneira lacunoso e importante, deve-se ressaltar a posio da doutrina dos internacionalistas e do direito comparado. Para unicamente ficar nos cursos da Academia de Direito Internacional da Haia, e e m temas monogrficos especiais sobre o assunto, podemos citar: A. Weiss, Comptence ou incomptence des ribunaux Vgard des tats trangers, Recueil

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    des Cours, v. 1 (1923); Sir Cecil Hurst, Les immunis diplomaiques, Recueil, (1926); Jean-Flavien Lalive, Uimmuni de juridiction des as ei des organisations inemaionales, Recueil, (1953-HI); Mario Giuliano, Les relations ei immunis diplomaiques, Recueil, (1960, v. 100); N.C.Dunbar, Controversial aspecs of sovereign immuniy in he case law of some Saes, Colleced Courses (1971, v. 132); Sompong Sukharitkul, Immunities of foreign States before national auhorities, Colleced Courses, (1976, v. 149); Sir Ian Sinclair, The law of sovereign immuniy, Recent developmen, Colleced Courses (1980, v. 167); e Peter D . Trooboff, Foreign Sae immuniy: emerging consensus on principies, Colleced Courses (1986-V). N o campo da doutrina recente brasileira, remetemos o leitor para a bibliografia constante no final do presente artigo; para a doutrina anterior a 1980, remetemo-lo para nosso livro: Das imunidades de jurisdio e de execuo, Rio de Janeiro, Forense, 1984.

    O assunto das imunidades de jurisdio, por outro lado, ocupa u m lugar especial nas consideraes sobre as relaes entre o Direito Internacional e os direitos internos dos Estados. E m qualquer outro ramo do Direito Internacional, as questes suscitadas no que se refere a tais relaes, sempre diziam respeito a problemas de hierarquia das normas, e m particular, no que se refere a eventual derrogao ou abrogao das normas domsticas dos Estados, por fora daquelas elaboradas nos foros legisferantes internacionais, mas sempre com o pressuposto de que quem iria decidir sobre tais questes, seria u m juiz nacional (ou eventualmente u m juiz criado pela prpria norma internacional). J no caso das imunidades de jurisdio, o que se discute a prpria existncia deste poder dos tribunais nacionais de poderem dirimir controvrsias sobre sua prpria competncia. O que mais intrigante, no caso, que se tem de conviver, num ramo to nacionalista como o Direito Processual, com excees que o mesmo no contempla, e em assuntos tradicionalmente reservados a normas de ordem pblica, e que exigem uma interpretao rgida e restritiva, como o caso das competncias dos juizes e tribunais nacionais e dos motivos de extingibilidade do processo sem julgamento do mrito.

    N a verdade, as argies de extingibilidade do processo pressupem u m processo instaurado perante u m juiz ou tribunal, tendo, portanto, havido a existncia das preliminares bsicas: a competncia do rgo judicante (com a ocorrncia das hipteses legais de sua competncia, seja a

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    internacional, seja a interna) e a presena fsica ou ficta (atravs de u m a citao vlida) da pessoa contra quem se move o processo. Torna-se evidente que o julgador, ao decidir extinguir u m processo sem julgamento de mrito, o faz, numa relao processual validamente constituda, durante a qual foram alegados e julgados os motivos que teriam podido solapar as condies de constituio e desenvolvimento vlido e regular do processo (conforme o art. 267, IV do Cdigo de Processo Civil brasileiro) ou dado causa a que no ocorressem as condies da ao cvel, ou seja: a possibilidade jurdica, a legitimidade das partes e o interesse processual (art. 267 do CPC, VI). O que no contempla o Cdigo de Processo Civil brasileiro (epour cause a lei processual trabalhista) a impossibilidade de u m a no-resposta a u m a citao vlida ter o efeito de no se configurar e m revelia, e, por outro lado, dar motivo extino do processo, por impossibilidade jurdica! N o entanto, o que se tem verificado, e m particular nos assuntos trabalhistas e, at h pouco tempo, na jurisprudncia brasileira dos mais altos Tribunais federais, e m que a recusa de comparecimento de misses diplomticas ou de reparties consulares estrangeiras (e, e m certos casos, nem sequer para contestar a jurisdio dos juizes brasileiros) se tenha configurado numa impossibilidade jurdica de constituio do processo civil, com a conseqente deciso de extingir-se o feito sem julgamento do mrito.

    N o presente estudo, no trataremos das questes das imunidades de pessoas empregadas por organizaes internacionais e que se encontrem no Brasil. O assunto diverso, pois que regido por normas distintas daquelas que regem pessoal a servio de Governos estrangeiros, como os diplomatas e cnsules postados no nosso Pas, ou de pessoas empregadas dos Governos estrangeiros, e m relaes trabalhistas.

    Passando, pois, ao estudo do caso brasileiro, no que se refere a pessoas fsicas abrangidas pelos privilgios e imunidades, trata-se daquelas que se encontram no territrio nacional, e m exerccio de uma funo oficial, a servio de u m Estado estrangeiro: diplomatas2 (funcionrios estrangeiros e m

    2. "Diplomata", no direito brasileiro, tem duas acepes: "lato sensu", designa o funcionrio pblico federal, da carreira diplomtica, que pode tanto estar lotado na Secretaria de Estado das Relaes Exteriores, e m Braslia, quanto estar em posto numa misso diplomtica na Capital de u m Estado estrangeiro, ou e m uma representao do Brasil junto a alguma organizao internacional, numa cidade no exterior (e nesses dois casos, charmar-se- "diplomata" "stricto

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    determinadas funes nas Embaixadas estrangeiras sediadas na Capital Federal, Braslia, D F ) e vice-cnsules, cnsules, cnsules-gerais e cnsules honorrios (determinados funcionrios em posto nas reparties consulares estrangeiras nas principais cidades brasileiras, ou naquelas de importncia para seus pases). Por outro lado, no so todas as pessoas lotadas e m tais reparties diplomticas ou consulares que esto acobertadas pelas imunidades e privilgios, diplomticos ou consulares, uma vez que as prprias normas das duas Convenes de Viena estabelecem pr-requisitos e excees.

    Quanto a pessoas encontrveis e m misses diplomticas estrangeiras no Brasil, deve distinguir-se na letra da Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas de 1961:

    a. o agente diplomtico, ou seja: o Chefe da misso diplomtica e os "membros do pessoal de misso" que tiverem a qualidade de diplomatas (art. ie, d e e);

    b. os membros do pessoal administrativo e tcnico, quer dizer: os membros do pessoal da misso empregados no servio administrativo e tcnico da mesma (art. 1Q, f), como os burocratas designados a secretariar trabalhos da rotina administrativa, e alm do mais, os arquivistas, criptgrafos, encarregados de telecomunicaes, tcnicos e m vrios ramos a que se dedique a misso diplomtica;

    c. os membros do pessoal de servio da misso diplomtica, empregados no servio domstico da mesma (art. l, g) como copeiros, cozinheiros, jardineiros, motoristas (e que por comparao com o "criado particular", a seguir descrito, sejam empregados do Estado estrangeiro);

    d. os criados particulares, definidos como pessoas do servio domstico de u m membro da Misso que no sejam empregados do Estado acreditante (art. ls, h), ou seja, pessoal idntico ao descrito no item c. anterior, mas com a situao de estarem regidos por u m a relao privada entre eles e o agente estrangeiro.

    sensu"), ou ainda, estar em posto numa repartio consular em alguma cidade no exterior (quanto ento sua denominao ser de "vice-cnsul", "cnsul" ou "cnsul-geral", dependendo de sua posio na carreira diplomtica e da natureza da repartio consular em que estiver postado). E m alguns pases, existe uma carreira consular, ao lado da carreira diplomtica.

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    O "agente diplomtico" no tem qualquer tipo de relao trabalhista com o Estado brasileiro, uma vez que suas funes decorrem de uma relao jurdica dele com o seu prprio Estado, funes aquelas regidas pelas normas do Direito Internacional Pblico (sendo irrelevante o tipo de ligao que o m e s m o mantm com o pas que ele representa, se de direito administrativo, ou se de direito trabalhista), desde que gozem de situao de "personae graae" e que tenham sido admitidos no territrio nacional, com a expressa anuncia do Governo brasileiro.3 E m regra, o agente diplomtico nacional do Estado acreditante, havendo, contudo, a possibilidade de u m diplomata a servio de uma misso diplomtica estrangeira ser brasileiro, com a expressa anuncia do Governo brasileiro (art. 8Q da Conveno de Viena de 1961), mas, nesse caso, se tiverem residncia permanente no territrio nacional, gozaro das imunidades de jurisdio e de inviolabilidade pessoal apenas quanto aos atos oficiais praticados no desempenho de suas funes (art. 38, ls, id.). Gozam das imunidades os membros da famlia de u m agente diplomtico, nas condies de com ele viverem e desde que no sejam nacionais do Estado acreditado (ou seja, de no serem brasileiros) (art. 37, le da Conveno de Viena de 1961).

    A s imunidades de que gozam os agentes diplomticos so as da jurisdio penal e as da jurisdio cvel e trabalhista (sendo que a Conveno de Viena de 1961, no seu art. 31, ls, se refere "jurisdio civil e adminisrativa", entendendo os seus intrpretes que se trata, nesta ltima, da jurisdio laborai). A prpria Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas estabelece as excees s imunidades da jurisdio cvel:

    'a. uma ao real sobre imvel privado situado no erririo do Esado acreditado, salvo se o agene diplomtico o possuir por cona do Esado acrediane para os fins da Misso;

    3. N o caso do Chefe da Misso, tal anuncia se perfaz com a concesso de u m "agrment" do Governo brasileiro, e se exterioriza com a entrega solene de suas credenciais ao Chefe de Estado, no Brasil, atualmente, o Presidente da Repblica. N o caso de outros membros do pessoal da misso, o fato perfeito com uma comunicao da chegada do agente em territrio nacional, pelo Chefe da Misso, s autoridades brasileiras, especificamente, ao Ministrio das Relaes Exteriores, por nota oficial.

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    b. uma ao sucessria na qual o agene diplomtico figure, a titulo privado e no em nome do Esado, como executor esamenrio, administrador, herdeiro ou legatrio;

    c. uma ao referene a qualquer profisso liberal ou atividade comercial exercida pelo agente diplomtico no Esado acrediado fora de suas funes oficiais".

    Ainda nos termos da citada Conveno de Viena de 1961, o agente diplomtico no obrigado a prestar depoimentos como testemunha, nem est sujeito a nenhuma medida de execuo, salvo nos casos das excees mencionadas no ls do art. 31 transcrito; no caso de depoimentos prestados nas hipteses elencadas, eventuais medidas constritivas devero ser conduzidas sem afetar a inviolabilidade de sua pessoa ou residncia.

    Quanto ao pessoal administrativo e tcnico da Misso diplomtica, pode ser composto tanto de nacionais do Estado estrangeiro acreditado, quanto brasileiros. N o caso de serem brasileiros e residentes no territrio nacional, evidente que existe u m a relao trabalhista entre eles e a Misso diplomtica, ainda que a citada Conveno de Viena de 1961 seja silente a respeito. O que importa dizer que a relao trabalhista que se estabelece entre o Esado estrangeiro e um indivduo brasileiro (ou nacional daquele pas, e e m tal caso, necessrio examinar na legislao estrangeira se o contrato de natureza de Direito Administrativo, tipo funcionrio pblico, ou se de natureza de Direito do Trabalho, para a hiptese de u m a pessoa contratada alhures para prestar servio no Brasil), e no como tem feito entender a jurisprudncia brasileira, entre o indivduo e os membros da Misso diplomtica! N a verdade, trata-se de pessoas que tm u m a ligao direta com papis oficiais, com cdigos e sistemas de cifragem de mensagens, com o manuseio de verbas oramentrias de Governos estrangeiros, e eventualmente de contatos oficiais com o pblico, razes pelas quais se justifica a atribuio dos privilgios e imunidades ratione oficii. Eis os dispositivos da Conveno de Viena de 1961 a respeito dos membros do pessoal administrativo e tcnico de u m a misso diplomtica:

    "Art. 37, 2a - Os membros do pessoal administrativo e tcnico da Misso, assim como os

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    membros de suas famlias que com eles vivam, desde que no sejam nacionais do Esado acrediado nem nele ienham residncia permanene, gozaro dos privilgios e imunidades mencionados nos arts. 29 a 35, com a ressalva de que a imunidade de jurisdio civil e administrativa do Esado acrediado, mencionada no ls do art. 31 no se esender aos atos por eles praticados fora do exerccio de suas funes: gozaro ambm dos privilgios mencionados no l3 do art. 36, no que respeita aos objetos importados para a primeira insalao".

    D a mesma forma, os "membros do pessoal de servio'' de uma Misso diplomtica so empregados do Estado estrangeiro, pelas razes j mencionadas. Neste particular, mais do que claro se tornam as finalidades das normas relativas s imunidades de jurisdio: proteger a funo diplomtica e no as pessoas que as exercem. D a mesma forma, a regulamentao da situao dos "criados particulares dos membros da Misso'', revelam tais intuitos da Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas. Vale a pena transcrever os dispositivos relativos aos temas, conforme constantes dos 38 e 4 S do art. 37 da citada Conveno:

    " 3e - Os membros do pessoal de servio da Misso, que no sejam nacionais do Esado acrediado nem nele ienham residncia permanene, gozaro de imunidades quanto aos atos praticados no exerccio de suas funes, de iseno de impostos e axas sobre salrios que perceberem pelos seus servios e da iseno previsa no art. 33.

    4$ - Os criados particulares dos membros da Misso, que no sejam nacionais do Esado acrediado nem neles ienham residncia permanene, esto isentos de impostos e axas sobre salrios que perceberem por seus servios. Nos demais casos, s gozaro de privilgios e imunidades na medida reconhecida pelo

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    referido Esado. Todavia, o Esado acrediado dever exercer a sua jurisdio de modo a no inerferir demasiadamene com o desempenho das funes da misso".

    D e igual forma, a jurisprudncia brasileira tem laborado e m u m equvoco, ao assimilar a pessoa do reclamado pessoa dos diplomatas estrangeiros, e m reclamaes trabalhistas impetradas contra Misses diplomticas estrangeiras no Brasil, e, por conseguinte, tem acatado as preliminares de imunidades de jurisdio como se os reclamantes fossem empregados de pessoas imunes. N a verdade, o vnculo trabalhista que se estabelece (salvo no caso de "criados particulares dos membros da Misso") entre, de u m lado, u m trabalhador brasileiro ou estrangeiro, mas "residene no Brasil" (para empregar a terminologia da Conveno de Viena, quando se deveria ter dito domiciliado, numa boa traduo, para o direito brasileiro, de seus termos), e de outro, o prprio Estado estrangeiro, que, pelo menos nos termos da Conveno de Viena de 1961, no possui imunidades de jurisdio.

    Quanto ao pessoal lotado em reparties consulares estrangeiras no Brasil (sejam elas Consulados-Gerais, nas grandes cidades, consulados, vice-consulados ou agncias consulares, em cidades menores, o que lhes dimensiona o nmero de seus funcionrios) mister distinguir, como o faz a Conveno de Viena de 1963 sobre Relaes Consulares, tratar-se de funcionrios consulares de carreira 'oda pessoa, inclusive o Chefe da repartio consular, encarregada nesa qualidade do exerccio de funes consulares", art. ls, ls, d) ou de funcionrios consulares honorrios (que a Conveno de Viena de 1963 no define diretamente, mas que expressis verbis, no art. le, 2e, faz regular no captulo III, denominado Regime Aplicvel aos Funcionrios Consulares Honorrios e s Reparties Consulares por Eles Dirigidas). O s cnsules honorrios, na verdade, so, e m geral, nacionais do Estado receptor, pessoas de elevadas qualidades pessoais e profissionais, que foram eleitas pelo Estado que envia,4 para representar-lhes os interesses e m matria consular; a distino entre

    4. Note-se a terminologia de ambas as Convenes de Viena: naquela sobre relaes diplomticas, as frmulas utilizadas so Estado acreditante e Estado acreditado; naquela sobre relaes consulares, as frmulas so Estado que envia e Estado receptor.

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    os funcionrios consulares de carreira e os funcionrios consulares honorrios antiqssima no Direito Internacional, correspondendo aos cnsules missi e aos cnsules electi. Estes ainda representam uma forma de homenagear pessoas que prestaram ou podem prestar servios a u m Governo estrangeiro, ou ainda de poder suprir, com a indicao de pessoas locais, uma eventual falha de pessoal altamente preparado no funcionalismo do Estado que envia (ou ainda, por questes de reduo de custos operacionais, tendo e m vista que os funcionrios consulares honorrios recebem apenas por seus servios prestados e no como funcionrios do Estado que envia).

    Seguindo a sistemtica de alguns tratados internacionais, inclusive a Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas de 1961, na qual se inspirou,5

    a Conveno de Viena sobre Relaes Consulares, no seu art. ls, define os termos mais importantes que emprega. Assim, no que interessa ao presente estudo so definidos:

    a. funcionrio consular, como j dito, "toda pessoa, inclusive o chefe da repartio consular, encarregada nesa qualidade do exerccio de funes consulares" (art. ls, le, e);

    b. empregado consular, "toda pessoa empregada nos servios administrativos ou cnicos de uma repartio consular", (art. 1Q, ls, e);

    5. Na verdade, a Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas de 1961 tinha alguns precedentes histricos notveis, como as regulamentaes existentes em sculos anteriores, tais o Regulamento de Viena de 1815 sobre a Ordem de Precedncia dos Agentes Diplomticos, complementado pelo Protocolo de Aix-la-Chapelle de 1818, ou aquela elaborada sob a gide da organizao internacional regional americana, a Unio Panamericana, antecessora da atual Organizao dos Estados Americanos, O E A , adotada pela VI Conferncia Internacional Americana em Havana, a 20 de fevereiro de 1928, "Conveno relativa a Funcionrios Diplomticos". Deve-se ressaltar que esta ltima foi calcada no Projeto de Cdigo de Direito Internacional Pblico, (arts. 104 a 150), de 1911, de autoria do ento Ministro da Justia do Brasil, o eminente Epitcio Pessoa. Veja-se, a esse propsito, a insupervel obra do Embaixador Geraldo do Nascimento e Silva, Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas, Brasil, Ministrio das Relaes Exteriores, Seo de Publicaes, Ia ed., 1967, p. 14-15, ou ainda, sua A misso diplomtica, recentemente relanada pela Editora Forense. N o caso da Conveno de Viena sobre Relaes Consulares, de 1963, o nico precedente que os legisladores internacionais contavam, era com a citada Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas, votada anos antes, na mesma Capital austraca.

  • 533

    c. membro do pessoal de servio, "toda pessoa empregada no servio domstico de uma repartio consular" (art. lfi, Q,f);

    d. membro do pessoal privado, "a pessoa empregada exclusivamene no servio pessoal de um membro da repartio consular" (art. ls, ls, /).

    Isto posto, segue-se que, com exceo do "membro do pessoal privado", todas as pessoas que no sejam funcionrios consulares de carreira so regidos pela legislao trabalhista brasileira, e m funo do lugar da prestao do trabalho, sendo claro que o empregador o Esado estrangeiro, que no se acha diretamente abrangido pela Conveno de Viena sobre Relaes Consulares, nos contratos de trabalho que celebra com as citadas pessoas. Neste particular, mais uma vez, necessrio denunciar o equvoco da jurisprudncia brasileira que tem assimilado os contratos de trabalho entre uma repartio consular e u m empregado contratado no Brasil aos contratos de trabalho entre funcionrios consulares (e estes contratos que so imunes jurisdio brasileira, e m alguns aspectos, como se ver adiante). Relembre-se: por mais paradoxal que possa parecer, os Estados no esto acobertados pelas disposies das Convenes de Viena de 1961 ou de 1963, que, no entanto, concedem imunidades a alguns atos de seus funcionrios!

    N o que diz respeito s imunidades de jurisdio, a Conveno de Viena sobre Relaes Consulares sensivelmente menos abrangente que a Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas:

    a. inexiste a imunidade da jurisdio penal plena para os funcionrios consulares (que podem ser detidos ou presos preventivamente e m caso de crime grave e e m decorrncia de deciso de autoridade judicial competente, conforme art. 41, ls, da Conveno de Viena sobre Relaes Consulares);

    b. esto os membros de uma repartio consular obrigados a depor como testemunhas, citadas e m processo judicial (ou administrativo), por fora do art. 44, 1 (id.).

    N o que se refere a outras imunidades, assim dispe o art. 43 da Conveno de Viena sobre Relaes Consulares:

  • 534

    "Artigo 43 Imunidade de Jurisdio 1. Os funcionrios e os empregados consulares no

    esto sujeitos jurisdio das autoridades judicirias e administrativas do Estado receptor pelo atos praticados no exerccio das funes consulares.

    2. As disposies do 1B do presene artigo no se aplicaro, enreanto, no caso de ao civil:

    a. que resule de conrao que o funcionrio ou empregado consular no tiver realizado, implcia ou expliciamene como agene do Esado que envia; ou

    b. que seja proposa por erceiro, como conseqncia de danos causados por acidene de veculo, navio ou aeronave, ocorrido no Esado receptor".

    Quanto aos contratos de trabalho entre uma pessoa brasileira ou u m estrangeiro, contratados no Brasil para funes numa repartio consular, mister analis-los de acordo com o disposto no supracitado art. 43, 2S. N a sua exegese, verifica-se que existe imunidade de jurisdio naqueles contratos e m que o funcionrio ou empregado consular agirem, implcita ou explicitamente, no exerccio das funes consulares (contrato realizado como agente do Estado estrangeiro).

    Ora, a realizao de u m contrato na qualidade de agente do Estado estrangeiro tpico das funes consulares, o que pressupe todo o regime de regulamentao unilateral pelo Estado brasileiro dos seguintes aspectos:

    a. entrada e permanncia dos estrangeiros na qualidade de funcionrios consulares (o sistema do exequatur das cartas patentes expedidas pelo Estado estrangeiro, e m benefcio de seus funcionrios, especialmente enviados ao exterior);

    b. a atribuio de u m a jurisdio consular, sobre parte do territrio nacional, por parte do Governo federal, por sinal, o nico competente para regular, com exclusividade, tais aspectos das relaes internacionais do Brasil com pases estrangeiros;

  • 535

    c. a existncia de uma autorizao implcita para a realizao de atos oficiais regulados pela legislao estrangeira, como: a expedio de passaportes aos seus nacionais, registros civis de nascimentos ou bitos, realizao de casamentos consulares entre nacionais de seu pas, legalizaes de faturas comerciais, de assinaturas de autoridades brasileiras, concesses de todos os tipos de vistos de entrada e permanncia, enfim, u m a srie de atos, inclusive inexistentes no direito brasileiro ou de nenhum efeito entre ns (como as notificaes e citaes judiciais para produzirem efeitos alhures);

    d. sua permanncia no territrio nacional pelo tempo que bem julgar o Estado que envia, mas sujeita vigncia da autorizao do Estado receptor para o exerccio das funes consulares, que pode terminar, nos termos do art. 25 da Conveno de Viena sobre Relaes Consulares, pela notificao do Estado que envia ao Estado receptor de que aquelas funes chegaram ao fim; pela retirada do exequaur, unilateralmente, pelo Estado receptor, e pela notificao deste Estado, de que deixou de considerar a pessoa e m apreo como membro do pessoal consular (nos dois ltimos casos, a situao semelhante considerao de "persona non grata'', como no caso dos diplomatas).

    Ora, nenhuma pessoa poder realizar tais atos tpicos da funo consular, que esquematicamente descrevemos, e cuja enumerao se encontra no art. 5e da Conveno de Viena sobre Relaes Consulares ("Funes Consulares"), salvo no caso de estar investida nas mesmas, na qualidade de agente do Estado estrangeiro, e como tal, na condio de estar autorizado pelo Governo federal, a entrar e permanecer no territrio nacional, bem como a exercer seus atos tpicos.

    necessrio dizer que tais normas, que criam privilgios e imunidades de jurisdio, so autnticas restries de direitos subjetivos pblicos, e m particular, do direito ao civil, expressamente consagrado pela norma constitucional brasileira, no art. 59, inc. X X X V , da Constituio Federal de 1988, que probe ao legislador ordinrio subtrair ao exame do Poder Judicirio qualquer leso ou ameaa a direito. Ora, sendo normas de restrio de direitos individuais, devem ser interpretadas restritivamente, segundo o adgio "odiosa restringenda". Isto posto, u m a leitura do art. 5S da Conveno de Viena sobre Relaes Consulares, com olhos de u m intrprete a quem se probe a exegese por analogia, conduz concluso de que a celebrao de contratos de

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    trabalho entre a repartio consular e o empregado brasileiro ou estrangeiro (sendo m e s m o irrelevante se os contratos foram assinados no Brasil ou alhures, dado que o que interessa o lugar da prestao do trabalho), no se inclui entre as citadas funes consulares. N a verdade, se ao juiz brasileiro est vedado examinar os atos referentes funo consular, da nada se pode inferir quanto a eventuais proibies de examinar atos, como contratos trabalhistas, que no se incluem naquele rol de atos oficiais da funo consular.

    N o exame da jurisprudncia brasileira dos ltimos anos, verifica-se que as alegaes de imunidades de jurisdio ocorreram nos seguintes casos: a. contratos de construo civil entre Embaixada de pas estrangeiro e empresa brasileira; b. inmeros contratos de locao de imveis entre autores brasileiros e Misses diplomticas ou reparties consulares de pases estrangeiros; c. acidentes de trnsito, que envolveram reclamaes de responsabilidade civil, contra pessoa estrangeira investida de imunidades de jurisdio; d. e os casos mais freqentes, de inadimplncia de contratos de trabalho, sendo o reclamante u m indivduo domiciliado no Brasil e o reclamado, u m a das pessoas investidas das referidas imunidades de jurisdio. N a maioria das vezes, com exceo dos ltimos casos a seguir relatados e que ocorreram na Justia do Trabalho, foram as citadas imunidades de jurisdio, ou invocadas, ou declaradas ex officio pelo juiz brasileiro (no caso de no-resposta a u m a citao judicial vlida), e pela simples verificao de que os rus ou reclamados eram diplomatas ou cnsules estrangeiros os feitos judiciais foram declarados extintos, pela impossibilidade do pedido.

    To freqentes tm sido as questes trabalhistas relativas a imunidades de jurisdio, que houve m e s m o a emergncia de u m conflito de jurisdio entre a Justia do Trabalho e a Justia Federal ordinria. N a verdade, nas reclamaes trabalhistas propostas contra Misses diplomticas ou Reparties consulares, na letra da Constituio federal anterior havia a lacuna de se saber qual a justia competente, se a federal geral ou se a justia trabalhista (ainda que se reconhecesse ser esta federal, mas, por ser especializada, havia a perplexidade), por ser o reclamado u m ente de Direito Internacional Pblico. Dos julgamentos do mencionado conflito de jurisdio resultaria a Smula 83 do ento Tribunal Federal de Recursos, assim redigida:

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    "Compele Justia Federal processar e julgar reclamaes rabalhisas conra represenao diplomtica de pas estrangeiro, inclusive para decidir sobre a preliminar de imunidade de jurisdio".

    Contudo, no houve qualquer smula semelhante no que respeia a reclamaes rabalhisas conra reparties consulares de pas esrangeiro.

    N a verdade, com a promulgao da vigente Constituio Federal de 1988, o conflito cessou de existir, u m a vez que o seu art. 114 expressamente assim estatui:

    Art. 114 - Compele Justia do Trabalho conciliar e julgar os dissdios individuais e coletivos enre trabalhadores, abrangidos os entes de direito pblico externo e da administrao pblica direta ou indireta..." (nfase nossa).

    E m que pese a imperfeio conceituai de entes de direito pblico externo (a terminologia correta seria: entes de direio internacional pblico) do referido art. 114 da Constituio Federal de 1988, conclui-se tratar-se:

    a. o empregador: Estados estrangeiros ou organizaes internacionais intergovernamentais, por qualquer maneira que seja, inclusive atravs de interveno dos agentes do Estado estrangeiro no Brasil, ou seja, funcionrios das suas misses diplomticas ou das suas reparties consulares localizadas no territrio nacional;

    b. os dissdios individuais ou coletivos: aqueles surgidos, seja de contratos celebrados alhures, seja, especialmente, de contratos celebrados no territrio nacional (sem ter relevncia a distino de ser o trabalhador u m brasileiro ou u m estrangeiro, por fora do princpio da isonomia entre nacionais e estrangeiros, conforme consagrado no caput do art. 5Q da m e s m a Constituio Federal);

    c. a lei de regncia do contrato: qualquer lei nacional de u m pas determinado (seja a brasileira, seja a estrangeira), mas com excluso das normas de Direito Internacional Pblico, e m particular aquelas constantes das Convenes de Viena de 1961 e de 1963 (uma vez que o legislador constituinte

  • 538

    atribuiu Justia brasileira a competncia de julgar os contratos, porque as prestaes laborais so realizadas no territrio nacional).

    N a verdade, deve considerar-se que os contratos de trabalho celebrados, de u m lado, por u m a misso diplomtica ou por u m a repartio consular estrangeiras, e de outro, u m trabalhador submetido lei trabalhista brasileira, no so atos negociais celebrados por funcionrios diplomticos ou consulares, a ttulo personalssimo (salvo no caso do "criado particular" ou "membro do pessoal privado", na terminologia das Convenes de Viena), mas atos praticados e m nome do Estado estrangeiro. Isto posto, segue-se que as relaes trabalhistas se estabelecem entre o indivduo e o prprio Estado estrangeiro, no havendo, pois, como invocar-se a regra do Direito Internacional Pblico, conforme constante nas mencionadas Convenes de Viena de 1961 e de 1963, mas e m outros princpios legais, inclusive para definir-se o problema central das discusses: a prpria existncia daquelas imunidades de jurisdio.

    A prpria evoluo da jurisprudncia brasileira mostra a impropriedade de tentar-se aplicar as mencionadas Convenes de Viena para a resoluo de assuntos ligados a outras esferas normativas, pois at o julgamento da Apelao Cvel n. 9.696-3/SP, sendo apelante Genny de Oliveira e apelada a Embaixada da ento Repblica Democrtica Alem, (D.J. 24.10.1990, p. 11.828, e m republicao), que brevitatis causa denominaremos Caso Geny de Oliveira/90, o raciocnio tinha sido de que, por tratar-se de atos celebrados por diplomatas stricto sensu ou por funcionrios consulares estrangeiros, estariam eles acobertados pelas imunidades, e, portanto, no haveria possibilidade de a Justia brasileira manifestar-se sobre o mrito das reclamaes trabalhistas ajuizadas.

    C o m o j mencionamos, outro caminho que deve ser buscado no deslinde das questes que suscitam os contratos de trabalho celebrados entre o indivduo e o Estado estrangeiro, e seu exame pelos Poderes Judicirios dos Estados. J mencionamos as razes que, acreditamos, teriam feito surgir o fenmeno da crescente apresentao perante os citados Poderes Judicirios, de aes contra Estados estrangeiros: relembramos, de igual forma, os motivos que foraram o estabelecimento de regras sobre a competncia das Justias estatais, nas aes que envolvem u m Estado estrangeiro, e dentre estes, pudemos afirmar que existe to-somente u m a regra internacional, a Conveno Europia sobre

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    Imunidades do Estado, assinada a 16 de maio de 1962, na Basilia, m e s m o assim, de vocao regional. Deixamos dito que, e m alguns pases da Common Law (EUA, Reino Unido, Canad, Austrlia, Paquisto e Singapura), foram passadas leis nacionais escritas (saues), que buscaram resolver a questo. Falta dizer algo sobre os pases da Civil Law, ou melhor dito, da famlia de direitos romano-germnica e a sua evoluo jurisprudencial (pois foi este o caminho trilhado, e no a passagem de leis escritas).

    N o caso dos direitos da Common Law, mencionados, houve u m momento preciso e punctual, a partir do qual o assunto passou a ser tratado: a passagem dos mencionados saues; a partir deles, os precedentes jurisprudenciais anteriores (stare decisis), to caros quela famlia de direitos, tornaram-se inoperantes como fontes de regras para solues das questes, ento novssimas no direito. Trata-se de leis que buscam estabelecer, de maneira pragmtica, uma tipologia dos atos praticados pelos Estados estrangeiros, que podem ser ou no ser examinados pelos Poderes Judicirios domsticos: so diplomas casusticos, onde se busca traar u m rol aproximativo de certos atos, imunes jurisdio, ou no imunes. N o caso dos direitos da famlia romano-germnica, no houve edio de leis escritas, mas houve, sim, a emergncia de uma jurisprudncia dos tribunais internos, no sentido de distinguir (sob as denominaes iniciais e originais de acta jure imperii e aca jure gestionis), os atos praticados pelo Estado estrangeiro, que merecem ser considerados imunes jurisdio dos tribunais nacionais, e aqueles que podem ser examinados e julga-dos por estes.

    O caso da Conveno Europia de 1962, por se tratar de u m a lei escrita, mereceu uma comparao com outra lei escrita, o Unied Kingdom State Immuniy Ac 1978, j mencionado no nosso trabalho Das imunidades de jurisdio e de execuo (1984), verbis, p. 150-151:

    "No se beneficia das imunidades o Esado estrangeiro que:

    a. por sua conduta (mais do que pela natureza do ato) se submee jurisdio das cortes do Reino Unido, ais como iniciar uma ao ou inervir no processo (salvo para invocar a imunidade), enendendo-se como

  • pessoas que assim podem fazer, o chefe da misso diplomtica ou as pessoas tituladas para agir em nome do Estado, em contratos (Seo 2);

    b. pela natureza de u'a atividade, o UK-Ac o submete s suas cortes, ais:

    1. situaes contratuais: contratos comerciais ou no, exeqveis no Reino Unido, contratos de trabalho, disposies essas iguais s da Conveno Europia;

    2. procedimentos relativos responsabilidade extracontratual, idem;

    3. procedimentos relativos propriedade de bem imvel sito no Reino Unido, ou advinda de sucesso ou doao, idem;

    4. procedimentos relativos a direito de propriedade intelectual ou industrial, idem;

    5. procedimentos relativos a assuntos 'inema corporis' em que um Esado se encontra frente a uma sociedade fbody corporae, incorporated body or a parnership'), idem;

    6. submisso arbitragem no Reino Unido, salvo disposio compromissria diferene ou quando as partes forem Esados, idem,

    c. nos casos de Direito Martimo (aes in rem e in personam) relativas operao de navios da propriedade do Esado estrangeiro (sec. 10) e nos de procedimentos relativos a tributos e taxas, verbis:

    Sec. 11. A State is not immune as respeci proceedings relating to its liabilityfor

    a. value added tax, any duty of customs or exercises or any agriculural levy; or

    b. rates in respeci of premises occupied by i for commercial purposes.

    Alm do catlogo especfico, mencionado, a Seo 3 do UK-Act contm uma disposio de carter geral, que

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    isena o Esado estrangeiro das imunidades de jurisdio nos procedimentos relativos a transaes comerciais, assim definidas na subseo 3, verbis:

    a. qualquer contrato de suprimento de bens e servios;

    b. qualquer emprstimo ou outra transao para a proviso de recursos financeiros e qualquer garantia ou indenizao relativa quela transao ou qualquer outra obrigao financeira; e

    c. qualquer outra transao ou atividade (comercial, industrial, financeira, profissional ou de carter similar) em que o Esado participe ou exera, e que no seja no exerccio de sua atividade soberana".

    Importantes estudos da jurisprudncia que se seguiu a partir da edio dos saues nos referidos pases da Common Law (em particular os mencionados cursos na Haia de Sir Ian Sinclair e de Peter D. Trooboff), mostram a formao de u m a distino, e m algo similar existente nos pases da famlia romano-germnica, e que acabaram por incorporar-se na regra da Section 451 do Revised Resaemen ofhe Foreign Relations Law ofhe USA, que distingue "govemmenfal activities (de jure imperii) and activities of lhe kind ha may also be carried on by privae persons (de jure gestionis), noably commercial activities..."

    N a verdade, a distino entre acta jure imperii (atos praticados por Estados estrangeiros e que no podem ser apreciados pelos Poderes Judicirios de outros Estados, porque relevantes da poesas normativa e administrativa interna daqueles) e aca jure negotii, ou ainda denominados aca jure gestionis (atos de Estados estrangeiros passveis daquele exame e julgamento, porque susceptveis de serem praticados, igualmente, por simples particulares) u m a criao da jurisprudncia da Blgica e do Egito, do final do sculo XIX. Criticada por grandes autores, na base de que no se pode descaracterizar atos praticados pela mesma pessoa, o Estado (pense-se numa operao de compra de armamentos, realizada por u m Estado de u m particular estrangeiro, para suprir suas Foras Armadas, ou nos contratos rotineiros de construo civil de obras

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    pblicas, e m concorrncias internacionais abertas a particulares estrangeiros) segundo a tica do interesse da outra parte, o particular estrangeiro, ou segundo a tica dos interesses do Estado, aquela distino, contudo acabou por se impor, pela sua utilidade. N a verdade, aquela distino foi aos poucos ganhando outras roupagens, como as oposies conceituais entre atos de Governo e atos como simples particular, ou ainda, atos pblicos do Esado e atos do Esado enquanto particular, etc. O citado professor Trooboff reconhece que no foi difcil jurisprudncia dos pases da famlia romano-germmica elaborar conceitos refinados, com base numa distino fundamental que nela existe, e que estranha aos pases da Common Law: a dialtica da oposio ideal-tpica entre as esferas do Direito Pblico e do Direito Privado.

    O caso Genny de Oliveira/90 merece destaque, pois, como j se disse, reformou a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal do Brasil e colocou o Pas e m consonncia com os princpios que regem a matria, na imensa maioria dos pases da atualidade. N u m momento histrico em que os Estados alargam suas atividades no que respeita ao domnio econmico e em que restringem ao mximo as possibilidades de invocao de imunidades de jurisdio para o Estado-empresrio, para tornar seus Judicirios exemplarmente conformes ao respeito dos direitos subjetivos da pessoa humana, particularmente no que concerne ao acesso da pessoa humana aos tribunais nacionais, no fazia sentido o Pas manter-se aferrado ao princpio da imunidade absoluta de jurisdio dos Estados estrangeiros, em detrimento da proteo daqueles direitos subjetivos.

    E m particular, na atualidade brasileira, em que a matria dos contratos de trabalho com o Estado estrangeiro voltou a ser da competncia da Justia do Trabalho, por fora do mencionado art. 114 da Constituio Federal de 1988, tudo indica que a jurisprudncia laborai seguir as linhas daquele leading case, que, por sinal, ainda e m casos remanescentes da Justia Federal sobre o assunto, acabou por determinar o resultado do julgamento da Apelao Cvel n. 2 (89.8751-7) pelo Superior Tribunal de Justia, em acrdo de 07 de agosto de 1990 (apelante, a Embaixada dos E U A em Braslia e apelados, Paulo da Silva Valente e outro, publicado in DJ. de 03 de setembro de 1990). Eis a ementa deste acrdo:

  • 543

    "Imunidades de Jurisdio. Reclamao Trabalhisa inenada conra Esado esrangeiro. Sofrendo o princpio da imunidade absolua de jurisdio certos emperamentos, em face da evoluo do direio consueudinrio inemacional, no ela aplicvel a deerminados litgios decorrentes de relaes rotineiras enre Esado esrangeiro e os sditos do pas em que o mesmo atua, de que exemplo a reclamao trabalhisa. Precedenes do STF e do STJ. Apelo a que se nega provimento".

    N a verdade, o caso Genny de Oliveira/90 j tivera u m exame anterior pelo Supremo Tribunal Federal (que tnhamos analisado e m nossa obra citada, que fora escrita em 1980, editada porm e m 1984) razo pela qual tivemos o cuidado de batizar-lhe com a nomeao do ano da prolao do ltimo acrdo a ela relativo. U m estudo crtico do e preciso do m e s m o encontra-se na obra do professor doutor Georgenor de Souza Franco Filho, titular de Direito Internacional Pblico e Privado da Unio das Escolas Superiores do Estado do Par ( U N E S P A ) e Juiz Presidente da A- Junta de Conciliao e Julgamento de Belm, Da distino entre atos de imprio e de geso e seus reflexos sobre os contratos de trabalho celebrados com enes de Direio Inemacional Pblico, apud Georgenor de Souza Franco Filho (coordenador), Direito do trabalho e a nova ordem constitucional, So Paulo, LTr, 1991 (em particular, p. 45-46). Eis a ementa do acrdo publicado em 1990, do qual foi relator o insigne Ministro Sydney Sanches:

    "Estado estrangeiro. Imunidade de jurisdio. Causa trabalhisa.

    1. No h imunidade de jurisdio para o Esado estrangeiro, em causa de natureza trabalhista.

    2. Em princpio, esia deve ser processada e julgada pela Justia do Trabalho, se ajuizada depois do advento da Constituio Federal de 1988 (art. 144).

    3. Na hiptese, porm, permanece a competncia da Justia Federal, em face do disposto no pargrafo 10 do

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    art. 27 do A.D.C.T. da Constituio Federal de 1988, c/c art. 125, II da EC n. 1/69.

    4. Recurso ordinrio conhecido e provido pelo Supremo Tribunal Federal para se afasar a imunidade de jurisdio reconhecida pelo Juzo Federal de l3 grau, que deve prosseguir o julgamento da causa, como de direio".

    Tratou-se de uma reclamao trabalhista intentada pela Sra. Genny de Oliveira, viva de antigo funcionrio da Representao Comercial da ento Repblica Democrtica Alem em So Paulo (em fase posterior do processo, reconhecida como parte integrante da Misso diplomtica daquele Pas no Brasil, sita e m So Paulo), para o fim de compelir a reclamada a realizar anotaes no contrato de trabalho do falecido marido, inclusive das alteraes havidas, e m particular, com relao aos salrios pagos. Face s alegaes de imunidades de jurisdio da reclamada, que invocou a Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas, tendo a M M . Junta de So Paulo afastado a alegao e reconhecido que u m contrato de trabalho no configurava u m ato de imprio, proferiu deciso em que julgou procedente a reclamao. O T R T da 2a Regio, atravs de recurso ordinrio, reformaria a deciso a quo, para conhecer da preliminar da imunidade de jurisdio, na base do argumento de que a reclamada passara a ser reconhecida como parte integrante da Embaixada da R D A em Braslia (com fundamento no art. 125, II da E C n. 1/69), e, sendo assim, remeteu os autos para a Justia Federal. O Juiz Federal da 8a Vara de So Paulo deu-se por incompetente e suscitou conflito de jurisdio para o STF; este, conheceu do conflito para declarar a competncia da Justia Federal (e, portanto, esta a primeira vez em que a Suprema Corte conheceria sobre o caso Genny de Oliveira), tendo devolvido os autos mesma para deciso de meritis.

    O M M . Juiz Federal da Ia Vara de So Paulo julgaria a reclamante carecedora de ao, por ter reconhecido a ocorrncia de imunidade de jurisdio da Embaixada da Repblica Democrtica da Alemanha, conforme a Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas. D e tal deciso, foi interposto recurso ordinrio para o Tribunal Federal de Recursos, que, ao no conhec-lo, remeteu os autos ao E. Supremo Tribunal Federal, que seria competente para o

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    julgamento de recursos em causas em que forem partes u m Estado estrangeiro e pessoa domiciliada ou residente no territrio nacional, tendo ficado provado que o antigo Escritrio Comercial em So Paulo passara a fazer parte integrante da Embaixada da R D A em Braslia, caracterizando-se, assim, u m a relao laborai entre uma Misso diplomtica estrangeira e u m a pessoa residente ou domiciliada no Brasil. Ainda no seu relatrio, o E m . Ministro Sydney Sanches cita uma srie de precedentes em julgados brasileiros, em que se afirmara a regra da existncia das imunidades de jurisdio, com base na citada Conveno de Viena, e a necessidade de haver uma renncia formal dos titulares daquelas imunidades para que o Judicirio brasileiro pudesse conhecer da reclamao. Enfim, o Ministrio Pblico opinaria sobre o conhecimento do recurso, porm pelo seu improvimento.

    N o seu voto, o Ministro Relator confirma a competncia da Justia Federal, in casu, em virtude do art. 27, 10 do Ato das Disposies Transitrias da Constituio Federal de 1988, por se tratar de processo pendente, no advento da norma constitucional; bem assim, diz ser, nos casos futuros, a competncia para casos como os sub judice, da competncia da Justia do Trabalho, com base no art. 114 da Norma Suprema. Nas suas razes de decidir, assim se pronunciou o Ministro Relator:

    "Afinal, o que ditou a eliminao da imunidade foi a natureza da causa trabalhista - e no a competncia deste ou daquele rgo do Poder Judicirio. Assim, conheo da apelao e, em face do direio constitucional superveniente, que pode ser considerado neste recurso ordinrio (art. 462 do CPC), e que eliminou a imunidade do Esado esrangeiro, em causa de natureza trabalhista, dou provimento apelao para cassar a respeivel senena do Ia grau, que se baseara no direio anerior, e deerminar que o nobre Magistrado, superada que ficou essa questo, prossiga no julgamento da causa, como de direio".

    Adiado o julgamento, em virtude do pedido de vista por parte do eminente Ministro Francisco Rezek, assim se pronunciou S. Exa., tambm pelo

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    provimento do recurso, mas por razes bem diferentes daquelas expedidas pelo Ministro Relator. N a verdade, com seu voto, o Ministro Rezek traaria uma clara evoluo do instituto das imunidades de jurisdio, com erudita argumentao, que acabaria por fundamentar os votos que se seguiram e que determinaram o reconhecimento no Brasil da inexistncia das imunidades de jurisdio, em relaes trabalhistas, em deciso unnime (em que pese terem as razes invocadas pelo Ministro Relator servido de fundamento apenas sua deciso pessoal e, concorrentemente, do Ministro Paulo Brossard). Portanto, vale a pena examinar o voto do Ministro Rezek, que, sem dvida, motivou a primeira deciso do Supremo Tribunal Federal em que se rejeitaram as alegaes de imunidades de jurisdio, lanando as bases para que a jurisprudncia brasileira se coloque de acordo com a tendncia universal de nossos dias, que a de restringir, o quanto se possa, as imunidades de jurisdio, de maneira muito particular nas relaes processuais trabalhistas, a fim de se evitar o abominvel fenmeno da denegao de justia a u m hipossuficiente.

    E m resumo, o voto do Ministro Rezek pode assim ser esquematizado:

    a. necessrio distinguir as imunidades que se tem verificado, na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, nas suas duas vertentes: aquelas pessoais, resultantes das duas Convenes de Viena (sobre relaes diplomticas e sobre relaes consulares), atribudas a u m ru, pessoa fsica, e nas quais opera em plenitude, o direito internacional escrito; e aquelas que so atribudas ao prprio Estado estrangeiro;

    b. as primeiras raramente tm sido invocadas perante o Supremo Tribunal Federal, o m e s m o no ocorrendo em relao s segundas;

    c. o fundamento da jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, em relao s imunidades do prprio Estado (como no caso sub judice, nas relaes trabalhistas), se tinha firmado numa regra costumeira ento vigente, das imunidades absolutas do Estado estrangeiro perante os tribunais brasileiros, regra essa que deixou de existir a partir de 1972, com a edio da Conveno Europia da Basilia sobre as imunidades do Estado, reafirmada com as leis dos E U A e do Reino Unido, que introduziram temperamentos na teoria da imunidade absoluta do Estado estrangeiro;

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    d. isto posto, no havendo solidez na regra costumeira de Direito Internacional, o fundamento da jurisprudncia anterior do Supremo Tribunal Federal desapareceu, havendo, assim, a necessidade de acomodar a jurisprudncia do mesmo nova realidade (no tendo mudado o quadro interno, mas o internacional) e, portanto, no se encontra "fundamento para esauir sobre a imunidade como vinha garantindo o Supremo Tribunal Federal". Eis o cerne da deciso:

    "O que caiu foi o nosso nico suporte para a afirmao da imunidade numa causa trabalhista contra o Esado esrangeiro, em razo da insubsisncia da regra costumeira que se dizia slida - quando ela o era e que assegura a imunidade em termos absolutos.

    Com essas razes, tambm voto no sentido de dar causa ao deslinde proposto pelo Minisro Relator. No me apoio no art. 114 da Constituio de 1988, mas no fato de no mais encontrar fundamento para esauir sobre a imunidade como vinha garantindo o Supremo Tribunal Federal"

    Foi com especial satisfao que lemos o voto decisivo do eminente Ministro Francisco Rezek e os demais votos que adotaram como razo de decidir, os argumentos de S. Exa. Na verdade, correspondem aqueles conceitos aos que expusemos nas concluses de nossa tese de livre-docncia em Direito Internacional, defendida em 1980, perante a Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo e que resultaria no nosso trabalho anteriormente mencionado e publicado pela Editora Forense. Permitimo-nos transcrever u m trecho das concluses de nossa tese:

    "Apesar das dificuldades, contudo, alguns pontos comuns podem ser achados no exame das vrias imunidades. O primeiro e principal a tendncia de restringi-las ao quanto se puder, numa enativa de deixar os Poderes Judicirios o mais abrangene possvel, seja por motivaes de soberania nacional,

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    seja por ouras de equilbrio constitucional entre os trs Poderes, seja, ainda numa tica de proeo da pessoa de direito privado, que no tem privilgios ou imunidades e, por isso, deve uma aeno especial, quando em relaes jurdicas com pessoas imunes..." (Guido Fernando Silva Soares, Das imunidades de jurisdio e de execuo, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p. 229-230).

    Finalmente, interessante observar a seqela do caso Genny de Oliveira/1990, e m particular no que respeita atitude tomada pelo Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil, com relao ao assunto e "afim de aender s freqenes consulas sobre processos rabalhisas conra Represenaes Diplomticas e Consulares". Trata-se da Noa Circular n. 560, DJ/DPI/CJ, de 14 de fevereiro de 1991, do Minisrio das Relaes Exteriores do Brasil, dirigida s Misses diplomticas acrediiadas em Braslia, cujo conhecimento nos foi possvel pela leitura do referido artigo Da distino enre atos de imprio e de gesto..., de autoria do professor e magistrado trabalhista Dr. Georgenor de Souza Franco Filho, publicado no livro, igualmente j mencionado, de que S. Exa. foi coordenador, Direito do trabalho e a nova ordem constitucional, apud, p. 34-35. Eis seus pontos bsicos:

    'a. em virtude do princpio da independncia dos Poderes, consagrado em todas as Constituies brasileiras, e que figura no artigo segundo da Constituio de 1988, vedada ao Poder Executivo qualquer iniciativa que possa ser inerpreiada como interferncia nas atribuies de outro Poder;

    b. a Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas de 1961, assim como a de 1963, sobre Relaes Consulares, no dispe sobre maria de relaes rabalhisas enre Esado acrediane e pessoas contratadas no terririo do Esado acrediado;

    c. ane o exposto na letra b, os Tribunais brasileiros, em sintonia com o pensamento jurdico atual, que

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    inspirou, alis, a Conveno Europia sobre Imunidades dos Estados de 1972, o "Foreign Sovereign Immunities Ac" dos Esados Unidos da Amrica, o "Sae Immuniy Ac", do Reino Unido, de 1978, firmaram jurisprudncia no sentido de que as pessoas jurdicas de direio pblico exemo no gozam de imunidades no domnio dos "atos de geso", como as relaes de rabalho esfabelecidos localmene;

    d. a Constituio brasileira em vigor determina, em seu artigo 144, ser da compencia da Justia do Trabalho o conhecimento e julgamento desses litgios''

    Acreditamos que no podemos, em que pese a ponderao do professor Souza Franco Filho, assimilar a referida Nota Circular do Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil, nem ao Act dos E U A , como sugere S. Exa., nem, como poderia aparecer, primeira vista, famosa Tale Letter, comunicao do consultor jurdico, em exerccio, do Departamento de Estado dos E U A , em 19 de maio de 1952 (portanto, antes do FSIA, que de 1976), ao ento consultor-geral Philip B. Perlman, para esclarecer a posio do Poder Executivo norte-americano, no que se referia ao tema das imunidades de jurisdio, numa poca em que a jurisprudncia federal daquele Pas se mostrava e m estado catico. E m primeiro lugar, reconhecendo com aquele Professor, que se trata de Nota oriunda do Poder Executivo, no pode ela ser assimilada a u m satute da Common Law federal dos E U A , uma vez que suas normas se dirigem a Misses diplomticas estrangeiras acreditadas em Braslia, e, portanto, no tm efeito erga omnes. Quanto s possveis assimilaes Tale Letter, a prpria Nota Circular n. 560 do Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil, expressamente na sua letra b, reconhece a independncia dos trs Poderes (leia-se, em especial, do Poder Judicirio em relao ao Poder Executivo) e, sendo assim, no corre o perigo de ser considerada uma ingerncia indevida da Administrao nas atribuies dos tribunais judicirios (como, de fato, ocorreu nos E U A , o que causou o total desconhecimento, por parte dos tribunais norte-americanos, das normas contidas na citada comunicao do consultor jurdico da Secreiary of State daquele Pas). O que se depreende, pois, da citada Nota Circular, que se

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    trata de u m conselho s Misses diplomticas estrangeiras acreditadas no Brasil, a que faam ateno s eventuais inadimplncias de suas obrigaes legais trabalhistas, que, doravante, sero plenamente conhecidas e julgadas pelos tribunais de Justia do Trabalho do Brasil, podendo ler-se, nas entrelinhas, que o Ministrio das Relaes Exteriores nada tem a ver com as conseqncias de tal fato, e m particular, no que respeita a possveis violaes de obrigaes internacionais do Pas, no que respeita a alegaes de imunidades de jurisdio por parte das referidas Misses diplomticas acreditadas perante o Governo Federal e m Braslia.

    C o m o concluso, devemos dizer que o abandono da teoria da imunidade absoluta por parte da Justia Trabalhista no Brasil, para torn-la abrangente dos contratos de trabalho de pessoas domiciliadas no Brasil, com Misses diplomticas ou Reparties Consulares, ou seja, com o prprio Estado estrangeiro, alm de colocar o Pas em correspondncia com os direitos internos da esmagadora maioria dos Estados da atualidade, reafirma a vocao do Brasil de respeitar u m dos princpios fundamentais da Declarao Universal dos Direito do H o m e m , solenemente proclamada pela Assemblia Geral das Naes Unidas, a 10 de dezembro de 1948, no seu art. VIII, verbis:

    "Todo homem tem direio a receber dos ribunais nacionais compeenes remdio efetivo para os atos que violem os direitos fundamenais que lhe sejam reconhecidos pela constituio ou pela lei".

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