as mais lindas historias escoteiras
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A voces meus filhos, que me deram a honra de participar no escotismo por muitos anos dedico esta Coletânea com
amor e lembranças do passado.
Prefácio
Eu gosto de contar histórias. Influências diversas me
colocaram em fábulas reais ou imaginárias. Garatujo algumas
baseadas em fatos autênticos, outras com uma pequena dose de
ficção deixando no ar o gostinho da dúvida – Será que foi ou não
verdade? – É o meu estilo de escrever.
Minha biografia escoteira e pessoal foi cheias de episódios,
momento alegres, algumas peripécias com desfechos nem sempre
felizes. Todos eles ficam marcados na memória. Alguns legítimos,
outros apócrifos, e outros... Ah! Nestes casos ficam anotados na
mente, com espaços ilimitados gravados em micro chips humanos,
como recordação para a posteridade. Desses não esqueço nunca.
Outros nem tanto. Um amigo já me disse que preciso fazer um
backup para nada se perder no tempo quando me for.
Alguns contos ou narrativas são flash-backs que surgem com
final feliz. Poucos com desfechos um tanto tristonhos, mas que
fazem parte da vida e da história da humanidade. Importante
saber que todos nós, eu e você temos sempre uma história para
contar. E se pudéssemos montar nossas biografias com fatos e feitos
ocorridos, teríamos um volume imenso em páginas impressas no
imaginário livro da vida.
Faça sua própria aventura!
Boi não é vaca feijão não é arroz Quem quiser que conte dois"
Amigo, o que é isto? Você é Escoteiro? - Não diga!
Ah! Meu amigo sou sim, com muito orgulho. Estou aprendendo a ser alguém, para que todos que me amam possam um dia orgulhar. Aprendo que o caráter é importante em cada um de nós. Que ser leal é ponto de honra, e minha palavra? Sim é sagrada. Estou aprendendo que a honra faz parte dos honestos. Que a ética é mais que tudo. Aprendo tantas coisas que cada dia que passa mais me orgulho de pertencer ao escotismo. Acho que você não sabe, mas são tantas coisas maravilhosas que acontecem comigo, que hoje sei que a felicidade pode ser alcançada e eu a alcancei. Sou um privilegiado por Deus em estar aqui. Sabe, já vi um céu estrelado deitado na relva, em volta de uma fogueira cheia de amigos e amigas. Ali vi as constelações, um cometa que passa, e isso mais e mais me leva a certeza que o escoteiro é puro nos seus pensamentos, nas suas palavras e nas suas ações. Gostaria que um dia, pudesse junto comigo dormir sob as estrelas! Ver o sol nascer e ele se pôr ainda vermelho no horizonte deixando uma marca profunda em nossos corações. Quem sabe um dia vai poder saborear o cheiro da terra molhada, do perfume das flores silvestres, do som maravilhoso da passarada, do piar da coruja em um carvalho qualquer. Ver o lenho crepitando em uma bela fogueira onde todos riem, cantam e vão vendo as fagulhas subirem aos céus, languidas e serenas até que a aragem leva-as para longe. Olhe, é lindo ser do escoteiro. Acho que é um privilégio de poucos. Quando vejo a chuva caindo em uma floresta, sinto o som imperdível aos ouvidos de um velho mateiro. Saiba que temos uma ternura imensa com a natureza. Para nós é fácil encontrar o Norte e o Sul, seguir a sotavento, sentir o vento no rosto, descobrir as flores desabrochando nas campinas verdejante. É, podemos tirar o calçado e molhar os pés nas águas geladas de um belo riacho. Sentar e tirar uma soneca em uma grande e frondosa arvore e podemos olhar em volta e sentir o cheiro da relva cujo vento sopra com amor em nossa face. E nada mais maravilhoso que chegar ao cume de uma montanha e ver o horizonte! Um espetáculo imperdível meu amigo! Mas olhe, não sei se terá a oportunidade de ter o que temos. Aqui aprendemos que o medo é próprio dos fracos. E é preciso ter coragem e amor para conviver em uma vida saudável junto dos demais escoteiros. Se um dia quiser, quem sabe, você pode até entrar em um Grupo Escoteiro. Mas lembro a você que qualquer um pode entrar, mas é importante saber que ser escoteiro não é para qualquer um! Se resolver mesmo, seja bem vindo. Espero que você seja mais um irmão de tantos milhões espalhados pelo mundo. E quando for, vai saber que o nosso fundador Baden Powell disse que aqui, somente os valentes entre os valentes se saúdam com a mão esquerda. E pode acreditar que você será muito bem recebido, pois nós escoteiros somos amigos de todos e irmão dos demais escoteiros. Coloque sua mochila, cante uma canção, e parta conosco nesta bela aventura!
A lenda do Escoteiro do mar.
Só o vento do mar azul sabe a resposta.
Não te prometo a terra, nem o céu, nem o mar; Mas pra sempre, eu vou te amar!
Caio Souza dos Anjos.
Uma linda tarde de setembro. Um céu azul, um vento sul soprando
perfumes que o mar generosamente nos oferecia sem nada em troca. Minhas
tardes de sábados estavam chegando ao fim. A Bandeira tinha sido arreada. Os
sete silvos do apito de marinheiro ainda corriam pelos cantos da sede como se
fossem ecos perdidos no tempo. O Grupo Escoteiro do Mar Almirante Graça
Aranha teve mais um dia de história. História que ficaria na mente de todos
como fantasmas amigos para sempre. Os lobinhos ainda tinham no rosto aquele
mote de quero mais. Os Escoteiros aqui e ali se reunião em seus cantos de
Patrulha para os avisos finais. Posicionei-me como sempre fazia na saída da
sede. Uma rotina. Fazia questão de apertar a mão de cada um e dizer – Obrigado
por estar conosco. Conto com você na próxima reunião. Sempre fiz isto nos
últimos setenta anos. Poucos ligavam para o que eu fazia. Não davam nenhum
valor. Nunca me importei com isto. Chamavam-me de Almirante Ramon. Eu
sabia que não era e nunca fui almirante. Para dizer a verdade nem me lembro de
quem me apelidou assim. Claro eu amava com todas as forças os Escoteiros do
mar. E toda minha vida sempre tive em meu coração o Grupo Escoteiro do Mar
Almirante Graça Aranha.
Fui até o escritório. Precisa mais de mim? Perguntei ao Chefe
Cornélio. - Não Almirante pode ir – respondeu. Sai devagar e com calma. Meu
andar já não era o mesmo. Muitas vezes cambaleava e alguns transeuntes
achavam que eu tinha bebido. Risos. Quem sou eu. Fui sim um alcoólatra, mas
hoje não sou mais graças a ela. Precisava de uma bengala. Meus proventos do
INSS não dava. Eu sabia aonde ia. Sempre fiz este trajeto todos os sábados por
muitos anos. Menos de um quarteirão descia uma pequena encosta e o mar com
todo seu esplendor ali estava a me esperar. Amo o mar. Sempre amei. Só ela
estava acima deste amor que eu tinha por aquelas águas azuis que encantaram e
encantam gerações. Avistei o Scaler de fibra de vidro, ao lado o Caique (alguns
chamam de caiaque), o bote também de fibra de vidro e o barco de alumínio
fundo chato movido a motor de popa. Todos do meu querido Grupo do Mar
Almirante Graça Aranha.
Já não eram os mesmos do meu tempo, afinal fazia mais de
setenta anos que tudo aconteceu. De dentro do barco tirei meu banco de
madeira. O sol em pouco tempo ia se esconder no horizonte. Engolido pelo mar.
Sentei como sempre fazia e esperava ela chegar. Nunca se atrasou. Fazia
questão de ver o por do sol junto comigo. Eu sempre sonhei em participar como
Chefe. Tirar minha carteira de habilitação de Arrais, e sabia que a Capitania dos
Portos nunca ia me reprovar. Todos os chefes do grupo tinham sua habilitação.
Seis jovens seniores de dezesseis anos conseguiram autorização para
conduzirem suas embarcações sozinhos. Ostentavam com orgulho o seu
distintivo de Veleiro. Como sempre meus pensamentos eram como ventos
revoltos. O passado não me abandonava. Meus sonhos nunca se concretizaram.
Nem Chefe me autorizaram ser. Dizia que eu não falava muito, que não ria que
meu semblante não transmitia o oitavo artigo da Lei do Escoteiro. Para ser Chefe
diziam tem de ter estilo, aparência e um histórico diferente do meu.
Nunca desisti de ser Escoteiro do Mar. Mesmo depois que tudo
aconteceu eu Insistia em ir ao Grupo Escoteiro todos os sábados. Pela manhã
passava a blusa, a calça com perfeição. O meu chapéu de Marinheiro de brim
branco nunca perdeu o vinco. A camisa e o calção de brim mescla nunca mudei.
Meu cinto de couro tinha o maior carinho. Meu ritual começa ao colocar o meião
preto, e ver se os sapatos estavam engraxados. Fazia questão de o lenço estar
bem postado. Nem um botão desabotoado. Ao sair ainda dava outra olhada no
espelho. 86 anos. 76 fazendo o mesmo todos os dias. Sempre pensei em
comprar um dia o uniforme de gala. Nunca tive condições financeiras. O tempo!
O tempo não se apaga, ele faz questão de mostrar que nada pode ser esquecido.
Se ele pudesse falar diria que só assim poderemos crescer na eternidade. Como
esquecer Bella? Como?
Lembro-me de tudo. De cada minuto que a conheci e vivi ao seu
lado. Não era da minha patrulha. Eu fui da Lobo e ela da Onça Parda. Quando ela
foi apresentada ao grupo no cerimonial o Chefe fez questão de tocar seu apito
de marinheiro por sete vezes. Uma espécie de saudação pela primeira jovem que
iniciava conosco. Ali, aqueles meninos do clube do bolinha que só sabiam
pensar nas aventuras que poderiam fazer no mar não olharam com bons olhos.
Eu e Bella ficamos amigos. Passamos a nos encontrar durante a semana não
todos os dias. Um dia sim um dia não. Seu pai nos encontrou. Eu tinha quatorze
anos e ela treze. Tentei explicar que era Escoteiro do mesmo grupo, mas ele nem
deu resposta. Procurou o Chefe da Tropa que me proibiu de vê-la. Impossível.
Eu só pensava nela. Até meus estudos estavam sendo prejudicados. Minha mãe
me chamou atenção. Meu pai eu não sabia quem era. Sumiu no mundo e nunca
mais voltou.
Olhei de novo para o horizonte. Mais alguns minutos o sol iria se
por. Mais alguns minutos ela ia chegar. Meu coração sempre batia
descompassadamente. Pensando no meu passado relembrei um poema que li
em um blog – O Escoteiro do Mar representa a água, que garante a vida de
todos. Peço a ajuda de Poseidon para que mande um Tsunami e destruir as
maldades do mundo, das injustiças e peço também a este Tsunami que se
transforme em um manso regato para acalmar todos os corações aflitos e
ansiosos. Quando lembrava uma emoção tomava meu ser. Machucava. Amar
alguém sem poder tocar? Sem estar junto todos os segundos do tempo? Afinal
o que é o tempo? Eu não sabia das respostas. Mas como se fosse um grande
tela de cinema, comecei a ver o meu passado que os ventos do sul me traziam.
Era assim todos os sábados. Por quê? Eu sabia de tudo. Cada segundo estava
preso no fundo do meu coração. Não precisava recordar.
Bella! Venha comigo, vamos dar uma volta no mar? Só próximo
à praia. Não tem perigo! – Bela me olhava curiosa e renitente. Sorria. Que
sorriso. Nunca esqueci. Treze anos e linda como uma deusa. Joguei o Barco de
alumínio nas ondas que insistiam em ir e vir. Dentro dois remos comuns. O
motor não estava lá. Bella não queria. Uma volta somente eu prometi. Você sabe,
vou passar uma semana sem ver você. Sei pai disse se nos ver juntos tira você
do Grupo Escoteiro. Ainda não escureceu. A reunião hoje acabou mais cedo.
Temos tempo. Ela não queria. Encontrávamo-nos ali onde ficavam as
embarcações do grupo. Por ser distante de residências tínhamos liberdade de
correr, de sorrir e uma vez ou outra eu pegava em sua mão. Quente. Macia,
perfumosa. Ia para casa sentindo o aroma de seu perfume. Relutava em tomar
banho. Não queria que ele desaparecesse.
Entrei no barco e ela entrou comigo. Eu ria, cantava, fiquei
empolgado e em minha mente sonhava estar singrando os mares em um grande
veleiro, ela ao meu lado sorrindo, perfumosa e eu a beijava. Um beijo a moda
antiga. Um roçar de lábios que marcaria a minha vida para sempre. Até hoje não
sei o que aconteceu. Estávamos a menos de vinte metros da praia. Um pé de
vento? Um retorno mais forte de uma onda que voltou da praia? Não sei. Nosso
barco começou a se afastar da costa. Gritava para ver se alguém nos ouvia.
Ninguém. A terra sumiu. Em todos os lados só água e água. Na Patrulha
aprendemos que se vai para o mar, avie-te em terra. Não tínhamos nada. Nem
água. A noite chegou brava. Nuvens escuras apareceram. O barco a deriva mais
a deriva ficou. Não tinha condições de remar. Nem ela. Meus braços que
tentaram muito agora estavam prostrados. A tempestade gritava com trovões
assustadores e seus raios iluminavam as enormes ondas que se formavam.
Eu sabia me orientar. Mas para que? A chuva e o vento forte
faziam do barquinho uma folha de amoreira. Mesmo que avistasse o farol do
Forte nada adiantaria. Pedia a Deus que outras embarcações quem sabe
poderiam aparecer e nos ajudar. Mas quem sabia onde estávamos? Ninguém
nos viu. Lembro-me das palavras do Chefe, nunca bebam água do mar. Ainda
bem que chovia em um canto do barco a água empossou. Eu e ela estávamos de
uniforme, mas sem nenhum apetrecho. Cantil? Em reuniões comuns? Deus
ainda ajudou, pois o barquinho aguentou as enormes ondas. A chuva amainou.
Estava molhado e cansado. Eu e ela dormimos ali aquela noite. Dois perdidos no
meio do oceano. Acordamos pela manhã. Não havia pássaros sinal de que
estávamos longe da terra. O sol chegou forte. Ainda deu para beber o resto da
agua que se armazenou no bote. Era pouca. Logo ela sumiu. À tarde a sede era
enorme. Ainda não tinha fome e nem ela. Ela chorou só noite. Encostou sua
cabeça em meus ombros e chorou por muito tempo. Eu não sabia o que dizer.
Consolar como? Estávamos perdidos e só Deus poderia nos salvar.
No segundo dia comecei a ficar desesperado. Foi ela quem
teve as palavras de consolo. Não se desespere! Disse. Lembro que minha Chefe
me dizia que o que aconteceu não tem volta. Nunca deveríamos ter saído
despreparado. Nem uma lona temos para armazenar água. Se tudo agora
aconteceu precisamos manter a calma. Dormi a pior noite da minha vida. Bella
me abraçou. Acordamos com o sol queimando meus olhos e o dela. Deitados no
barquinho sentimos que ele estava parado balançando com as ondas. Levantei
com dificuldade. Meu Deus! Era uma ilha ou o continente. Acordei Bella. Ela
gemia. Estava febril. Com muito custo saímos do barco. Puxei-a pelos ombros
até sair da água. Vi ao longe uma senhora correndo em nossa direção. Desmaiei.
Acordei dois dias depois. – Dona! Onde está Bella? Pelo amor de Deus me diga
que ela está bem! – Está sim. Seus pais vieram buscá-la. Ela não os reconheceu.
Parecia estar cega!
O tempo passou. Um ano talvez. Sempre ficava horas e horas
em frente à casa de Bella. Nunca ela apareceu. Um dia na Missa de São Pedro eu
a vi. Usava óculos escuros. Foi como uma faca penetrando em meu coração.
Pensei em me aproximar, mas o olhar de seu pai me assustou. Fora tudo culpa
minha. Quase não ia mais ao grupo. Parecia que eu era culpado sem direito a
defesa. Era mesmo. Provoquei tudo. O tempo foi passando e um dia tomei uma
decisão. Bati a porta da casa de Bella. Sua mãe assustou. – Bella vai casar
comigo. Eu a amo. Nós vamos ficar juntos para sempre! – Demorou para
convencer seus pais. Fiz dezoito anos e ela com dezessete me abraçou e jurou
ser minha para sempre na Igrejinha de São Raimundo. Voltamos a frequentar o
grupo. Era minha segunda paixão. Não fui o escoteiro do mar que deveria ter
sido. Mas com Bella ao meu lado eu seria de novo. Mesmo sem enxergar eu
seria seus olhos. Eu mostraria a ela a beleza das flores, ela iria sentir o perfume
da primavera. Nada iria faltar. Trabalhava na Fabrica do Doutor Romeu.
Dez anos de casado. Dez anos de felicidade. Bella tinha uma
angina no peito. Ninguém sabia. Morreu de um ataque fulminante num dia
qualquer de janeiro. Eu queria morrer com ela. Não podia. Não tinha condições
de viver sem ela. Dediquei-me mais ao Grupo do Mar. Era minha segunda paixão.
Quem sabe ele poderia me dar à paz que eu queria? Cada sábado era esperado
como se fosse ontem. Parei de sorrir. Não havia motivos. Falar? Falar o que?
Por muitos anos todos me culparam pelo acontecido. A chefia do Grupo foi
contra meu retorno. Mas aceitaram. Passei a ser um faz tudo no grupo. Nunca
seria Chefe. Ninguém iria confiar em mim para sair mar adentro. Também não
insisti, não adiantava. Ali no grupo Escoteiro eu a via em todos os lugares.
Falava com ela. Riam de mim. - Agora deu para isto diziam.
Olhei de novo para o mar. Meus pensamentos desapareceram.
Ela estava chegando. A mais linda gaivota que um dia existiu. Não era uma
gaivota qualquer. Era branca como a neve e eu sempre quando a via ficava
fascinado pela sua beleza. Não chegava sem antes fazer lindas acrobacias.
Desenhava no céu com suas asas enormes nomes que ninguém nunca soube o
que era. Só eu. Ela com seus escritos fantásticos no céu dizia – Amo você!
Amarei por toda vida! Eu ali com meu garboso uniforme de Escoteiro do Mar me
levantava. Ela vinha suavemente pousar em meu ombro. Bicava de leve minhas
faces. E juntos ficávamos vendo o por do sol, até ele sumir do outro lado do
oceano. Ficávamos os dois até altas horas da noite. Quem um dia passasse por
ali diria que era loucura. Uma gaivota não fala. Um Velho a conversar com ela?
Demorou-se mais de uma semana para darem falta do
Almirante Ramon. Ninguém nunca pensava nele como mais um. Não havia mais
rancores, mas ele era apenas uma figura apagada. Deram falta de um caíque.
Seis meses depois uma fragata da marinha o encontrou a deriva bem longe da
costa. Em um sábado uma Patrulha de valorosos Escoteiros do Mar preparava-
se para partir rumo a Ilha das Cabras. Acampamento de dois dias. Puseram-se
no mar e um deles percebeu duas gaivotas sobrevoando seu Scaler. Todos
olharam para o céu e pareciam que elas queriam dizer alguma coisa. Maria
Bonita uma escoteira do Mar conseguiu ler. Não acreditou, mas mostrou aos
demais Escoteiros o que estava escrito. – Bons Ventos escoteiros do Mar! Não
façam do mar um obstáculo, pois ele é o caminho (Amyr Klink). Todos ficaram
estupefatos. O vento soprou com mais força, a vela esticou suas asas para
frente. Um sorriso brotou e logo o barco navegava para mais uma aventura. Era
como se fosse o Rataplã dos Escoteiros do mar! Alguém gritou – Rumo sota-
vento! Em frente vamos navegar!
Seja como as ondas do mar
que mesmo quebrando contra os obstáculos,
encontram força para
recomeçar.
S. Bambarèn.
** -- Alguns termos técnicos usados neste conto, foi uma colaboração do Chefe
Ronaldo Morgado.
Mefistófeles, um Demônio trapalhão.
(uma deliciosa sátira de ficção, onde os apreciadores do além túmulo podem
gostar).
Eu não tenho medo de lobisomens ou hotéis assombrados, eu só tenho medo
do que seres humanos reais fazem com outros seres humanos reais.
Walter Jon Williams.
Não gosto muito de histórias de terror. Se a vida já é difícil para que
complicar com o além do mal? Mas não era assim que pensava Lascanio dos
Anjos. Quando eu o conheci jurei a mim mesmo que era uma figura parecida
com aqueles donos de funerárias, com um terninho feito sobre medida, gravata
borboleta e um chapéu coco. Bem ele me disse que não. Magro, alto, branco
como leite se vangloriava sempre em ter amigos no inferno. Deus meu! Que cara
eim? Ele mesmo me disse que seu irmão Funério tinha uma fábrica de esquifes
no interior. A cada dia ficava mais rico. - Sabe Chefe qual foi o único negócio
que não foi afetado pela crise? Fabrica de caixões. Meu irmão tem uma, é o dono
e presidente da Associação dos Bem Felizes Desencarnados. Fatura quase três
milhões de dólares por ano. Engraçado que ele me disse um dia em uma reunião
de distrito nunca ter conversado com os mortos, mas eu o peguei um dia no
maior papo com Mefistófeles a quem ele chamava de demônio trapalhão.
Eu tentava ao máximo me desvencilhar dele, mas o danado parecia
ter um pacto com o demônio e me descobria sempre quando ia tomar meu
chopinho e comer minha empada de camarão com azeitonas pretas. Era eu
sentar e ele com aquela cara de cadáver ressuscitado brotava do nada e ficava
ali a minha frente sempre dizendo: – Sempre Alerta Chefe! Sentava e sem pedir
nada para comer ou beber, lá vinha ele com suas histórias tenebrosas,
aterradoras que mexia comigo e muito. Afinal do ponto de ônibus até minha
casa eram mais de quinhentos metros sem luz e residências numa trilha dentro
de um matagal. Bem eu não era medroso, mas cá pra nós, mexer com o diabo ou
cutucar com vara curta a gente sempre se da mal. Isto minha Avó sempre dizia.
Naquele dia ele veio com uma conversa enviesada que eu precisava
conhecer Mefistófeles um demônio trapalhão e quem sabe dar a ele alguns
conselhos sobre o que ele pretendia fazer. Logo eu? Conversar com um capeta
da vida? Maldita hora que o deixei há muitos anos atrás a ir conosco em uma
jornada a pé de oitenta quilômetros até Ribeirão Vermelho. Doze dias, doze dias
sofrido com Lascanio dos Anjos a rir de suas próprias piadas aterradoras. O
moço era Sênior e dizia falar com os mortos. A princípio achamos graça, mas
depois quando estávamos atravessando um povoado chamado Cruzes dos
Mortos Vivos não paramos de correr antes de deixar a cidade para trás.
O pior, Lascanio dos Santos ficou lá, conversando com cada alma
penada que ali fizera sua morada. Achamos melhor deixá-lo lá onde Judas
perdeu as botas e nós não queríamos perder nossa alma. E não que o danado,
oito quilômetros mais a frente, nos esperava sentado ao lado de uma cruz de
madeira na curva do Rio Menino? Como ele passou na nossa frente eu juro que
não sei, mas daí em diante tomei um medo danado dele. Agora insistia que eu
fosse ver o tal Mefistófeles. Disse que ele estava sendo perseguido por
Baphomet, filho de Caramulhão e sobrinho de Lúcifer. Nem morto meu amigo,
nem morto! – Chefe é melhor vir comigo. Se não falar com ele não posso lhe
garantir nada. Será perseguido pelo resto da vida! O capeta é vingativo. Putz
grila! – Bem, façamos o seguinte, você me pega depois da reunião de sábado, lá
pelas sete. Mas lembre-se não posso ficar muito tempo. Tenho compromisso às
dez da noite!
Sete em ponto, sai da sede pé ante pé tentando fugir do Lascanio e
cacilda, lá estava ele me esperando em um carro fúnebre, negro usado para
transporte de defuntos. Sempre Alerta Chefe, pé na estrada que Mefistófeles nos
espera! Ele não gosta de atrasados. Era o jeito. Fugir não dava. Entrei e atrás um
caixão enorme. – Tem defunto? Perguntei. – Tem é o Dagomar Peixoto. Morreu
ontem. Alguém o matou cortaram seu pescoço com um machado e tiraram seus
dois olhos colocando no lugar limões verdes. Não sei por quê. Prometi levá-lo
até Mefistófeles antes que Lúcifer encontra-se sua alma. Ele tinha um carinho
enorme pelo Dagomar. Foram amigos de infância.
– Onde fui me meter? Um escoteiro bem vivido como eu e agora ali no
meio da capetada? Chegamos ao Cemitério Flores do Mal que se encontrava
escuro feito breu. O grande portão de ferro abriu para nós rangendo como se
fossem correntes sendo arrastadas por mil almas do outro mundo. Mefistófeles
estava soberbo na porta daquele enorme mausoléu. Um manto vermelho enorme
que saia chispa de fogo, calçava enormes botas vermelhas e como sempre o
"Velho" e gostoso tridente que todo capeta gosta de carregar. Um moço ainda
tinha um belo chapéu vermelho estilo espanhol com uma pena de Abutre do
deserto da Morte. Será que o usam no inferno para os que estão lá queimando
feitas brasas de Fogo de Conselho?
Sem delongas ele me mandou entrar. Dentro pouca iluminação. Duas
tochas acesas somente. Um cheiro de enxofre no ar. – Apontou-me um caixão
fechado. Sente-se Chefão! Tenho acompanhado o senhor nas redes sociais.
Tenho enorme admiração! – Deus do céu! Quem poderia pensar que os
demônios também estão lá no Facebook? – Ele não foi de delongas, entrou logo
no assunto – Chefe eu quero organizar um Grupo Escoteiro aqui. Quem quiser
participar eu o tirarei do inferno em chamas e nunca mais vai voltar. Ficará aqui
em local privilegiado, mas enterrado a sete palmos. Só sai nos dias de reunião.
Garanto que muitos vão querer. Quem gosta de fogo no rabo? – O Belzebu era
maldoso e falador de palavrões. Precisava tomar cuidado. – Ele continuou –
Preciso da sua ajuda nos primeiros três meses enquanto o senhor treina
Baphomet, Caramulhão e Belzebu para chefes. Eu ficarei com Diretor Técnico.
Se possível quero que os inscreva nos cursos de Formação do Escotismo e
claro, iremos fazer o registro e pagar todas as taxas. Não queremos nada de
graça! A coisa estava pegando fogo, ou melhor, já queimava há muito tempo.
Não tinha saída a não ser dizer sim. Faria minha parte que os membros da
direção nacional fizessem a deles. Eles bem que mereciam uma vista desta
turma de Belzebus do inferno. Que se danassem!
Durante três meses fui lá ao Cemitério Flores do Mal. Fiz o que pude.
Os três capetas foram bem treinados. Claro que davam risadas quando falava
para eles que na promessa eles tinham de prometer a Deus e a pátria. Eles
diziam sim com os dedos cruzados. Nunca vi tanto defunto na fila no dia da
inscrição. Cada um fedia mais que o outro e davam risadas enormes de
satisfação. E depois dizem que o Escoteiro é limpo de corpo e alma. Será que
eles vão cumprir este artigo? Pensei comigo eles chegando a uma atividade
distrital regional ou nacional. Será que iriam despertar surpresas nos demais
participantes? Consegui a custos com o Comissário Distrital Malevides uma
autorização provisória. Ele riu de mim quando falei o que seria, mas ao receber a
visita de Mefistófeles ele nem pestanejou. Sugeri a Mefistófeles que levasse o
registro pessoalmente em uma reunião da direção regional. Ninguém ia dizer
não. Soube depois que ele levou dois diamantes enormes para eles e logo
recebeu de uma só vez a Insígnia de Madeira, os quatro tacos para DCIM e o
Tapir de Prata. Nada como um bom capeta endinheirado para entrar de cara na
turma. (brincadeirinha – risos).
Uma noite bebericava meu chopinho e me deliciava com três
empadinhas de camarão com azeitonas pretas quando brotou do nada o meu
amigo Lascanio dos Anjos. – Cacilda, o homem, ou melhor, o capeta não me
deixava em paz. - Chefe, ele disse – Mefistófeles agradece sua colaboração.
Disse que o Senhor pode contar com ele nesta vida e algum dia morrer será bem
recebido nas “prefundas dos infernos”. Não precisa ir mais lá ao Cemitério
Flores do Mal. Ele manda avisar ao Senhor quando todos forem fazer a
promessa. Me garantiu que será uma festa do mal para ninguém botar defeito.
Em cada ponto do universo onde houver um capeta ele será convidado. Ele me
disse que estarão presentes vários políticos que se aliaram com ele aqui na
terra. Senadores, deputados, ministros e até disse que teríamos uma surpresa.
Um ex-presidente também viria. Mandou montar varias arquibancadas vermelhas
com mais de cinco mil lugares, com grandes fogueiras acesas e queimando sem
parar. Todos os grandes cantores que morreram e que estão lá no inferno irão
participar. Será o maior show musical já realizado por Belzebu, o rei dos
capetas.
E ele continuou - Virão vários dirigentes da região e da nacional. Já
foram notificados. Quem não for se verá com ele no futuro. Será uma grande
festa na inauguração do Grupo Escoteiro Satã de Satanás. Ele mesmo o Belzebu
o rei dos capetas e sua corja estarão presentes. Ele vai presentear a cada
dirigente presente com a Ordem dos Capetas do Mal. Cada um vai receber
também um tridente vermelho com um dispositivo para sair chamas quando
acionados. Poucos receberam até hoje. Eles são privilegiados. Ele acha que eles
vão gostar! Disseram para ele que tem muitos dirigentes que adoram uma
medalhazinha! Ele gostou muito do Senhor. Já mandou fazer uma medalha
especial. O senhor vai ser o único a receber. A Ordem da Gran Cruz Capetícia.
Disse que não precisa ter medo. Quando na vida se sentir no aperto é só gritar: -
Capeta dos Infernos! E logo alguém aparece para socorrê-lo. E melhor, se ao
desencarnar não o levarem para uma gostosa colônia dos altos espíritos do
Senhor (ele não falava Deus e nem Jesus Cristo) que pode ficar tranquilo.
Sempre haverá uma casinha para o Senhor e de graça nas “prefundas do
inferno”!
Sabe meus amigos. A partir daquele dia passei a rezar de manhã, à
tarde e a noite. Levantava de madrugada e rezava de novo. Olhe que conheço
muito de escotismo. Já vi tantas coisas que não me surpreenderam. Agora
escotismo em cemitérios e dirigidos pelo povo do mal não. Desta turma quero
distância. Que Deus me proteja! E por favor, esqueçam-se de me falar um dia
que fui para o tal Grande Acampamento! E se tudo isto foi um sonho, por favor,
nunca mais quero sonhar com tal história. De moradores do inferno eu quero
distância! Nem sei bem o que tem lá! Pai nosso, que estais no céu...
As ideias que arrastam os povos não passam, geralmente, de ilusórios
fantasmas; todavia, quando estes fantasmas contendem, devastam o mundo e
cavam abismos de ruínas e de desolação.
Gustave Le Bon
As pessoas tomam caminhos diferentes em busca da felicidade e da satisfação.
O fato de que o caminho de alguém não coincida com o seu não quer dizer que
vocês se perderam. (H. Jackson Browne)
A grande festa de Lagoa dos Açores.
O Escoteiro Chefe lusitano vai chegar!
O boato correu de boca em boca em Lagoa dos Açores. O Escoteiro
Chefe de Portugal vinha ao Brasil! Mas precisamente em nossa cidade. Um clima
de festa tomou conta. Ninguém sabia quem contou e como souberam. Dizem, ou
melhor, dona Flancácia quem sabia de tudo quem contou para dona Naninha
que contou para dona Bucycleide, que contou para dona Pamonia... Bem isto
não importa. Afinal devia ser uma figura importante. O Brasil não tem Escoteiro
Chefe e eles os portugueses tem. Maravilha. Acho que foi Tumenodes da venda
Dom Cabral quem disse que ele era Duque. Descendente do Marques de Pombal.
Mas qual o nome dele? Que dia ia chegar? Doutor Macbeti o prefeito mandou
chamar o Delegado Pancrácio, Dona Flancácia, Doutor Jacumé o Juiz de Direito
e os Chefes dos Grupos escoteiros da cidade. Uma grande reunião foi feita.
Cada um ficou responsável por uma responsabilidade.
Lagoa dos Açores passava conforme o último senso de trinta e cinco
mil habitantes. Foi fundada em mil novecentos e cinco por Don Panchito Das
Torres Altas, um português que aqui chegou com uma mão na frente e outra
atrás, mas logo enricou. Seus patrícios vieram em peso. Lagoa dos Açores pela
sua pujança em produzir café de primeira qualidade, teve o privilegio de receber
a visita do Presidente da Republica o Doutor Marechal Hermes Rodrigues da
Fonseca. Ninguém nunca soube dizer o que ele foi fazer lá. Dizem que foi a
mando de Don Panchito. Será? Mas isto ninguém perguntou e nem se
interessou. Só sabiam que ele prometera a ferrovia até a cidade. Foi uma festa
quando a Estrada de Ferro Leopoldina Railway mandou o primeiro comboio com
a “Jamiloca” a primeira Maria Fumaça a aportar na Estação Linda Coimbra.
Soltaram foguetes, Bandas de Musica, danças, desfiles e uma “comidaria” que
durou mais de três dias. Agora sim, podia-se ir a capital em apenas vinte e duas
horas e dormindo! Havia vagões dormitórios, um luxo que poucas cidades
tinham.
Seu Samuel Ramalho Ramires Ramos, o mais antigo padeiro de Lagoa
dos Açores dava risadas o dia inteiro. – Um patrício! Graças a Deus! Se for um
Duque vou dar a ele uma corrente de ouro de São Fidelis. Chefe Micaleide Soraia
convidou os chefes de todos os grupos escoteiros para uma reunião. Lagoa dos
Açores se orgulhava dos seus seis grupos escoteiros. Todos irmãos. Eram dois
da UEB, dois da FET e dois da AEBP. Dois Pastores planejavam criar no Templo
Evangélico da Rua Mascarenhas um grupo de desbravadores. Quem viessem.
Seriam bem vindos. A cidade poderia ser chamada de cidade escoteira. Quase
todas as autoridades foram ou participaram por pouco ou muito tempo em
algum grupo escoteiro. Nada faltava para eles. Todas as contribuições eram
religiosamente dividas entre os seis. A verba da prefeitura era gorda. Nunca
faltou.
Os chefes reuniram-se no domingo no Theatro Municipal Don Panchito.
Pena que ha mais de dez anos nada se apresentou no Theatro, mas Totonho o
vigia o mantinha limpo e bem arrumado. Estavam presentes mais de oitenta
chefes. Cada grupo esbanjava seus voluntários que sofreram para ser aceitos.
Não era qualquer um que podia participar da equipe de chefes. Diziam, não
posso afirmar que muitos davam boas gorjetas para serem aceitos. Chefe
Ronsato falava pelos AEBP. Chefe Jarisol pelos FET e o Chefe Micaleide pelos
UEB. Uma discussão gostosa. O que fazer – como fazer – quando fazer e quem
vai fazer. Um esboço do programa foi levado ao Doutor Macbeti o prefeito. Ele
olhou, pegou um enorme carimbo, molhou com tinta, deu uma forte carimbada e
disse: - Aprovado! Moçoilas corriam as ruas de Lagoa dos Açores para em
grupo enfeitarem a cidade de bandeirolas – Qual a cor da Bandeira de Portugal?
Vermelho, verde, amarelo, azul, branco e preto disse o Professor Arquimomedes
o sábio da cidade.
Pitito Modinha era um escroque. Varias vezes foi preso por enganar os
outros. No fundo não era um mau sujeito. Afinal seus pais foram os maiores
fraudadores e vigaristas que o estado conheceu. Dizem que até hoje estão no
xilindró na Ilha de Alcatraz. Isto mesmo. Tentaram enganar o famoso General
Douglas Mac Arthur um americano e se danaram. Pitito Modinha nunca matou
ninguém. Enganar sim. Afinal para que trabalhar? Ele dizia. Ria quando era
preso e o delegado Caroço de Manga dava uma prensa nele. Pitito mude de vida.
Um dia alguém vai te dar um balaço bem nas “orêias” o tiro vai entrar em uma e
sair cheio de cera na outra para não dizer outra coisa. Pitito fingia que ia mudar,
mas ao entrar na cela sua velha conhecida dizia – Enquanto houver otário São
Judas não anda a pé. – O delegado ria e dizia - São Jorge Pitito, São Jorge! Putz!
Não interessa. E ficava cinco trinta dias preso. Uma vez ficou um ano atrás das
grades. Pitito Modinha leu a noticia quando cortava o cabelo na Barbearia do
Carioto Cariado quando pegou um jornal velho e leu – Lagoa dos Açores vai
entrar em festa por três dias. Vai chegar à cidade em julho de 1959 o Marquês de
Pombal, Conde de Caravelas, Infante Duque de Bragança, Príncipe Regente,
Grão-prior do Crato, Escoteiro Chefe Dom Manuel Pero Vaz de Caminha de
Portugal e do mundo o maior Escoteiro Chefe de todos os tempos!
Minino! Meu Deus! Deu certo! Desta vez vou enricar mesmo. Olhou no
espelho da barbearia, sorriu e disse: Pitito Modinha você é bom cara, muito
bom! - Tudo começou quando ele na biblioteca atrás do fazendeiro Bom Senso a
que queria surrupiar a carteira, sentou em uma cadeira num canto e viu na mesa
um livro escoteiro de Portugal. Viu a foto de um lusitano a quem chamavam
Escoteiro Chefe. Pitito não era bobo. Correu as páginas do inicio ao fim. Leu
tudo sobre os escoteiros da terrinha. Cacilda! Desta vai vou acender charuto
com nota de cem! Bolou um plano. Ficou dias pensando. Prá dar certo tenho de
fazer um uniforme, mas eles lá da terrinha usam outro. Melhor fazer igual o
deles. Calça marrom, sapato preto, camisa marrom clara e um chapéu. Não vai
ser mole. Mas tenho tempo. Procurou Praquitinha sua noiva. - Me empresta um
dinheiro? Vais receber em dobro. Praquitinha sabia que não ia receber nada de
volta mais ela gostava de Pitito. Não ia negar.
Enviou um telegrama para Seu Samuel Ramalho Ramires Ramos da
padaria. Daí as viúvas lavadeiras, era um pulo. Logo a cidade toda sabia. A
escoteirada ficaria alvoraçada e assim o plano começou. – Mais um telegrama e
Seu Samuel correu até a prefeitura da cidade. Seu prefeito o Doutor Makbeti
suava, gordo, barrigudo sonhava que agora Lagoa dos Açores seria conhecida
“nos estrangeiros” - O telegrama dizia - Chego no dia nove de julho próximo.
Irei só. Quero conhecer a cidade dos meus conterrâneos os escoteiros. Diga a
eles que vou levar uma grande foto do nosso Fundador. Lordi Badi Pawell. As
ruas enfeitadas. A praça um brinco. A escoteirada pintou tudo. Não havia um
toco de cigarro jogado. As filhas de Maria ensaiaram uma canção Escoteira. Zé
Calango dos Vicentinos fez uma poesia. Nos grupos escoteiros uma preparação
enorme. – Todos de luvas brancas. Treinaram evolução, a banda, a turma da
bandeira, Todos iriam com suas mochilas e montaram em cima de cinco
caminhões diversas pioneiras, pois sabiam que os português eram bambas no
assunto.
Cilene Maria era lobinha. Quieta. Quase não falava. Diziam que era uma
menina possuída. Só porque lia tudo que encontrava desde os dois anos. Na
escola com oito já tinha feito o ginásio. Nos lobinhos adorava. Sentia-se bem na
matilha azul. Poderia ser prima, mas achou melhor não. Evitava ler os livros
escoteiros para que os outros não se sentissem humilhados. Ela não queria isto.
Queria que eles a considerassem uma irmã, uma amiga que gostava de todos
eles. Quando iam acantonar ela ficava encantada com as árvores, com a grama,
com os lagos e riachos de águas frias e gostosas. Adorava ver por e o nascer
do sol. Conhecia uma por uma as constelações no céu. Naquele sábado a Akelá
Juely comentou sobre a honra que todos teriam em conhecer o Escoteiro Chefe
de Portugal. Contou para os lobos que ele lá em Portugal era querido, todos
faziam continência, era carregado quando visitava os grupos escoteiros, enfim
era um Escoteiro inigualável.
Cilene Maria ficou desconfiada. Sua mente rebuscava na memoria
todos os livros escoteiros que lera. Sabia que havia não só uma, mas três
associações escoteiras em Portugal. De qual ele representava? Sabia também
que ninguém tinha mais esta enormidade de nome como o dele. - Marquês de
Pombal, Conde de Caravelas, Infante Duque de Bragança, Príncipe Regente.
Grão-prior do Crato, Escoteiro Chefe Dom Manuel Pero Vaz de Caminha de
Portugal e do mundo. Impossível. Só reis tinham tanto nome. E ele misturava
tudo. Conde com Duque, com infante, com príncipe regente que só Dom Pedro II
foi quando seu pai voltou para Portugal. Não estava certo. Muita coisa errada.
Soube que ele o Escoteiro Chefe mandou varias fotos de Baden Powell que ele
chamava de Lordi Badi Pawell. Ele era analfabeto? Impossível! E a foto? Não
tinha nada do fundador. Era de um homem magrelo, novo, cabelo preto, e uma
das fotos sorrindo. Era banguelo. Faltava dois dentes na frente. Aquele não era e
nunca foi Lord Baden Powell.
Cilene Maria procurou a Akelá. Ela não acreditou. Procurou o Chefe
Micaleide Soraia. Ele também duvidou. Ninguém acreditava nela. Sabia que o
talzinho que se fazia passar por Escoteiro Chefe era um enganador. Procurou
então o Seu Samuel Ramalho Ramires Ramos da padaria. Ele a ouviu
calmamente pensando. Também tinha duvidado do primeiro telegrama. O que
ele vinha fazer aqui? Porque não na capital? Disse a Cilene Maria que ia
investigar. Passou um telegrama para seu irmão em Coimbra e pediu que
investigasse. Cinco dias mais tarde chegou à resposta. Chamou Cilene Maria e
mostrou o que seu irmão escreveu. Ela também havia investigado a foto do tal
Lordi Badi Pawell. Agora era armar um plano. O delegado entrou no meio. O dia
chegou!
O Trem serpenteava na beira do Rio Luar do Sertão. Em cada curva
o Seu Japinondas o maquinista apitava. Na beira da linha a molecada corria com
o trem. Uma fumaceira danada na chaminé anunciava a modernidade. Ele sabia
que uma alta autoridade estava viajando no seu trem. Seu bisavó Tutunael
sempre contou quando era maquinista que trouxe muitas “otoridades” para
Lagoa dos Açores. Agora ele podia contar para seus netos que também
carregou um. Pitito Modinha viajava de Primeira Classe. Com seu uniforme de
Escoteiro lusitano e seu chapéu que custou a encontrar para comprar todos o
tratavam como um rei. Quando levantava todos levantavam. Mandou fazer um
lindo lenço dourado. Amarelo, verde e um pouco de azul. Comprou um anel
grande de brilhantes para prender o lenço. Na mala alguns presentes que
conseguiu comprar nas mãos do Caixeiro Paraguaise.
Quando atravessaram à ponte do Rio Luar do Sertão ele viu pela
janela a cidade. Riu de leve. Depois riu mais. Agora gargalhava. Disse para si
baixinho – Pitito Modinha, você é brilhante. Será o maior golpe de todos os
tempos. Desta vez vou encher as burras de dinheiro. Praquitinha iria saber quem
ele era. Iria visitar a “horopa” com ela. Ela ia ver a Torri efailde. O Arco do
Truque. Contaram para ele maravilhas do tal Palácio das Vertentes. Iria mostrar
para ela o Bigue Bend. E depois nas Américas ela ia ver a Estatueta qui liberta
tamem. Eles iriam falar gringo, falar françoá, ingreis. Seriam recebidos por reis e
rainhas e quem sabe teriam um tituro de pobresa? Já pensou? - Lord Duque
Pitito Modinha? Misse Duquesa de Orleanas dona Praquitinha Castiana? E assim
ele sonhava. O trem apitando. A cidade chegando. Ele sorrindo de oreia a orêia.
Olhou pela janela, a estação apinhada de gente. Uma escoteirada sem
tamanho. Todo mundo ali para vê-lo. Pensou de novo consigo mesmo. Pau que
nasce torno não tem jeito morre torno. Ops! Nada disto. Pau que nasce torto e é
sabidão e morre ricasso. E ria, e ria. O trem parou. Silêncio. E a Banda que
pediu? Pegou sua mala, desceu. Ninguém bateu palma. Cacilda, o que houve?
Onde eu errei? Meu uniforme está impecável aprendi a fazer o nó de escoita e
barso pelo seio. Até sei fazer a saudação deles e eles estão me olhando deste
jeito? Uma mão bateu em seu ombro. – Olá Pitito Modinha. Quanto tempo eim?
Meu Deus! Era a voz do delegado Caroço de Manga! Uma longa salva de palmas.
O delegado agradeceu. Colocou as algemas em Pitito Modinha. Entraram de
novo no trem. Uma vaia sem tamanho.
Por muitos anos Pitito Modinha foi cantado em prosa em todos os
fogos de conselhos que a cidade conheceu. Cilene Maria recebeu todas as
honras possíveis. Não só do Grupo Escoteiro, mas de toda a cidade. Ela dizia
que não tinha feito mais que sua obrigação, era lobinha, mas não dizem que os
escoteiros estão Sempre Alerta? Alguém disse para ela - SAPs Cilene! Valeu!
SAPs? Que isto? Não é Sempre Alerta? Risos. Escoteiros, ah Escoteiros. Estão
aí por todo lado, observando, olhando, escolhendo, sorrindo, apertando mãos
dos amigos e irmãos, e claro sabendo sempre o que acontece em sua volta. Eles
são espertos, bons meninos e meninas, vivendo a lei e a promessa como um dia
juraram em suas promessas. Eles estão sempre alerta sempre e nunca SAPs
sempre. Mais risos. E eu? Eu nunca esqueço Pitito Modinha e o que disse o
meu amigo Dalai lama: - “Só existem dois dias no ano que nada pode ser feito.
Um se chama ontem e o outro se chama amanhã, portanto, hoje é o dia certo
para amar, acreditar, fazer e principalmente viver”!
Quem pergunta permanece ignorante durante somente cinco minutos, mas
quem não pergunta será um ignorante para sempre. (provérbio chinês)
“Diário de bordo: data estelar 1513.1. Nossa posição, órbita do
planeta M-113. A bordo da nave Enterprise, Sr. Spock,
temporariamente no comando. No planeta, ruínas de uma civilização
antiga e parece que alguns escoteiros estão lá fazendo
acampamento. Nossa missão, saber quem são estes tais de
escoteiros”.
O Escoteiro Juquinha e sua fantástica viagem a bordo da USS Enterprise.
Não tem jeito. Juquinha não deixava de sonhar. Vocês já devem
conhecê-lo. Alguém o descreveu como um Escoteiro sonhador, vivendo nas
nuvens e procurando viver o impossível. Ele um dia disse que foi no Vale dos
Sonhos, onde encontrou escoteiros como ele, vivendo em um lindo local cheio
de arco íris, pássaros, muitos peixes e animais vivendo pacificamente. Depois
fez uma incrível boa ação na noite de natal. Agora conta para toda a sua Patrulha
que pretende viajar na nave USS Enterprise do filme Jornada nas Estrelas. O
Monitor da Patrulha e o Chefe por diversas vezes disse a ele que era apenas um
filme, uma série com histórias de ficção cientifica. Juquinha sempre foi gordo,
não tanto, mas bem rechonchudo. Era um amigão na Patrulha. Pau para toda
obra. Infelizmente devido ao seu corpanzil não conseguia acompanhar a
patrulha. Nunca desistiu. Mesmo ficando para trás nas jornadas ele parava,
descansava e prosseguia.
Nos acampamentos tentaram para ele varias funções na Patrulha.
Aguadeiro, bombeiro, lenheiro e até intendente. Nada. Acertaram quando fizeram
dele o cozinheiro. Excelente. Todos adoravam e até a chefia que não fazia
refeições com as patrulhas de vez em quando lá estavam para comer o que
Juquinha tinha feito. Ficou famoso quando aprendeu a fazer fornos de barro e
surpreendeu a Patrulha com um belo bolo de chocolate. Agora só vivia falando
na tal viagem interestelar. Quando chegava a sede dava o Sempre Alerta a todos
e remendava – Vida longa e próspera! Assim cumprimentava o Senhor Spock ele
dizia.
Em um acampamento achou uma bela casca de uma arvore, cortou em
forma de quadro e escreveu – “Audaciosamente indo, onde nenhum homem
jamais esteve”. No fogo de Conselho, recitou para todos em forma de história
como era a nave e o nome dos seus personagens. Capitão Kirk, Senhor Spock,
Leonard Mc Koy (o médico) o Senhor Scott o engenheiro da nave, Sulu o
timoteiro, Uhura a oficial de comunicações e o navegador russo o senhor
Chekov. Contou rindo que uma vez a nave visitou o Brasil e em cima da Baia da
Guanabara se chocou com um Urubu e teve que fazer um pouso forçado. O Dr.
Mc Koy perguntou: - Que país é este? Todos deram belas risadas.
Em casa sua mãe estava preocupada com sua nova “trekkers mania”,
pois Juquinha ficava em seu quarto o dia inteiro lendo tudo que encontrava
sobre a série criada por Gene Roddenberry. Apesar de suas notas escolares
serem sempre as primeiras ela comentou com seu pai sobre sua nova mania. Ele
uma pessoa calma e sempre amigo de Juquinha, disse para ela não se
preocupar. Era uma mania que logo ia passar como todas as outras que ele um
dia também sonhou. Todo dinheiro que ganhava limpando carros, quintais e
fazendo aqui e ali trabalhos manuais, Juquinha procurava a loja de Souvenir e
comprava uma miniatura ou alguma lembrança da série. Refez todo seu quarto
como se fosse a Ponte de Comando da nave. Juquinha estava mesmo obcecado.
Claro o escotismo fazia parte da sua vida, mas ele queria mesmo era ficar pelo
menos algumas horas passeando na Enterprise.
Juquinha tinha os pés no chão. Ele mesmo não duvidava disto. Sabia
que era um desejo impossível, mas assim como um dia foi ao Vale dos Sonhos,
porque não podia também ir à nave? E assim o tempo foi passando. Juquinha
sonhando, indo a escola, nos escoteiros, acampando, excursionando, fazendo
aquilo que gostava. Mas sua mente estava voltada sempre para o Capitão Kirk.
Não foi ele quem disse que nunca deixe de aprender? Não era ele que tinha
centenas de livros em seu alojamento na nave e dizia que todos devem sempre
buscar novos conhecimentos? Em uma reunião de Patrulha ele disse para o
Monitor Roberto – “Roberto, uma das vantagens em ser um Monitor, um líder, é
ser capaz de pedir conselhos, claro sem necessariamente ter que segui-los”!
Risos. – E quem disse isto? Perguntou Roberto – O capitão James Kirk.
- Juquinha não parava de falar. – Ele para mim disse coisas muito
importantes para os escoteiros. Um dia na Ponte de Comando quando uma nave
amiga dos Romulanos se aproximou da Enterprise, ele falou para toda a
tripulação – “Precisamos saber explorar mais e aprender”. Incentivar a
criatividade e a inovação, ouvindo os conselhos das pessoas que tenham
opiniões diferentes. Precisamos ocasionalmente descer nas trincheiras com os
membros da nossa equipe para entender suas necessidades e conquistar sua
confiança e lealdade. Também, aprender a mudar radicalmente quando as
circunstâncias assim o exigir. Todos ficaram estupefatos com as palavras de
Juquinha.
Em casa sem ninguém saber pediu a Dona Laurinda costureira que
fizesse o uniforme Dourado dos tripulantes da nave, isto porque ele se achava
que devia frequentar a Ponte de Comando e só eles usavam o dourado. E assim
a vida de Juquinha ia vivendo. Todos aprenderam agora sua nova mania, sua
nova loucura e riam muito de tudo. Até um tricorde (comunicador) que dizia
servir para um teletransporte ele comprou. Um acampamento na Fazenda Ouro
Negro de um pai de um Escoteiro de outro grupo foi o melhor que aconteceu na
vida de Juquinha.
Aproveitaram as férias de julho e ficaram por lá cinco dias. Claro,
Juquinha viu ali a oportunidade de sua vida. Quem sabe ao caminhar pelo
bosque, ou pela pequena floresta de pinheiros ele se encontrasse com o Capitão
Kirk? Ou mesmo com o Senhor Spock? Enquanto isto não acontecia a Patrulha
de Juquinha fez miséria em seu campo. Duas barracas suspensas uma em cima
da outra. Um belo refeitório, com uma mesa firme e bancos reclináveis. Tudo
fora bem bolado. As tampas das fossas eram aberta automaticamente com os
pés, com cipós entrelaçados fizeram uma linda esteira que colocaram no
pórtico, por sinal com mais de três metros de altura e lá em cima uma torre de
observação.
No terceiro dia pela manhã, o Assistente entregou para os monitores
uma carta prego. Para ser aberta às 14 horas em ponto daquele dia. Um
alvoroço. O que seria? Sempre fora assim com as cartas prego. Todos ansiosos
esperando às duas da tarde. Juquinha fez um almoço dos Deuses. Um arroz
soltinho, uma bela polenta com carne moída e ainda mostrou a todos os doces
de leite que tinha feito. Almoçaram, limparam o vasilhame e esperaram a hora
certa de abrir a Carta Prego.
Duas em ponto. Aberta a carta dizia – Vocês tem 10 minutos para
separarem o seguinte material e partirem rumo a sudoeste, até atingir a base do
morro das Palmeiras. Devem levar – Um caldeirão, pratos, talheres, tudo para
fazerem uma sopa de macarrão. Devem chegar lá por volta de 16 horas e trinta
minutos. Montem uma cabana com capim colonião, pois lá tem muito e uma
equipe deve transmitir de vinte em vinte minutos por semáforas, tudo que está
vendo do alto da serra e o que vocês estão fazendo. As 18 hs, fazer uma sopa
que deve ficar pronta impreterivelmente às 19 horas. Todos devem jantar e
guardar o material mesmo sem lavar, pois a água utilizada será dos cantis.
Uma carta prego no ponto. Das boas como se diz. E no final da carta
dizia – Às 20 horas iniciaremos a competição de Morse, com todas as patrulhas
transmitindo ao mesmo tempo. Ganha a que conseguir decifrar o maior número
de mensagens e também passar o maior numero para as demais patrulhas. Às
21 horas e trinta minutos iniciar descida. “Às 23 horas devem estar de volta e
iremos fazer um Conselho de Tropa para analisar o grande jogo realizado”.
Beleza! Sabiam que iam tirar de letra. Lembrou-se de Juquinha. Ele não
conseguiria acompanhar na subida. Não tinha erro. Ele sabia o caminho e disse
que mesmo que ficasse para trás que eles não se preocupassem. Ele chegaria.
No horário determinado partiram. Nem bem andaram dois quilômetros
e Juquinha começou a ficar para trás. Tudo bem, ele sabia de cor e salteado o
caminho e era dia ainda com muito sol. Juquinha parou por duas vezes. Menos
de dez minutos cada uma. Quando faltava setecentos metros para atingir o
ponto determinado ele sentiu-se cansado. Melhor parar e quem sabe um cochilo
de dez minutos? Nem bem começou a cochilar levou o maior susto. Eis que
surge a sua frente nada mais nada menos que o Senhor Spock! Impossível! Não
podia ser ele. Mas o uniforme, suas orelhas pontudas e o olhar enigmático não
deixava a menor dúvida.
- Meu nome é Doutor Spock, não sei onde estou. Quem é você?
- Cacilda! O Doutor ou senhor Spock falando português?
- O senhor está no planeta terra, em um país chamado Brasil.
- Spock franziu a testa, fez um gesto no seu tricorde e falou – Capitão, aqui tem
um garoto com um uniforme esquisito e diz que estamos no planeta terra. – Pois
não capitão. Iremos agora. Spock pegou no seu braço e disse que ambos iriam
ser telestransportados para a nave Enterprise. Urra! Disse Juquinha. Em
segundos chegaram à sala de teletransporte. Foram direito para a Ponte de
Comando. Juquinha estava de boca aberta. Nossa mãe! E não é que consegui? –
Entraram e ele avistou a sala de comando. Era o máximo. Na parte central, num
nível mais alto ficava a cadeira de comando e lá estava ao capitão Kirk. Logo a
sua frente em diversos comandos, Chekov e Sulu. Hhura em um computador da
ultima geração estava como sempre responsável pelas comunicações. O Doutor
Spock (ele achava que era Senhor Spock) disse – Kirk encontrei este mocinho.
Juquinha olhava espantado para o Capitão Kirk. – Quem é você? Ele
perguntou. – Juquinha, Cozinheiro da Patrulha Raposa. Kirk olhou para Spock
que franziu a testa. – Escoteiros. Agora me lembro disse Spock. Em 1900 um
General Inglês chamado Robert Stephenson Smyth Baden Powell na Inglaterra.
Parece-me que era um movimento de jovens. Cresceu tanto que em menos de 30
anos passaram dos trinta milhões no mundo. – Kirk olhou para Juquinha. E vou
lhe dizer mais Kirk, os maiores astronautas americanos eram escolhidos a dedo
e era exigido ser Escoteiro além de possuir uma tal Eagle Scout. Acho que
devemos a eles o inicio da era espacial.
Kirk ia falar quando Chekov gritou alto. - Uma nave Kllngons se
aproxima. – Chekov, podemos nos esconder neste planeta? - Muito interessante
senhor. — responde Sulu, ocupado em manter a Enterprise nas proximidades da
parte mais densa dos anéis sem permitir que a nave seja capturada por uma das
naves Kllngons. Acho que não senhor me preocupa a gravidade do planeta
gigante e, também, sem perturbar demais o movimento natural dos blocos de
gelo o que poderia conduzir a um desastre.
Mantenha o rumo. Diminua para dobra quatro. Ligue o alerta para
toda a tripulação. – Kirk virou para Juquinha e disse – Bem vindo da bordo da
Enterprise, mas não podemos ficar com você aqui jovem escoteiro. Uma frota
dos Kllngons se aproximando e vamos ter que enfrentá-los. Juquinha tentou
argumentar, mas Chekov o pegou pelo braço e em minutos estavam na sala de
teletransporte. – Desculpe jovem, mas aqui vai virar um inferno daqui a pouco.
Estará melhor na terra.
Nem deu tempo para Juquinha falar nada. Em segundos lá estava ele
no mesmo ponto onde tinha tirado um cochilo. Juquinha estava boquiaberto.
Afinal ele conseguiu ir na nave USS Enterprise. E o melhor conheceu a nata da
tripulação. Pouco importava se acreditassem ou não. Levou o maior susto. No
chão estava um uniforme completo dos tripulantes da nave. Um tecido especial
que só seria fabricado 4.000 anos depois. E agora? Pegou sua mochila e
cantando seguiu morro acima.
Juquinha não comentou nada com a Patrulha. Ele era um bom
sinaleiro e assumiu o posto de sinais. Os demais ficaram cumprindo as
determinações da Carta Prego. Foi maravilhoso. Fez uma sopa que todos
repetiram e não sobrou nada. Não era bom em Morse. Ficou como estafeta.
Retornaram todos juntos. Para baixo todo santo ajuda. O acampamento foi o
máximo. Juquinha queria comentar sobre sua viagem na Enterprise. Preferiu
calar. No fogo de Conselho resolveu vestir o uniforme da nave. Encantado viu
que ele se acertava sozinho em todo seu corpo. Todos admiraram e quiseram
saber onde comprou. Dona Laurinda, a costureira fez, e riu.
Quase ao terminar o Fogo do Conselho pediu para ser o Contador de
Histórias da noite. Começou contando sua viagem na nave Enterprise. Contou
como ela era. Contou sobre a ponte de comando. Descreveu o Capitão Kirk e o
Doutor Spock. Falou de todos que lá e estavam. Explicou que mandaram ele de
volta por causa de naves Kingston que iriam enfrentar. Contou de maneira tal
que todos prestaram muito atenção. Quando terminou recebeu uma palma
cubana forte e gritante. Riu de alegria e quando já ia sentar, viu que em um
bolsos da sua camisa estava um tricorde bem pequeno. Ele deu um sinal longo e
uma voz cavernosa falou – Adeus meu caro Juquinha, um Escoteiro. Que fala é o
Capitão Kirk. Continue sempre um grande Escoteiro. Tenho certeza que um dia
poderá ser um de nós em uma nave espacial. Estamos chegando no Sistema
Estelar de Bernal. Um dos onze planetas, Bernal IV da classe M. Vamos descer e
ajudar uma população nativa e humanoide assim como vocês. Os Kingston
fugiram. Seja feliz Spock disse que achou você um jovem de ouro.
O tricorde se calou. A tropa estava calada e assustada. Ninguém
falou nada. O Chefe olhava para Juquinha e perguntou. O que é isto? Juquinha
riu e disse – apenas uma gravação do capitão Kirk. Nada mais que uma
gravação. E começou a dar belas gargalhadas fazendo com que toda a tropa o
acompanhasse. E ele rindo junto com seus amigos em sua barraca disse – “Não
importa aonde vá, lá você está e é bom ter um pretexto para apreciar a paisagem
de vez em quando”!
Bem vindos a bordo da Enterprise!
“Espaço, a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar
Enterprise em sua missão de cinco anos em busca de estranhos
novos mundos, novas vidas e novas civilizações. Audaciosamente
indo onde nenhum homem jamais esteve.”
Temos o destino que merecemos. O nosso destino está de acordo
com os nossos méritos.
Albert Einstein
O triste destino do Chefe Mario Kovak.
Era angustiante ter de decidir. Porque logo eu ser colocado assim
entre a cruz e a espada? Pedir ajuda? Procurar alguém? Não procurei ninguém.
Nem os amigos. Não adiantava. Para entender o que estava se passado só se
entrassem em minha vida. Ou melhor, duas vidas. Nunca pensei que um dia
tivesse de tomar tal decisão. Ainda me lembro de quando tudo começou. Não faz
muito tempo, quem sabe uns oito anos? Se não fosse o Chefe Mascarenhas
acho que o destino teria sido outro. Mas Deus é quem decide, se ele decidiu
assim é porque eu teria de passar por isto. Chefe Mascarenhas apareceu em
Águas Calientes não por acaso. Era responsável técnico dos Moinhos Landins.
Eu comprei um. Sempre funcionou muito bem. Mas um dia começou a tremer a
carcaça e parou. O Doutor Leopoldo o mandou a minha cidade para ver.
Eu estava com vinte e dois anos. Meus pais tinham falecido a mais
de cinco anos. Deixaram-me uma casa, um sitio, uma loja de material elétrico no
centro da cidade e alguma reserva financeira. Tinha cabeça para isto. Não me dei
mal. Chefe Mascarenhas ficou na minha casa. Eu mesmo insisti para que
ficasse. Gente boa, com seus cinquenta e poucos anos era bom de papo e muito
simpático. Era escoteiro. Falava maravilhas da organização. Quem o ouvisse
ficava deslumbrado e querendo ser um deles. Acampavam, faziam sua comida,
tinham técnicas mateiras de construção, exploravam grutas, picos impossíveis e
imagináveis para um menino conhecer. Faziam boas ações ajudando as pessoas
e tinham um código de honra sagrado para eles. Interessei-me. – Chefe
Mascarenhas! Será que poderíamos fazer um escotismo aqui em Águas
Calientes? - Perguntei. – Claro que sim. Alguém tem de dar os primeiros passos
e no que for possível eu lhe ajudo.
Falei com o Alberto nosso prefeito que deu todo o apoio. O delegado
Filote disse que conhecia e o Doutor Lanes Juiz de Direito ficou encantado. –
Dizia para todo mundo – Agora vocês vão ver como será a juventude de Águas
Calientes. Teremos homens de verdade. O assunto correu de boca em boca.
Todo mundo querendo saber. Disseram que as inscrições seriam feitas no
Grupo Escolar Santa Cecília. Um pandemônio. Mais de cinco mil crianças em um
só dia. Aquilo me aterrorizou. Chefe Mascarenhas tinha sido enfático – Comece
com poucos. Máximo de oito. Serão seus Monitores. Depois de três ou quatro
meses aceite mais até um máximo de quatro patrulhas de seis ou sete. Os
lobinhos se tiver alguém para liderar pode começar com oito ou dez. Dois meses
depois ate vinte e quatro. Arrume umas quatro pessoas para diretoria. Vou
arrumar para você uma autorização provisória. Neste interim veja um local para
as reuniões e um salão para a sede. Depois falamos mais.
Estava sempre em estado de euforia. Mesmo com a cidade
reclamando querendo ver os escoteiros, pais atrás de mim pedindo para seus
filhos, mães chorosas porque as meninas não seriam aceitas (ainda não havia a
coeducação). Adorava meus Monitores. Viviam nas horas vagas em minha loja.
Aos sábados na sede do Grupo Municipal Santo Expedito era uma festa.
Aprendíamos juntos tudo sobre escotismo. Acampávamos quase todos os fins
de semana. Chefe Mascarenhas me mandou uma boa biblioteca. Em dois meses
fui a capital fazer um curso. Estava em ponto de bala. A Patrulha de Monitores
escolheu como nome um pássaro que diziam ser uma ave pernalta, com
pescoço nu, preto, e, na parte inferior, o papo também nu e vermelho. Nada mais
nada menos que o Tuiuiú! Ficou para sempre a Patrulha Tuiuiú dos Monitores.
Dois meses depois os meninos fizeram a promessa. Quase chorei de
alegria. Os primeiros passos tinham sido dados. Convidei algumas autoridades,
mas o boato espalhou e mais de duas mil pessoas queriam assistir. Uma
balbúrdia! Naninha tinha vinte e oito anos. Professora do grupo escolar onde
estava a sede. Aceitou meu convite para ser a Chefe dos lobinhos. Uma festa.
Um custo para ficar com vinte e oito. Mas o grupo foi crescendo. Já tínhamos
duas alcateias e a segunda tropa a caminho. Chefe Mascarenhas vinha sempre a
nossa cidade. Um pai para nós. Passávamos de cento e vinte membros, mas a
cidade reclamando. Águas Calientes tinha menos de quarenta mil habitantes,
mas se tivéssemos chefes poderíamos ter sem sombra de duvida mais de cinco
grupos escoteiros.
No desfile de Sete de Setembro eu há vi pela primeira vez. Milena. A
mais linda moça que tinha visto. Linda, simpática, cabelos loiros, curtos uma
época que Dóris Day, Kim Novak e Grace Kelly enfeitavam as tela de cinema e as
moçoilas copiavam. Paixão a primeira vista. Ela teria de ser minha cara metade.
Não dizem por aí que almas gêmeas tem de ficar juntas? Cinco meses depois
fiquei noivo. A mãe de Milena me preveniu sobre ela – Muito possesiva Chefe
Mario Kovak. Sempre quis ser a dona de tudo. Assim tome cuidado para não se
arrepender depois. Mas o amor quando está incrustado em nosso coração não
tem nada que pode impedir uma grande paixão. Assim eu pensava. Casamos um
ano e meio depois. A escoteirada toda na igreja. Queria casar de uniforme, mas
ela foi contra – Nem pensar Mario Montes nem pensar! Já mandei vir da capital
um legitimo terno inglês da melhor casimira!
Assim começou tudo. Ela aos poucos me foi dominando. Tudo ela
queria decidir. Meu amor por ela era grande demais. Aceitava tudo. Tentei o
máximo para ela participar comigo do escotismo. Foi irredutível. Mostrei que
juntos iriamos viajar, excursionar, acampar, escalar lindas montanhas azuis e os
picos mais distantes e ela ria. - Barata eu tenho em casa e não gosto de
pernilongos. Estive várias vezes em Congressos Nacionais e regionais. (hoje é
Assembleia) Fiz tudo para ela ir comigo. Ia sim, mas me esperava no hotel.
Nunca entrava em um salão onde houvesse um escoteiro. Foi então que
começou meu inferno pessoal. Eu a amava mais que tudo, mas o escotismo era
meu segundo amor. Todos no grupo tentaram demovê-la. Mas nada adiantou.
Ela ria de todos e só dizia que o escotismo afasta as pessoas, afasta as famílias,
afastam os filhos. Ela não queria isto para sua família.
Eu ia para as reuniões escoteiras angustiado. Aquilo que fazia antes
de muitos acampamentos e atividades ao ar livre escasseavam. Já não era belo
como antes. Milena se interpunha a tudo. Tudo aconteceu muito rápido. Milena
começou a sentir dores no seio. Alguns exames e lá estavam dois tumores
enormes. Ela teria que operar. Chorou muito. Perder os seios para ela seria o fim
do mundo. Não teve jeito. Operou. Em casa só me olhava com os olhos cheios
d’água. Meu coração partia de dó. Mais que isto. Ver a pessoa que a gente ama
sofrer não é fácil. Minha vida continuava. Meu trabalho e o Grupo Escoteiro. Já
não era tão ativo como antes. Fiquei como Chefe do Grupo. Os meninos sentiam
minha falta, mas precisava olhar Milena.
O pior chegou. Ela começou a sentir fortes dores internamente.
Novamente fomos para a capital. O Chefe Mascarenhas colocou sua casa a
disposição. Ela não quis. Vamos para um hotel, podemos pagar! Mas ele é gente
boníssima eu disse. Nada feito. Os médicos não deram esperança. Mais dia
menos dia Milena iria partir. Eu nunca fui espiritualista. Uma época que em
nossa cidade pouco se falava sobre isto. Milena um dia me procurou – Mario
Montes quero que você me prometa. Enquanto estiver viva você não vai mais
para o grupo escoteiro. – Porque meu amor, por quê? Ela nada dizia. Seu
semblante mudava. Parecia estar possuída. – Você sabe Milena que eu sempre
disse que estavas em meu coração? Sem você não sou nada? Sei que está
sofrendo e eu então? Como viverei sem você? – Sozinho Mario Kovak. Sozinho.
Não quero que case outra vez. E não aceito você mais nos escoteiros. Peça
demissão!
Incrível! Que pedido era esse? Um absurdo! Mas o que eu deveria
fazer? Sair? Trair meus ideais? Satisfazê-la e depois de sua morte voltar? Minha
cabeça estourava de dor. Meus olhos ficavam vermelhos. Ao lado dela, a vendo
definhar meu coração partia. Como se um punhal estivesse ali, entrando,
rasgando parte por parte! E o escotismo? Oito anos e como eu o amava. Sair e
voltar? Trair minha consciência? Enganar a vida e a morte? Ou enganar a mim
mesmo? Um dia ela não andou mais. Só ficava acamada. Uma amiga ficou com
ela. Contratei uma jovem para ficar com a arrumação da casa. Mas ela agiu
sorrateiramente. Pagou a duas para me vigiar. Para ver se eu ia ao Grupo de
Escoteiros. Maldita vida pensava. Naquela sexta feira escura, sem lua, um
zumbido estranho de cigarras no ar Milena partiu. Não antes de me olhar e fazer
prometer que nunca mais seria Escoteiro!
Foi aí que entendi seu desejo. Ela me amava. Amava mais que tudo.
Não queria me dividir. Tinha ciúmes enormes do escotismo. Ela queria que eu
fosse só dela. Até depois da morte. Milena meu amor, peças tudo, mas eu nunca
irei esquecer você. Preciso do escotismo para respirar, para viver, sentir que
não posso ficar só, poder lembrar que você foi tudo para mim. Nada feito. Tive
que prometer. Que promessa meu Deus! Ela se foi. Não sorriu. Sua face ficou
branca. Seus olhos não fecharam. Como estivesse me vigiando. As exéquias
foram simples. Queria que fossem ao Campo Santo só os mais chegados. Não
deu. Muitos da cidade foram. Muitos. Um pisa, pisa, um corre, corre. Muito
barulho. Os escoteiros me ajudaram, mas o enterro de Milena foi triste e
bagunçado.
Duas semanas depois peguei minha mochila, coloquei na porta da
minha loja um aviso que ficaria fechado por cinco dias. Precisava pensar.
Raciocinar. Estava “baratinado”. Não sabia o que fazer. Tinha prometido a
Milena que ia sair. Fui acampar nos Montes Pirineus. Armei a barraca e fiz um
fogo. Mais nada. Não tinha fome. Ficava olhando para o céu, para as árvores,
para a alegria dos pássaros. Meus olhos vermelhos. De madrugada acordava e
me punha a chorar. Que tristeza. Quem diria Milena que nunca mais ia voltar, o
amor de minha vida determinava qual seria o meu destino. Pensava que ela
estava ali, me vendo, sentindo meu coração doído. Milena, Milena, fale alguma
coisa? Diga se é isto mesmo que você quer? Os dias passavam. Um dois três.
Sentia fraqueza. Quase não comia. Sempre sentado em volta de um fogo ou a
olhar a cascata das águas escaldantes que desciam do Pico do Corão.
Nunca Milena falou comigo. Nunca me deu um sinal. Era como
estivesse sacramentado seu pedido. Alegrias de uns tristezas de outros. Achei
que não ia aguentar voltar para Águas Calientes. Mas ao final do sexto dia ainda
não tinha tomado uma decisão. Resolvi voltar. Com dificuldade. Sentia uma
fraqueza enorme. Minha cabeça parecia que ia explodir. Custei a chegar à
rodovia. Desci na rodoviária da cidade dormindo. Acordaram-me. Minha casa
ficava a menos de quatro quarteirões. Eram dez horas da noite. Passei em frente
à igreja aonde casei. Estava aberta. Resolvi entrar. Ninguém ali. Sentei próximo a
uma imagem de Santa Terezinha. Entre os bancos vi uma bíblia, alguém tinha
esquecido. Olhei com curiosidade e vi uma página marcada. Li devagar,
calmamente, já respirava melhor.
“O amor é paciente, o amor é bondoso”. Não inveja, não se vangloria não se
orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não
guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a
verdade. Tudo sofre tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca perece...
Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o amor. O maior deles,
porém, é o amor. – trechos de 1 Coríntios 13:4-13;
Não procurem vingança, nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas
ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor. - “Levítico
19:18”.
Meus olhos encheram-se de lágrimas. Milena em espírito estava ao
meu lado. Parecia dizer que me compreendia. Pedia perdão pelo juramento que
fiz. Disse que não devia ter pedido este sacrifício. Disse que os meninos
precisavam de mim e eu devia ficar com eles. Sorrindo me pediu que uma vez ao
mês, rezasse para ela aqui onde se casaram. Sua forma foi sumindo, parecia
estar feliz. Um padre sentou ao meu lado. Perguntou o que houve. Contei tudo
como se fosse uma confissão. Ele sorriu de leve, me abençoou e falou baixinho:
- Disse-lhe Tomé: “Senhor, não sabemos para onde vais; como então podemos
saber o caminho?” – Respondeu Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”.
Já se passaram dez anos. Ainda me lembro de Milena. Agora só
tenho dela as lembrança felizes dos nossos doces momentos que passamos
juntos. Não tenho certeza, mas acho que ela guia meus sonhos. Muitas vezes a
noite. Nosso Grupo Escoteiro vai bem obrigado. Ainda continuo viúvo. Conheci
algumas moças, mas nada que me fez decidir voltar à vida de casado. Quer
saber? – tenho medo. Medo de que a nova mulher dos meus sonhos não vá fazer
parte da minha vida Escoteira. É meu escotismo! Só sabe quem está com você!
Uma chama que marca que fica para sempre em nossos corações!
Não poucas vezes esbarramos com o nosso destino pelos caminhos
que escolhemos para fugir dele.
Jean de La Fontaine
Muito além do por do sol.
Escotismo! É meu amigo, ele tem uma força que dobra o mais valente com
seu método, com sua filosofia, com sua promessa, com o sabor de aventura,
onde se pode ir onde jamais se sonhou. Quem não se encantou um dia ao cantar
o Rataplã? Quem não sorriu um dia ao ver o espetáculo do amanhecer em uma
barraca na orla de uma floresta? E porque não dizer de sentir a fumaça do fogão,
o cheiro de uma refeição inconfundível, os olhos vidrados na panela mágica, se
coloca um galho aqui, uma lenha ali, ver o aguadeiro levar a água que dará a
todos um manjar dos deuses? Escotismo marca. É como o ferro em brasa que
escreve em nossos corações um amor difícil de explicar. Um caminho de
alegrias e felicidade.
Escotismo! O que você tem meu amigo? Que força é essa que nos atrai?
Que nos hipnotiza e nos faz correr atrás de você, de peito aberto em busca de
aventuras? A cada dia se vai descobrindo um lindo e belo caminho a seguir e
mais e mais este escotismo vai fincando raízes que nunca nos abandonarão.
Rimos das coisas simples do dia a dia, como lavar uma panela lá no riacho, mas
tem cena mais linda? Quando você fez isto? Nunca eu sei. Nunca você cortou
um bambu e quando você olhou para ele o viu dizendo: - Serei seu banco, sua
cama, serei aqui para você sua casa seu lar. Simples não? Mas você amou tudo
aquilo.
Falar que você viu o nascer e o por do sol não vale. Já foi falado. Falar que
você pode ver as estrelas no céu também não vale. Já foi visto. Mas dizem que a
primeira vez é que a gente nunca esquece isto vale. E todos nós sempre tivemos
nossa primeira vez. Dormir em uma barraca, junto com amigos que brincam que
contam piadas e acordar de madrugada sem o cobertor, pois lá não tem a
mamãe para olhar você. Acordar e ver o sol entrando na barraca. Sair, esfregar
os olhos e todos a correr para tantas aventuras que virão. Mas preste atenção
em coisas simples, que um dia vai fazer você recordar e pensar que agora elas
se tornarão tão importantes em sua vida que sua mente. Quando se lembrar
quem sabe, terás um pouco de nostalgia, de saudade, que às vezes machuca e
então você quer voltar no tempo e ir lá onde esteve.
Um jogo, um abraço, um Monitor alegre, amigos do peito na Patrulha que
lhe dão orgulho e quando juntos dão o grito tem uma coisa que fica mexendo
com você. Você não sabe se ri se chora se abraça todo mundo, mas não para
por aí. E quando senta a moda índia em volta de uma fogueira, já noite alta, e as
chamas insistem em subir aos céus, iluminando as árvores, aquela coruja que
olha a todos com surpresa, o rosto de seus amigos, os olhos que brilham como
se ali estivesse à fogueira dos sonhos e então você pensa - Que lindo isto! Mas
não param suas surpresas, todos cantam canções lindas, brincam ao redor do
fogo e aos poucos você descobre que é a pessoa mais feliz do mundo!
E quando chega a hora de apagar a fogueira, de voltar a sua barraca, de dar
um belo sorriso quando for dormir, eis que todos dão as mãos, entrelaçadas,
ainda ao redor do calor do fogo, dizendo que não irão se separar nunca, que não
é mais que um até logo, um adeus que não existe, pois é apenas um até breve e
você quase chora. E todos apertam mais e mais as mãos e dizem que um dia de
novo irão se encontrar aqui ou em outro fogo. Você quando ouve e canta que o
senhor protege e abençoa a todos, você não sabe mesmo se vai chorar. Chorar?
E quem não chora? Alí não tem valentes assim. Não dá para segurar. E seus
olhos ficam marejados. Lagrimas irão cair. Deixe cair. É bom. Ajuda a amar mais
e mais este movimento incrível!
Alem do por do sol, além do arco íris existem sempre alguns escoteiros ou
escoteiras que lá estão acampando. Estão a viver um mundo incrível. Uma
aventura sem igual. Irão lembrar que o amor entre eles nada e ninguém vai
separar. Vamos deixar o vento soprar, que venha o vendaval, que venha a brisa
fria do leste. Que o orvalho caia e molhe a fronte de todos, pois isto é nossa
marca que veio para ficar. Deixe que tudo aconteça normalmente. Olhe para o
regato, veja uma folha que caiu na correnteza e vai aos poucos sendo levada
para mar. Deixe o escotismo entrar em você. Aos poucos. Deixe seus olhos
passear nas campinas verdejante, nos peixes saltitantes no rio formoso. Deixe
que vejam as flores silvestres que desabrocham, abra os olhos e os ouvidos e
veja o beija flor com seu bailado de mestre, a dançar em volta dos papagaios,
dos bem-te-vis, dos pardais coloridos. São tantas coisas belas que você vai
poder viver e guardar para sempre no seu coração.
Além do por do sol, além do arco íris, existe um sonho. Real. Simplesmente
fantástico. Escoteiros e escoteiras lá estão vivendo uma vida de aventuras. Isto
é extraordinário. A montanha azul que lá está, é a casa deles. Vá você também
viver o que eles vivem. Vamos! Eles vão receber todos de braços abertos com
amor no coração. Pois sabem que alem do por do sol, além do arco íris é ali que
eles encontraram a verdadeira felicidade!
Vamos, coloque sua mochila, desfralde sua bandeira e diga alerta para os
que ficaram e grite alto: Avante! Sempre Juntos! Em frente marche! Cante uma
bela canção e parta com eles em busca dos seus sonhos. Rataplã do arrebol,
escoteiros vede a luz! Rataplã olhai o sol, de um Brasil que nos conduz!
As aventuras do Escoteiro Juquinha e o malvado Topyath, o Gorila Imortal.
Juquinha esta de volta. Depois de suas estripulias no Vale dos Sonhos
e quando resolveu fazer uma festa de natal para uma família pobre, ele volta
agora a toda. O mesmo Juquinha. Ainda meio gordo. Ainda sonhador. Mas
aquele Escoteiro que não desiste nunca. A patrulha já não levava tão a sério
seus sonhos impossíveis. Respeitar sim. Juquinha todos sabiam que ele tinha
um coração de ouro. Sempre a dividir o que tinha com alguém. Lino agora era o
monitor da Patrulha. Romildo passou para os seniores. Todos conheciam suas
qualidades na cozinha. Diziam a boca pequena que era o maior cozinheiro
escoteiro de todos os tempos. O único que fazia belos fornos nos
acampamentos e claro, deliciosos bolos de chocolate, baunilha e tantas
gostosuras quem sabe melhor que em suas casas.
A Patrulha estava em reunião. O Chefe da Tropa deu vinte minutos
para que eles dessem continuidade nas etapas de progressão. Muitos estavam
atrasados. Um ensinava o outro e Lino o Monitor ensinava a todos. Juquinha
pediu a palavra. Sempre fora muito educado. Nunca gritou ou foi indelicado com
ninguém. – Monitor: - Eu fiquei sabendo que lá na Colina dos Pastores tem uma
gruta enorme. Sei de fontes fidedignas que nesta gruta está enterrado um
"Velho" baú cheio tesouros incríveis. Têm taças, colares, cruzes de ouro, tudo o
que se podem pensar, fora as pedras preciosas. Queria propor a Patrulha ir lá
acamparmos no próximo feriado. Tiramos uma tarde e vamos explorar a gruta e
quem sabe voltaremos ricos? – Todos deram boas gargalhadas. Neneco um
Escoteiro novato deu um tapinha em suas costas e disse – Só vou se você fizer
um gostoso bolo de chocolate! E todos caíram na risada.
O Chefe Carlos ficou sabendo da conversa de Juquinha. Ele estava de
olho nele. Juquinha na última vez que sumiu em busca do tal Vale dos Sonhos,
ou melhor, Vale Encantado como ele disse deixou a tropa em polvorosa. Ficaram
uma tarde e uma noite a procurar por ele. Todos ficaram com medo que algum
acidente grave pudesse acontecer a ele. – Juquinha, estou sabendo do seu novo
sonho – Não Chefe, não é sonho. Zorrito me contou. E quem é Zorrito? – Meu
amigo Chefe. Ele me procura sempre quando estou dormindo. – Juquinha, não
vou estragar sua amizade com Zorrito, mas se você me aprontar mais uma sou
obrigado a levar você a Corte de Honra e depois vou falar com seus pais.
Garanto-lhe uma suspensão por meses. Juquinha assustou. – O que diria para
Zorrito? Que não iria à Gruta do Gorila?
Juquinha procurou Nilo na casa dele. Explicou de novo tudo. Ele
precisava de pelo menos um para ir com ele. Isto porque alguém precisava
distrair Topyath enquanto ele pegava algumas pedras preciosas. – E quem é
Topyath? Perguntou Nilo. O Gorila. Mas dizem que é fácil enganá-lo. Está lá a
mais de mil anos! – Juquinha, acho que você está procurando ser expulso da
tropa. O Chefe Carlos já me preveniu. Ele como todos nós adoramos você. Mas
um dia você vai colocar alguém em perigo e isto temos de evitar. E foi embora
dizendo que ele estava proibido de continuar com aquelas tolices.
Juquinha quando colocava alguma coisa na cabeça não desistia.
Continuou frequentando as reuniões, tomando belos tombos nos jogos pelo seu
corpanzil que tinha mais gordura que tudo. Mas ele enfrentava qualquer um.
Mesmo sabendo que iria perder ele não desistia. Ia bem na progressão. Todos
achavam que ele ia conseguir fácil o Lis de Ouro. No final da reunião o Chefe
Carlos disse que no feriado não iria ter reunião e a jornada da tropa não ia
acontecer. Aconteceu um imprevisto e ele pretendia fazer um curso Escoteiro na
capital. A tropa ficou triste, mas sabiam que era para uma boa causa. Juquinha
vibrou. Agora posso programar minha ida a Colina dos Pastores sem que
ninguém desconfiasse. Não queria ir sozinho, mas não podia confiar em
ninguém da Patrulha.
Juquinha fez algum muito feio. Mentiu para seus pais. Esqueceu que o
Escoteiro tem uma só palavra, e não contou que o acampamento do feriado fora
cancelado. Procedeu como se fosse com a tropa. A sede ficava a dois
quarteirões e seus pais não tinham o costume de levá-lo até lá. Saiu no sábado
cedo. Levou a ração B para dois dias. Pretendia voltar no domingo. Foi sozinho.
Puzt! Sozinho mesmo. Nunca tinha feito isto. Ele tinha muito medo do escuro.
Pensou muito em não ir. Sabia que ia dar galho na volta. Mas a sede de aventura
foi maior e o Zorrito vivia azucrinando seu ouvido para ir. Ele nunca conversou
com Zorrito. Ele apareceu assim em um sonho como a empurrá-lo para uma
aventura tremendamente perigosa. Ele sabia que Zorrito era produto de sua
mente, mas então como podiam conversar?
Pegou a Rua que levava ao Curtume do Zezuel para evitar passar no
centro da cidade. Foi beirando o Ribeirão da Chapada até a estrada do Capitão.
Ele sabia que tinha de andar mais uns oito quilômetros até a subida da Colina
dos Pastores. Às duas da tarde ele começou a subida. Era gordo. Mole para
andar. Subia duzentos metros e parava. Às seis da tarde resolveu parar. Não
sabia onde estava. Levou só uma lona. Custou a achar uns gravetos e acendeu
um fogo. Fez uma sopinha só para ele. Rápido. Era mestre nisto. Começou a
ouvir os ruídos da noite. Seus olhos ficaram arregalados. Um medo terrível.
Claro que ele dizia para todos os escoteiros que não tinha medo. Seus sonhos
ele enfrentava com coragem. Mentira. Agora o medo estava à flor da pele. Para
onde olhava via uma figura. Achou que estava cercado de demônios de todos os
tipos.
Abriu o saco de dormir. Enfiou dentro dele e se enrolou todo.
Precisava dormir. Tinha de dormir. Sentiu que alguém puxava seus pés.
Começou a gritar, alto, gemia, pedia pelo amor de Deus! Chamou sua mãe, seu
Chefe. Não parava de gritar. Abriu os olhos e viu que era Zorrito. Maldito pensou.
Porque não apareceu antes? Vamos Juquinha. Agora é a hora. Vamos aproveitar
que o Topyath está dormindo. Juquinha tomou coragem e foi com Zorrito. Quem
de longe observasse veria Juquinha conversando sozinho. Logo ele avistou a
entrada da gruta. Pequena. Mal cabia ele passar deitado na entrada. Quando saiu
do outro lado era enorme. Enorme mesmo. Um grande lago no meio. Caia uma
pequena cascata do lado norte. Juquinha sorriu. Lindo este lugar. Poderia
dormir aqui todas as noites pensou.
Tudo acabou para Juquinha. Viu do outro lado do lago Topyath. Era
um Gorila enorme. Grande. Imenso! Estava em pé. Olhos vermelhos, cor azulada
que lhe dava um aspecto tétrico. O Gorila não se mexia. Estava imóvel olhando
para ele. Parecia uma estátua. Zorrito apareceu ao seu lado e disse que aquele
era o Topyath. Contou-me que ele tinha mais de 1.000 anos. Topyath parecia ter
um magnetismo em seu olhar. Juquinha começou a ficar tonto. Sem perceber
caminhou na direção do gorila na trilha do lado do lago. Ficou de frente para ele.
Juquinha desmaiou. Acordou sonolento em outra gruta. Quem sabe o
prolongamento da primeira. Estava em um cercado de pedras. Seria fácil pular e
fugir, mas ele Viu Topyath a menos de setenta metros. Viu também vários outros
gorilas. Menores. Mas brincavam em volta dele.
Juquinha não sabe quantos dias ficou ali. Sempre vigiado. Zorrito
tinha desaparecido. Maldito pensou Juquinha. Trouxe-me para esta enrascada e
desaparece. Juquinha não sabia o que fazer. Um dia viu que um barulho
parecendo um terremoto começou a acontecer na gruta. Viu que não havia
gorilas brincando. Viu que Topyath sumira. Era sua hora. Pulou as pedras do
seu cercado e procurou uma saída. Encontrou uma. Nem bem andou cem metros
e parou embasbacado. A sua frente tesouros imensos. Um pequeno salão que
brilhava com o ouro, diamantes, esmeraldas, turmalinas. Tinha de tudo.
Juquinha não se fez de rogado. Pegou uma enorme taça de ouro e colocou na
mochila. Pegou uma turmalina e uma esmeralda. Sentiu um enorme safanão em
suas costas. Meu Deus! Era Topyath!
Saiu correndo. Nem olhou para trás. Caiu em um riacho enorme com
grandes corredeiras. Ele sabia nadar. Boiou. O riacho o levou por vários
quilômetros dentro daquela montanha. Uma enorme cachoeira a sua frente. Não
tinha como evitar, caiu, caiu e acordou com o Lino seu Monitor gritando. Acorde
Juquinha acorde. Pare de berrar! Atrás de Lino estava sua Patrulha e o Chefe
Carlos. Olhavam para ele furiosos. – Os pais de Juquinha deram falta dele na
segunda. Ele não apareceu. Era dia de aula. Correram a casa do Chefe Carlos.
Ele sabia onde tinha ido parar o Juquinha. Chamou a Patrulha. Foram de carro
até a subida. Não foi difícil encontra-lo dormindo. Sabiam que ele não aguentava
andar muitos quilômetros. Juquinha olhou para o relógio. Meio dia. Dormira dois
dias e meio. Não falou nada. Maldito Zorrito.
Chegou em casa e ouviu o que não queria. Ele merecia. Chefe
Carlos só disse que sábado ele esperasse as providencias que seriam tomadas.
Jogou o bornal em um canto do quarto. Chorou por uma semana. Amava o
escotismo. Se o expulsassem ele preferia morrer. Se apenas dessem uma
suspensão tudo bem. Juquinha era religioso. Rezou muito. Foi na missa das seis
da tarde na terça, na quarta, na quinta e na sexta. O Chefe na quinta conversou
com seus pais. Não contaram para ele o teor da conversa. Pela manhã de
sábado foi fazer a limpeza na mochila e no bornal. Encontrou uma taça de ouro,
uma enorme turmalina e outra grande e uma esmeralda.
Juquinha foi suspenso por sessenta dias. Guardou nestes dois
meses o seu segredo. Zorrito nunca mais apareceu. Um ano depois conversou
com seu pai. Contou a história. Mostrou o tesouro que trouxe. Sei pai vendeu
tudo. Ficaram ricos. Deram uma boa parte ao grupo que terminou a bela sede
que construíram. Chefe Carlos ficou pensativo. Resolveu voltar lá com Juquinha.
Foi com sua Patrulha e mais três chefes. Vasculharam tudo e não encontraram a
tal gruta. Revisaram palmo por palmo. Nada. Não sabiam o que pensar. Voltaram
à tardinha. Como sempre ele era o último da fila. Parou para descansar. Olhou
para uma pedra enorme no alto das colinas. Lá estava. Zorrito e Topyath
acenando para ele e abaixo deles a entrada da gruta! Sorriu. Assustou-se com o
Chefe Carlos o chamando. Estava dormindo de novo!
À riqueza trás a felicidade?
Prefiro viver na pobreza com felicidade e amor, do que viver na riqueza cheios de interesses, invejas, e sem amor e felicidade.
Marques Gabriel
A compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter,
e quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem.
Arthur Schopenhauer.
As aventuras de Juliano – Um valente Escoteiro e a Jaguatirica Amarela do
Pântano do Demônio.
A noite havia chegado de mansinho. A fumaça naquela clareira se
misturava com o orvalho que soprava de leste para oeste. A pequena brisa da
tarde ainda trazia em nossas faces o frescor da primavera. Gil tinha feito uma
sopa de macarrão com batata nos “trinques”. Ao lado do fogão tripé, um bule
negro de alumínio fazia nosso café noturno borbulhar. Estávamos em cinco.
Nossa Patrulha os Tigres Brancos tinha sete patrulheiros. Ali estava eu, Nuno,
Gil, Denis, Tiago o Monitor. Maneco e Toninho não vieram. Estavam com
caxumba. Como reclamaram por não vir. As duas barracas de meia lona já
estavam armadas. Nossas tralhas preparadas para dormir. Estávamos na
estrada há dois dias. Um acampamento volante de quatro dias. O Chefe Gustavo
nos encarregou de visitar o sitio do Padre Totonho, que agora aposentado da
igreja vivia ali seus últimos dias. Ele mesmo nos convidou a acampar lá. Longe,
quase vinte e cinco quilômetros para chegar. Se achássemos um bom lugar,
devíamos fazer um relatório e um croqui. Fácil. A Patrulha tiraria de letra. Para
chegar lá Denis ficou encarregado do Percurso de Giwell.
Nuno logo tirou sua gaita cromática da mochila. Ele tocava
maravilhosamente. Dominava bem todas as musicas escoteiras e quando as
notas musicais da Canção da Despedida eram lançadas no ar, parávamos de
conversar e nossos pensamentos viajavam para o passado, onde vários fogos
de conselhos deixaram saudades. Desta vez tocou outra, A Canção do Clã. Ele
ouviu quando os pioneiros acamparam conosco no ano passado. Era outra
musica linda. Em uma montanha bem perto do céu, existe uma lagoa azul!
Quando ele tocava era como se nos estivemos escalando uma linda montanha
azul. Algum tempo depois, jogando conversa fora Gil me pediu que contasse de
novo a viagem com meu pai no Pântano do Demônio. – Mas já contei duas
vezes, falei! – Mais uma, insistiu. Acho que Nuno e Tiago ainda não ouviram. Era
uma história real. Aconteceu quando fiz onze anos. Ou seja, há três anos. Não
sei se me trazia boas lembranças, mas meus amigos não só da Patrulha como
da tropa sempre me pediam quando em conversa ao pé do fogo como agora ou
em Fogo de Conselho que contasse a história. Ninguém nunca reclamou. Desde
pequeno que tinha o dom de Contador de Histórias.
Estávamos sentados em um tronco seco, que já estava ali e onde
fizemos nosso fogão tripé para aquela noite. Era uma sexta e desde quinta
marchávamos na estrada para o nosso acampamento volante e sabíamos que no
dia seguinte no sábado iriamos chegar. Senti que numa Aroeira próxima, uma
coruja “sustava” a nos olhar com seus olhos negros reluzentes. Eu era
reconhecido como amigo dos animais e das plantas e tinha por todos os bichos,
pássaros e insetos um respeito enorme. Não só pelo nosso sexto artigo da lei,
mas porque sempre fui assim desde que nasci. Incapaz de fazer qualquer
maldade com eles. Diferente do meu pai. Eu gostava muito dele, mas ele adorava
caçar. Nunca me deu chance de dizer para ele que era errado. Um dia achei
umas palavras de Chico Xavier e como meu pai se dizia espiritualista entreguei
para ele o que estava escrito: - Nós seres humanos estamos na natureza pra
auxiliar o progresso dos animais, na mesma proporção que os anjos estão para
nos auxiliar. Portanto quem chuta ou maltrata um animal é alguém que não
aprendeu a amar.
Acho que não ajudou em nada. Meu pai tinha uma sala separada da casa
aonde guardava seus troféus de caça. Na parede ele tinha cabeças empalhadas
de Tamanduá Bandeira, Queixada, Jacarés, Ariranha, Cachorro do mato lobo
Cinzento, Veado-galheiro e outras dezenas. A única que admirava era uma linda
Arara Azul. Morria de pena, pois sempre gostei de ver as aves voando e os
animais soltos nas campinas ou florestas. Todos sabiam meu amor pelos
animais e pássaros. Quando acampávamos na Mata do Riacho Grande, havia um
Pintassilgo, que eu chamava de Doce de Coco, que sempre vinha ficar no meu
ombro. Eu podia correr cantar, armar barraca, fazer pioneirias e lá estava o Doce
de Coco no meu ombro. Todos ficavam abismados. Ele não ia ao ombro de
ninguém. Claro sempre levei na mochila um bom bocado de alpiste e ele
adorava. Não só ele como dois Tico-ticos amarelos que vinham comer em minha
mão.
Ajeitei-me melhor no tronco, estiquei as pernas, peguei minha caneca
esmaltada e coloquei um cafezinho. Logo Gil serviu alguns biscoitos em um
prato. Respirei fundo e comecei a contar minha história. Eu gostava dela. Não
sei por quê. Quem sabe foi uma que me marcou muito. – Voces todos conhecem
meu pai, comecei. Eu o amo muito, mas ele gosta de caçar. Sempre se achou um
grande caçador. Nunca me contou, mas soube que quando jovem fez um Safari
na África. Tem muitos troféus lá em minha casa e voces viram, mas não tem
troféus de animais africanos. Ele sabe do meu amor pelos bichos. Não me
condena. Sei que gosta muito de mim e quase não me conta suas histórias, suas
jornadas, suas aventuras de caçada nas selvas brasileiras. Uma vez me contou
que esteve no Alto Amazonas. Não conseguiram caçar nada. Ele, seus amigos
Zé Barrica e Zoroaldo o Barbeiro foram aprisionados pelos Kalapálos. Não
entrou em detalhes. Só contou que uma unidade de selva do exercito brasileiro
os soltaram.
Mas meu pai nunca se dava por satisfeito. Mesmo com a proibição de
caça pelo IBAMA ele dava suas escapulidas sem ninguém saber. Todos voces
sabem que minha mãe morreu quando nasci. Meu irmão Ricardo agora moço,
está estudando Engenharia Mecatrônica na capital e pouco nos visita. Ele
trabalha e se sustenta. Minha irmã Matilde casada mora na Espanha. Ele me
escreve muito e diz que é muito feliz. Já se ofereceu para pagar minha passagem
para conhecer meus sobrinhos lá em Salamanca. São cinco. Ela me disse que
perto de sua casa tem escoteiros e escoteiras. Que eu vou gostar de ir lá. Mas
continuando, um dia meu pai me chamou até ao seu habitat preferencial. Ou
seja, a sala de Troféus. Vi nele um semblante de alegria, seus olhos brilhavam
quando estava ali.
- Juliano, mês que vem eu o Zoroaldo e O Zé Barrica, iremos fazer uma
caçada no Pantanal do Mato Grosso. Zoroaldo vai levar seu filho Dondinho. Ele
já fez dezoito, mas pensei em convidar você. Nunca o chamei para isto. Sei que
não gosta. Mas meu filho será minha última caçada. Não farei mais nenhuma.
Você não precisa matar nenhum bicho. Prometo que vai gostar do lugar. É lindo.
Iremos comer pela manhã um Sarrabulho, um prato delicioso, vai beber o Tereré,
servida em cuia, e farei para você um caldo de piranha pantaneiro que você
nunca mais vai esquecer. Dê-me este prazer meu filho. Adoraria sua companhia.
Iremos de avião até Corumbá e você vai poder conhecer a cidade, fica a margem
esquerda do Rio Paraguai. Faz fronteira entre o Paraguai e a Bolívia. Dizem que é
considerada a Capital do Pantanal. Iremos ficar lá um dia e de Chalana iremos
subir o Rio Paraguai até a Serra de Albuquerque. É lá que iremos encontrar a
Jaguatirica, um gato do mato, considerado um dos maiores felinos do brasil.
Fiquei pensando naquele convite. Dizer o que? Um pedido do meu
pai? Nunca ele me pediu nada. Sei que estava "Velho", mas ainda tinha forças
para trabalhar na sua oficina de carpintaria. Nunca pensei em vê-lo atirando em
um animal qualquer. Seria um visão que não gostaria de guardar. Mas negar?
Afinal seria uma viagem maravilhosa. Eu Escoteiro de Primeira Classe teria
oportunidade de aprender muitas coisas. Disse sim ao meu pai. Estávamos em
junho e no dia cinco de julho iriamos partir. Voces lembram quando dei adeus
para cada um. Não fui ao acampamento da tropa na cidade de Viçosa. Queria ter
ido. Dizem que os escoteiros de lá eram amigos e estavam prontos a nos
receber com carinho. Mas o convite do meu pai não podia ser negado. Nunca
tinha viajado de avião. Foi fantástico. Fiquei na janelinha. Que coisa maravilhosa
meu Deus! Chegamos pela manhã em Corumbá. Ficamos em uma pensão que
meu pai já conhecia as margens do Rio Paraguai.
À tardinha meu pai e seus amigos compraram tudo que precisavam.
Iriamos ficar cinco dias na Serra do Albuquerque. Acamparíamos as margens do
Pântano do Demônio. Ele não sabia por que este nome. Era uma linda lagoa com
águas azuis. A viagem na Chalana do Capitão Traíra (que nome eim?) foi de tirar
o folego. À tardinha desembarcamos próximo a Serra de Albuquerque.
Disseram-nos que com uma hora chegaríamos até ao Pântano do Demônio. Para
mim tudo bem. Estava acostumado. Quem reclamou muito foi o Dondinho, filho
do Zé Barrica. Não estava acostumado. Armamos as barracas e eu fiz um fogo e
claro um fogão tropeiro meu conhecido de longa data. Achei uns troncos finos e
entrelaçados deram bons bancos para nós quatro sentarmos. Fui dormir tarde.
Eu não sabia das qualidades do meu pai em conhecer a natureza, ao belo por do
sol, e principalmente da esfera celeste. Ele me explicou as direções e
movimentos dos corpos celestes e outros pontos do céu. Falou dos princípios
círculos máximos da abóboda celeste. O equador, a eclíptica e o horizonte. Era
incrível como ele conhecia os círculos máximos, onde surgem os equinócios e
os pontos cardeais. Passei a admirá-lo mais e mais. Era outro pai.
Levantamos cedo. Meu pai me disse que ficasse no campo. Ele o os
outros iam atrás da Jaguatirica. Na beira da lagoa acharam suas pegadas. Ele
disse que era questão de horas. Não foi preciso muito. Quando saiam por uma
picada ela apareceu. Imponente. Enorme. Toda rajada de amarelo. Não era uma,
mas duas. Um casal. Vi que a fêmea estava prenha e o perigo era grande. Meu
pai estava com sua Winchester 44 sem balas e os outros também. Nunca
esperam que a Jaguatirica apareça assim de repente. Ainda mais com uma
companheira. Meu pai assustado gritou para mim – Corra Juliano, corra muito!
Vai ser uma carnificina a quem ela pegar primeiro! Olhe, era um belo animal.
Olhos grandes, um felino que devia pesar uns sessenta quilos ou mais. Só o
pulo dela daria para jogar no chão cinco homens adultos. Não corri. Não era meu
feitio. Nunca tinha visto nada igual, mas caminhei em direção a elas calmamente.
Meu pai gritou. Zoroaldo, Zé Barrica e Dondinho sumiram no meio do mato.
Abri os braços e sorri para elas. Meu pai não estava entendendo nada.
A fêmea se aproximou de mim. Lambeu minhas mãos. E depois deitou aos meus
pés. O macho ainda desconfiado. Mas chegou mais perto e pude acariciar seu
pelo liso e isto me trouxe uma enorme felicidade. Ambas deitaram aos meus pés.
Sentei na grama. Fiquei ali acariciando e falando baixo. Meu pai não se
aproximou. Acho que naquela hora acreditou que eu tinha pacto com o demônio.
Só podia ser para fazer aquilo. Zé Barrica, Zoroaldo e Dondinho estavam
estupefatos. Fiquei ali bons minutos com as duas Jaguatiricas. Depois elas se
levantaram e foram embora calmamente. Não houve tiros. Meu pai desistiu.
Disse para mim que nunca mais iria ar um tiro em um animal. Depois do que ele
viu não tinha dúvidas. Falei para ele baixinho o que tinha lido há tempos sobre
matar os pobres dos animais – Pai, eu li que os animais selvagens nunca matam
por divertimento. O homem é a única criatura para quem a tortura e a morte dos
seus semelhantes são divertidas entre si.
Ficamos lá quatro dias. Sem dar nenhum tiro. Só conhecendo a beleza
da Serra do Albuquerque e do Pântano do Demônio. Nunca disse para ele, mas
varias vezes saia para um passeio na mata e encontrava as duas Jaguatiricas de
pelo amarelo. Elas corriam e eu corria atrás delas. Elas paravam e pulavam em
mim. Sem machucar é claro. Eu ria. Cheguei a fazer de montaria em uma delas
que me jogou ao chão gostosamente. Voltamos pela mesma Chalana do Capitão
Traíra. Foi um dos passeios mais maravilhosos que realizei. Dali em diante eu e
meu pai mantivemos uma amizade que nunca pensei em ter com ele.
Parei de contar a história. Gil, Nuno, Denis e Tiago me olhavam com
espanto e admiração. Sabia que um dia iriam pedir para eu contar novamente.
As lembranças seriam eternas. Nunca iria esquecer a grande aventura que
realizei com meu pai. Fomos dormir. Cedo levantamos e partimos. Muitos
sonhos na mente e no coração. Eu gosto do escotismo. Amo tudo que faço.
Adoro de coração acampar, viver ao ar livre. Sou mesmo amigo dos animais.
Queria vê-los todos eles soltos, os pássaros no céu cantando alto. Quem sabe
uma Jaguatirica para brincar comigo nos meus acampamentos da vida. Isto é
escotismo. Sempre disse aos meus amigos e a todos que encontro. Escotismo?
Sim, uma maneira de ser feliz!
As criaturas que habitam esta terra em que vivemos, sejam elas seres humanos ou animais, estão aqui para contribuir, cada uma com sua maneira peculiar, para
a beleza e a prosperidade do mundo. Dalai Lama
Como se fossem gardênias e jasmim florindo em todas as partes, uma brisa
gostosa vindo de todos os lugares, a frescura do local, as canções de pássaros
e insetos, ver as montanhas azuis ao fundo, eu tenho as imagens mais linda e
agradáveis que a natureza me deu. Vale do Eco, nunca mais te esquecerei.
A incrível aventura do Chefe Gerônimo no Vale do Eco.
Não conheci Gerônimo muito bem. Uma ou duas vezes para ser
mais preciso. Deixava a desejar como Chefe Escoteiro nas conversas com
amigos se ele tinha algum é claro, pois estava sempre com uma carranca de
assustar qualquer um. Na última vez que o vi acho que estava com uns vinte e
seis anos. Sabia que sua família lhe dava tudo e ele não dava nada em troca.
Nunca foi bom nos estudos. Mas não era mau sujeito. Não fazia mal a ninguém.
Ria mais que falava. Quando o vi pela primeira vez estava como Chefe de tropa
Escoteira. Dizem que se queres conhecer uma boa tropa, veja seu Chefe seus
Monitores e como eles faziam o sistema de patrulhas. Acho que o Chefe
Gerônimo era perfeito. Melhor ainda a escoteirada gostava muito dele.
Gerônimo nunca foi bom aluno. Passou raspando e quase não
chegou ao segundo grau. Entrou como Escoteiro já com treze anos. Bem
mandado não sabia mandar. Na Patrulha todos gostavam dele. Como se diz –
“Jerônimo é um bom companheiro”. Não gostou muito dos seniores. Lá
achavam que ele era parecido com um “Nerd”. Quando surgiu as guias piorou
tudo. Ele não se sentia bem com as piadas que faziam dele. Começou a faltar às
reuniões até um dia que não voltou mais. Nunca o procuraram em sua casa a
não ser Saulinho, um Escoteiro que foi seu amigo para sempre. O grupo passou
por uma fase difícil. A liderança do Diretor Técnico não era das melhores. Muitos
chefes voluntários que entravam ficavam pouco tempo. A tropa Escoteira ficou
sem Chefe. O Diretor Técnico não conseguiu ninguém. Na Patrulha da Raposa
alguém falou de Gerônimo. Os Monitores foram a casa dele. Fizeram o convite.
Gerônimo sorriu como se estivesse recebendo um presente.
Durante um ano Gerônimo foi um bom Chefe de tropa. Conversava
pouco, falava sempre com os Monitores. Para dar exemplo terminou o segundo
grau. Seus pais ainda insistiam para ele tentar uma faculdade mesmo com vinte
e seis anos. Depois de um ano os escoteiros começaram a pensar que o Chefe
Gerônimo não era o que pensavam. Nandi era o Monitor mais antigo. Mais
sensato. Mais comedido. Foi à casa do Chefe Gerônimo bater um papo e quem
sabe ver se ele poderia mudar no seu sistema de direção com a tropa. Gerônimo
só ouviu. Nada falou. Nadi comentou na Corte de Honra sua conversa com o
Chefe Gerônimo. Desde que foi a casa dele não voltou mais para a tropa. Os pais
de Gerônimo foram procurar por ele no grupo. Havia sumido há três dias. A
tropa ajudou nas buscas. A polícia achou que ele fez as malas e foi embora. Não
deram muita “bola”.
Durante dois meses o procuraram em todos os lugares, a cidade era
pequena, menos de sessenta mil habitantes. Chefe Gerônimo sumiu mesmo.
Não deu mais notícia. Seus pais correram meio mundo procurando. Desistiram e
voltaram a sua rotina. O trabalho dizem, faz a gente esquecer os dissabores e as
tristezas da vida. Os escoteiros ficaram sem Chefe. Ninguém para assumir. Os
Monitores não deixaram a peteca cair. Eles mesmos programavam e até que
estavam gostando das reuniões que as patrulhas davam. Um dia acharam que
podiam acampar. Estavam proibidos de sair da sede. Tanto falaram que
convenceram o Diretor técnico. Prometeram que iam ao Vale do Eco.
Acamparam lá muitas vezes. Era um ótimo local. Boa aguada, riacho raso, sem
cachoeiras, mata pequena, muito capim gordura e bambus à vontade.
Claro, havia um local perigoso. Os penhascos de Santa Maria. Mas
era o melhor local para se divertir. Lá em cima avistavam todo o Vale do Eco. A
garganta era profunda. Se alguém caísse era morte certa. Mas o eco era
fantástico. Ribombavam em paredes lisas de pedras e um grito ficava minutos a
minutos respondendo até que baixinho sumia. Uma festa. Fizeram mil
promessas. O Diretor Técnico consultou alguns pais. Eram a favor. Eles
confiavam anos filhos. Os preparativos foram grandes. Eram três patrulhas. A
Patrulha Onça Pintada ficou de conseguir transporte da Prefeitura. O Doutor
Leopoldo o prefeito fora Escoteiro. Nunca deixou de colaborar. A Patrulha
Jaguatirica foi até o Super Mercado do seu Nonato. Seriam quatro dias. Levaram
uma lista. O que ele desse estava bom demais. A Patrulha da Coruja foi até o
empório do Senhor Leonel. Precisavam de mais alguns materiais de sapa e
lonas para toldos.
Durante duas semanas prepararam tudo. Na quinta feriado, às seis
da manhã estavam todos na sede. O caminhão da prefeitura já estava lá. Alguns
pais foram se despedir. O Diretor Técnico não apareceu. Não havia nenhum
adulto do grupo. Nandi o Monitor da Jaguatirica o mais velho dirigia tudo.
Cantando e dando adeus partiram na maior alegria. Às onze da manhã chegaram
próximo ao Vale do Eco. Iam acampar ali. Conheciam o terreno de cor e
salteado. Fizeram um programa simples. Uma Patrulha ia tentar encontrar um
lobo guará e chegar pelo menos a cinco metros dele tirando uma foto. Não era
fácil. Eram uma Alcatéia arisca que morava no estreito do nevoeiro no vale do
eco.
Outra Patrulha programou fazer uma ponte pênsil, usando bambus e
cipós. Levariam dois dias no mínimo. A terceira Patrulha programou construir
um Ninho de Águia onde coubessem todos participantes. Mais dois dias.
Prepararam três jogos noturnos, e uma noite só para desafios do Quebra Coco e
a ultima o Fogo de Conselho. Tinham também vários jogos para o dia não ficar
monótono. Muitos escoteiros iriam testar na cozinha para a especialidade de
cozinheiro, outros queriam de primeiros socorros e uma meia dúzia de
acampador. O programa estava completo. Claro que sempre à tardinha todos
iriam até a os Penhascos de Santa Maria. Perto. Menos de trinta minutos de
subida. Mas a diversão era garantida. Cada um improvisava um grito. Outro em
sequencia e parecia que centenas de vozes iguais repetiam lá no fundo da
garganta.
Foi no segundo dia quando estavam descendo que avistaram uma
fumaça bem no meio do Vale do Eco. Próximo à curva do Vento. Estava
escurecendo, mas sabiam que no dia seguinte os Monitores iriam até lá para
saber quem estava acampando ali. A noite foi uma delicia. O jogo da caça a
coruja deixou todos vibrando e a Patrulha da Onça Pintada campeã cantava a
mais não poder. Sempre lá pelas dez da noite, acendiam um fogo e ficavam até
onze ou meia noite conversando entre si. Uma cafezinho ou um chocolate
quente era mantido em um bule grande esquentado na brasa. Não faltava o Nonô
da Patrulha Coruja com sua flauta mágica.
Nandi tinha combinado com os Monitores que logo após a inspeção,
passariam ao cargo au submonitor e eles iriam ver quem estava acampado ali.
Sabiam que não eram outros escoteiros. Iriam camuflados. Não sabiam o que
iam encontrar. Tinham experiência em camuflagem. Chegaram à garganta e
foram bem devagar no riacho que estava bem seco. As chuvas do verão ainda
não tinham chegado. Menos de meia hora avistaram uma cabana. Simples. Feita
de sapé com madeira cortada nas imediações. Uma rede de cipó embalava um
homem. Estaria morto? Parecia. Não se mexia. Melhor chegar para ver. Um
susto! Impossível! Era o Chefe Gerônimo. Abatido, sem forças e barbudo.
Parecia que não se alimentava há dias. Tentaram reanima-lo. Difícil. A fraqueza
era muita. Nonato voltou ao acampamento para buscar mais escoteiros. Fizeram
uma maca.
Antes do meio dia chegaram. Algum cozinheiro já tinha preparado um
caldo de feijão bem forte. Tiveram que colocar em sua boca. Deram um banho
nele com uma toalha velha. Ficou na Barraca da Coruja. Eles tinham duas.
Apertando uma só caberia os sete escoteiros. O programa da tropa mudou.
Sempre uma Patrulha para ficar com o Chefe Gerônimo. Impossível buscar
socorro na cidade. Ficava a mais de cem quilômetros. Melhor é tratar dele no
acampamento e esperar o dia do retorno. No terceiro dia Chefe Gerônimo
levantou. Olhou para todos. Viram que seus olhos encheram de lágrimas. Quis
falar, mas não conseguiu. No quarto dia ele já andava bem, mas pouco falava.
Pediu para participar do Fogo do Conselho. La pela tantas fez um sinal. Pediu
para falar.
Não sei o que me deu. Uma névoa tomou conta da minha mente.
Peguei minha mochila, coloquei alguns víveres e em uma carona em uma
caminhonete cheguei próximo daqui. Fui subindo córrego acima. Parei na curva
do Pássaro Preto encontrei um descampado. Vocês me encontraram lá. Cinco
dias depois meus víveres acabaram. Não sei como vivi esses dois meses que ali
fiquei. Não me lembro de nada. Sabia que as noites alguém me alimentava.
Quem nunca soube. Um dia resolvi voltar para casa. Estava com saudades dos
meus pais. Não consegui. As pernas não obedeciam mais. Fiz a rede de cipós e
ali passava as noites e os dias. Acordei aqui com vocês. Não sei o que houve o
que fiz e quem me ajudou.
A tropa ficou calada. No ultimo dia voltaram à cidade. Os pais do
Chefe Gerônimo fizeram uma festa para o retorno dele. Cinco meses depois ele
voltou ao Grupo Escoteiro. Outro Chefe Gerônimo. Mais ativo, mais falante, mais
inteligente. Retornou a tropa. Aceito por todos. Assumiu cinco anos depois
como Diretor Técnico. O Grupo mudou muito. Vários chefes novos. Uma
diretoria atuante. Chefe Gerônimo se formou em Letras. Professor na Escola
Técnica logo foi eleito vereador. Nunca saiu do Grupo Escoteiro. Dizem que
casou não sei. Mas sei que a tropa Escoteira até hoje, com os jovens daquela
época já adultos sempre contam uns para os outros a grande aventura que
tiveram no Vale do Eco. São coisas assim que marcam os escoteiros. Cada um
sempre tem uma história para contar e a do Chefe Gerônimo será lembrada para
todo o sempre!
"Que um dia possas ter a percepção necessária
para saberes onde estiveste que um dia possa ter a visão
necessária para saberes para onde vais e o
discernimento necessário para saberes quando estas
a ir longe demais.”
“Escreve na areia aquilo que doaste, grava sobre a rocha o que recebes.”.
Dentro de cada um existe um super-herói implorando para fazer alguma diferença no mundo. Espertos aqueles que se deixam dominar por esse super-
herói. Verônica Pereira.
Jovelino Troca Letras, o Escoteiro herói de Santa Genoveva.
Sempre quis contar a história de Jovelino Troca Letras. Não que fosse
uma história fantástica. Nada disto. Mas como exemplo de vida vale a pena
conhecer. Acho que foi o Chefe Malvino do mesmo grupo dele que me contou.
Fazia mais de quinze anos quando aconteceu o fato de ele ter se tornado um
Super Herói. Não vamos saltar a pedra de uma vez. Vamos escalar ponto por
ponto para que cada um conheça melhor quem foi o Escoteiro Jovelino Troca
Letras. Ele nasceu em Santa Genoveva lá pelos idos de 1950. Sua mãe
trabalhava no correio e seu pai dizem que estava internado em uma unidade do
Manicômio Judiciário de Terra das Vertentes. Diziam que nunca se recuperaria.
Na cidade a família de Jovelino era considerada como “malucos”. Até os quatro
anos ninguém viu nada de anormal em Jovelino. Tudo começou quando alguém
observou que ele só ria. Diziam ser um riso de idiota e pouco falava.
Ninguém ligou para isto, mas os colegas começaram a rir dele, fazer
“chacotas”, chamá-lo de “biruta” entre outras coisas. O pior é que Jovelino
quando articulava alguma palavra não saia o P, o R e outras letras. Passaram
então a chama-lo de gaguinho, fanhoso e outros termos que melhor não publicar
aqui. Jovelino nunca retrucou. Sempre com um sorriso nos lábios. Aos seis
anos descobriu os escoteiros. Lá foi ele. Ficou a tarde toda assistindo as
reuniões. Vibrava com os jogos e nesta hora em seu cantinho pulava e tentava
emitir sons que dificilmente saia. Por vários sábados lá estava ele. Os lobinhos e
os escoteiros davam belas risadas com sua maneira de agir. Muitos já o
conheciam do Grupo Escolar e lá nas reuniões nunca disseram os nomes com
que os outros o chamavam.
A Akelá Márcia um dia perguntou a ele se queria ser lobinho. Seus
olhos disseram tudo. Ele balançou a cabeça com a dizer que sim. Marcia ficou
intrigada. Será que era mudo? Martinha veio ao seu socorro. Chefe, este é o
Jovelino Troca letras, na escola todos dão boas risadas com ele. Ele é meio
mudo, quase não fala. Só emite alguns sons. Marcia era ocupada. Terapeuta
pouco tempo tinha para averiguar e conhecer a família de Jovelino. Brincou com
ele e falou devagar – Jovelino! Peça a sua mãe para vir aqui. Certo? – Se ele
entendeu ninguém soube, mas a mãe de Jovelino só cinco meses depois
apareceu no grupo. Marcia sabia que não podia admiti-lo sem a presença dos
pais. Neste interim Jovelino continuava lá, no seu cantinho, vibrando e gruindo,
pois assim eram os sons que emitia.
Jovelino até que tinha uma aparência razoável. Cabelos louros crespos
e ondulados. Acho que nunca viu um pente em sua vida. Suas roupas eram
humildes, mas limpas. Calçava uma sandália de dedo e parece que escovava
sempre os dentes, pois estavam brancos e brilhantes. Magro, não era alto pela
sua idade. A mãe de Jovelino explicou como ele era. Tentaram fazer com ele
varias sessões de Terapia. Não deram resultados. Se era genético não sabiam.
Ele fez alguns exames pelo INSS. Infelizmente lá eles não se interessaram pelo
seu caso. Uma tarde a mãe dele apareceu. Conversaram muito. Marcia explicou
que não tinham experiência no assunto, mas que podiam tentar. Jovelino Troca
Letras foi aceito na Alcatéia e colocado na matilha azul.
Mesmo conversando com todos os primos os resultados foram
desastrosos. Os lobinhos e as lobinhas sempre rindo dele. Difícil mudar isto.
Oito meses depois o próprio Jovelino ia às reuniões, mas recusava-se a se
formar. Dizia para a Akelá Márcia: - Ão adianta ontinuar. Ou sair. Olo muito. Mas
ele todos os sábados lá estava. Sempre no seu cantinho. Sempre pulando e
gruindo a sua moda. Nos oitos meses ele não fez a promessa. Os chefes da
Alcatéia se reunião, discutiam e chegavam à conclusão que era perigoso. Ele
nunca aprendeu as provas. Não sei. Se fosse eu ele teria feito a promessa dentro
dos três meses. Ninguém disse, mas Jovelino desistiu mais não porque riam
dele, faziam chacota e sim porque sonhava em vestir o uniforme e não deixaram.
Um sábado Jovelino Troca Letras não apareceu. Em principio
ninguém notou. As atividades na Alcatéia e na tropa sempre foram intensas e o
tempo absorvido com as brincadeiras, com as histórias e com o adestramento.
Só no terceiro sábado é que a lobinha Martinha deu falta dele. Perguntaram a
todos se ele tinha ido à escola. Ninguém o tinha visto. Marcia ficou preocupada.
Afinal ela sentia que não agira muito bem. Não procurou ler, pesquisar e se
informar melhor sobre como ajudá-lo. Resolveu ir a casa dele naquele sábado
mesmo. Com sua filha que era Escoteira lá foram as duas na Rua do Ouvidor.
Não sabiam o número. Natyelle foi quem descobriu. Viu um menino que era da
escola e ele mostrou onde era a casa de Jovelino. Na porta a mãe a recebeu com
um sorriso triste. Estranharam.
Entraram, a mãe de Jovelino serviu um cafezinho e uns bolinhos de
fubá que a avó dele fez. Esqueci-me de dizer. Ele ficava o dia inteiro com a Avó
enquanto sua mãe trabalhava. – Chefe, fui obrigada a internar o Jovelino em uma
casa de repouso que lhe disseram poder ajudar ao seu filho. Ele passou a gritar,
chorar, e dizia na sua maneira inteligível que queria morrer. Pessoas humildes,
sem posse e conhecimento Marcia se preocupou. Que casa seria esta? Nunca
ouviu falar. Pediu o endereço e foi lá. Coitado do Jovelino. No meio de homens e
mulheres que estavam em processo de loucura totalmente insana e degradante
e se fossem mais olhados pelos familiares não estariam ali mais. Espalhados
pelo pátio faziam suas necessidades na grama, pisavam, uns gritavam outros
davam gargalhadas. Enfermeiros agiam com brutalidade. Viu Jovelino em um
canto, e caramba! Sorrindo! Estava com um buquê de flores e veio correndo
entregar a Chefe Marcia. Ela não aguentou. Chorando deu nele um abraço não
de Chefe, mas de mãe.
Na secretaria disseram que ele não podia sair. Nem a mãe iria poderia
tirá-lo. Enquanto não melhorasse. Melhorar? Ali? Marcia foi direto ao juiz da
cidade. Conhecia-o. Era pai de um Escoteiro. Jovelino saiu no outro dia. E agora
o que fazer? Como reintegrá-lo na Alcatéia novamente? Falar com os lobinhos?
Consultou os demais assistentes. Consultou o Diretor Técnico. Fizeram um
Conselho de Grupo. Claro, todos se apiedaram de Jovelino e foram unânimes
em votar a favor de sua volta. Mas voltar? O que deveriam fazer na Alcateia?
Como agir e interagir com os demais? A bomba era da Marcia e seus
assistentes.
Naquele sábado a reunião seria feita n Praça Central da cidade. Era
uma maneira de fazer um marketing e ver se arregimentariam outros lobinhos. A
Alcatéia tinha passado para a tropa seis deles. E não havia nenhum aguardando
chamada. Não se sabe como um homem grande, barbudo, com um revolver na
mão chegou gritando para saírem dali. Pegou no colo a lobinha Martinha que os
olhos arregalados começou a gritar e pedir socorro. O homem apontava a arma
e dizia que a mataria se alguém se aproximasse. A policia chegou logo e fez o
cerco. Estavam atrás dele desde que saiu da agencia bancária. Lá dentro tentou
fazer um roubo e não conseguindo matou a tiros o gerente que não quis abrir o
cofre. Uma calamidade.
Um silencio sepulcral no Parque. Os lobinhos e as lobinhas
soluçavam e pediam suas mães. Marcia e os assistentes indefesos. Uma dezena
de policiais gritando para ele soltar a menina. Ele começou a dar gargalhadas. –
dizia – Vou matar! Vou matar! Nunca tive uma filha e vou levar esta junto comigo
para o Inferno. Martinha gritava e ele dizia a ela para calar lhe batendo na cabeça
com as mãos. Incrível, ninguém acreditou no que via. Jovelino estava sorrindo.
Cantando em alto e bom som e dizia a Martinha – Calma minha irmã! Calma.
Tudo vai dar certo e foi chegando para perto dos dois. O bandido gritou para ele
parar, pois o primeiro tiro seria dele. A policia gritou para Jovelino sair dali.
Com grande agilidade Jovelino deu um salto e abraçou o bandido pelo
pescoço. Ele sentindo o peso do menino soltou Martinha que saiu correndo e
gritando pedindo sua mãe. Com um safanão o bandido jogou Jovelino no chão e
atirou. A policia nesta hora crivou o corpo do bandido de balas. Eles caiu ao
chão ao lado de Jovelino que sangrava. Levaram Jovelino para o hospital. Ele
quase não estava respirando. Internado na UTI ficou lá dois meses. Na porta do
hospital uma multidão de lobinhos e escoteiros e seus familiares faziam vigília.
Quatro meses depois ele recebeu alta. Milagre! Sua voz voltou! Falava
normalmente. A cidade em peso estupefata com o acontecido. Onde ele passava
era agora saudado como herói.
Dois meses depois na mesma praça, o Grupo Escoteiro estava
formado. Um pelotão de lobinhos, um de escoteiros e escoteiras, um de Sênior e
guias e os garbosos pioneiros. No palanque o Prefeito, o Juiz, o Delegado, o
Presidente da Câmara e o Escoteiro Chefe da Região. Foi ele que entregou ao
Jovelino a Medalha de Valor ouro. Fez um belo discurso e Jovelino não chorou.
Olhou para a medalha. Sorriu, virou para os escoteiros e falando alto disse – Não
sou herói. Cumpri meu dever mesmo não sendo um Escoteiro de fato eu era de
coração. Espero que me considerem como irmãos. Obrigado. Sei que todos
vocês em meu lugar fariam a mesma coisa.
Uma salva de palmas de toda a população. Gritos e mais gritos da
meninada. Os escoteiros em uma estrondosa palma Escoteira saudavam
Jovelino. O lobinho herói de Santa Genoveva. Dizem, eu não sei que Jovelino foi
escoteiro Liz de Ouro e Escoteiro da Pátria. Acredito. Dizem também que ele se
formou em direito. Dizem que hoje é um grande advogado na capital. Dizem
também que ele faz questão de participar de um Grupo Escoteiro lá. E ainda
dizem que ele ficou conhecido no mundo inteiro. Jovelino Troca Letras, o herói
sorriso que ninguém nunca mais esqueceu.
Não somos super heróis. A partir do momento que enxergarmos nossa vida como a NOSSA VIDA, nunca mais precisaremos provar nada para ninguém.
Juliana Dias.
Em cada coração uma sentença.
A história de um Monitor de Patrulha.
Perdoa-me, folha seca, não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo, e até do amor me perdi.
Tu és a folha de outono
voante pelo jardim. Deixo-te a minha saudade - a melhor parte de mim.
Cecília Meireles
Eu tive a honra de conhecer muitos Monitores em minha vida. Monitores
amigos, gentís, mandões, morcegos, irmãos mais velho, indiferentes, falastrões,
humildes. Uma gama deles. Existem por aí de todos os tipos. Mas me lembro de
um especialmente. Nonôvat. Nome estranho? Nada disto. Ele se chamava
Antonio Medeiros Nonato Vantuil Paredes da Silva Braga. Grande não? Mas
depois de ler a história verão que grande era o coração de Nonôvat. Nonôvat era
o Monitor da Jaguatirica. Era uma Patrulha nova, menos de dez anos de
fundação. Estava no cargo há dois anos. A tropa ainda não elegia seus
Monitores. O Chefe Ricardo escolhia. Ninguém reclamava, mas sempre a
escolha recaia no mais velho da Patrulha. A escolha de Nonovat foi bem
recebida. Na Curimbatá e na Gavião, Josivaldo e Moreno eram Monitores mais
velhos. Eram três patrulhas. Havia mais duas femininas, mas uma espécie de
convivência pacifica houve uma separação amigável.
Em um Conselho das duas Tropas e decidido em Corte de Honra,
resolveram que cada tropa deveria ter sua própria vida. Acampariam, fariam
excursões e atividades aventureiras em conjunto, mas cada tropa respeitando a
individualidade da outra. Francamente falando as duas eram mais que irmãs. Um
respeito enorme. Claro o Chefe Ricardo e a Chefe Neide sabiam como agir. Para
eles nada poderia dar certo se não tivessem bons Monitores. Eles sempre diziam
aos graduados – Para ser um líder, você tem que fazer as pessoas quererem te
seguir, e ninguém quer seguir alguém que não sabe onde está indo. Eles faziam
muitas reuniões em separado, atividades extra-sede também. Eles conheciam
aquela frase de Mario Quintana que dizia – O segredo é não correr atrás das
borboletas... É cuidar do jardim para que elas venham até você.
Na Patrulha Jaguatirica quase todos os seis patrulheiros tinham mais de
um ano de tropa. O Chefe Ricardo já pensava em iniciar a quarta Patrulha. Oito
jovens estavam na fila de espera. Chefe Ricardo nunca foi daqueles de ter tropa
grande, ter muitos. Ele era um especialista em compreender as pessoas como
elas são. Sempre dizia aos Monitores que se vocês querem ser bem sucedidos,
precisam ter dedicação total, buscar seu último limite e dar o melhor de sí.
Completava com a metáfora de Steve Jobs – A qualidade é mais importante do
que a quantidade. Um gol de placa é melhor que um gol feito. Ou seja, a
qualidade significa fazer o certo quando ninguém está olhando.
Foram bem treinados e adestrados os Monitores. Os sub Monitores
também. Eles deviam estar preparados para substituir numa eventual falta. Na
Patrulha todos tinham uma responsabilidade e Nonôvat sabia como cobrar sem
gritar, sem exigir só mostrando o que fazer e claro ajudando. Não era e nunca foi
um mandão. Aos treze anos aprendeu o máximo que deveria saber para liderar a
Patrulha. Aprendeu que para liderar é preciso também saber ser liderado. Dizia
aos seus patrulheiros sorrindo – Olhem! Se ficarem mal humorado tome café! Se
não gostarem sigam a luz, se no final dela tiver um buraco negro, se joguem. E
dava boas risadas. Os escoteiros adoravam sua maneira de liderar.
A parte mais difícil na Patrulha era ter um bom intendente/almoxarife.
Era o patrulheiro responsável pela tralha da Patrulha. O material deveria ser bem
cuidado. Ficavam também acondicionados na Caixa da Patrulha. Eles tinham um
pequeno saco com quatro alças que servia para jornadas a pé com dois bastões
quatro transportavam sem problemas. Ele sabia que o grupo não tinha
condições financeiras para substituir sempre que estragava ou sumia um item e
este iria fazer enorme falta. José Sanho era o intendente. Pediu ajuda e obteve
de Marlon, o escriba. Ficaram ambos como intendente e almoxarife. Tinham tudo
catalogado. Eles aprenderam toda a técnica de fiação de ferramentas, cuidados
e como guardar. Os dois facões, a machadinha, a enxada, o aríete, a pá de
escota, a pequena picareta, além de uma pequena caixa de pequenas
ferramentas tais como um alicate, um córtex, uma chave de fenda e outros eram
a cada quinze dias motivo de uma arrumação, verificação e limpeza geral. Todos
prontos para uso. Sempre afiados e oleados. Dificilmente iriam enferrujar. No
campo tinham um porta ferramentas. E a noite eram guardadas em uma pequena
cabana que faziam e chamavam de intendência. Nunca voltavam do
acampamento sem que uma boa limpeza fosse feita. O Chefe Ricardo dizia que
temos que aprender a levar as tralhas limpas e não limpar na sede. Claro sempre
havia exceções como sair embaixo de chuva. Não era fácil.
Tinham um amor enorme com as duas barracas. Aprenderam a arte da
impermeabilização assim com os dois toldos que faziam parte do telhado na
cozinha e na sala de refeições nos acampamentos. Tudo era muito bem
empacotado. Desde a caneta preta, a régua e o transferidor para mapas e afins.
Sem contar as duas bússolas que foram sua últimas aquisições. Uma Silva e
uma Prismática. Era só falar em acampar que tudo estava pronto. Nada para
depois. O jogo de panelas doados pelas mãos eram quase perfeitos no encaixe.
Orgulhavam-se disto. Não eram só eles que se mostravam cuidadosos. Também
o Marcondes o socorrista da Patrulha. Conseguiu em varias farmácias um ótimo
estoque de remédios tudo conforme uma lista que Dona Zenaide enfermeira do
Hospital Santa Terezinha e mãe de uma lobinha fez para eles. Eles sabiam que
podiam contar com Muriel o cozinheiro. Sua mãe ria quando ele encostava-se à
cozinha de sua casa e dizia que queria aprender. E aprendeu muito bem. Daniel
o Construtor de Pioneirias não ficava só nisso. Ajudava em tudo assim como o
Zezé Ruaça, que se dizia o faz tudo.
Além de aprender tudo que o Chefe Ricardo dizia, ele aprendia aqui e ali
nas esquinas da vida. Na escola era um bom aluno. Não o melhor, mas não o
pior. Seus pais eram boa gente e sempre confiaram nele. Não deram tudo que
ele precisava para ser Escoteiro, mas o ajudaram em muitas coisas. Para suprir
suas necessidades ele trabalhava. Fazia trabalhos aqui e ali com os vizinhos
sem prejudicar seus deveres escolares. Com sua sanha de querer sem pedir
ajuda, comprou para si em dois anos uma Bussola Silva, uma faca Escoteira,
uma machadinha e o chapéu que muito se orgulhava. Nonôvat e Leozinho seu
sub eram unha e carne. Cada um sabia que podia contar com o outro.
Nonôvat sempre nas reuniões de Corte de Honra levantava suas
dúvidas e tinha uma que todos sabiam de cor. A competição entre eles ou entre
outros grupos. – Chefe somos irmãos? Se somos porque teremos que ser
melhor que os outros? Porque não jogar, aprender, ajudar e ser Escoteiro com o
coração sem pensar em ser o melhor? Chefe Ricardo sempre pensou sobre isto.
Até decorou o que leu sobre o tema escrito por Bertrand Russell – A raiz do mal
reside no fato de se insistir demasiadamente que no êxito da competição está a
principal fonte de felicidade. Ele concordava com Nonôvat. Já tinha notado que
alguns grupos eram motivados e até levados pela mão pelos seus chefes para
poderem dizer que eram os melhores. Muitos gritos de Patrulha assim o diziam.
Havia até uma motivação que anualmente era aplicada pela direção nacional.
Conseguir tal e tal padrão. Ele achava justo, mas não o que os chefes faziam.
Não tinha nada de Escoteiro nisto. Ficavam semanas e semanas, meses e meses
eles mesmos fazendo tudo ou com seus Monitores para serem os melhores. Se
alcançassem o padrão ouro então era um Deus nos acuda. Falavam para “Deus
e o povo”.
Nonôvat gostava do modo do Chefe Ricardo. Nas inspeções em sede e
nos acampamentos ele respeitava a todos. Uma vez em uma atividade com
outros grupos viu um Chefe jogando palito e pequenos papeis de um lado ou
outro só para dizer – Não fizeram o suficiente! Uma desonestidade. Isto partindo
de chefes seria um mau exemplo e o pior, quando convidavam Monitores alguns
deles também faziam o mesmo. Aprenderam com seus chefes assim. O Chefe
Ricardo era um perfeito cavalheiro. Nunca fez isto. Fazia questão de respeitar e
ser respeitado. Em todos os acampamentos ele fazia questão que os Monitores
fizessem inspeção no campo de Chefia. Lá estava ele a Chefe Neide e alguns
assistentes formados e em posição de sentido enquanto os Monitores olhavam
o campo. Ele nunca soube de um Chefe que fez isto.
Assim a vida seguia e a tropa Escoteira do grupo de Nonôvat seguia
seu caminho. Sempre todos com um sorriso, com um aperto de mão do Chefe,
com um tapinha nas costas quando alcançavam um distintivo, um abraço forte e
um "anrê" por um cordão. Já tiveram cinco Lis de Ouro em épocas passadas,
mas há mais de dois anos que a tropa não revelava ninguém. Não por falta de
motivação. Chefe Ricardo incentivava ao máximo, mas cabia a cada um dar o
primeiro passo. Ele sabia que não podia carregar ninguém. Deveria ser como
dizia Caio Vianna Martins. O Escoteiro caminha com suas próprias pernas. Na
última Corte de Honra foram comunicados de uma atividade de um dia a convite
do distrito. – Chefe! Mas não estava programado! – Eu sei ele disse, reclamei,
mas vai ficar mal se não formos. Deixei bem claro que seria a última vez. Eles
não gostaram, mas aceitaram.
Seria uma atividade de um domingo. Próximo ao Vale Cinzento.
Disseram que seria filmado por uma emissora. Uma grande publicidade para o
escotismo. Não podíamos ficar de fora. A vida continuou na tropa. Claro muitos
esperando ansiosos o dia em que iriam confraternizar com outras patrulhas.
Diziam que estariam presente vinte ou trinta patrulhas. Talvez um pouco mais
com as patrulhas femininas. Às oito da manhã partiram para a Matriz onde seria
o ponto de encontro. Muitos lá estavam e como sempre a tropa do Chefe Jurema
foi à última a chegar. Ele um rapagão de uns vinte e cinco anos, óculos escuros,
chapéu a lá exploradores canadenses e uma vareta embaixo do braço. Chegou
sem cumprimentar ninguém e deram o grito de tropa. Como sempre diziam que
eram os melhores, iam arrasar. Nem o demônio podia com eles enfim um monte
de asneira mais próprio de times “fuleiros” que não respeitam o próximo.
O distrital tomou a palavra e explicou o jogo. A conquista do Ouro
Misterioso. Deu como ponto de partida uma parte do Vale Cinzento que ia da
nascente até a estrada do Astro Rei que cortava boa parte do Vale. Ali estavam
escondidos quinze lenços escoteiros. Todos numerados. As Patrulhas não
precisavam seguir a ordem, mas para achar a pista final precisavam de pelo
menos cinco lenços. Menos que isto não seria fácil chegar ao ouro perdido. A
ordem era clara. Todos deveriam estar sempre juntos. Em cada ponto haveria
um Chefe Escoteiro. Se a Patrulha dispersasse seria desclassificada. Às treze
horas poderiam parar para o lanche. Obrigatório. Deu outras instruções e depois
o debandar. Paulo Cobra Monitor da Caveira do Diabo (Como deixaram dar esse
nome a uma Patrulha Escoteira ninguém sabia) se aproximou sorrindo e disse
para Nonôvat – Não me esperava eim? Não tem para ninguém. Você sabe que
somos os bons, os melhores da cidade. Melhor reconhecer agora e desistir! E
começou a rir se dirigindo para sua Patrulha.
O jogo começou guerra! Gritou o Comissário Distrital. Eram dez da
manhã. Vai aqui, vai ali e a Patrulha Jaguatirica conseguiu achar três lenços.
Faltavam ainda dois. Ao meio dia e vinte Nonôvat viu Paulo Cobra sozinho
correndo sem a Patrulha. Não podia. Era contra as normas. Chamar um Chefe e
dizer? Nonôvat preferiu ir atrás dele e ser sincero – Se continuar vou informar ao
dirigente distrital. E ele sabia que faria isto. Correu atrás de Paulo Cobra que
tinha subido em um penhasco proibido pela direção do jogo por oferecer grande
perigo. Avisou sua Patrulha, deixou Leozinho no comando. Ao subir uns oitenta
metros ouviu um grito de socorro. Avistou lá em bairro Paulo Cobra estirado em
cima de um galho enorme de uma árvore. Desceu com cuidado.
Paulo Cobra chorava. Gritava de dor. Dizia ter fraturado uma costela e o
braço. Nonôvat achou que deveria ir buscar ajuda. Mas ventava forte e ele sabia
que uma tempestade se aproximava. Deixar Paulo Cobra sozinho seria pior.
Subiu na árvore. Galho por galho foi descendo Paulo Cobra. Ele gemia. Chorava
e pedia sua mãe. Com muito custo chegou ao pé da árvore. A chuva caiu. Forte.
Raios cortando pedras e árvores no fundo da garganta. Viu uma grande pedra
que fazia uma espécie de caverna a uns quarenta metros. Pegou Paulo Cobra a
moda Escoteira e o carregou ombro acima até a pedra. Não foi fácil. Ele era
pequeno. Paulo Cobra forte, meio gordo. Nonôvat não desistiu. Chegou à pedra
e protegeu o Paulo com sua blusa Escoteira ficando sem nada sobre a pele.
Disse que ia buscar ajuda. Paulo gritou que não iria ficar só tinha medo. Muito
medo.
A chuva passou. Nonôvat pegou novamente Paulo Cobra e o colocou no
ombro. Poderia ter ido buscar ajuda, mas Paulo Cobra choramingava, pedia para
não ficar sozinho. Andava tropeçando. A cada cem ou duzentos metros parava
para descansar. Viu que ia escurecer. Resolveu fazer um SOS. Acendeu um fogo
com muitas folhas verdes. Com sua blusa presa em duas varetas tentava fazer
no código Morse as letras S. O. S. difícil. Se conseguiu ou não noite chegou. Mas
menos de uma depois ouviu vozes. Vários chefes chegando. Paulo Cobra foi
levado por uma carroça de um sitiante. Nonôvat soube depois que quebrou duas
costelas, uma fratura na coxa direita e no braço direito. Mas ia ficar bom. Levou
sua Patrulha para visitá-lo em sua casa. Foi muito bem recebido. Paulo Cobra
chorou varias vezes e pediu perdão por tudo que fez. Nonôvat o abraçou.
Ficaram amigos para sempre.
Dois meses depois um “monte” de chefes adentrou a sede.
Nonovat sabia que eram figurões da região e do distrito. A ferradura foi formada.
O Chefe Ricardo usou da palavra para apresentar a todos. O Presidente Regional
chamou Nonovat a frente. Ele se assustou. Que seria? Então ficou sabendo que
iam lhe entregar a medalhar de valor. Ouro. Não era bronze e nem prata. Seria
ouro mesmo. Acharam que ele mereceu. Nonovat segurou as lágrimas. Ele não
era de chorar fácil. As patrulhas deram o grito. Nonôvat estava tremendo.
Emocionado. Viu que seus pais também estavam lá. Todo o grupo se fechou em
circulo fechado e deram o grito do grupo. Uma festa. Ele Nonôvat não sabia. No
salão de festas muitos comes e bebes. Primeiro entraram os grandões, depois
chamaram Nonovat. Ele educadamente disse que sua Patrulha fazia parte dele.
Assim como as demais. Entraram todos. Até tarde da noite cantaram e
brincaram. Nonôvat em hora nenhuma se sentiu superior. Ele sabia o que tinha
feito. Ajudar um amigo Escoteiro. Não importa quem ele seja.
Nonôvat teve muitas outras histórias. Histórias que não serão
contadas. Histórias de escoteiro de valor. História de Escoteiro amigo e fraterno.
Aquele que pensa primeiro nos outros e que tem amor no coração. Dizem que
cada coração tem uma sentença. Tem sim, Nonôvat tem a sentença de fazer o
bem. Espírito Escoteiro antes de tudo. Soube que ele e seus patrulheiros sempre
ficaram juntos mesmo quando passaram para Sênior. José Sanho, Marlon,
Leozinho, Marcondes, Daniel um cozinheiro adorado e Zezé Ruaça. Uma vez eu
disse para mim mesmo, tem gente que nasce para ser Escoteiro, tem gente que
nasce para ser um grande Escoteiro e tem aqueles que nascem para dar o
exemplo de humildade e amor com todos ao seu redor. Nonôvat, um Escoteiro
que nunca será esquecido!
Não vim a este mundo competir com ninguém. Quem quer competir comigo
perde seu tempo. Estou neste mundo para competir somente comigo:
Ultrapassar meus limites. Vencer meus medos, lutar contra meus defeitos.
Superar dificuldades e correr em busca dos meus objetivos, já me ocupam muito
tempo!
“Que as pulgas de mil camelos infestem o meio das pernas da pessoa que arruinar seu dia, e que os braços dessa pessoa sejam curtos demais pra se
coçar”...
Samuel Escoteiro e as Sete Pragas de Rio Mimoso.
Foi em uma tarde gostosa do mês de abril que encontrei o Chefe
Lépido (Marco Emilio Lépido) próximo a praia de Pocitos em Montevidéu. Gente
fina. O conheci ha muitos anos em um Seminário Internacional Escoteiro em San
José, na Costa Rica. Ficamos amigos. Amicíssimos. Fazia mais de dois anos que
não o via. Sentamos em um Café de frente para o mar e conversamos até altas
horas da madrugada. Eu iria retornar ao Brasil no dia seguinte e ele iria partir
para a Cidade do Cabo na África do Sul. Ele era um contador de histórias nato.
Eu gostava do jeito dele. Narrava e vivia com as mãos e o corpo o desenrolar da
história. No Café alguns clientes deram risadas.
Realmente era uma história inverossímil para os dias de hoje. Como
ele era Escoteiro dos bons, fiz de conta que acreditei. Mas vamos aos
entretantos e deixemos os finalmentes para depois. – Meu amigo, estive lá uma
semana depois do acontecido. Rio Mimoso não tinha mais que vinte mil
habitantes. Gostei muito do Grupo Escoteiro de lá. Turma excelente. Foi um
Escoteiro de nome Samuel, mais ou menos treze anos que me contou toda a
história de Rabequita. Folclore da cidade, ninguém lembrava quem eram seus
pais e só sabiam que ela morava no Morro da Tristeza. Morar lá era o fim do
mundo. Rabequita andava o dia inteiro pela cidade apoquentando todo mundo.
Não falava palavrões, mas dizia cada coisa que todos corriam dela como o diabo
corre da cruz.
Só podia ser maluca diziam. Porque não a internam num hospício por
ai? Mas quem tinha esta coragem? O Prefeito Bafodonça tinha medo dela. O Dr.
Pasquelino Gonzaga Juiz de Direito dizia que nem perto dela ia chegar nunca. O
Delegado Praxedes lavou as mãos. Por mim ela vai morrer em Rio Mimoso e
olhe, pretendo ir ao seu enterro. E dava boas risadas. Quem não gostava nada
disto era as Damas dos Bons Costumes da cidade. Faziam tudo para sumir com
ela de lá. – Uma praga para nós diziam. Nunca seremos bons anfitriões com ela
mexendo com nossos poucos turistas. Ainda bem que ela tinha um fã. Samuel
da Patrulha Corvo. Ninguém na Patrulha e na tropa entendiam nada.
Todo sábado pela manhã, antes da reunião ele a levava a sua casa e
dizia para ela tomar banho. Só tomava banho aos sábados. Sua mãe bem
velhinha fazia de conta que não via nada. Samuel sempre conseguia roupas
limpas para ela junto às famílias escoteiras. Ninguém entendia nada. Bem
cedinho lá estava Samuel na avenida principal e a levava segurando em sua mão
e os dois sem dizer uma única palavra em direção a sua casa. Rabequita gostava
ou pelo menos fingia que gostava. Depois do banho Samuel Escoteiro oferecia
um lauto almoço. Ela saia antes dele ir para a reunião Escoteira sorrindo e
cantando.
O Chefe Joventino achava que Samuel era um bom Escoteiro fazendo
aquele tipo de boa ação. Conversava sempre com ele e perguntava por que ela o
obedecia e mais ninguém. Samuel não respondia. O mês de janeiro prometia.
Um sol escaldante, nada de chuva. A represa que abastecia a cidade estava
secando. Na igreja um movimento enorme para a procissão que as Damas dos
Bons Costumes realizava diariamente. Pediam a São Tomás de Aquino e não a
São Pedro e rezavam para ele trazer chuva. Uma vez, duas vezes os escoteiros
foram, mas pediram o Chefe para não ir mais. Sempre quando as Damas
marcavam uma procissão eles inventavam um acampamento ou uma excursão.
Rabequita só olhava de longe e dava gargalhadas enormes. –
Alcoviteiras, viúvas de São Pedro, vagabundas da cidade ela gritava em cima de
um caminhão estacionado enquanto a procissão passava. As Damas estavam
“por aqui” com Rabequista. Chamaram o Bispo, pois o padre não resolvia nada.
O bispo telefonou ao prefeito que telefonou ao juiz que telefonou ao Delegado e
nada. Rabequita não parava de praguejar. Agora ela fazia questão de deitar no
chiqueiro do Seu Gastão só para que o seu cheiro se tornasse horrível para
quem fosse à procissão. O Padre Norberto não queria se envolver. Toda vez que
procurou Rabequita ela o mandava para aquele lugar.
O jeito foi trocar o delegado, pois o Senhor Praxedes tinha um medo
dela enorme. Prometeu chegou à cidade de Rio Mimoso sabendo da fama de
Rabequita. – Deixa comigo dizia. Coloco-a no xadrez por dois dias e ela vai
aprender com quantos paus se faz uma canoa. Nem bem tomou posse e foi dar
uma volta no centro da cidade. Não tinha como fugir. Lá estava Rabequita
parando o trânsito, chingando e jogando pedra nas vitrines das lojas. Não deu
outra. Pegou-a pelo braço e arrastando jogou-a no fundo do xadrez da delegacia.
Rabequita gritava e praguejava dizendo que o delegado Prometeu ia prometer
nas “prefundas dos infernos”. Samuel Escoteiro quando soube correu até a
delegacia e pediu ao Delegado Prometeu que a soltasse. Ele riu. Vai para sua
Patrulha menino. Não me enches a paciência se não coloco você junto com ela.
Não se sabe como, mas uma colmeia de abelhas africanas invadiu a
delegacia. Milhares e milhares delas. O escrivão e dois soldados se mandaram
com a cara inchada de mordidas. O Delegado Prometeu não podia fazer nada.
Durante cinco dias só entrava o Senhor Periquito do restaurante Bom Menino e
mesmo assim usando um protetor que pediu emprestado ao Senhor Baunilha,
um apicultor que criava abelhas lá para o lado de Rochas do Prego Solto. Ele
sempre encontrava Rabequita rindo, dando gargalhadas e interessante,
nenhuma abelha a mordia, passeavam no seu corpo e pareciam estar em festa.
Samuel pediu ao delegado Prometeu para falar com ela. Sabia que só ela tiraria
as abelhas da Delegacia.
Dito e feito. O delegado soltou Rabequita e as abelhas sumiram. –
Querem chuva? Gritava para o povo na procissão. Vou lhes dar chuva! E ria. E
gargalhava. Trovões ribombaram nos céus. Uma chuva torrencial. O povo
dançava e cantava. Um dia, dois dias, três quatro uma semana. A chuva não
parava. A ponte sobre o rio mimoso ameaçava desabar. O rio já passava sobre
ela. As ruas da cidade foram tomadas pela enchente. Rabequita dançava na
chuva. Quem tivesse assistido ao filme Cantando na Chuva ia se deliciar.
Rabequita arrumou um guarda chuva furado e corria pelas ruas, segurando no
poste e cantando.
A Tropa Escoteira estava em reunião. Decidiam se iam cancelar o
acampamento de quatro dias que iam fazer nos Morros Uivantes das Pedras
Nuas. Era o acampamento mais esperado do ano. – Chefe disse Samuel posso
tentar parar a chuva? – Todos riram. – virou milagroso? Disse o Monitor da
Falcão. – Posso tentar? Faça o que quiser Samuel, disse o Chefe Joventino e
não disse mais nada. Combinou-se de dar dois dias para a chuva parar. Lá foi
Samuel procurar Rabequita. Quando ela o viu abaixou a cabeça e deu-lhe a mão.
Achou que era dia do banho mesmo que estivesse tomando banho há dias
naquela chuvarada. Samuel falou baixinho no seu ouvido – Rabequita, se a
chuva não parar não poderemos acampar!
Uma hora depois o sol apareceu no céu. A chuva acabou. O
acampamento foi um dos mais bonitos que a tropa fez. O Delegado Prometeu
não se deu por vencido. Se esta feiticeira acha que vai rir de mim está
redondamente enganada. Telefonou para Mar das Vertentes e falou com o
delegado de lá. Pediu um rabecão para levar uma doida e internar no Hospício
Esperança Feliz. Dito e feito. Levaram Rabequita a noite. Ninguém viu. No dia
seguinte não amanhecia. Sempre noite. O que ouve? Outra praga de Rabequita?
Um dia, dois três e o dia não aparecia. Procuraram a mulher em todo lugar e não
acharam. O Delegado Prometeu ficou cismado. Cacilda! A mulher tinha parte
com o Demônio? O Coisa Ruim? Mandou trazê-la de volta. Ela o olhou e disse?
A próxima vez você vai virar um macaco prego. Irá morrer de tanto comer
banana.
O Prefeito Bafodonça e o Dr. Pasquelino Gonzaga o Juiz de Direito,
reuniram a fina flor da sociedade local. O que fazer? Chamaram também o
Escoteiro Samuel. Afinal ele era íntimo dela. Ninguém sabia explicar isto, mas
ele seria a melhor pessoa para aconselhar. Querem resolver? Perguntou Samuel.
Dê a ela uma casinha boa perto do Cemitério do Paletó Preto. Que a cada dez
dias o Senhor Marombático do Supermercado Preço Alto entregue na casa dela
uma cesta de mantimentos. Todo mês mandem levar para ela duas caixas de
charutos Cohiba, aquele que o ex-presidente Lula fuma. – Mas este charuto é
caríssimo disse o Delegado Prometeu. O prefeito interferiu. - Tudo bem. Assim
foi feito. Durante cinco meses a calma voltou a reinar na cidade de Rio Mimoso.
Tudo piorou quando o seu Marombático do Supermercado Preço Alto não estava
mais fazendo as entregas no prazo e o pior, colocava produtos de terceira.
Um inferno. Milhares de pássaros no céu gritando, voando e bicando
as cabeças dos transeuntes e o pior, fazendo necessidades nas cabeças das
pessoas. Ninguém tinha sossego. Saia de terno e voltava-se borrado! Outra
reunião, seu Marombático pediu desculpas. Mesmo em sua casa nova, com
chuveiros e até colocaram lá uma Banheira Branca linda de morrer ela não
tomava banho. – Manuel meu Escoteiro, se eu tomar banho todo dia quem vai
“feder” é a cidade. Enquanto eu ficar fedendo a cidade fica cheirosa. Manuel não
acreditou. Exigiu que ela tomasse banho todos os dias. Disse que faria dela uma
dama e quem sabe ela encontraria um marido para cuidar dela?
No domingo um mau cheiro soprava dos lados da sede do Perneta
Footboll Club e só aumentando. Foram lá e não encontraram nada. A cidade em
peso de mascaras. Janelas fechadas, mesmo assim estava difícil viver. Ninguém
sabia o porquê. Só Manuel. Não teve jeito, pediu a ela para parar de tomar
banho. O cheiro desapareceu. Rabequita pediu um carro. Novo. Zero quilômetro.
Manuel foi ao seu encontro. – Porque não posso? Afinal a cidade me deve muito!
O Prefeito Bafodonça explodiu! Nunca andou nem de bicicleta e agora quer um
carro? Arrependeu do que fez. Parece que os fantasmas do outro mundo
estavam à solta. Nem bem escurecia e lá estavam eles vindo do Cemitério Paletó
Preto. Zumbis, Mula sem Cabeça, Lobisomens, Esqueletos andantes, uma
verdadeira procissão fazia a festa na praça da cidade.
O Carro foi entregue. Um Honda Civic vermelho lindo de morrer. As
Damas dos Bons Costumes cuspiam de ódio. Muitas delas não tinham aonde
cair sentada. Resolveram botar fogo na casa de Rabequita. Tentaram mas não
conseguiram. Voltaram para suas casas frustradas. O pior todas estavam
pegando fogo! Meu Deus! É um demônio não é uma mulher! Bem a história
termina aqui. Samuel me disse que Rabequita cansou da cidade de Rio Mimoso.
Mudou-se para a cidade de Boina Verde. Quando ela se foi, um foguetório
enorme se fez rebombar na cidade. Uma festa enorme. Que se danem o pessoal
de Boina Verde.
Dei belas risadas e fiquei olhando para o meu amigo Lépido. Ele me
olhava com expressão galhofeira. Verdade isto meu amigo? Palavra de Escoteiro
disse. Tomamos mais umas duas cervejas Westmalle, pois o garçom disse que
era uma das melhores do mundo. Despedimo-nos e cada um foi para o seu lado.
Uma quarteirão antes do hotel que estava hospedado vi uma mulher
desgrenhada, suja, um mau cheiro horrível e chegou perto de mim e disse – Me
paga uma cachaça filho da mãe! Paguei. Sei lá se era a Rabequita. Montevidéu
não tem disto, mas não se pode acender uma alma a Deus e ao Diabo ao mesmo
tempo!
- Ganhar não é tudo, o importante é competir! (Péssimo, destrói essa, essa não ajuda em nada, nada mesmo!).
O último adeus!
(De saudades também se vive)
Estou aqui, como sempre faço todas as tardes, sentado em um
banquinho que fiz e que eles disseram ser uma pioneiria, na volta do Rio das
Flores, a espera deles. Sei que não virão, mas quem sabe um dia eles voltam?
Todos eles, cantando, brincando naquele ônibus colorido. Quando penso em
tudo que aconteceu, meus olhos se enchem de lágrimas. Foram os dias mais
lindos da minha infância. Dias que nunca, mas nunca mais vou esquecer. Quatro
dias de felicidade!
Morava em uma pequena casa de pau a pique, próximo ao Rio das
Flores. Meu pai trabalhava na fazenda do Senhor Coronel Alcebíades, e
tínhamos uma casinha pequena, de adobe. Éramos quatro. Eu, meu pai, minha
mãe e meu irmão de três anos. Uma família feliz. Toda manhã ia para a escola na
fazenda Rancho Fundo do Coronel, onde tinha a única escola da redondeza.
Eram quatro quilômetros que eu fazia correndo. Ajudava meu pai na lida da
capina e a tarde nadava no rio. Diziam que nadava como um peixe.
Numa quarta feira vi um ônibus colorido, cheio de cantorias que se
dirigia a fazenda do coronel. Cortei caminho e do alto da Morada vi dois homens
de calça curta e chapelão conversando com o Coronel. Ele fez sinal para mim e
disse que levassem eles até A várzea, perto do rio e do bambuzal. Não falou
mais nada. Entrei no ônibus. Todas as crianças da minha idade, rindo, brincando
me dando um tal de Sempre Alerta. Estava com vergonha deles e fiquei em pé
bem na frente, mas olhando todos de rabo de olho. Chegamos, eles desceram.
Juntaram a tralha e ficaram esperando a chamada. Logo eles fizeram um meio
circulo próximo a um pé de amora, o tal do "Chefe" Escoteiro passou uma
cordinha, e colocaram a bandeira do Brasil. Fiquei de longe olhando. Meus olhos
estavam fixos na meninada. Eles corriam aqui e ali. Cada turminha fez um
cercado, armaram barracas e foram cortar bambus.
Olhei o sol e vi que mamãe estaria preocupada. Corri até em casa e
contei as noticias. Pedi a ela e o papai se deixaria eu ficar lá olhando. Meus pais
nunca ralharam comigo. Almocei correndo um prato de abobora com peixe frito.
Voltei ao lugar que eles estavam. Várias barracas, e eles construíram alguma
coisa que não entendi e a fumaceira pegou fogo em todos os cercadinhos deles.
O sol já se pondo e foram tomar banho no rio. Um deles tentou atravessar.
Começou a fazer sinais. Corri lá. Pulei de roupa e tudo. Era bom nadador apesar
dos meus doze anos. Tirei-o da água. Os chefes começaram a beijar e ele e
voltou a respirar. Agradeceram-me. Bateram uma palma esquisita. Chamaram-
me de herói. Disseram que se quisesse ficar em uma Patrulha era só escolher.
Nem sabia o que era isso, mas um loirinho me fez um sinal e fui. Disseram que
eram os Touros. Dei risada. Aqueles fracotes Touros? Mas foi bom. Ensinaram-
me a dar sempre alerta, a gritar o tal grito da Patrulha, a entender os sinais do
"Chefe" Escoteiro para formatura.
Durante os quatro dias eu brinquei com eles. Corremos na mata.
Pulamos a cerca do Boi Lamego, fomos até a subida do Catatáu. Mostrei a eles o
canto do sabiá, do pássaro preto, mostrei como fazer o tatú sair da toca. Eles me
ensinaram nós e quiseram ensinar sinais de pistas. Dei risadas. Nunca iriam
pegar uma seriema contra o vento. Quatro dias maravilhosos. Comi a comida
deles, ruim à beça. Sem sal. Mas eu ria e eles riam. Um dia cozinhei para eles.
Gostaram. Até o "Chefe" Escoteiro veio tirar um sarro. Um deles deu dor de
barriga, levei para ele a Fruta do Pastor. Chupou a fruta e sarou. No ultimo dia
fizeram um fogo. Cantaram, gritaram, bateram palmas, contaram causos, fizeram
teatrinho e depois em volta da fogueira cantaram uma linda canção que só
guardei uma parte. “Não é mais que um até logo, não é mais que um breve
adeus”.
No ultimo dia desmontaram tudo. Fizeram uma limpeza. Na bandeira
o "Chefe" Escoteiro deles me chamou. Dissera que eu era um Escoteiro
honorário. Mandou-me ficar durinho, e fiz o sinal deles. Fizeram-me repetir a
promessa deles. Prometo pela minha honra... Foi lindo. Foi demais. Depois ele
me colocou o lenço deles. Chorei. Abraçaram-me. Chorei. Deram os gritos que
chamavam de Patrulha. Chorei. Disseram-me Adeus e partiram. Eu chorava.
Entraram no ônibus. Eu fiquei ali em pé, ao lado do mastro de bandeira como
eles chamavam. O ônibus virou a curva do rio buzinando. Um silêncio atroz.
Chorava. Chorava. A tarde veio. Não arredei o pé. Não podia sair dali. Via todos
eles cantando, brincando e me abraçando. Se saísse toda essa ilusão iria
desaparecer. A noite chegou de mansinho. O orvalho caindo. Eu chorando. Não
parava de chorar. Queria eles de volta, mas sabia que isso não ia acontecer.
Meus pais chegaram e me levaram. Não queria ir. Mas não podia
ficar ali toda a noite. O dia amanheceu. Como sempre voltei a minha rotina.
Escola, trabalhar na roça com meu pai e as tardes ia sentar no meu banquinho lá
na curva do rio. Olhava o horizonte quem sabe, um ônibus viria novamente!
Meus olhos enchiam-se de lágrimas. Agora não chorava mais. A dor que sentia
era no meu coração. Uma dor doída. Lembranças, lembranças que machucavam.
Que dias lindos maravilhosos eu tive e se foram. Durante muitos anos a minha
memória revivia todos os dias felizes que com eles passei. As saudades
permaneceram por longo e longo tempo. Meu Deus! Daria tudo para vê-los
novamente! Sabia que não ia acontecer. Quando foram eu ainda não sabia, mas
era o último Adeus. Um adeus sem volta. Sem retorno. Gostava de aos
domingos sentar próximo no mastro da bandeira deles. Agora seco, mas firme.
Eu não deixava ele cair. Chegava com meu lenço, ficava durinho e dava sempre
alerta. Olhava uma bandeira invisível sendo erguida e chorava.
Não sei quantos anos se passaram. Cresci, casei, tenho filhos. Nunca
mais vi os escoteiros. Quantas saudades que permanecem na minha lembrança
e não se apagam. O ultimo adeus! Sim, foi o último adeus daqueles que fizeram
de mim, um homem feliz. Quatro dias. Quatro dias! O ÚLTIMO ADEUS!
A história é a verdade que se deforma, a lenda é a falsidade que se encarna. Jean Cocteau
Lendas escoteiras
A maldição do Lobo Vermelho.
Juraram-me de pé junto que era uma lenda. O povo gostava de
contar histórias e inventavam muito. Eu pensava de maneira diferente. Lembrei
quando nas eternas competições do passado quando no Quebra Coco nos
fogos de conselho, tinha uma quadrinha que gostava de dizer: Minha mãe
chamava Caca, e meu pai Caco Maria. Juntando Caco com Caco eu sou filho da
Cacaria! Portanto, se o Cacique Boitiguara me contou eu não podia duvidar.
Tinha passado para os pioneiros e acampava sempre nas planícies do Vale do
Rio Doce lá para os lados de São Mateus e Nanuque. Já conhecia a tribo dos
Machacalis, ou melhor, Pataxós como dizem hoje, e me tornei amigo do Cacique
e de muitos outros índios da tribo.
Eram uma tribo sofrida, lutavam para sobreviver, mas com uma
fraternidade que superava algumas vezes a tão falada fraternidade escoteira.
Quando você fazia amigos na tribo podia-se saber que eram amigos de verdade.
Eirapuã, Piatã e Potira três jovens da tribo, sempre me acompanhavam quando
ia ali acampar principalmente na Garganta Montanhosa do Vale do Castanheiro.
Boitiguara o Cacique na última vez que lá estive ficou horas e horas na beira do
fogo junto com outros “bravos” me contando a maldição do Lobo Vermelho,
uma narrativa que ele com seus gestos contava como se estivesse vivendo a
personagem do "Velho" Pajé Porã (aquele que possui beleza) que ouviu de seus
ancestrais esta lenda que nunca será esquecida pela tribo enquanto ela existir.
Minha vida de Escoteiro nunca me deixava duvidar de um índio,
pois não havia motivo para mentiras entre eles. Acampei ali muitas vezes,
atravessamos o Rio Doce na curva do Cavalo Doido, mergulhamos na cachoeira
do Macaco e quantas e quantas vezes eu Eirapuã, Piatã e Potira subimos a
montanha do Lobo Vermelho sempre à luz do sol. Eles eram proibidos de passar
a noite lá. Desta vez, que o "Velho" cacique Boitiguara me desculpasse, mas
pretendia aproveitar uma bela lua cheia para ir ao cume e ver toda a majestade
do Rio Doce, desde Crenaque até próximo a Aimorés. Era uma visão dos Deuses
e eu precisava ver.
Foi Porã, o pajé meu amigo que me contou a lenda nos seus
detalhes. Há muitas e muitas luas que passaram, havia um amor enorme entre
dois jovens da tribo, cujos pais eram inimigos de morte. Ninguém na tribo sabia
explicar direito o ódio entre eles, mas quem visse a esposa de Nakian, a bela
Poranga (beleza) iria entender o ódio dos dois. Nakian era pai de Kalin (bela
jovem), uma jovem de deslumbrante beleza e Quaraçã (luz do sol) um jovem
esbelto, forte, cuja coragem todos da tribo reconheciam desde que participou da
caçada da onça parda nas selvas do Olho Negro, era filho de Mauá, e nunca eles
pensaram que seus filhos pudessem se apaixonar. Fugiram um dia e só deram
falta dois dias depois. A procura foi grande. Nunca o encontraram. Um ano
depois qualquer bravo que se arriscasse na Montanha Cinzenta voltava
correndo, pois um lobo enorme, vermelho, com uma loba de olhos de fogo
matavam que se aproximasse principalmente em noite de lua cheia. A montanha
mudou de nome. Passou-se a chamar a Montanha do Lobo Vermelho.
Do Clã só Israel topou ir comigo. Contei para ele a lenda e ele riu.
Bitelô (meu apelido) você não quer que acredite não? Afinal quantas passamos
juntos? Com minha mochila as costas e meu chapéu de três bicos lá fomos nós
no trem rápido da Vitória Minas as oito da manhã. Descemos em Crenaque e
partimos rumo a Montanha do lobo Vermelho. Nem passamos pela tribo. Não
dava tempo. Era tarde e mais duas horas a noite ia chegar. Subimos já à
noitinha. A lua ainda não havia despontado. Quase no topo vimos uma nascente
e achamos boa para acampar. Montávamos a barraca de duas lonas e ouvi um
uivo que me gelou as veias. Israel parou e ficou ao meu lado. Próximo à curva da
Arvore Seca avistamos os dois lobos. Meu Deus! Enormes! Um deles saiam
chispas de fogo nos olhos. Não nos atacaram.
Ficamos lá dois dias. O que aconteceu não vou contar aqui. Só sei
que descemos no terceiro dia e fomos direto até a tribo. Boitiguara se assustou.
Estavam na Montanha do Lobo Vermelho? Rimos. Claro Chefe. A tribo inteira
veio saber como foi. Pedi licença e usei meu apito. No meio das árvores surgiu
os dois lobos, agora não tanto ameaçadores, mas foram até Boitiguara e
lamberam suas mãos e desapareceram nas matas próximas ao vale do Rio Doce.
Nunca mais, e isto fiquei sabendo de Piatã e Potira, ninguém nunca mais teve
medo de ir a Montanha do Lobo Vermelho. Uma lenda que correu o vale, nas
fazendas e nas cidades próximas por muitos e muitos anos. Mas soube que
todos riam quando souberam da história contada por dois escoteiros. Verdade
ou não, até hoje dizem que os lobos da montanha ainda correm pelos picos,
pelas encostas, sobem em árvores e seu uivo percorre centenas de quilômetros.
Verdade ou mentira prefiro não dizer. Quem quiser vá a Nanuque. Atravesse o
Rio Doce e siga no rumo das Pedras Negras. Lá na aldeia dos índios pergunte ao
novo cacique, pois Boitiguara não deve estar mais lá. Talvez quem sabe seu
espirito está a correr junto aos lobos vermelhos na Montanha onde vivem. E
Chefe, como foi à história? Quem sabe um dia volto aqui para contar.
E quem quiser que conte outra.
Sou lenda,
porque as lendas são envoltas em Mistérios e Magias.
São uma criação dos caminhos da mente, da vaga imaginação da liberação dos
silêncios da alma...
Histórias que o mundo esqueceu.
“A justiça a Deus pertence!”
Chefe Billy era assistente de tropa Escoteira. Novo ainda, vinte e três
anos. Procurou o grupo há dois anos atrás dizendo estar interessado em
participar, mas nunca fora Escoteiro. Passou por uma bateria de perguntas e
preencheu todos os formulários que lhe deram. Quase desistiu. Sentiu que ali
era ele quem precisava participar e não o contrário. Chefe Billy era caladão.
Andava de cabeça baixa. Nunca fixava ninguém com os olhos. Sua família não
era da cidade. Conseguiu um emprego na Usina Siderúrgica e trabalhava como
Operador de Forno. Uma função não muito gratificante. Alugou um quartinho
nos fundos da casa de um casal de velhos e assim era sua vida fora do grupo.
Era bem quisto pelos jovens. Os chefes tinham certo receio. Não o conheciam.
Ele não se enturmava. Apesar do seu jeitão esquisito alguns tinham nele uma
grande admiração e respeito. Pouco falava de si e nem todos os convites extra
grupo ele aceitava. Fez dois cursos de formação. Estava dando duro para
conseguir sua Insígnia de Madeira.
Naquele sábado lá estavam todas as sessões. Uma algazarra gostosa,
alegria juvenil e infantil própria dos escoteiros antes do inicio das atividades. Foi
dado o toque de chamada e todos acorreram para a grande ferradura. Iria ser
dado o inicio do Cerimonial de Bandeira. Todos formados. Um carro da policia
parou na porta da sede. Desceram dois policiais e um investigador. – Quem é o
Billy? – Sou eu ele disse. – Você está preso. – Por quê? O Delegado vai dizer. E
cale a boca. Aqui não é filme americano onde falamos de seus direitos. Puseram
a algema nele e o arrastaram até o camburão. Estava de uniforme. Seu chapéu
tão querido caiu ao chão. Foi Lany uma lobinha quem o pegou. O grupo todo
estarrecido. Fazer o que? Continuar com a reunião era melhor. Foi um sábado
dos piores dias de reunião naquele grupo escoteiro. Nenhum Chefe foi à
delegacia saber ou se informar. Ninguém o procurou para saber o que lhe
imputavam.
Os jornais do dia seguinte e as emissoras de programas
sensacionalistas comentaram o que tinha acontecido. Billy tinha estuprado e
esganado um menino de oito anos. O jovem foi encontrado morto em um terreno
baldio. Duas testemunhas juraram tê-lo visto passando perto no dia. Nada mais
que isto. O bairro inteiro ficou a porta da delegacia. Os pais do menino chorosos
pediam vingança. Tentaram invadir, mas foram impedidos. Billy não recebeu
visitas de nenhum membro do escotismo. Soube que abriram um processo e ele
foi exonerado e expulso. “Culpado por suspeita”. Lany, Alfredinho e Tomé não
acreditavam em nada daquilo. Lany era lobinha, Alfredinho e Tomé eram
escoteiros que passaram para a tropa aquele ano. Tentaram visitá-lo, mas não
conseguiram. Impossível menor entrar no presídio. Combinaram de enviar toda
semana uma carta dizendo das saudades e que o amavam muito.
Billy teve um julgamento rápido. Condenado a vinte e oito anos de
prisão sem direito a Sursis. Foi enviado para a Penitenciaria Estadual na própria
cidade. Alguns prisioneiros sabendo do acontecido o seviciaram e quase
morreu. A vingança não parou por aí. Pegaram de um prisioneiro que tinha o HIV
um pouco de sangue em uma seringa velha e enferrujada e aplicaram em Billy.
Ele nunca gritou e nem reclamou. Sabia que nada iria reverter às decisões que
tomaram contra ele. Acreditava em Deus. Era espiritualista. Tinha um motivo
para tudo aquilo. Ele sabia que foi ele mesmo quem escolheu aquele caminho.
Só duas coisas o alegravam na prisão. Sua fé em Deus e as cartas de Lany,
Alfredinho e Tomé. Quando as recebia chorava. Uma angustia o invadia. Tremia
e rezava pedindo a Deus que lhe desse força. Neste interim ninguém do grupo
falava mais nele. Era carta fora do baralho. Perderam muitas crianças por causa
dele. Os pais tinham medo. Melhor colocar uma pedra no acontecido.
Dois anos depois, prenderam um vaqueiro de nome Leôncio. Alguém o
viu arrastando uma criança para um terreno baldio. Foi preso. Confessou ter
feito isto com nove meninos inclusive riu quando disse que foi ele que matou o
menino que disseram ser o Billy o culpado. Somente cinco meses depois Billy
recebeu o alvará de soltura. Um advogado ofereceu em troca de trinta por cento
entrar com um processo na justiça. Ele agradeceu. O dinheiro seria maldito. Não
iria pagar sua passagem para ao céu. Já estava debilitado pelo HIV. Recebia os
remédios do governo, mas não estavam ajudando muito. Ao sair foi abraçado
por muitos amigos que fez ali na prisão. Alguns choravam. Recebeu seu
uniforme Escoteiro que ele abraçou com carinho. Não havia mais motivo para
ficar na cidade. Foi até a estação ferroviária. – Perguntou ao bilheteiro - Até
aonde iria com uma passagem de cinquenta reais? O único dinheiro que
devolveram para ele.
O trem chegou à estação. Quando ia subir três jovens correram para
abraçá-lo. Estavam de uniforme. Eram Lany, Alfredinho e Tomé, todos crescidos.
Billy chorou. Pensou em não abraçá-los. Estava magro, debilitado, sua pele
manchada em vários lugares do corpo. Eles não lhe deram chance. Abraços
apertados. Lany o beijou no rosto varias vezes. Entregou para ele o seu chapéu
Escoteiro que ela guardou todos estes anos com carinho. O apito do condutor
avisando da partida. Os que chegavam e saiam estavam assustados com aquela
cena. Um homem feio, doente, sendo abraçado e beijado por uma Escoteira e
dois escoteiros e todos chorando. Nunca viram nada igual. Billy pegou o trem e
na janela despediu deles. Disse que escreveria. Billy não escreveu. Morreu seis
meses depois como indigente em um canto cheio de lixo debaixo de um viaduto
em Vitória e interessante. Estava com seu uniforme Escoteiro e no colo o seu
chapéu de três bicos. Isto foi o que me contaram.
Justiça? Só Deus sabe como fazer justiça. Para cada ato, para cada
ação a uma reação. O passado não é perdoado facilmente. O perdão existe, mas
cada um tem de fazer para merecer. “A justiça a Deus pertence!”.
E lembrem-se, histórias são histórias, nada mais que histórias!
Ser Escoteiro!
Despe teu uniforme, interesseiro,
Pois não é nele que vive a Disciplina.
Nem por vesti-lo te fazes Escoteiro,
Como o exige nossa lúcida doutrina.
Que importa a Promessa que te ensina
A ser da nossa causa um Cavalheiro,
Sem a conquista da insígnia peregrina
Do caráter de um homem verdadeiro?
Escotismo é escola de Lealdade,
De Amor, de Ação e Inteligência,
Isenta de arrogância e veleidade.
Se não o compreendeste, então importa
Que o construas, primeiro, na consciência.
Cumpre a nossa Lei…
e depois volta!
Guido Mondin
Ministro e Chefe Escoteiro
O MISTERIOSO CASO DO CHEFE ESTRADA
Capitulo I
Quinta feira difícil. Duas maquinas de prensar quebraram. Fiquei até altas
horas da noite com o pessoal da manutenção. Trabalhamos sem cessar e lá pela
meia noite conseguimos fazê-las funcionar. Quando cheguei em casa, recebi um
recado da Vovó. O "Velho" tinha passado mal e estava internado na UTI de um
hospital próximo. Meu coração bateu forte. Uma tristeza invadiu meu coração. O
"Velho" era tudo para mim. Meu pai, meu irmão mais velho, meu “Guru”
escoteiro.
Não perdi um segundo. Fui imediatamente para o hospital. Uma bela
surpresa me esperava. Dezenas de escotistas lá estavam à procura de notícias
do "Velho". Entrei cumprimentando a todos e procurei a Vovó que estava com
sua filha e mais algumas amigas, todas do Movimento Escoteiro. Vovó me disse
que estava tudo bem com ele. Resolveu fumar de novo seu cachimbo e a fumaça
o fez perder o fôlego. Achou melhor trazê-lo e está na UTI somente para
observação e fazer inalação.
Fui até a o hall de entrada e avisei a todos que o "Velho" estava bem.
Gritos de “Urras”, “Anrê” e uma grande palma escoteira se fez ouvir. Todos se
abraçaram sorrindo. O "Velho" era muito querido. Eu me emocionei com
tamanha fraternidade e dedicação. Fiquei no hospital até de manhã. Deram alta
para o "Velho" e eu o levei para casa. No retorno ele com sua costumeira
hospitalidade e agradecimento, me olhou e disse com aquela maneira sua tão
peculiar – Achou que eu ia morrer hem? Enganou-se. Não vou morrer agora.
Você vai ter de esperar muito mais tempo. Devolva a coroa de flores que
comprou! – Sua festa fica para depois! É só o "Velho", ele tinha esse direito.
Liguei para a empresa e disse que ia chegar mais tarde. Trabalhei a noite
toda e passando a noite em claro no hospital, não tinha condições de trabalhar.
Precisava dormir um pouco. À noite quando voltei, fui logo ver como estava o
"Velho". Lá estava ele, em sua poltrona de vime favorita, a ler o livro "Crime e
Castigo" de Dostoiévski. Na sua vitrola antiga, ouvia Der Hoelle Rache, ária da
Rainha da Noite, da ópera A Flauta Mágica, e de 1º movimento, allegro,
da Pequena Serenata Noturna. O "Velho" sabia escolher. Wolfgang Amadeus
Mozart, nada mais que Joannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart
seu nome de batismo.
Ficamos ali por horas ouvindo a bela melodia de Mozart. Ele de olhos
semicerrados e eu no meu banquinho de madeira de três pés encostado a
parede. Adorava Mozart. Gostaria de ter nascido naquela época. Se pudesse iria
ficar eternamente em Salzburg na Áustria, e vê-lo interpretar suas mais de 600
obras. É reconfortante poder sentir a magia de tão grande compositor.
Sonhava na minha viagem impossível ao passado, quando o "Velho" falou
algum que não entendi. – Pois não "Velho", não entendi. Pode repetir? – Estava
aqui meditando e lembrando do Chefe Estrada, disse. Você não o conheceu.
Fizemos a Insígnia de Sênior juntos. No sexto dia, ele desapareceu. Sua tralha
estava lá na barraca. Parecia que não havia levado nada se realmente tivesse
partido. Interrompemos tudo para dar uma busca nas redondezas.
Durante toda a tarde o procuramos. À noite o Diretor do Curso foi até a
delegacia próxima fazer um boletim de ocorrência. O delegado sorriu e disse que
aguardássemos até o dia seguinte. E ele iria aparecer. Achou que o Chefe
Estrada era um mulherengo e conheceu alguma mulher. Era dar tempo ao tempo
e ele iria aparecer. Mas passou toda a manhã do dia seguinte e o Chefe Estrada
não apareceu. Ligaram para a telefonista de sua cidade (1952, poucos telefones)
e ela disse que o conhecia. Iria ver se ele estava lá.
- Já ia anoitecendo quando o Chefe Estrada chegou. Não disse nada.
Procurou o Diretor do Curso e se colocou a disposição para que fosse excluído
do curso já que saiu do campo sem avisar. Não quis explicar, mesmo sendo
inquirido. Tinha um semblante sério e compenetrado. O Diretor de Curso já o
conhecia de longa data. Mandou ele de volta a sua patrulha. Soube depois que
foi aprovado. Ninguém ficou sabendo o que ouve.
- Um dia, se não me falha a memória, encontrei o Chefe Estrada em um
acampamento internacional de patrulhas no Chile. Faz anos. Muitos. Ele estava
como dirigente do campo sênior. Sempre fomos muito íntimos é claro, a alegria
estava estampada em cada um de nos. Velhos escotistas se encontrando,
cumprimentando, dois chefes escoteiros amigos cuja fraternidade era ponto de
honra.
- Estava vivamente interessado no desfecho da historia, mas adentrou na sala
mais de seis escotistas que tinham vindo fazer uma visita ao "Velho". Duas
chefes de alcatéia do nosso Grupo e quatro escotistas de um grupo amigo.
Abraços, sorrisos em profusão. O "Velho" gostava de visitas. Disse depois que
iria ficar doente mais vezes. Ficamos ali eu o "Velho" e os chefes conversando
por horas e horas.
Diversos assuntos surgiram e um deles me chamou a atenção, pois era uma
pratica que estava vendo sempre nos sites de relacionamentos que participava.
Escotistas davam recados aos jovens sobre reuniões, acampamentos entre
outras atividades. Não concordava com isso, mas dizem que hoje em dia temos
que nos atualizar. Queria ver o que o "Velho" iria dizer. Os chefes conversavam
entre si, falando do que pensavam alguns concordando outros não.
O "Velho" só ouvia e nada dizia. Conhecia seu estilo. Estava deglutindo
palavra por palavra. Analisava o que ia dizer e eu sabia que não era nada de
bom. Ele não concordava nunca com o tal modernismo tão preconizado. De um
assunto ao outro. Agora conversavam sobre a participação de todas as sessões
na cerimônia de bandeira no inicio e fim de reuniões.
Eu mesmo tinha duvidas, achava que as sessões juntas na cerimônia não
seria benéfico, principalmente quando varias delas tivessem promessas e
entregas de distintivos de eficiência entre outros. O tempo despedido seria
enorme. O "Velho" não falava. Só prestava uma atenção canina a tudo que
dizíamos. Os chefes ficaram a vontade até a hora que a Vovó entrou com um
carrinho de guloseimas meu Velho conhecido e muito amado.
Uma pequena parada para degustar um delicioso bolo de baunilha com
recheio de pedaços de chocolate (derretido), pãezinhos de queijo ainda quentes
recém-saídos do forno, biscoitos de polvilho deliciosos, torradas crocantes na
manteiga, e o irresistível sonho açucarado junto com brevidades apetitosas. E
claro, um bule fumegante de café que eu sabia tinha sido feito em um fogão a
lenha, com coador de pano, e um chocolate quente de queimar a língua.
Todos se deliciaram no café da tarde. A Vovó com seus cabelos brancos,
olhos azuis e um semblante de anjo vindo do céu, estava ali a sorrir,
conversando com um e outro. Sempre prestativa e atenciosa. Eu a conhecia há
muitos anos. Admirava sua simplicidade e o amor que nutria pelo "Velho".
Nunca participou do movimento escoteiro na ativa, mas participava com o
coração. Deu em todas as horas o apoio que ele precisava. Um dia me contou o
que aprendeu com ele quando jovem. Fiquei embasbacado. Era uma grande
conhecedora de técnicas escoteiras. Podia sem sombra de dúvida ensinar a
todos que não conheciam essas técnicas.
A tarde ia terminando. Agora estávamos todos prestando atenção ao "Velho"
no que dizia e explicava. Com voz pausada, e algumas vezes demorando a
continuar no seu raciocínio, explicavam em linguagem simples as diversas
situações que antes tínhamos comentado. – Olhem meus amigos escotistas, a
evolução dos tempos é uma realidade. Não se pode fugir dela. Muitas coisas
acontecem e até temos dificuldades em acompanhar.
- Mas muitos ainda não “pegaram” e sentiram o que falam. Não sabem dos
resultados. Você vê nos meios de comunicação diversos professores,
pedagogos, psicólogos, todos orientando, falando como agir, como fazer etc. e
etc. Mas pergunto? E os resultados? O que dizem deu resultados? Olhem, no
nosso mundo de hoje o que vemos é uma desunião de jovens com adultos, cada
um tendo o seu direito, falando o que quer, reclamando de sua vida, tratam os
pais como estranhos e esses órgãos de comunicação, mostram situações
inusitadas, que até denigrem o termo caráter, lealdade, direitos entre muitos
outros.
- Poderia exemplificar aqui tantos e tantos exemplos do passado que deram
resultados comprovados, pois estamos aqui hoje vendo que deu certo. Mas não
é certo que devemos nos alimentar com falsas interpretações da modernidade.
Vejam bem, se pensarmos em um Grupo Escoteiro bem estruturado, fazendo um
bom escotismo dentro dos princípios idealizados por BP, sem alterar métodos e
programas a não ser pequenas adaptações aos dias de hoje, não precisa usar
tais expedientes. Isto é confessar que o Sistema de Patrulhas não existe para
eles.
O "Velho" respirava devagar, compassadamente ia desfiando seus
pensamentos e todos nós ali ouvíamos com atenção alguns acho que
concordando outros não. – Continuava o "Velho" – Se você tem uma boa
estrutura em seu Grupo, se sua tropa ou alcatéia tem bons programas semanais,
é preciso usar meios de comunicação para falar com eles os jovens? Claro que
não. Olhe outro dia vi em um site, um escotista avisando que estava encerrando
a data da inscrição para um evento regional. Falava da taxa a ser paga até dia tal.
Embaixo vi a resposta do jovem escoteiro – Chefe, consegui só uma pequena
quantia para terminar meu uniforme. Não tenho como pagar essa taxa, assim
não irei à atividade! Caramba! Que chefe é esse? Não conhece seus escoteiros?
O "Velho" estava comovido. Isso nunca teria acontecido com ele. Ou toda
sua tropa iria ou não ia ninguém. Por isso ele não gostava muito de tantas
atividades regionais e nacionais programadas para um só ano. Esqueceram que
as tropas precisam ter mais tempo para suas atividades. Eu sabia disso. – Ele
continuou – Eu gostaria mesmo de ver a educação que estão dando para seus
filhos e olhe a maioria desses pensadores ou pedagogos como queira, acredito
que nem filhos tem. Dizem cada coisa. Não sou um especialista para discutir A
ou B, as qualidades de suas teses, mas sempre digo e sempre insisto que todas
as teses tem de ser comprovadas. Basta ver o que acontece hoje, nada me
mostra que eles tem razão.
Eu fiquei ali pensando nas palavras do "Velho". Teria se fosse outro
escotista muitas inquisições, indagações, mas ali agora, meditava. O "Velho" de
novo colocou em sua vitrola antiga, seu LP com a musica de Mozart que entrava
melodicamente em nossos corações. Houve um silencio profundo. Todos
estavam materializados de olhos semicerrados na Sonata para teclado (piano) a
quatro mãos em D maior. Criação maravilhosa de Mozart!
Não consigo escrever poesia: não sou poeta. Não consigo dispor as palavras
com tal arte que elas reflitam as sombras e a luz, não sou pintor... Mas consigo
fazer tudo isso com a música...
Wolfgang Amadeus Mozart
Capitulo II
A noite chegou de mansinho. Alguns dos chefes se retiraram. Ficamos eu o
"Velho" e uma escotista de tropa escoteira. Não perdi tempo. Perguntei para o
"Velho" o que havia acontecido ao chefe Estrada. Afinal ele começou e me
deixou em suspense para saber sobre o misterioso caso. – O "Velho" não se fez
de rogado. Suspirou fundo, se ajeitou melhor em sua poltrona de vime, olhou
para o teto, e contou o pouco que sabia, pois o Chefe Estrada não era muito
palrador.
- Bem conforme dizia estava eu em uma Acampamento Internacional de
patrulhas no Chile. Depois de ledices e alegrias pelo encontro, fomos até a
cantina do campo, onde serviam cafés, doces e salgados. Bebidas somente
refrigerantes. Procuramos um local agradável, próximo a uma araucária gigante,
frondosa, e ali conversamos por longo tempo. A principio o Chefe Estrada não
quis se abrir comigo. Eu que nunca esperava uma situação inusitada dele de
abandonar um curso por mais de vinte e quatro horas, sabia que ele teria um
motivo muito forte para isso.
- Me contou que durante vários anos andou por vários estados brasileiros,
pois fora admitido em uma multinacional alemã, e seu trabalho de campo
(engenheiro de minas) requeria viagens em locais inóspitos, e passava a maior
parte do seu tempo em minas de extração de minérios. Narrou-me um fato
pitoresco, quando foi sequestrado por uma tribo de índios Caiapós, próximo à
fronteira do Pará com Mato Grosso, na região do rio Xingu.
- Dizia o Chefe Estrada que por motivos profissionais estava fazendo uma
pesquisa de um veio muito grande de bauxita, pois sua empresa estava
interessada em explorar e até construir uma fábrica de alumínio naquele estado.
Diariamente faziam pesquisa do solo (eram cinco três deles nativos da região).
Ele se sentia bem ali, sempre gostava da vida ao ar livre. O escotismo o ensinou
muitas coisas.
- No oitavo dia à tarde, o sol se pondo e de súbito apareceram dezenas de
índios Caiapós. A principio foram cordiais e afáveis. Depois exigiram que os
acompanhássemos. Eram muitos. Não havia o que discutir. Chegamos à
comunidade deles, um aldeia com uma praça central e ao redor casas de cada
família. O “Benadióro”, chefe de turma no entender deles me levou até ao
cacique. Magro, com o corpo todo pintado, me recebeu com um sorriso. Disse
que ficaria ali até o homem branco da Estrada de Ferro viesse conversar com
ele.
- Tentei explicar que nada tinha a ver com a empresa em questão, mas ele
libertou os demais e eu fiquei ali. Você talvez não saiba, mas sou solteiro e meus
familiares moram na Europa. Foram oito meses de um lindo cativeiro, onde vivi e
aprendi memoráveis aventuras, de caça, de pesca e grandes jornadas na selva.
E olhe o que mais adorava era fazer pioneiras. Tinha tempo. E muito tempo.
Construí um ninho de águia em uma seringueira, que tinha mais de 20 metros de
altura. Aproveitei uma queda d’água próxima alta e em arvores enormes com
bambus gigantes fiz um elevador movido à água! Foi maravilhoso. Claro tinha
comigo vários assistentes. Os jovens da aldeia eram companhias constantes.
Meus amigos. Cheguei mesmo a organizá-los em patrulhas, mas não deu certo.
Eram deliciosos moleques travessos, só viviam sorrindo e brincando.
- Eles aplicavam aos jovens na puberdade uma interessante prova de
inteligência e habilidade, que posteriormente adaptei para a Tropa Sênior. Um
galho elevado, duas árvores próximas em perpendicular, (Perpendicular é
quando temos duas retas com um ponto comum formando um angulo de 90
graus) duas cordas (lá se usava cipó) amarradas no galho uma distante da outra
por um metro, cada competidor ficava em uma arvore próxima de frente para a
outra com sua corda. Ao sinal penduravam na corda e aproximavam-se do outro
em grande velocidade e o outro competidor fazia mesmo. Ao se encontrarem
tentariam fazer que um deles perdesse o equilíbrio e cair ao chão. Para os
seniores adaptei uma bexiga amarrada na cintura de cada um bem cheia com
água para ser estourada. Para isso cada um levava uma vara de um metro
consigo. Claro, cada competidor só tinha direito a uma vez. Depois o próximo da
patrulha. Grande prova. Adorei participar, mas perdi – caí de maduro disse o
Chefe Estrada.
- O governo mandou vários representantes da empresa para negociarem com
os índios. Eu não me preocupava. Gostava dali, vivia com um povo simples, sem
ódio, sem rancor, sem inveja, ninguém queria ser superior, a amizade era ponto
de honra e as leis, todas muito simples e obedecidas com carinho. Olhe, quando
chegaram a um acordo, preferi continuar ali. Pedi demissão da empresa. O
cacique Babitonga era uma grande pessoa. Disse que eu era bem vindo. Até fez
meu casamento com a jovem índia Guaraci. Já éramos par constante. Eu e ela
ficamos juntos por todo esse tempo que ali permaneci.
- Mas dizem que tudo que é bom dura pouco. Uma manhã de setembro fui
informado que minha mãe estava nas ultimas. Esse telegrama chegou as minhas
mãos na aldeia um mês depois. Despedi de todos, Guaraci não quis ir comigo.
Disse a ela que seria difícil minha volta. Mesmo assim preferiu continuar entre
os seus. Disse-me que os homens brancos não se conhecem, são estranhos.
Concordei com ela. Ainda bem que não tivemos filhos.
- Minha mãe já havia falecido quando consegui chegar a Iworth, em Cheshire
na Inglaterra. Cumpri as cerimônias de praxe, pois ela era de família simples e
não havia nenhuma herança a não ser sua casinha que vendi. Retornei ao Brasil
poucos meses depois, após passar uns dias com meus amigos Makuxis e
Wapixana em Kwazulu, na África do Sul. O chefe Estrada se levantou e se
despediu. O que queria saber ele não me contou naquele dia. Passava de oito da
noite e ele tinha de ver como estava seu Subcampo. Mesmo com cinco
assistentes ele era o responsável.
- Pela manhã, quando estava fazendo o desjejum o vi sentado em uma mesa
sozinho. Aproximei-me e de chofre perguntei o que queria saber: - Afinal meu
amigo, o que houve no Curso da Insígnia que você desapareceu sem deixar
rastros? – Ele, calmo, pensativo, me convidou a sentar. Tomamos o café juntos
e nesse ínterim muitos escotistas amigos de diversos países vieram
cumprimentar a mim e ao Chefe Estrada. Éramos muito conhecidos.
- Todos se foram e eu fiquei ali olhando para o Chefe Estrada e ele se fazendo
de desentendido. Agulhei-o novamente. – Vamos homem, diga! Afinal não deve
ter sido tão importante assim. – Olhe meu amigo, passei poucas e boas nessa
vida, mas você sabe mentir não faz parte do meu feitio. Foi uma aventura tão
inverossímil, que preferi mantê-la no anonimato. Mas vou contar para você. Se
mostrar incredulidade, paro.
- Não disse nada. Continue falei. – Olhei para ele, ele suspirou e começou
uma história incrível. Ouçam-na – Logo após terminar a sessão das duas, pedi
ao dirigente para ir ao banheiro. Fui naquele lá no inicio do campo. Ao
atravessar a trilha, vi um brilho intenso. Perdi o sentido. Acordei em uma cama
enorme, Ao meu redor, pessoas estranhas, escuras, parecendo formigas
gigantes com duas pernas. – Caramba! Pensei. O que tinha acontecido? Onde
estava?
- Respirei fundo. Seria verdade? – Chefe Estrada me olhava, querendo parar
de narrar, mas meus olhos, minha atenção não deixava nenhuma dúvida.
Começou termina. – Olhe meu amigo dizia, eu tinha sido abduzido. Você sabe,
estava em uma grande nave, onde? Não sabia. Em algum lugar do espaço. Os
Et’s me olhavam e sentia que tinha agulhas em todo corpo. Minha mente parecia
estar exposta. Ouvia-os falando e não entendia, eles pareciam saber o que eu
pensava.
- Acredite, eu olhava em volta, paredes circulares e o teto também com
iluminação indireta. Uma luz estranha. Eles telepaticamente falavam comigo,
para não preocupar, não iriam me fazer mal. Não demorou muito, me levantei,
me sentia forte, eles não se opuseram. Em sua maneira, me contavam de onde
eram. Um planeta distante mais de vinte milhões de anos luz, mas que eles
cruzavam o espaço em velocidades que a mente não pode medir.
- Olhava para o chefe Estrada e não sorria. Poderia ser verdade. – Ele
continuou – Me disseram que ficamos mais de um mês no espaço e quando
voltasse a terra, seriam menos de vinte quatro horas. Levaram-me até um local
envidraçado. Um espetáculo. A nave parecia estar parada e milhões de estrelas
passavam como um raio, uma profusão de luzes brilhantes e cintilantes, em um
panorama incrível. Ver tudo aquilo compensava todas minhas pequenas dores
que ainda sentia pelo corpo.
- Me levaram depois a um salão, sem móveis, se despediram que não me
preocupasse que iriam apagar tudo aquilo da memória e eu não ia lembrar-me de
nada. Pedi que não fizessem aquilo. Não podia esquecer. Eles na tinham esse
direito. Entreolharam-se e balançaram a cabeça concordando. Minha mente ficou
nevoada. Desmaiei. Acordei no mesmo local. Daí para frente você sabe o fim da
historia. Não podia contar a ninguém. Tinha prometido isso a eles.
- A historia do chefe Estrada foi emblemática. Tinha ouvido historias assim,
mas não acreditava. Agora não. Ele era um escoteiro. Desde criança. E o
escoteiro tem uma só palavra e sua honra vale mais que sua própria vida. Ele se
calou. – O "Velho" não falou mais nada. Fiquei ali parado olhando para ele, e vi
dentro dos seus olhos lembranças do passado. – Ele abruptamente me olhou e
disse – Olhe, nunca mais vi o Chefe Estrada. Não sei onde anda, se está vivo, ou
se voltou para sua linda Guaraci junto aos Caiapós. Se ele voltou deve estar lá
se divertindo, fazendo o seu escotismo junto a índios amigos. Olhe, eu o invejo.
Hoje estou aqui, sem respirar o ar puro da mata, sem ver a força de um rio
caudaloso, sem poder ver o sol nascer atrás de uma montanha. Daria minha vida
para mudar tudo isso.
- O silencio reinou. Eram mais de onze da noite. Amanhã era outro dia. Ia me
despedir do "Velho", mas ele estava com os olhos semicerrados, ouvindo
Mozart. Symphony No. 32 em Sol Maior. Sai de mansinho sem fazer barulho. A
Vovó estava na varanda, em sua cadeira de balanço a tricotar. Levantou-se,
disse até logo e me fui, sorrindo pela rua deserta.
Gosto do "Velho" tenho por ele grande apreço. Meu pai que Deus o tenha, iria
se orgulhar também. Estava caminhando pela rua deserta, pensado no "Velho"
nos seus conhecimentos escoteiros e nem olhei para os lados ao cruzar a
esquina de minha casa. Uma forte buzina se fez ouvir. Saltei para o lado e um
automóvel passou em disparada. Ufa! Quase dessa vez. Os dias irão passar e eu
espero sempre o amanhã. Adoro estar com ele. Não só pelos seus
conhecimentos escoteiros, mas pela grande pessoa que é. Valeu a pena
conhecê-lo. Sinto-me realizado pela sua amizade. Eu realmente tenho um grande
amor por esse "Velho" Escoteiro.
Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que
sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando... Porque, embora
quem quase morre esteja vivo, quem quase vive, já morreu...
Luís Fernando Veríssimo
O "Velho" Escoteiro e o segredo da ilha misteriosa
AS LINHAS DA PRAIA
“A lenda insiste em dizer que se alguém repetir 6.000 vezes a frase ‘huka fava
dreimoid Kaká iara” as linhas do mar da praia irão lhe levar a um tesouro
escondido. Só uma pessoa conseguiu fazer isto. “Mas está desaparecida até
hoje”
Foram quinze dias maravilhosos. Para dizer a verdade nunca
poderia imaginar o "Velho" se esbaldando e tentando correr como uma “galinha
choca” pela praia. O meu amigo o "Velho" estava em pele e osso. Mas ainda
ostentava uma saúde que muitas vezes duvidamos se ele resistiria. Vovó e
minha esposa se “aninhavam” em baixo de uma castanheira frondosa. Eu não
tirava o olho do "Velho". Afinal, 86 anos não e brincadeira. Não deu para
perguntar ao seu médico o que ele podia fazer ali. Mas ele teimoso, fazia sempre
o que não podia fazer.
Tudo começou quando meu Chefe de Departamento da fábrica onde
trabalhava me perguntou se não queria ficar em sua casa de praia, no litoral sul.
– Olhe meu amigo, não vou lá esse ano. Eu e a família resolvemos ir a Disney e a
casa ficará fechada. Porque não vai lá descansar nas suas férias? E para
completar disse – Leve quem você quiser. Tem condições de alojar até dez
pessoas. Uma oferta tentadora. Falei com minha esposa. Ela topou.
No domingo fomos à casa do "Velho". Como sempre saborear o
almoço delicioso da Vovó. Quando almoçávamos contei que pretendíamos ficar
uma temporada na praia. Notei os olhos do "Velho". Brilhavam. Olhei para minha
esposa e ela mesma fez o convite. Porque não vão conosco? A casa é grande e
cabe todo mundo. Um sorriso nos lábios do "Velho" mostrava sua satisfação,
mas como sempre tinha de se mostrar maniento – Melhor não. Vamos
atrapalhar. Afinal você vai ficar sozinho com sua esposa.
Depois do almoço ficou tudo combinado. Quem leva o que, hora da saída, se
precisava de uniforme, o de campo ou social. – "Velho"! Pelo amor de Deus.
Vamos para praia. – Nunca se sabe meu amigo, podem aparecer alguns
escoteiros e vamos nos apresentar como? De sunguinha? – Sem resposta ao
"Velho". Sabia que ele gostava de ficar resmungando, mas sabia também que
estava adorando o programa. Acho que ele precisava disso. Sempre me disse
sua queda pelo mar.
Na quarta partimos. Tralha pequena. Própria de escoteiros. Uma
viagem ótima. O "Velho" cantando. Uma voz de taquara rachada, mas ele estava
alegre e muito. A chegada ele nem se deu o desplante de ajudar a descarregar.
Tirou os sapatos e foi de encontro ao mar. Ficou ali por minutos a olhar o
horizonte, as gaivotas e o som imperdível do mar aos ouvidos de um mateiro. Os
primeiros dias foram de descobertas. Nem sempre conhecemos as pessoas.
Podemos conviver por anos, mas só quando estamos juntos é que podemos
analisar com precisão o que somos. O "Velho" e a Vovó eram companhias das
melhores.
O "Velho" ficava o dia inteiro na praia. A casa ficava a menos de
cem metros e se não ficasse de olho ele iria sozinho. De manhã tomava café que
a Vovó fazia, pegava a cadeira de praia e lá ia cantando o Rataplã. Nos primeiros
dias falamos pouco de escotismo. Contamos “causos” lembranças escondidas
na mente e que estavam prontas para serem narradas aos amigos do peito. Os
dias foram passando. De manhã à noite, o "Velho" não saia da praia. Eu também
gostava. Íamos lado a lado pisando na areia molhada e andávamos quilômetros.
Descobri um novo "Velho". Mais novo. Mais atual, e não aquele doente do
passado.
Uma tarde, o sol se pondo, o "Velho" olhando para o mar disse
baixinho – Lembra-se do Justin? Aquele americano que juntos fomos ao vale da
Morte e o Francês Pierre que foi mordido por uma cobra Píton? – Balancei a
cabeça concordando. Vendo este “marzão” me lembrei de quando fizemos uma
bela de uma aventura na ilha de Hornos, ou melhor, rodeando o Cabo Horn, na
terra do fogo. Um dia ele apareceu no Grupo Escoteiro. Claro, foi um susto.
Tinha mais de oito anos que não o via. Eu já tinha casado com a Vovó e minha
filha recém-nascida. Trabalhava muito em meu escritório de engenharia. Não
tinha mais tempo para essas aventuras que amava e muito.
Justin me abraçou efusivamente. – Meu amigo, você aqui no Brasil?
Foi uma alegria. Todos no grupo se espantaram. Apresentei Justin. Ele não
falava português. Arranhou um espanhol e rimos muito. À noite fomos a um
barzinho e ficamos lá por muito tempo lembrando nossas aventuras. Tinha
convidados vários chefes, mas somente o Rael aceitou ir. Os demais se
desculparam. Já tinham compromissos. Rael era chefe de tropa. Solteiro ainda,
mas um perfeito cavalheiro. Professor de ciências em um colégio na cidade.
Escoteiro desde menino. Um conhecimento enorme de tudo que se pode pensar
em escotismo. Rael se encantou com as histórias que contávamos.
Justin não se fez de rogado. Olhe, vim com meu pai. Veio a serviço.
Como sabem é diplomata e deve ficar aqui uns meses. Eu não. Pretendo voltar
logo. Abri um escritório de acessória em viagens aventureiras e não posso ficar
muito tempo. Sabendo que poderia encontrá-lo não perdi o convite de meu pai.
Meu motivo principal meu amigo é que estou planejando uma atividade de
arromba. Acho que já devem ter lido sobre a lenda da embarcação-fantasma
Holandês Voador. Não? Bem vou resumir para não tomar muito tempo.
A lenda da embarcação-fantasma Holandês Voador é muito
antiga e temida como sinal de falta de sorte e possui diversas versões. A mais
corrente é do século XVII e narra que o capitão do navio se chamava Bernard
Fokke, o qual, em certa ocasião, teria insistido a despeito dos protestos de sua
tripulação, em atravessar o conhecido Estreito de Magalhães, na região do Cabo
Horn, que vem a ser o ponto extremo sul do continente americano.
Ora, a região, desde sua primeira travessia, realizada pelo
navegador português Fernão de Magalhães, é famosa por seu clima instável e
suas geleiras, os quais tornam a navegação no local extremamente perigosa.
Ainda assim, Fokke conduziu seu navio pelo estreito, com suas funestas
conseqüências, das quais ele teria escapado, ao que parece, fazendo um pacto
com o Diabo, em uma aposta em um jogo de dados que o capitão venceu,
utilizando dados viciados.
Desde então, o navio e seu capitão teriam sido amaldiçoados,
condenados a navegar perpetuamente e causando o naufrágio de outras
embarcações que porventura o avistassem, colocando-as dentro de garrafas,
segundo a lenda.
O navio foi visto pela última vez em 1632 no Triângulo das
Bermudas comandado pelo seu capitão fantasma Amos Dutchman. O marujo
disse que o capitão tinha a aparência de um rosto de peixe num corpo de
homem, assim como seus tripulantes. Logo após contar esse relato, o
navegador morreu. Uns dizem que foi para o reino dos mortos; outros, que hoje
navega com Dutchman no Holandês.
Não sei se sabem, mas o Cabo Horn é o ponto mais ao sul
da América do Sul e pertence ao Chile, suas coordenadas são 55° 59′ 00″ S, 67°
16′ 00″ O, no final da Terra do Fogo, na ilha de Hornos. Ele é ainda o limite norte
do Estreito de Drake, entre a América e a Antártida. É também o divisor dos
oceanos Pacífico e Atlântico. Os outros pontos extremos da América do Sul são:
ao norte a Punta Gallinas, na Colômbia, ao leste a Ponta do Seixas, no Brasil, e a
oeste aPunta Pariñas, no Peru.
O clima na região geralmente é muito frio, com temperaturas médias de 5 °C. Os
ventos são de 30 km/h em média, com picos comuns de 100 km/h. As condições
locais são muito rudes, principalmente no inverno.
Tenho lido muito sobre isso. Até do ultimo navio, um galeão
inglês, que dizem abarrotados de prata afundou próximo ao Cabo Horn em 1820,
bem junto à ilha de Hornos. Não precisam rir. Não tem tesouro nenhum, eu sei
disso. Mas dizem que é o local mais inóspito da terra. Poucos conseguem
sobreviver lá. Mas muitos que lá vão, juram de “Pé junto” ter visto a
embarcação-fantasma navegando sem rumo, com o Capitão Bernard Fokke ao
leme, dando gargalhadas.
Claro, eu sei que é lenda. Mas adoro uma lenda. Poucos
conseguiram ficar mais de cinco dias na ilha. Um ninho de cobras venenosas,
escorpiões amarelos e a noite a temperatura desce até os dez graus negativos
na época de calor. E se conseguirmos ir, fazer o caminho de Drake, ficar cinco
dias, seremos os primeiros do movimento escoteiro que conseguiram realizar
essa bela aventura. Justin falava entusiasmado. Vi que Rael tinha os olhos
brilhantes. Sempre quando escoteiro fazia mil e uma estripulias com sua
patrulha.
Lembro que uma vez a mãe dele procurou-me perguntando onde
eles tinham ido acampar. Não sabia. Não me disseram nada. Nunca isso
aconteceu. Estava me lembrando de um fato. Sua patrulha tinha pedido para
fazer uma jornada de bicicleta até Monte Alegre. Não disse não e nem sim.
Vamos ver na Corte de Honra e ver o que ela diz. A corte foi contra. Achei que
nossos monitores foram duros e não deviam ter vetado. Notei em Rael uma
decepção. Agora tinha certeza que ele e a patrulha já deviam estar em Monte
Alegre.
Não disse nada. Falei com sua mãe que não se preocupasse.
Estavam em Monte Alegre. Eu acreditava que no domingo no mais tardar a
noitinha eles estariam de volta. Dito e feito. Chegaram rindo da aventura. Eu os
esperava na sede. Quando me viram um enorme susto. Conversamos muito. A
patrulha ficou seis meses suspensa para atividades sem chefia. Acho que
aprenderam a lição.
Notei que os olhos do "Velho" estavam se fechando. Ainda era
cedo. Menos de meia noite. Mas “cutuquei” o "Velho" e o convidei para irmos
dormir. Ele nem disse nada, saiu tropeçando e sumiu no seu quarto fechando a
porta devagar. Minha esposa já tinha se recolhido. Fui para a varanda. Uma bela
vista do mar. Sem lua. Mas as ondas batendo na praia me davam uma sensação
de alegria e calma. Também adorava o mar. Pensava comigo que quando me
aposentasse iria morar em uma cidade beira mar.
Por entre as frias brumas de agosto,
Apareces carregando tua carga funesta!
Imponente!...Em silêncio... Tão morto!
Pelos mares - à deriva, navegas...
Acorrentados! Seguem meus sonhos contigo,
Encerrados lá no fundo do porão!
E riem como loucos um desvairado riso,
E perdidos pelas noites vão!
Estás condenado pelos mares a vagar!
E nas noites sombrias, sem estrelas!...Tão frias!
Navegas à deriva, sem nunca parar!
O bramir da tempestade meus gemidos sepulta!
E enquanto as ondas se elevam com fúria!
Navegas perdido, nas minhas loucuras!
Capitulo II
O dia amanheceu cinzento. Mesmo assim o mormaço nos trazia uma
sensação gostosa para dar nossa caminhada nas areias brancas do mar. Poucas
pessoas àquela hora. Também nas outras horas, pois não eram férias escolares
e poucos se arriscavam a passar uma temporada no litoral. Antes das onze da
manhã, a chuva fina começou a cair. Voltamos para o chalé. Vovó e minha
esposa estavam sentadas na varanda, ouvindo musicas que o "Velho" ouvia,
mas não gostava. Make Me A Friend, uma coletânea de musicas cowtry que eu
gostava muito, mas o "Velho" não.
Interessante que minha esposa não tinha muitas amigas. Quase oito
anos de casado e conheci poucas. Em seu trabalho dizia que lá tem colegas.
Amigos é outra coisa. Ela e a Vovó se deram bem desde o primeiro dia. A Vovó
acho eu, se dava bem com todos. Uma simpatia e uma maneira tão educada para
conversar que não tinha quem não ficasse seu amigo na hora. As duas ficavam
horas e horas conversando. Uma com mais de setenta anos. A outra com menos
de trinta.
Eu e o "Velho" pegamos duas cadeiras de balanço, gostosas por
sinal e também ficamos ali na varanda vendo a chuva miúda caindo no mar. Ao
longe o tempo escuro pronunciava um dia inteiro assim. Tudo bem, não
incomodávamos com isso. Ainda ficaríamos oito dias descansando. O "Velho"
fingiu que dormia, mas a cadeira de balanço ia para frente e para trás.
Interessante. A vida nos reserva surpresas que nunca imaginaríamos. Há dez
anos, nem sabia o que era escotismo, e nem conhecia o "Velho". Dou risadas até
hoje da primeira vez. Ele, sempre ele com seu estilo inconfundível que me
conquistou. Também me colocou no escotismo, uma causa que abracei com
orgulho.
O "Velho" abriu o olho e sorriu. E aí? Disse – quer ou não quer saber
o final da minha aventura na ilha misteriosa? – também sorri. Claro "Velho".
Você sabe que estou “faminto” de suas histórias. Vais continuar? – O "Velho"
sorriu. Sabe disse – Saudades de uma boa cachimbada. Sempre o que é bom
nos privam. Dizem que é para o nosso bem. Que bem? Quero cachimbar e não
posso e é para o meu bem? Não disse nada. Tudo que devia ser dito já foi há
tempos não só por mim como pelo seu medico e a Vovó.
Para lhe dizer a verdade, eu sabia que iria com Justin. – começou o
"Velho" a sua narrativa. Justin encerrou dizendo que não ficaria barato. O preço
devido ao aluguel de um pequeno barco que precisaríamos por seis dias e
apetrechos necessários para uma viagem dessas iria ter um gasto enorme, mas
que poderíamos economizar em outras. Justin disse que tinha experiência em
navegação. Seu pai tinha um pequeno barco e ele cruzava todo litoral americano
há anos. Se tudo desse certo nos encontraríamos no Chile, em Punta Arenas em
23 de setembro do próximo ano. Se eu pudesse confirmar até julho seria bom.
Pierre o Escoteiro francês já tinha confirmado. Caso eu fosse, precisavam
arrumar mais um. Quatro seriam o numero ideal para dividir as despesas.
Justin partiu na semana seguinte. Fizemos ótimos programas e fiz
questão de ir com ele até o Pico do Itatiaia. Fomos de carro até o museu e de lá a
pé até o pico. Mais de quatro horas de subida, mas uma vista maravilhosa. Rael
estava conosco. Notei que ele sonhava com a viagem. Fomos de uniforme e
Justin estava com o seu. Um orgulhoso Boy Scout of América. Dormimos lá
aquela noite. Pela manhã de domingo regressamos. Rael me confessou que
queria ir. Ele faria tudo e o mais difícil não seria o valor a ser gasto. Ele tinha
umas economias (calculamos que sair do Brasil até o Chile, pagar a taxa do
barco e outras despesas, pelo menos uns cinco mil dólares para cada um).
No mês seguinte Rael me disse que iria. Afinal seria a aventura de sua
vida. Não podia perder. Conversei com a Vovó longamente. Ela nunca colocou
empecilho em nada do que fiz. Sempre me incentivou. Vá meu "Velho". Você
sabe que eu não sirvo para isso, mas é sua vida. Viva como ela deve ser vivida
para você não se arrepender depois. Tive que fechar meu escritório. Só tinha
uma moça como estagiaria e muito nova não daria conta do riscado. Coloquei
uma placa na porta – “Escoteiro em viagem pelo mundo” volto em quinze dias.
Meus clientes já me conheciam.
Partimos eu e Rael no dia 22 de setembro. Chegamos a Punta Arenas
a noite. Eu e Justin já havíamos combinado o hotel. Ele estava lá com Pierre há
uma semana. Ficamos até altas horas da noite combinando tudo. Ele já havia
alugado um pequeno barco. Bem não tão pequeno. Uns 18 pés. Melhor uns seis
metros por dois e meio. Uma cabine para três. Uma pequena cozinha. Como
tinha experiência e alimentação de campo, em mesmo fiz uma lista e comprei
tudo. Acondicionamos tudo no barco. Pierre e Rael ficaram amigos logo. Um
sempre ajudando o outro.
Partimos à tarde do dia 23 de setembro. Um lindo dia. Um sol
vermelho uma temperatura por volta de dezoito graus. Justin disse que traçou
um itinerário aonde iríamos primeiro a Ushuaia, Canal de Beagle, Estreito de
Magalhães e finalmente o Cabo Horn. Pelos seus cálculos chegaríamos em dois
dias. Foram dias maravilhosos onde passamos por geleiras inimagináveis.
Lindas. Não ficávamos próximo à costa.
No dia seguinte finalmente chegamos ao Cabo Horn. Tivemos sorte
com o mar que não estava revolto como é comum. Mas o clima não. Uma chuva
fria e torrencial que alem dos ventos fortes nos obrigou a ficar a distancia por
mais um dia ancorados. Dizem que lá por estar situado no estreito de Drake na
Terra do Fogo, o Cabo Horn é o ponto mais austral do mundo. Justin era um
excelente navegador. Em hora nenhuma nos colocou em perigo. Para dizer a
verdade formamos uma patrulha ideal. Todos se ajudando e descansando em
escalas de seis horas.
No terceiro dia a chuva diminuiu e o vento não passava de quarenta
quilômetros por hora. Isso nos garantiria um desembarque perfeito.
Contornamos a ilhar e atrás de uns rochedos dava para jogar ancora e com um
barquinho pequeno chegar a terra. Pierre nos contou que quando o vento passa
de cento e vinte quilômetros hora a adrenalina de algum navegador de outro
século que experimentou passar por lá, chacoalha-se tudo, seu estômago
acompanha o movimento e pouco resistem.
Hoje eu sei que no Monumento Cabo Horn, tem uma placa de metal
com o formato de um albatroz, construído em 1992, uma homenagem à memória
de muitos homens que desbravaram a região e morreram lutando contra a forte
correnteza é uma certeza de uma viagem feliz e perfeita. Agora tem um lance de
escadas o que não tivemos na época. Quando o vento forte vindo da Patagônia
sopra, é difícil manter o equilíbrio. Ficamos perplexos com a paisagem. Bela e
exuberante. Era uma sensação magnífica. A de desbravar uma das extremidades
mais almejadas do mundo.
Nosso plano era desbravar a ilha. Ficar ali por cinco dias. Dormir
sempre no barco. Justin conseguiu manobrar o barco bem escondido, de modo
que barcos ou navios que passassem não nos avistariam. Assim poderíamos
deixar o barco bem ancorado e explorar a ilha a vontade. Cada um imagina o que
pode ser considerado como o fim do mundo. Pensa-se um lugar isolado, cenário
inóspito, horizonte vazio, e agora eu não via assim. Sabia que era o ponto de
encontro entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Nada a ver com a lenda de que
era o último pedaço de terra habitado no extremo sul antes de se chegara
antártica.
Com a construção do canal do Panamá, que se iniciou em 1880 e só
terminou em 1914 a rota dos navios se alteraram. Antes a rota alternativa era
contornar o Cabo Horn. Agora poucas embarcações passavam por ali. Com seus
81 quilômetros o canal do Panamá era perfeito para os encontros entre o
Pacífico e o Atlântico. Durante três dias passávamos o dia em terra voltando à
tarde para o nosso barco. Só um dia avistamos um barco turístico que passou a
mais de dez quilômetros da ilha.
Cada dia um espetáculo a parte. A dança dos golfinhos, dos tubarões
e de uma enorme baleia azul que se deliciou a dar duas voltas na ilha. A
vegetação era rasteira e para dizer a verdade só vimos uma pequena cobra, que
tentei identificar, mas a duvida se manteve. Poderia ser um pequeno coral, mas
sabia que as corais eram sempre enganadoras. No Brasil a chamamos de falsas
corais. Passamos ao largo. Não pretendíamos matar nenhuma. Estávamos em
seu habitat. Ela tinha todo o direito na ilha. Os pássaros eram outro espetáculo a
parte.
No quarto dia acabou nossa tranquilidade. Um barco de uns cem pés
aportou na ponta da ilha. A uns dois quilômetros onde estava nosso barco.
Ficou ali toda a manhã. Com o binóculo militar do Pierre vimos muitos homens
armados no convés. Às duas da tarde em um pequeno escaler de três bancadas
percorreram a distancia do barco até a ilha. Aportaram em outra extremidade.
Vimos que varias caixas foram descarregadas. Não vimos onde as levaram.
Fizeram bem umas oito viagens. Todas carregadas com as caixas.
Pararam a noite e pela manhã continuaram. Para dizer a verdade
acredito que mais de sessenta caixas. Por fim partiram. Na noite anterior
resolvemos dormir na praia. Sobre a areia. Um frio de rachar, mas achamos que
se fossemos para nosso barco poderíamos ser vistos. Ainda bem que a
temperatura não baixou os seis graus. Achei que não ia aguentar e pela manhã
quando o sol apareceu rimos. Quando eles se foram rimos mais. Rael achou que
devíamos saber que caixas eram aquelas. Dólares? Ouro? O que seria?
Custamos a encontrar uma pequena abertura na encosta sul da ilha.
Pequena mesmo. Bem escondida. Se não fossemos escoteiros e tivéssemos
bons conhecimentos de pistas jamais encontraríamos. Rael era bamba.
Pegadas, folhas amassadas, enfim uma infinidade de pistas que só ele mesmo
para descobrir. Mais de cem degraus em pedra bruta nos levou a uma gruta
enorme. Um pequeno riacho passava de norte para sul. Nem sinal das caixas.
Procuramos por hora. Já estava desistindo quando Pierre descobriu uma
pequena pedra que levava a outra abertura.
Lá estavam as caixas. Tinha mais. Não eram somente as que eles
trouxeram nestes dois dias. Fiquei com medo de abrir. Justin não. Ele e Rael
abriram uma. Uma enorme surpresa. Não eram dólares nem ouro. Armas. Uma
enorme quantidade de armas que nunca tínhamos visto. Algumas de aspectos
tão sinistros que daria para imaginar um tiro com ela. Olhei para Pierre, olhamos
uns aos outros. Saímos Dalí logo. Estávamos mexendo com fogo. Correndo um
grande perigo. Saímos da ilha, pegamos nosso barco e partimos. Era para ficar
mais dois dias. Abreviamos. Chegamos a Punta Arenas dois dias depois. Uma
forte tormenta nos pegou no caminho. Se não fosse Justin acho que teríamos
soçobrado.
Nem bem chegamos Justin telefonou ao seu pai. Ele mandou que
nos dirigíssemos a Santiago do Chile e procurássemos a embaixada americana.
Eles já nos esperavam. Ficamos horas explicando. Pierre e Rael eram bons em
mapas e croquis. Uma unidade da marinha americana partiu para a ilha. Não
fomos. Eu e Rael voltamos para casa desta vez a bordo de um jato da Força
Aérea Americana. Despedi de Justin, de Pierre. Lagrimas nos olhos. Mais uma
grande aventura.
Dois meses depois, no Grupo Escoteiro recebemos a visita de um
cônsul americano acompanhado de autoridades brasileiras. Mais precisamente
um brigadeiro da FAB. Na frente de todo o grupo, deram a mim e ao Rael uma
medalha de agradecimento. Junto uma águia feita de prata, com a bandeira
americana. Bem éramos brasileiros, mas se estavam nos agradecendo tudo
bem. Justin nos telefonou um mês depois. Uma grande quadrilha de
contrabandistas de armas. Faziam parte até um general e cincos oficiais do
exército americano. A quadrilha era chefiada por um europeu.
Disse também que as armas eram para um país africano e se fossem
entregues uma enorme carnificina iria acontecer. Seu pai não quis dar
conhecimento à imprensa de quem tinha descoberto tudo. Para nos
salvaguardar. Poderíamos ter represálias ou vingança. Não se sabe. Pela sua
voz vi que havia gostado da aventura. Ele até deu um nome a aventura que
fizemos O Segredo da Ilha Misteriosa. Não avistamos o Capitão Bernard Fokke
ao leme de seu navio fantasma. Nem descobrimos nenhum tesouro, mas
tínhamos encontrado a ilha mais misteriosa e linda que já tinha visto.
Hoje sei que turistas estão a visitar a ilha diversas vezes ao ano.
Tudo foi melhorado. Navio de grande porte de volta da Antártida passam por lá.
Contam histórias aos passageiros que se assustam, mas ninguém acredita.
Gostaria de ter visto a embarcação fantasma Holandês voador. Não vi. Mas vi
golfinhos, tubarões, balelas azuis, milhares de peixes nos arrecifes, um mar
maravilhoso, grandes geleiras formando incríveis icebergs. Eu sabia que tudo
era uma lenda, mas que lenda maravilhosa.
Passaram-se anos até que vi Justin de novo. Em um acampamento
que fiz com uma patrulha de monitores do grupo em Papricantis Neandertalis.
Uma pequena cidadela entre o Chile e o Brasil. Pesquisadores, cientistas,
parapsicólogos e curiosos dizem que lá foram encontrados resquícios históricos
jamais imaginados. Ninguém dizia que resquícios eram esses. Mas a patrulha
sênior quando contei logo gritaram – Vamos lá! Era sempre assim. Como eu
também se tornaram aventureiros. Não foi surpresa encontrar lá acampado
Justin e Pierre. Velhos amigos se encontrando, mas esta é outra historia.
O sol começou a brilhar no horizonte. O "Velho" parou sua narração.
Vamos? Disse – Vamos! Eu disse. E lá fomos nós para a praia, onde centenas de
gaivotas nos acompanhavam com seu barulho infernal. Ao longe avistamos o
porquê. Pescadores estavam tirando a rede do mar e elas estavam abarrotadas
de peixes. Olhei para o "Velho". Ele olhava a frente. Seus olhos brilhavam.
Oitenta e seis anos. Uma vida cheia de aventuras. Historias mil para contar. É
"Velho". Eu te amo. Você entrou na minha vida e nela irá permanecer para
sempre.
O MAR QUE TIVE POR LEMBRANÇA
No mar, balança o óleo e não se acalma!
Agonizo n’água!...Sou ave pequena!
O negror do óleo devora a minha alma,
Meus ossos!...Até as minhas penas...
Inda arrisco um curto esvoaçar...
Um vôo breve... Ó expectativa vencida!
E caio n’água, no negror do mar!
Do óleo que desfez - em mim -, a vida...
Enegrecido o bico... Tão grande é a dor!
Agonias chilreando pelos ares!
Foi o eco que o negror do óleo deixou...
Engolfa o Golfo o negro óleo que avança!
E engolfando todas as aves!
Engolfa o mar que tive por lembrança...
Lusos poemas
As fabulosas aventuras dos escoteiros Manezinho e Alfeu
Historia de hoje: O Coronel Tibúrcio, o Capitão Barba Rubra e os jagunços da
morte.
Essa caverna, esse lugar não dá a menor importância pra você, pra mim, ou pra
qualquer um de nós. Nós somos só poeira e estamos de passagem.
(do filme Santuário) .
CAPITULO I
Tudo que aconteceu nesta história foi na década de cinquenta. Quem me
contou deixou muitos trechos sem narrar. Ficaram alguns vácuos que tive de
usar da imaginação para desenvolver como deveria ter sido a história. Alguns
detalhes eu tive de suprimir assim como nomes que foram trocados para não
serem identificados. Garantiram-me que tudo aconteceu e foi real, mas tenho lá
minhas duvidas. Uma história fantástica? Mas qual história não é? Por menor
que seja tem um valor grande para quem a viveu. E aqueles dois escoteiros acho
eu que viveram a maior aventura de suas vidas. Tudo começou quando
Manezinho, Monitor da Patrulha Leão procurou Alfeu da Tigre. Corria o mês de
janeiro e eles não tinham nada para fazer. A cidade sem atrativos, o Grupo
Escoteiro em férias e a maioria dos amigos escoteiros viajando.
- Olhe Alfeu, estou entediado. Sem nada para fazer e sem atividades na
tropa e todos viajando vamos fazer o que? Acampar só nós dois por aqui não dá
e então pensei. Porque não realizar aquele meu plano da viagem a Pirapora e lá
pegar uma gaiola a vapor e descer o São Francisco? - Alfeu riu alto. Você está
doido Manezinho. Como? Sem dinheiro? E precisamos de pelo menos quinze
dias. – Alfeu, calma, eu bolei um plano. Escute. Primeiro juntei quase duzentos
mil reis engraxando sapato e ajudado meu pai na sapataria. Se você tiver pelo
menos cem mil reis, dá para comprar a passagem de trem até Pirapora ida e
volta. Lá conversamos com o capitão do barco e contamos para ele nosso
sonho. Quem sabe leva a gente pelo menos até Ibiá ou São Romão sem cobrar?
Lá descemos e voltamos pela trilha da morte onde os cangaceiros passavam
fugindo da volante até Buritizeiro. Pelo que me informaram é menos de quarenta
quilômetros. Menos de cinco dias para nós dois que já andamos muito mais que
isto. Acredito se tudo correr bem, faremos uma grande jornada e tudo em doze
dias.
Alfeu estava gostando da ideia. Ele e Manezinho eram dois escoteiros
primeira classe experimentados. Desde que o Chefe Martinho foi embora à tropa
ficou sem chefia. Os dois disseram aos demais – E daí? Vamos parar? Nada
disto, nós fazemos nossas reuniões e nossos acampamentos. Sempre fizemos e
vamos continuar assim. Era verdade. Eles estavam sem Chefe a mais de cinco
meses. Na cidade tinha muitos ex-escoteiros, mas ninguém quis assumir a
tropa. E para piorar o Chefe do Grupo o cabo Teotônio estava de cama, e diziam
que não ia ter muitos anos de vida. Má sorte para o grupo. Se ele fosse para o
céu não teriam nenhum adulto responsável e aí o pior poderia acontecer.
Bem esta é outra história. E claro o Grupo Escoteiro não morreu e não
acabou. Alfeu tinha cento e cinquenta mil reis. Juntou capinando quintais de
vizinhos e fazendo outros biscates. Queria comprar um canivete suíço e
precisava muitos mais do que tinha. Claro que a aventura que iam fazer valia o
gasto, mas tinha um senão. Como ficar doze dias ou mais fora? Se fosse quatro
ou cinco dias era só dizer que iam acampar e estava resolvido. Agora não. Eram
doze dias. Mesmo assim os dois ficaram mais de três dias discutindo os
pormenores. Problemas de alimentação, material de sapa, individual, horários e
itinerários. Agora só faltava conversar com os pais. Uma conversa difícil. Fazê-
los entender que um jovem de 14 anos e outro entrando nos quinze fariam esta
viagem não serias fácil.
Sabe Alfeu, disse Manezinho, acho melhor abrir o jogo. Vamos nós em
dupla eu você juntos. Acho que dá mais força. E assim foi feito e assim
conseguiram autorização de ambos os pais. As mães não. Não queriam deixar
de jeito nenhum. Durante uma semana disseram não e depois não disseram
mais nada. Numa tarde de segunda no mês de janeiro, ambos pegaram o trem da
Leopoldina para Pirapora e na estação ficaram pais e mães chorosos. Era uma
viagem longa. Foram de segunda classe, mas eram escoteiros e não se
apertaram. Bancos de madeira e daí? Para eles era uma festa. Dormiram a noite
toda e pela manhã avistaram o Rio São Francisco. Um espetáculo de rio.
Soberbo, enorme, corredeiras lindas. Logo o noturno adentrou em Pirapora.
Nunca viram tanta algazarra. Meninos e mulheres gritando, oferecendo manga,
goiaba, laranja, abacate doce e salgados de tudo que era espécie. Não
compraram nada. Precisavam economizar. Tinham ainda doze dias pela frente.
Agora era hora de se virar e saber quando partiria uma Gaiola (barco a vapor)
para a Bahia. Se demorasse seria ruim, pois teriam que achar um lugar para
acampar e claro fazer as refeições o que não queriam nos dois primeiros dias.
Caolho e Pé de Chumbo estavam escondidos na gruta do Diabo a mais de
dez dias. Água não faltava, pois a lagoa do Dourado estava perto e foi até bom,
pois Caolho conseguiu matar uma capivara e ela foi à salvação. Mas já estavam
fartos daquela carne. Sem sal só assado não dava mais. O pior é que não
poderiam sair dali pelo menos por uns cinco dias. Pé de Chumbo levou um
balaço na coxa esquerda por um maldito volante e foi um Deus nos acuda para
tirar a bala. Maldito Coronel Tibúrcio. Maldito mesmo. Não dava folga e nem
sossego. Três anos fugindo dele. Percorreram boa parte do sertão. E o danado
não desistia. A perna de Pé de Chumbo estava melhorando. Ainda bem. Caolho
achou que ia dar gangrena. Pé de Chumbo disse que se fosse cortar melhor
matar. Viver com uma perna só e na cadeia era melhor morrer. Caolho sabia que
tinha de fazer isto. Já haviam prometido um para o outro que se levassem
alguns balaços mortais, deviam atirar um no outro. Graças a Deus que ainda
estavam com seus dois fuzis e seus Colt 45. Uma centena de balas, mas dava
para o gasto.
Já estava tudo programado. Em uma semana iam até São Romão, e antes
de chegar lá pintariam o cabelo, fariam a barba e comprariam roupas novas.
Dando tudo certo iriam pegar a Gaiola e se tivessem sorte chegariam em três
dias na Bahia. De lá um ônibus e finalmente São Paulo. Tranquilamente o
Coronel Tibúrcio nunca os encontraria lá. Caolho não gostava de pensar. Sabia
que seus dias sempre foram ruins e não esperava que melhorassem. Tinha
pressentimento. Várias vezes tentou rezar, mas nunca conseguiu. Nunca foi bom
nisto. Era excelente atirador. Onde colocava os olhos colocava uma bala.
Acertava com seu fuzil a mais de mil metros de distancia. Mas sabia que nada
neste mundo iria desviar a bala que o atingiria pelas costas. Ban! Que assim
fosse. Se este fosse seu destino que seja. Ele sabia que morrer faz parte da vida.
O Coronel Tibúrcio estava com os olhos levemente fechados no bar do
Pedro Boa Vida. Quem passasse por ali poderia imaginar que ele estava
cochilando. Engano. Via tudo que se passava em sua frente e dos lados. Atrás
não. Sempre sentava de costas para a parede. Um costume de quem pegava
bandidos a unha. Tinha feito uma reunião com o prefeito de Pirapora e com o
Diretor da Capitania dos Portos. Queria porta aberta nos barcos sempre que
precisasse para seu pessoal. Todos tinham medo do Coronel. Um bigode
enorme, alto, forte suas mãos poderia torcer facilmente o pescoço de qualquer
um. O Sargento Minerva e o Cabo Horivaldo pelavam de medo dele. Quando
falava sua voz parecia um trovão.
O prefeito concordou, mas o Diretor ficou em dúvida. Se for no barco
Saldanha Marinho do Capitão Barba Rubra, melhor falar com ele. Ele acha que é
o dono do barco. O Coronel Tibúrcio riu. Que diabos é você Diretor? Diretor de
que? Não manda nada! O diretor tremeu. Estava entre dois fogos. Conhecia o
Capitão Barba Rubra. Um vozeirão igual ao do Coronel Tibúrcio. Dois homens
perigosos. Não dava para escolher. Melhor tentar amenizar. – Olhe Coronel, ele
chega à tarde com seu barco e pretende zarpar amanhã. Vou até lá falar com ele.
– Vai não. Quem vai sou eu. Ele vai ver que manda. Sou o Coronel Tibúrcio,
caçador de pistoleiros e jagunços. E ele é Capitão. Deve-me respeito!
O Capitão Barba Rubra estava na proa, e o Imediato Cata Preta era quem
tomava conta do timão. Alí não tinha problema. Mais dois quilômetros e
chegariam em Pirapora. Se pudesse voltaria no mesmo dia. Já morria de
saudades de Lucinha. Como gostava daquela moça. Pediu ela em casamento e
só não casaram porque a papelada tinha que ser feita. Os tais proclamas.
Lucinha era um doce. Cabelo dourados, tinha todos os dentes e olhos lindos e
brilhantes. Era uma moça estudada. Na capital aprendeu tudo sobre professora e
ela seria uma. Os alunos ele sabia dariam risadas de alegria. Barba Rubra não
tinha casa. Morava no barco. A mais de quinze anos fazia dele sua residência.
Conhecia tudo nele. Sabia que em junho de 1867 o conselheiro Joaquim
Saldanha Marinho firmou um contrato com o engenheiro Henrique Dumont pai
de Santos Dumont o pai da aviação, para construir um vapor com 25 HP de
força. Nasceu o Saldanha Marinho com rodas laterais. Dizem que chegou em
Pirapora em 1902 descendo pelo rio Das Velhas. Dizem também que ficou
encalhado na Barra do Guaiçuí por muito tempo na foz do rio das Velhas com o
São Francisco.
Barba Rubra amava o barco. Para ele era a continuação de sua vida. Nunca
pensou em se casar até o dia que conheceu Lucinha. Perguntou a ela se queria
casar com ele. Ela levou o maior susto. Nunca tinha visto aquele gigante de
barba azulada ou rubra. Achou que estava brincando e seguiu seu caminho.
Barba Rubra foi ao barco, tomou um banho vestiu seu melhor uniforme de
Capitão e foi a casa dela. Seu pai era o Intendente Alferes da força pública e já
conhecia Barba Rubra. Aceitou o pedido não sem antes de perguntar onde iriam
morar. – No barco é claro! Disse o Capitão Barba Rubra. Deixou por conta de o
Alferes preparar tudo para quando voltasse com a gaiola de Pirapora. Na proa
Barba Rubra avistou Pirapora. Não era má cidade. Ele mal a conhecia. Pouco
saía do barco a não ser para inspecionar alguma carga mais pesada ou preciosa
no armazém da Capitania. Um dia pensou que quando se aposentasse iria
comprar uma casa ali, que avistasse as corredeiras do São Francisco, bem
próximo ao pontilhão da ferrovia.
“A história e o conto estavam apenas começando, mas quem soubesse
saberia que estava quase no fim. Alguém já disse que nada dura para sempre.
Jorge Amado dizia que sem os contos jamais as tardes seriam doces. Jamais as
madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas e nunca
seria escrito um verso de amor. São nas histórias, nos contos que os
verdadeiros poetas e escritores fazem desabrochar as flores, onde o pássaro
preto cego canta uma doce canção. São elas a fonte da juventude e que nos
transporta em sonhos para onde queremos. Sempre que alguém afirmar que
dois e dois são quatro e um ignorante lhe responder que dois e dois são seis,
surge um terceiro que, em prol da moderação e do diálogo, acaba por concluir
que dois e dois são cinco. E assim a vida continua...”.
Para ser um guerreiro, não se deve apenas empunhar uma espada. Deve-se ter
uma razão pela qual empunhá-la.
(do filme os Imortais)
CAPITULO II
Manezinho e Alfeu avistaram a Avenida São Francisco que levava ao
cais do porto. Na praça da matriz ficaram sabendo que o vapor Saldanha
Marinho iria aportar à tarde. Se bem conhecem seu capitão, às três horas da
tarde ele chegaria. Nunca atrasou. O apito da gaiola era como se dissessem a
todos para acertarem o relógio. Levaram ao maior susto. Um caminhão lotado de
soldados vinha em disparada e quase os atropelou. Alguém na boleia falou um
palavrão. Coração batendo os dois continuaram a jornada. Beirando o rio,
avistaram o porto e quanta gente! Centenas ou milhares. Um formigueiro
humano estava ali à espera do vapor. E ele não demorou. Na curva do São
Francisco onde o sol se punha, ele apareceu imponente. Não parava de apitar.
Gritos de todos no cais. Era dia de festa. Sempre fora assim na chegada de uma
gaiola. Manezinho e Alfeu se ajeitaram no meio da multidão. O barco demorou
bastante para atracar.
Era um corre corre, um empurra empurra e isto demorou mais de três
horas. Passava das cinco quando tudo acalmou. Eles avistaram o capitão do
barco. Uma figura imponente. Alto, muito, acharam que tinha mais de dois
metros, forte, moreno e seus cabelos rubros chamavam a atenção. Tinha um
vozeirão que fazia medo. Quando iam se aproximar dele viram um coronel da
policia militar ir a seu encontro. Começaram a discutir. Alfeu e Manezinho achou
que ia haver briga. Muitos volantes (soldados) tomaram posição com seus fuzis.
Mas o Coronel Tibúrcio aceitou as condições do capitão Barba Rubra. Quais
eram? Não sabiam. – Manezinho o que se achava mais líder se aproximou do
capitão – Capitão, sempre alerta! – O capitão olhou e pensou – Que diabos são
estes meninos de uniforme? Manezinho explicou tudo. O Capitão Barba Rubra
estava fulo com o coronel Tibúrcio. Mandou-os subir ao convés. Conversaria
com eles depois.
- Olhem disse com seu vozeirão. Se arranchem ali no canto. Se precisarem
de alguma ajuda peçam ao imediato Cata Preta. Deixaram a mochila num canto.
Dormir ali sem problema. Já estavam acostumados. Um homem simpático que
varria o convés sorriu para eles. Encheram ele de perguntas. Ficaram satisfeitos
quando souberam que todos no barco tinham três refeições por dia. Café da
manhã almoço e janta. Até São Romão seriam dois dias. O barco partiu a
noitinha. Não sem antes subir a bordo o Coronel Tibúrcio e dez soldados.
O Capitão Barba Rubra não aceitara os termos do Coronel. Queria o
barco só para seus volantes. Mais de cem. Que eles fossem por terra ele disse.
Até que era boa ideia deve ter pensado o Coronel. Ele sabia que hora menos
hora teria que enfrentar o Coronel. Não gostava dele. Nunca tinham topado, mas
já ouvira falar que não era boa bisca. Diziam que matava pelas costas. Para ele
homem assim não presta. Gostou dos tais meninos escoteiros. Dois valentes
para ele. Lembrou-se de sua infância. Sofreu muito, mas valeu. Tinham pedido
para os levarem a São Romão. Claro que sim. São meus convidados disse. Não
gostou quando disseram que iam voltar pela Trilha da Morte. Sabia que era um
lugar perigoso. Grutas, cavernas, cascavéis aos montes e muitos jagunços
escondiam ali. Explicou mas eles disseram que não iriam parar nas grutas.
À noite os convidou para jantar com ele em sua cabine. Não gostava do
barulho dos viajantes no restaurante. Só no ultimo dia comparecia para ser visto
e atender aos pedidos de fotos. Um saco ele achava de tudo isto, mas era seu
papel de capitão. Adorou os escoteiros. Dois jovens vivaz, alegres e com grande
espontaneidade para contar suas aventuras. Fora uma noite ótima. Mas estava
preocupado com eles e com o Coronel Tibúrcio. Soube que ele desceria também
em São Romão. Estava atrás de dois jagunços perigosos. Uma mistura não
muito boa para os escoteiros.
O Coronel Tibúrcio a principio até que pensou em enquadrar aquele
“porqueira” de capitão metido a tigela. Poderia mandar prendê-lo, mas não o fez.
Precisava do talzinho para leva-lo até São Romão. Estava numa cabine tão
pequena que mal cabia lá. Preferiu ir para o convés e lá tomar algumas cervejas,
mas suas costas ficariam desprotegidas pela margem do rio. Mandou que o
Sargento Minerva e o cabo Horivaldo ficassem protegendo suas costas. Seu
plano era descer em São Romão, e olhar de gruta em gruta para ver se achava
aqueles filhos da mãe. Ia matar cada um deles como um porco do mato. Era o
que mereciam pelos roubos e pelas mortes que cometeram. Não iria levar
nenhum deles, não valeria a pena. Melhor é encher eles de balas e quem sabe
cortar a cabeça como exemplo? Riu de seus pensamentos.
Ele sabia que o Tenente Honório Descia o rio na margem esquerda do
São Francisco a cavalo com mais noventa homens. Os malditos não tinham
como escapar. Nem notou os dois escoteiros que viajavam com ele. Não notava
ninguém que lhe parece um banana. E no barco só tinha bananas. O sol estava a
pino. Mesmo assim continuou como estava. Jantou mais cedo e foi para a
cabine. Sabia que no dia seguinte chegariam em São Romão. Estava louco para
chegar. Aquela vida parada não lhe agradava. Era homem de ação. Como
gostaria de dar uns tapas naquele capitão de merreca. Um capitão! Querendo ser
mais que ele um Coronel.
Manezinho e Alfeu despediram do Coronel Barba Rubra. Com suas
mochilas as costas e seus chapelão Escoteiro, disseram adeus e partiram.
Sabiam que iam sentir saudades. O capitão foi muito legal com eles. Tinha até
insistido que fossem com ele até Juazeiro na Bahia. Não dava. Tinham que
retornar se não seus pais ficariam malucos. O capitão os preveniu do Coronel
Tibúrcio que iria fazer o mesmo percurso deles. Fazer o que? Tinham de voltar e
a estrada era longa. Pela Trilha da Morte seria mais rápido. Atravessaram a rua
principal de São Romão, perguntaram na casa de laticínios e ensinaram a eles
onde começa a Trilha da Morte. Era nove horas da manhã. Quarto dia de viagem.
A trilha era gostosa. Quase não tinha subida. Nos planos parar à tarde, fazer um
arrozinho com linguiça e pé na taboa. De novo só parar a noite depois das dez.
Menos de oito quilômetros percorridos e viram um lago não muito
grande, mas que daria para acampar tranquilamente. Quem sabe pegar uns
peixes para a janta? Não viram um homem que pegava água em dois cantis. Só
viram quando ele os apontou uma arma. – Quem são Voces? Deus do céu –
pensaram. O que era aquilo? Venham comigo se não quiserem morrer. – Fazer o
que? Foram com ele morro acima. Levaram suas mochilas e escondidos atrás de
muitos galhos entraram em uma gruta. Tinha outro lá. Deitado com muito
sangue na roupa. Manezinho e Alfeu tremiam de medo. Tomaram deles a
mochila e reviraram tudo. Riram quando acharam um pouco de arroz, linguiça, e
macarrão.
O Capitão Barba Rubra estava preocupado. Muito. Sabia que podia
acontecer o pior. Se os escoteiros fossem encontrados por bandidos o Coronel
Tibúrcio não iria perdoar. Mataria a todos. Tomou uma resolução. Nunca antes
tinha feito aquilo. Disse para seu imediato Cata Preta que tomasse conta do
barco e só iriam zarpar quando ele voltasse. Não importa o quanto demorasse.
Pegou seu Taurus de seis tiros, levou também seu Colt 38 cano curto. Seu
punhal colocou em uma capa na cintura. Sabia que iria dar o que falar, mas
quando viu o Coronel Tibúrcio com seus volantes armados até os dentes e com
uma carreta puxada por um cavalo assustou. Viu que era uma pequena peça, ou
melhor, um canhão de artilharia de calibre 40 mm que disparava granadas e
apesar de pequeno fazia um estrago enorme. O filho da mãe se disparasse isto
em cima de alguma gruta iria matar todo mundo que estivesse lá dentro. Na
capitania pediu um cavalo arreado. Um bom cavalo. Descansado e bem
descansado. Partiu menos de meia hora depois.
Não gostava, mas foi obrigado a usar a espora no cavalo. Se ele
disparasse o canhão e os escoteiros estivessem lá adeus! Ouviu o tiroteio de
longe. Maldito Coronel! Virou a trilha na entrada da lagoa e avistou os soldados
entrincheirados e fazendo um verdadeiro fogo de tiros em cima de uma caverna.
Chegou gritando – Pare Coronel pare! Lá em cima tem dois escoteiros! São dois
meninos! – O Coronel Tibúrcio assustou. Que diabos este capitão estava
fazendo aqui? Sabia que na gruta os dois malditos jagunços estavam lá. Já
tinham respondido ao fogo de tiros que deram quando descobriram uma fumaça
saindo de lá. E agora este capitão para estragar tudo? Suma daqui capitão,
falou. Suma! Esta briga não é sua e que se danem os meninos. Não fui eu que os
levou lá. Mas não deu outra, o Capitão Barba Rubra apeou do cavalo e se
atracou com ele. Uma briga dos infernos. Não deu tempo de usarem suas armas.
Manezinho e Alfeu choramingavam de medo. Estavam fazendo a janta a
mando dos dois jagunços quando alguém gritou - Entreguem-se! Vou contar até
dez! Depois podem rezar e entregar a alma para o diabo! Entregar? Nunca. Eles
sabiam que o Coronel não perdoava e não faziam prisioneiros. Um tiroteio
começou. Manezinho e Alfeu correram para o fundo da gruta. Caolho e Pé de
Chumbo os agarraram pelos cabelos. Iriam fazer deles sua salvação para saírem
dali. Com dois reféns Caolho gritou – Se atirarem mato os dois meninos! O
Coronel Tibúrcio com seu vozeiram riu alto. Pode matar! Eles não são meus
parentes! Pobre do Manezinho e Alfeu. Gemiam e choravam. O tiroteio acalmou.
Manezinho viu chegando a cavalo o Capitão Barba Rubra. Deu um chute na
canela do Caolho e Alfeu fez o mesmo. Desceram correndo o morro junto às
árvores em zig zag.
O Coronel Tibúrcio estava deitado com muitos dentes quebrados. A luta
fora imensa. Ambos eram homens destemidos. O Capitão Barba Rubra tinha um
nariz quebrado. Viu que um dos volantes atirara nele. Tinha levado um tiro no
ombro. O danado do Coronel não era homem de apanhar sem vingar. Seu
volante atirou a queima roupa. Sangrava muito. O Coronel mandou os soldados
prendê-lo. Ninguém se aproximou. Deu tempo para o Capitão tirar o seu Taurus
e o Colt de seis tiros cada um e botar para correr os volantes do Coronel. Mesmo
ferido e deitado de lado ele sabia que não erraria nenhum tiro. O Coronel
levantou a mão e pediu “arrego”. Disse ao Capitão Barba Rubra – Vai ter
continuação. Não vou perdoar esta intromissão na minha missão. Pegou seu
cavalo e sumiu na virada da trilha atrás de seus volantes. Manezinho e Alfeu
correram até onde estava o Capitão. Ambos primeira classe eram bons em
primeiros socorros. Estancaram o sangue do ombro do Capitão. – Pode ficar
tranquilo Capitão. A bala saiu do outro lado. Tinham uma pequena caixa de
primeiros socorros com mercúrio cromo e junto a um pedado do lençol que
levavam colocaram na ferida. Fizeram uma tipoia com seus lenços e acharam o
cavalo do capitão.
Demoraram mais de duas horas para retornar a São Romão. Um médico
fez um curativo melhor no buraco de bala que graças aos primeiros socorros
dos escoteiros não infeccionou. Mandou o Capitão ficar de repouso por vinte
dias. Claro, o Capitão riu. Ele tinha um barco e o barco tinha que navegar. Foi a
Capitania e pediu para comprar duas passagens para os escoteiros até Pirapora.
A despedida foi chorosa. Até aquele Capitão que não tinha medo e enfrentou
uma tropa de muitos soldados e o mais famoso Coronel da redondeza viu que
lágrimas caiam quando da partida dos escoteiros no ônibus.
A viagem de volta foi normal. Em Pirapora pegaram o trem da cinco da
tarde. Conversaram muito. Será que devemos contar? Claro que sim decidiram.
Afinal os escoteiros tem uma só palavra e eles sabiam que mentir era para os
fracos. Dormiram toda viagem. Tiveram muitos sonhos de aventuras. Sabiam
que esta foi a maior de todas. Quem passasse pelo vagão, iria ver dois
escoteiros deitados dormindo e sorrindo. Ninguém nunca imaginaria o que
aqueles dois passaram. Nem viram o Coronel Tibúrcio que estava no trem e
resolveu percorrer todos os vagões. Ele viu os escoteiros. Riu. Sabia reconhecer
quando a coragem sobrepunha à razão. E ali estavam belos exemplares de
jovens que se mostraram fortes cuja força estava na lei que carregavam consigo
e acreditaram nela por toda suas vidas.
Caolho e Pé de Chumbo conseguiram escapar da perseguição dos
volantes. Foram para São Paulo e astutamente se empregaram de ajudante de
pedreiro durante o dia em uma empreiteira de construção civil. Como eram
matadores, pegavam empreitadas de morte e a noite viravam bandidos. Pagos
para matar! Sonhavam em sair do Brasil e viver em algum país da América do
Sul. Quem sabe entrar para um exército de revolucionários. O Coronel Tibúrcio
aposentou. Não sem antes ajustar as contas com Caolho e Pé de Chumbo.
Descobriu onde estavam. Quando saiam do serviço meteu em cada um cinco
tiros. Ninguém viu nada. Foram enterrados como indigentes. O Coronel morreu
de morte morrida aos oitenta anos. O Capitão Barba Ruiva casou e ainda
trabalha no Capitão Guimarães. Dizem que quando chega a Pirapora se ouve de
longe o apito da Gaiola e lá está ele na proa, abraçado a sua linda mulher
Lucinha.
Manezinho e Alfeu contaram a história para todo mundo. Ninguém
acreditou. Eles não insistiram. Quem quiser que acredite pensaram. Um dia de
reunião, quando iam hastear a bandeira Nacional uma enorme surpresa. Nada
mais nada menos que o famoso Capitão Barba Rubra e sua esposa Lucinha.
Tinha feito uma promessa de visitar aqueles valentes escoteiros. O Grupo fez a
maior festa. Palmas e palmas. E a história termina com todo o Grupo Escoteiro
de pé, gritando e aplaudindo aquele gigante com sua barba rubra enorme, junto
a uma loira linda que dava grandes abraços apertados a Manezinho e Alfeu ali na
ferradura da bandeira!
E quem quiser que conte outra...
Para ser um guerreiro, não se deve apenas empunhar uma espada. Deve-se ter
uma razão pela qual empunhá-la. (do filme os Imortais)
A história é a verdade que se deforma, a lenda é a falsidade que se encarna.
Jean Cocteau
O lobisomem de Onda Verde e o valente Escoteiro
Pedrito.
Debora Bottcher uma poetiza sintetizou de uma maneira estupenda como
seria as lendas que correm pelo mundo. Ela tem um poema lindo, que parte dele
diz: - “Sou lenda, porque a lendas correm livres junto ao vento, buscando as
vozes da memória para que alcancem as histórias perdidas no tempo”. Não que
Pedrito o cozinheiro da Patrulha Coruja fosse o “faloreiro”, ou melhor, um
garganta na cidade de Onda Verde. Afinal Onda Verde no interior de São Paulo
era considerada uma cidade com o melhor ar do mundo. Onde se podia sentir o
aroma das flores, onde se podia ver a relva verde como se fosse uma onda
espalhada sem mar. Calma, pacífica, menos de vinte mil habitantes era um
paraíso para os que nasceram lá. Mas o Escoteiro Pedrito nascido e criado lá
não era fácil. Contava “patacas”, valentias e até criava histórias impossíveis, e
que ele sempre era o herói. Seu Chefe de tropa sempre disse a ele do primeiro
artigo da lei. Uma só palavra. – Pedrito deixa de ser garganta! Dizia sempre.
Ainda bem que todos sabiam que sua imaginação era fértil, e compreendiam.
Mas eis que um fato aconteceu e tudo mudou de repente. Um boato
surgiu do nada e serviu de motivo para que todos habitantes não saíssem à
noite. Contava-se a boca pequena que alguns moradores juraram ter visto um
lobisomem rondando a cidade na ultima semana. Até os escoteiros que tinham o
costume de ir as sede a noite na Rua Garça ficaram com medo e só saiam em
patrulhas e nunca sozinhos. Sempre tinha os mais entendidos que diziam que o
perigo era só nas noites de lua cheia e em uma encruzilhada. “Aí então era um
Deus nos acuda” O monstro passava a atacar animais e se não tivesse atacava
os homens ou as mulheres. Diziam que ele adorava sangue humano. Só volta ao
normal quando vem o raiar do sol.
Naquela quinta a lua era quarto crescente. Na sede da Rua Garça todas as
patrulhas estavam reunidas com o Chefe Naldinho e o Assistente Renato. Lá
estavam os águias, os corujas, os touros e os elefantes. Ninguém faltou. Sabiam
do grande jogo e ninguém queria perder. Seria uma “Busca ao Tesouro Perdido”
na cidade. Achavam que seria um jogo estupendo. Seis pistas espalhadas pelos
quatro cantos de Onda Verde. A primeira seria uma espécie de carta prego. Cada
Patrulha deveria abrir em determinada hora em um ponto da cidade. O que não
estava agradando a todos era o horário do jogo. O Chefe tinha determinado que
fosse de seis da tarde às dez da noite. Assim ele disse o jogo seria mais difícil e
para encontrá-lo seria preciso olhos de coruja. Claro os Corujas também não
ficaram muito animados. A conversa de esquina do lobisomem amedrontava a
todos. Menos Pedrito.
Para mostrar coragem ele dizia que ia achar o tesouro e “caçar” o
lobisomem. Mostrava os braços estendidos fazendo pose de como ia derrubar o
Lobisomem com um soco somente. No meio da testa. A Patrulha se reuniu para
discutir sobre o jogo. Mas Lavério um Escoteiro antigo entrou com o assunto do
lobisomem. Disse que fizera uma pesquisa sobre Lobisomens e que ele se
originou de uma lenda antiga. Segunda a lenda, o lobisomem seria o sétimo filho
após uma sequência de filhas mulheres. Ele seria um homem normal, que se
transforma em meio lobo meio homem durante as noites de lua cheia. A lenda
dizia que as Quartas feiras de cinzas e a Sexta feira santa seriam os dias mais
propícios para o aparecimento do lobisomem. Quando ele aparece para se saciar
de sangue humano, dizia Lavério.
Todos deveriam tomar cuidado, continuou Lavério, quando os cães
ficassem agitados, não parassem de latir, pois eles poderiam ter avistado o
Cachorro grande que nada mais nada menos seria o lobisomem. A Patrulha
ficou muda. Ninguém dizia nada. Pedrito logo se levantou. Se ele aparecer me
chame, dou um jeito nele! Todos riram. Naquela noite foram para casa juntos. O
ultimo a chegar seria Pedrito. Quando Nando ficou na casa dele ele sozinho,
começou a ficar com medo. Agora sem ninguém na esquina da Peçanha ele
pensava se topasse com o Lobisomem. Nem pensar! Que Deus me ajude! Saiu
correndo virou a próxima esquina e entrou em sua casa espavorido.
Os dias foram passando. A Patrulha se encontrando e se preparando para
o grande jogo. Na sexta feira seria entregue aos Monitores uma carta prego
dando a primeira pista. Sabiam que no envelope só estaria escrito o local e o
horário aonde eles os Corujas deveriam abrir. As instruções só quando
abrissem. Conheciam as cartas prego. Não era segredo, mas ninguém sabia
como era a primeira pista. Naquele dia era noite de lua cheia. Não ficaram na
sede até tarde como era costume. Só comentaram sobre a carta que tinham
recebido e “diabos” o local para abrir seria na Rua Balalaica, em frente ao portão
do cemitério! Caramba! Pedrito não gostava dali. Claro seria às seis da tarde,
mas mesmo assim ele não gostava do cemitério. Jurava ter visto um dia uma
alma do outro mundo voando baixo em cima das catacumbas.
Pedrito naquela noite não pensava em assombração, capetas, ou
mesmo o tal lobisomem que por sinal estava sendo esquecido por toda a cidade.
Assoviava baixinho uma linda canção Escoteira que aprendera no último
acampamento e pensava como seriam lindo as montanhas e lagos existentes na
canção. Disseram que assim cantavam os caçadores de peles daquele país, no
passado, quando não conseguiam caçar nada e voltavam em seus caiaques
cantando tristonhos e saudosos de suas famílias que há tempos não viam. Ao
virar a esquina da Rua do Papagaio, viu um vulto correndo em direção ao
Matadouro do seu Luizão. Para dizer a verdade em outras épocas Pedrito teria
corrido sim em direção a sua casa, mas, como estava sem histórias para contar,
resolveu correr atrás do vulto. Nem olhou para trás e quando olhou era tarde de
mais.
Viu o vulto passar pelo matadouro e entrar no cemitério. Nove da noite
ele começou a tremer e deu meia volta. Deu de cara com o Lobisomem. Enorme,
parte de cima peluda, dentes enormes, olhos vermelhos chamejantes, unhas dos
pés e das mãos enormes. O bicho o pegou pelo lenço Escoteiro e o levantou no
ar. – Quem é você magrelo papudo? Perguntou. – Pedrito tremendo e já
molhando sua calça curta respondeu chorando – Sou o Pedrito Senhor
Lobisomem! – Pare de borrar de medo e seja homem! Falou o Lobisomem. – Mas
sou um menino Senhor Lobisomem, bom Escoteiro da Patrulha Coruja, bom
filho, bom aluno. Solte-me pelo amor de Deus! – O lobisomem chegou sua boca
fedida no seu rosto e disse – Vou lhe dar uma mordida na orelha, se gostar vou
tirar todo seu sangue, se não gostar quebro seu pescoço e o deixo ir embora! –
Pedrito estava quase desmaiando de medo. Sem perceber quando o Lobisomem
ia morder a sua orelha ele foi mais rápido. Deu uma dentada na orelha dele. O
bicho berrou! Maldito disse. E o soltou levando a mão na orelha.
Ninguém soube explicar, mas a Patrulha toda apareceu para ajudar
Pedrito, estavam com seus bastões e o Lobisomem tentou correr e caiu na
calçada bem em frente ao portão do cemitério. Ao cair a mascara de lobisomem
se soltou e todos viram que era “Seu” Chulápio, o coveiro do cemitério. – Então
é o Senhor o Lobisomem não “Seu” Chulápio, fingindo e assustando todo
mundo. “Seu” Chulápio choramingando pediu pelo amor de Deus que não
contassem para ninguém. Ele não tinha diversão nenhuma no cemitério. Nem
mesmo uma alma do outro mundo ou um fantasma apareciam mais. Deixaram-
no sozinho, pois tinha mais de seis meses que não morria ninguém na cidade.
A patrulha ficou com pena do “Seu” Chulápio. Prometeram não contar
nada. Mas o Pedrito, ora, ora. O Pedrito contava para todo mundo da mordida
que deu na orelha do Lobisomem. Todos riam e olhe, Pedrito fazia questão de
passar em frente ao cemitério todas as noites de lua cheia. A cidade passou a
admirar sua coragem. O Lobisomem apareceu outras vezes e não deixou de
fazer alguns habitantes correrem feito loucos. Alguns juraram de pé junto que
viram muitas vezes em noite de lua cheia, o Lobisomem abraçando Pedrito.
Quem não gostou foi à mãe de Pedrito. Teve que dar muitas lavadas na calça de
Pedrito. O jovem Escoteiro valente tinha “borrado” ela de tal maneira que quase
teria sido melhor comprar uma nova.
Bem, deixa o Lobisomem para lá. O jogo da Caça ao Tesouro Perdido
foi um sucesso. Melhor para Pedrito que junto a sua Patrulha acharam a sexta
pista fácil. Claro, com a ajuda do “Seu” Chulápio que viu o Chefe colocando o
tesouro no Mausoléu da família Crispim. Ninguém soube da ajuda e nem Pedrito
contou para ninguém. O Tesouro? Oito canivetes suíços. Lindos. Valeu. Certo ou
errado, Pedrito era um bom escoteiro. E como caçador de Lobisomens e
Vampiros sua fama correu mundo. Mundo? Claro, mundo de Onda Verde, a
cidade que ele viveu e morreu amando para sempre.
E quem quiser que conte outra...
Sou Lenda,
porque as lendas são envoltas em Mistérios e Magias.
São uma criação dos caminhos da mente, da vaga imaginação da liberação dos silêncios
da alma...
. (Débora Bottcher)
Evitar o perigo não é, a longo prazo, tão seguro quanto expor-se ao perigo. A vida é uma
aventura ousada ou, então, não é nada.
Hellen Keller
O Selvagem das Terras Altas.
A história do Cacique Capotira. O Selvagem da Cabeça
Branca.
Se havia algum que me deixava deprimido era não poder fazer alguma
atividade que por um motivo ou outro pensei em fazer. Nunca em minha vida tive
medo de enfrentar a estrada, as matas, campinas, os rios estreitos e largos, as
cachoeiras, as corredeiras infernais e até as mais altas montanhas. Deliciava-me
quando conseguia conquistar cumes imensos, atravessar rios caudalosos seja
de que maneira for descendo corredeiras ou mesmo encontrar com o
imponderável pela frente era motivo de orgulho. Não sei quantas vezes passei
por isto. Medo? Um pouco. Muitas vezes “molhei as calças” e não me
envergonho de dizer. O que me deixava agora chateado era não encontrar
alguém da Patrulha para ir comigo. Estava enfezado. Israel disse que não podia
– Bitelô, como vou ficar vinte dias fora? – Tãozinho então – Nem posso pensar
nisto Bitelô, meu pai não vai deixar nunca. E assim um por um não encontrei
ninguém que topasse enfrentar um desafio novo.
Tudo começou quando fui cortar o cabelo na Barbearia do seu
Praxedes. Era o barbeiro do meu pai há muitos anos. Eu cortava cabelo com ele
desde os cinco. Ele sempre soube o que fazer e como era o corte. Estava lá
entretido quando entrou um sujeito com um bigode que nunca tinha visto um
igual. Enorme. Diria que os lados quase alcançavam ao queixo. Passou um
tempo e ele começou a conversar com o seu Praxedes e conversa vai conversa
vem disse que morava na Morada do Morto Vivo. Nunca ouvi falar. Seu Praxedes
balançou a cabeça. Contou então a história mais incrível que tinha ouvido. Disse
que bem longe de sua casa, bem ao norte subindo o Rio Turvo, quem sabe duas
semanas a pé, existia uma serra alta, toda tomada por uma imensa floresta.
Ninguém ainda tinha entrado nela. Era completamente desconhecida. Um dia um
homem todo marcado e sangrando como se tivesse sido esfolado vivo chegou a
sua porta pedindo ajuda e socorro. Trataram dele dentro do que conheciam e no
quinto dia ele partiu. Quando ia virando a curva da Trilha da Goiabeira gritou –
Nunca tentei entrar na Floresta do Diabo! Lá ainda mora o Selvagem da Cabeça
Branca. Ele não conversa com ninguém. Ele esfola e mata. E sumiu junto as
plantação de figo que tínhamos acabado de plantar.
Depois não falou mais. Cortou o cabelo aparou o bigode e quando ia
saindo o segurei pelo braço. Ele me olhou e vi nos seus olhos faiscarem.
Conhecia este tipo de valentia de outras eras quando das minhas brigas eternas
e quase desisti de perguntar. – Moço, como faço para chegar na Floresta do
Diabo? Ele riu. Pegue o trem. Desça em Baixo Guandu. Suba o Rio Turvo por
oitenta quilômetros. Quando avistar uma garganta entre duas montanhas, vá por
baixo mais dez quilômetros. Quando ela terminar irá ver uma imensa floresta
subindo aos céus e densa por causa do nevoeiro. É lá. Mas menino, nunca vá lá.
O Selvagem da Cabeça Branca dizem nunca deixou ninguém vivo e os que
conseguiram fugir ficaram com sequelas no corpo morrendo em poucos meses.
Virou-me as costas e sumiu na Rua do Sumidouro e nunca mais o vi. À noite
minha patrulha tinha marcado uma reunião na sede. Pretendíamos acampar nas
férias de julho e poderíamos escolher um bom local e quem sabe fazer as
grandes pioneirias que sempre planejamos e não fizemos. Poderíamos ficar oito
dias acampados.
Enquanto todos discutiam lembrei da conversa do Homem do Bigode
Rastapé que me contou a história fantástica. Contei para a Patrulha. Riram e não
deram atenção. Tentei de todo modo motivar a irmos lá. Foi Israel que colocou a
questão crucial – Olhe Bitelô, Oitenta quilômetros rio acima, depois mais vinte.
Você sabe. Sem trilhas, matas dos dois lados e com corredeiras tem de ser a pé.
Pelos meus cálculos não conseguiremos andar mais que vinte quilômetros por
dia, e olhe lá. Só aí seriam cinco dias para ir e mais cinco para voltar. Nem
sabemos o que vamos encontrar. Claro que na volta uma jangada pode nos
trazer mais rápido, mas e então? Subir uma montanha que ninguém nunca
subiu? E se for verdade esta historia do tal Selvagem esfolador? Não somos
heróis. Nem sabemos o que vamos encontrar.
Tentei de todo modo motivar a turma. Não estava conseguindo
convencer aqueles seniores destemidos. Deram todo tipo de desculpa. Parece
que não era a minha Patrulha que não recusava nenhum desafio. Voltei para
casa frustrado. No dia seguinte Pedrinho me procurou em casa cedo ainda –
Olhe Bitelô, não dormi a noite. Só pensando nesta história do esfolador.
Encontrei com o Israel e ele me disse a mesma coisa. Acho que devemos nos
reunir hoje na sede e conversar de novo sobre isto. Dito e feito. A Patrulha
conversou por horas. No final tudo planejado. Achávamos que quinze dias
seriam suficientes. Os seis valentes seniores da patrulha Cascavel iriam entrar
em ação novamente. Que nos esperasse a Floresta do Diabo. E que se danasse
o Selvagem da Cabeça Branca. Ele ia conhecer uma turma da pesada! A
aventura ia começar e que aventura foi meu Deus!
Seu Josué era o Chefe da Estação da Estrada de ferro. Já nos
conhecia. Aproximou-se e perguntou – Para onde vão desta vez? Até Baixo
Guandu Seu Josué. E de lá? - Bem vamos tentar chegar até a Floresta do Diabo.
Isto é vamos subir o Rio Turvo. – O rio eu conheço, mas esta floresta não.
Cuidado com o Rio. Quando menos se espera ele sobe até dois ou três metros
do seu nível. Gente boa seu Josué. O trem parou na plataforma. Subimos na
Segunda Classe e logo ele partiu. Seriam por volta de três horas de viagem. Se
tudo corresse bem chegaríamos em Baixo Guandu lá pela uma da tarde. Foram
preparativos imensos. Nossa ração que estávamos acostumados era de no
máximo dez dias. Ração para quinze ou vinte não sei não. Mas achamos que
encontraríamos pelo caminho muita verdura, peixes e quem sabe algum animal
ou ave para matar a fome e economizar nosso farnel.
Éramos seis. Eu, Romildo, Fumanchú, Taozinho, Israel e Pedrinho. A
Patrulha estava completa. Todos foram segunda e Primeira Classe quando
escoteiros e agora muitos portavam a eficiência II. Não havia pata tenras.
Passamos juntos por poucas e boas. Na viagem o espírito era nota dez.
Cantamos, contamos “causos”, até umas piadinhas que não podiam ser
contadas para os lobinhos. Meio dia e meio avistamos Baixo Guandu. Uma
cidade de mais ou menos quinze mil almas naquela época. Hoje não sei. Antes
de o trem entrar na estação avistamos o pontilhão do Rio Turvo. Descemos e
como sempre atraiamos atenção. Não dava tempo para conversar. Partimos. Um
trecho de estrada estadual e logo uma carroçável margeava o rio. Sabíamos que
ela iria desaparecer em breve. Dito e feito. Uma mata rala, e logo uma mata
fechada. Que dificuldade para dar cada passo. O rio naquele trecho era manso. A
tarde veio chegando. Precisávamos de um lugar para arranchar. Sabíamos que
não podíamos ficar próximo à margem. Pelos menos uns trezentos metros. As
muriçocas nos comeriam vivos. Experiência de outras épocas.
A primeira noite foi calma e assim a segunda. Mas cada dia mais
difícil ficava a caminhada. Na tarde do terceiro dia avistamos uma cachoeira
enorme. Época da piracema. Um espetáculo a parte. Quem já viu sabe como é.
Lindo! A luta dos peixes para subir rio acima é algum de espetacular.
Escolhemos um belo piau de dois quilos e o Fumanchú nos fez uma gostoso
assado de peixe na brasa. No dia seguinte demoramos mais de três horas para
escalar a cachoeira. Não foi fácil. No quinto dia achávamos que estávamos
atravessando o inferno. Que dificuldade meu Deus! Cada metro mais e mais um
emaranhado da floresta. Naquele dia acho que não andamos cinco quilômetros.
Se continuasse assim não chegaríamos a tal Garganta. No sexto dia a mata ficou
rarefeita. Tiramos o atraso. Na manhã do sétimo dia avistamos a Garganta. Fácil
de percorrer. Um gostoso riacho pedregoso e raso com águas límpidas. Na tarde
daquele dia avistamos a famosa Floresta do Diabo. Imponente. Grandiosa.
Misteriosa. Uma nevoa encobria o seu topo. Resolvemos dormir e prosseguir no
outro dia.
Levantamos cedo. Graças a Deus que durante os sete dias não choveu.
Não foi preciso usar as lonas. Dormimos sob as estrelas. Pela manhã após um
cafezinho partimos. Não havia como escolher uma local para a subida. Por toda
parte arvores gigantescas e vegetação encobrindo tudo. Fomos em frente.
Fumanchú nos disse que nossa ração daria para mais quatro dias. Se
pudéssemos encontrar alguma caça ou pescar seria bom. Pescar ali não dava. A
subida ficou íngreme. Três passos a frente um atrás. Quem sabe encontraríamos
algumas frutas silvestres pensava enquanto andávamos. A mata fechada. Muito
fechada. Começou a escurecer. Abrimos uma pequena clareira e dormimos, não
antes de uma gostosa sopa de batata. Um bule de café nas brasas umas batatas
doce e a noite chegou firme. Pegávamos no sono com facilidade.
Acordei com o dia raiando. Vi o Romildo e o Fumanchú de pé, sem se
mexer e olhando firme para frente. Tremi na base. Um índio enorme. Olhe mais
de dois metros. Grande e sem ser gordo era descomunal. Cabeleira longa e
totalmente branca. Sem barba. Olhos negros fitando-nos. Não disse nada. E
agora, seria o tal Selvagem da Cabeça Branca? Vai nos esfolar e matar? Israel e
Tãozinho se levantaram. Pedrinho sentou e se assustou. Era o menor de todos.
Todos se aproximaram e ficamos juntos. Romildo o Monitor pegou seu bastão.
Arma? Que nada, era leve e nem como porrete quebraria o galho. Calças
começaram a ficar molhadas. Ele fez um sinal como dissesse – Venham comigo.
Fazer o que? Juntamos nossas tralhas e fomos com ele.
Gente, o caminho era uma surpresa. Ele nos levou por uma encosta,
onde uma trilha mínima e tendo como esteio um cipó enorme, atravessamos. Do
outro lado uma pequena ponte pênsil que ele puxou não sei de onde, passamos
e chegamos próximo a um platô, enorme. Avistamos algumas Ocas e uns vinte
índios nos cercaram. A maioria mulheres e crianças. Ninguém falava nada,
ninguém sorria. O tal da cabeça branca nos mandou entrar em uma oca. Enorme.
Grande mesmo. Cabia lá toda a tribo isto é pensei que poderia ser uma. Um
pequeno fogo no meio e que cheiro ruim. Ruim mesmo. De que seria? Romildo
disse que mataram um porco do mato e ele estava em um canto da oca. Só podia
ser ele. O tal da Cabeça Branca nos mandou sentar. Todos sentaram. Ele
humildemente, o que estranhei começou a falar:
- Eu e os demais da tribo estamos pensando o que fazer com vocês.
Não gostamos de estranhos. Eles nos fazem mal. Todos que aqui vem nós o
matamos ou esfolamos. Um aviso para ninguém vir. Há muitas e muitas luas
seus irmãos brancos mataram quase todos da minha tribo. Morávamos próximo
a Aimorés, quase junto a Lagoa da Traíra. Éramos de paz. A sua FUNAI nos deu
terras e fazendeiros nos tomaram. Uma noite entraram em nossa aldeia. Mataram
quase todos. Eu, filho do cacique Lobo Branco, Pontiac filho do bravo Amanaki,
Iraci minha namorada na tribo e filha de Caíare estávamos caçando. Quando
chegamos vimos todos mortos e os brancos saqueando tudo. Escondemo-nos.
Levaram os corpos e os enterraram na entrada da Aldeia, mais de cinco
quilômetros onde morávamos. Choramos muito. Mais cinco crianças correram
até nós. Estavam vivos. Eu tinha dezesseis anos e era o mais velho. Resolvemos
fugir.
- Descobrimos esta floresta depois de dias de viagem pelo Rio Turvo.
Achamos que quase ninguém viria aqui. Na Garganta Cajuru montamos um
ponto para observar todos que se aproximam. Voces passaram por ela. Vimos
todos os seus passos. São meninos como eu era. Sei que vieram por aventura.
Eu também fui assim. Hoje somos menos de trinta. Iraci me deu oito filhos.
Paramos. Não podemos crescer mais. Um livro sagrado foi escrito. Todos sabem
o que diz lá. Aqui temos muita água e fizemos uma represa para criarmos peixes.
Temos uma horta com muitas verduras. Conseguimos mudas de cana, de
mandioca e de abóbora. É nosso sustento. Não queremos riquezas e aqui
sabemos do ouro tão ambicionados por voces. Amanhã vamos decidir seus
destinos. Ficarão na Oca de Pontiac. Não saiam de lá.
Saiu e fomos levado por Pontiac até sua morada. Custamos para
dormir. Pela manhã eu já estava de pé quando uma indiazinha de uns doze anos
entrou e disse que o Cacique Capotira (o tal da cabeça branca) nos chamava. Em
uma roda de índios nos entregou nossas mochilas e algumas frutas. Disse que
podíamos ir embora. Não pediu para ficarmos calados só disse que se
contássemos a história da tribo e onde estávamos ele sabia que não iam durar
muito. Deu a cada um uma pepita de ouro. – Façam o que quiserem. Pegamos
nossas mochilas e partimos com ele a frente. Levou-nos até a Garganta Cajuru.
Mostrou-nos muitas piteiras secas. Disse que com oito poderíamos descer o rio
facilmente. Quando a corredeira aumentar saiam da água. A cachoeira esta
próxima. Partimos.
Para dizer a verdade eu chorei. Gostei demais da tribo. Apesar de
pouco tempo ficamos orgulhosos em conhecer todos. Cinco dias depois
chegamos em Baixo Guandu. Eu, Romildo, Fumanchú, Taozinho, Israel e
Pedrinho fizemos um juramento de não contar para ninguém. Foi uma das
nossas maiores aventuras. Sempre quando acampávamos a noite em fogo de
conselho ou em uma simples conversa ao pé do fogo, rememorávamos com
saudades daquela aventura que ficou gravada em nossa mente para sempre. Os
anos passaram e eu passei com eles. Há vinte anos atrás encontrei com
Romildo. Sei que já foi para o grande acampamento. Disse-me que um dia soube
pelos jornais a história da tribo dos Cabeças Brancas. O governo deu a eles as
terras e nunca mais foram importunados por brancos.
Acampamentos, excursões, grandes aventuras. Elas ficam gravadas
para sempre em nossa mente. Assim são os escoteiros. Não sabem se esconder
em sede. Partem em buscas de suas aventuras. Seja ela simples, seja ela com
grande perigo. Não importa. Eles sabem até podem ir. Saudades de Capotira, de
Pontiac, de Iraci e daqueles amigos sinceros que fizemos. Espero que até hoje
estejam felizes, pois lá em sua tribo sentiam-se libertos, e só o sol e a lua
sabiam como a felicidade fazia parte de todos aqueles Cabeças Brancas. Quem
sejam muito felizes. E as pepitas de ouro? Risos. Com ela papai terminou nossa
casinha na Pastoril!
O amor vive de repetição. Cada um de nós tem, na existência, no mínimo uma grande
aventura. O segredo da vida é reeditar essa aventura sempre que seja possível.
Oscar Wilde
A recordação é o perfume da alma. É a parte mais delicada e mais suave do coração, que
se desprende para abraçar outro coração e segui-lo por toda a parte.
George Sand
Nunca mais vou te esquecer
A história de Audrey, um Pioneiro.
Não gosto de contar histórias como esta. A tristeza existe, mas não
devemos ficar presa a ela. Quem conheceu Andrey nunca pensou que ele fosse
chegar aquele ponto. Um jovem cheio de alegrias, um sorriso que conquistava a
todos, e uma vontade de ajudar e ser irmão fraterno deixou perplexo a todos que
o conheceram. Nas sessões escoteiras que ele passou deixou saudades.
Lembro quando ele entrou já com nove anos como lobinho. Parecia que estava
sempre sorrindo. Na matilha azul todos o adoravam. A Akelá e os demais
assistentes quando ele não ia às reuniões ficavam preocupados. Era amado por
todos.
Na tropa foi a mesma coisa. Não podia ver alguém precisando de
ajuda que lá ia ele para ajudar. O Chefe Nando no inicio não se incomodou, mas
via que muitos estavam aproveitando de sua bondade. Nada que uma Corte de
Honra não resolvesse. Audrey não só era bom Escoteiro como também um
excelente aluno. Suas notas o deixavam sempre em primeiro ou segundo lugar
na classe. Os professores diziam que ele iria longe. Quando fez quinze anos
passou para os seniores. Nunca foi Monitor. Audrey tinha o escotismo no
coração, mas não era líder. Sua maneira de liderar era com amor. Sua voz era
baixa e nunca em tempo algum alguém o viu perder a paciência.
Sua família não era rica, mas eram remediados. Seu pai trabalhava
na Petrobrás e ficava em uma plataforma marítima por quase vinte dias. Depois
retornava e ficava com a família mais quinze dias. Eram os dias de maior alegria
para Audrey. Ele sua mãe e seu pai passeavam muito. Cinema, parques e várias
vezes iam para o litoral nos fins de semana. Seu pai voltava para o trabalho e a
casa ficava vazia. Os dias passavam as semanas, os meses e em pouco tempo
Audrey fez dezoito anos. Pensou em dar um tempo na sua vida Escoteira, mas
estavam formando um Clã Pioneiro e insistiram com ele para participar. Não
eram muitos. Ele e mais seis. Destes tinham duas moças. Audrey já conhecia
ambas dos seniores.
Devido aos afazeres profissionais e também a maioria dos pioneiros
se preparando para os vestibular do fim de ano, faziam as reuniões aos sábados,
entre sete da noite as nove. Muitos faltavam. Teve dias de apenas dois estarem
presentes. Foi então que Lucio um pioneiro que fora escoteiro e só voltou após
adulto chegou com seis novos pioneiros. Foi um dia que o Mestre Pioneiro
Senhor Antônio não estava presente. Audrey não concordou muito com a
entrada de vários assim. Nenhum deles tinha sido Escoteiro e sem o Mestre não
deviam participar. Uma garota morena, cabelos curtos linda de nome Patrícia
olhava insistente para Audrey. Isto até o deixou meio sem jeito. Não que nunca
tivesse namorado, já namorou sim, mas por pouco tempo e não deu certo.
Audrey soube depois que participavam de um clube em um bairro
bem visto pela sociedade e resolveram todos eles entrarem nos pioneiros, pois
queriam fazer coisas diferentes. Que coisas diferentes? Audrey ficou cismado.
Mas como tinha bom coração os recebeu de braços abertos. Patricia não saia de
perto dele. Mesmo se mantendo respeitoso, pois Audrey tinha a Lei Escoteira
como filosofia de vida, Patricia era totalmente diferente. Risonha, piadista,
abraçava todo mundo e até o Mestre Pioneiro Senhor Antônio conversou com
ele uma noite o alertando. Sabia que estavam todos preocupados com ele. No
entanto os seis novatos não perdiam uma reunião. Um dia sem estarem
devidamente preparados para a investidura lá estavam eles uniformizados.
Ninguém contestou.
O pior aconteceu em uma viagem que fizeram a Monte Sião. Um
novo Clã estava sendo formado e fizeram o convite ao Clã. Uma surpresa. Mais
de quarenta pioneiros e pioneiras. Ninguém que tinha sido Escoteiro. Antes
pertenciam a uma comunidade de jovens da igreja local e resolveram formar um
Clã. Interessante, o Grupo foi fundado para eles, ainda não havia nenhum pedido
para uma Alcatéia e uma tropa. Depois da cerimonia de Investidura uma
surpresa. Os quarenta novos pioneiros tinham organizado uma Balada no clube
da cidade. Uma tremenda festa. Muitos comes e bebes e o chope correu célere.
Ninguém reclamou, pois se consideravam adultos e uma festa como aquela não
era para se jogar fora. Patricia não largava Audrey e sempre com um copo de
vinho ou outra bebida a mão fazia com que Audrey também bebesse. Um
conjunto da cidade por sinal excelente abrilhantou com musicas atuais.
Lá pelas duas da manhã Audrey não se sentia bem. Não estava
acostumado com bebida. Sentia-se zonzo, o estomago revirando, e Patricia
dizendo para ele beber mais e mais. Já madrugada ela o arrastou até um local
ermo e insistia em fazer amor ali com ele. Forçava Audrey a aceitar, ele insistia
que não e ela insistia que sim. Beijos e abraços e ela dizendo que o amava que
era sua paixão, que ele era homem ela mulher e tinham direitos. A bebida fez
efeito em Audrey. A beijou e ela tirou suas roupas. Audrey mesmo tonto estava
atônito. Nunca em tempo algum isto aconteceu com ele. Foi então que onde
estavam foi iluminado por flashes. Vários dos amigos dela do clube tiravam foto
e filmavam. Que vergonha! Mesmo bêbado Audrey não sabia o que fazer. Estava
praticamente nu. Nunca pensou que isto fosse acontecer. Seus irmãos pioneiros
do Grupo não o ajudaram e junto aos outros davam risadas de escarnio. Em
tempo algum deram proteção e sim sorrisos maliciosos.
Audrey descobriu que tudo foi planejado por Patrícia. Uma aposta
entre ela e seus amigos do clube. Ela apostou que em menos de dois meses ia
colocá-lo em situação vexatória para provar que pioneiros não são diferentes.
São iguais a todos os homens. Audrey não tinha e nunca teve ódio de ninguém,
tentava odiá-la e não conseguia. Suas fotos foram parar na internet. Em sua
cidade seus amigos não foram solidários. O grupo Escoteiro não escondeu sua
decepção e resolveram lhe dar uma suspensão de um ano. Uma vergonha!
Audrey não sabia onde se esconder na cidade. Sua vida foi virada ao avesso. E o
pior ele amava realmente Patricia. Nunca pensou que ela fosse fazer isso.
Sua mãe e seu pai ficaram sabendo do acontecido. Acharam que ele
nunca mais devia voltar ao grupo. Eles lhe viraram as costas. Quase onze anos
participando e uma armadilha odiosa, agora do conhecimento de todos ele não
devia nunca mais vestir o uniforme de Escoteiro. O que adiantou a promessa? O
que adiantou a palavra fraternidade? Ele sabia que o assunto virou fofoca na
cidade e alem disto ser suspenso? Audrey não sabia o que fazer. Deixou a barba
crescer. Usava um chapéu esquisito achando que com isto escondia sua
vergonha. Não conversava com ninguém. Uma dor tremenda por dentro. Traído
por quem nutria um amor sincero, sem malicias, e ele mesmo com seu coração
de ouro pensou em perdoá-la. Mas ela nunca mais o procurou. Um mês depois o
Mestre Pioneiro o Senhor Antônio o procurou em sua casa. Junto com O Diretor
Técnico e todos os pioneiros do Clã. A conversa foi franca e sem pieguice. O Clã
tinha dado um ultimato ao Grupo Escoteiro. Audrey devia voltar. Sempre fora um
Escoteiro padrão e hostilizá-lo daquela maneira era um absurdo. Se o Grupo não
o aceitasse de volta todos do Clã pediriam demissão.
Seu pai foi contra. Achava que ele não tinha motivos para voltar.
Foram contra ele. O ridicularizaram. Viraram as costas quando ele mais
precisava. Sua mãe foi a favor, devia voltar cabeça erguida, quem não deve não
teme. Não foi fácil para Audrey tomar uma decisão. Mas ele tomou. Voltou ao
grupo. Olhava seu distintivo de promessa. Lembrava-se de tudo. Prometera ter
honra, cumprir seu dever e ao seu modo tinha ajudado a todos que o
procuravam ou não. O que diziam não era verdade. Ele tinha a consciência
tranquila. Amava o escotismo. Com todo seu coração. Tinha de voltar.
Seis meses depois voltavam de uma atividade na Fazenda da
Fortuna. Um ótimo local para acampamento e gentilmente cedida pelo seu
proprietário aos escoteiros. Era um domingo. Quatro quilômetros a pé até o
entroncamento onde pegariam o ônibus para a cidade. Ao chegarem ao trevo um
automóvel em alta velocidade se desgovernou e bateu a toda em um caminhão
tanque. Um estrondo se fez notar. Audrey correu até o automóvel. Tinha duas
pessoas dentro. O motorista estava morto, a cabeça esmagada pela lataria do
caminhão. Ao seu lado uma moça. Gemia de dor. Incrível, era Patricia.
Desacordada. Todos gritaram para ele que se afastasse. O caminhão tanque
começara a pegar fogo e a explosão era eminente. Audrey tirou sua faca. Com o
cabo quebrou o vidro. Sozinho arrastou patrícia até um lugar seguro.
O socorro dos bombeiros não demorou. A explosão aconteceu.
Parecia uma bomba de alto teor explodindo. Eles estavam em lugar seguro.
Patricia foi socorrida. Levada ao hospital. Dois dias depois ele foi visita-la.
Estava inconsciente. Seus pais o abraçaram e agradeceram pelo gesto. Pediram
perdão pelo que ela lhe fizera. Ficou sabendo que ela poderia ficar paralitica.
Talvez perdesse a voz e a memória. Audrey deu a mão aos seus pais. Vamos
rezar só Deus sabe o que deve ser. Que seja feita sua vontade.
Cinco meses depois estavam em reunião de sede. Era o dia que
Audrey ia receber a Insígnia de BP. Ele se sentia outro homem. Alem desta
comenda tão importante sua alegria era maior. Passara no vestibular de
medicina. Seu sonho. Sempre querendo ajudar. Uma surpresa – Patrícia
adentrou na sala em uma cadeira de rodas. Levantou com tremenda dificuldade.
Caminhou até ele. Ajoelhou e pediu perdão. Uma cena comovente. Inolvidável.
Todos ficaram com lágrimas nos olhos. Audrey a abraçou. A beijou ternamente
no rosto. Uma palma Escoteira explodiu. Os pais de Patricia também estavam lá.
Os pais de Audrey também. Ninguém poderia esconder a alegria que sentiam.
Audrey passou a visitar patrícia. Ela andava com dificuldade. Não
era mais aquela moça arrogante do passado. Precisava ainda de ajuda em quase
tudo que fazia. Pediu a Audrey para aceita-la de novo nos pioneiros. Sabia que
não poderia fazer tudo que eles faziam, mas um dia ela iria conseguir
acompanhar. O Clã ficou em duvida. Audrey insistiu. Foi aceita. Passaram a sair
juntos. Audrey voltou a sentir o amor e a paixão de antes. Cinco anos depois
Audrey foi fazer residência em um hospital da capital. Ia sempre a sua cidade
visitar Patricia. Ela aos poucos já andava sem ajuda.
Casaram-se logo após Audrey abrir seu consultório médico na
periferia da cidade. Pretendia se dedicar aos pobres. Patricia o apoiou. E sempre
estava lá. Como enfermeira ajudava. Não era mais Pioneiro. Agora era um Chefe
de Tropa Sênior. Patricia ria com seu novo uniforme, pois foi convidada a ser
Assistente dos Lobinhos. O Doutor Audrey foi feliz para sempre com patrícia.
Tiveram dois filhos. Rita e Lovegildo. Sua bondade foi reconhecida em toda a
cidade. Quando se falava em escoteiros todos se lembravam dele. Ajudar o
próximo em toda e qualquer ocasião. Um lema de escoteiros para ser lembrando
para sempre!
“Só nos recordamos verdadeiramente daquilo que nos era destinado. A memória não lê
as cartas alheias”.
Ekelund Vilhelm
Em algum lugar do passado. Lá em Brownsea:
“Os jovens foram divididos em quatro patrulhas: Corvos, Lobos, Maçaricos e Touros
(assim estes foram os primeiros nomes usados por patrulhas escoteiras). As patrulhas
acampavam por sua conta, sob a direção de seus próprios monitores, com total
responsabilidade pela sua honra de levar adiante os desejos do Chefe e com grande
eficiência”.
O saudoso bastão totem da Patrulha Maçarico.
Eu estava escrevendo um bilhete simples para uma Chefe de lobinhos
que não tinha ido à reunião e por um acaso não podemos nos encontrar. Minha
visita foi exclusivamente a ela, pois fizemos um curso juntos e queria matar as
saudades. O Chefe do grupo me deixou a vontade na sede enquanto as sessões
estavam em atividade no pátio. Era um sábado um lindo dia. Bom mesmo para
atividades escoteiras. Estava ali, pois era Chefe de tropa e as quatro patrulhas
da tropa que colaborava tinham ido acampar. Não foi o primeiro acampamento
sem chefia. Ouve outros. Estavam bem adestrados e o local oferecia segurança
e eu confiava nos monitores. Claro iria lá à noite e no domingo também. Ficaria
pouco tempo. Só ver se tudo estava bem.
Já ia sair quando ouvi uma voz meiga, triste dizendo – Oi Chefe! Dá-me
um abraço? – Olhei e não vi ninguém. Quem seria? Esconder ali era difícil. Local
pequeno. Achei que tinha me enganado. Virei para a porta e de novo ouvi a
mesma voz – Não vá Chefe, estou sempre sozinho. Dá-me um abraço! Caramba!
Prestei mais atenção e só vi um bastão com um totem da Patrulha Maçarico.
Como? Totem não fala. Não chora e nem diz que está sozinho. – Sou eu mesmo
Chefe, o Maçarico. Sinto muita falta dos meninos. Hoje ninguém liga para mim.
Estou sozinho aqui a muitos e muitos anos. Se tiver tempo lhe conto minha
história. Estava deveras surpreso. Claro, muitos me chamaram de louco. Diziam
que só eu escuto vozes assim. Escondi muita coisa que vi e ouvi. Não iriam
acreditar. Primeiro foi o chapéu de três bicos que falava, depois veio O totem da
Patrulha Pantera. E o Lampião Vermelho? Não faltou o lenço verde amarelo que
também falou comigo.
Fui até lá e peguei o bastão com o totem que estava todo empoeirado. O
coitado precisava de uma limpeza. Devia estar ali jogado há muitos anos. Peguei
um pano e fiz uma boa limpeza. Ele ria e agradecia. – Chefe, tem tempo que não
me limpam. Não estava mais aguentando a poeira. Dei uma melhorada na
amarração do totem com o bastão. Ficou firme. Levantei-o no ar. Ele gostou. Riu
de novo. Oh Chefe! Que bom. Saudades dos velhos tempos! Precisava ficar ali.
Precisava entender porque ele estava tão empoeirado e sozinho num canto. Vi
que era só ele, não tinha outros totens. No mínimo estava com as patrulhas em
atividade.
Encostei-o na mesa e ele me olhou com aqueles olhos tristes (totem não
tem olhos podem me dizer, mas aquele tinha, e olhe lagrimas caíram quando me
contou sua história). – Sabe Chefe, foi há muito tempo. Acredito que tem mais de
vinte anos. Foi quando começou o Grupo Escoteiro. Um Chefe preparou oito
meninos como futuros monitores e submonitores. Havia dezenas de meninos
querendo entrar. Formaram quatro patrulhas. Juninho meu Monitor conversou
com todos. Disse que sua sugestão seria de escolher uma das patrulhas que
foram montadas durante o primeiro acampamento Escoteiro na história.
Realizado na ilha de browsea por Baden Powell (BP). Corvo, Touro, Lobos e
Maçaricos. Ele deu a ideia de chamar a Patrulha de Maçarico. Contou que o
Maçarico-pintado é da família “Scolopacidae”. Também são conhecidos como
Baturinha, Maçariquinho, Maçariquinho-pintado e rapazinho (no Rio Grande do
Sul). Contou que ele habita locais com água, tanto na costa como nas águas
interiores. Manguezais, margens de rios e lagos. Vivem sempre em bandos.
- Continuou o Totem Maçarico – Todos os patrulheiros ficaram
entusiasmados. O próprio Juninho ficou responsável para me fazer. Sua mãe
colaborou. Recortou um feltro e ali bordou o que ela achava ser um maçarico.
Pode olhar, ela me bordou. Não é uma perfeição, mas se aproxima muito.
Juninho o nosso Monitor, ficou cinco dias escolhendo em vários pés de goiaba
quem seria o escolhido para ser o meu bastão. Ele sabia como fazer e o fez com
perfeição. Quando fui apresentado à patrulha e eles deram o grito e meu amigo,
fui às lágrimas de alegria. A Patrulha se orgulhou de mim. Sentir as mãos deles
me segurando sempre quando davam o grito, olhar o Monitor me erguer à frente
olha Chefe, era um orgulho para mim.
- Eu lembro-me de um acampamento Distrital de Patrulhas que no terceiro
dia os Maçaricos conseguiram a Bandeirola de Eficiência Geral. Quando o Chefe
a colocou um palmo abaixo de mim, olhei para ela e sorri. Seja bem vinda eu
disse. A Bandeirola também sorriu. Devia ter pensado que agora estaria em boa
companhia. Mas não foi o último. A Patrulha Maçarico era valente. Era forte. Não
tinha medo, amigos para sempre. Como eu amava aquela Patrulha. Duas ou três
vezes por semana lá estavam eles na sede. Seja em reunião de Patrulha, ou
mesmo para um trabalho extra eu me sentia em casa. Ninguém se esquecia de
mim.
- Estivemos juntos tantos e tantos acampamentos que até perdi a conta.
Juninho nunca se descuidava. Sempre passando um saboroso óleo que
disseram a ele que seria bom para conservar a madeira. Dava gosto de me ver.
Sempre limpo. Sempre impecável. Lembro e nunca esqueci quando ele a frente
da Patrulha nos levou até a uma elevação bem alta, próximo a nossa cidade, e ali
no escuro, noite alta, antes da lua nascer pediu que fizéssemos um juramento.
Não deixar nunca que os maçaricos esqueçam um dos outros. Manter a Patrulha
a todo custo e que sempre o totem Maçarico ficasse em posição de destaque.
Mas o tempo Chefe, o tempo é cruel. As coisas nem sempre são como nós
queremos.
- Juninho foi com sua família para outra cidade. Ricardinho assumiu a
patrulha. Não era mau sujeito não. Mas nada igual ao Juninho. Esquecia muito
de mim. Deixava-me na chuva, à noite na intempérie sem proteção. Eu via que
minha madeira do bastão já não era a mesma. A continuar assim em breve iria
deteriorar e precisaria de um novo. Mas Ricardinho também se foi. Todos se
foram. Os novos não sabiam de nosso juramento. Não ligavam a mínima para
mim. Tornei-me um pária, um Maçarico abandonado. Sempre jogado em um
canto e outro.
- Mas o pior mesmo aconteceu. Eram todos novos. Não os culpo. Agora
diziam que tudo estava mudando e o nome da Patrulha devia ser mudado.
Maçarico era coisa do passado. Escolheram um nome bonito vistoso. Tiger Man.
Não sei se era homem tigre. Meu Deus! Não tinha nada a ver. Mas era moda.
Nomes pomposos, nomes em idiomas inglês, francês, italiano enfim, me
esqueceram mesmo. Fiquei ali onde o senhor me encontrou. Tem mais de dez
anos que estou sozinho e abandonado. Ninguém mais quer saber dos nomes
tradicionais. Onde foram parar os Touros? Os Maçaricos? Os Corvos e tantos
outros?
- De um passado de glórias e ainda bem que as tive, hoje sem nada.
Abandonado. Sem valores e esquecido em um canto qualquer da sede. Espero
que não me tirem meu passado me destruindo. – Não disse nada. Dizer o que? O
Diretor Técnico chegou. Não entendeu o porquê eu olhava fixo para o totem do
Maçarico. Sem comentários. Ele não ia entender mesmo. Coloquei o totem no
canto onde o encontrei. Falei baixinho para ele. Volto sábado que vem. Você vai
ter o destaque que merece. Perguntei ao chefe se ele autorizava eu colocar o
Totem na sala principal, em lugar de destaque, pois afinal era uma das primeiras
patrulhas surgidas quando o escotismo começou. Ele não se fez de rogado. – As
ordens meu amigo. Fique a vontade.
Durante a semana procurei seu Almeida, um bom marceneiro. Expliquei
a ele o que queria. Uma armação para colocar um bastão de um metro e meio em
uma parede e que chamasse atenção. Na sexta fui buscar. Meu amigo ficou
linda. Ele deu umas pinceladas na madeira com diversas flor de lis e como dizem
os jovens, ficou mesmo joia. Mandei fazer um quadro. Eu mesmo escrevi lá.
Palavras que saíram do coração. Cheguei lá cedo. Comecei o trabalho. A
armação ficou linda na parede. Convidei todas as patrulhas para homenagear o
Totem do Maçarico. Um Monitor o colocou lá. Eu mesmo coloquei em cima o
quadro.
Nele tinha escrito. Maçarico, Baden Powell te viu nascer. Aquela
Patrulha do passado vive hoje em você. Você merece nosso aplauso! As
patrulhas deram uma palma Escoteira. Não entendiam bem de tudo. Não podiam
entender. Receberam outra formação. Todos voltaram à reunião. Fiquei só com o
Totem Maçarico. Ele sorria um sorrisos dos mais lindos que já tinha visto. Seus
olhos vermelhos com lagrimas caindo. – Obrigado Chefe. Obrigado mesmo.
Você não sabe como me fez feliz. Uma homenagem que nunca esperava receber.
Sabe Chefe, precisamos dar valor ao passado. Ele pode voltar e novamente
encantar a todos. Mas isto só poderá ser possível se tiver alguém para mostrar
que isto faz parte de uma bela tradição.
Fui embora prometendo voltar pelo menos uma vez por mês. Nunca
deixei o Totem Maçarico sem um abraço, sem uma saudação. Sempre tirava um
dia para uma visita. Onde ele está vejo que sorri sempre. Ele aprendeu com os
escoteiros e eu aprendi com BP. A verdadeira felicidade é fazer a felicidade
alguém!
Em algum lugar do passado. Lá em Brownsea:
“Mas as memórias mais vividas de todas eram os fogos de conselho, antes das orações
e do apagar das luzes. Ao redor do fogo à noite o Chefe nos contava algumas histórias
assustadores, conduzia ele mesmo o canto Eengonyama e com seu jeito inimitável atraia
a atenção de todos”.
“Eu ainda posso vê-lo como ele ficava diante da luz, alerta, cheio de alegria e de vida, um
momento grave, outro alegre, respondendo todas as questões, imitando o chamado dos
pássaros, mostrando como tocaiar um animal selvagem, contando uma história curta,
dançando e cantando ao redor do fogo, mostrando uma moral, não apenas em palavras,
mas usando histórias e convencendo a todos os presentes, rapazes e adultos, que
estavam prontos para segui-lo em qualquer direção”.
A escoteira Gigi, o rouxinol da montanha.
"Se você ama a música a ponto de servi-la humildemente, o sucesso acontecerá
automaticamente”.
– Maria Callas
Quando nasceu Maria Eugenia não chorou. Os médicos
estranharam. Ela os olhava com seus lindos olhos verdes bem abertos. Quando
a colocaram junto à mãe, ela sorriu. Incrível! Gigi falou as primeiras palavras aos
oitos meses e com nove já andava pela casa toda. Mas a surpresa maior foi
quando ela fez dois anos. Ouvia musicas junto aos seus pais e cantava. Uma
linda voz, mas ainda em fase de desenvolvimento. Gigi foi crescendo e quando
fez seis anos seus pais se assustaram. Gigi não era uma boa aluna. Só mesmo
uma cantora excepcional.
Seus pais eram pessoas humildes. Sem posses, mal uma casinha
simples na periferia da cidade. Ela convivia com meninas da sua idade, mas tão
pobre como ela. Dificilmente os pais podiam comprar um presente para ela no
natal. Mas nunca deixaram de dar, sempre um presente simples. Gigi não se
importava. Gostava de sentar na frente de sua casa e com as amigas ela
cantava, todos calavam e ficavam de olhos e ouvidos fixos em Gigi. Ainda
cantava musicas comuns.
Quando fez sete anos, viu na escola uma menina de uniforme e ficou
encantada. Perguntou o que era e soube que ela era lobinha. Encantou-se.
Queria ser uma delas. Sua mãe uma simples lavadeira nem entendeu direito seu
pedido. Seu pai, um pedreiro sem emprego, trabalhando como diarista tentou
dissuadi-la. Não conseguiu. Ela não chorava, sabia de sua condição humilde,
mas tanto falou que sua mãe e seu pai um dia de sábado vestiram suas roupas
de ir à missa. As melhores que tinham e a levaram ao Grupo Escoteiro.
Seus pais se sentiram um peixe fora d’água quando chegaram ao
Grupo Escoteiro. Em um canto do pátio observavam tudo até que um chefe bem
educado os procurou. Explicaram o porquê estavam ali. Deixaram bem claro
suas condições financeiras. Nunca poderiam arcar com despesas se ela fosse
aceita. O chefe Carlos foi calmo e sorrindo explicou que não se preocupassem.
O Grupo Escoteiro tinha uma verba para ajudar aos jovens mais pobres. Mas
que para isso eles deveriam também estar presentes à vida do grupo, para
qualquer tarefa. Quais eles seriam cientificados posteriormente.
Um mês depois Gigi foi apresentada a Alcatéia Seone. Foi o dia
mais feliz para Gigi. A princípio a Akelá a achou meio “sapeca”. Não levava a
serio sua matilha. Alguns meses depois Gigi se transformou. Nelsinho o primo
da matilha era um dos seus melhores amigos. Infelizmente Nelsinho não ficou
muito tempo. Seus pais mudaram da cidade. Foi nesse dia que descobriram na
Alcatéia a voz que Gigi tinha. Ela cantou sozinha a canção da Despedida. Não
houve quem não chorasse. Baloo sorriu e disse para Bagheera em seu ouvido –
“Incrível! Será uma das maiores cantores do nosso país.”.
Mas Gigi se revelou mesmo quando a Alcatéia foi ao parque
municipal, em um domingo ensolarado. Quando das brincadeiras e
desenvolvimento da reunião especial, deram falta de Gigi. Encontraram-na
próximo ao anfiteatro ao ar livre. Uma orquestra sinfônica fazia uma
apresentação com vários cantores. Acredito que foi a primeira vez que Gigi
ouviu alguém cantando Tosca, de Giacomo Puccini. Ela estava de olhos
arregalados e pediu a Akelá que esperasse até a música acabar.
Não sei e não posso explicar, mas quando acabou uma salva de
palmas explodiu de todos os ouvintes, Gigi começou a cantar a Tosca. Sem
orquestra. Como se diz na gíria, a “escoteira”. Um silêncio enorme de todos os
presentes. O maestro acorreu mais perto para ver. Pediu para ela subir ao palco,
uma estrondosa palma. Gigi não se abalou. Quando o maestro ia agradecer a ela
veio outra surpresa. Gigi começou a cantar Madama Butterfly Lib. Incrível!
Incrível mesmo! Ninguém aguentou. Emocionados ficaram de pé aplaudindo
Gigi.
Ela com seu uniforme de lobinha sorria. Linda a Gigi. Linda
mesmo a Gigi. Saiu correndo e voltou para sua Alcatéia sem se despedir de
ninguém. Os chefes e as chefes da Alcatéia Seone estavam mudos. Não sabiam
o que dizer. Foram procurados pelo maestro. Explicaram que não eram os pais
de Gigi e não podiam tomar nenhuma atitude a respeito. Que ele desse um
cartão e eles falariam com seus pais. Gigi a princípio passou a ser olhada de
outra maneira. Mas por um ano ela não cantou. Todos esqueceram o dia no
parque. Entregaram o cartão aos pais de Gigi, mas eles acharam prudentes não
fazer nada.
Ao fazer dez anos, a Alcatéia participou de uma grande atividade
do distrito e da região. Mais de quinhentos lobinhos presentes. Cada Alcatéia
deveria fazer uma apresentação no ultimo dia. Não seria por matilha, seria por
Alcatéia. Dez minutos no máximo. Resolveram fazer um jogral que sempre
faziam na sede. Uma apresentação musical contando a historia da cidade onde
moravam. Interessante, parecia que todos da Alcatéia sabiam o que ia acontecer.
Ao subir ao palco, todos os lobinhos formados um ao lado do
outro. Os demais lobinhos e lobinhas assistentes faziam uma enorme algazarra.
Claro, quinhentos e oitenta e cinco lobinhos e lobinhas. Quem daria conta de
calar a todos? Gigi tomou a frente da Alcatéia e começou a cantar. A principio
ninguém notou, mas o silencio em poucos minutos se fez ouvir. Gigi cantava La
Traviata. ACT 1. Linda, uma musica que ninguém entendia, mas interpretada por
Gigi todos ficaram maravilhados. As palmas e bis mostram que ela podia cantar
mais e como cantou. Norma, Lá Wally, Mefistole, Ebbem. Crianças de sete a dez
anos sentindo a musica no coração. O tempo correu, Gigi parou e desceu o
palco correndo como sempre o fazia.
Todos os chefes de lobinhos e lobinhas não sabiam o que fazer.
Em coro os lobinhos gritavam – Gigi! Gigi! Gigi! Era incrível mesmo. O tempo
passou. Gigi fez a trilha escoteira. Chorou muito quando foi para a patrulha
Touro. Não queria. E pouco tempo se acostumou. Em pouco tempo aprendeu a
gostar de sua nova vida. Agora era uma escoteira e adorava os acampamentos,
excursões e todas as atividades da tropa. Uma nova vida, e não gostava muito
quando insistiam para ela cantar. Achava que o tempo era para aprender
técnicas escoteiras, fazer boas ações, viver em plena natureza.
Gigi adorava deitar na relva e olhar o céu em uma tarde
qualquer quando estavam acampadas. Lorena sua monitora uma vez perguntou
por quê. Ela custou a responder e disse. Encontro-me no céu. Lá vejo musicas
que não conheço. Alguém as dita para mim. Não sei quem é. Nunca vi seu rosto,
nem sei sua voz. Vem em forma de sussurros na minha mente. Para sua
surpresa seus pais comentaram com ela que tinham recebido um convite de um
grande maestro para um teste na orquestra sinfônica da cidade. Gigi não deu
muita importância. Nunca se mostrou entusiasmada com convites. Cantava por
cantar.
Seus pais com as roupas domingueiras levaram Gigi ao teatro
Municipal em uma quarta feira à noite. Gigi insistiu em ir de uniforme escoteira.
O que aconteceu foi o normal. Todos abobalhados com Gigi. Não podiam
acreditar que uma menina (ela já estava com catorze anos) como aquela poderia
ser uma copia fiel de Maria Callas. Alguns chegaram a dizer que seria mais
famosa que Maria Bárbara Júdice da Costa, ou mesmo que Emma Shaplin ou
superior aos homens. Achavam que nem Enrico Caruso se fosse vivo poderia se
igualar.
Fizeram um contrato. A principio queriam tempo integral. Gigi
foi elegante, mas exigente. Minha participação do Grupo Escoteiro não seria
abandonada. Não poderia participar de nada da orquestra quando fosse fazer as
atividades escoteiras. Para isso ela traria sempre o programa anual para eles. O
sucesso explodiu na vida de Gigi. Aos dezesseis anos já participando da tropa
de guias, ela foi ao exterior. A orquestra fez um giro por países sul-americanos e
onde passavam Gigi era ovacionada de pé por todos. No Teatro/ópera do Chile
Gigi se superou. Ao cantar Lá traviata, o teatro veio abaixo. O público aplaudiu
por dez minutos seguidos. Os pedidos de bis evocaram pelo anfiteatro.
Jornais do mundo inteiro ficaram sabendo de Gigi.
Interessante. Na ultima musica apresentada, ela fazia questão de vestir seu
uniforme de escoteira. O maestro ria e não se importava. Isto dava uma nova
figuração à apresentação. Em sua turnê por Nova Iorque Gigi se apresentou no
Orpheu Theatre por duas semanas. A Boy Scout soube que se apresentava de
uniforme e comentou em seus boletins e e-mails a todos os Grupos Escoteiros
do país. (diferente do Brasil onde os mais novos entram para uma sessão
chamada de Viger Cubas e os mais velhos na Vaesite Scout).
Não havia mais ingressos disponíveis no teatro durante sua
apresentação por duas semanas. Os lideres da Boy Scout procuraram Gigi e o
maestro. Combinaram de fazer uma apresentação gratuita no domingo pela
manhã, se possível no Conservatory Waty no Central Park onde ao ar livre
pudesse reunir o maior numero de escoteiros. Os jornais do outro dia diziam ter
participado mais de cem mil escoteiros. A Polícia de Nova Iorque falou que havia
menos, uns sessenta mil. Não importa. Gigi impecável no seu uniforme escoteiro
cantou Suor Angélica ‘Sister, Mefistofele, Ebbem? Ne andro, Addio Del Passado
e Spargi d’amaro pianto. No final cantou Tosca de giacomo Puccine e os
escoteiros gritaram entusiasmados aplaudindo. Uma estrondosa palma
repercutiu em vários pontos do Central Park.
A fama de Gigi se espalhou. Já não era pobre. Ganhava muito.
Muito mesmo. Seus pais viviam confortavelmente em uma bela casa em sua
cidade. Ma Gigi não estava gostando. Não era bem o que pensou para sua vida.
Com vinte e oito anos resolveu parar. Ninguém podia acreditar. A maior cantora
lírica de todos os tempos não se apresentar mais aos seus inúmeros fãs em
todo o mundo? Foi então que um dia quando estava com seus pais, afastada do
palco, recebeu a visita do chefe Carlos, e de muitas amigas que agora tinham
crescido e foram com elas lobinhas, escoteiras e guias.
Uma delas disse a Gigi que falava em nome de todas. Pediam
para ela continuar. Pela primeira vez a juventude se interessava por um tipo de
musica. Pela primeira vez a musica clássica ou até a música erudita era
apreciada por jovens de todo o mundo e até no Brasil. Afinal era um tipo de
musica que é fruto da erudição e não de práticas folclóricas e populares. – Você
sabe Gigi, dizia o chefe Carlos, hoje nossos jovens estão vendo o outro lado da
musica. Estão aprendendo a gostar de algum que nunca se interessaram.
Você com sua voz nos fez entrar em um mundo de sonhos.
Onde podemos meditar e viajar com um som inimaginável. Hoje espiritualmente
aprendemos a reparar no que estamos ouvindo, o porquê da musica, e quando
você canta nos transporta para os grandes acampamentos, onde a noite
respiramos a relva, a seiva da árvore, a aragem que sopra o som dos animais
noturnos. Você com sua voz harmoniosa e quando seus clássicos são cantados
é incomparável. Quem ouve sabe, ela a musica que você canta fala por si só.
Quando se foram, Gigi foi para a varanda de sua casa. Era noite
de lua cheia. Gigi ficou ali olhando o céu lindo, vontade de trazer a lua perto dela
e abraçar. Sentir através dela o mundo. Esqueceu que só tinha amado o
escotismo. Seu tempo sempre curto não viu ninguém para amar, entregar seu
coração. Mas Gigi sabia. Um dia ele iria aparecer. E ela não iria parar nunca de
cantar. Riu quando pensou sobre isso, a lua neste instante parece que riu
também com ela. Uma aragem gostosa bateu no rosto de Gigi.
Não sei o que aconteceu depois com ela. Soube que agora mora
na Itália. Canta por toda a Europa. Gigi a Escoteira ficou conhecida do mundo
todo. Tenho todos seus CDs. Agora fez mais um DVD. Continua linda. Dizem que
tem um namorado. Nunca vi a foto dele. Mas tenho certeza que Gigi é feliz. Ela
se encontrou na musica e no escotismo. Ainda ouço falar de suas
apresentações em Jamborees onde sempre é ovacionada pelos milhares
escoteiros e escoteiras de todo o mundo.
Saudades de Gigi. De sua alegria, de sua voz. Quando me lembro
dela coloco em minha vitrola seu CD. Sento na varanda de minha casa e os
sonhos entram pela minha mente de volta ao passado. Agora ouço Madama
Butterfly. Meus olhos choram. Lagrimas descem pela face. Sempre fui assim. Um
apaixonado pela musica linda de Gigi. Espero que ela tenha alcançado a
felicidade. Ela sempre mereceu. Teve tudo na vida que uma jovem não teve e
teve mais ainda, a felicidade de amar um movimento, movimento que lhe deu a
vida, lhe deu o sentido da vida e a revelou para o mundo!
Bravôô Gigi! Bravôô! Que você seja feliz para sempre!
E quem quiser que conte outra.
A esperança não murcha, ela não cansa, também como ela não sucumbe à
crença. Vão-se sonhos nas asas da descrença, voltam sonhos nas asas da
esperança.
Augusto dos Anjos
A lenda do escoteiro fantasma!
Quem tem medo de monstros e fantasmas, não sabe que o maior monstro e
fantasma que existe é o medo.
Barbara Danielly
Fim do ano ultimo dia de aula. No Ginásio todos aguardavam o debandar.
Eu mesmo esperava ansiosamente. Sabia que minhas notas eram boas e não
tinha dúvidas que passaria de ano. Logo ao atravessar o portão vi o Romildo.
Sempre fora assim. Romildo era o monitor da patrulha Raposa e eu o seu
submonitor. Sempre nos encontrávamos na saída. Ele estava na sétima e eu na
sexta série. Tínhamos uma rotina que perdurou por muitos e muitos anos.
Romildo era meu principal amigo e irmão escoteiro. Anos depois quando casei
lá estava ele como meu padrinho.
Estávamos aguardando o dia e a hora do acampamento da patrulha.
Seria nosso grande acampamento de férias. Quanto tempo preparando! Pela
primeira vez só a patrulha iria. Acampar sozinhos era para poucos. Foi difícil.
Provar que tínhamos condições para a Corte de Honra não foi fácil. Todos nós já
tínhamos boas experiências e com exceção do Mateus, os demais patrulheiros
tinham somado mais de cem noites de acampamento. Não queríamos ir aos
mesmos lugares. Descobrimos por um irmão do Romildo que em Águas
Formosas, pouco abaixo de Aimorés tinha um local maravilhoso.
Seria uma viagem e tanto. Mais de três horas de trem e depois mais duas
a pé até a Fazenda Grandes Rios. Disseram-nos que seu proprietário morava na
capital e com um telegrama para ele conseguiríamos autorização. Outra época.
Nada de distrital ou autorização regional. Bastava o de acordo da Corte de Honra
e do chefe da tropa. O mundo mudou. Hoje é necessário. Em menos de dois dias
veio à resposta. Fizermos questão de abrir o telegrama junto a todos os
patrulheiros na casa do Matheus. Os olhinhos, a esperança, a duvida estava
presente em cada um de nós.
- “Prezados escoteiros da Patrulha Raposa, adorei o pedido de vocês.
Estão autorizados, quem sabe vou lá fazer uma visita?” - Gritos, sorrisos,
abraços. Corremos até a casa do chefe Jessé. A noticia correu de boca em boca.
Os Touros, os Panteras e os Corujas vieram nos abraçar. Tínhamos um belo
programa. Pelo menos achávamos que sim. Seriam cinco dias, dias que seriam
contados por muitos anos e lido no Livro da Patrulha eternamente.
Acreditávamos que a patrulha era eterna.
Nosso programa era simples. Montar um bom campo de patrulha, se
possível com barraca suspensa, um toldo feito de madeirame trançado com
folhas verdes. Uma mesa com bancos para todos, uma cadeira para cada um, e
um pórtico. Sim desta vez seria um pórtico de pelo menos cinco metros de altura
e que fosse visto de longe para quem nos fosse visitar. Nele colocaríamos um
torre de vigia. Tinha que ter mais de oito metros de altura. Acreditávamos que
levaríamos três dias para confeccionar tudo.
Claro, Romildo adorava semáforos e faríamos alguns jogos utilizando
as transmissões a distancia. Nossa duvida era se lá tinha o cipó trepadeira que
iríamos precisar. Um dos poucos que se podia dar um volta do salteador, ou um
volta de fiel. Teria que ter uma utilização para através de cipós finos, fazer um nó
de arnês ou mesmo um volta redonda com cotes. Já tínhamos feito em outros
acampamentos amarras quadrada ou diagonal. Nossa experiência era muito boa.
Naquela época não existia o sisal de hoje.
Na quarta feira, lá estava à patrulha na estação da estrada de ferro.
Chefe Jessé também estava lá. Deu as ultimas instruções. Nosso saco de
intendência era quase completo. Tínhamos quase de tudo. Confiávamos em
Lourival (tico tico) nosso intendente. Ele era bom nisso. O trem expresso chegou
no horário. Nossas passagens eram gentilmente cedidas pela Companhia da
Estrada de Ferro. Sempre fora assim. Fazíamos o pedido por escrito com pelo
menos 20 dias de antecedência.
Chegamos por volta de onze da manhã. O próprio Chefe da Estação
nos ensinou como chegar à fazenda Grandes Rios. Foi uma caminhada gostosa.
Beirando o Rio Doce. Três horas e chegamos. O Sr. Gabriel o gerente nos
recebeu bem, pois já tinha sido informado de nossa vinda. Ofereceu um
pequeno almoço e claro não dissemos não. Ele mesmo nos acompanhou até o
local. Disse que quando jovem o Sr. Mario Montes (o proprietário) acampava
sempre lá com os escoteiros da capital onde moravam.
Era lindo o lugar. Primeiro um pequeno bosque, com grama baixa e
logo acima uma grande mata nativa. Um córrego de águas límpidas e
transparentes com pequenas corredeiras passava a menos de oitenta metros.
Ele nos disse que se seguíssemos acima uns cem metros encontraríamos uma
bela cachoeira. Romildo me olhou e disse – Acho que dá para trazer água ao
nosso campo de patrulha. Ri, pois sabia que ele sempre sonhara com isso. Mãos
a obra e nosso campo já dava para passar a noite. Um pequeno fogão tropeiro, e
nosso sopão sairia fácil nas mãos de Nildo (Fumanchú). Ele para mim era um
cozinheiro fora de série.
Anoiteceu, jantamos e ficamos em volta de uma pequena fogueira.
Logo o sono apareceu e fomos dormir logo. Estávamos cansados da viagem. No
segundo dia começamos a desenvolver nossas pioneiras. À tarde já tínhamos a
barraca suspensa. Também o toldo mateiro com os bancos e mesa. Resolvemos
ir até a cachoeira e olhe linda ela. Um belo remanso. Dava para ver os pequenos
peixes que ali habitavam. Um banho, muita alegria e muita diversão e voltamos.
A rotina da noite. Fumanchú nos reservou um belo jantar de linguiças fritas, uma
farofa com ovos e um pão para cada um.
No terceiro dia uma bela surpresa. O Sr. Mario Montes o proprietário
veio nos visitar. Uma pessoa alegre e simpática. Ficou conosco por pouco
tempo e prometeu voltar à noite. Acreditem, seria melhor ele não ter voltado.
Tínhamos acabado de jantar quando ele chegou. De uniforme! O Senhor ainda é
chefe escoteiro perguntamos? Não ele respondeu. Hoje não mais. Mas achei que
devia vestir o uniforme, pois só assim vocês poderiam ter sorte e conhecer ele. –
Ele quem? Perguntamos. O Escoteiro Fantasma! Rimos. Ele também riu e disse-
nos para acompanhá-lo.
Fomos juntos por uns quinhentos metros acima da cachoeira. No
caminho ele contou uma historia fantástica. História que ficou marcada para
sempre em nossa memória. Quando jovem, um escoteiro amigo seu, caiu de
uma árvore perto da ponte Ravina Seca. Caiu de costas nas pedras do riacho.
Morreu na hora. Foi um Deus nos acuda! Os pais inconsoláveis. A tropa passou
meses sem se reunir. Acampamentos? Nem pensar.
O tempo passou. Muitos esqueceram, eu não, dizia o Sr. Mario.
Voltamos aos nossos acampamentos aos poucos. Dois anos depois acampamos
neste local. Foram quatro dias. Tínhamos um medo enorme. Sempre nos
lembrávamos de Nonato (Nonato era o escoteiro que morreu). No ultimo dia
quando da realização do Fogo de Conselho um fogo enorme na mata,
levantamos correndo, mas a mata não pegava fogo. Nonato apareceu de forma
gigantesca. Seu tamanho descomunal foi diminuindo, estava de uniforme e
chapéu escoteiro. Sorria e quando abria a boca parecia que fogos azuis saia de
lá. Seus olhos eram enormes. Chispas de fogo nos dois.
Corremos a mais não poder até a barraca. Até o chefe correu. Era
outro que não tinha conhecido Nonato. A noite inteira ninguém arriscou a sair da
barraca. No dia seguinte levantamos acampamento as pressas. Depois cresci.
Fiquei sabendo de algumas historias. Como sênior voltei aqui varias vezes. Nem
sempre Nonato aparecia. Um dia vim à noite até a ponte. Lá estava Nonato.
Sentado em uma das pedras embaixo dela como se estivesse pescando. Pelas
suas costas saiam chispas de fogo.
Um ano depois resolvi conversar com Nonato. Falei com a patrulha e
eles me deram a maior força só não iriam comigo. Acampamos um pouco
afastado daqui. À noite fui sozinho até lá. Afinal Nonato era meu amigo e quando
apareceu para nós não nos fez mal algum. Ele estava sentado no mesmo lugar a
pescar com uma vara invisível. Aproximei-me e o chamei. Ele se voltou, desta
vez não dava para aguentar. Seu rosto não tinha mais carne, só ossos. Tremi e já
ia sair em disparada quando ele falou baixinho. – Não vá! Preciso de um amigo!
Contou-me uma historia que não vou repetir para vocês para não
impressioná-los. Mas entendi o porquê ele permanecia ali. Só conto a vocês que
ele só fica lá quando alguém acampa neste local. Romildo me olhou e não gostei
do seu olhar. Olhei para Fumanchú e os demais da patrulha. Não éramos heróis
e nem valentes. Não estava gostando desta historia. Mas o seu Mario foi muito
simpático e não podíamos negar isso a ele. Chegamos. Ninguém na ponte e nem
na pedra pescando.
Já íamos voltar quando seu Mario mandou esperar. Lá na curva da
estrada estava vindo cantando e assoviando nada mais nada menos que o
Nonato. Olhe, quando se aproximou seu rosto estava normal e afável. Soltava
algumas faíscas pelos olhos e fumaça em suas orelhas. Assustador mas dava
para aguentar. Seu Mario nos apresentou e ele quis saber o nome de cada um na
patrulha. Romildo disse. Ele não pegou na mão de ninguém. Nem podia. Suas
mãos estavam vermelhas como brasa.
Ele sorria. Disse que nos viu chegar e durante todo o tempo ficou ao
nosso lado. Só não apareceu, pois materializava o corpo durante a noite e só
próximo à ponte da Ravina Seca. Ele amava o escotismo. Infelizmente onde
morava não tinha nenhuma tropa para ele entrar. Claro disse, são gente boa,
mas tenho saudades. Estávamos todos de olhos arregalados. Todos juntos uns
aos outros. Nonato disse para não nos preocuparmos, ele não podia fazer mal a
ninguém.
Voltamos para o acampamento. Nonato ficou. Seu Mario dizia que ele
estava junto, mas não poderíamos vê-lo. Tremíamos. Chegamos e seu Mario se
despediu e se foi. Eram quase meia noite. Corremos para a barraca. Acho que
todos como eu custaram a dormir. Um medo incrível mesmo sabendo que o
jovem Nonato disse que não precisamos ter medo dele.
A patrulha no dia seguinte em reunião decidiu continuar. Voltar? Não
era um bom programa. Afinal tínhamos planejado muito. Não deu para fazer tudo
que queríamos. Estávamos sobressaltados. À noite então, dormíamos cedo.
Escurecia e nós “pimba” na barraca. No ultimo dia após o arreamento da
bandeira, já com todo o campo desmontado avistamos Nonato a uns cem
metros. Dizia-nos sem gritar que não era mais que um até logo, não era mais que
um breve adeus, pois bem cedo nos encontraríamos de novo da Ponte da Ravina
Seca.
Não disse nada, mas nem pensar. Nunca mais voltaria ali. Pobre
Nonato. Não sei se teve oportunidade de ver outros escoteiros acampando lá.
Contamos para as outras patrulhas. Riram. Desta vez vocês se superaram,
disseram. Nós já imaginávamos isso. Sabíamos que ninguém iria acreditar. Até
que os Panteras resolveram ir lá. E foram. Encontraram Nonato.
Disseram que fizeram amizade com ele. Agora participava da patrulha e
não parecia ser um fantasma. Mas só durante o dia. Quando a noite chegava,
seu rosto desfigurava, sua pele caia, chamas vermelhas saiam pelos seus olhos.
Era uma visão dos infernos, mas dentro um coração (não sei se tinha) de um
grande menino. Outras patrulhas lá se dirigiram. Houve até um acampamento
distrital.
A lenda do escoteiro Fantasma nunca foi esquecida. Quinze anos
depois ele desapareceu. Todos que iam a sua procura não o encontraram.
Nenhuma explicação. Acredito que Nonato achou seu caminho do Grande
Acampamento. Olhe, se você que está lendo e um dia acampar perto de uma
ponte de madeira, vá até lá à noite. Quem sabe você vai encontrar Nonato e ficar
seu amigo e olhe não se assuste com as chamas de fogo em suas costas e em
seus olhos. Se ele soltar fumaça tenha calma. Não é nada demais.
Hoje, passado muitos anos eu não esqueço essas historia. Sei que vão
dizer que é uma invenção, apenas um conto. Paciência. Não quero provar nada.
Não há necessidade. Afinal não fui o único, muitos outros viram Nonato
pegando fogo. Aprendi a gostar de Nonato. Gostaria de encontrá-lo novamente.
Quem sabe um dia acampando por aí, dou de cara com ele?
E quem quiser que conte outra
Saudade, sombra, fantasma,
coisa que bem não se explica:
algo de nós que alguém leva,
algo de alguém que nos fica.
Soares da Cunha
As aventuras de Totonho, O escoteiro Caçador de
Onças!
“Felizes dos que, relembrando a juventude, não se lembram de fatos
vergonhosos.”
"Se eu pudesse voltar à juventude, cometeria todos aqueles erros de novo. Só
que mais cedo."
(Tallulah Bankhead)
As Aventuras de Huckle Berry Finn é uma sequência do livro As
Aventura de Tom Sawyer. Delicioso conto de Mark Twain, mostra as aventuras
de um jovem que sendo maltratado pelo pai, foge e vai viver com uma senhora
de posses. Huck vive bem lá, aprende de tudo, e para fugir do pai novamente,
encontra um escravo negro e com ele se refugia em uma ilha. Lá descem o rio
Mississipi. Uma grande historia. Quem já leu nunca mais se esqueceu.
Mas porque estou escrevendo isso? Não sei. Risos. Não sei mesmo.
Aqui a história é outra. Quem não tem lembranças “gostosas” de suas aventuras
na juventude? Todos nós. Entretanto para aqueles que viveram suas aventuras
na juventude e participando do movimento escoteiro tem muito mais o que
lembrar. Disseram-me uma vez que na juventude aprendemos e na velhice
compreendemos. Interessante não?
Uma tarde de dezembro, antes do natal, fiz uma visita a um amigo meu.
Totonho Freitas. Ambos beirando os oitenta e dois anos. Eu e ele fomos
escoteiros na mesma tropa. Patrulha diferente, mas sempre amigos. Estudamos
na mesma classe. Ele se tornou um engenheiro famoso, eu ao contrário me
tornei um “velho” rabugento sem emprego. Totonho tinha uma veia de poeta. Ali
naquele tarde ele dizia – A juventude não é uma época da vida, é um estado de
espírito. Podia até ser. E completava: - Sabe meu amigo, se eu pudesse voltar à
juventude novamente, cometeria os mesmos erros de novo. Só que de maneira
mais saborosa, mais aventureira.
Lembro muito de Totonho. Seu rosto seu semblante quando jovem
estava sempre alegre, seus olhos viviam perscrutando tudo a sua volta. Totonho
me lembrou de belos fatos que já tinha esquecido. Ah! O passado. Mas olhe,
Totonho era diferente de mim. Mesmo com 83 anos ele ainda participava do
Grupo Escoteiro Estrelas Cintilantes. Eu devido a uma série de problemas de
saúde não participava mais. Recebia sim em minha casa dezenas de amigos que
se encontravam na ativa, e ria a mais não poder quando eles me contavam
gostosas histórias, de Elos, de ARP, de acampamentos. Eu adorava isto.
Totonho se lembrou daquele acampamento no sitio das Três Porteiras
que não pude comparecer. Uma forte gripe, uma febre alta e sabia que meus pais
não me deixariam ir. Chorei muito, mas o que há de se fazer? Acampamos
muitas vezes lá. O proprietário era amigo do nosso chefe e colocou a porteira
aberta para nós. Uma só é claro, as outras existiam na imaginação de quem deu
o nome ao sítio. Risos. Quando penso no sítio, não é como os de hoje. Era
enorme, linda mata uma lagoa enorme, duas nascentes e um belo córrego com
muitos peixes.
O chefe Jessé fez um desafio às patrulhas e elas claro aceitaram.
Éramos quatro patrulhas. Raposa, Pantera, Leão e Morcego. Eu da Raposa e
Totonho da Morcego. Seriam precisamente três desafios. O primeiro, não levar
alimentos de espécie alguma. Nem óleo nem sal. O segundo não levar barracas e
nem material de sapa. E o terceiro estávamos proibidos de dormir no chão
depois do primeiro dia. Como era época de férias, seria um acampamento para
cinco dias. Nas mochilas só uma muda de roupa e um cobertor além dos
materiais de higiene pessoal.
Todos “toparam” é claro. Afinal as quatro patrulhas possuíam vários
primeiras classes, outros tantos segundas e muito poucos noviços. Totonho me
olhava e ria dizendo que perdi o melhor acampamento de sua vida. Quando
somos jovens, temos momentos tão felizes que achamos que vivemos em um
mundo mágico, como é na nossa imaginação. Chefe Jessé dizia que os velhos
acreditam em tudo, as pessoas de meia idade suspeitam de tudo, e os jovens,
há! Os jovens eles sabem de tudo!
Eu fiquei sabendo de muitas coisas deste acampamento. Meu
monitor me contou tudo. Dormir em abrigos feitos no alto da árvore não era
difícil. Agora a alimentação esta não era fácil. Fizeram uma cabana pequena com
galhos quebrados nas mãos, montados em bambu seco que encontramos em
um bambuzal. Todas utilizaram árvores perto uma das outras. O pior estava por
vir. A alimentação. O monitor mandou três dos nossos saírem à caça. Sim
acharam que poderiam ficar cinco dias comendo frutas e aves na brasa. Para
quem não está acostumado é uma barra.
Eu ainda não tinha ouvido do próprio Totonho sua versão do que
aconteceu. Seu relato agora estava sendo feito, mas com essa idade não sei se
tem muitos fatos “aumentados”. Continuemos com a explanação de Totonho –
Junto com seu Monitor foram à caça. Saíram do campo de patrulhas como dois
aventureiros em busca do Vale da Fome. Risos, isso mesmo. Totonho armado
com seu bastão e muitas pedras no bolso. Encheram os bolsos de pedras
retiradas do riacho. Em seguida montaram diversas armadilhas “tipo pirâmides”,
tendo como iscas pedaços de mamão. Acreditamos que poderíamos pegar umas
pacas e se possível um tatu, contava Totonho.
Rindo e cantando, voltamos à tardinha com três pacas vivas e um tatu.
Olhe, poderia ter trazido muitas rolinhas bem gordinhas, mas na hora H, não tive
coragem de matar. Eu olhava nos olhos delas e pensava – Caramba! Nem sabem
quem sou eu. Matá-las? Nunca! Levamos os bichos que pegamos vivos. O
monitor me disse que nunca iria matar nenhum deles, se alguém na patrulha
topasse tudo bem. Se não levaram para o chefe liquidá-los. Afinal a ideia foi
dele!
Assim como Totonho e seu monitor, outras patrulhas também
trouxeram animais e pássaros vivos. Ninguém teve coragem de matar. Cada
patrulha visitou a outra a procura de um “matador”. Nada. Chefe Jessé e o Chefe
Munir estavam em seu campo de chefia quando os monitores os procuraram. A
surpresa deles foi enorme. – Nunca disseram! Não temos coragem. Soltamos os
bichos. Uma fome enorme. Alguns já sabiam onde havia vários pés de goiaba e
mamão. Goiaba verde. Mamão verde. Comemos assim mesmo.
A noite chegou. Uma tremenda dor de barriga. Totonho contava tudo
com uma pitada de Grande Aventura. Eu sei que ele tinha uma só palavra, no
entanto fatos que ele narrava não me foram relatados pelos outros na época.
Não tinha como duvidar de Totonho. Passaram a noite toda gemendo e
dormindo mal. O Chefe pouco pôde ajudar. No dia seguinte uma fome imensa.
Fizeram uma Corte de Honra para decidirem se iriam retornar ou um assistente ir
até a cidade comprar víveres.
Ninguém quis dar o braço a torcer. Afinal eram ou não escoteiros?
Correm ao primeiro sinal de perigo? Resolveram pescar. Pescar como? Alguns
juntaram galhos quebrados em arvores e amarrados com cipó, fazendo uma
pequena rede. Deu certo. Muitos lambaris e carás. Até duas traíras pequenas a
patrulha pegou. Todos em volta do fogo. Brasas. Jogaram os peixes já limpos na
brasa. A fome apertava a cada minuto.
Esqueci-me de dizer, mas as patrulhas tinham mestres para acender
fogo sem fósforos. Ouve outras ocasiões onde por inúmeras vezes treinamentos
como fazer. – Continuou Totonho - Os peixes começaram a tostar, ou melhor,
queimar. Meu amigo, cada um pegou seu pedaço. Tínhamos muitos peixes. Se
você ainda não comeu peixe na brasa, mais sapecado que torrado, e sem sal e
óleo, não sabe o que perdeu. Totonho ria a valer à medida que contava. Nunca vi
um peixe tão ruim. Mas dizem que a fome é negra. Aquela manhã comemos
peixe a mais não poder.
Totonho ria. E como ria quando contava. Eu também me entusiasmei e
juntei a ele rindo. À tarde – continuou – Mais peixes. Enganamos a fome. Alguém
disse ter descoberto próximo ao riacho, plantas que pareciam inhames. Uma
espécie de mandioquinha cinza que minha mãe sempre fazia. Puxamos a planta
e belos inhames apareceram. A brasa estava no ponto. Peixe com inhame.
Comemos a mais não poder. Não era inhame. Eram carás, um tipo parecido. Não
podia comer na brasa e sim diluído em água na panela. De novo a dor de barriga.
Estávamos aprendendo a ter dor de barriga naturalmente. Ficamos craques!
Risos.
O chefe Jessé não interferia. Era nosso desafio. Só visitava nosso
campo pela manhã para inspeção, na hora do almoço e a tarde sempre formava
a tropa para um jogo e algum adestramento mateiro. A noite um jogo noturno.
No terceiro dia não aguentávamos mais. Inhames espinhentos (carás), peixes,
mamão e goiaba verde. Na noite do terceiro dia ele nos ensinou como fazer uma
armadilha para pegar um animal maior. Tínhamos que achar cipós grossos, fazer
a emenda deles com uma costura de arremate bem firme para que ela tivesse
pelo menos doze metros.
Não foi difícil. Todas as patrulhas fizeram no dia seguinte. Algumas
nem foram usadas e só a nossa deu resultado. E que resultado! Enquanto as
outras usaram frutas como isca, resolvemos colocar lá duas rolinhas para atrair
um animal maior. À tarde depois de um jogo de Travessia em Alto Mar e antes do
banho fomos ver nossa armadilha. Incrível! Uma Onça pintada! Devia pesar uns
120 quilos não sei bem. Presa por um pé só. Estava cansada de tanto lutar para
sair Dalí. Olhou-nos com aqueles olhos de cachorro ladrão.
Totonho contava como se fosse hoje o que estava vendo. Eu não
acreditava muito. Nunca vi falar nessa pintada. Continuou Totonho – Ela parecia
ter quebrado as pernas e estava quase morta. Não havia mais jeito de soltá-la
para a natureza. A patrulha resolveu dar cabo dela. Matar como? Achamos um
pedaço de árvore bem grande. Todos seguravam na ponta e de uma só vez a
pancada na cabeça dela foi forte. Escoteiros unidos para matar!
A onça morreu. Fiquei triste. Triste mesmo. Se soubesse que seria
assim teria dado meu voto contra. Mas agora estava feito. Levamo-la amarrada
pelos pés e mãos, enfiamos um bastão que envergou e foi necessário dois.
Quase toda a patrulha com os bastão nas costas e a onça no meio. Ao
chegarmos todos correram para nossa patrulha. O chefe Jessé e o assistente
também. Os chefes ficaram tristes ao ver a onça morta. Todos ficaram. Mas
enfim, nem vou contar. Um churrasco foi preparado. Todos ajudaram.
Uma festa e uma tristeza. Desta vez enchemos a barriga. Churrasco de
carne de onça. Mesmo sem sal a carne da onça era deliciosa. Acho que seu
espírito não gostou de nós e de ser morta e comida daquele jeito. A noite uma
enorme tempestade se abateu no acampamento. Raios, trovões, mesmo
acostumados nos assustamos. Chefe Jesse veio correndo e nos mandou sair
das cabanas suspensas. Dito e feito. Uma ventania jogou tudo no chão.
Passamos aquela noite debaixo de arvores, mas a chuva
ultrapassava as folhas. Alguns se enrolaram em cobertores e mesmo molhados
davam alguma proteção. O dia seguinte era o do retorno. Nossas carretinhas
não vieram e tivemos que voltar com as mochilas todas molhadas e pesadas.
Mas valeu. Nunca tivemos nenhum adestramento de sobrevivência. Aprendemos
fazendo. Totonho se calou. As lembranças pesam.
Totonho meu amigo, me diga. É verdade mesmo a historia da onça? –
Totonho riu. Claro. Sem ela o acampamento não teria valido a pena. – Não sei
não pensei. Essa onça não estava no programa e nem nas historias que todos
os outros contaram. Mas enfim, que Totonho e sua onça se sintam felizes,
mesmo ela descansando o sono eterno na barriga de Totonho e de todos os
outros.
Não sei hoje poderia ser feito um acampamento assim. As normas
para acampar mudaram. Os chefes também. Não condeno, mas olhe, Totonho
disse que no Grupo Escoteiro que ele ajuda os meninos e as meninas ainda
fazem muitas atividades aventureiras. Deus queira que sim. Disseram-me uma
vez que os jovens estão mais aptos a inventar que fazer. Mais aptos a executar
que pensar, e são ótimos em iniciativas. Não sei, acho que eles tem hoje um
problema. Rebelam-se e não se enquadram ao mesmo tempo.
Quando somos jovens corremos em busca dos nossos sonhos.
Ainda acho que só é bom enquanto somos jovens. Á medida que avançamos na
idade, não convém que o arrastemos atrás de nós. A juventude é uma coisa
maravilhosa. Ainda acho uma pena desperdiçá-las em jovens. Risos. Mas eu
também fui um. Devia ter ido naquele acampamento. A história da onça pintada
de 120 quilos de Totonho é dura de engolir. Enfim, ele é um escoteiro e o
escoteiro tem uma só palavra e sua honra vale mais que a própria vida!
E quem quiser que conte outra...
* Às vezes é melhor ficar quieto e deixar que pensem que você é um idiota do
que abrir a boca e não deixar nenhuma dúvida.
O escoteiro Juquinha e sua maravilhosa noite de Natal
Melhor do que todos os presentes por baixo da árvore de natal é a presença de
uma família feliz.
Não conhecia a vida de Juquinha. Contaram-me de sua maneira de
ser, e como ficou conhecido por todos os escoteiros de sua região. Claro todos
vocês conhecem alguém como ele em suas tropas. Ele era aquele que não para
quieto nas formaturas, estava sempre rindo, adorava o escotismo, é o primeiro a
chegar e o último a sair. Inconfundível.
Alguns chefes que procurei me disseram que tais escoteiros eram
suas alegrias quando aos sábados encontramos aqueles jovens maravilhosos
querendo ser cidadãos, valorosos, sonhadores, enfim, qualidades
reconhecidamente de escoteiros espalhados por todo o mundo. Claro, tenho
certeza que existem vários Juquinha em seu Grupo Escoteiro.
Juquinha, disseram, naquela época era bem gordo para sua idade.
Se aproximando dos catorze anos. Na patrulha o chamavam de “meio quilo”.
Porque ninguém sabia. Risos. Deveria ser “uma tonelada”. O tempo não ajudou
Juquinha a emagrecer. Claro seu corpo se transformou, mas continuava a ser o
último da patrulha nas suas andanças com a tropa em atividades aventureiras. A
patrulha não se incomodava com isto. Sempre gostavam dele e acostumaram ao
seu jeito de ser.
O que mais preocupava a patrulha era quando saiam para alguma
atividade externa, onde sem transporte móvel, só podiam usar o “ETVV”
(Empresa de Transporte Viação Vulcabrás – antiga marca de sapato usado por
escoteiros exploradores - risos). Ou seja, a pé mesmo. Mas Juquinha estava
aprendendo. Já estava caminhando para a primeira classe. Tecnicamente
falando Juquinha era um “craque’”. Sabia tudo de tudo. Até seu chefe quando
tinha dúvida perguntava a ele.
Juquinha era assim. Persistente, muito obstinado. Resolvia-se fazer
uma coisa fazia. Logo após entrar para os escoteiros, me contaram que ele
resolveu fazer um forno de acampamento. Ficou na historia. Sem ninguém saber
fez um bolo de chocolate e que toda a tropa se deliciou. Era escoteiro nato.
Tinha um defeito. Era um sonhador. Ri quando me contaram. Ele acreditava
mesmo nos seus sonhos. A história das Escarpas Pantaneira quando ele sumiu
ficou gravado na mente de todos que lá estiveram. O que ele contou deixou a
todos boquiaberto. Mas isto é outra historia claro a primeira historia de Juquinha
em busca do vale dos sonhos.
Aquele fora um sábado alegre para todos menos para Juquinha.
Ultimo dia em que a tropa se reunia, pois nas férias escolares ela também
entrava em recesso. Ninguém tinha a menor dúvida que os chefes precisavam
de um descanso para si e suas famílias. Todos entendiam, mas Juquinha não.
Para ele o escotismo não podia parar. Como todos os anos ele já tinha planejado
o que fazer com mais quatro amigos da patrulha e dois de outra. Nada que
oferecesse perigo, e de pleno conhecimento de seus pais.
Juquinha tinha passado na padaria do bairro, pois sua mãe tinha
encomendado uma sacola de pães e outros tipos doces, pois como era sábado
ela iria fazer um lanche. Conhecia todos lá. Quando chegava de uniforme o
olhavam e o saudavam com o Sempre Alerta. Juquinha era bem quisto. Sorriu
com a sacola do lado para todos e saiu da padaria cantando o “Acampei lá na
montanha” Era a preferida dele. Nem reparou no garotinho magro, raquítico,
com as roupas em frangalhos e com um canivete enorme em suas mãos o
ameaçando.
Foi um susto. Ele pediu a sacola de pão ou matava Juquinha. Sumiu
na esquina com a sacola. Correr não adiantava, ele sabia que não era rápido.
Gritar achou que não era bom. O ladrão podia voltar e o ferir com o canivete.
Deixou que ele levasse os Paes. Voltou à padaria e comprou outra fornada.
Riram quando ele contou o que aconteceu. Disseram a ele que não era a
primeira vez que o ladrão de pão tinha atacado.
Em casa contou para sua mãe que o tranquilizou. Ela sabia o filho
que tinha. Juquinha ficou pensativo. Começou a andar pelos arredores até que
uma tarde o viu próximo a mesma padaria. Viu quando ele ameaçou uma
senhora e tomando da sacola de pão saiu em disparada. Juquinha tinha se
colocado na esquina do outro lado e viu que ele parou de correr e andar
normalmente. Era seu truque. Não ser confundido com um ladrão correndo.
Juquinha a uns cem metros atrás o seguiu. Ele entrou em uma viela. Parou
olhando os dois lados da rua e entrou num casebre.
Viu uma menina de uns três anos e outro menino de dois. A mãe
chegou à porta e chamou os dois. Juquinha tomado de coragem bateu a porta.
Ela a mãe o olhou assustada. Juquinha contou o que tinha acontecido. Ela
começou a chorar. Disse que era culpada. Era doente, não tinha marido, não
conseguiram a bolsa família, e até a escola não aceitava mais seu filho. Diziam
que ele era um ladrão. Juquinha estava com os olhos cheios de lágrimas. Sua
garganta estava seca.
Prometeu à senhora que não iria contar para ninguém, mas ela
precisa tomar uma atitude, um dia seu filho poderia ser morto tudo por causa de
uns poucos pães. Foi para casa inconformado. Achava que a vida era boa para
alguns e ruim para outros. Ele tinha tudo eles não tinham nada. Sua mãe contou-
lhe um dia que o novo presidente do país disse que não iria descansar enquanto
houvesse um brasileiro sem comida na mesa. Seria seu compromisso e pedia
ajuda a todas as instituições, todos os partidos, universidade, imprensa e da
juventude. Ele era da juventude escoteira e não tinha feito nada.
Resolveu fazer alguma coisa. Juquinha era assim. Agora não iria
desistir jamais do seu intento. Não falou para sua mãe. Nem com seus amigos.
Iria dar um natal aquela família que ela nunca tivera na vida. Planejou tudo. O
que comprar como levar até eles na noite de natal. Mas o principal ele não tinha.
Condições financeiras para abarcar a compra. Não desistiu. De manhã saiu à
procura de uma solução.
Parou em frente a um grande Banco muito conhecido na cidade.
Entrou e estava apinhado de gente. Procurou o guarda e disse que queria falar
com o gerente. O guarda o olhou com aquele olhar arrogante, como se ele não
fosse ninguém. Era apenas um menino. Disse que ele tinha mais o que fazer,
nenhum gerente ia atender a um menino. Juquinha não gritou. Sabia e cumpria a
lei escoteira. O escoteiro é Cortez, educado, sabe à hora certa de dizer desculpa
meu amigo, muito obrigado, tudo bem. Eu entendo.
Foi para casa. Vestiu seu uniforme escoteiro. Colocou seu chapéu
de abas largas, verificou se seu meião estava com a linhagem correta. Seu lenço
bem preso com o anel de couro. Pegou seu bastão. Há tempos não o utilizava.
Voltou ao banco. O guarda o olhou de novo e não queria deixá-lo entrar. Ele
ficou ali na porta em posição de descansar com seu bastão aprumado. Todos
que entravam ele dizia – Quero falar com o gerente. O guarda não deixa. Dizem
que não atende meninos.
Um repórter viu aquilo e gostou. Perguntou o que ele queria com o
gerente. Juquinha disse que era uma conversa particular. O repórter insistiu e
Juquinha foi inflexível. O repórter ligou para sua emissora. Vieram dois camara-
men. Começaram a filmar. Logo uma multidão se formou em frente ao banco. O
Presidente da Instituição financeira viu tudo pela televisão. Ficou abismado.
Ligou para o gerente do banco. Juquinha foi convidado a entrar.
O Diretor Técnico, o chefe da tropa, o Comissário Distrital e até o
presidente regional viram tudo também e correram para o banco. Juquinha pediu
ao gerente que não deixasse nenhum deles entrar. Era um assunto de homem
para homem! O gerente começou a gostar daquele escoteiro gordo e sua
obstinação. Quase riu quando ele disse o que queria. A quantia não era pouca e
teria que ser exata. Juquinha disse que tinha quer ser tudo. Ele não tinha nada.
O gerente ligou para o Presidente do Banco. Este autorizou e queria
fazer um grande marketing em cima do episódio. Juquinha disse que se
fizessem propaganda ele não queria nada. Tinha de ser confidencial. O gerente
ligou de novo para o presidente. Este tinha sido escoteiro. Sabia o que era um
escoteiro. Tem uma só palavra, sua honra vale mais que a própria vida.
Autorizou o pedido. Juquinha levou o dinheiro vivo. A porta do banco centenas
de pessoas. Outros repórteres. Ele não disse nada. Seu pai veio correndo.
Juquinha entrou no carro e partiram.
Interessante como se desenrolam os fatos quando são dedicados
para o bem. Na noite de natal, Juquinha e todas as patrulhas de sua tropa
marchavam pela rua em direção à casa do menino ladrão de pão. Em frente à
casa, começaram a cantar a canção da promessa, depois cantaram noite feliz e a
família assustada ficou da janela olhando desconfiada. Juquinha foi até lá.
Convidou todos eles. Fizeram um circulo. Sentaram como se senta em um Fogo
de Conselho sem fogo. Foi montado.
A patrulha de Juquinha representou o nascimento de Jesus. Outra
patrulha os Três Reis Magos e outra imitou o sermão da montanha, onde Jesus
se dirigiu a uma multidão falando de seu reino. O bairro inteiro estava em volta
dos escoteiros. Todos aplaudiram. Juquinha trouxe um bolo de chocolate. Ele
tinha feito. Repartiu um pedacinho com todos em volta. Não deu para todo
mundo.
Terminou o Fogo de Conselho. Os automóveis dos pais dos
escoteiros começaram a chegar abarrotados. Pães, doces, caramelos, bombons,
balas de mel. Pedaços de ilusões perdidas, mas uma luz de esperança. Eles não
sabiam, mas achavam que Juquinha era o Papai Noel. Aquelas guloseimas
coloridas, eram retalhinhos de sonhos de uma vida. Eram visão dourada dos
filhos da família pobre.
Mas não terminou aí. Vários brinquedos, muitas roupas, todas
novas compradas e muitas doadas por generosos lojistas do bairro. Juquinha
entregou um cheque para a mãe pobre de mais de trinta mil reais. Disse que era
para começar uma nova vida em sua cidade do norte, pois ela havia contado que
queria voltar para lá e viver em um pequeno sitio. Uma palma estrondosa da
multidão. Olhe quem estivesse lá, nunca esqueceria. Tinha mais de setecentas
pessoas. Todos rindo, cantando, uma festa para a família pobre.
Não havia mais o rosário de ilusão e a frustração daquela família
ficou distante. As brumas embaçadas do tempo se foram como o vento em
direção ao mar. O menino ladrão de pão chorava. Dizia que nunca mais, nunca
mais faria aquilo novamente. Juquinha o abraçou. O menino arrependido lhe deu
seu canivete que usava para assaltar de presente. Juquinha aceitou. Retribuiu
dando a ele um uniforme completo de escoteiro que havia comprado na cantina
escoteira.
A imprensa chegou. A festa acabou. Ninguém conversou com os
repórteres e jornalistas. As noticias foram picotadas no jornal noturno. A
lembrança daquela noite nunca ficou apagada. Não houve festa na tropa. Não
era para ter. Faz parte do escotismo. Juquinha sorria. Chefe, ele disse. - Eu fiz
minha boa ação! Nada mais que isto. Uma pequena boa ação! Um dia quem sabe
vou fazer uma maior!
O menino arrependido cresceu. Misericordiosas lembranças. O
menino ladrão de pão nunca esqueceu aquela noite. Agradecia todo natal a Deus
todo Poderoso, por haver transformado o menino ditoso neste homem feliz que
hoje sou eu! Um dia voltei naquela cidade. Não encontrei Juquinha. Ninguém
sabia onde poderia encontrá-lo. Eu o trago no meu coração. Ele me deu outra
vida. Graças a Deus e a ele agora sou um doutor. Formei-me e todos os anos
nunca deixo de fazer o meu natal de Fogo de Conselho para os pobres meninos
da vida.
E quem quiser que conte outra...
A marca da Pantera
A história de um bastão escoteiro
“Hei pantera! Sabemos do seu grito, do seu rugido, da sua força. Sabemos que é
capaz de manter a união, perseverança. Sabemos que você sabe lutar, vencer,
viver, e sua fé une aqueles em sua volta. Pantera Negra patrulha do meu
coração!”
Lema da Patrulha Pantera
Já se passaram trinta e cinco anos. Quase uma vida. Ainda me lembro de
quando me fizeram. Um monitor novo, uma patrulha nova, todos iniciando na
tropa recém-formada. Para dizer a verdade, me sinto orgulhoso de todos eles.
Foram muitos que passaram pela patrulha durante este tempo. Guardo o nome
de cada um no fundo do meu coração. Desculpe, sou de madeira, dizem que não
tenho coração. Será? O livro de memórias da patrulha que o escriba guarda com
muito carinho, também tem seus nomes, tempo que permaneceram na patrulha,
acampamentos, endereços e o que conquistaram como escoteiros.
Houve épocas ruins, muitas. Monitores desleixados, que não ligavam para
mim, me deixavam em qualquer lugar. Já passei por grandes tempestades, caí
em córregos profundos, despenhadeiros, fiquei a deriva em um trem de ferro.
Incrível! Safava-me com galhardia. Claro tinha sempre um escoteiro bondoso da
patrulha que não me deixava desaparecer. Mas acreditem, sempre fui amado
pelos grandes patrulheiros da Pantera em todos os tempos.
Nasci há muito tempo. Era um frágil galho de uma goiabeira, mas me
orgulhava de minha raça araçá-guaçu, mesmo pertencendo a uma família com
tronco tortuoso, de casca lisa e descamante. Considerava-me um galho
pubescentes e por várias vezes vi as flores que vicejavam brancas, solitárias
principalmente na primavera. Nunca consegui dar frutos, não sei por que.
Comentavam a “boca-pequena” que nós goiabeiros somos os mais fortes, os
que mais duram. Não sei, talvez seja por isso que Romildo me escolheu.
Lembro bem quando ele se colocou debaixo da goiabeira e olhando para o
céu analisou todos os galhos ali existentes. Eu não sabia, mas ali começaria
minha saga do mais antigo bastão totem da Tropa Escoteira Titan (aquele que
tem sensibilidade, simpatia, cooperação, diplomacia e receptividade). Orgulho-
me de ter começado logo após sua primeira promessa. Não foi no mesmo dia.
Romildo e mais cinco amigos ficaram por três meses sendo adestrados como
monitores e subs.
No primeiro dia da formação das patrulhas, lá estava eu. Claro, passei por
várias etapas. Romildo me deixou secando dentro do quarto dele (dizia que o sol
iria me estragar) por uma semana. Depois gentilmente retirou minha casca sem
usar faca ou canivete. Passava todos os dias um pano embebido em óleo de
linhaça, e fiquei quinze dias ao pé de sua cama. Por último, passou de leve um
verniz incolor que produziu um brilho todo especial. Acho que foi amor à
primeira vista entre mim e ele. Romildo era um verdadeiro monitor.
Fez questão de fazer uma biqueira de aço, leve, que encaixou na minha
ponta e em cima também uma pequena tampa de aço com pequena alça onde
prenderia a ponta do totem, ambas encaixadas a fogo. “Todos os dias ele me
olhava, sorria me colocava junto a ele, vestia o uniforme e dizia Sempre Alerta”
me segurando com a mão direita e a esquerda com o sinal escoteiro levava até a
altura do coração.
Comprou de um sapateiro diversos cadarços de couro grosso, tipo
Camurção, beneficiado com as fibras do lado do carnal (parte interna da pele).
Comprou também outros cadarços feitos de pelica, um couro de cabra, leve de
toque macio, alto brilho. Depois me disse o porquê. Não se assustem, eu e
Romildo éramos bons amigos e nós conversamos muito. Sua mãe fez um lindo
Totem. Eu não sabia, mas tinham escolhido na patrulha que o nome seria
Pantera Negra.
Romildo era um estudioso. Seu chefe dizia que ele era um monitor de que se
orgulhava. Tinha de saber todas as respostas para os escoteiros de sua
patrulha. Aprendeu que a Pantera negra (Panhhera pardus melas) vive nas
selvas quentes da Malásia, Sumatra e Assa. Também na Etiópia. Seu pelo era
inteiramente preto. Na floresta não era amigável. Vivia mais só. Aprendeu que a
Pantera sabe mergulhar, nadar, salta sobre pedras soltas e cai a metros de
distancia. Ataca mamíferos. Prefere áreas cobertas de arbustos.
Romildo foi à biblioteca da sua cidade e lá ficou por vários dias até que
achou uma foto linda de uma pantera. (ainda não havia internet) Desenhou o que
sabia, pois não era bom desenhista e sua mãe pontilhou em um feltro amarelo, a
“Marca da Pantera”. Nunca mais foi mudado. Claro, o totem sempre me
reclamava por ficar deitado, torto e poucos notavam o desenho tão bonito da
pantera negra. Demorou algum tempo, até que o sexto monitor da patrulha fez
uma capa de plástico que só usava em acampamentos (para proteger das
intempéries) e um arco em forma do totem para mantê-lo sempre reto.
No primeiro dia que fomos apresentados a patrulha, ela deu um lindo grito.
Ficamos eu e o totem emocionados. Eu ainda não sabia o que eram os
escoteiros, mas aos poucos foi me tornando um deles. Decidiram que a cada
etapa mais alta alcançada por um dos seus patrulheiros, seria trançado em mim
um cordão fino de pelica. Vermelho para quem conquistasse os cordões de
eficiência e azul para os possuidores do Liz de Ouro. Para dizer a verdade, não
tivemos muitos. Cordões foram vinte e Liz de Ouro só quinze. Mas quem
chegava sabia que ali tinham passados grandes escoteiros.
Nem tudo foi alegria nestes meus trinta e cinco anos de vida. O oitavo
monitor da patrulha não era muito condescendente comigo. Deixava-me de
qualquer jeito, e olhe em um acampamento fiquei debaixo de chuva por três
noites. O Totem chorou varias vezes. Estava sem a proteção. Ele o Monitor me
usava como defesa de lutas com outros jovens. Não fui feito para isto. Mas o
pior aconteceu em uma manhã de inverno. Ele cansado da subida na montanha,
vendo que ninguém olhava me jogou despenhadeiro abaixo.
Ao chegar ao destino, o chefe deu falta de mim e do totem. Ele mostrou
onde tinha jogado. Procuraram-me e acharam. Ele perdeu o cargo de monitor.
Seu substituto leu todo meu histórico no livro da patrulha. Lá Romildo deixou
escrito como devia ser tratado. Limpeza a cada cinco meses e lustrar com um
pano embebido em verniz incolor. Olhar todo o bastão para ver se não estava
com machas que poderiam ser cupim. Senti-me outro. Gostei do novo Monitor.
Já com vinte anos de vida, a tropa Titan foi acampar em uma cidade distante
e o chefe conseguiu passagens gratuitas para todos. Fomos de trem.
Divertíamos muito. Chegamos, eles desceram e me esqueceram! O trem partiu e
eu fui com ele. Fiquei arrasado. O Totem como sempre chorava. Ele era muito
sensível. Disse a ele para não se preocupar. Eu sabia que iriam atrás de nós. Um
homem sentado numa poltrona ao lado me viu. Ao descer me pegou e levou com
ele.
Achei que nunca mais seriamos encontrados. Mas o homem foi ao chefe da
Estação e explicou que os escoteiros desceram na estação anterior e me
esqueceram. Passaram um telegrama. Fui embarcado de volta. Na chegada lá
estava toda a patrulha me esperando. Um grito gostoso da patrulha foi dado.
Senti-me em casa. Sempre sentia tristeza quando algum escoteiro passava para
sênior ou saia do escotismo. Afeiçoava-me há todos eles muito facilmente.
Um dia notaram durante um Conselho de Patrulha que o Totem estava se
desbotando muito. Pudera, ele já existia a vinte e oito anos. Teve que ser
substituído. Fizeram uma linda cerimônia de despedida. Vieram todos os ex-
panteras que ainda moravam na cidade e passaram pela patrulha. Foi uma
alegria para mim rever meus amigos de outrora. Quando colocaram o novo, olhei
para o antigo. Foi colocado em uma proteção de plástico amarela, que lhe dava
cor e colocado na parede principal da sede escoteira. Até hoje ornamenta a sala
da sede. Fiquei muito triste, pois afinal éramos eu e ele os primeiros bastão
totem a existir na tropa escoteira.
Tivemos lindas reuniões. Lindos acampamentos. Viajamos muito. Conheci
lindos lugares, os mais altos picos, as mais lindas planícies e os rios mais
espetaculares que poderia ter conhecido. Participei de centenas de atividades ao
ar livre, de competições, de encontros nacionais e regionais. Afinal sou um
privilegiado. Era apenas um galho de goiabeira e me transformei em um símbolo.
O novo Totem era lindo. Ele sabia disso. Mostrava-se grandioso, magnífico.
Tornou-se depois um grande e bom amigo. Ficamos irmãos em pouco tempo.
Nosso maior orgulho foi quando Os Panteras foram em um jamboree.
Uma apoteose. Milhares de escoteiros. Centenas de patrulhas. Conheci
bastão totem de todos os tipos. Mas eu e o Totem sorriamos. Sabíamos que
éramos da Pantera. Tínhamos orgulho. O dia mais triste em minha vida foi
quando Romildo faleceu. Estava novo ainda. Trinta e dois anos. Diziam que tinha
câncer. Não sei o que é isso. A patrulha compareceu em peso nas suas
exéquias. Centenas de ex-escoteiros também estavam presentes. Não choravam
se sentiam orgulhosos de Romildo. O meu criador, meu pai, meu grande amigo.
Os anos passaram. A tropa firme. Houve épocas difíceis. Um chefe que não
tinha muita experiência. Os Panteras ficaram reduzidos a três. Mas eram fortes
ainda. Difícil competir com outras, pois era uma norma não escrita que não se
empresta escoteiro de uma patrulha para outra. Na falta os presentes tem de se
desdobrar. Em todos estes anos, não tenho certeza, acredito que mais de cento
e oitenta escoteiros passaram pela Pantera. Tivemos dias bons, dias ruins,
reuniões que marcaram época e reuniões que deixaram a desejar.
Sempre aos sábados recebíamos visitas de antigos patrulheiros da pantera.
Eram sempre bem recebidos. Sabíamos os nomes de todos. Suas idades, seus
endereços. E a cada aniversário da patrulha, pois sempre celebrávamos o dia
maravilhoso que começamos muitos deles compareciam a sede. Era
maravilhoso ver todos juntos tentando segurar em mim e dar o nosso grito de
patrulha. Seniores, pioneiros, escotistas e vários ex-escoteiros. Dois deles que
conosco começaram, agora com seus quarenta e oito anos e o melhor, com
seus filhos.
Mas meu dia chegou. Estava envelhecendo. Estava na hora de aposentar.
Como dizem na gíria – hora de passar o bastão. Poderia ter continuado por mais
alguns anos. Mas não sei se ia dar conta nas duras lidas de um acampamento.
Todos receavam que pudesse quebrar rachar e ninguém queria me ver assim.
Ravim o novo monitor foi quem cuidou de tudo. Foi até uma goiabeira, olhou
para o céu, e escolheu um galho que se parecesse comigo. Estava escrito no
livro da patrulha como fui preparado. Romildo escreveu tudo que fez. Ravim
sabia como fazer.
Retiraram o totem e colocaram no bastão novo. O meu amigo do passado foi
retirado da parede e voltou novamente a ser meu companheiro. Mantiveram em
mim as marcas de todos que foram Liz de Ouro, e os que receberam os Cordões
de Eficiências. No novo mantiveram tudo que estava colocado em mim. Fizeram
uma réplica. A cerimônia da troca foi feita a noite. Estávamos fora da cidade. A
tropa fez um circulo. Eu participei pela primeira vez com todas as patrulhas da
tropa. Recebiam-me em saudação pelo monitor, davam o grito de origem e
depois o da Pantera. Colocaram-me em pé, e todos um a um passaram em minha
frente e deram o Sempre Alerta.
Marcou-me meu amigo. Marcou-me. Se fosse gente teria chorado. Mas o pior
era que eu achava que era gente. Que era um escoteiro e uma pequena gota
d’água correu pelo meu corpo de madeira. Não sabia se era uma lágrima. Mas
nunca mais esqueci aquela cerimônia. Todos os monitores, exceto Romildo
estavam lá. Eles no final ficaram na minha frente e um por um dizia do seu
tempo ao meu lado e das aventuras que juntos passamos. Quanta emoção.
Hoje, estou colocado na parede da sede. Vejo todos entrando e saindo. Ainda
sou um bastão escoteiro. Tenho orgulho de ter sido e sempre serei para a
Patrulha Pantera o seu símbolo. Os meus sentimentos nunca serão de altivez.
Não. Eu sei que o passado e as lembranças irão permanecer para sempre. Não
ligarei para o silencio nos dias sem reuniões, ou o som do grito dos Panteras ao
longe, pois eu vou lembrar-me de tudo. E se possível vou transformar o meu
passado em algo, que no futuro será sempre bom e gostoso de lembrar.
Principalmente nosso grito de patrulha. Feito pelos primeiros panteras, a trinta e
cinco anos atrás:
“Panteras, acordem, vamos seguir adiante,
Somos um só, unidos e juntos na memória.
Valentes, leais, nosso lema avante.
Pois nossa marca ficará para sempre na história
Não duvidem amigos, com a pantera ninguém pode!
Ego et tu unum sumus – Pantera! Pantera! Pantera!”
Não chore nas despedidas, pois elas constituem formalidades obrigatórias para
que se possa viver uma das mais singulares emoções da vida: O reencontro.
Richard Bach
O fantástico voo do paraquedas amarelo
“Se um homem dispuser de uma peça de pano impermeabilizado, tendo seus
poros bem tapados com massa de amido e que tenha dez braças de lado, pode
atirar-se de qualquer altura, sem danos para si”. A frase é de Leonardo da Vinci,
considerado um dos primeiros projetistas de paraquedas, invento que
possibilitou ao homem realizar o eterno desejo de voar - mesmo que por alguns
segundos.
Quando somos crianças temos sonhos, desejos e não nos
preocupamos se será alcançado ou não. Basta sonhar. Criamos em nossa mente
tudo aquilo que gostaríamos de realizar. Nada há ver com a história, mas quando
minha mente me leva ao passado de criança, lembro-me da personagem de
Dibs: em busca de si mesmo. (autoria de Virginia M. Axline) É a história de uma
criança que lutou pra conquistar sua identidade através do processo
psicoterápico. O Livro oferece uma visão daquilo que chama busca de si
mesmo. No final Dibs consegue emergir como uma pessoa brilhante e talentosa.
Um verdadeiro líder.
Eu estava com treze anos. Pertencia a patrulha da Raposa. Éramos
sete. Uma felicidade sem par. Sem televisão, sem internet, ainda sem pensar nas
namoradas a patrulha escoteira era nossa vida. Reuníamos praticamente todos
os dias. Amigos dentro e fora do escotismo. Cuidávamos com cuidado de nossa
intendência. Pobre claro. Pouca coisa – um lampião a querosene, panelas de
alumínio doadas por nossas mães, uma machadinha um facão tudo conquistado
a duras penas. Duas barracas de duas lonas era nosso céu nos acampamentos.
Daquelas usadas pelo exército na década de trinta.
Estavam velhas e por mais que cuidássemos elas estavam se diluindo.
Não tínhamos mais o que fazer. Tudo que nos disseram para fazer fizemos.
Estava difícil acampar. Lonas extras? Nem pensar. Um preço que não tínhamos
como pagar. Um dia achei uma revista na casa de uma tia, e vi um lindo
paraquedas. Encantei-me com ele. Mas como ter um para nós? Seria uma grande
barraca. Daria para armarmos facilmente e caberia todo mundo.
Sabia que era um sonho. Cidade pequena, só um cinema, uma igreja, uma
praça com um coreto, alguns ricos e a maioria pobres. Em nossos
acampamentos de fins de semana perdíamos muito tempo montando abrigos
naturais. Tínhamos uma técnica própria, mas mesmo assim perdíamos tempo na
construção. Um dia, acho que foi em um domingo de sol, vimos um avião
sobrevoando a cidade. Uma surpresa. Isto nunca acontecia. Só ouvíamos os
roncos de um que passava todas as quartas feiras pela manhã.
Em dado momento, vimos alguém voando fora do avião (um teco-teco).
Um paraquedas se abriu. O povo da cidade parou. Embasbacados todos
olhavam para o céu. Que beleza! Que espetáculo! O homem do céu caiu bem na
praça e um bêbado que todos chamavam de Sebastião Barrigada ajoelhou-se no
pé do paraquedista e gritou bem alto – Louvado seja Nosso Senhor Jesus
Cristo! Todos caíram na risada.
Eu não tirava os olhos do para queda amarelo. Ele enrolou tudo com
carinho e explicou que sua irmã iria se casar e ele não queria chegar atrasado.
Por isto o salto no paraquedas. Ele não iria decepcionar Mercedes. Conhecia-a.
Irmã de Laudivino nosso sub. Monitor. Grande. Fui correndo a casa dele. Chamei
os demais da patrulha. Conseguimos o para quedas. Arquimedes o irmão de
Laudivino nos presenteou. Um presente dos céus!
Levamos o paraquedas para a sede. Todos os escoteiros do Grupo se
juntaram a nós. Ninguém tirava os olhos dele. Chefe Jessé chegou mais tarde.
Sorriu. Grande chefe! “Fazer fazendo” era seu lema. Abrimos o paraquedas para
conhecer melhor. Muitas cordinhas de nylon que não conhecíamos. Uma época
de cordas de cânhamo. Aquelas de fibras nos faziam arregalar os olhos. Foi
aberto o para quedas. Nossa sede ficava na entrada da cidade. Na estrada do
Alvarenga. Próximo ao rio das Flores.
Um pé de vento apareceu de uma hora para outra. Levantou o
paraquedas. Todos correram. Eu não. Agarrei-me as cordas. Amarrei-me em uma
delas. Era meu sonho! Não iria perdê-lo nunca! Fui levantado no ar. O
paraquedas com a força do vento se elevou a vários metros de altura. Virei um
menino voador. Um medo incrível, mas não larguei o paraquedas. Fui elevado a
mais de oitenta metros de altura. Não vi. Meus olhos se mantinham fechados.
Pedia a Deus que não deixasse perder o paraquedas.
A cidade inteira viu o menino escoteiro agarrado ao paraquedas. Não
entenderam nada. Uma multidão seguiu o pé de vento e o paraquedas. Ele
desceu suavemente na baixada do cristão. Graças a Deus! O local não tinha
árvores e era um descampado onde acampamos várias vezes. Não tive um
arranhão. Todos bateram palmas. Abri os olhos e vi uma multidão em minha
volta. Sebastião Barrigada estava lá – Louvado seja o menino filho de Deus!
Disse.
O paraquedas deu uma linda barraca. Durou anos. Mesmo depois que fui
para os seniores e finalmente os pioneiros, lá estava os raposas orgulhosos de
sua barraca de paraquedas. A única nas redondezas. Ninguém tinha. Só ela. A
Raposa que nunca mais esqueci. Não sei o que aconteceu depois. Cresci, mudei
de cidade, participei de outros grupos, mas acreditem, nunca mais esqueci o
fantástico paraquedas amarelo. Um sonho que se realizou!
Um dia a maioria de nós irá se separar. Sentiremos saudades de todas as
conversas jogadas fora, as descobertas que fizemos dos sonhos que tivemos
dos tantos risos e momentos que compartilhamos...
A bravura de um herói
Um conto baseado na historia de Caio Vianna Martins
Teço pensamentos abstratos,
de heróis que não conheci.
Heróis que moram na memória esquecida,
mas que inundam de orgulho
a biografia de uma nação.
Entre batalhas furiosas
e mortes anunciadas,
erguem-se ilustres destemidos
vitoriosos.
No seu sangue,
Heróis que moram na memória esquecida,
mas que inundam de orgulho
a biografia de uma nação.
Entre batalhas furiosas
e mortes anunciadas,
erguem-se ilustres destemidos
vitoriosos.
No seu sangue,
a história sofrida de quem ousou
ser escudo da raiva esforçada
por vencê-los!
E contrariando prévias derrotas,
saíram vencedores, de forma distinta
em todas as conquistas.
Volto meu pensamento para o passado. A um hiato entre a história e a
realidade. Não faz tanto tempo assim, mas existem lacunas que tento completar
e não é fácil. Muitos heróis alcançaram a fama, o estrelato mostrando seus
pontos fortes e levando uma palavra de esperança de um futuro melhor. Temos
aqueles heróis do passado, das grandes pelejas, e eles em tempo algum se
compararam aos feitos como Aquiles, o maior defensor de sua cidade. (as
Ilíadas). Tróia sobreviveu. Foi um fato da história assim como também
sobreviveu na mente de todos nós o que se passou com o bravo e valente
monitor que nunca será esquecido e sempre lembrado na memória dos
escoteiros.
Dizem que os heróis surgem em tempos difíceis quando as
oportunidades aparecem, outros dizem que os heróis não se fazem, já nascem
assim. Não sei se Caio Vianna Martins mudou a história escoteira com suas
palavras. Quem o conheceu nunca diria que um dia ele seria um Herói. Poderia
ver na história da humanidade, heróis que se fizeram. Dandara no Brasil, quem
já ouviu falar? Esposa do Zumbi dos Palmares foi uma guerreira feroz e brava
defensora de um quilombo. Maria Quitéria disfarçou-se de homem para lutar na
guerra da independência brasileira. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, única
brasileira homenageada no Museu do Holocausto.
Quem por acaso já ouviu falar delas? Ou de Heitor Villa-Lobos, maestro e
compositor famoso, ou Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes? E
finalmente Alberto Santos Dumont. Claro todos já leram sobre ele e seus feitos.
Esse intróito foi para lembrar-se do nosso herói. Brasileiro e escoteiro. Não é
uma historia cheia de surpresas e sim cheia de valores. Eu aprendi que nós
controlamos nossa atitude ou será que é ela quem nos controla? Heróis são as
pessoas que fazem o que tem de ser feito, quando tem de ser feito,
independente das consequências. Encontrei tudo isto em Caio Vianna Martins.
Poderia contar outra, mas Caio percorreu com sua fama os anais da glória,
desde os tempos outros até o limiar do nosso século.
Falar de Caio Vianna Martins é voltar ao passado. Um passado de glória, de
um valente Escoteiro que nunca será olvidado porque está presente em todos os
corações escoteiros, todos que um dia fizeram sua promessa. Muitos até hoje
discutem sua frase, tão bela, dita em hora tão difícil em sua vida. Nem todo os
escoteiros conhecem sua história. Ele se tornou um marco para nós. Não foi um
mito e nem uma fantasia como muitos dizem, mas sim um fato, uma realidade e
que o transformou em nosso herói!
Quando o conheci pela primeira vez, não passava de um jovenzinho magro,
raquítico, de um olhar profundo, sem se importar muito com sua aparência. Não
diferia dos demais jovens. Brincava, ria e como estudante não era o melhor, mas
também não era o pior. Lembro quando entrou em minha sala e pomposamente
me chamou de senhor professor. Claro, era uma obrigação na época, mas nos
seus olhos vi um brilho que somente aqueles que se sobressaem têm.
Eu lecionava no Grupo Escolar Visconde do Rio das Velhas. Lá o conheci
em meados de 1930. Para dizer a verdade, quem o visse não diria o que ele seria
um dia. Com seis anos completados, ainda não tinha ideia dos escoteiros. Na
cidade de Matozinhos em Minas Gerais não havia Grupos Escoteiros. E ele é
claro nunca pensou que um dia fosse entrar e viver sua maior aventura, que
terminou com sua celebre frase e que ficou para sempre gravada na historia
escoteira.
Ficou poucos anos na escola que lecionava e seus pais mudaram para a
capital do estado. Caio se matriculou na escola Barão do Rio Branco e não sei
por que ficou ali pouco tempo. Logo se transferiu para o colégio Arnaldo e mais
tarde no Afonso Arinos. Dizem que a lenda é feita de mitos e fatos. Na vida
juvenil de Caio não existem tantos fatos assim que justifiquem a lenda. Num
sábado, Caio resolveu assistir a uma partida de futebol em seu colégio. Viu pela
primeira vez e ficou fascinado com a reunião de uma tropa de escoteiros. Nunca
tinha visto nada igual.
Ficou toda a reunião ali, com os olhos pregados nos jovens escoteiros.
Na sua mente só pensava que precisava ser um deles. Tinham belos chapéus,
belos uniformes, um lenço no pescoço seguro por um anel de couro, e cada um
portava um bastão de madeira. Fizeram jogos, correram, gritaram e o que mais
agradou a Caio, o sorriso estampado nos lábios dos escoteiros o tempo todo.
Foi para casa e sabia que agora ser escoteiro para ele era ponto de honra. Caio
era um obstinado.
Tanto falou que seu pai o levou numa tarde de maio e o matriculou. Caio
simpatizou logo com seu chefe Clairmont Orlando Gomes. Assim como também
com o chefe Rubens Amador. Em casa sempre comentava com seus pais como
eles eram. Amigos, prontos a ajudar, pareciam irmãos mais velhos do que
chefes escoteiros. Gerson Issa Satuf era de outra patrulha. Caio sempre na
Patrulha Lobo. Ele gostava de todos os membros da tropa, mas tinha um carinho
especial com sua patrulha.
A alcatéia quase não dava as caras, pois suas reuniões eram em horários
diferentes. E quem sabe seja por isso ele nunca soube que ali havia outro
lobinho que seria lembrando por muitos e muitos anos por tudo o que aconteceu
naquele dia fatídico. Mas vamos falar um pouco de Helio Marcus. Ou melhor,
Hélio Marcus de Oliveira Santos. Um lobinho recém-admitido amava com todas
as forças sua matilha amarela, e um tagarela tanto na escola com os amigos, na
alcatéia e em casa com os pais.
Hélio tinha nove anos. Fazia mais de um que entrara para os lobinhos.
Sorria pouco, mas como falava. Era um entusiasta e sempre era o primeiro a
chegar e o ultimo a sair. Um dia durante um jogo do Kim (onde se colocavam na
mesa diversos objetos, os lobinhos observavam por minutos e tinha de lembrar
pelo menos da metade). Ele se lembrou de todos os vinte e quatro objetos.
Todos. Ficaram perplexos. Como perguntou a Akelá. Ninguém soube responder.
Nem o próprio Hélio.
Em setembro fizeram um acampamento, próximo onde hoje é cidade de
Contagem, que faz parte da grande Belo Horizonte. Era um sítio de outro amigo e
chefe do grupo. Era também um alto dirigente do escotismo mineiro, um grande
escoteiro chamado Francisco Floriano de Paula. Mestre, Reitor e doutor, fez do
escotismo mineiro um grande marco na historia da União dos Escoteiros do
Brasil. Foi um dos que colaborou na formação da UEB na época dividida em
varias federações. Escreveu grandes obras, mas destacamos o Para ser
Escoteiro. Uma marco introdutório para os jovens escoteiros iniciantes.
O acampamento teve a duração de quatro dias. Os lobinhos ficaram
acantonados na casa sede. Os escoteiros a uns 500 metros, próximo a uma
pequena mata e um riacho de águas claras e límpidas e que hoje é conhecido
por Rio Arruda. Nada a ver com o hoje com o de ontem. À noite fizeram um
grande jogo noturno. Duas turmas, cada uma com duas patrulhas. Uma turma
ficava na defesa e outra no ataque. (eram 24 escoteiros).
Os atacantes tinham de se camuflar de maneira tal que pudessem passar
sem ser percebidos em uma área de 100 metros, por uma passagem de mais ou
menos 30 metros. Os defensores estavam armados com bolinhas de barro mole
e se acertassem os atacantes estes eram considerados mortos.
Caio tirou toda roupa, ficou só com um calção preto. Pintou-se todo de
negro. Rastejando, como uma cobra, passou fácil pelos defensores que
guardavam a passagem. Ninguém o viu. Foi o único que conseguiu. Os demais
foram todos descobertos e mortos. No dia seguinte, ele não conseguiu tirar a
pintura do rosto quando da inspeção e ficou marcado no acampamento como
“cara guaxinim”. À noite, após o fogo do conselho, o chefe Clairmont convidou
todos para deitarem na relva e observarem a movimentação das estrelas e
constelações.
Um espetáculo inesquecível. O chefe Clairmont mostrava onde ficava cada
uma das constelações e como deveria ser observada nos meses subsequentes.
Isto facilitaria muito numa provável tomada de rumo, quase que perfeita se um
dia viessem a se perder. Estava tão intertido na explanação do chefe que nem
notou ao seu lado o Escoteiro Gerson Satuf. Cochilava parecendo estar com um
sono enorme. Eram mais de onze da noite.
Isto me foi contado pelo chefe Clairmot, quando nos encontramos seis
meses após o desastre. Foi na Praça Raul Soares em um encontro regional de
professores do Estado. Não tínhamos uma grande amizade e nem sei por que o
assunto veio à baila. Mas o desastre foi de proporção nacional e todos inclusive
eu gostaria de saber de detalhes. Muito me foi narrado. Até mesmo a promoção
de Caio a monitor. Ele não esperava. Era novo na patrulha e quem sabe por ser o
mais alto e mais velho (já estava com 14 anos), foi escolhido. Naquela época BP
comentava em seu livro Escotismo para Rapazes que os mais velhos sempre
são mais respeitados pelos mais novos.
No mês de novembro de 1938, a Comissão Executiva do Grupo Escoteiro
Afonso Arinos, programou uma excursão técnica-cultural até São Paulo. Nem
todos participaram. Somente seis lobinhos, doze escoteiros, três pioneiros, o
chefe Clairmont o chefe Rubens e mais dois da Comissão Executiva. Uma
delegação de vinte e cinco membros. Caio convenceu seus pais a ir. Era um só
sorriso e sua mente vibrava em conhecer São Paulo.
Caio sonhava com a viagem. Passou noites e noites pensando como seria
São Paulo, já considerada a maior cidade brasileira. Embarcaram à tarde na
estação de Minas, um imponente prédio em estilo neoclássico. O primeiro
relógio público de Belo Horizonte ali foi instalado no alto da torre da estação. Em
frente está uma bela praça, a Rui Barbosa, onde se encontra o “Monumento da
Terra Mineira” uma linda estátua de bronze que representa a conquista do
território mineiro pelos entradistas e bandeirantes e os mártires mineiros.
Quem um dia for visitar este imponente local, não deve deixar de ver os
dois leões, que foram encomendados ao artista belga Foline. É um belíssimo
trabalho esculpido em mármore. Durante o embarque aquela alegria contagiante
que todos os escoteiros têm. Muitas canções, muitos “Anrê”, muitos gritos de
patrulha. Alguém já me disse que são “coisas” de escoteiros esta cantoria
quando viajam. Conseguiram um vagão especial de primeira classe, que ficava
no meio da composição de onze vagões no seu total.
Na partida, uma grande palma escoteira ecoou quando o Condutor, o
velho Gabriel, com seus bigodes imensos, seu uniforme impecável, e seu boné
bem colocado na cabeça, começou o seu périplo em todos os vagões. Uma
rotina de anos, seu inconfundível apito para anunciar a partida do trem, e agora
ali depois de percorrer os vagões da frente pedia educadamente – Bilhetes!
Bilhetes! E todos estavam sorridentes, com ele a mão para ver como ele
picotava e perfurava numa manobra de deixar todos os passageiros
embasbacados.
A viagem era longa. Era uma volta enorme. Iriam até Volta Redonda e lá
pegariam o rumo de São Paulo. Volta Redonda era uma bifurcação. Em frente à
estrada de ferro seguia para o Rio de Janeiro. Retornando São Paulo. Quase 20
horas em um trem sacolejante, mas que seria motivo de alegria e felicidade se
tudo corresse conforme os planos. Caio dormitava em uma poltrona e sempre
acordava olhando pela janela a fumaça e ouvindo o matraquear das rodas que
seguia o trem apitando aqui e ali ia cortando montanhas.
Quando me contaram de Caio, seus olhos abrindo e fechando de sono,
naquela viagem que seria sua última, penso como seria bom estar junto a ele. A
Maria Fumaça sempre foi um dos meus amores quando jovem. Margeando um
rio, com seus apitos estridentes, uma parada em uma pequena estação, alguns
saltam outros sobem. O cheiro do trem ninguém esquece. As fagulhas lançadas
no ar, as paradas nas caixas d’água para matar a sede da locomotiva. E os
guarda-pós? Usei muitos. Não sei por que, todos brancos.
Muitas vezes alguns funcionários da ferrovia passam despercebidos. Se
pudessem observar a estratégia do manobreiro, da simplicidade do guarda-
chaves alterando o percurso do trem, da destreza do maquinista, do esforço do
foguista alimentando a fornalha sempre faminta, do trabalho do pessoal da soca,
a fazer os reparos necessários e o do fiscal de linha garantindo a segurança da
viagem. E ali naquele vagão de primeira classe, dormia vinte e cinco escoteiros.
Vinte e cinco almas cujos destinos estavam traçados.
O relógio não parava. Onze da noite, meia noite, uma hora. Clairmont fez sua
ultima inspeção no vagão. Todos os escoteiros e lobinhos dormiam a sono
solto. O destino estava escrito. E como disse alguém, do destino ninguém foge.
Não poderia ser mudado. Nada em tempo algum poderia fazer com que a história
fosse outra. Em sentido contrário, descendo a serra da Mantiqueira, u cargueiro
seguia a todo vapor como a desconhecer o que iria encontrar a sua frente. Não
se sabe até hoje porque o chefe da estação João Aires não parou o trem, ou se
esqueceu do noturno, que sofregamente começava a subir a serra.
Qual seria o sonho de Gerson Issa Satuf? Ou de Hélio Marcos de Oliveira
Santos? Ou do próprio Caio Vianna Martins? Difícil saber. Poderiam estar
sonhando com seus irmãos, seus pais, ou mesmo sendo preparados lá no alto
por anjos protetores do desastre que iria acontecer em seguida. Em uma curva
Jonas o maquinista do noturno, que era conhecido como o Coruja, pois nunca
dormia a noite, viu o cargueiro que se aproximava em sentido contrário a toda
velocidade. Mario Duarte também viu o noturno, Mario era o maquinista do
cargueiro. Mais de vinte anos fazendo aquele caminho.
Nada poderia impedir o desastre. Nada. A velocidade do cargueiro era
grande e ambos os maquinistas sabiam o que ia acontecer. Os freios rangeram,
os apitos soaram e a batida veio forte. Estrondos se fizeram ouvir. Vagões foram
expulsos da linha, jogados em uma ribanceira. Eram duas horas e cinco minutos
da madrugada. Uma madrugada que entrou para a história. Um engavetamento
monstro se formou. Alguns vagões ficaram irreconhecíveis. 19 de dezembro. A
cinco dias do natal. Ano de 1938.
O carro dos escoteiros saltou dos trilhos e atravessou para a direita.
Outro carro colidiu com ele engavetando e o partindo ao meio. O vagão
prensado deitou-se em um barranco sendo comprimido por muitos outros.
Gritos. Pedidos de socorro, tudo escuro, não se via nada. Noite sem lua. O chefe
Clairmont e o chefe Rubens acordaram e sentiram tudo. Estavam apenas com
alguns arranhões. Atônitos viram o desespero dos passageiros.
Gritos de socorro, gemidos, o barulho da colisão agora se fazia em menor
escala. Clairmont e Rubens se puseram na ativa. Alí começou seu trabalho de
escotistas na hora do perigo. Os chefes Escoteiros sabem que um dia terão de
agir e esta hora chegou para Clairmont e Rubens. A seu modo eles também
foram heróis. Poucos se lembram deles. Seus nomes foram esquecidos.
Reuniram todos os jovens em um ponto da estrada. Deram falta de Hélio Marcos
e Gérson Issa Satuf. Procuraram e os encontraram mortos embaixo de
escombros.
Impossível descrever tudo nos seus detalhes mais íntimos. Era uma
carnificina. Feridos gritavam e a escuridão não ajudava na localização. As duas
patrulhas e os pioneiros fizeram uma grande fogueira. Usaram madeiras
destroçadas dos vagões. A única luz que ali poderia ajudar naquela hora
fatídica. O pânico reinava. Clairmont e Rubens batalhavam. Com os pioneiros e
escoteiros que nada sofreram socorriam os feridos, fizeram macas para os
casos mais graves e o resgate prosseguia, mas agora mais devagar.
Caio cambaleante ajudava em tipoias, estancando sangue de feridos, e até
ajudou na remoção de cinco até o um vagão dormitório que permaneceu intacto
e serviu de pronto socorro. Caio havia recebido uma forte pancada na região
lombar. Quase não comentava a dor intensa que sentia. Só às sete da manhã
chegou o socorro com médicos e enfermeiros da cidade de Barbacena.
Fora uma madrugada terrível. Os passageiros que nada sofreram
trabalharam incansavelmente. Clairmont e Rubens estavam esgotados. Não
pararam um só instante. Dois heróis. Dois homens que tinham a carisma dos
grandes heróis anônimos que surgem e nunca são lembrados. Quando a maioria
dos feridos tinha sido removida, viram Caio claudicando, sentindo dores
terríveis. Tentaram levá-lo. Ele não aceitou. Disse e apontava para as vitimas que
pareciam em estado mais grave e dizia, há muitos feridos. Eu não estou tão
ferido como eles. Recusou a maca.
A história como disse é cheia de fatos heroicos. Eles surgem assim do nada.
Caio Vianna Martins é um deles. Nunca pensou que ficaria como o grande herói
do escotismo nacional. Não disse suas belas palavras por dizer. Saiu
naturalmente. Viram que ele estava cambaleante, e seus olhos piscavam. Seus
lábios tremiam uma golfada de sangue saiu de sua boca e mesmo assim não
deixou em tempo algum que o carregassem. Disse para todos o que ficaria como
a mais bela frase já dita por uma legião de heróis – “Há muitos feridos aí. Deixe-
me que irei só. Ajudem os outros, eu sou um Escoteiro e o Escoteiro caminha
com suas próprias pernas”!
Saiu caminhando e desfaleceu quando chegou à cidade de Barbacena.
Morreu horas mais tarde em consequência dos rompimentos das vísceras e de
uma intensa hemorragia interna. Poucos o ouviram pronunciar essas palavras.
Alguns escoteiros e alguns enfermeiros. Elas foram comunicadas a nação e ao
mundo graças a dois homens públicos que lá estavam na hora. Eles foram
testemunhas da história. Alcides Lins e Otacílio Negrão de Lima. Este último
ficou conhecido como um grande político mineiro. Eles ficaram impressionados
com o que viram. Não só pelas palavras de Caio como a ação dos escoteiros na
ajuda aos feridos.
Levaram aos jornais o que tinham assistido. O mundo inteiro ficou
sabendo que o Brasil também forja homens e jovens com a desenvoltura de Caio
Vianna Martins e seus amigos escoteiros. As manchetes dos jornais e rádios
correram por toda a parte. Reconheciam no gesto de Caio Martins um fato
marcante na mente dos jovens que fazem parte desta nossa bela fraternidade.
Caio foi escolhido e eleito como o símbolo Escoteiro no Brasil.
Seu nome ficou gravado na história. Praças, monumentos, e até um
estádio de futebol tem seu nome. Estádio Caio Martins. Sua fama faz parte do
nosso orgulho Escoteiro. Ficamos ali sentados na praça eu o chefe Clairmont
por horas. Vi em seus olhos lagrimas furtiva, que correram em sua face quando
me narrou toda a epopeia. Completou dizendo que Caio Vianna Martins, Gerson
Issa Satuf e Hélio Marcos de Oliveira Santos, foram sepultados em uma tarde de
dezembro, véspera de natal, no cemitério Bom Fim, na zona norte de Belo
Horizonte.
Hoje seu Grupo no Colégio Afonso Arinos não existe mais. Mas ali um
placa de bronze é vista por todos do herói e seus amigos
Escoteiros pelos alunos que por anos e anos cursaram suas salas. Esta é uma
historia contada aqui e ali em pedaços imaginários e reais. Caio e seu gesto
foram uma realidade. Ninguém pode duvidar.
Escoteiros pelos alunos que por anos e anos cursaram suas salas.
Esta é uma historia contada aqui e ali em pedaços imaginários e reais. Caio e
seu gesto foram uma realidade. Ninguém pode duvidar. Suas palavras nunca
serão esquecidas e servirão sempre como uma diretriz para todos nós
escoteiros. O Escoteiro é alegre e sorri nas suas dificuldades.
Em memória a Caio Vianna Martins, Gerson Issa Satuf e Hélio Marcos de Oliveira
Santos, saudemos no panteão da glória e dos heróis nacionais com o nosso:
SEMPRE ALERTA! E tiramos o chapéu com o Grito de guerra da União dos
escoteiros do Brasil – Anrê – Anrê – Anrê! – Pró Brasil? Maracatu!
(Noticia publicada em jornais em todo Brasil)
Passou provavelmente despercebida, nas notícias pormenorizadas sobre
a última catástrofe da Central, a serena coragem daquele pequeno
Escoteiro, uma criança de quinze anos, que estando gravemente ferida,
os que o queriam levar em maca para o hospital, dizendo com um sorriso
de homem forte: "Um Escoteiro caminha com suas próprias pernas". E
caminhou. E foi, mas foi para morrer, poucas horas depois, no leito em
que o colocaram para uma tentativa de salvação. Este menino de quinze
anos honrou o nome e deu um exemplo a todos os Escoteiros do País. E
mostrou a muita gente grande que um Escoteiro sabe sorrir para morte
que o acompanha de perto.
Se um dia for erguido qualquer monumento ao "Escoteiro
Desconhecido", a lembrança do estoicismo desta criança resumirá a
bravura de uma geração de Escoteiros do Brasil.
“Há muitos feridos aí. Deixe-me que irei só. Ajudem os outros, Eu sou um
Escoteiro e o Escoteiro caminha com suas próprias pernas”!
Estoicismo (Noticia publicada em jornais em todo Brasil)
Passou provavelmente despercebida, nas notícias pormenorizadas sobre
a última catástrofe da Central, a serena coragem daquele pequeno
Escoteiro, uma criança de quinze anos, que estando gravemente ferida,
os que o queriam levar em maca para o hospital, dizendo com um sorriso
de homem forte: "Um Escoteiro caminha com suas próprias pernas". E
caminhou. E foi, mas foi para morrer, poucas horas depois, no leito em
que o colocaram para uma tentativa de salvação. Este menino de quinze
anos honrou o nome e deu um exemplo a todos os Escoteiros do País. E
mostrou a muita gente grande que um Escoteiro sabe sorrir para morte
que o acompanha de perto.
Se um dia for erguido qualquer monumento ao "Escoteiro
Desconhecido", a lembrança do estoicismo desta criança resumirá a
bravura de uma geração de Escoteiros do Brasil.
Nota do autor
Em julho de 1973, na cidade de Matozinhos, comemorando o cinquentenário de
nascimento de Caio Vianna Martins, fizemos a entrega da medalha de Valor ouro,
post-mortem a Caio Viana Martins através de seu irmão ali presente. Foi uma
cerimônia simples, com altas autoridades executivas, educacionais e políticas.
Presentes mais de 600 escoteiros mineiros e uns poucos convidados de outros
estados que ali fizeram o primeiro acampamento da fraternidade. Abaixo uma
foto da solenidade.
Carta de um Escoteiro 2° classe
(Conto de autoria do "Chefe" Escoteiro Sergio Augusto Vanti)
Nada jamais continua. Tudo vai recomeçar! E sem nenhuma lembrança das
outras vezes perdidas, atiro à rosa do sonho nas tuas mãos distraídas.
Mário Quintana
Querido papai
Andava eu pelas ruas como faço habitualmente buscando algum
biscate que me permitisse beber um gole a mais... Tu sabes como sou.
Deparei-me com a sede de meu velho grupo Escoteiro.
A porta estava aberta, entrei tudo abandonado, cheirando a velho e
mofo. Senti como um baque, um murro no peito a dor no coração. Vi-me
menino em meio aos bons camaradas da patrulha, a formatura, os gritos de
tropa, os jogos... Súbito alguém me chama pelo nome, me viro olho quem me
chama.
Surpreso, meio envergonhado vejo que é Mauro, meu antigo monitor.
José és tu mesmo? Mas quantos anos, que fazes aqui?
Um estrondoso silêncio é minha única resposta.
Chega! É demais, viro as costas saio correndo o passado me afoga em
meio a doces e dolorosas lembranças.
Papai tu lembras quando eu era um menino, levaste a mim e meu irmão
ao grupo escoteiro, pela primeira vez? Lembra que me contavas como
sonharas em ser escoteiro e tua pobreza nada te permitia senão estudar e
ajudar em casa? A tua alegria quando teus dois amados filhos te disseram
“Sempre Alerta”?
Eu me lembro de papai, isto eu não esqueci. Lembro-me da fé que tinhas
no escotismo e dizias sorridente: - O velho BP sabia das coisas, “Os
escoteiros podem guiar a nação”.
Lembro-me do teu orgulho, não cabias em ti de felicidade no dia de nossa
Promessa. Meu coração saindo pela boca, à seriedade de meu irmão, eu
dizendo “Prometo por minha honra cumprir os deveres para com Deus, a
minha Pátria e o próximo... Lembro, pai, naquele dia te vi chorar, quando me
pusestes o chapelão. Só tinha te visto chorar uma vez, quando mamãe
faleceu”.
Corro para minha casa imunda, bato a porta, não consigo parar de chorar.
Pai, a muito não cumpro minha promessa feita a Deus, a Pátria e a ti.
Lembro-me do dia em que te falei: - Vou deixar a Tropa Sênior. Tu me
perguntaste, por que meu filho? Até hoje não sei, pai.
Do dia em que te disse: - Não vou estudar mais
Do dia em que saí de casa.
Voltei para te ver quando quase já não estavas aqui e partiste com tua mão
entre as minhas, um sorriso no rosto cansado, dizendo, Sempre alerta,
querido.
Como pude como pude ser tão mau filho, tão pouco escoteiro?
Tiro debaixo da cama uma velha mala com as poucas coisas que não
vendi. Roupas, fotos amareladas, uma faca, lembrança da segunda classe, e
meu uniforme cáqui, meu querido uniforme que eu desonrei os distintivos, o
numeral.
Lembras papai, com que felicidade nos entregou as custosas fardas, que
no dia a dia de homem simples economizaste para mandar fazê-las?
Querias ver teus filhos, garbosos escoteiros.
Estendida sobre a cama, encharcada de um pranto incontrolável, tento
sentir as pontas de teus dedos no pano que muitas vezes tocaste, muitas
vezes abraçaste com tanto carinho ao final de cada reunião.
Pai, como errei tanto? Serei passível de perdão?
Olho para o puído distintivo de Promessa sinto a dor abrasar meu
coração.
Devo estar ficando louco. Como uma adaga perfurando um corpo
sedento de redenção... Sinto-te soprar em meu ouvido:
Filho, sempre é tempo de cumprir nossa promessa!
Alucinado arrependido em doloroso despertar, entre soluços jogo-me
de joelhos ao sujo piso, ergo a voz com o fervor de uma oração.
Neste momento abençoado, eu renovo minha promessa, redimir-me hei
de minhas faltas, deixarei esta maldita vida, cumprirei os meus deveres!
Por ti, meu amado pai, pelo escotismo, pelo Brasil!
Palavra de escoteiro!
Sempre alerta, querido papai.
Teu sempre, José.
Chega uma época em que nos damos conta de que tudo o que fazemos se
transformará em lembrança um dia. É a maturidade. Para alcançá-la, é preciso
justamente já ter lembranças.
Escrevi este pequeno conto há alguns dias. Dedico a meu amado pai, e
aos verdadeiros amigos Escoteiros que me acompanham nesta renhida luta
de educar, em especial, Elisa, Bepinho, Augusto, Marques, Michel, George,
Júlio, Tiarles, vocês moram em meu coração! Vanti
Como era verde o meu vale!
Nunca conheci meu vale,
Nos meus sonhos era verde na primavera
Lilás no inverno
E dourado no outono
Mas era meu vale, lindo, e ali.
E podia viver meus sonhos
Que nunca mais esqueci!
Conheçam a fórmula para a felicidade
Felicidade = P + (5xE) + (3xA)
. Na equação, P corresponde à pessoa (características da visão de vida,
adaptabilidade e flexibilidade), E mede o que é essencial ou existencial (saúde,
estabilidade financeira, amizades) e A representa as coisas que o entrevistado
considera como "em alta" em sua vida (autoestima, ambições, expectativas). A
autoestima, expectativas, ambições e senso de humor (H) também são
adicionadas, em menor escala.
Ninguém acreditou quando viu. Nem eu mesmo. Inacreditável!
Impossível! Médicos, psicólogos todos aqueles que deram sua contribuição para
a recuperação de Aninha se estivessem ali, estariam tão perplexos como eu.
Tudo fora tentando no passado. Longas viagens, passeios, terapia, enfim, seria
por assim dizer uma interminável lista, com todos os tipos de tratamento e
sugestões. Eu desconhecia esse fato. Nem mesmo me dei por achado quando
me falaram de Aninha. Aninha! Olhos negros, pequenos, nariz afilado, cabelos
encaracolados negros e cortados curtos. Nos seus sete anos não chamava
atenção, quieta no seu canto, sem sorrir, sem olhar para ninguém. Sempre
voltada para o nada, como se estivesse em outro mundo, em outra dimensão.
Só fui conhecer a historia de Aninha, muitos anos depois quando
tentaram enturmá-la em uma matilha na alcateia do grupo que participava. O que
me disseram foi uma historia fragmentada, onde nada se ligava, a não ser sua
profunda tristeza, fechada em sí própria. Quando nasceu seus pais não
observavam nada de anormal em Aninha. Claro, quase nunca chorava. Rir?
Nunca viram. Aos dois anos desconfiaram que ela tivesse algum problema. Não
sabiam o que era. Não tinham a menor ideia. Entretanto, verificaram que ela
tinha toda característica de uma criança autista. Afastava-se do mundo, das
meninas de sua idade. Inclusive dos seus próprios pais.
Ela vivia sozinha. Fechada em seu mundo. Não fazia amigos. Quando
chamada muitas vezes nem respondia. Seus olhos não tinham uma direção fixa.
Aqui e ali e nunca olhava ninguém diretamente. Parecia procurar algum no
infinito. Brincadeiras com outras crianças? Nunca. Bem Aninha falava
corretamente. Pelo menos a fala era perfeita. Mas o que mais entristecia aos
seus pais era o sorriso. Nunca viram Aninha sorrir. Nem chorar. Na escola seus
professores sentiam enorme dificuldade em acompanhá-la. Aconselharam aos
seus pais que procurassem ajuda especializada. Alí na companhia daquelas
crianças ela não se enturmava, não se desenvolvia e tudo que eles fizessem não
era do seu agrado.
Seus pais levaram Aninha a diversos médicos, terapeutas, psicólogos
e nenhum deles foram capazes de diagnosticar o que se passava com Aninha.
Descartaram a possibilidade de ser ela autista. Todos os testes indicavam o
contrário. Os pais de Aninha faziam de tudo. Nos fins de semana a levavam em
cinemas, shoppings, parques, tudo onde diziam que as crianças sorriam e
brincavam. Aninha não. Levavam uma vida modesta. Seu pai trabalhava em um
Banco na cidade, e seu salário era acanhado. Mas o suficiente para que desse
todo conforto a sua família e principalmente a Aninha.
Um dia, eu estava em casa, revendo um filme e que tinha visto diversas
vezes. Um dos meus preferidos. “Como Era Verde o Meu Vale". É um daqueles
filmes que ficam na lembrança para sempre. Acho que, mesmo para quem já o
assistiu revê-lo é reviver as mesmas emoções movidas pela história do jovem
Huw e de sua família. Há quem diga que ele era o preferido do diretor John Ford.
Talvez uma das grandes causas do sucesso desse filme seja o fato dele criar, de
alguma forma, um forte sentimento de família que persiste mesmo enfrentando a
obro pobreza, greves, acidentes etc. Deu-me um estalo! Eureka! Quem sabe o
escotismo pode ajudar?
Liguei para a Akelá Silvia na mesma hora, passava da meia noite, e
falei sobre Aninha. Ela já conhecia a historia. Perguntei se tentaram convidá-la a
ingressar na alcatéia. Ela me disse que a família esteve lá em duas reuniões.
Entretanto Aninha não mostrou nenhum entusiasmo. Nem mesmo ficou
prestando atenção a movimentação das lobinhas. Não me dei por vencido. Eu
acreditava que devia existir uma maneira de Aninha se interessar por alguma
coisa que poderia ser a solução para ela. O escotismo poderia ser a fórmula para
a felicidade de Aninha. Felicidade = P + (5xE) + (3xA). Não conhecem? Nem eu.
Inventei agora. E isso me fez acreditar mais e mais no que pretendia fazer. Eu
sabia que esta fórmula é a chave mestra da força do movimento escoteiro.
Estudei meu plano nos mínimos detalhes. Falei com os pais de Aninha,
com a Akelá, com o Diretor Técnico sobre o plano. Riram de mim. Com que base
diz isso? Se tantos especialistas tentaram e não conseguiram, você agora achou
a fórmula certa? Falavam. Mas eu acreditava. Queria o aval de todos. Os pais de
Aninha não se animaram, mas tampouco foram contra. Tinham tentado tudo e
sempre nutriam a esperança de ver Aninha sorrir. Só uma vez bastaria diziam.
Não sabiam como era seu sorriso. Ela nunca sorriu.
O dia chegou. Eu não tinha medo ou receio. Se desse certo, teria feito
meu papel escoteiro da boa ação. Se desse errado, paciência. Sempre devemos
tentar. Se um dia formos nos criticar, que seja por ter feito e não por ter deixado
de fazer. O dia foi de sol, a tarde uma linda tarde prenunciava o sucesso no meu
empreendimento. Eu acreditava piamente que daria certo. Fui à casa de Aninha.
Tudo estava preparado. Esperamos dar umas oito horas da noite. Ela dormia
profundamente. Sua mãe a carregou até o carro.
A viagem foi curta. Chegamos logo ao sitio onde a Alcateia Waingunga
acantonava. Eu sabia que o Fogo de Conselho seria por volta das nove da noite.
Teríamos que transportar Aninha sem ela acordar, até o local, e ali sentada em
uma cadeira de praia e no escuro, Aninha seria acordada com a chegada das
lobinhas, que caladas iriam ficar em volta da fogueira e dando as mãos
cantariam bem alto a Canção do Fogo do Conselho. Aninha acordaria e vendo as
chamas altas e tantas meninas alegres e cantando poderia levar um choque de
felicidade. Seria possível? Quando contei para os coadjuvantes todo o plano
eles riram a valer. Incrédulos! Em acreditava que ia dar certo.
Todos os chefes presentes e os pais olhavam para Aninha. A espera
fora infindável. A canção terminou, o fogo crepitou as chamas subiram ao alto,
os pássaros noturnos piavam, até uma coruja voou de seu ninho em busca de
sossego. Aninha acordou espantada, surpresa e assustada. Ficou em pé, e
vendo tantas lobinhas dançando em volta do fogo, eis que o inusitado
aconteceu. Aninha passou a seguir os passos das outras. Cantava baixinho: ¶
Na Roca do Conselho, o uivo do Aquela. E na Jângal distante, respondem os
Lobinhos - Au au u u. Au Au u u. ¶¶.
Aninha agora sorria, brincava e cantava com as outras meninas. Seus
pais pularam de contentes, o sorriso deles era contagiante. Os incrédulos de
olhos arregalados, não acreditavam no que viam. Durante todo o Fogo de
Conselho Aninha participou ativamente. Esqueceu os seus pais. Suas amigas
agora eram as meninas da matilha Marrom. Fora adotada e muito bem recebida
por elas. Em pouco tempo ela conhecia tudo da Jângal. No monte Seone, onde
habitava a alcatéia sua mente vivia agora. Conhecia o Rio Waingunga, que corre
dos montes Seone e forma os pântanos nas baixadas, não esquecia nenhuma
parte quando contava a historia de Oodeypore, a cidade onde nasceu Mowgly e
onde Bagheera a pantera negra esteve presa.
Aninha mudou. Muito mesmo. Ninguém explicava como podia ter
acontecido assim. Seus pais comentavam com amigos que o escotismo é a
formula do sucesso para os jovens. Todos os sábios doutores tentaram e nada
conseguiram. Agora em um simples Fogo de Conselho aconteceu à cura de sua
filha. Eles se transformaram. Suas tristezas acabaram. Encontraram a fórmula da
felicidade junto com ela. Aninha fez a promessa, um dia sem sol, mas parecia
que o vento sul trazia toda a força dos Campos de Bhurtpore.
Foi um dia que marcou muito. Eu estava lá. Não podia perder. Era como
se Hathi e seus filhos também estivessem presentes. Aninhados em um degrau
da escada Bagheera e Baloo se deliciavam com a promessa de Aninha.
Enroscada no mastro da bandeira, Kaa ria e dizia, “Somos do mesmo sangue, tu
e eu!” O lobo Gris e seus irmãos davam um grande uivo de felicidade. Até
mesmo os Bandar-log, o povo macaco, agora também estava feliz ali, vendo
Aninha dizendo com todo amor: “Prometo, fazer o melhor possível para...”.
Muito tempo depois, fiquei sabendo que Aninha em sua casa chamava
seus pais, e ali com o fogo da lareira acesa, contava historias da Jângal e soube
também que alguns parentes, vizinhos e amigos se reunião para sentir a força
da felicidade de Aninha, quando ela contava ou narrava com sua voz linda, em
pé, olhando nos olhos de todos em sua volta e apontando um por um dizia, -
Voces precisam conhecer a Lei da Jângal, Baloo, o urso pardo sempre dizia que
essa lei vigora na selva e é antiga como o céu. Dizia ainda que assim como o
cipó que envolve a árvore, a Lei do Lobinho envolve todos nós.
Aninha ficava horas narrando. Ninguém arredava o pé. Pareciam
encantados como se Kaa a serpente ali tivesse passado. Conheceram todas as
personagens, e até tinham medo de Shere Khan. – Porque você matou?
Perguntou Hathi, pelo prazer de matar? Shere Khan respondeu isso mesmo. Era
meu direito. A noite é minha você sabe. Que direito é esse de que fala Shere
Khan? Perguntou Mowgly. É uma historia antiga, tão velha quanto à própria
selva. Então Hathi narrou cabisbaixo, descrevendo como o medo se apoderou
dos habitantes do outro lado do rio. Mas essa é outra história...
Foi maravilhosa a recuperação de Aninha. A Alcateia Waingunga passou
a ser outra. Agora Aninha dava o toque da alegria e da felicidade. Ninguém ria
mais que ela, quando brincava ou jogava era como se fosse à primeira vez.
Entregava-se de corpo e alma. A matilha marrom nunca mais foi à mesma.
Corria, saltitava, gritavam e Aninha mostrava a todos sua mais suprema alegria e
felicidade do mundo. É como Aninha mudou. Como o escotismo faz milagres.
Lembro-me que um dia li, não me lembro de onde, que cada pessoa que passa
na nossa vida, passa sozinha, porque cada pessoa é única e nenhuma substitui
a outra. Ela não nos deixa só, porque deixa um pouco de sí e leva um pouquinho
de nós. Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a prova de que as
pessoas não se encontram por acaso.
Não sei por que, me lembrei de outro filme, famoso, uma ficção cientifica
cujo título era Blade Runner. Em um momento triunfal, onde a justiça e a
coragem se fazem presentes, o androide antes de morrer disse – “Eu vi coisas
que voces nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da Borda de
Orion. Vi uma luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Esses
momentos todos se perderam no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de
morrer”. Nada há ver. Não irei morrer. Mas vi muito mais. Vi Aninha sorrir. Valeu
uma vida e esses momentos nunca se perderão no tempo, como lágrimas na
chuva. Para mim, o sol brilha de uma maneira firme. Quem viu Aninha sorrir pela
primeira vez, nunca mais vai esquecer.
O tempo passou. Mudei de cidade, nunca mais ouvi falar na Aninha.
Agora deve estar uma moça feita com seus 18 anos. Tenho certeza que ainda
está sorrindo. Sua vida agora é outra. Todo o passado se foi e ela aprendeu a
sorrir, descobriu a felicidade. O porquê de antes e o porquê de agora, não sei
explicar. Não sou psicólogo. Nem um doutor entendido no assunto. Mas sou um
escoteiro, e sei por natureza que o escoteiro vive sorrindo, a vida para ele é bela
e é formada de doces e grandes momentos de alegria e felicidade.
Sei também que as dificuldades ele o escoteiro deixa em um canto do
armário, um dia vai lá e dá um jeito nela. Ajudando o próximo, amando seus
irmãos e sendo amigos de todos, não importa quem. Ele, o escoteiro faz a sua
felicidade. Eu acho que sou feliz, muito. Contribui para que Aninha descobrisse
a fórmula. Qual? Felicidade = P + (5xE) + (3xA) resultado- ESCOTISMO! Uma
linda maneira de viver e ser feliz! Amo e adoro ser escoteiro!
E quem quiser que conte outra...
Não me canso de procurar a tal fórmula da felicidade completa e talvez quando a
encontrar perceba que sempre faltará um dos elementos...
Talvez aí resida à mágica dessa incansável busca
Ashanti, uma pioneira no Rio da Esperança.
Não peço riquezas nem esperanças, nem amor,
Nem um amigo que me compreenda. Tudo o que eu peço
É um céu sobre mim e um caminho a meus pés.
Stevenson
A chalana seguia seu curso rio abaixo. Dos dois lados mata fechada. Já
tínhamos passado por dezenas de igarapés. As barrancas mostravam a cheia do
ano passado. O rio Madeira ali não era majestoso, dizem que ele tem mais de
2.500 quilômetros de extensão. Dizem ainda ser o maior afluente do rio
Amazonas. Diziam também que se chamava Cuyari, assim conhecido pela
grande nação dos Tupinambás a muitos e muitos anos atrás.
Mais de dois dias já haviam se passado desde nossa saída de Humaitá (terra
da Mangaba) no norte do Pará. Chegamos ali pela BR-319 que liga Porto "Velho"
a Manaus. Bem próximo, a Usina hidroelétrica do Jirau parecia que não ia sair do
papel nunca. Um conflito entre o sagrado e profano. Ninguém sabia mais se ali
era a Cachoeira do Padre ou o Caldeirão do Inferno. Mas essa é outra historia.
O comandante do barco, o Velho Mestre Antoninho das Mercês agora um
amigo de todos nós, nos dizia que chegaríamos por volta da uma da manhã em
Santarém. Passamos pelas pequenas vilas de Trata-Sério Macacos e Ilha
Teotônio. Em Santarém tentaríamos um voo da Força Aérea Brasileira até
Cuiabá. No inicio era uma viagem encantadora. Ver a floresta Amazônica e suas
vilas ribeirinhas era um grande espetáculo. Agora, no entanto depois de dias ali,
o espetáculo não era o mesmo.
Todos me chamam de Ashanti, apelido dado pelo meu amigo pioneiro Leo.
Meu nome mesmo é Loreta Salmineu Montes. Sou pioneira do Clã Guarini
(guerreiro lutador em tupi-guarani). Eu gostava do apelido, afinal tinha muito a
ver com Baden Powell. Os Ashanti foram muito influentes antes da colonização
europeia. Em Gana as montanhas, florestas e savanas, eram exuberantes.
Éramos doze pioneiros. Cinco moças e sete rapazes. Mas quem frequentava as
reuniões mesmo era eu e mais cinco. Os demais não tinham uma participação
constante. Sabíamos que nos clãs isso era difícil. Trabalho, faculdade, uma
época que cada um de nós está em busca seu futuro.
Passava das cinco da tarde quando ouvi um forte estrondo e uma batida. O
barco adernou e fui para dentro do rio. Em minutos parte dele ficou submersa.
Todos nós pioneiros nessa grande jornada (éramos seis) estávamos juntos na
hora. No convés nos divertíamos com um jogo de dama. Dentro do rio procurei
nadar até a margem que estava próxima. Leo, Marlon e Fanzini mergulharam até
o fundo do barco a procura de sobreviventes. Eu Janete e Lívio chegamos à
margem sem problemas.
Logo a pequena praia estava cheia de sobreviventes. Sempre o Leo, Marlon
e Fanzini traziam crianças e mulheres que não sabiam nadar. O Mestre
Antoninho também fazia o mesmo. Não sabia quantos estavam na embarcação.
Mas não deviam passa de vinte. Eu e Janete ajudávamos os que estavam ainda
fora de si com a respiração artificial e tentando esquentar o corpo fazendo
fricção. Logo voltavam a si. Meia hora depois, estavam todos na margem.
Ninguém chorava a falta de alguém sinal que todos haviam se salvado.
Todos nós pioneiros éramos advindos dos seniores e guias. Exceto Janete,
que já entrou com dezenove anos. Os passageiros estavam em pânico e fizemos
um pequeno Conselho de Clã para tentar definir um plano de ação. Mestre
Antoninho estava exausto. Vimos que ele não estava preparado para liderar.
Perguntamos a ele se deu tempo de mandar um S.O. S a capitania. Ele disse que
não. O barco afundou muito rápido. Vimos que iríamos passar a noite ali. Todos
estavam molhados. Nossos pertences estavam no fundo do rio. Leo disse que
ao amanhecer iria tentar recuperá-los.
Eu gostava do Leo. Um grande pioneiro. Fora lobinho, escoteiro, e se
gabava de ter sido um dos Cinco Magníficos da Patrulha Aconcágua quando
sênior. Contou para nós historias fantásticas. Quando adentrou no Clã, não se
adaptou. Achou muito parado. Muita conversa e pouca ação. Foi bem recebido
por todos. No entanto nós já estávamos acostumados com aquela rotina.
Nossas atividades eram mais promover em grupos de interesses, as atividades
de ajuda ao próximo (muito poucas), algumas de campismo sem aprofundar
muito nas técnicas antes realizadas por nós quando seniores/guias.
Nossa progressividade estava em passo de espera. Ninguém ainda
conseguira a Insígnia de BP. O Sr. Bartilio e sua esposa dona Edna, eram
respectivamente nosso mestre e nossa mestre pioneira. Tinham feitos alguns
cursos de formação, no entanto não eram frequentes nas reuniões e pouco
entendiam de pioneirismo. Leo quando fez a investidura, deu um novo ânimo ao
Clã. Passou a entusiasmar a todos, criou atividades diferentes. Agora fazíamos
nossas áreas de interesse com gosto. Antes desta grande aventura estivemos
em duas atividades nacionais, dois mutirões pioneiros e fomos para uma
aventura no pico do Itatiaia. Outras tantas foram realizadas e saborosas. Foi
muito divertido.
Foi difícil fazer uma fogueira. Ninguém tinha isqueiros e nem fósforos secos.
O Fanzini disse que conseguiria. Entrou um pouco na floresta e voltou com uma
madeira verde, vários cipós, fez um pequeno arco e limpou bem uma madeira
com ponta nos dois lados. Pegou duas lascas de arvores, furou no meio, e elas
serviram de tampa onde girava em muita velocidade um pequeno pedaço de
madeira seca. Demorou. Acho que mais de hora. Revezamos na ação. O Braço
doía, mas uma pequena fumaça apareceu. Capim seco e logo o fogo brotou.
Todos sorriram. Alguns bateram palmas. A fogueira cresceu. Em volta os
sobreviventes se achegaram para esquentar e tentar secar suas roupas
molhadas.
Não tínhamos nada para comer. À noite nem sabíamos o que a mata poderia
oferecer. Leo pediu ajuda a alguns homens e organizou uma pequena guarda em
volta do campo. Duas horas para cada dupla. Foi difícil aquela noite. Muitos não
conseguiam dormir. Nós os pioneiros dormimos fácil. Estávamos acostumados.
Muitas e muitas noites dormindo ao ar livre, tendo as estrelas como barraca. O
dia amanheceu. Lindo, um sol maravilhoso. Mestre Antoninho calculou que lá
pelas duas ou três horas deveriam chegar ajuda. Parentes e encarregados de
portos onde o barco devia apoitar deveriam estar preocupados e avisariam a
capitania.
Dito e feito, antes das duas o barco patrulha da marinha e um da capitania
chegaram. Pela manhã Leo, Fanzini e Marlon mergulharam em busca de nossas
mochilas. Foram encontradas. Retiraram também varias malas e sacolas que
ainda poderiam aproveitar. Os donos ficaram agradecidos. Mestre Antoninho
conseguiu pegar latas de conserva na cozinha submersa. Deu para as crianças e
mulheres. Nós não comemos nada. Não dava. No barco da capitania que estava
junto ao barco patrulha lanchamos. Chegamos a Santarém a noitinha.
Quando o Leo apareceu no Clã, senti por ele mais que amizade. Mas ele não
demonstrou o mesmo por mim. Ele namorava uma jovem, que não era do
movimento e demonstrava um amor muito grande por ela. Tentei esconder meus
sentimentos. Não era fácil. Afinal estávamos juntos sempre e em atividades por
muito mais tempo do que ele ficava com ela. Estava até difícil ficar ao lado dele
sem ter esperança. Afinal cheguei à conclusão que o Clã era parte da minha vida
e o Leo apareceu depois.
Em um grande mutirão pioneiro realizado no início do ano, conheci melhor a
namorada do Leo. Ela a levou. Não sem antes solicitar autorização ao Mestre PI.
Olhe, para ser sincera não gostei muito dela. Achei-a meio pedante. Vivia
agarrada a ele todas as horas. Um ciúme doentio quando ele estava conosco.
Não gosto muito de casais assim em atividades pioneiras. Tiram a liberdade dos
amigos e outros que querem se aproximar.
Chegamos a Santarém já à noite. A Capitania nos ofereceu hospedagem em
quartos até razoáveis. Não saímos pela cidade. Permanecemos ali, pois o sono
era enorme. Aproveitamos para telefonar aos nossos familiares. A noticia do
naufrágio já era do conhecimento deles. Diziam ter dado na imprensa a morte de
muitos, mais de 20. Barco pequeno, mal cabia vinte. Não morreu ninguém, tenho
certeza. Eu e o Leo ficamos na porta do meu quarto conversando. Dizia-me que
iria terminar o namoro. Ela não deixava fazer o que mais gosta. Seria uma
escolha difícil, ele achava que a amava, mas seu coração pulsava forte nas
atividades escoteiras. Não disse nada, nada poderia dizer naquele momento.
Fui dormir pensando no Leo. Não muito, dormi logo. Pela manhã fomos ao
aeroporto. Demos sorte, um capitão da aeronáutica tinha sido escoteiro e
conseguiu um voo para São Paulo às duas da tarde. Um avião cargueiro. A
viagem era tranquila. Poucos cochilavam. Alguns jogavam damas e eu e Leo
conversávamos banalidades. Ele me dizia que o pioneirismo era muito diferente
do que pensava. Até concordava com os novos que adentravam direto no Clã.
Mas ele se sentia um peixe fora d’agua.
Essa atividade foi planejada nos seus mínimos detalhes por ele. Afinal
todos nós trabalhávamos e não seria fácil ficar mais de 15 dias em atividades
aventureiras nessa região. Marcamos as férias em uma só data. No principio
nove pioneiros. Cada um ficou encarregado de uma parte. Eu fiquei responsável
pelas finanças. Todo mês me davam um valor que depositava em Caderneta de
Poupança. O Mestre Pioneiro na iria assim como sua esposa. Depois desistiu o
Josiel, e o Marco Antônio. Ambos teriam um estagio e não queriam faltar. Dos
sete, tivemos ainda a deserção do Jason.
A sugestão do Leo era ir à até Belém, de lá a Manaus, e descer o Rio
Madeira até Santarém. Uma volta e tanto. Quinze dias de atividades aventureiras
para ficar marcado para sempre em nossas vidas pioneiras. Durante toda
preparação que demorou um ano e meio, eu sonhava com essa atividade. Antes
fomos a Caparaó e subimos o Pico da Bandeira. Passamos quatro dias no Pico
do Itatiaia tudo ideia do Leo. Os pioneiros começaram a se motivar e grandes
atividades foram realizadas. Só faltava mesmo o nosso Mestre Pioneiro se
motivar, pois passava por uma situação crítica (perdeu o emprego).
Partimos às quatro da tarde. Uma viagem gostosa e tranquila. Uns dois
solavancos, o avião virou de lado. Olhei para o Leo e os demais. Ficamos
assustados. Um tenente disse para ficarmos calmos. Apertar bem o cinto.
Iríamos fazer um pouso de emergência em uma pista de mineradores perto dali.
Pista pequena, mas o piloto era muito experiente. Só havia um problema, a pista
estava cheia de buracos, feito pelo exercito com dinamite para que aviões de
contrabandistas não usassem. Descemos. Uma pancada forte, fortíssima. O
avião rodopiou e se partiu ao meio. Leo foi jogado a grande distancia preso à
poltrona. Mais ninguém teve ferimentos graves. Corremos até lá. Leo tinha um
corte profundo na perna e outro no couro cabeludo. Muito sangue.
Um dos tripulantes era medico. Fez ali os primeiros socorros. Senti uma
pontada enorme no coração. Não podia perder o Leo. Que coisa, que aventura
estava acontecendo conosco. Não planejamos assim, mas se aconteceram
tinham um motivo. Talvez de me aproximar mais do Leo. Meu coração batia forte
por ele. Ele, no entanto só me olhava como amiga. Não demorou um helicóptero
da FAB chegou. Levou-nos todos até Belém do Pará. Tivemos que ficar mais
cinco dias lá. O Léo recuperava bem e deu para retornarmos a nossa cidade.
Eu ia sempre as reuniões de sábado. O Leu não. Não podia andar. Liguei para
ele varias vezes, e fui a sua residência. Lá estava à namorada. Dois meses
depois ele apareceu. Sorrindo para todos. No final da reunião me procurou e
convidou para um cinema. Meu coração explodiu. Ele me disse que tinha
terminado tudo. Descobrira que me amava. Incrível! Tudo que eu queria e
sonhava. Nosso namoro era lindo. No Clã nunca demonstrávamos isso. Todos
sabiam é claro.
Ficamos juntos no Clã até os vinte e um anos. Léo se formou em Engenharia
mecatrônica. Uma grande proposta recebeu de um grande conglomerado de
Hospitais sediados em Boston, nos Estados Unidos. Pediu-me em casamento.
Queria que eu fosse com ele. Não titubeei um minuto. Meus pais acharam que eu
devia me formar. Meu coração bateu mais forte. Em Boston moramos em uma
bela casinha. Vi diversas vezes jovens da Boy Scouts na rua e eram em numero
considerado. Fizemos uma visita a um grupo em uma quinta a noite. Não sei,
não encontrei lá o que tínhamos aqui. Talvez aquele carinho, aquele sorriso
franco.
Ainda moro em Boston. Faz oito anos que estou aqui. Sempre relembro com
saudades os belos momentos da minha vida escoteira. Meu antigo Clã não sai
nunca da minha mente. Meus amigos também. Aquela aventura no Rio Madeira
ficou gravada em minha memória. Não o chamo de Madeira, para mim é o Rio da
Esperança. Foi ali que tudo deu certo em minha vida, apesar dos tropeços de um
naufrágio e na queda de um avião. Quando conto isso para amigos que temos
aqui, eles não acreditam.
A esperança é a maior e a mais difícil vitória que a gente pode ter sobre
a alma. Ela existe, está sempre fincada em nosso pensamento. Antes eu dizia
que a esperança poderia alterar qualquer coisa. Claro, no fundo a gente não está
querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou
de outro. Seria isso mesmo? Sei o que é absoluto porque existo e sou relativa.
Minha ignorância é realmente a minha esperança: não sei adjetivar. Olhando
para o céu fico tonta de mim mesma.
Tenho dois filhos lindos, são a minha vida. Sempre conto para eles a
noite, deitada no tapete azul da sala que chamo de Rio Esperança, em frente à
lareira, tudo que senti, vi e aconteceu comigo no escotismo. Eles me olham de
maneira enigmática. Não entendem quase nada do que eu falo. Afinal um tem
quatro e o outro cinco anos. Mas olho para eles, sorrio, e digo: - Meus filhos
nunca percam a esperança. E então me lembro do poeta Fernando Pessoa, que
dizia: - Ser feliz é encontrar força no perdão, esperanças nas batalhas,
segurança no palco do medo, amor nos desencontros. É agradecer a Deus a
cada minuto pelo milagre da vida. Amo o escotismo. Sempre amei e nunca irei
esquecer os momentos felizes que lá passei...
E quem quiser que conte outra
Viver é acalentar sonhos e esperanças,
Fazendo da fé a nossa inspiração maior.
É buscar nas pequenas coisas, um grande motivo para ser feliz!
Mário Quintana
A felicidade não se compra
Gino, um escoteiro em busca de seus sonhos.
Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura.
Tendo-os na ponta do nariz!
Mario Quintana
Existem certos contos que me fazem lembrar-se de situações ou fatos do
passado. Esse é um deles. Quando imaginei a historia e como seria me lembrei
do filme A Felicidade não se Compra, de Frank Capra. Para muitos uns dos
maiores diretores de todos os tempos. Conta a historia de George, quando um
dia sua vida virou de cabeça para baixo e na ocasião do natal, um anjo que
lutava para ter suas asas de volta, desce a terra para salvá-lo de um suicídio.
George sempre fez o bem, mas seus sonhos desabaram. James Stewart e Donna
Reed mostram porque o filme concorreu a quase todas as indicações ao Oscar
da época. Estão soberbos.
Não que a historia de Gino seja a mesma. Nada disso. Gino não tinha nada de
extraordinário e nunca pensou em tirar sua vida. Com o que tinha se sentia feliz.
Gino era escoteiro da patrulha Corvo. Assim como o anjo que foi fazer a boa
ação com George no filme, Gino também adorava fazer boas ações. Na sua
patrulha era amado por todos e bem considerado. Gino adorava ser escoteiro.
Não era fácil. Sua família muito pobre. O Grupo Escoteiro não cobrava dele a
mensalidade e o ajudava muito nas taxas extras das atividades ao ar livre.
O pai de Gino era carpinteiro. Ganhava o suficiente para a família.
Infelizmente bebia muito. Chegava a casa e ia para o quarto. Isso entristecia
muito a Gino. Nos fogos de conselhos que participava, não gostava de fazer
personagem de bêbado. Lembrava-se de seu pai. Não contou para ninguém, mas
um dia ele apareceu durante a ortoga de um Liz de Ouro a um monitor da
patrulha Cão. Achou que era Gino quem iria receber. Estava bêbado, quase
caindo e Gino não sabia onde se esconder. Seu pai não deu vexame. Mas o
Chefe da Tropa notou e olhou de maneira embaraçosa para Gino.
Naquele dia Gino se sentia feliz. Haveria um Acampamento Regional de
Patrulhas (ARP). O Chefe da Tropa estava vendo quem iria. A taxa era alta. Gino
sabia que nunca poderia ir. Não podia pagar. Gino, no entanto ria da alegria dos
amigos. Boa parte da patrulha iria participar. Ele se sentia feliz em ver a
felicidade deles. Isso era próprio de Gino. Sempre pensava-nos outros e pouco
em si próprio. Só ficava triste porque quando do evento não havia reuniões de
tropa. Uma das paixões dele.
Na semana seguinte, lá estavam eles de volta, contando as novidades, rindo,
mostrando fotos e Gino sentia dentro de si, uma alegria por ver tantos amigos
alegres. Claro, seus olhos brilhavam. Bem não tanto, aqui e ali uma pequena
lagrima por não ter ido. Os membros da patrulha contavam maravilhas. Jogos,
canções, fogo de conselho. Centenas até milhares de participantes. Gino ouvia
calado. Ah! Pensava. Meu dia chegará. Sim claro. Gino pensava que ele também
poderia um dia participar de uma atividade como essa.
Naquele sábado estavam fazendo uma atividade de base. Eram cinco. Em
uma delas treinavam como fazer um tripé com os olhos vendados. Claro, Gino
se destacava nessas atividades. Não levou mais que dois minutos para dar uma
amarra para tripé. Sabia como ninguém. Claudio era o monitor da patrulha.
Desde que Gino entrou para ela, se encarregou de prepará-lo nas suas provas de
etapas de classe. Ele dizia que Gino poderia ser Liz de Ouro. Tinha todas as
qualidades para isso. Claro, era seu sonho. No entanto ele tinha outro. Um
sonho lindo. Participar de uma grande atividade escoteira nacional.
Ele sabia que uma estava sendo programada. Seria em janeiro, daí a dois
anos. Um Jamboree Nacional. Incrível! Uma apoteose! O Máximo que ele podia
pensar. Milhares de escoteiros e escoteiras. Ele jurou a si próprio que não iria
perder essa. Tinha tempo. Iria realizar seu sonho. Afinal ele era um escoteiro e
tinha esse direito. Falou com seu pai, sua mãe e eles balançaram a cabeça. Não
disseram nada, sabiam de suas condições financeiras. Gino tinha um plano. Ele
ia conseguir. Começou a economizar. Tinha já em seu pequeno cofre mais de
trinta reais. Precisaria pelos seus cálculos de uns mil reais. Ele não achava
impossível conseguir.
Sempre ao sair da escola, procurava um meio de aumentar suas economias.
Passava de casa em casa, se oferecendo para limpar o quintal, um serviço extra,
qualquer coisa. Ele já tinha conseguido quase cem reais nos dois últimos
meses. Ainda tinha um ano pela frente. Sua luta não parava. A cada dia mais
aumentava suas economias. Sonhava acordado pensando estar chegando à
maior atividade escoteira de sua vida. Comentava com seus amigos de patrulha,
que desta vez eles teriam companhia. Sabia que quase todos iriam. Seus pais
tinham condições financeiras e as taxas seriam pagas na data certa.
Faltava pouco mais de seis meses para o inicio do Jamboree. Gino já
economizara mais de setecentos reais. Já dava para pagar a taxa, só precisava
do saldo para a viagem e alimentação. Nas reuniões ele alardeava sua alegria
com todos. Desta vez ele estaria presente. Nada de fotos, nada de historias, ele
iria viver todo o programa do Jamboree ao vivo e cores. E dava belas
gargalhadas. Soube pelo chefe da tropa que vários escoteiros de muitos países
estariam presentes. Já pensou? Conhecer outros, uniformes diferentes, quem
sabe trocariam distintivos e lenço com ele? Pediu a sua mãe que fizesse cinco.
Tirou de suas economias para comprar o tecido.
Gino olhava seu uniforme. Antigo. Não estava novo. Muitas lavadas algumas
partes desbotando. Não dava para fazer outro. Ia com ele mesmo. Tinha tudo.
Economizara desde que entrou para a tropa. Seu chapelão tinha as abas retas.
Velho mas bem cuidado. Sua faca mateira sempre limpa e ao colocar na capa,
usava talco para conservar. O mesmo com sua machadinha. Seu cantil sempre
era lavado e a capa perfeita. Ganhou do seu padrinho uma bussola Silva. Tinha
um carinho enorme por ela. Ele iria se apresentar garboso, orgulhoso de ser um
Corvo, não o melhor, mas procurava ser tanto como os demais. É Gino era um
escoteiro de corpo e alma.
Na semana seguinte, o chefe iria recolher a taxa de cada um para fazer a
inscrição de todos. Só ficariam sem ir quatro escoteiros, pois eram férias
escolares e eles iriam com seus pais para outras plagas. Quando acabou a
reunião, Gino foi com alguns amigos ate a quadra onde dois times de basquete
estavam disputando um campeonato. Era o esporte preferido dele. Quase não
jogava. Quando podia entrar na quadra ele demonstrava ser um perfeito
conhecedor das regras e de tudo que se fazia ali.
Viu seu pai chegando. Assustou. Outra vez pensou? Já havia meses que ele
não bebia. Tinha prometido parar. Mas não era o que pensava, não estava
bêbado. Seu pai o procurava. Sua mãe estava muito mal no pronto socorro. O
medico tinha dado uma receita enorme. Na farmácia do posto de saúde não tinha
nada. Sabia do sacrifício que ele tinha feito para conseguir a quantia da viagem.
Ele não sabia o que fazer, falou com Gino que não tinha onde conseguir. Ele era
sua única esperança. Tinha de comprar os remédios. O mundo de Gino caiu
sobre ele. Ele amava sua mãe. Não iria negar nunca. Foi com o pai e deu toda
sua economia. Oitocentos reais. Seu sonho acabou. Jamboree, adeus! Gino não
chorou. Sua mãe valia muito mais que um sonho.
Durante cinco dias sua mãe ficou entre a vida e a morte. Seu pai vendeu uma
pequena serra elétrica de madeira, tinha duas, precisava dela, no entanto o
dinheiro acabou. Ele precisava de mais. Vendeu por nada. Um preço muitas
vezes inferior ao valor real. O médico do bairro veio duas vezes. Uma pequena
fortuna ele cobrava. Gino não saiu da cabeceira de sua mãe. Na quinta feira, ela
sorriu. Gino e seu pai sorriram. Ela estava melhorando, até levantou para fazer o
almoço. O sorriso de sua mãe foi um balsamo para a tristeza dele. Tentava
esquecer o Jamboree. Tinha de esquecer. Agora era esperar eles voltarem e
contarem como foi. Fotos, programas, e Gino ia sorrir como sempre fazia e
chorar depois.
No sábado, a reunião foi interrompida para que o Diretor Técnico explicasse
como ia ser a viagem e receber dos que ainda não tinham pago a taxa. Gino
ficou calado quando o chamaram. O chefe insistiu. Pela primeira vez ele mentiu.
Não mentia nunca. Para ele o escoteiro tem uma só palavra. Ele não tinha duas,
sempre fora leal. Agora não. Chorou por dentro quando mentiu. Disse que tinha
uma infecção intestinal, não podia viajar. O medico proibiu. Não falou mais nada.
Sua garganta estava engasgada. Não saía voz.
Gino foi para casa pensando como a vida era ingrata. Claro, aceitava. Afinal
entre a vida de sua mãe e o Jamboree ele ficava com sua mãe. Mas estava
amargurado. Não ia chorar. Não podia. Não ia resolver nada. Sonhou tanto com
esse Jamboree e o sonho morreu. Pensou consigo mesmo, afinal ainda tenho
uma vida pela frente, haverá outras oportunidades. Chegou a casa e tentou
sorrir para sua mãe e seu pai. Um sorriso amargo. Tentou fingir, não deu. Foi
para seu quarto e chorou. Chorou muito. As lágrimas não paravam de sair. Sua
mãe desconfiou e foi até lá. O abraçou e chorou com ele.
O dia amanheceu. Um lindo sol no horizonte. Os pássaros cantavam nas
árvores próximas. Uma brisa gostosa refrescava aquela manhã. Era sábado. Dia
em que todos iriam partir para o Jamboree. Gino ficou na janela. Tentando ver
em sua mente, a alegria de todos na partida. As canções, o ônibus, sorrisos em
profusão. Estava taciturno, calado, mudo. Não chorava mais. Não adiantava.
Bola para frente dizia consigo mesmo. Mas era tapear seu coração que doía de
uma maneira terrível. Deus dizia dai-me força. Vai ser difícil sair dessa fossa.
Gino foi para o quintal. Tinha uma mangueira frondosa que ele gostava de
sentar na sombra e imaginar tudo que um dia poderia fazer. Ali era onde
sonhava. Pensou que logo passaria para os seniores. Lá tinha certeza que iria
fazer tudo de novo. Ele seria maior, conseguiria um emprego e não ia perder
mais nenhuma atividade nacional. Sonhou que poderia ir a um Jamboree
mundial em outro país. Sonhar... Como é bom sonhar. É barato, de graça, não
custa nada e muitas vezes conseguimos nesses sonhos tudo que gostaríamos
de realizar.
Gino dormiu encostado ao tronco da mangueira. Agora ele sonhava. Viu
anjos, viu nuvens brancas, viu um velhinho de barbas brancas sorrindo para ele
e dizendo: - Você vai conseguir. Você vai conseguir! Não desanime meu filho. A
vida é bela. Sabe meu filho, o fantástico da vida é saber fazer de um pequeno
momento, um instante de um grande momento. Aprenda que o importante na
vida não é o que você tem e sim o que você pode conseguir. Se a felicidade não
entrar pela porta não tem problema. Fica um pouco com a tristeza e depois
mande ela embora. O velhinho sorriu e desapareceu.
Era um belo sonho, mas Gino acordou assustado com uma buzina de um
ônibus. Levantou esfregou os olhos e viu seu pai sua mãe e o chefe da tropa
com eles. Eles sorriam e diziam, vá se preparar meu filho, você vai para o
Jamboree! Incrível! Espantoso! Ele não estava acreditando. O chefe da tropa
contou que todos se cotizaram. Souberam do seu ato de grandeza. Um
escoteiro assim não ia ficar para trás. Gino deu um salto. Gritou alto. Viva! Ainda
tenho sonhos e eles estão sendo realizados.
Gino correu. Foi ao seu quarto. Vestiu o uniforme. Olhou-se no espelho.
Gostou do que viu. Sorriu para se próprio e gritou – Jamboree me aguarde, aqui
vou eu! E dava belas gargalhadas. É a vida é assim mesmo. Voltas daqui, voltas
dali e as surpresas acontecendo. Algumas muitas vezes não agradáveis, mas
outras estupendas.
Descrever a alegria de Gino na chegada, ver tantas delegações chegando
também. Gritos alegres, canções nunca ouvidas. A inscrição, os abraços, os
comprimentos. Eu? Sou de Mira Flores e você? E assim ia. Canadá, Estados
Unidos, México, Inglaterra, muitos países. Gino nunca soube quantos. Quando
do último dia, os olhos de Gino encheram-se de lagrimas. Desta vez de alegria.
Uma grande cadeia da fraternidade. Cantada em vários idiomas.
O ônibus, a chegada, a mãe e o pai esperando. Gino gritando – Mãe!
Consegui! Fui ao Jamboree! Mãe, oh mãe, me abrace, sou o menino mais feliz do
mundo! Seus pais choravam de alegria. É. Gino conseguiu. Ficou marcado para
sempre em sua vida. Não importava agora se podia ir ou não em outros. Seu
sonho foi realizado. Ele pensava e dizia em voz alta – Eu não fiquei olhando a
montanha. Eu a escalei. Vi o outro lado. Gino sabia. A chave da felicidade é
sonhar. A chave do sucesso é fazer dos sonhos a realidade. O mais importante
na vida não é o triunfo, mas a luta para alcançar.
Este é o nosso movimento escoteiro. Algumas histórias com final feliz.
Todos gostam mais dessas. Mas as tristes existem. E pode estar ao seu lado.
Quem sabe existe um Gino em sua tropa? Faça dele também uma pessoa
feliz. Não pense só em si, no seu sucesso, na sua alegria. Todos gostam de
contar o que sentiram, mas tem aqueles que nunca poderão sentir o que não
viram. Antes de programar uma aventura, pare, veja e olhe. Será que não tem
nenhum Gino por aqui?
"Afogue a tristeza nas ondas da alegria;
Enxugue as lágrimas no manto do sol e faça brilhar um sorriso nos lábios.
A boca que vive a chorar desaprende a sorrir.”.
Esperança e gloria de um Chefe Escoteiro
Filósofo? Não! Um sábio? Não! Ele não era musico, não era poeta, não tinha
erudição e não vai tornar-se lenda e nem ficar na historia da humanidade. Vai
sim ficar na minha memória para sempre como o maior Chefe Escoteiro que
conheci!
“Não há caminhos para a paz, a paz é o caminho!”
O “mais atroz das coisas ruins com pessoas más,
é o silêncio das pessoas boas”
“Não deixe o sol morrer sem ter morto o seu rancor!”
Mohandas Karamchand Gandhi
Lembranças, eternas lembranças. Não são como nuvens que se vão e não
voltam mais. Elas ficam para sempre gravadas em nosso ser. Na profundidade
da alma. Alojam na memória e ali permanecem para sempre. Algumas são boas
para reviver o passado outras machucam. Estas também continuam lá. Não dá
para esquecer. Tem-se vontade de voltar no tempo e mudar o nosso destino no
futuro. Impossível.
Coloquei o livro sobre meus joelhos. Agora olhava o mar, as ondas que se
arrebentavam na areia quente e sentia a brisa gostosa a bater suavemente no
rosto. O mar é irresistível. Já estive nas mais altas montanhas, nas vastidões
das belas planícies do nosso sertão. Vi coisas que poucos tiveram a
oportunidade de ver. O primeiro voo da borboleta azul, o botão da flor de uma
orquídea presa no jequitibá a desabrochar. Ouvi o cantar do Sabiá lá na serra
distante em uma tarde de verão. Ouvi o som de uma cascata caindo sobre
pedras amigas de longos e longos anos de jornada. Mas o mar... Este é
maravilhoso. Ainda não vi nada que o tirasse da lista dos mais irresistíveis
espetáculos da terra. Agradeço a Deus sempre por proporcionar beleza tão
magnífica.
Naquela tarde quente de verão, eu lia Gandhi: O apóstolo da não violência. De
Claret, Martin. Um homem que se tornou uma lenda. Albert Einstein o saudou
como o “porta-voz da humanidade”. Já conhecia superficialmente a historia.
Nessa tarde eu estava com uma boa dose de amor e paciência vendo e ouvindo
algumas gaivotas que graciosamente se elevavam no ar e faziam lindas
acrobacias. Os olhos semicerrados, os pensamentos buscando o passado,
aboletado em uma cadeira de praia em frente ao lindo e majestoso mar...
Eu gostava de ir ali e ler. As peripécias de um conto me levavam para longe,
em locais nunca antes imaginados. O livro é assim. Transporta-nos como
viajantes eternos, na busca de novos conhecimentos de novos lugares de
pessoas gentis, outras nem tanto. Basta escolher o livro certo para o dia certo.
Ele nos dá o conhecimento dos países distantes e nos faz descobrir lindas e
maravilhosas situações que nunca em nossa vida iremos viver.
Uma nuvem em forma de uma frondosa arvore pairava sobre minha cabeça.
Como em um brilho intenso minha memória rebuscou no passado a figura de
Martinho. Chefe Martinho Alberto Flores. Foi um dos maiores Chefes Escoteiros
que tive a honra de conhecer. Fomos amigos por longos e longos anos. Quantas
e quantas noites de acampamentos, de viagens pelo país, de excursões, de
reuniões lindas e formidáveis. Acredite o amor fraternal e o respeito que sentia
por ele não tinha comparações. Martinho era Chefe de Grupo Escoteiro. Hoje um
Diretor Técnico. Mas não aquele chefe que todos já viram. Não. Martinho era
especial. Viver em seu grupo com ele era viver no paraíso. Ali brotava o amor, o
respeito, não havia desigualdade só fraternidade.
Notava que todos os escotistas do grupo tinham por ele a maior
consideração e olhe, não era uma figura imponente. Até feio para o meu gosto.
Pernas finas compridas a se aventar próximo a sua calça curta do qual não
abdicava. Martinho era assim. Morava a cinco quadras da sede, mas ia a pé,
orgulhoso e com aquele garbo próprio dos grandes escoteiros. No bairro ele já
era admirado e quando passava lhe saudavam com carinho. Ele sempre dizia
que a maior propaganda do escotismo era um escoteiro bem uniformizado e
garboso a andar na sua comunidade.
Sempre chegava a sede uma hora antes do inicio. Procurava os chefes de
sessão, perguntava se estava tudo bem, se precisavam de alguma coisa e era
um exemplo para todos. Na sede nada a fazer, ele já estava com um espanador
ou uma vassoura, limpando varrendo mesmo sabendo que a patrulha de serviço
tinha feito isso na noite anterior. Ninguém ficava sem um sorriso de Martinho.
Sempre com uma palavra encorajadora como a dizer – Conte comigo, estou aqui
para ajudá-lo e servi-lo, acredite sou seu amigo e irmão escoteiro.
Mas olhe, não pense que todos faziam o que desejavam. Martinho era firme
quando um acontecimento ou um fato destoava do que ele dizia, ou seguia o
caminho diferente do que preconizava a formação escoteira. Sua maneira de
mostrar os erros era educada, simples e direta. Sempre a sós com o interessado.
Nunca se exaltava e nunca levantava a voz. Dizia ele que gritos nada mais são
que agressões gratuitas. Não convencem ninguém. Não levavam a lugar algum.
Claro, houve alguns escotistas que não concordavam com tudo. Isso acontece
nas melhores famílias e nas melhores organizações da sociedade. Até Leonildo,
um chefe antigo aceitou sua maneira de levar com sapiência e coragem sua
responsabilidade como Diretor Técnico.
Quando em Conselhos de Chefes que mensalmente eram realizados, lá
estava Martinho bancando o Salomão. Sabia o que dizer nas horas mais difíceis
na tomada de decisões que nem sempre agradava a todos envolvidos. Fez
questão de presentear a cada Escotista, claro com os fundos financeiros que o
grupo adquiriu durante sua gestão, com o POR o Regimento Interno e os
Estatutos da direção nacional. Dizia que era impossível alguém conhecer seus
direitos se não conhecesse seus deveres.
Durante muitos e muitos anos, Martinho foi reconduzido como Diretor
Técnico apesar de sempre achar que não poderia ser eterno. Ninguém é
insubstituível comentava. Mas a cada eleição, os escotistas do grupo formavam
uma comissão e o nome dele sempre era o mais votado. Isso não lhe agradava.
Achava que o bastão tem de ser passado adiante. Temos que ter gente nova,
novas ideias, formar outro tipo de liderança. Isso faz parte da democracia e ela é
saudável, dizia.
Lembro que durante uma atividade escoteira regional, Martinho foi convidado
a colaborar com um Sub. Campo. Escoteiro. O chefe do Sub. Campo. Era
arrogante e prepotente. Abusava do apito, abusava de sua autoridade, mas no
final da atividade todos sentiram uma enorme mudança nele. Achamos que foi
devido à convivência de três dias com Martinho. Ele era assim transformava as
pessoas que conviviam com ele.
Quando a convite ou sem eu o visitava, era uma alegria extraordinária, em ver
a movimentação das sessões, a alegria dos jovens, e o amor ali existente.
Martinho só não abria mão da uniformização. - Não existe desculpas – dizia –
Demore-se o tempo necessário. Temos que ter garbo e boa ordem. O Grupo
Escoteiro tinha sempre a mão um uniforme, um pedacinho do pano para
fornecer aos pais quando da admissão para uma futura confecção. Ele não
aceitava ninguém de uniforme enquanto não se fizesse a promessa. Mas todos
acatavam com bom grado, Martinho com sua maneira simpática sempre pedia
nunca ordenava.
Uma vez ele teve um pequeno problema com os dirigentes regionais.
Pequeno mesmo, mas ele foi firme e não deixou para amanhã o que tinha de
fazer. Quando viu que correspondências não estavam resolvendo, pegou um
ônibus e foi até a capital do estado. Não encontrou lá nenhum dirigente na sede
regional, mas esperou pacientemente ate a noite quando chegou um deles. Foi
claro e direto. Não discutiu. Mostrou o que estava errado. O dirigente quis
argumentar, ele mostrou nos regulamentos escoteiros como deviam proceder.
Ele conhecia bem. Sabia de tudo que constava ali.
Assim era Martinho. Seu nome ficou gravado por aquele dirigente. Não foi
esquecido. Um mês depois recebeu um convite para ser Interventor em um
grupo escoteiro em uma cidade próxima. Não entendeu. Aceitou e lá foi na
primeira reunião com eles. Sentiu uma desunião enorme. Ficou lá no sábado e
domingo. Era para ser uma intervenção de 60 dias. À noite quando retornou,
estavam na rodoviária todos os descontentes. Uma grande palma escoteira foi
dada a ele. A paz voltou ao Grupo. Dois dias bastou. É Martinho era mesmo
especial.
Martinho não era um erudito e nem tão pouco filosofo, mas sempre dizia que
temos que ter conceitos adequados a cada situação. Para isso a conquista de
valores fazem com que a consciência haja de forma correta e fraterna. Sempre
dizia que temos que meditar sobre nossos atos. Pensarmos profundamente
como estamos agindo com nossas vidas e o que estamos fazendo para dar
oportunidades aos demais que nos cercam. Dizia sempre que o importante era
ver que em última instância, somos muito mais aquilo que agimos e sentimos do
que aquilo que apenas discursamos.
Não entendi bem isso. Mas me lembrei de um filósofo americano que afirmou:
“O que você faz fala tão alto que não consigo escutar o que você está dizendo.”
O que fazemos será nosso maior discurso sobre nós mesmos. O que
efetivamente trazemos na alma muito além do que qualquer preleção ou
apresentação verbal. - É preciso dizia Martinho – que temos de escolher os
valores que irão pautar nossas vidas, e temos que fazer um esforço enorme para
que esses conceitos, sejam realizados com disciplina e persistência, assim
serão transformados em valores reais e a coerência será a tônica do nosso agir.
É. Martinho era único. Dizia e fazia o que pensava. E olhe, sempre tinha vários
ouvintes a sua volta. Um dia pensei que se tivéssemos centenas ou milhares de
Diretores como ele no escotismo, seriamos visto como um grande movimento.
Cecília sua esposa foi à melhor escolha que ele tinha feito na vida, sempre me
dizia. Um achado! Deus me fez um privilegiado. Realmente formavam um casal
maravilhoso. Ela sempre ia as sede com ele, mas não participava diretamente.
Ficava na sala de estar, conversando com pais, ajudando no que sabia fazer.
Seu filho Netinho era lobinho e adorava a Alcatéia. Mas ele nunca em tempo
algum influiu em seu crescimento escoteiro. Ninguém poderia acusar seu filho
de ser o “filho do chefe”.
Uma tarde de abril cheguei à sede e não vi ninguém. A porta estava aberta e
adentrei até o almoxarifado. Encontrei Martinho deitado no chão se contorcendo
em dores. Aflito chamei uma ambulância e o levamos para o Hospital. Foram
duas noites de agonia. Não dormi. Não fui trabalhar. Fiquei ali plantado com
Cecília. Ela era mais forte que eu. O médico nos trouxe o diagnóstico – Câncer
nos pâncreas. Não tem muito tempo de vida. Olhe, meus olhos encheram de
lágrimas. Só não chorei alto porque tinha de respeitar a dor de Cecília.
No terceiro dia, o hospital encheu-se de escoteiros e escotistas. Vieram até
dirigentes da Regional. Parecia um aparato de uma grande atividade escoteira. É
Martinho era mesmo muito querido. Todos os funcionários e o diretor do
hospital ficaram perplexos. Não entendiam tudo aquilo. Nada se comparava a
centenas e centenas de escoteiros, pais, amigos que tomavam de assalto os
corredores, a entrada e até boa parte da rua do hospital. Alguns policiais vieram
assustados, mas quando souberam o que tinha acontecido, eles ajudaram a
organizar o transito. Os escoteiros portavam-se dignamente.
Martinho fez questão de receber delegações de cinco a oito membros em seu
apartamento. Queria apertar a mão de todos que foram ali visitá-lo. A direção do
hospital abriu uma exceção. Martinho ficou todo o tempo com um sorriso nos
lábios. Quase não falava. Sentia dores horríveis apesar de remédios fortes que
tomava. Recusava-se a dormir. Dizia que as visitas vinham em primeiro lugar e o
sono depois. Lá pela uma da manha, Martinho me chamou e perguntou: - Meu
amigo, todos dizem sempre suas últimas palavras quando a morte aproxima. Eu
não sei o que dizer. Acha que devo dizer alguma coisa?
Falar o que para Martinho? Eu era a prova viva da admiração, do meu amor e
do respeito que sentia por ele. Meus olhos inchados não mostravam outra coisa
a não ser a dor enorme que estava sentindo. Martinho sabia a hora que iria se
despedir para sempre. Pediu sua esposa que fizesse uma doação de todos seus
pertences escoteiros ao grupo e lá eles iriam doar a quem precisasse. Não pediu
para ser enterrado com ele. Não, sabia que era mais importante que alguém
pudesse usá-lo e ser tão feliz como ele foi. Cecília uma incansável mulher, ficou
todos os dias ao seu lado. Seu filho ficou com a Avó Matilde que o adorava.
Cecília não chorava. Seu semblante era firme. Seus olhos vermelhos
mostravam seu sentimento. Martinho partiu em uma tarde de maio. Outono.
Folhas secas caindo das árvores naquela necrópole sombria em um bairro
afastado da cidade. Uma brisa leve e calma foram testemunhas da ida de
Martinho para onde ele acreditava que existia outra vida. Nunca me falou nela.
Nunca quis convencer a ninguém sua religiosidade. Suas exéquias foram
simples. Bem não tão simples. Milhares de escoteiros vindo de diversas cidades,
lá estavam para saudar e dar o último adeus a Martinho. Não ouve canções. A
despedida foi só uma lagrima que aqui e ali era derramada por todos que foram
seus amigos no passado. Martinho seria lembrado pelo que foi pelo que fez e
não pela sua agonia de uma morte não esperada.
Ele deixou saudades, muitas saudades. Soube alguns meses depois que o
Conselho de Chefes do grupo havia votado à mudança do nome. Seria Grupo
Escoteiro Chefe Martinho Alberto Flores. Cecília quando soube foi lá e disse
não. Entregou um bilhete que ele escrevera horas antes da sua morte. Não quero
tributos, só quero que permaneça por toda a vida o nome que conheci, sempre
amei e admirei. Grupo Escoteiro Estrelas cintilantes.
Ainda hoje visito Cecília. Uma forte mulher. Não pediu nada a ninguém.
Trabalhava e dizia sempre que Netinho teria o que Martinho almejava. Se formar,
for um doutor, coisa que ele não tinha sido. É. Martinho pode não ter sido um
doutor, mas ninguém nenhum doutorado em todo o mundo faria de um homem
como ele o que ele foi. Ele foi mais que isso. Um grande chefe. Reto nas suas
ações. Ilibados e impoluto no seu exemplo pessoal. Martinho se foi, seu modelo
deveria ser seguido por tantos e tantos chefes, que tem sob a sua
responsabilidade dezenas de jovens que esperam muito mais. Esperam que eles
seus chefes sejam exemplos para que possam seguir na trilha escoteira
sabendo que um homem digno foi seu amigo em toda sua fase de crescimento.
A tarde vai aos poucos se afastando. A noite chega de mansinho. Ainda estou
sentado na cadeira de praia de frente para o mar. O sol já se foi. A brisa está
sendo substituída pelo orvalho que cai. Li poucas páginas da história de Gandhi.
Meus olhos voltaram a ficar vermelhos. Nem sempre as lembranças são como a
gente quer. A vida é assim, uns ficam e outros vão. Nosso destino está traçado e
o que somos são frutos que nós criamos pensando que estávamos acertando
para um futuro melhor. Gosto de lembranças. Elas me fazem viver. Trazem-me
saudades ou mesmo sorrisos dos tempos que já se foram e não voltam mais.
E quem quiser que conte outra...
.
Saudade são águas passadas que se acumulam em nossos corações, inundam
nossos pensamentos,
transbordam por nossos olhos, deslizam em gotículas de lembranças que por
fim, morrem na realidade de nossos lábios.
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
(Quinzenalmente ou mensalmente, iremos publicar contos na linha do
imaginário. o titulo acima servirá para mostrar que o acontecimento é
obra de ficção, mas não avalizo que possa ter alguma veracidade. Você
decide).
Os cinco Magníficos
(Os cinco Magníficos são seniores da patrulha Aconcágua, do 568º Grupo
Escoteiro Pico da Neblina. Rotineiramente estarão aqui contando suas epopeias
divertidas e aventureiras. Muitas já vividas pelos nossos magníficos seniores de
todo o pais. Sejam bem-vindos a patrulha Aconcágua e os cinco Magníficos).
Historia de hoje: A montanha dos sete desejos
“Há quem passe pelo bosque e só veja lenha para fogueira” Esta frase é tão
verdadeira quanto bela.
Mas, com certeza, muitos ao passarem pelo bosque da vida
viram muito mais do que apenas lenha para fogueira.
Capitulo I
As patrulhas escoteiras estavam em desabalada carreira morro abaixo.
Fiquei preocupado, pois alguém poderia escorregar e o tombo seria desastroso.
Lembrei das palavras de um homem famoso do passado em que dizia que os
jovens devem jogar, e se possível com desafios e sem muitos padrões e que
sejam jogos fortes, pois só assim poderiam um dia saber enfrentar as
adversidades da vida. Não sei se concordava muito com isso.
Era um jogo simples. Cada patrulha fez uma espécie de trenó (também
designado por tobogã, usado para transporte sobre o gelo, é um veículo sem
rodas construído com estreitas e longas tiras de madeira ou metal). E em duplas
desciam um morro íngreme e o qual a chefia já tinha feito uma inspeção para ver
se havia pedras e tocos. Algumas alcançavam enormes velocidades. Era uma
diversão garantida. A preparação para esse grande jogo começou há meses
atrás. Cada patrulha fez o esboço do trenó que iriam construir e tudo deveria ser
feito no campo. Algumas desenvolveram ótimos projetos, mas não souberam
construir conforme projetaram.
Durante toda a tarde o jogo foi sendo disputado palmo a palmo. No final
ganhou a Pica-pau e um grande troféu foi colocado no totem deles. Lembrei-me
do grande explorador Americano, Robert Edwin Peary, que ficou conhecido por
ter sido o primeiro homem a atingir o Polo Norte Geográfico em 1909. Durante
anos, a bordo de um Trenó descobriu a costa norte da Groenlandesa ate então
nunca navegada. Eu gostava de acompanhar os escoteiros. Tinha pouco tempo
e só vivia viajando, pois trabalhava em uma empresa como diretor comercial e
toda semana negócios me levavam de norte a sul do país.
Consegui quinze dias de férias as duras penas. Aproveitei para ficar um
pouco com a tropa. Há tempos não fazia isso. E claro, oito dias seriam
dedicados a um convite especial. Recebi um telegrama dos Cinco Magníficos e
que dizia: - Vamos explorar a Serra da Estrela Negra. Se tivermos sorte
chegaremos a Montanha dos sete desejos. Dizem que lá se podem fazer
pedidos, no máximo sete e sempre atendidos. Quem sabe vais poder participar
de uma das nossas grandes Aventuras?
Desta vez eles não me escapariam. Impossível não aceitar. Eu admirava
aqueles seniores e passaram-se quase um ano quando os visitei pela ultima vez.
Duas grandes aventuras me foram narradas por eles. Minhas dúvidas se
verdadeiras ou não eram enormes. A primeira, disseram ter voltado no tempo, na
França medieval e passaram peripécias de morte em um castelo. Depois na
Mansão do Duende cor de rosa e para salvá-lo tiveram que enfrentar vários
desafios perigosos. Eram histórias fantásticas inacreditáveis mesmo.
Cheguei à cidade onde moravam, numa quarta pela manhã. Eram bons
rapazes, educados e prestativos. Veio-me a memória quando os conheci pela
primeira vez. Uma tempestade. Eu perdido em um taxi com pneus furados. E ali
do nada eles surgiram. Alegres, sorridentes, molhados e cantando a pleno
pulmões “Põe tuas magoas bem no fundo do bornal e sorri”. Lembrei-me
quando cantava na época que era escoteiro. Sempre nas dificuldades lá estava
ela na minha mente. Liguei par o Leo o monitor da patrulha e sua mãe me disse
que ele agora estava na capital, pois estava fazendo faculdade. Caramba!
Pensei.
O único telefone que ainda tinha era do Max. Ele atendeu prontamente.
Disse que todos estavam a minha espera na casa do Junior. Aluguei um taxi e
em menos de dez minutos cheguei. Uma surpresa me esperava. Duas jovens
simpáticas estavam com eles. Liv, quinze anos, morena cabelos curtos, um lindo
sorriso e Marly, também com quinze anos cabelos castanhos compridos, sorria
pouco, mas extremamente simpática. A principio não sabia por que estavam ali.
Dei falta do Leo e o Ned. Max me explicou que fizeram dezoito anos e passaram
para pioneiros. Leo mudou para a capital e Ned agora namorava firme uma
pioneira. Ainda se encontravam, mas esporadicamente.
Foi o Jan que me apresentou as jovens. Todas com mais de seis anos de
escotismo. Passaram para guias e nos pediram para participar da patrulha. Olhe
sempre fomos contra moças na patrulha. Mas fizemos um Conselho e chegamos
à conclusão que estava na hora de ver se daria certo. Elas estão conosco há
seis meses, são Liz de Ouro e vieram de lobinhas. Até agora nada a reclamar –
disse o Jan. – Elas sorriram e Liv foi a primeira a falar – Olhe chefe, essa
turminha ainda não sabe, mas somos muito melhor que eles – Vamos ver, vamos
ver, disse o Junior. A prova será agora. Seis dias, uma subida das boas, se der
uma chuva não sei não.
Fiquei ali pensando como eles agora desenvolveriam seus planos, seus
sonhos de Grandes Aventuras, como as que aconteceram no passado. O
elemento feminino estava presente e era um grande desafio para aqueles três
que tinham uma grande experiência de campo e se safarem sempre com um
sorriso nos lábios. – Jan me disse que o Max era agora o monitor. Marly era a
sub. Deram risadinhas entre si. As jovens não gostaram e nada disseram.
Durante mais de uma hora, assisti a uma sessão de nostalgia. Desfiaram
melancolicamente a perda dos dois. Leo e Ned. Como sempre Jan o mais
palrador era quem mais sentia falta. – Olhe chefe, nossa ultima aventura, foi
durante o inverno do ano passado. Foi à despedida. Fomos até a cachoeira das
Mil Mortes e lá fizemos um desafio para saltar a queda d’água dentro de um
tambor de 200 litros. Acho que não conhece. Um tombo de aproximadamente 25
metros. Queda livre.
Foi divertido, mas meio sem graça. Muito parado para o meu gosto. –
Junior interrompeu dizendo – Não foi lá essas coisas, mas valeu. Ao
mergulharmos, o Ned encontrou uma fenda, por sinal bem grande e nos
convidou a conhecer. Olhe mais de 30 metros abaixo da cachoeira saímos em
uma gruta, onde o sol batia nas águas e deva um brilho amarelado, lindo,
formando diversos arcos Iris, brilhante de um fulgor suntuoso, extremamente
belo. Um espetáculo. Depois sem ninguém esperar, enormes morcegos
começaram a voar em nossa volta. Não nos atacaram, mas não deixavam nos
aproximar de uma grande pedra igual a uma cripta, de mármore que estava a
menos de 50 metros.
- Lá vem de novo às historias que só com eles acontecem, pensei. – Logo o
Junior interrompeu dizendo que foi fichinha espantar os morcegos. Com um
pequeno espelho que sempre carregava no bolso, aproveitando uma nesga de
sol, clareou os olhos deles e se esconderam. O Max correu até a pedra de
mármore e encontrou em cima dela um manuscrito feito de pedra calcária.
Bonito chefe, muito bonito. Estava com lindos desenhos e esculpido com letras
tipo Algerian, lindas como fizeram e quem fez eu não sei. - Pensei comigo, só
com esses jovens acontecem essas historias improváveis.
- Como num passe de mágica, o Max foi até uma mesa que estava na
varanda onde estávamos, e trouxe o manuscrito. Era verdade. Do jeito que
descreveram. As jovens sorriram entre si. Ainda não acreditavam muito nessas
historias rocambolesca que eles contavam. Agora achavam que eles podiam ter
feito tudo aquilo para impressionar. Mas eram da Patrulha Aconcágua e todos os
novatos ali sempre juravam fidelidade e respeito. Não esqueciam a cerimônia
que participaram na admissão.
Liv contou emocionada como foi. Feita a noite, no alto do morro da
Carmana, próximo à cidade. A patrulha toda vestida com uma bata negra. Elas
também usaram a bata. Foram apresentadas pelo Ned e iniciaram o ritual do
Santo Graal, a frente uma mesinha, forrada com a Bandeira da tropa, em cima o
cálice sagrado e uma pequena espada de metal. Lembrei-me das Lendas
Arturianas, e dos Cavaleiros da Távola Redonda. Elas se aproximaram e Ned
gritou alto:
- Apresento Liv e Marly. Querem ser dos Aconcáguas! – Leo respondeu –
Aproximem-se! A patrulha fechou o circulo e todos disseram juntos o juramento
da patrulha – “Que todos saibam, hoje e sempre, que prometo por tudo que é
sagrado, amar, aceitar e respeitar os meus amigos da patrulha, honrar sua
historia, morrer se preciso para que seu nome seja conhecido pela coragem e
abnegação. Farei prevalecer à verdade, hoje e sempre! Podem saber que
seremos fortes como os touros que habitam o lago azul da vida. Que os ventos
do Norte, que os ventos do Sul, que os Ventos do Leste e que os ventos do
Oeste tragam a chama da liberdade, da honra e da palavra ao nosso coração.”.
Liv estava emocionada quando contava essa promessa. Em seguida
ajoelhamos e todos colocaram uma mascara vermelha, e o Leo colocou a
espada na cabeça e nos nossos ombros dizendo – Sejam bem vindas. Agora
pertencem a Patrulha Aconcágua. Honrem seu nome por toda a vida! “Vamos
beber na fonte dos deuses o sonho que nunca vai terminar, vamos juntos jurar
fidelidade e amor entre nós, nada e nem nunca irão separar”! – Com o cálice,
bebemos essa água sagrada, colhida na fonte dos amigos inseparáveis!
Realmente marcante essa cerimônia de batismo na patrulha. Fiquei
emocionado. Conhecia outros rituais seniores, mas este foi uma surpresa.
Nunca tinha visto nada igual. Dei uma olhada no manuscrito. Deduzi que estava
escrito em latim. Entendia pouco. O Max me deu a tradução. – Dizia – “Lá, onde
o vento sopra forte, onde a Estrela Negra mora, encontrarão a felicidade nos
seus sete desejos”. Todos estavam calados. Mas o que deduziram para ir até a
Serra da Estrela negra? Onde descobriram que ela existia? Perguntas.
Respondida de pronto pelo Jan, o intelectual, o pesquisador da internet.
- Olhe chefe, minhas pesquisas chegaram até a Serra das Ararás. Descobri
que há tempos atrás, talvez mais de 800 anos, os índios Kuripakos,
descendentes dos Aruak, do alto Amazonas, moravam próximo ao Rio Vermelho,
e sempre iam venerar seu Deus Tupã, que morava no alto da serra dos Ararás e
a chamavam naquela época de Estrela Negra. Talvez porque ali sempre foi muito
envolto em nevoa e iam sempre lá pedir ao seu Deus, que não deixasse o
impiedoso Anhangá destruírem suas plantações seus filhos e suas mulheres.
Tinham muito medo de Caramuru e Gundirô.
- Continuou o Jan – Eles acreditavam que foi Tupã o poderoso, que desceu
a terra e fez nascer às flores, os frutos, as grandes florestas, os rios e os mares.
Acreditavam que mesmo sendo mortais, Tupã os transformavam em espíritos
imortais. E ali, no alto da serra, ajudados por Sumã e por Icatu eles venceriam os
deuses do mal. Entre eles nunca haveria o ódio e se alguém os perseguissem
seriam atirados nos infernos. – Fiquei impressionado. O relato de Jan tinha um
que de verdade.
- As jovens estavam caladas. Em seus olhos vi o desejo e o brilho da
expectativa. Quem não sonha com uma bela aventura? Caramba! Esses Cinco
Magníficos eram únicos. Tudo acontecia com eles. Agora tinham companhia.
Das boas, duas guias da pesada. Vi mesmo que seus olhos não demonstravam
medo. Era o mesmo brilho que já conhecia em todos aqueles que adentram no
movimento escoteiro, em busca de grandes aventuras, de grandes atividades
aventureiras.
A noite estava chegando. Estávamos ali a mais de duas horas conversando.
Conheci a mãe de Max, uma chefe de escoteiras, que adorava o filho e com um
carinho próprio de quem pertence ao Movimento, aprovava tudo que seu filho
gostava e fazia no escotismo. Disse-me que ele era um filho exemplar. Boas
notas no colégio e sempre uma alegria para seus pais. Max não cabia em si dos
elogios da sua mãe. Não demorou e a casa encheu de vários pais, todos dos
jovens da patrulha Aconcágua.
Estavam ali se confraternizando, pois a patrulha os fez aproximar um dos
outros. Os pais de Leo e Ned também estavam lá. Seus filhos não. Encontraram
outro rumo. Faz parte do crescimento. De uma nova vida. Um dia os filhos se
vão e tem de encontrar seu próprio destino. Max e Ned eram grandes rapazes.
Sabia que todos podiam confiar neles. Seriam um grande exemplo do que o
escotismo pode fazer pelos jovens. Era uma alegria estar ali juntos daqueles
pais, tão amigos uns dos outros e cuja aproximação se deu através de seus
filhos.
Já passava da meia noite quando me despedi de todos. Já sabia do programa
que os Cinco Magníficos fizeram. No dia seguinte, por volta das quatro da tarde,
partiríamos de trem em direção à cidade de Dom Firmino, que ficava bem
próxima ao pé da serra. Seriam mais de seis horas de viagem. Por volta de
dez/onze horas da noite chegaríamos. Logo pegaríamos a estrada para a serra.
Mais cinco quilômetros e chegaríamos ao pé da serra. Se o tempo estivesse
bom, iniciaríamos a subida. Até às duas da manhã percorreríamos um bom
trecho.
Achei interessante o programa dos Cinco Magníficos. Agora acompanhados
de duas jovens que sabia de antemão, nada iriam dever a eles na coragem, na
força na astucia e na audácia que eles sempre possuíram. Dormi o sono dos
justos no hotel onde estava hospedado. Acordei com o telefone do Jan lá pelas
nove dizendo que se encontrariam todos na estação, na Praça dos Ambequaras.
Qualquer motorista de taxi saberia onde era.
Um bom banho, um bom desjejum e um lauto almoço, me deixaram pronto
para enfrentar pela primeira vez uma aventura com aquela patrulha, cuja historia
seria contada e narrada em feitos históricos por todos que tiveram a honra de
participar e ali passaram boa parte de sua juventude. Fiquei na mesa do hotel,
durante meu almoço pensando como o escotismo atrai, fazendo com que jovens
e adultos, que como eu já viveram uma boa parte da vida estarem juntos no
mesmo ideal. Como dizia a velha canção dos pioneiros que corre de norte a sul
nos Clãs do nosso país o que estávamos pretendendo, estava nos versos
esplendidos, descritos de maneira tão peculiar e que encantava a todos. Uma
exaltação da aventura e o sonho do desconhecido –
“A sede de riscos que nunca se acaba, as rochas que a escalar, o rio tranquilo
que canta e que chora, jamais poderei olvidar”. E lá nós íamos. Em uma
montanha bem perto do céu!
“quando analisar uma trilha percorrida, nela sempre encontrará o ponto onde
errou”. Se corrigir os planos, poderá iniciar uma nova jornada.
Tentar outra vez.
Assim também quando caíres. Levanta-te porque só na caí quem não aprendeu a
cair. Disso sabe o bebê que aprendeu a andar. O filhote de pássaro que
aprendeu a voar.
Não desista de realizar seu sonho. Pode não ter acontecido, pode ter falhado,
mas quando tentamos realizar algum de bom sempre conseguimos.
O maior fracasso sempre foi o de não tentar.
Se orgulhe em dizer – “Pelo menos tentei”. .
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
Os cinco Magníficos
(Os cinco Magníficos são seniores da patrulha Aconcágua, do 568º Grupo
Escoteiro Pico da Neblina. Rotineiramente estarão aqui contando suas epopeias
divertidas e aventureiras. Muitas já vividas pelos nossos magníficos seniores de
todo o pais. Sejam bem-vindos a patrulha Aconcágua e os cinco Magníficos).
Historia de hoje: A montanha dos sete desejos
Capítulo II
Uma excelente viagem. Uma camaradagem sem par. Liv e Marly
nada perdiam para eles na alegria, na vontade de fazer amigos e todos ali
naquele vagão de segunda classe se divertiam com eles. Jogos, canções tudo
improvisado com o balanço gostoso do trem. Uma fumaça amiga entrava pela
janela. Só quem um dia pode conhecer os prazeres de viajar na “Maria fumaça”,
pode entender o que eu estou dizendo.
Junior, Jan e Max não eram mais calouros. A maturidade de anos na
patrulha tinha marcas profundas de amadurecimento. Os passageiros a princípio
tímidos e fechados em si mesmo, agora se desabrochavam brincando e
cantando com eles. Incrível uma patrulha assim. Acredito que isso era uma
tradição de patrulha. Sabia que ela existia a mais de quinze anos. Quem teriam
sido seus outros membros? Minha mente vagava pelas brumas que lá fora, pela
janela deixavam ver os vagalumes com suas luzes coloridas. O barulho, o
matraquear das rodas e espaçadamente o apito do trem me levavam longe.
Acordei com o Max me chamando. Estávamos chegando. Uma pequena
cidade apareceu. Dom Firmino não tinha mais que três mil almas. Tínhamos tudo
preparado. Descemos sob os aplausos dos passageiros amigos e partimos para
nosso destino final. Sempre me considerei um líder. Direção eu sempre tinha e
fazia os outros me seguirem, ali, no entanto aqueles jovens estavam cheio de
liderança, e me lembrei do que disse um dia BP, somos uma escola de liderança,
mas aprendendo a liderar e ser liderado.
A estrada, os canaviais ao lado, depois o capim colonião e já aparecia ali o
gordura, um capim próprio dos lugares úmidos e frios. Sabia que em breve as
samambaias iriam desabrochar a nossa volta. Cinco quilômetros divertidos. Os
Cinco Magníficos eram uma patrulha de tirar o fôlego. Agora, acompanhados de
duas jovens, nada ficavam a dever das grandes patrulhas de seniores e guias
que existem nessa nossa bela terra, do Oiapoque ao Chuí.
Deixamos a estrada e iniciamos a subida propriamente da serra. Ainda um
pasto verde, sem arvores. Lembrei-me de uma linda mensagem que foi escrita
não sei onde - “Durante a subida, ah! Quantas vezes caio. Ou sou derrubado!
Mas não me levo muito a serio nas frustrações e costumo rir de mim, sem perder
o amor próprio. Percebo assim, que tenho força para reiniciar a escalada após a
queda. Quando aprendemos a rir de nós mesmo em tudo, a subida torna-se mais
fácil.”.
Sempre no inicio de uma jornada, a alegria, a cantoria os sorrisos e
conversas paralelas dão o tom do humor de uma patrulha. À medida que a
subida vai aumentando, os sons vão diminuindo. Já havíamos percorrido bem
uns cinco quilômetros de subida. Eram duas da manha. Max sugeriu um
pequeno cochilo de três horas. Paramos próximo a uma nascente onde
enchemos nossos cantis. Ali naquela grama úmida deitamos sob o olhar do
orvalho da madrugada e dormimos.
Abri os olhos assustado. Estavam em pé, a nossa frente uns quatro homens
mal encarados. Nada falavam, não riam, só olhavam. Levantei e os encarei.
Procurei os outros, só vi a Marly. Os demais tinham desaparecido. Perguntei de
chofre quem eram. – Só queremos o dinheiro. Nada mais! – Ladrões. Um tiro
ecoou. Eles olharam espantados e saíram correndo. Não era tiro, era o Junior
que estourou uma bexiga. Eles estavam escondidos no matagal próximo. Não
deu tempo de nos acordar. Viram-nos quando chegaram de mansinho. Uma
patrulha Sempre Alerta!
Coisas da vida. Vivencias. Um mundo difícil. Dinheiro fácil. Isso não era
escotismo. Preparamo-nos e partimos para continuar a nossa jornada. Nada nos
impediria de chegar ao nosso destino. Não havia medo, não havia duvidas. Em
poucos quilômetros de subida, nossa preocupação era uma só. Encontrar a
Montanha dos Sete Desejos. O terreno agora era pedregoso, subida forte, muitas
vezes ajudando uns aos outros. Eram mais de meio dia, estávamos cansados.
Uma parada um lanche, um gole pequeno de água.
A subida era forte, passo por passo. Liv e Marly eram uma surpresa.
Conversavam pouco. Sabiam usar a pouca água que tínhamos. Não reclamavam.
Não pediam ajuda. Orgulhava-me delas. Dez da noite. Um pequeno platô e
paramos. Max achou que poderíamos descansar até o outro dia de manhã. Logo
Marly fez um pequeno fogo e Junior um tropeiro. Um café quente ia bem.
Conversamos amenidades, claro algumas canções, e cantei para eles uma
canção que aprendi em um Jamboree no Canadá. Terra do belo Olmeiro.
Lembranças de um Velho caçador de peles nos grandes lagos canadenses
quando voltava para casa sem ter conseguido nada para seu sustento. Dizia
mais ou menos o seguinte – “Terra do belo Olmeiro, lar do castor”... lá onde o
Alce airoso, é o senhor... ao lago azul rochoso, eu voltarei de novo! Era Linda a
musica. Quando a cantava, meus pensamentos iam e vinham até os grandes
lagos, onde a floresta termina e começam as montanhas geladas do Alaska.
Estávamos muito cansados. Dormimos logo naquela linda noite sob as
estrelas. Ainda bem que o tempo estava firme e isso nos deu ânimo para
prosseguir. Levantamos bem cedo. Liv dessa vez foi quem nos chamou. Mochila
as costas, bandeiras ao vento e lá fomos nós montanha acima. Não era um
morro, era quase uma escalada. Metro por metro a ser conquistado. Às onze da
manhã avistamos um platô onde achamos ser o cume da Serra da Estrela Negra.
Em menos de duas horas chegamos. Não havia mais subida, não havia mais
nada. Decepção. Onde estava a Montanha dos Sete Desejos?
Fiquei ali calado, matutando. Os Sete Magníficos não se entregavam. Não
sabiam o que era desistir. Desconheciam a palavra desistir! Começaram a vagar
em volta até que o Jan deu um grito triunfal – Achei! Corremos todos para lá.
Abaixo a SSW do platô, uma pequena entrada que mal cabia um de nós. Jan não
se fez de rogado e adentrou no buraco, logo foi seguido por Marly, Junior, Max e
Viv. Claro, eu forcei a entrada e me vi diante de um grande túnel, totalmente
escuro. Uma lanterna apareceu na mão de Max. Caminhamos por uns vinte
minutos, andando devagar e um claridade imensa apareceu em uma curva do
túnel.
Chegamos à borda de um penhasco imenso onde terminava o túnel, e
avistamos o que seria nossa grande surpresa, uma cadeia de picos
estonteantes, nevoeiros em volta, nuvens brancas com formatos de pássaros
iam ao sabor do vento. Olhamos para baixo, até onde a vista alcançava, grandes
extensões de rios e lagos. Difícil descrever. Uma visão maravilhosa. Era como
nos estivéssemos aproximando de Deus. Impossível poder contar o que
estávamos vendo. Ficamos ali estáticos. Não havia palavras para narrar o que
nossos olhos viam. Se um dia, alguém não crer num Deus supremo, ali estava à
prova viva de tudo que existe, na criação do universo, e então me lembrei e
como lembrei de que não era nada, apenas uma fração de um momento. Como
eu era pequeno ali.
Não havia para onde ir. Descer impossível. Atingir os picos distantes seria
uma miragem. Agora era só olhar e ficar apalermado com a visão do impossível.
Não conseguia descrever e nos meus contos futuros, não saberia o que dizer.
Sentamos a borda do penhasco e ali matutávamos o retorno. Então de maneira
surpreendente, uma nuvem branca pairou sobre os nossos pés. Liv pisou sobre
ela. Firme, como se fosse uma jangada para nos transportar. Sem pestanejar,
todos foram a bordo da nuvem. Eu também tinha de ir. Não podia ficar para trás.
A nuvem nos conduzia de maneira maravilhosa em uma velocidade razoável,
como se tivesse um destino certo. Menos de minutos depois avistamos outras
centenas ou milhares de nuvens como a nossa, todas transportando uma
multidão de seniores e guias, como se ali fosse realizar um grande Jamboree,
reunindo diversos países em um só destino e para uma só concentração. Olhe,
tenho muitos anos de escotismo. Não sou mais um sênior, sou um Escotista.
Não podia ser verdade o que estava vendo. Só podia ser uma miragem.
Belisquei-me, dei um pulo, outro, vários, mas a visão estava ali na minha frente.
Insofismável, verdadeira. Não havia como dizer que tudo não passava de uma
ilusão.
Chegamos ao destino. Um enorme pico amarelo, cheio de luzes, como se
milhares de arco-íris resplandecessem em sua volta. Todos nós estávamos em
silencio. A nossa volta, jovens uniformizados do Japão, Groelândia, Grécia,
Canadá, Estados Unidos, México, Chile países e mais países. Uniformes de
todos os matizes, de todas as cores. Um espetáculo extraordinário. Também
impossível descrever. Olhávamos uns para os outros sem saber o que dizer.
Como se fosse transportada em uma aragem de vento, trazendo um perfume
inigualável, uma senhora de idade, um rosto fisionômico de extraordinária
beleza, cabelos prateados penteados em um coque, um sorriso maravilhoso, um
lenço azul brilhante preso à cabeça e com um anel de couro negro trançado
prendendo um lenço da Insígnia da Madeira, uma bata branca, e em sua volta
milhares de borboletas coloridas se elevou acima de todos. Com uma voz meiga,
simples, sem afetação, nos cumprimentou e disse:
- “Bem vindos jovens seniores e guias de todo o mundo”. Trago-lhes a palavra
do nosso criador. Sabem meus queridos amigos, vocês estão começando uma
nova vida. Vocês vieram em busca dos sete desejos. Não existe aqui. Existem
sim desejos mil para vocês meditarem e pensarem para ter uma vida melhor.
(enquanto ela falava, uma sonata maravilhosa era tocada em um piano,
acompanhada de bandolins num lindo arranjo musical), Todos vocês subiram a
montanha da vida, esperavam encontrar aventuras e quem sabe muito mais.
Encontraram sim. Na mensagem simples que o grande arquiteto do universo
trouxe para vocês. Que suas vidas se transformem depois desta grande
descoberta da Montanha dos Sete Desejos. Pensem e meditem nas palavras que
vos trago.
- Escutem essa historia, meditem e pensem melhor qual o rumo que querem
seguir. Historia simples, de um jovem que como vocês também passou por
inúmeras dificuldades, mas conseguiu vencer todas elas.
- Ao pé dessa montanha, há muito e muitos anos atrás, num rancho simples, ele
nasceu. No telhado feito de sapé cheio de furinhos por onde as estrelas
entravam, uma delas disse – Seja bem vindo! Ele cresceu e descobriu que havia
outra montanha em seu caminho. Cedo ele percebeu que a vida era como uma
montanha difícil. Cheia de obstáculos. Mas ele sabia que tinha de subi-la. Mas
qual o seu futuro se havia nascido em berço humilde? O futuro ele descobriu,
pertencem aqueles que acreditam na beleza dos seus sonhos e que nada
acontece a menos que se sonhe antes.
- Então, guardando com amor o saldo de sonhos que sobrou, e como se nada
tivesse acontecido, pois o alvo principal de vocês deve estar no topo, aí sim
dirão: - Ele é real e é para lá que eu vou. Portanto se um dia for uma pequena
nuvem, contentem-se. Não queiram ser a dura rocha que vês lá embaixo, na
encosta do mar. Porque a rocha um dia não existirá mais. Serão destruídas por
gotinhas d’água que vestida de roupa de nuvem, cairão como chuva e fantasiada
de riacho correrão para o mar.
- Mas caso queiram ser um pequeno riacho, não lutes para ser o mar, pensando
que por ser poderoso o mar não tem problemas. Todos os têm. O mar ruge e
sofre sendo chicoteado dia e noite pelo vento que o impele contra as encostas
das montanhas. O vento cavalga e açoita o mar. Mas não tente ser a montanha.
Porque o vento que não dá tréguas ao mar, incomoda também a montanha e aos
poucos vai destruindo-a pelos milênios adiante. Como o vento é poderoso.
- Não, não queiram ser o vento! Outra vez enganam-se. O vento segue a mesma
lei do universo. Para existir e ser forte, o vento depende do calor do sol que ao
aquecer o ar, o faz nascer. O vento não existirá se o sol não quiser. Assim seja
você mesmo, pois o único que não tem limitações é Deus!
- Descubram as qualidades que vocês tem. Os animais de circo diferente dos da
floresta, foram iludidos desde filhotes para não saber a força que possuem. O
tigre pensa que é um gatinho. Nossa imaginação também é domada por
tradições, hábitos e costumes que nos rodeiam desde o berço.
- Quando um problema se mostrar difícil, lembrem-se dessa historia. Havia dois
náufragos no mar revolto. Um se debateu lutou continuamente contra as ondas
ate esgotar sua energia e afundou. O outro, ao invés de dar braçadas contra o
mar, apenas boiou, não gastou energias e pode assim, se salvar!
Uma emoção sublime tomava a todos. O silencio era total. O tempo era ali
uma eternidade maravilhosa. Incrível mesmo descrever a emoção que todos
estavam tomados. Ela continuou:
- Quando invadirem em vocês os impulsos da altivez, do orgulho e
superioridade, pare e olhe para o mar, a terra e as estrelas que existem há
bilhões de anos e entendam – Suas importâncias, seus brilhos, suas
superioridades aqui são diminutos se comparados com tudo o que veem. São
poeira perante as estrelas e um piscar de olhos. Mas se ao contrário se sintam
pequenos demais, percebam que a vocês foi dado algo que as estrelas não têm.
Elas são inanimadas e executam rumos fixos predeterminados pelo Senhor do
Universo. Vocês, porém tem vida, podem rir cantar e amar...
- Finalizou dizendo: - Vocês não podem mudar certas circunstâncias ou
situações, mas podem adaptar-se a elas sempre, escolhendo a forma do mal
menor. Pode não ser o ideal, mas será o melhor. Aproveitem as oportunidades
que lhes derem, mesmos que sejam aparentemente pequenas. As grandes
árvores vêm de pequeninas sementes.
Ela sorriu fez a saudação escoteira e foi pairando no ar até desaparecer. Um
espetáculo inusitado. Palavras lindas. Tenho certeza que ficou gravada na vida
de todos que ali estavam. Olhei para os meus amigos, olhos brilhantes, lágrimas
abundantes caiam aqui e ali. Liv e Marly estavam soluçando. Max, Jan e Junior
olhavam para os outros, e vi que todas as palavras pronunciadas por aquela
senhora estavam marcadas para sempre em seus corações e suas memórias. De
repente, uma redundante Palma Escoteira explodiu e ecoou por todo aquele
vale, de picos altos e gelados, dados por seniores e guias de todo o mundo
como a saudar aquela mensagem que ficariam marcadas profundamente no
coração de cada um.
As nuvens com os jovens ao nosso redor começavam a desaparecer.
Sentimos que éramos transportados e logo estávamos no platô onde iniciamos a
busca da Montanha dos Sete Desejos. Poderia ter sido um sonho. Um sonho de
todos. Entretanto a dúvida persistia. Não foi um sonho, foi real. Insofismável.
Tenho certeza que cada um pensava da mesma maneira. Uma mensagem
maravilhosa visando o crescimento individual de todos. Agora tinham onde se
segurar nas dificuldades da vida, que iriam cercear a escalada do crescimento
de cada um.
Descemos a serra, no início taciturno, mas depois a Marly começou a cantar
gostosamente, “Avançam as Patrulhas”. O coro ecoou na voz de todos. A serra
da Estrela Negra conheceu pela primeira vez a força dos Cinco Magníficos. Para
eles não haveriam mais segredos, suas aventuras existiam e iriam perpetuar
para sempre. Eles sabem aonde ir, tem sonhos e seus sonhos mesmo que
pequenos irão dar a eles o sentido da vida.
Voltei para minha cidade. Uma viagem simples, mas cheia de recordações
que ficarão marcadas para sempre. Agora sabia que aqueles seniores, e também
é claro as guias, gostavam e viviam aventuras que eles mesmos sonhavam e
elas aconteciam. Magníficos jovens, com um alto Espírito Escoteiro. Seus ideais
forjam os homens e mulheres de amanhã. Ali sempre soube e agora comprovava
que a lei escoteira era ponto de honra. Só isso era uma garantia que ser sênior e
guia vale para toda uma vida, a força que rege esses magníficos exemplos do
nosso mundo escoteiro. Quem sabe um dia poderei de novo participar de outras
belas aventuras com os seniores e as guias do Aconcágua, aqueles que se
intitulam os Cinco Magníficos? Ah! Saudosas esperanças do futuro!
E quem quiser que conte outra...
Quem está disposto a subir grandes montanhas de felicidade deve estar
preparado também para descer enormes ladeiras de decepções.
No entanto, a chance de chegar ao topo e sentir algo que o acompanhará para o
resto da vida pode valer o risco.
Davi Marcelo Galdino
Nota do autor – Muitas das frases, citações entre outras, foram baseadas no
livro de John Fellinus, PARA SUBIR NA MONTANHA DA VIDA.
OS FANTASMAS SE DIVERTEM!
Recordações do fantasma do acampamento de verão!
(Só para jovens sem medo de fantasmas, se tiverem medo não leiam este conto).
Vampiro que toma sangue é Conto de Fadas.
Terror é Vampiro que te suga energia e qualquer possibilidade de sucesso. Ele
esta do seu lado, e você perde tempo acreditando em fantasma.
Majesty
A lua pequenina despontava no firmamento. As estrelas salpicavam o céu.
Não havia nuvens, aqui e ali pirilampos varriam a noite assim como centenas de
vagalumes querendo mostrar para a natureza, os encantos que eram possuídos
com sua dança cintilante. Uma cigarra varreu os sons noturnos com sua linda
cantiga. Minha casa era afastada da cidade. Eu podia ver as sombras e os
encantos da noite, a natureza viva ali presente ao vivo e a cores.
Era rotina, quando uma atividade escoteira marcante acontecia, eu ficava nos
dias que a antecediam nervosa, ansiosa e gostava nesses dias sentar na cadeira
de meu pai, ali na varanda da minha casa. Permanecia horas e horas pensando,
imaginando e sonhando. Se agora com 13 anos estava assim, será que mudaria
no futuro? Esqueci de dizer meu nome. Chamo-me Laura Melissa Antunes.
Leidynha como me chamam carinhosamente meus amigos e minhas amigas do
escotismo.
Aquela espera me deixava irrequieta e pensativa. Não mudava, era sempre
assim. No meu primeiro dia de lobinha a expectativa não me deixou dormir. O
mesmo aconteceu com minha promessa e o primeiro acantonamento. Quando
passei para a tropa, agora na cidade dos homens, foi outra espera angustiante.
Lembro do meu primeiro acampamento, do segundo, do terceiro. Lembro de
todos. Tenho-os anotado em meu livro que chamo de minhas memórias
escoteiras. É como fosse meu diário particular. Ali anotava as horas, os dias,
minhas companheiras de patrulha, fatos marcantes, o local e olhe até desenhava
o meu campo de patrulha. Péssimo desenho, mas era só meu. Meu livro secreto
não mostrava ninguém.
Mamãe costumava vir me chamar quando a noite ficava mais longa e muitas
vezes me encontrava dormindo. Carinhosamente me pegava no colo e me punha
para dormir. Éramos três naquela casa. Eu mamãe e papai. Uma família feliz.
Adoro-os. Amo eles muito. Meu pai é um grande amigo. Incentiva-me, não mede
esforços para que eu consiga realizar todos os meus desejos no escotismo.
Grande pai! E minha mãe! Outra formidável. Ela trabalha fora, caixa em um
banco, mas estava sempre presente em todas as horas que precisei dela. E eu
ajudava muito com os afazeres da casa.
Eu procurava ser boa filha. Minhas notas não eram as melhores, mas
sempre estava em terceiro ou quarto na classe. Era amiga de todos, não brigava
e depois que aprendi a lei do lobinho e a lei do escoteiro, fazia questão de
cumpri-las ao pé da letra.
Lembro o dia que meu pai me perguntou se queria ser escoteira. Tinha oito
anos. Perguntei o que era. No sábado seguinte fomos conhecer. Amei logo de
cara. Imagine! Jovens da minha idade, correndo, rindo, brincando eu não iria
participar? Claro que sim. Com o tempo, os sábados eram uma doce espera de
uma semana longa e extensa.
A Aquela Lilian era bondosa, enérgica e amiga de todas nós lobinhas. O Balu,
a Kaa e a Baguira que diziam ser uma esperta e valente pantera tinham um lugar
especial em meu coração. Marcaram-me para sempre. Na minha passagem para
escoteira choraram. Lágrimas de alegria, pois sabiam que estava logo ali, bem
próximo da jângal na cidade dos homens.
Na tropa a Chefe Dalva era outra grande amiga. A patrulha Gavião agora era o
meu novo lar. Eu e a monitora ficamos mais que irmãs. Uma verdadeira amiga.
Éramos todas muito unidas. A patrulha tinha um só pensamento e uma só ação.
Sempre saímos juntos aos domingos, íamos ao cinema, ao shopping, mesmo
fora das reuniões éramos amigas inseparáveis. Em dois anos, já tinha terminado
a segunda classe e caminha para a primeira. O cordão verde amarelo usava com
orgulho.
Olhe, acho que minha entrada no escotismo foi à parte mais linda da minha
vida. Sei que ainda vou crescer pensar de maneira diferente, mas não mudo de
opinião. Sou escoteira e serei escoteira ate morrer. Agora estava ali, na varanda
da minha casa, esperando o sábado, onde partiríamos para a Serra do Esquilo.
Seriam cinco dias. A monitora disse-me que lá era perfeito para um
acampamento. Ainda não conhecia, mas a chefe na Corte de Honra colocou
todas a par do que sabia.
Iríamos em três patrulhas, também muito amigas uma da outra. Não seria a
primeira vez. Acampamos juntas muitas outras vezes. Minha mãe interrompeu
minhas recordações dizendo ser tarde. Hora de dormir. Claro, sabia que iria
deitar e sono não viria tão cedo.
A semana passou, mas o relógio nesse tempo parecia ter parado. O sábado
amanheceu brilhante. Céu azul, o sol ainda não havia surgido. Eu nesses dias
sempre era a primeiro a chegar. Na sede, as patrulhas à medida que chegavam
uma e outra já se movimentavam, pegando os sacos de patrulhas com os
materiais lá no almoxarifado do grupo. Barracas, toldos, sapa, intendência, tudo
bem acondicionado. O saco tinha quatro alças, que com dois bastão poderíamos
em quatro transportar em qualquer distancia sem dificuldade. Eu já estava
acostumada. Os Búfalos já estavam com a maleta de primeiros socorros, apesar
de que cada patrulha também tinha sua pequena maleta que ficava com a
socorrista da patrulha.
Todos nós estávamos preparados para a partida. Um Ônibus da prefeitura
iria nos levar. Não muito longe, apenas 150 quilômetros e quatro a pé. Nossa
viagem teve um imprevisto. Uma peça do motor quebrou. Estávamos bem
próximo do campo. Uns quinze quilômetros. O motorista, seu Joaquim já nosso
conhecido, disse que o conserto levaria o dia inteiro.
Uma Corte de Honra foi improvisada. Calcularam a distancia final. Andando a
cinco km por hora, em três horas e meia (com parada) chegaríamos. Dava para
levar o principal. Acertamos tudo e ao partir, um caminhão basculante buzinou e
parou mais a frente. O motorista desceu e logo gritou – Sempre Alerta! – Sem
problemas, uma nova carona. Partimos e quase chegamos no horário.
O local era excelente. Uma aguada linda, riacho e pequena queda d’água.
Uma grande lagoa de águas cinzentas era tudo que esperávamos para grandes
jogos náuticos. Bambus sem conta. Próximo uma mata enorme. Tudo plano.
Ficava a mais de dois quilômetros da estrada carroçável. Nova reunião de
monitoras, escolha de campo, a monitora nos levou até o nosso. Uma bandeira
do Brasil foi arvorada e após a oração e avisos iniciamos nossa labuta de
campo.
Inicio de acampamento. Sempre aquele burburinho das patrulhas, o corre-
corre, depois era viver tudo com emoção e muito amor. Nada de mais aconteceu
no primeiro dia, tudo corria perfeitamente bem. Até que uma das chefes se
sentiu mal. Estavam em três, nossa chefe, uma assistente e seu marido que era
assistente sênior. Ele foi levá-la ao pronto socorro mais próximo. Em seguida a
nossa assistente que estava sozinha no campo também se sentiu mal. A
preocupação foi geral, mas logo vimos seu marido chegando.
Explicou que deviam ter se intoxicado com alguma coisa que comeram.
Achamos que foram umas amoras que nasciam próximo ao lago. Mesmo com
dores a assistente chamou primeiro as monitoras, explicou tudo, e disse que o
marido dela voltaria logo. Confiava em nós naquele pequeno período que não
havia adultos. Dissemos para ficarem tranquilos. Passavam das seis da tarde.
Elegemos uma monitora responsável. Três de nós separamos a intendência para
o jantar. Na barraca da chefia havia um cardápio com as quantidades para cada
patrulha.
Olhe, eu sinceramente estava preocupada e muito. Sabia que o local era um
sitio, com portão trancado na entrada e bem afastado dele. Mais de 500 metros.
Mas assustava ficarmos ali todas nós sozinhas sem um adulto. Achamos que o
assistente sênior voltaria logo. As patrulhas fizeram o jantar, limpamos o
vasilhame, recolhemos nosso material de dormir e deixamos tudo preparado
para a noite.
Passava das nove da noite e nada do assistente sênior. Reunimos todas em
volta de uma fogueira no campo da chefia. Conversamos, uma patrulha se
prontificou a fazer um café, na intendência biscoitos e ali cantamos, trocamos
ideias e ouve até alguém que fez uma apresentação espontânea de balé clássico
ao som de samba. Rimos a valer, pois o som era nosso cantado ao vivo. Quase
onze da noite e nada do assistente. Comecei a ficar preocupada. Sem celular,
sem saber como comunicar, agora nesse horário para buscar ajuda não dava.
Ainda confiávamos que o assistente chegaria.
O fogo diminuiu. O sono chegava. Fizemos uma reunião de tropa e decidimos
ir dormir. No dia seguinte se não chegasse ninguém então tomaríamos uma
providencia. Mas o pior estava por vir. A noite ficou mais escura. As estrelas e a
lua desapareceram. Um relâmpago cruzou o céu e caiu a nossa frente. O som do
trovão foi ensurdecedor. Como se fosse um fantasma apareceu a nossa frente
um enorme jacaré do papo amarelo, com mais de 5 metros de comprimento, com
olhos em fogo e uma cruz na testa. Achei que estávamos tendo uma visão, não
podia ser alguém fantasiado assim. O jacaré movia a boca para cima e para
baixo com uma facilidade incrível. Em sua volta tudo escuro. Não se enxergava
um palmo além dele.
Arrastava-se e desaparecia. Logo em seguida aparecia nas nossas costas.
Depois começou a ficar coberto de uma gosma horrível, fétida. Seus olhos de
fogo soltavam chispas. Algumas de nós começaram a gritar. A pedir ajuda a
Deus. Abraçamo-nos fizemos uma bola de escoteiras, mas ninguém queria ficar
do lado de fora. Sem avisar sumiu. Nada. A lua apareceu de novo, as estrelas
estavam no céu. As lanternas voltaram a funcionar. Éramos vinte e uma
escoteiras. Ninguém queria ir para seu campo e nem ficar ali.
Resolvemos dormir nas duas barracas da chefia. Embolaríamos dez em
uma e onze em outra. Não tinha jeito, alguém se lembrou da higiene pessoal. Ir
até a bica? Nem pensar. Fora de cogitação. Eu mesmo não iria nunca agora. Já
aproximávamos das barracas e de novo Apareceu um homem peludo, enorme,
cabeça de demônio, pulando feito um macaco e ao seu lado outro de cabelo e
barbas avermelhadas, unhas enormes, coberto de lodo que exalava um mau
cheiro incrível. Esse ficou parado, estático nos olhando enquanto o outro
passava em volta de nós gargarejando e dando urros ensurdecedor. De novo
nos embolamos aos gritos.
Olhe, era um medo geral. Terror mesmo. Acho que agora nenhuma de minhas
amigas iria assistir mais filmes de horror. Assim como chegaram sumiram.
Corremos para as barracas. Embolamos uma com as outras. Na minha éramos
onze. Em poucos minutos não vimos mais nenhum barulho lá fora. Olhava para
a monitora da minha patrulha como a perguntar, o que houve? Nunca tínhamos
visto algum assim. Porque isso estava acontecendo? Será que ali seria algum
cemitério abandonado e alguém queria nos espantar dali?
Passou dez minutos, uma hora, duas. Todas dormiam. Menos eu e a monitora.
Estávamos deitadas, mas de olhos bem abertos. Não queríamos dormir, o medo
era tanto que pensava se dormíssemos eles entrariam na barraca e nos levariam.
O que fazer? Deu-me uma vontade louca de fazer uma necessidade. Tinha de
fazer. Sair lá fora? Deus do céu! Falei com a monitora ela disse que também
precisava. Abri a porta da barraca, céu azul, muitas estrelas, minha lanterna
varreu em volta, nada. Saímos devagar, pé-ante-pé e atrás da barraca uma cobra
gigantesca apareceu.
Era enorme, soltava fogo pela boca. Toda vermelha, mudava de cor para azul,
amarelo e voltava a ser vermelha. Encarava-nos, mas não se mexia. Ficamos
estáticas. Ela estava bem próximo da barraca. Agarrei-me a monitora, ela se
agarrou em mim. A cobra começou a caminhar em direção a bica. Ficamos ali
paradas quase aliviadas. Já íamos voltar sem sequer fazer o que queríamos
quando vimos um macaco, descomunal, com mais de cinco metros de altura,
também peludo, como um porco-espinho, e com um olho só no meio da testa.
Gesticulava e tentava pegar alguma de nós. Infelizmente não deu mais. Comecei
a gritar. Um grito histérico, alto, berrava a plenos pulmões. Um medo terrível,
meus dentes batiam um no outro, achei que iriam espatifar.
Correr para onde? Para a mata? Para a lagoa? Voltar à barraca?
Histericamente pulava como uma doida. Medo incrível. Nunca em minha vida
pensei que isso iria acontecer comigo. Gritava. Um pavor horrível corremos para
a barraca e fechamos a porta. Abraçadas olhamos uma para a outra com os
olhos esbugalhados de pavor. Não, não tinha parado. Sentado em um canto da
barraca, um indiozinho de pele escura, como um curupira horrendo, com os
olhos esbugalhados, peludo, montado num porco do mato estava ali, com uma
perna só, cabeça enorme e um só olho onde deveria ser seu nariz e ria
desbragadamente. Suas gargalhas eram medonhas!
Era demais. Impossível. O que tinha acontecido? Meu Deus implorava, me
ajude a sair dessa. Não temos para onde ir. Os gritos meu e da monitora se
transformaram em berros. Estava rouca. Minha voz estava sumindo. Um medo
terrível. Gritava, gritava e me dei conta de alguém me pegando nas costas. Aí
gritei mais alto, começaram a me balançar, acorde! Acorde! Então abri os olhos.
Vi minha mãe e meu pai me abraçando. Pare, chega acorde! É somente um
sonho. Um pesadelo. Tudo acabou. Eu ainda chorava soluços enormes.
Abraçava-a com sofreguidão. Ainda tremia. Contei para ela o pesadelo. Ela me
explicou que jantei muito tarde e isso poderia ter sido o motivo.
E o acampamento, perguntei? Já foram? – Não querida, hoje é segunda, só
irão na sábado. Ufa! Graças a Deus. Fiquei três dias com aquele pesadelo na
mente. Depois comecei a esquecê-lo. Mas a sexta chegou e com ela meu
acampamento de sonhos se aproximava. Não comentei com ninguém da
patrulha e da tropa. Não queria assustá-las. Agora era esperar o sábado,
esquecer de vez meu pesadelo e partir para mais um lindo acampamento. O que
mais adorava no escotismo.
O sábado amanheceu brilhante. Céu azul, o sol ainda não havia surgido.
Na sede as patrulhas à medida que chegava uma e outra já se movimentavam,
pegando os sacos de patrulhas com os materiais do almoxarifado. Barracas,
toldos, sapa, intendência, tudo bem acondicionado. Eu já estava acostumada.
Os Búfalos já estavam com a maleta de primeiros socorros, apesar de que cada
patrulha também tinha sua pequena maleta que ficava com a socorrista da
patrulha.
Todos nós estávamos preparados para a partida. Um Ônibus da prefeitura
iria nos levar. Não muito longe, apenas 150 quilômetros e quatro a pé. Nossa
viagem teve um imprevisto. Uma peça do motor quebrou. Estávamos bem
próximo do campo. Uns quinze quilômetros. O motorista, seu Joaquim já nosso
conhecido, disse que o conserto levaria o dia inteiro. Fiquei pensativa. Parecia
que tinha visto essa historia antes.
Pegamos uma carona e chegamos sem atrasos. O local era excelente. Uma
aguada linda, riacho e pequena queda d’água. Bambus sem conta. Próximo uma
mata enorme. Tudo plano. Ficava a mais de dois quilômetros da estrada
carroçável. Nova reunião de monitoras, escolha de campo, a monitora nos levou
até o nosso. Uma bandeira do Brasil foi arvorada e após a oração e avisos
iniciamos nossa labuta de campo.
Inicio de acampamento. Sempre aquele burburinho das patrulhas, o corre-
corre, depois era viver tudo aquilo com emoção e muito amor. Nada de mais
aconteceu no primeiro dia, tudo corria perfeitamente bem. Até que uma das
chefes se sentiu mal. Não posso acreditar. Não vai acontecer de novo!
Exatamente como no meu sonho. Mas agora não estou dormindo. Meu Deus!
Não deixe acontecer de novo. Não iria aguentar!
Levaram a chefe para o pronto socorro. Impossível concatenar qualquer ideia.
De novo a mesma historia. Estava se repetindo. O horror se apossou de mim. Vi
no rosto da minha patrulha o mesmo olhar de incredulidade. Não era possível.
Parecia que elas também tinham tido o mesmo pesadelo! Todas nós começamos
a gritar, a chorar, a pedir que não saíssem ninguém do campo. Não adiantou e
de novo ali estávamos sozinhas, em volta do fogo, grudadas uma a outra a
espera do demônio, do lúcifer, do capeta ou do coisa ruim, sei lá.
E então a noite ficou escura. As estrelas sumiram do céu. Um raio
ensurdecedor caiu bem a nossa frente. Um trovão assustador. Uma gargalhada
horrenda retumbou das águas escuras da lagoa. Surgindo aos poucos Um
monstro horrível, grande, cheio de escamas, era uma figura fantasmagórica
surgindo das águas. Mancando, com os braços abertos se dirigia em nossa
direção. Da sua boca saia uma gosma preta e seu nariz fumaça. Era o fim do
mundo! Não iria suportar, cai no chão desfalecida...
Fim da historia. Nada aconteceu com elas e nunca vai acontecer. Foi um
conto de terror. Somente um conto. Não é e nem nunca será realidade. É como
se fosse um daqueles contos que Xerazade narrava para o Rei Xariar, no século
IX e que não passavam de historias das mil e uma noites. São narrativas sem
fundamento, que nunca irão assustar as valentes escoteiras.
Os acampamentos são maravilhosos, quem teve a oportunidade de
experimentar e vive ali juntos com seus amigos e amigas sabem disso. Não
existem almas do outro mundo, não existe fantasma, o tinhoso o pé-de-pato o
satã. Isso são coisas que só existem na nossa mente e claro irreais. Cá prá nós,
dificilmente uma escoteira tem medo. Ela é forte, alegre, corajosa. Sua mente é
limpa de corpo e alma. Sabe o que faz.
E claro, aquele acampamento foi maravilhoso. Quem já fez um sabe.
Dormiram em barracas, sob as estrelas, viram o nascer do sol, o por do sol.
Sentiram o orvalho da manhã no rosto, seus olfatos puderam saborear o cheiro
da terra molhada, das flores silvestres. Os sons maravilhosos do cantar da
passarada pela manha e a noite. O piar da coruja no carvalho. Aqueceram-se no
Fogo de Conselho e viram o lenho crepitando, as fagulhas subindo aos céus,
languidas e serenas e desaparecendo com a brisa leve e intermitente. Todos
cantaram maravilhosas canções escoteiras. Tomaram um café quente, deram um
grito de patrulha e falaram para todos com orgulho: Somos escoteiras! E nos
orgulhamos disso.
Gostariam que outros jovens, assim como elas pudessem viver o que estão
vivendo. O companheirismo, a confiança nos amigos, amar uns aos outros. Iriam
saber o esplendor de um acampamento. Ser uma acampadora, uma mateira.
Dormir em uma cama mateira. Ver a chuva caindo na floresta, um som
maravilhoso e imperdível. Impossível descrever. É um privilégio de poucos. O
que mais é ser escoteira? Olhem, ela vive o que os outros não viveram. Quem
não foi não sabem o que é isso. Quem sabe um dia terão essa possibilidade?
Claro se forem aceitos nessa grande Fraternidade Mundial dos Escoteiros.
Não sei se terão a oportunidade que estamos tendo. Uma ternura imensa pela
natureza. Saber onde fica o norte e o sul. Andar a sotavento. Caminhar olhando
para as estrelas. Aprender que o medo não é próprio dos escoteiros. Fazer
fazendo. Descobrindo as flores, o seu desabrochar. Não existe maior felicidade.
Vou convidar meus amigos e minhas amigas, mas não sei se terão coragem de
ser como eu. Um dia, nosso fundador disse que somente os valentes entre os
valentes se saúdam com a mão esquerda. E eu sei que qualquer um pode entrar
em um Grupo Escoteiro, mas, no entanto, também sei que ser escoteiro não é
para qualquer um!
E quem quiser que conte outra
Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é
um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não
perceber sua simplicidade.
Mário Quintana
A força do destino!
(A historia de Bell, uma linda escoteira).
Uma pessoa pode ter uma infância triste e mesmo assim chegar a ser muito feliz
na maturidade...
. Da mesma forma pode nascer num berço de ouro e sentir-se enjaulada pelo
resto da vida.
Charles Chaplin
Conheci Bell há precisamente treze anos atrás. Estava em visita a
um amigo convalescente, chefe escoteiro de uma tropa masculina no bairro em
que morava. Soubera que havia sofrido um acidente de moto, e achei que estaria
acamado. Engano meu. Lá estava na maior alegria, mancando com uma muleta
abaixo do braço direito, rindo e brincando com sua tropa escoteira, esquecendo
completamente da dor que deveria estar sentindo. Isto é próprio de escoteiros.
Amam suas atividades, seus amigos, seus ideais e fazem tudo para não sair dali.
Como diz os valentões da vida, “O chefe escoteiro dá um boi para entrar em uma
boa atividade escoteira e dá mais cinco para não sair”. (se errei desculpem)
Mas vamos falar da Bell. Seu nome mesmo é Beatriz Lizande Santini.
Cheguei ao exato momento em que recebia a Segunda Classe. Aconteceu no
final da reunião. Todo o grupo reunido. Ela me surpreendeu. Uma postura
elegante, altiva, um grande sorriso entremeados de surpresa, recebeu o
distintivo e o aperto de mão de sua chefe com esmero, como manda a boa
formação escoteira. Mas achei que faltou alguma coisa, não sabia o que. Só
muito mais tarde, após acompanhar os relatos entremeados aqui e ali de seus
amigos e de sua chefe escoteira, pude então formar uma opinião.
Bell tinha treze anos na época. Fora lobinha durante dois anos e
como escoteira tinha um amor enorme ao escotismo. Parecia que ali ela se
encontrava. Gostava de seus amigos, de sua patrulha e tinha grande admiração
pela sua chefe de tropa. Era uma sessão exclusivamente feminina, mas nunca
deixando de lado o bom relacionamento com a tropa escoteira. Era pontual.
Disciplinada. Seu uniforme era impecável. Nunca conversava de cabeça baixa.
Não era é claro orgulhosa. Só tinha medo dela própria. Um medo terrível!
Desde que nasceu Bell era admirada por todos que a conheceram. Já
bebê, aparência nórdica, tinha os olhos azuis mais lindos já vistos em uma
criança. Seus cabelos loiros cor de palha, se despontavam com seis meses de
idade. Rosto arredondado era sempre distinguida como o mais lindo bebê do
ano. Quiseram até a inscrever em concursos, mas seus pais foram contras. Bell
foi crescendo e atraindo olhares amigos, olhares simpáticos e até alguns
olhares diferentes. Isto a prejudicava enormemente.
Quando fez oito anos, conheceu as lobinhas, pois uma das suas
amigas da escola foi lá um dia de uniforme. Encantou-se com ela, seus
distintivos e com a tal Historia da Jângal que ela contava. Foi muito insistente
com seus pais para que a inscrevessem. Sentiu-se bem ali. Todos da sua idade,
sem se importarem com sua aparência. A Chefe Nair sua Akelá era maravilhosa
e era para Bell uma segunda mãe. Ali ninguém olhava para ela como se fosse
uma princesa. Na escola todos se afastavam por isso. Seu encanto levara a isto.
Até de presunçosa, arrogante, altiva e jactanciosa já tinha sido chamada. Não
era nada disto. Sofria horrivelmente com este estigma.
Naquele dia que a vi pela primeira vez, não conhecia a historia de Bell.
Não sabia que no seu pequeno coração, era possuída de grande amor e
fraternidade pelo semelhante e sempre seu pensamento era de ajudar, colaborar,
se sentir útil. Isto para ela era de extrema felicidade. Bell tinha sempre um
grande sorriso para suas amigas e também para os amigos da tropa, que a
respeitavam, davam grande importância a sua amizade e respeitosos como todo
bom escoteiro, conversavam, contavam “causos” e nos acampamentos
vibravam com as atividades desenvolvidas, quando havia atividades em
conjunto.
Bell passou para guia antes de fazer quinze anos. As guias estavam em
formação, com menos de quatro jovens e pediram a ela que fosse mais uma.
Formaram uma patrulha inesquecível. O nome Araguaia ficou marcado para
sempre na tropa de guias escoteiras. Mirna a chefe, no inicio não tinha muita
experiência, mas juntas desafiaram muitas tropas seniores no Brasil. Tudo de
bom acontecia com Bell naquela época. Acampamentos, excursões, visitas a
lugares importantes e por último uma Aventura Sênior Nacional.
Foi sensacional conhecer mais de 500 seniores e guias. Uma amizade
sem par. Conheceu a patrulha Aconcágua, cinco seniores que se diziam da
pesada e se intitulavam os Cinco Magníficos (leiam aqui duas aventuras deles).
Quando fizeram um convite a ela para descer com eles nas férias de julho o rio
das Mortes no alto Xingu até o grande rio Araguaia, ela aceitou de pronto.
Conhecer a historia do nome de suas patrulha seria o ápice de sua vida
escoteira.
Seus pais foram contra. Seriam cinco rapazes e ela somente. Mas ela
tanto insistiu que acabaram a deixando ir. Viagem maravilhosa até o Pará.
Ônibus, carona, dormindo ao ar livre, cantando, e conhecendo seus novos
amigos que não tinham medo de nada. No caminho contaram suas aventuras. A
principio ela não acreditou muito. Viu, entretanto que até o Ned mais calmo junto
com o Junior estavam sendo sinceros. A viagem deles voltando no tempo ao
Castelo Medieval na França e a Casa assombrada deviam ter sido aventuras
incríveis.
Ao se dirigem para o Rio das Mortes foram informados que os
Xavantes ainda não tinham sido pacificados e poderia trazer perigo para a
patrulha. Animaram-se mais com o perigo que iriam enfrentar. Os Cinco
Magníficos riam a valer. Patrulha como aquela era difícil. Em um jipe, dirigido
por um motorista louco percorreram um bom trecho da Belem-Brasilia que ainda
não havia sido terminada. Quando chegaram ao final do trecho, encontraram um
pequeno povoado e ali compraram alguns víveres (preço muito alto). Max se
encarregou dos víveres e garantiu que era bom em caça e pesca. Entraram mata
adentro, com destino ao Rio das Mortes. Queriam chegar logo, fazer uma grande
jangada, (todos peritos neste tipo de embarcação).
Dois dias andando em uma mata espessa, percorrendo uma trilha que toda
hora se perdia chegaram. Lindo o rio. O nome rio das Mortes foi colocado pelos
índios Xavantes, devido a grandes batalhas com os bandeirantes as margens do
rio a muitos e muitos anos atrás. Não perderam tempo. Possuíam três facões e
cinco machadinhas pequenas. Fizeram a base com madeira sólida, seca que
encontraram a margem do rio. Usaram cambaru, que existia muito na região.
Pequenos galhos de Cambará e Itauba também foram usados. Leo deu ideia de
fazerem um mastro e improvisaram uma vela. Viram que o vento soprava sempre
rio abaixo a ESE.
Antes de mergulharem na grande viagem rio abaixo, pela manhã, avistaram
do outro lado do rio um xavante solitário, imóvel, de olhos voltados para eles.
Parecia ser um jovem guerreiro e que agora tinha adquirido a maioridade. Seu
corpo nu estava pintado com tinta de urucu. Numa das mãos ele segurava um
grande arco, nas costas varias flechas e na outra um tacape de guerra. Não se
avistava mais nenhum Xavante. Tinham certeza que ele não estava sozinho. Bem
acima em uma barranca apareceram mais uns doze deles. Todos parados,
estáticos, olhando.
Devagar, sem mostrar medo, os Cinco Magníficos e Bell colocaram a jangada
na água. Batizaram-na de Brownsea do Araguaia. Entraram após carregarem
suas tralhas. O índio continuava lá, imóvel. Começaram a descer o rio devagar e
ainda não haviam levantado à vela. Antes de chegarem à curva do rio, o jovem
xavante deu sinal com os braços, a dizer silenciosamente, vão com “Maromba”
que ele os proteja em sua jornada. Maromba era o Deus dos ventos e muito
venerado por eles. Dois quilômetros abaixo içaram a vela e a jangada adquiriu
grande velocidade. Deixaram Bell ser a Capitã. Em pouco tempo se tornou
exímia com o leme.
Bell vibrava com a aventura. Os Cinco Magníficos sempre sorrindo.
Não tinham nem hora e nem lugar onde sempre cantavam o Ra-ta-plâ, Avançam
as Patrulhas e a Canção do Sênior. A jangada gostosamente descia o rio, e olhe
em uma velocidade acima de cinco nós. O leme improvisado funcionava
esplendidamente. Em menos de oito horas chegaram à bacia do Araguaia. Ali
encontraram um pequeno posto da FUNAI e foram muito bem recebidos pelo Sr.
Antônio, chefe do posto. Ofereceu abrigo e comida. Ficaram até o dia seguinte.
À noite, em volta de uma fogueira pequena, pois fazia calor, o
senhor Antônio contou algumas historias interessantes. Os Xavantes nunca
foram muito amistosos. Eram seminômades, habitavam o cerrado das florestas
do norte de Mato Grosso. Tinham fama de ferozes. Contavam-se as dezenas as
mortes por eles realizadas. A maior de todas foi a do Engenheiro e explorador
inglês Sir Percy H. Fawcett e dois companheiros seus que estavam explorando o
Rio das Mortes. Nunca mais se ouviram falar deles. Dizem às lendas que ele se
tornou um deles. Contam que já o viram nu pintado para a guerra de arco, flecha
e um grande tacape. Reconheceram-no pela sua vasta cabeleira loira.
Bell dormiu preocupada embaixo de uma Cedro gigante. O vento soprava a
nordeste e uma brisa leve e fresca dava ao seu sono, um doce sabor de
aventura. Acordou dia claro. Os Cinco Magníficos já estavam a postos para
continuar a descer o rio. Foram informados que a menos de 40 quilômetros,
poderiam encontrar a “Capitão Joaquim Peçanha”, uma gaiola que fazia a rota
até Belém. Bell me contava a historia com naturalidade. Não falou como foi à
volta, se o dinheiro deu para as despesas, mas sempre rememorava tudo com
uma grande paixão sua pelo escotismo. Disse ela que os Cinco Magníficos
ficaram gravados para sempre em seu coração.
Dois anos mais tarde encontrei Bell profundamente triste, desgostosa, pois
havia pedido demissão do Grupo Escoteiro. Olhos marejados de lagrimas.
Ninguém acreditava. Não entendiam seu pedido de exclusão. Estava terminando
a eficiência dois e pouco faltava para conseguir o Escoteiro da Pátria. Ninguém
podia entender o que ela sentia. Uma dor profunda em seu coração. Motivo? Ela
não sabia. Beth era devotada na ajuda ao próximo, até pensava em se dedicar a
Deus mais fervorosamente entrando para um convento. Seus pais sempre foram
contra. Era uma devota, católica fervorosa. Confessava-se sempre.
O grupo entristeceu e sentiu sua falta durante mais de um ano. As
visitas eram frequentes em sua casa. Ela vivia mais reclusa. Detestava o
espelho. Detestava quem a olhasse mais detalhadamente. Na escola não tinha
mais amigas. Não olhava nos olhos dos professores. Se alguém se aproximasse,
ela não deixava. Bell era linda mesmo. Uma beleza estonteante. Homem nenhum
deixaria de olhar para ela sem ficar deslumbrado.
Mesmo sem condições financeiras, seus pais tentaram que ela
conversasse pelo menos algumas vezes com um psicólogo. Ela disse não
peremptoriamente. Insistiram para que ela participasse de outros grupos na
igreja, como catequista ou qualquer área onde pudesse ajudar. Bell não quis.
Seu amor era o escotismo. Nunca esqueceria os momentos felizes que lá
passou.
Quando fez 18 anos, ela caminhava de volta a sua casa e tropeçou em
um jovem ao atravessar a rua que caiu estatelado no chão. Ela também caiu. Ela
como sempre achou que ele fez de propósito. Havia acontecido outras vezes.
Faziam isso para chamar atenção. Levantou e lhe dirigiu um olhar de indignação.
A principio foi de antipatia, depois notou algum nele. Não sabia o que era. Ele se
levantou, olhando para o lado (a primeira vez que um homem fazia isto com ela)
e pediu desculpas seguindo seu caminho com uma bengala. Ela se assustou.
Meu Deus pensou! Ele não vê, ele era cego!
Bell daí em diante mudou de opinião. Achou que estava muito fechada
em si mesmo. Não podia continuar assim. O jovem estranho mostrou que o
mundo tem pessoas boas, sem interesses. Voltou a sorrir o que não estava mais
fazendo há muito tempo. Voltou ao Grupo Escoteiro. Pediu desculpas a um por
um. Foi aceita e readmitida com alegria. Agora era uma pioneira e adorava seus
amigos do Clã. No ultimo acampamento distrital, participaram com outros
pioneiros, e foi maravilhoso para ela. Pensou que ali encontraria os Cinco
Magníficos, mas não teve notícias deles. Por onde andariam? Por certo em
busca de grandes aventuras! Bell se orgulhava novamente do seu uniforme, de
sua tropa, de seu grupo. Seu amor ao escotismo era enorme.
Bell mudou. E muito. Agora tinha um grande amigo. Ainda não sabia se
era amizade ou amor. Só o tempo diria. Jorge era o nome dele. Esperou ele
passar em frente a sua casa. O procurou. Fez amizade e o convidou para o Clã. A
principio todos estranharam, mas depois se tornou um membro nato, bem
relacionado e todos tinham enorme carinho e admiração por ele. Bell gostava
muito dele. Talvez porque nunca a encarava. Sempre olhando para os lados. Seu
rosto sempre corava quando Bell ria, ela adorava isto e ele também. Formavam
um belo par, admirados por todos. Jorge era o jovem cego que um dia
tropeçaram em uma esquina de uma rua. Um fato simples, corriqueiro e que
mudou para sempre a vida de Bell.
Por motivos diversos passei muito tempo sem visitar o Grupo Escoteiro
onde Bell participava. Acho que por mais de dez anos. Não fiquei sabendo mais
nada a respeito dela. Se ela se casou, se entrou para a universidade. Nada sabia.
Um dia, para minha surpresa, minha esposa estava grávida e as pressas a
levamos em um hospital próximo. O pediatra que a tinha atendido no seu pré-
natal, estava de férias e não sabíamos. Chamaram pelo som a Doutora Beatriz
Lizande Santini. A minha preocupação era tanta que nem prestei atenção ao
nome.
Ela quando me viu, sorriu e me disse Sempre Alerta! Com aqueles olhos
maravilhosos. Não sei se eram verdes, rubi ou um azul da cor do mar.
Continuava linda! Os lábios bem postos, como a dizer, seja bem-vindo. Ainda
tinha um corpo estonteante. Toquei-me, vi onde estava e deveria estar voltado
para o nascimento do meu segundo filho e preocupado com a Lili, minha
esposa. Doutora Bell foi eficiente. Uma excelente pediatra. Fiquei orgulhoso em
saber. Depois conversamos no apartamento onde minha esposa estava
internada.
Bell me contou que se casou com Jorge. Ele advoga e é bem respeitado
nos meios jurídicos. Trabalha em um grande escritório de Advocacia. Ambos
ainda participam do Grupo Escoteiro. Ele agora é o Chefe de Grupo e ela Akelá
de lobinhos. Infelizmente não são frequentes, suas atividades não permitem. O
grupo vai maravilhosamente bem. Trouxeram meu novo rebento para que o
conhecêssemos. O bebê mais lindo do mundo. Sabia que não havia ninguém
mais bonito que ele.
Sou pai de dois jovens. Ambos já são lobinhos no grupo escoteiro de
Bell. Tenho orgulho deles. Chamaram-me para ser um Escotista, mas preferi
ficar na diretoria. Acho-me bem ali. Enfim, Beth encontrou seu lugar no mundo.
Continua bela linda, a mais linda moça que já conheci, (não contem pra minha
esposa). Achou seu lugar. Parabéns Bell, escotismo faz coisas maravilhosas
para todos nós.
Hoje lembrando este episódio, a historia de Bell, fico imaginando
quantos e quantos jovens tem escondido no recôndito da alma suas historias
para contar, suas alegrias, suas tristezas, seus sonhos. São fatos guardados em
cada mente em cada coração. Ainda bem que o Movimento Escoteiro trás tantos
momentos de alegria e formam moças e rapazes nos seus mais belos princípios,
que são a exultação de um instante, transformados em anos e anos de uma vida
sadia e harmoniosa, nas sendas da aventura e das grandes atividades vividas
com amor que só mesmo um grande movimento pode dar...
E quem quiser que conte outra...
Preciso reviver, eu bem sei,
mesmo que só na lembrança,
voltar à minha antiga casa,
rever a minha infância
e todos os momentos felizes que lá passei.
Clarice Pacheco
RICK – UM LOBINHO INESQUECÍVEL E SUA FANTÁSTICA
VIAGEM AO MUNDO ENCANTADO DA JÂNGAL
- Porque não morri nas garras dos dholes, gemeu Mowgly. Minha força esvaiu-se
e não foi veneno. Dia e noite ouço um passo duplo no meu caminho. Quando
volto à cabeça sinto que alguém se esconde atrás de mim. Procuro por toda
parte atrás dos troncos, atrás das pedras, e não encontro ninguém. Chamo e não
tenho resposta, mas sinto que alguém me ouve e se guarda de responder.
Se me deito, não consigo descanso. Corria a corrida da primavera e não
sosseguei. Banho-me e não me refresco. O caçar enfada-me. A flor vermelha
está a ferver em meu sangue. Meus ossos viraram água. Não sei o que...
- Para que falar? Observou Baloo. Akelá disse que Mowgly levaria Mowgly para a
alcatéia dos homens outra vez. Também eu o disse, mas que ouve Baloo?
Bagheera, onde está Bagheera? Esta noite se foi? Ela também sabe disso, é da
lei.
- Quando nos encontramos nas Tocas Frias, homenzinho, eu já o sabia
acrescentou Kaa. Homem vai para homens, embora a Jângal não o expulse.
- A Jângal não me expulsa, então? Sussurrou Mowgly.
- Os irmãos Gris e os outros três uivaram furiosamente: - Enquanto vivermos
ninguém, ninguém ousará...
Se me lembro bem, foi em um sábado, numa tarde de setembro.
Estava com 26 anos quando conheci o Rick. Participava como assistente da
Tropa Escoteira e pouco tinha contato com os lobinhos. Mas Rich me chamou a
atenção pelo seu porte, estilo, maneiras, diferente de todos os meninos que
“zanzavam” na sede em busca de sonhos, da mística, de alegrias e
companheirismo. Rich era negro. Possuía olhos enormes, castanhos, um corpo
desenvolvido para a sua idade e um porte altivo que chamava atenção quando
alguém o conhecia pela primeira vez.
Em pouco tempo, passou a ser admirado e todos se questionavam como ele
seria no Colégio e em casa de seus pais. Vários meses se passaram para que
tomassem conhecimento das varias facetas que era possuído. Seus pais eram
presentes quando convidados para alguma atividade na sede, mas sem
assumirem nenhuma função. Não iam levá-lo e buscá-lo aos sábados nas
reuniões. Ele vinha e ia só para sua casa. Era um jovem autossuficiente e a
família acreditava nele.
Lembro-me bem quando foi admitido. Estava na sala do Diretor
Técnico quando seus pais vieram para fazer a inscrição. Rich era de família
simples, sua mãe mulata, também com um porte altivo e extremamente educada.
Seu pai era Mestre de Obras e trabalhava de sol a sol, muitas vezes aos sábados
e domingos. O convite para a vinda de Rich partiu da Akelá que o conhecia no
Colégio onde ele estudava. Seus pais ficaram em dúvida em matriculá-lo ou não.
A fisionomia de Rich nada dizia. Não dava para saber se estava alegre com o
fato. Nosso Diretor Técnico tinha uma fleuma e uma calma que faziam com que
todos a primeira vista simpatizasse com ele. Os pais de Rich se sentiram bem
ali.
Como acontece em toda Alcatéia, os lobinhos o receberam bem. É
uma idade em que as fantasias e os folguedos superam tudo que nós adultos
não temos e entre eles não a ódio, inveja, rancor, orgulho, vaidade, nada. São
amigos e isto enobrece a casta dos lobos da Alcatéia de Seone. No primeiro dia
Rich conheceu a Gruta da Alcatéia. Disseram que era ali onde morava Mowgly,
ele observou que a entrada era baixa e os chefes tinham que se abaixar para
entrar. Notou também que tinha uma linda decoração, desenhos de animais da
floresta, de Balu, de Bagheera e muitos outros.
Assustou-se com o Bastão Totem, mas lhe explicaram o que
significava. Durante a reunião aprendeu o que era a Roca do Conselho, assistiu
sem participar do Grande Uivo. A Akelá explicou que quando fizesse a promessa
ele teria a honra de se reunir com todos e participar com alegria. Não entendeu
muito. Eram muitas informações para digerir em um só dia e ele não guardava
tudo.
Mas logo se assimilou e em pouco tempo fez a promessa. A princípio
não observaram que ele era calado, taciturno e nada dizia para demonstrar se
estava ou não gostando de seus novos amigos. Participava dos jogos, das
canções das danças (ele achava esquisito) e obedecia como poucos o que o
primo de sua matilha vermelha dizia quando formada.
No primeiro acantonamento da Alcatéia, pela primeira vez ele
esboçou um sorriso, mas logo se fechou de novo dentro do ônibus. Não disse
adeus para seus pais e nem olhou pela janela durante a viagem. À tarde, após o
almoço, alguns lobinhos brincavam em um pequeno gramado e ele se afastou.
Sentou-se embaixo de uma árvore frondosa e ali ficou com os olhos
semicerrados. Um lobinho de sua matilha foi chamá-lo e estranhou o que ele
dizia. Chamou o Balu que junto com a Bagheera viram que ele balançava a
cabeça e dizia como se recitasse trechos do Livro da Jângal –:
- Não me temam, disse Mowgly, eu sou amigo de vocês. Quando
estive com Bagheera na encosta do morro frente à Waingunga, fim de inverno vi
um vale semideserto. Vi um pássaro cantando notas incertas tentando aprender
para quando viesse à primavera. Bagheera lembrou que o tempo das Falas
Novas está próximo e disse que precisava recordar o seu canto e se pôs a
ronronar. Mowgly adorava as mudanças das estações. Ficava triste, porém
porque os outros corriam para longe o deixando sozinho.
- Toda a Alcatéia deixou o que fazia se aproximou de Rich. Sentaram
em volta e se encantaram com sua historia. Ele mexia com a cabeça para frente
e para trás, com os olhos fechados contando de uma maneira tão bondosa tão
simples, que o melhor contador de historia teria ali um professor. Ninguém dizia
uma só palavra. Tentavam ouvir tudo que ele dizia. – Continuou Rick - Senhor da
Jângal, sabe que tenho que viver sozinho – disse Bagheera olhando para
Mowgly. Sabe que é na primavera que vou para todos os lugares, fazer coro com
os outros animais, onde posso correr até o anoitecer e voltar ao amanhecer. –
Sabe que é o tempo das Falas Novas, e eu faço parte de tudo.
- Mowgly sabia que naqueles tempos, via-os rosnando, uivando,
gritando, piando, silvando e eram tão diferentes! Uma sensação de pura
infelicidade o invadiu da cabeça aos pés. Mas se arrependeu. Tratei mal a
Bagheera e aos outros. Esta noite cruzarei as montanhas, e darei também uma
corrida em plena primavera até os pantanais. Todos já haviam partido. Só
Mowgly ficou. Saiu sozinho aborrecido. Correu naquela noite, às vezes gritando,
às vezes cantando. Correu até que o cheiro das flores no pantanal ao longe
chegou a suas narinas. Avistou uma estrela bem baixa e lembrou-se do touro
que lhe deu a Flor Vermelha.
Akelá estava perplexa, todos estavam. Mas continuaram ali,
hipnotizados pelo conto de Rich, feito de maneira tão gentil, intenso e brilhante
que ninguém queria sair. Akelá reviu o programa mentalmente, era hora de um
passeio no bosque, onde contaria também uma historia. Mas não disse nada. Viu
que sua alcatéia estava ali, quieta, ouvindo, sem dar um pio, e deixou que Rich
continuasse. Era um novo item ao programa.
- Rich ainda narrando de maneira harmoniosa como se fosse um
grande contador de historia, continuou – Mowgly lembrava quando se mudou da
Alcatéia de Seone. É hora de parar de correr. Ele viu uma pequena cabana onde
via uma luz. Cães latiram. Ele emitiu um profundo uivo de lobo, que fez os cães
calarem e tremerem. Escondido nos arbustos Mowgly também tremeu. Por outro
motivo. Conhecia aquela voz. Entendeu o que ela dizia. Lembrava bem. Quem
está aí? Quem está aí? Mowgly gritou baixinho: - Messua! Messua! – Quem
chama? Respondeu a mulher com voz trêmula. – Nathoo! Respondeu Mowgly. –
Vem meu filho. Ela se lembrou. O acolheu, deu-lhe de beber e comer. Cansado
Mowgly deitou-se e dormiu sono profundo.
Rich continuava. Todos olhando dentro de seus olhos, prestando
atenção a tudo que dizia – Mowgly acordou e ouviu o irmão Gris chamando-o lá
fora. Messua olhou para ele. Era um Deus da Jângal, reconheceu. Quando o viu
sair abraçou-o. Volte sempre disse. A garganta de Mowgly apertou-se. Disse
quase chorando – Voltarei – sim voltarei. Ele gritou com lobo Gris – porque não
vieste quando o chamei? – Não foi tanto tempo assim, ainda ontem estávamos
junto respondeu. Você sabe, o tempo das Falas Novas chegou não te lembras?
- Irmãozinho, que aconteceu? Porque estás comendo e dormindo na
Alcatéia dos Homens? – Se tivesse vindo quando o chamei isto não teria
acontecido. – disse Mowgly - E agora como será? Perguntou o lobo Gris – Ele ia
responder quando viu uma mocinha trajada de branco em direção a alcatéia dos
homens. Mowgly a seguiu com os olhos até ela ser perder ao longe. E agora?
Perguntou de novo o Lobo Gris. Agora não sei... Respondeu suspirando. Lobo
Gris calou-se. Mowgly também. Quando abriu a boca foi para dizer a si próprio: -
A Pantera Negra falou a verdade. Disse que o homem sempre volta para o
homem.
- Raksha, nossa mãe também disse. E Akelá na noite do ataque dos
Dholes, e também Kaa, a serpente da rocha. - completou Mowgly. E tu irmão
Gris, que disse tu? – Eles te expulsaram uma vez. Disse o Lobo Gris. Eles
queriam te lançar na flor vermelha. Mandaram Buldeu te matar. São maus,
insensatos. Foste admitido na Jângal por causa deles. - Para! Que estás
dizendo? - - Lobo Gris respondeu - Filhote de homem, senhor da Jângal, filho de
Raksha, meu irmão de caverna – O teu caminho é o meu caminho. A tua caça é a
minha caça e tua luta de morte é a minha luta de morte.
Mowgly já tinha resolvido o que fazer. – Vá, disse – Reúne o
Conselho na Aroca, irei dizer a todos o que tenho no meu coração. Em qualquer
outra estação aquela novidade teria reunido na Roca o povo inteiro do Jângal; -
Lobo Gris saiu pelas planícies chamando a todos. O Senhor da Jângal volta para
os homens. Vamos à Roca do Conselho. Todos respondiam – Só no verão,
venha você e ele cantar conosco! – Quando Mowgly chegou a Roca, encontrou
apenas lobos irmãos. Baloo que estava quase cego e a pesada Kaa. – Termina
aqui o teu caminho, homenzinho? Disse Kaa – Grita o teu grito! Somos do
mesmo sangue, eu e tu, homens e serpentes!
Rich parou. Sua cabeça ficou firme. Levantou, olhou para todos e
saiu rumo à sede onde estavam acantonados. Não disse nada. Todos
suspiraram. Esperavam o fim da historia. Era conhecida. A Embriagues da
Primavera sempre era contada por Bagheera. Mas não da maneira que Rich
contava. Foi um acantonamento marcante. Rich não contou mais historias.
Voltou como era e sempre foi. Calado, taciturno.
Um dia, Rich deixou sua matilha e foi sentar no primeiro degrau da
escada que levava a biblioteca. Surpreendentemente começou a cantar musicas
de um vasto repertório de Cantos Gregorianos (canto gregoriano é um gênero
de música vocal monofônica, monódica (só uma melodia), não acompanhada, ou
acompanhada apenas pela repetição da voz principal com o organum, com o
ritmo livre e não medido, utilizada pelo ritual da liturgia católica romana). Todos
pararam. Sua voz retumbava em todo o pátio onde se realizava a reunião.
Começou baixinho interpretando o “Veni Sancte Spiritus”, depois
mais alto o “Lauda, Sion”, continuou com “Ave, Maria... et benedictus” e por fim,
“Alleluia, psallite”. Claro, ninguém conhecia tais cânticos, mas eu, que estava
participando de uma base onde as patrulhas se adestravam em diversas etapas,
fiquei estático com aquele cântico tão bem interpretado por Rich. Conhecia
todos eles. Sua voz, linda, maravilhosa, um verdadeiro Castrato, ou talvez um
soprano, ou um mezo-soprano. Se ele fosse uma lobinha diria que era uma
Contralto.
Todo o Grupo Escoteiro parou suas atividades. Ficaram todos ali,
embasbacados e os que chegavam não acreditavam no que viam ou ouviam.
Rich não precisava de acompanhamento, uma orquestra. Durante mais de uma
hora, Rich cantou maravilhando a todos. Não perguntou se podia, se aquela era
à hora. Decidiu por si só. Sua mente mandou que ele cantasse. Não era para se
exibir para os ouvintes ali sentados no chão. Olhavam maravilhados aquele
lobinho de uniforme azul, com seu Boné azul, seu lenço verde e amarelo,
sorrindo para todos. Era a primeira vez que sorria. Isto foi surpreendente.
Nunca em tempo algum a Alcatéia tinha passado por tal situação.
Todos, da Akelá ao Diretor Técnico estavam fascinados por aquele lobinho.
Foram surpreendidos, pois nunca esperavam que isto pudesse acontecer com
eles. Rich não ligava e não atendia quando o pediam para contar historias ou
cantar. Isto vinha naturalmente. Continuou na Alcatéia por muitos anos, foi
Lobinho Cruzeiro do Sul. Diversas outras vezes Rich contou historias e cantou.
Espontaneamente. Quando isto acontecia, todos acorriam. Dos lobos aos
pioneiros. Ficavam ali, sentados, maravilhados com sua voz, sua maneira calma
de contador de historia ou de grande cantor que era. Soubemos depois que fazia
isto em casa, mas não frequente.
Passou para a tropa de Escoteiros em fins de novembro. Eu estava lá
na sua passagem. Tive a honra de orientá-lo na sua Trilha Escoteira. Rich ficou
por pouco tempo na tropa. Seu pai foi transferido para outro estado pela
empresa que trabalhava e Rich foi junto. Todo o Grupo Escoteiro se reuniu na
partida de Rich. Durante a cerimônia de Bandeira estavam reunidos. Seus pais
foram convidados e estavam lá. Os agradecimentos, os apertos de mão, as
palmas escoteiras, o Bravôô, nada fez com que Rich demonstrasse algum
sentimento de saudades. Não era próprio dele. Estava taciturno, silencioso. O
Diretor Técnico tomou a posição no centro para dar o “debandar”.
Surpresa! De novo para espanto de todos, Rich no local que estava,
com aquela voz maravilhosa, entoou divinamente a Canção da Despedida. Não
houve acompanhamento, todos ficaram em silêncio. Aquele momento era dele.
Só ele sabia a importância daquela canção. Não fizeram a Cadeia da
Fraternidade, as mãos não foram entrelaçadas, mas ali, naquele momento
sublime era como se todos os lobinhos e os escoteiros de todo o mundo,
estivessem junto a Rich, dizendo que não era mais que um até logo. No final
desejamos a ele tudo de bom que o mundo poderia oferecer. Foi um
acontecimento notável e inesquecível.
Por muitos e muitos anos ninguém nunca mais ouviu falar nele. Não
deu notícias. Era próprio dele. Todos que tiveram a honra de conhecê-lo não
reclamavam. Ele marcou no coração dos lobinhos daquela época. Seu nome é
lembrado até hoje na Alcatéia. Seus feitos ali são contados para os noviços e
alguns deles até acrescidos de outras historias que não aconteceram. A Alcatéia
o homenageou colocando sua foto em destaque na Gruta da Alcatéia. Ficou ao
lado de tantos outros famosos como Balu, Bagheera, Kaa...
Pelos motivos que o destino nos reserva a qualquer tempo, ganhei dois
ingressos para assistir a ópera O Elixir do Amor “Una Furtiva Lagrima” no
Teatro Municipal. Fui com minha esposa e ali estava nada mais nada menos que
um grande Tenor famoso e que eu nunca poderia imaginar quem seria. Surpresa.
Rich, agora com o nome de Boono Lastimer, 31 anos. Interpretou com tanto
sentimento que apesar de não conhecer Enrico Caruso, o mais famoso
interprete desta opera, Rich nada ficou a dever, foi aplaudido de pé, por mais de
10 minutos.
Tentei me aproximar de seu camarim. Impossível. Ele não reconheceu
meu nome. Claro, nossa intimidade escoteira foi por pouco tempo. Acompanhei
por muitos anos a carreira de Rich. Foi convidado a cantar no Teatro La Scala de
Milão na Itália e por lá ficou por vários anos. Soube que a sua turnê pela Europa
e América fizeram retumbante sucesso.
Quem diria que aqueles da época puderam ouvir Rich, o grande tenor
que hoje é o orgulho de todos os lobinhos e escoteiros do nosso querido Grupo
Escoteiro. Fatos e acontecimentos são importantes. Eles nos trazem a vida real,
nos marcam e fazem de nós o que somos. De volta ao presente, caminhamos
com o passado pensando no futuro. Nunca me esqueci de Rich. Quando penso
nele me lembro das palavras de Kaa que na sua nobreza de serpente sempre
disse – Somos do mesmo sangue, tu e eu!
E quem quiser que conte outra...
Lembra-te que Bagheera te ama, disse ela por fim, retirando-se num salto. No
sopé da colina entreparou e gritou: Boas caçadas em teu novo caminho, senhor
da Jângal! Lembra-te sempre que Bagheera te ama. Tu a ouviste murmurou
Baloo. Nada mais há a dizer. Vai agora, mas antes vem a mim. Vem a mim, ó
sábia rãzinha!
- É difícil arrancar a pele, murmurou Kaa, enquanto Mowgly rompia em soluços
com a cabeça junto ao coração do urso cego, que tentava lamber-lhe os pés.
- As estrelas desmaiam, concluiu o lobo Gris, de olhos erguidos para o céu.
Onde me aninharei doravante? Por agora os caminhos são novos...
A mais linda canção de todos os tempos!
Não é mais que um até logo, não é mais que um breve adeus...
Pessoas especiais deixam mais que saudades e lembranças, pois elas levam
mais do que nosso pensamento... Levam uma parte de nosso coração!
Aline de Campos Canto
Lembranças! Saudosas lembranças. Cicatrizes gostosas que
ficaram marcadas para sempre. Estou aqui só, olhando o céu, sem nuvens,
cinzento e minha mente volta no tempo, lembrando tudo que tive e vivi no
Movimento Escoteiro. Fui abençoado por Deus, ele me proporcionou tudo isto,
amigos maravilhosos, jovens esplêndidos, grandes amizades e uma fraternidade
sem par. Conheci na pele tudo aquilo de maravilhoso que o escotismo me
ofereceu. São situações típicas, horas de deleite, de meditação, de sorrisos,
alegrias, felicidade e agora como nós, de lembranças, de tempos que se foram.
Tudo isto me vem à mente, quando coloco na minha vitrola antiga,
um LP de Guy Lombardo, e fico a ouvir a suave melodia, a musica que toca em
todos os corações escoteiros. Auld Lang Syne. Nada mais nada menos que a
Canção da Despedida. Dizem que significa “velho longo, uma vez que” ou
“muito tempo atrás”, ou então “como nos velhos tempos”. É um poema
escocês, escrito por Robert Burns em 1788 e ajustada para uma tradicional
melodia popular, bem conhecida no velho mundo.
Francamente não sei quem nos trouxe e quem adaptou tão
maravilhosa letra para nós escoteiros. Claro, estava ouvindo em inglês, mas
quantas saudades, quantas recordações. Ela toca profundamente. Bate fundo no
peito. De vez em quando doem outras vezes nos trás a certeza que vamos nos
reunir outra vez, ali naquele fogo, crepitante, com o coração firme, ardente
esperando que vai ter bis, vai repetir e vamos juntos, dizer: - Não é mais que um
até logo, não é mais que um breve adeus... Bem cedo, junto ao fogo, tornaremos
a nos ver... Belo! Simplesmente belo. Não há como dizer outra coisa.
Meu nome? Chefe Joel Mistran Moraes, ex-chefe. Oitenta anos.
Você não me conhece. Sou um antigo escoteiro. Hoje só vivo de lembranças. Um
dos meus passatempos favoritos. Agora só vivo de recordações. Elas ainda me
ajudam a viver. Foi um passado brilhante, saudoso, gostoso, O que mais este
"Velho" tem? Tenho filhos, netos, e apesar das dificuldades do meu corpo não
me obedecer mais, fico aqui imaginando e agradecendo a Deus por ter me dado
tantas alegrias e poucos como eu podem lembrar-se de tantas e tantas
passagens, de um tempo maravilhoso que já se foi.
Meu primeiro acampamento, quanto tempo, final da década de
quarenta, Novo na patrulha, onze anos, lobinho de coração. Estranho no ninho.
Medo, receio. Uma nova etapa. Sem minha Akelá e o Balu para me proteger.
Lagrimas brotaram quando fiz a passagem. Aos poucos fui acostumando.
Ângelo o Monitor, grande companheiro. Até quando casei lá estava ele ao meu
lado como meu padrinho. Algumas excursões, mas nada como este
acampamento. Seis dias. Mata fechada. Selva para mim inóspita, Pânico no
primeiro dia. Depois, barracas montadas, cozinha coberta, fogão suspenso, sala
de refeições, fossas, Até WC fizemos!
Quando a noite chegava, estava em pandarecos. Mas orgulhoso.
Era mais um deles. Ajudei, colaborei. Dormia o sono dos justos. Só acordava
com alguém me chamando ou puxando meu pé. E de novo, vivendo com meus
amigos, fazendo, construindo, aprendendo, brincando, aventuras maravilhosas.
Escaladas (tremia) balsas, pistas de animais, mosquitos, predadores,
escorpiões, cobras (que medo!), colher goiabas, mangas, abacate, nas mais
altas árvores.
Quinto dia. Orgulho daquela patrulha, irmão das demais.
Amigos, fraternos, uma chefia maravilhosa. Então a surpresa. Um Fogo de
Conselho só da tropa. Senhor! Olhe, ficou marcado para sempre. Ria, cantava,
batias palmas, pulava, corria, e então... E então... Todos deram as mãos em volta
do fogo e começaram a cantar. A principio não conhecia a letra, aos poucos fui
entendo. Meu Deus! Que musica maravilhosa! Tocou-me fundo no coração.
Impossível aguentar a emoção. A primeira emoção. Onze anos e chorando.
Lágrimas descendo no meu rosto. Mãos entrelaçadas, apertando uma as outras.
Parou a canção. Final, fogueira crepitando, estrelas no céu.
Vento frio, brisa no rosto, cheiro da terra, do capim meloso, grilo saltitando,
vagalumes aqui e ali querendo mostrar seu brilho. Silencio. Lagrimas caindo,
uns olhando para os outros, tentando disfarçar. Trombeta tocando. Reunir! Boa
noite, Corte de Honra, oração. Fui para a barraca com um sorriso enorme! Deitei,
coloquei as mãos debaixo da cabeça, olhava para o teto da barraca, ele
desaparecia. Agora via estrelas piscando no céu. Chorei. De alegria, de saber
que tinha encontrado amigos, irmãos e que agora pertencia a uma grande
Fraternidade Escoteira. Agora eu era um deles, um escoteiro, um privilégio de
poucos!
Foi a primeira grande emoção. A Canção da despedida marca.
Vocês que me leem sabem disto. Chorei depois muitas vezes. Era marcante. Não
dava para esconder, que já participou sabe o que estou dizendo. Não sei
explicar. Se dói se machuca se uma saudade gritante fala para nós, não perder
as esperanças de que um dia voltaremos a nos ver. É uma situação inusitada. Se
conta para um amigo ou amiga, eles riem. Acha que somos bobos, tolos. Não
compreendem. Não entendem. Não sabem o que é isto. Nunca vão saber... Só
nós, os privilegiados.
Centenas, talvez milhares de vezes participei com orgulho.
Dizia a mim mesmo que não mais iria chorar. Engano. Bebê chorão! Sempre ali,
lagrimas e lágrimas escorrendo no rosto, caindo e molhando o chão abençoado.
É, escotismo, você marca. Como você não existe outro. Por isto te amo, te
adoro, vivo para ajudar a todos, mas que orgulho em ser escoteiro. Aprendi ali,
vivendo intensamente tudo aquilo que você tem. Sorrindo, cantando, Chorando!
Sim mas sem nunca se esquecer das horas e horas maravilhosas que contigo
passei.
Cresci. Tornei-me adulto. Agora era chefe, Cursos,
Acampamentos Nacionais, regionais, internacionais viagens, indabas, fóruns,
congressos nacionais e internacionais. Conhecendo centenas e milhares de
irmãos escoteiros. E em todos eles lá estavam os chorões. Choravam quando se
despediam alguns querendo ser durões, mas sempre uma pequena lágrima
caindo, descendo devagar pelo rosto... Sempre cantando que não iriam perder a
esperança, porque não era mais que um breve adeus...
A primeira vez, que chorei quando cantava, quando despertei
para o escotismo, nunca esqueci e jamais, jamais mesmo esquecerei. Dizem que
a primeira vez sempre marca e a gente nunca esquece. Mas teve outro marcante.
No México, 1966. Convite para participar de uma festividade de grupo, feito pelo
grande amigo, Escotista de coração enorme, amizade de encontros
internacionais, Jamborees. Uma amizade sólida. Feita por quem pertence à
fraternidade mundial. Juarez Benito Santos. Da cidade de Hermosillo, capital do
estado de Sonora. 50 anos de fundação do Grupo Escoteiro. Vários outros
grupos irmãos. Achei que dava para enrolar no idioma. Nada. Um paspalho era
eu para entender o que diziam. Mas que disse que em acampamentos escoteiros
precisamos disto? Parece que falamos um só idioma. Claro, somos iguais em
todas as nações.
Nossa! Marcou mesmo. Incrível a amizade dos escoteiros
mexicanos. Simples, leal, honesta, sem altivez, soberba. Que amigos! Tocaram
meu coração. Mas quando chegou à hora da despedida! Ah! Não, não queria sair
dali. Chorei copiosamente. Um marmanjo. Vinte e seis anos! Abrindo a boca,
lagrimas e lagrimas descendo pelo rosto. E o pior, quando terminou a Canção da
Despedida, vieram todos me abraçar, chorando também, dizendo, - No te vayas,
te queremos, quédade nosotros... Quem agüenta? Me diga quem?
E o pior, no dia seguinte, a tomar o trem para a cidade do
México, lá estavam eles na estação, barulhentos, amigos, abraçando, cantando
canções típicas, e quando o trem foi se afastando, cantaram de novo a Canção
da Despedida. Rapaz! Incrível suportar! Impossível! E repetiam, repetiam – No te
vayas, te queremos, quédade nosotros! Marcou meu amigo. Marcou.
Passageiros ao meu lado não entendiam. Um deles se aproximou. Be Prepared!
Americano, boy Scouts. Incrível! Que movimento meu Deus!
O tempo passa. Tudo passa, só não passam as lembranças.
Dizem que quem não as tem não viveu. A lembranças de tudo, do passado, de
um grande amor, da perda de um amigo, de pais, irmãos, lembranças,
lembranças... E claro, dos meus velhos tempos de escoteiro, bandeiras ao vento,
para o acampamento de todo Brasil! Tempos que não voltam. Sorrisos, quando
lembro não quero que a tristeza que me invade a alma volte. São lembranças
lindas, maravilhosas de um tempo que já se foi...
Hoje, como sempre acontece às tardes, estou aqui sentado
nesta cadeira de balanço, na varanda da minha casa, vendo edifícios de pedra,
uma garoa, chuva miúda, caindo, molhando o asfalto, um transeunte ali
correndo outro ali se escondendo para não molhar. Um pequeno cobertor nas
minhas pernas, que tanto me ajudou, me levou a lugares nunca antes imaginado
e hoje resolveram se aposentar. Minha respiração ofegante, o ar faltando, corpo
sem graça, relutante, mas a mente! Ah a minha mente! Busca incessante!
Errante! De tudo aquilo que já vivi.
Desculpem-me os leitores, mas estou ouvindo Auld Lang Syne
(A Canção da Despedida) e chorando. Minhas lágrimas não molham a terra, não
há mais florestas onde posso ir cantar viver. Mas olhem, sinto um enorme
orgulho, fui Escoteiro! E serei escoteiro até morrer. Uma vez Escoteiro sempre
Escoteiro! Felicidade de poucos e eu sou um abençoado por Deus! Deu-me mais
do que merecia! Sinto que meu corpo não obedece. Minha mente vai apagando.
Meus olhos piscam querendo fechar. Uma dor aguda no coração. Não sei se e de
saudades ou...
Se você leitor ou leitora pudesse materializar-se na frente dele,
veria a alegria estampada no rosto daquele "Velho", vestido com sua camisa
caqui, seu lenço de Gilwell, preso pelo anel trançado, o chapéu de três bicos no
seu colo, suas barbas brancas, cabelos brancos soltos na testa, olhos
semicerrados, um sorriso nos lábios, o pulsar do seu coração parando, uma
pequena lágrima que tentava correr pelo seu rosto, uma luz faiscante, brilhante
saindo de dentro dele, dois lindos anjos ao seu lado, levando-o para grandes
nuvens brancas no céu, e meu Deus! Uma grande Orquestra Sinfônica, regida
pelo Santo Gabriel, tocando maravilhosamente “Auld Lang Syne”, e
acompanhada pelo maravilhoso coro dos querubins, uniformizados, todos os
uniformes de todas as nações, mãos entrelaçadas, num grande círculo de amor,
vozes maravilhosas entoando em uníssemos...
Porque perder a esperança, de nos tornar a ver...
Porque perder a esperança, se há tanto querer.
Não é mais que um até logo,
Não é mais que um breve adeus,
Bem cedo, junto ao fogo,
Tornaremos a nos ver
Vamos passando, passando, pois tudo passa / Muitas vezes me voltarei / As
lembranças são trombetas de caça / Cujo som morre no vento.
Guillaume Apollinaire
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
(Quinzenalmente ou mensalmente, iremos publicar contos na linha do
imaginário. o titulo acima servirá para mostrar que o acontecimento é
obra de ficção, mas não avalizo que possa ter alguma veracidade.
Você decide).
As aparições do Chefe Trovão – CONTO II
Um admirável curso da Insígnia da Madeira
Se você achar que eu To derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados...
Porque o tempo, o tempo não para!
Cazuza
Prólogo
- “O chefe Trovão apareceu em um conto fantástico, aqui narrado neste blog.
Sugerimos que leiam primeiro para embarcar nesta continuação, onde poderão
conhecer melhor este misterioso e enigmático Escotista”.
- “As denominações técnicas escoteiras aqui descritas eram conhecidas em
1958, quando se passa boa parte desta historia. Portanto, nada se compara com
o que hoje é aplicado”.
O tempo não para. Assim diz a maravilhosa musica de Cazuza, que
sempre nos trará belas recordações. Nossa existência faz parte do nosso
crescimento interior, e a cada dia vamos aprendendo cada vez mais a viver a
enfrentar a realidade, a reconhecer o certo e o errado e ver mesmo com
dificuldade o melhor caminho a seguir tendo nosso livre arbítrio para decidir ou
interpor. Nunca desisti dos meus sonhos, do que acredito ser o meu caminho.
Acho que encontrei a porta da felicidade e nela me adentro com orgulho em
saber que ajudei a melhorar um pouquinho o nosso mundo.
Tenho 32 anos. Casado, um filho. Sou um Chefe Escoteiro. Acredito
no Movimento Escoteiro. Ele já faz parte de mim. Faz oitos anos. Um bom
tempo. Neste período aprendi muito. Principalmente com um chefe que me
convidou e me incentivou e sem sombra de duvidas, extraordinariamente me
assustou. A figura do chefe Trovão era surpreendente. Possuía um
conhecimento profundo do Movimento Escoteiro. Sabia como ninguém
arregimentar adultos e mantê-los na ativa por muitos e muitos anos. Sem
arrogância e vaidade deu a todos nós que começamos com ele, o caminho, a
certeza aonde ir, sem erro, sem deslize no caminho certo do sucesso como diz
nosso fundador.
O chefe Trovão era uma figura imponente. Não tão alto, mas sua
silhueta era soberba. Cabelos brancos, meios crespos, um bigode cheio, rosto
redondo, olhos profundos, como a querer entrar no nosso pensamento. Palavras
suaves, firmes, não titubeavam quando dizia alguma coisa. Seus olhos pareciam
captar cada movimento que fazíamos quando estávamos a conversar. Quando
me convenceu a participar, não fez um pedido. Seu argumento era simples e
direto. Quando me dei conta, lá estava eu, de calças curtas, junto ao cerimonial
de bandeira, a dizer a promessa e receber meu distintivo e o lenço do grupo.
Naquele acampamento onde nem sei se foi marcante, ou se foi um
épico ou mesmo uma lembrança extraordinária, agora sei que tudo ficou para
trás. Naquela madrugada fria, quando vimos o chefe Trovão, no seu banho das
três e meia da manhã, com o seu sabonete mágico como ele dizia, com as mãos
levantadas debaixo da cachoeira, a pairar no ar, com fagulhas vermelhas e
brilhantes, e sombras fantasmagóricas em sua volta! Bem, é melhor esquecer.
Assim como eu todos que viram o ocorrido, preferiram silenciar. Como apareceu
no Grupo Escoteiro, ele se foi. Não ouvimos falar mais dele por um bom tempo.
Eu era metódico e organizado. Fiz meu programa de adestramento
escoteiro, e sabia sem sombra de duvida iria alcançar minha Insígnia da
Madeira. O próprio Chefe Trovão dizia que se nós quiséssemos ser bons
escotistas, além dos cursos, teríamos que ter uma boa biblioteca escoteira em
casa. Quem assim o faz é digno de ser chamado chefe. Não basta vestir um
uniforme, fazer a promessa e saber com maestria sinais para formaturas dos
jovens.·.
No meu cronograma, estava marcado conforme o programa regional
meu curso da Insígnia da Madeira parte II. Penúltima etapa para atingir meu
objetivo. Eram oito dias acampados, sem intervalos no campo escola da região.
Sabia que teríamos um frio glacial na época. Julho sempre foi assim. Ao fazer a
inscrição não vi o nome do Diretor do Curso. Isto era sempre colocado, pois
muitos preferiam um ou outro. Um direito de cada um de nós. Já havia
programado férias de dez dias na empresa que trabalhava.
Em uma segunda pela manhã, nos reunimos no salão do campo escola,
conversando, cantando, lembrando de outros cursos, pois muito de nós éramos
velhos amigos de cursos passados. Ouvimos uma “trombeta” com o toque de
reunir, e saímos prontamente para a arena da bandeira. Um assistente de curso
já conhecido formou a tropa. Éramos 34, dois a mais que o permitido. Soube
depois que havia 85 interessados. A ordem de inscrição prevaleceu. O motivo de
tantos? O diretor do Curso, nada mais nada menos que o meu amigo e “tinhoso”
Chefe Trovão!
Fiquei alegre com isto, nada temeroso. Sabia de sua capacidade, seu
autodomínio e sua grande competência em temas escoteiros. A fama do Chefe
Trovão era reconhecida em quase todos os estados brasileiros. Fomos
formados em quatro patrulhas duas com nove adultos. Cada uma recebeu seu
material de campo, composto de duas barracas de duas lonas, uma intendência
onde se via o material de sapa, vasilhames e alguns apetrechos para limpeza
que poderíamos usar logo na montagem do campo. Uma pequena bandeirola
onde deveríamos desenhar o totem, com o animal já designado. Eu estava na
Lobo. Todos portavam bastão escoteiros.
Tivemos duas horas para montar as barracas (quatro escotistas em cada
uma), a cozinha, á área de refeições e reuniões de patrulha, além das
necessidades básicas do campo tais como, fogão suspenso, fossas de líquido e
detritos entre outros. Separamo-nos em dupla e em pouco tempo montamos o
necessário. Os banheiros e latrinas já estavam prontos, num ponto extremo
onde estávamos. Nada melhor do que vivenciar o Sistema de Patrulhas, agindo
na prática e não na teoria.
Era uma técnica que deduzi ser excelente para desenvolver o sistema de
patrulhas. Ninguém se conhecia e no inicio mantínhamos aquela aceitação
escoteira, cada um querendo ajudar o outro, todos demonstrando que o quarto
artigo ali tinha seu lugar especial. No entanto, com o passar dos dias, as
mudanças, os estilos, a aceitação de liderança vieram à tona. Como era a
verdadeira faceta de cada um. Isto foi bom. Tivemos desavenças, desacordos,
algumas cizânias que pareciam insolúveis. Isto ate o quarto dia, a partir do sexto
dia, quando todos já se conheciam, houve uma grande mudança de rumo. Agora
éramos mais unidos, mais irmãos e então chegamos à conclusão que assim
deve ser dado a oportunidade aos jovens de se conhecerem.
Foi um curso cansativo, extenuante, mas extremamente proveitoso.
Levantávamos sempre às 06 da manhã, limpeza do campo para inspeção, café, e
as oito e trinta, a patrulha estava formada para receber a chefia. As nove,
cerimonial de bandeira, avisos, um jogo quebra gelo e sessões intermináveis de
técnicas escoteiras, explanações teóricas de sistemas aplicados na Tropa
Escoteira, entremeadas aqui e ali por um jogo ou outro passatempo. As doze e
trinta, mais duas horas para fazermos o almoço, limpeza, arrumação, inspeção e
as catorze e trinta já estávamos de “volta às aulas”. O jantar, preparados por nós
era de duas horas a partir das dezoito e trinta. Depois, novas sessões de
adestramento técnico e teórico até as vinte e três horas. Só neste horário,
tínhamos um pequeno café com alguns biscoitos ou Paes feito pela Patrulha de
Serviço. Jovens convidados a colaborar no curso.
As sessões do Chefe Trovão eram admiráveis. Ele sempre tinha algum
escondido na manga. Uma delas, sobre Projetos de Pioneiras foi marcante.
Tocou a sua trombeta e lá fomos nós correndo em busca do ponto de reunião.
Perdemos mais de cinco minutos para encontrá-lo. Estava em cima de uma
árvore, a mais de 10 metros de altura. Mandou que nos reuníssemos a ele e não
poderíamos usar a árvore em que estava e sim uma próxima distante a
aproximadamente 12 metros. Ora, éramos trinta e dois adultos. Impossível, se
conseguíssemos alçar uns quatro seria o muito. Deu-nos três horas e meia para
resolver o problema. Neste ínterim um assistente nos deu alguns esboços, não
tão bem feitos e nos mostrou uma pilha de material próximo aos chuveiros.
Ele impassível, lá ficou a fumar seu intragável cachimbo, e parecendo
estar na sua poltrona de vime, na sala grande de sua casa, nem pestanejou
durante as mais de três horas e meia que lá permaneceu. Cada patrulha ficou
encarregada de uma tarefa. A nossa seria um elevador, outra faria o ninho de
águia, outra a ponte de interseção ou ponte pênsil e a última um estrado para 30
pessoas. Três horas e meia não deu. Ele impassível nos deu mais meia hora.
Fizemos o possível e aos trancos e barrancos, conseguimos colocar 25 de nós
lá, o restante ficou abaixo do ponto de reunião naquela árvore.
Foi um adestramento e tanto. Divertido, nos tirou da sala, do cochilo. A
noite outra chamada dele, na pequena mata em volta do Campo Escola. Quando
tentávamos nos aproximar, ele desaparecia. Ficamos assim aturdidos, sem
saber onde ele estava e logo seu berrante nos chamava novamente. Meia hora
depois o encontramos, sentado em uma pequena tora de madeira, a tomar um
café quente e fumegante. (onde tinha feito não sei). Convidou-nos para ascender
um fogo, que logo crepitou iluminando a área. Estávamos dentro da floresta. O
amarelo da chamas dava um aspecto magnífico à pequena clareira.
Cantou conosco lindas canções, improvisou danças escocesas (difíceis)
canadenses, nos mostrou como os Índios Guaranis dançavam quando do
descobrimento do Brasil, e mostrou como era fácil, pular a fogueira de olhos
vendados por três vezes, e receber um nome de guerra indígena, escolhido
individualmente por cada um. Uma tradição que deve existir em todas as tropas.
Todos foram batizados. Eu recebi o nome de Araquém: que em tupi significa o
Pássaro que dorme. Ele não disse, mas achamos que no seu batismo foi
chamado de Tupã, o trovão da chuva. Porque não sei. Explicou-nos que o jovem
ao receber a segunda classe, ao acender sua fogueira somente com um palito,
recebe ali seu distintivo de Segunda Classe e o nome de guerra acompanhado
do seu padrinho, escolhido na patrulha, após saltar por três vezes a fogueira de
olhos vendados.
O curso foi se desenvolvendo de maneira extraordinária. Olhe meus
amigos, tinha feito muitos outros cursos, mas aquele estava me surpreendendo.
Uma noite, às três da manhã, o berrante do chefe Trovão se fez ouvir novamente.
O ponto de reunião era próximo da lagoa. Ali refletido nas águas calmas vimos
um grande e belo espetáculo. Como se fosse um espelho, as estrelas davam um
belo visual se refletindo no lago. Inimaginável! Foi a primeira vez que vi aquilo.
Foi fácil identificar as Três Marias, o Escorpião, o Cruzeiro do Sul e tantas
constelações que nos dão a posição exata onde estamos e onde podemos ir. Foi
um verdadeiro adestramento técnico de orientação noturna.
No sexto dia, estávamos esgotados. As patrulhas tentavam acompanhar,
mas as pernas não ajudavam. Ouvimos de novo a trombeta do Chefe Trovão.
Eram duas e meia da tarde. Com dificuldade conseguimos chegar até ele, na
encosta do sopé da montanha, a trezentos metros do acampamento. Lá estava
ele, deitado em uma esplêndida grama verdinha, e nos convidou para uma
soneca. Incrível! Sem pestanejar ali deitamos e dormimos. Sonhamos sonhos
lindos, pois soube que não houvera roncos e nem reclamações. Acordamos lá
pelas tantas da noite. E o Chefe Trovão? Sumiu. Vimos que era mais de duas da
manhã. Estávamos sem café e sem jantar.
De novo o berrante do Chefe Trovão. Agora mais revigorados corremos e
chegamos onde estava. No salão do Campo Escola, onde na mesa uma
suculenta sopa de macarrão, com batatas, ovos, linguiças, e pães fresquinhos
nos esperavam. Um jantar fraternal às duas da manhã, 32 adultos, de calças
curtas e chapelão de três bicos, a cantar, sorrir como meninos traquinas. Quem
por ali passasse acharíamos que éramos um bando de malucos, excêntricos ou
lunáticos. Quem sabe éramos mesmos? Tinha esquecido completamente da
parte do “coisa-ruim” do o Chefe Trovão. Agora era um novo Escotista. Um novo
chefe. Diferente daquele que conheci no passado. Seus conhecimentos nos
atingia dentro na nossa mente, seus ensinamentos eram impecáveis e sua
maneira de mostrar como o escotismo deve ser era soberba.
Segunda, sete dias depois, penúltimo dia. À tarde o jantar de
confraternização. Cada patrulha escolheu seu cardápio e convidou dois de
outras patrulhas. À noite o Fogo de Conselho. O Chefe Trovão orientou os
Touros (ele dizia que o chefe nunca faz, só orienta) montaram um fogo diferente.
Fez um estrado de um metro de altura, em cima montou um fogo Estrela e
embaixo do estrado um fogo acolhedor (tipo quadrilha). Disse que assim não
precisaríamos alimentá-lo durante o tempo que ali ficaríamos, ou seja, uma hora
e meia. Foi lindo. Queimando suavemente em cima, e após algum tempo, o
estrado deixava cair brasas e o fogo acolhedor acendeu com suntuosidade.
O clarão amarelo do fogo na mata, as fagulhas, nos mostrava que não
havia perigo de incêndio na floresta. O final foi uma apoteose. Quando
cantávamos a Canção da Despedida, no meio da cadeia da fraternidade,
desceram milhares de pequenas estrelas brilhantes, faiscantes, iluminando toda
a clareira. E quando terminou a canção, com lagrimas descendo em todos os
rostos ali presentes, uma coruja enorme, pousou no ombro do Chefe Trovão e
piou seu uivo já conhecido, de uma maneira harmoniosa. Em seguida levantou
voo e foi pairar sobre as cabeças de todos os cursantes. Incrível!
Era um espetáculo. Impossível não se comover. Impossível pensar algum
ou mesmo como o Chefe Trovão estava fazendo tudo aquilo. Acho que só eu
sabia e só eu o via agora, no meio do circulo dos chefes, a levitar acima do chão,
com seus cabelos brancos soltos ao vento, braços estendidos, sorrindo, em sua
volta aparições sem rosto, vestidos de branco e azul. Ficaram em volta de todos
nós, jogando pétalas de rosas brancas como se fossem chuviscos ao
amanhecer, cujo perfume era inigualável. Junto ao orvalho que começa a cair
naquela clareira linda, todos, sem exceção estavam maravilhados, pois jamais
tinham visto nada igual. Era Impossível descrever a beleza, a poesia do
momento. Foi um fato que marcou em mim e creio em todos. Uma recordação
tão fecunda que ficou gravado para sempre em minha memória.
Na terça, pela manhã, final de curso, despedidas, abraços, lagrimas aqui e
ali, alegria e a certeza de que foi um belo curso da Insígnia da Madeira. Histórico,
sem precedentes e acredito que nunca mais haverá outro igual. Após a
cerimônia de encerramento o Chefe Trovão desapareceu. Por muitos anos nunca
mais ouvi falar nele. Até hoje tenho saudades de sua trombeta de suas
aparições, de seus ideais, de seu conhecimento e de sua maneira grandiosa de
dar a todos o conhecimento escoteiro que precisavam na labuta do seu dia a dia
com a tropa.
Cinco meses depois, absorto em uma reunião de tropa, eis que apareceu
o Comissário Regional, pedindo se possível uma formatura de todos, pois ele
tinha algum a comunicar. Ali, em ferradura ele me chamou e orgulhosamente me
entregou o certificado da Insígnia da Madeira e pediu ao Chefe do Grupo que me
colocasse o lenço e o colar. Não sabia o que pensar. Estava esperando pelo meu
observador da parte III e soube então que o Chefe Trovão tinha avalizado esta
parte e me mandou um pequeno bilhete, dizia – A um Chefe Escoteiro que por
tudo que fez e faz, merece ser um membro da Equipe de Gilwell. Volta a Gilwell,
terra boa, dizia. Um curso assim que eu possa vou tomar com você!
Dez anos depois, muito tempo passado, estava eu absorto em um
Acampamento Internacional de Patrulhas no Peru, conversando com alguns
escoteiros da tropa, ouvi uma trombeta soando e aquele som não me era
desconhecido. Tinha quer ser ele. Corri até lá e vi... Fica para uma próxima.
Ninguém esquece assim o Chefe Trovão. Ele é imprevisível. Que saudades do
banho das três e meia da manhã, do sabonete mágico, do curso da Insígnia da
Madeira. Que saudades, tempos que já se foram e não voltam mais. Esteja você
meu amigo Chefe Trovão onde estiver, lembre-se, sou e serei sempre seu
admirador. Nunca vou esquecê-lo. Você entrou no meu coração e lá ficará para
sempre.
E quem quiser que conte outra...
"Olhe o mundo com a coragem do cego, entenda as palavras com a atenção do
surdo, fale com a mão e com os olhos, como fazem os mudos!"
Cazuza
De quando em quando, destaquemos uma faixa de tempo para considerar
quantas afeições e oportunidades preciosas temos perdido, unicamente por
desatenção pequenina ou pela impaciência de um simples gesto.
Emmanuel
LIRIO DO CAMPO – A MENINA QUE SONHAVA SER ESCOTEIRA
Já faz tempo. E quanto tempo! Participava como chefe de um Grupo Escoteiro
onde permaneci por mais de 10 anos. Era um bairro simples, de classe media e
muitas favelas já urbanizadas próximas. Habitava este mundo escoteiro vivendo
cada dia, cada hora, cada minuto da jornada sem contagem regressiva.
Sabia de cor o nome de todos escotistas, pioneiros, guias e seniores, escoteiros
e escoteiras, lobinhos e lobinhas. Sem contar muitos pais que foram e são até
hoje meus amigos.
Era uma rotina de sábados, praticamente toda a tarde isto quando a noite era
concatenada, e só chegava a minha casa após 22 ou 23 horas. Não havia
desânimos. Fazia aquilo com prazer e regozijo. Ajudava o desenvolvimento das
reuniões sem dar “pitaco”, não influenciando as chefias, mas mantendo após as
reuniões a posição de aconselhador e tutor, isto para melhor desenvolvimento
de todo efetivo em nosso Grupo Escoteiro.
Eu ainda não tinha notado a sua presença. Só aconteceu alguns sábados
depois. E olhe que eu sempre fui bom observador. Ela não tinha mais que dez ou
onze anos. Magrinha, vestida com simplicidade, sempre com a mesma roupa,
um sorriso ingênuo e cativante, mostrava ser uma jovem que prezava sua
apresentação pessoal.
Cabelos castanhos compridos, com uma pequena trança pendendo para frente,
escondendo um pouco de si própria. Seu semblante era de uma atenção
cautelosa, a me olhar de soslaio. Vi que não tirava os olhos da tropa das
escoteiras.
Seus sentidos eram os mesmos das meninas que ali brincavam. Riam, cantavam
e ela de longe sonhava em ser uma delas como estar em uma patrulha
participando. Não houve interferência de minha parte. Ela permanecia durante
todo o tempo da duração da atividade das escoteiras, confinada em um canto do
pátio e nunca se aproximava.
Um dia, durante a promessa de uma das jovens, ela chegou mais perto, e vi seus
olhos brilharem quando a promessa foi dita de viva voz pela noviça. Quando foi
entregue o lenço e distintivo de promessa, seus olhos encheram-se de lágrimas.
Notei que ela sonhava em ser uma delas e aquele momento prodigioso
transpunha no seu imaginário, forçando entre o sonho e a realidade uma
transferência física, como a estar ali com a mão direita em saudação, falando
aquelas magníficas palavras que já sabia de cor.
Mesmo assim não me aproximei. Sua expressão foi totalmente alterada quando a
chefe perguntou se ela poderia participar de um jogo. Das três patrulhas duas
estavam com sete e uma com seis. Completar seria mais lógico para haver
igualdade de competição.
Não há palavras para descrever sua alegria. Incrível! Nunca vi ninguém
participar de um simples jogo com tanta energia e vibração, de algum que se
não foi ficaria agora marcado para o resto da vida. As outras escoteiras não
observaram nada. Nem a chefe. Ao final do jogo um agradecimento e ela
conseguiu pelo menos ficar mais próxima, ouvindo, tentando entender o que as
patrulhas faziam com cabos pequenos, bandeirolas, e uma parafernália de
papeis e desenhos misteriosos.
A reunião terminou e ela não estava mais lá. Fora como chegara. No sábado
seguinte não apareceu. Esqueci completamente dela. Mas lá estava no outro
sábado. Agora procurava ficar mais perto. Fez amizade com uma das meninas e
de soslaio compartilhava de uma ou outra patrulha, isto quando a chefe ou a
assistente não estavam presentes.
Achei que estava na hora de intervir. Interpelei-a polidamente perguntando se
pretendia ser mais uma delas. Ou seja, participar como escoteira. Ela não me
respondeu. Seus olhos de novo encheram-se de lágrimas e saiu correndo. Não
entendi. Achei que devia tomar uma atitude. E tomei.
No sábado seguinte a chamei até o escritório da nossa sede. Conversei com ela,
mas sempre respondia em monossílabos. Tentei ser amigo, saber de seus pais e
quando falava neles ela se apavorava. Falei com a chefe sobre o assunto e
pensei que ela teria uma melhor abertura com a menina.
Contou que sua mãe trabalhava fora, inclusive aos sábados. Seu padrasto nada
fazia e não admitia ela participar. Quando insistiu levou uma sova. Ela explicou
que não chorava, nunca. Era ponto de honra para ela. Não fora a primeira vez e
nem seria a última.
Sua mãe sabia, mas nada fazia a respeito. Já era do seu conhecimento há
tempos que ela apanhava do padrasto. Ele costumava ficar fora por meses.
Durante estes períodos achavam que o paraíso agora era real, mas durava
pouco. Ele voltava mais perverso que antes. Sua mãe tentou várias vezes voltar
a sua terra no norte do país, mas ele sempre violento e bestial sempre a fazia
desistir.
Parece historia da Cinderela sem sapatinhos de cristal e com um final sem o
príncipe encantado, mas não. Esta é real. Aconteceu. Nada podíamos fazer. É
impossível o escotismo ajudar neste processo, pois ele depende e muito dos
pais. Ela continuou a vir e assistir as reuniões. Orientei a chefe para não abrir
muito sua participação. Era uma situação cruel e talvez patética, no entanto
podia evitar situações imprevisíveis no futuro.
Não sabíamos com quem estávamos lidando. Podíamos ter problemas com os
pais não só dela como os demais. Todo cuidado deveria ser tomado. Num
sábado com uma garoa forte, a reunião das sessões estavam sendo realizadas
dentro do salão de festas e na área coberta, pequenas por sinal para alocar a
todos, mas com jeitinho sempre conseguíamos.
Nestes dias chuvosos, após algumas atividades de praxe, sempre fazíamos uma
Conversa ao pé do fogo, onde desenvolvíamos programa similar ao
“famigerado” Lampião do Conselho. Não fiquei durante o desenrolar da
atividade. Fui até o escritório, pois estavam lá dois diretores e alguns pais que
queriam fazer a inscrição dos seus filhos. Apesar dos dirigentes saberem como
agir, sempre ficava junto para alguns senões.
Observei a porta um homem dos seus 50 anos, meio grisalho, estatura mediana
e cá prá nos, semblante arrepiante e com uma cicatriz no queixo, vestido de
maneira desleixada com um olhar nem tanto amistoso. Dirigiu-se ao meu
encontro e levantou levemente sua blusa mostrando estar armado. O
nervosismo apareceu e mesmo tendo alguma experiência no assunto, não gostei
da maneira com que ele se apresentava.
Foi logo dizendo que era o pai da “Lírio do campo” (nome fictício, para preservar
a jovem que hoje pode estar lendo esta sua história). Perguntou quem autorizou
sua participação no grupo, o que pretendíamos, pois ele não tinha permitido e
agora o pior tinha ocorrido. “Lírio do campo” tinha desaparecido.
Após ter insistido em participar e não sabendo qual era a intenção de vocês,
vetei e a proibi de sair aos sábados. Esclareci que este movimento não era para
ela, pois se tratava de pessoas “endinheiradas” e romanescas. Precisava isto
sim de estudar e logo que fizesse quinze anos conseguir um bom emprego para
ajudar a família.
Para minha surpresa ela jogou uma chaleira de água quente no meu rosto (fiquei
sabendo depois que foi por defesa própria) e saiu correndo. Isto foi ontem de
manhã e até agora não voltou. Fugiu de casa sem nada levar. Procurei por ela
em todo o bairro e nada.
Tentei educadamente argumentar, mas ele foi enfático e deselegante. Encostou
o dedo no meu nariz e disse que eu era o responsável – ameaçou que se ela não
voltasse eu sofreria de um jeito ou de outro. Insistia que havia colocado
“minhocas” em sua cabeça e pagaria com a vida pela minha ação incoerente no
caso.
Fiquei calado, não era hora e nem adiantava retrucar. Os diretores e dois pais
que permaneciam na sala estavam atemorizados e sobressaltados. Claro que eu
também estava espantado e assustado. Não era nenhum herói e de karatê e luta
livre não entendia nada. Pelo sim ou pelo não, ele saiu me ameaçando que se ela
não aparecesse até o dia seguinte, alguém iria pagar com consequências
funestas.
Ficamos pasmos. Sem saber como agir. O que fazer? – Todos os caminhos
indicavam que a paciência e a cordialidade era essencial. Conversei com um pai
de um sênior, oficial da Polícia Militar que se prontificou a tomar providencias,
mas achei que agora o momento não era oportuno. Claro, um assassinato, uma
áspera briga, alguém de uniforme trocando sopapos em plena sede, não estava
em meus planos.
No sábado seguinte, ainda preocupado, já que o padrasto de “Lírio do campo”
podia aparecer, tivemos uma bela surpresa. A mãe de “Lírio do campo” surgiu
juntamente com ela e elegantemente se apresentou. Chorando vez sim vez não,
contou sua história, salpicada de novas informações, pois conhecíamos parte
quando conversamos com a jovem. Disse para não nos preocuparmos, pois ele
tinha viajado e ela tinha certeza que iria demorar em regressar.
Não vou repetir aqui uma história que aparece às dezenas nos jornais escritos e
televisados todos os dias. A única diferença era envolver toda uma organização
voltada para os jovens, com uma pessoa extremamente violenta e que se algum
fato nefasto pudesse acontecer, poderíamos perder todo o trabalho realizado e
olhe que não eram poucos.
Na semana seguinte, marcamos uma reunião da Comissão Executiva,
discutimos todos os ângulos do problema, e a solução não estava à vista. Ir a
delegacia fazer um Boletim de Ocorrência estava fora de cogitação. (apesar de
ser o mais correto) Enfrentar o homem violento também. Não éramos super-
homens e nem tampouco arrojados para tal situação.
Uma jovem que amava o escotismo sem ter sido escoteira. Uma jovem que
sonhava dia a dia em ser uma a mais, na patrulha dos seus sonhos. Uma família
que não existia. Um padrasto violento, uma mãe subjugada.
Deixamos como se diz na gíria, ver como fica com o passar do tempo. Ele o
padrasto não apareceu mais. “Lírio do campo” também não. Não tivemos notícia
de sua mãe. O tempo passou. Não mais que quatro meses.
Num sábado de sol, pela manhã, estávamos preparando material para o
acampamento geral do Grupo Escoteiro, que fazíamos sempre com um grupo
irmão de alguma cidade próxima e eis que para nossa surpresa, lá estava “Lírio
do campo” e sua progenitora. Ambas sorridentes me procuraram para ver se
podia aceitar sua filha como escoteira.
Disse que seu marido tinha desaparecido há muitos meses e souberam que ele
havia falecido, pois junto com outros bandidos tentara furtar um banco em outro
estado e tinha sido vítima por eles próprios durante a fuga. Ela não se
interessou em saber detalhes e nem lá foi para averiguar mais de perto. Estava
livre de um homem violento e agora trabalhando, pensava só na felicidade da
filha.
Não era assim o procedimento de admissão, contudo este era um caso especial.
“Lírio do campo” foi admitida. Inclusive, abrimos uma exceção e ela participou
do acampamento programado no mês seguinte. Riu, cantou, brincou, enturmou,
confraternizou e acredito que aquele primeiro acampamento foi o clímax de seu
sonho, de seus desejos infantis em participar de uma grande Organização
fraterna que só o Escotismo sabe oferecer.
Ficou conosco por seis anos. Foi escoteira e guia. Conseguiu a primeira classe e
como guia alcançou a eficiência II. Sempre era a primeira a chegar e a última a
sair. Sua mãe fez um lindo uniforme. Foi uma grande emoção no dia de sua
Promessa. Ela se orgulhava em vestir aquele traje e todos que a conheciam
tinham por ela uma grande afeição e ternura.
Um dia ficamos surpresos em saber que sua mãe voltaria para a casa de seus
pais no norte do pais. Ela teve que ir junto. Fomos todos nós seus amigos, o que
surpreendeu a muitos na rodoviária local na sua despedida e viagem. Toda a
tropa das escoteiras havia comparecido. Muitos também dos seniores, dos
escoteiros e das guias. Contei mais de oito chefes presentes.
Ali mesmo na rodoviária nos despedimos com a Canção da despedida. Muito
choro, mas todos orgulhosos de “Lírio do campo”. Todo o fato de antes e do
agora foi repassado em minutos em meu pensamento. Uma historia com um
final feliz.
Cinco anos depois, uma surpresa - recebemos na sede a visita de “Lírio do
Campo”, desta vez acompanhada de seu marido e dois filhos. Apresentou-nos a
todos com orgulho. Estava a passeio e contou que era Akelá de lobinhos em um
Grupo Escoteiro na cidade onde morava. Sorria nos encantando a todos.
Havia ainda muitas jovens que eram de sua época. Uma grande confraternização
e lembranças amigas. De vez em quando recebo uma cartinha e agora com o e-
mail sempre solícita troca de conceitos, pede sugestões, envia fotos e vai
contando de uma maneira amável e jovial o dia a dia do seu Grupo Escoteiro,
que conforme diz vai admiravelmente bem na trilha do sucesso.
Assim como várias outras, as historias contadas ou narradas onde se começa
com a dor, com o ódio, com a falta de esperança, também esta se firma dentro
deste prisma para no final abrir o sol depois da chuva, mostrando que o
escotismo é maravilhoso tanto nas horas difíceis como nas horas de alegria.
E quem quiser que conte outra...
“Pois com o critério que julgardes sereis julgados; e com a medida com que
tiverdes medido vos medirão também.”
JESUS. (Mateus, 7:2.)
A VINGANÇA DO GRILO FALANTE
* Batatinha quando nasce se esparrama pelo chão: Ai meu Deus! Vou ter que
catar tudo de novo!
Não sei se realmente era uma família aristocrática e nobre. Disseram-me que
sim. Quando os vi pela primeira vez senti que tinham uma maneira delicada,
distinta e um pouco requintada. Soube depois que eram netos de um Duque
nascido na Itália. Sendo de família nobre o pai insistia no tratamento coloquial.
Insistiam em ser chamados de Duque e Duquesa.
Entendia que o filho único deveria ter o mesmo tratamento por parte dos
amigos. Na escola os professores sabiam das “manias” dos pais e as
respeitavam. Os colegas tentavam. No entanto às escondidas davam seus
risinhos jocosos e lançavam piadas muitas vezes censuradas.
Queira ou não, conservavam na vida particular detalhes que não escondia tal
nobreza e aristocracia. Quem os visitasse era recebido por um mordomo alemão
e se davam ao luxo de ter um cozinheiro Francês. Isto mostrava que eram
pessoas de posses. Moravam em uma boa casa, mas sem considerarmos uma
mansão. Se própria ou alugada também não se sabia. Suas posses e trabalhos
profissionais eram desconhecidos.
Mas o filho, único por sinal, Era a preocupação dos pais. Para isto uma atenção
toda especial era dirigida. Com oito anos, não parecia nada com o pai e com a
mãe. Era alegre, fazia amigos com facilidade, tinha sempre um sorriso para
qualquer situação e... Bem, não parava de falar. Falava e falava. Um palrador de
primeira e isto não agradavam em nada os pais, bastantes circunspectos.
Faziam questão em aparentar ser uma família discreta, mas nada disto aparecia.
Seus estilos e posturas suntuosas, cheias de manias, tanto na rotina diária
como na maneira de conversar, ostentando aquele gênero de realeza. Diziam
que durante as refeições, em uma mesa enorme, a mãe ficava de um lado, o pai
do outro e o filho no meio. Era difícil até uma comunicação íntima.
O filho era totalmente diferente como já dissemos. Não gostava nada da maneira
dos pais. Talvez por este motivo o levassem a um Psicólogo e que aconselhou
atividades em grupo de jovens, que pudesse produzir nele disciplina e
autenticidade, diferente da maneira como agia agora.
Um amigo sugeriu o escotismo. Tinham ouvido falar, mas desconheciam por
completo o que seria. Sendo um estudioso e responsável, não matriculou o filho
antes de pesquisar tudo que encontrou na internet. Perguntou, e até contratou
um detetive particular para investigar como funcionava e a vida pregressa dos
dirigentes do Grupo Escoteiro próximo a sua residência.
Enfim, em um sábado foram até a sede, para fazer a matricula. Ficaram
indignados com as exigências. A esposa, no entanto foi mais cordata e
aceitaram com alguns senões. Deixar o filho ir acantonar passear em locais
estranhos, não era para ser aceito. O responsável afirmou ser condição final.
Tentou inclusive mostrar aos pais as vantagens do programa escoteiro.
Concordaram com reservas.
Luís Alfredo de Albuquerque e Orsinni finalmente foi apresentado à alcatéia, em
um sábado de sol, em pleno verão brasileiro. Seus pais quiseram ficar ali algum
tempo para ver a reação do filho e a aceitação. Foi desaconselhado pelo Chefe
do Grupo. Disse ser preciso que ele tivesse livre-arbítrio de mostrar sua posição
de liberdade, companheirismo e afirmação por parte da matilha e da alcatéia.
Seria o melhor.
Assim começou a saga de Luís Alfredo de Albuquerque e Orsinni que de família
nobre, tirou toda a inocência da disciplina rígida da alcatéia nos dois primeiros
meses. Não parava de falar, conversava ininterruptamente todo o tempo. Não
ficava parado. Na matilha Cinza não sabiam onde estava. Poderia estar entre os
lobinhos e lobinhas da Vermelha, azul ou preta.
Não demorou e o apelidaram de Grilo Falante. Era comum ali o apelido. Todos
tinham. Mas sem desmerecer ou mesmo denegrir a imagem de qualquer um. Ele
aceitou naturalmente. Achou bonito até. Disse para a Akelá e a Bagheera que iria
estudar bem o inseto e um dia iria fazer uma surpresa a todos.
Mesmo irrequieto e arteiro, se saiu bem no seu adestramento progressivo.
Motivou muitos outros na busca de liberdade individual. Claro que os dirigentes
da Alcatéia tinham certo trabalho. Notaram, porém que houve uma maior
aceitação de todas as atividades e um retorno bem maior que antes.
Os pais ainda não sabiam do apelido. Fumacinha, uma lobinha da mesma idade,
se tornou muito amiga de Grilo Falante. Um dia, ligou para a casa dele e pediu
para chamarem o Grilo Falante. Desligaram. Insistiu. Desligaram. Como morava
perto foi até sua casa e pediu para o mordomo chamar Grilo Falante. Levou uma
“carraspana” o que a deixou triste e foi para sua casa chorando.
A mãe quis saber o que aconteceu e Fumacinha contou. Ela pegou a filha pela
mão e foi até a casa do Grilo Falante, mostrando uma grosseria que não era
natural com o tal mordomo. Nunca em sua vida agiu daquela maneira. Sempre
foi educada, mas agora não. Sua filha tinha oito anos e não poderia ter sido
atendida daquela maneira.
Os pais de Grilo Falante não estavam em casa. Quando chegaram ficaram ciente
do acontecido. A mãe foi também a casa da vizinha e lá pediu desculpas, pois de
maneira nenhuma queriam ofender a quem quer seja. Dissera desconhecer
quem era Grilo Falante e quando soube sabia que o marido não ia gostar.
Naquele sábado a alcatéia fora fazer uma excursão até o Jardim Botânico. Grilo
Falante foi junto. Seus pais disseram que seria a última atividade. Falaram ao
Chefe do Grupo que o filho não participaria mais. O Chefe argumentou, explicou,
tentou ver uma saída e nada foi aceito pelos pais de Luís Alfredo de
Albuquerque e Orsinni.
Grilo Falante só ficou sabendo quando chegou a sua casa. Em principio não
entendeu o por que. Seus pais quando o matricularam não perguntaram se ele
gostaria de participar. Nada conhecia do escotismo. Mesmo assim aceitou. Sua
mente aguçou conhecer, e quando assim aconteceu amou o escotismo como
nunca.
Adorava a Akelá, o Balu, a Bagheera e Kaa. Eram para ele tudo aquilo que
sonhava em conviver com adultos. Sua Matilha era sua paixão particular. Em
casa escrevia, anotava, lia e aprendia tudo que o Livro do Lobinho continha. Fez
muitos amigos, gostava de todos eles, mas a sua melhor amiga era a
Fumacinha. Não se lembrava do nome dela.
Quando havia excursões ou acantonamentos passava noites e noites sonhando
com o dia que demorava em chegar. No retorno, contava tudo aos seus pais que
não demonstravam curiosidade e só o ouvia sem comentar. Ele já conhecia seus
pais. Sabia como eram, mas não se preocupava.
Agora vieram dizer que não iria participar mais. Não aceitava aquilo.
Argumentou, chorou, implorou, mas tudo inútil. Foram irredutíveis. Pela primeira
vez disse ao seu pai que não se conformava com tal atitude. Se não voltasse ao
Grupo ele seria outro menino. O pai disse a ele que era a autoridade e enquanto
fosse criança teria que aceitar.
No sábado seguinte chegou à janela e viu na rua vários lobinhos e lobinhas com
faixas e cartazes dizendo: - Volta! Volta! Nós queremos você! Viva o Grilo
Falante! Viva o Luís Alfredo de Albuquerque e Orsinni! Seus pais não gostaram.
Mandaram o mordomo dizer que se continuassem ali, chamaria a policia.
A escola telefonou aos pais dizendo que ele estava irrequieto, indisciplinado e
não participava em trabalho em grupo, ficou respondão, enfim bem diferente do
aluno de antes. Não adiantou a reprimenda dos pais. Ele ficava calado nestas
horas, saia correndo dizendo que se não o respeitassem ele não respeitaria
ninguém.
Apesar de severos os pais não aceitavam castigos cruéis. Usavam os
aconselhados pelos psicólogos, tais como castigo de não sair de casa, de não
ver TV, não ir ao cinema e não poder ligar o computador. E tudo isso por um
simples apelido. O tempo foi passando e a situação insustentável. Já não
sabiam o que fazer com Luís Alfredo de Albuquerque e Orsinni.
Uma noite, seus pais fizeram uma recepção de gala em sua residência, devido à
presença de uns nobres italianos na cidade. Várias autoridades e pessoas da
sociedade local foram convidados. A rua que moravam fora interditada. Um
grande policiamento. Pessoas chegando de limusines e até helicópteros
pousaram próximo a casa.
A recepção estava no auge. Uma orquestra tocava sem parar. Casais dançavam.
Todos se divertiam e a champanhe da melhor qualidade assim como o uísque
rolava a solta. Lá pela meia noite, a luz piscou algumas vezes e os presentes
sobressaltados viram cair do teto centenas de grilos que voavam em torno,
saltitantes e não deixava ninguém em paz.
Assustados, as pessoas e os grilos não sabiam o que fazer. Houve um clarão e
apareceu no alto da escadaria de mármore nada mais nada menos que Luís
Alfredo de Albuquerque e Orsinni fantasiado de Grito Falante, com uma
Guguzela na boca, tocando alto e dizendo: Sou o Grilo Falante! Meus pais não
querem meu apelido, mas eu gosto. Eu sou o Grilo Falante!
Abestalhados com aquilo, os presentes começaram a se retirar da recepção.
Outros se entusiasmaram e bateram palmas gritando: Grilo Falante! Grilo
Falante! Nada mais havia a dizer. Os pais o levaram para o quarto. Preocupados
e furiosos com o acontecido.
Logo todos se foram. A casa ficou vazia. Naquela noite nada disseram. No outro
dia, a imprensa achou o fato um “prato feito” para as manchetes. Não saíram de
casa por alguns dias. Luís Alfredo de Albuquerque e Orsinni ficou preso em seu
quarto. Nem na escola foi.
O tema tomou conta da cidade. Todos os Grupos Escoteiros ficaram sabendo da
saída e o porquê foi o motivo. Milhares de telegramas não paravam de chegar.
Na internet era o fato do dia. Mas tudo acaba com o tempo. Nada dura para
sempre. Os pais pensaram em mudar de cidade. Era difícil. Seu ganha pão ali
estava. Não podia tomar medidas que prejudicassem suas vidas.
Passado dois meses. Em um sábado frio, sem sol, lá estava Luís Alfredo de
Albuquerque e Orsinni chegando à sede do Grupo Escoteiro. Os pais pediram
desculpas ao Chefe do Grupo. Todos os amigos mostraram a eles que estavam
errados. Quanto mais nos preocupamos com apelido mais ele se enraíza. No
futuro seria esquecido. Só uma boa lembrança do que foi.
Luís Alfredo de Albuquerque e Orsinni voltou à vida de Lobinho. Agora era o
Grilo Falante com muito orgulho. Mudou muito sua maneira de ser. Mais
responsável e sem abandonar aquela característica que lhe era tão peculiar.
Falar, falar e até algumas pequenas traquinagens.
Seus pais receberam uma carta da Direção Regional. Agradecia pela atenção
dada ao escotismo de maneira responsável. Parabenizava suas atitudes e se
colocaram ao dispor para quaisquer contatos agora ou no futuro.
Grilo Falante ficou por muitos anos na saga escoteira. Escreveu sua história
praticando uma atividade de jovens voltada para eles mesmos. Aprendeu a fazer
fazendo e no seu pensamento ficou marcado a palavra caráter. Quando cresceu
era um homem de bem. Formou-se, dirigiu e dirige a empresa do pai que
ninguém conhecia, se casou e hoje tem dois filhos.
Ambos no Grupo Escoteiro que passou sua vida. Um se chama Murilo Vinicius
de Albuquerque e Orsinni e a outra Lívia Valquíria de Albuquerque e Orsinni. Na
alcatéia são mais conhecidos como Risadinha e Cigarra Altaneira. A vida é
assim, uns gostam outros não. O respeito é tudo na vida, mas cada um deve
escolher seu próprio destino. Disto não tenho nenhuma dúvida!
E quem quiser que conte outra...
* Não tomo café, porque penso em você. Não almoço, porque penso em você.
Não janto, porque penso em você. Não durmo... Porque estou morto de fome!
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
(Quinzenalmente ou mensalmente, iremos publicar contos na linha do
imaginário). o titulo acima servirá para mostrar que o acontecimento é obra de
ficção, mas não avalizo que possa ter alguma veracidade. Você
(Decide)
Os cinco Magníficos
(Os cinco Magníficos são seniores da patrulha Aconcágua, do 568º Grupo
Escoteiro Pico da Neblina. Rotineiramente estarão aqui contando suas epopeias
divertidas e aventureiras. Muitas já vividas pelos nossos magníficos seniores de
todo o pais. Sejam bem-vindos a patrulha Aconcágua e os cinco Magníficos).
Historia de hoje: O Castelo Medieval e a famosa espada samurai.
"Vencer não é competir com o outro. É derrotar os seus
inimigos interiores. É a própria realização do ser.”
Anônimo.
Capitulo I
Sentia-me exaurido. Pudera. Fora uma semana repleta de surpresas, cujos frutos
não podiam ser considerados satisfatórios. Nada estava dando certo nas minhas
atividades profissionais. No norte não consegui fechar o contrato já discutido e
aceito pelo cliente. Na última hora desistiu. Também próximo a capital mais linda
do nordeste fiquei sabendo que um dos nossos principais clientes pedira
concordata.
Agora estava para fechar um dos melhores contratos previstos para o inicio do
ano, e quando cheguei próximo à mineradora, uma chuva torrencial caiu como
se fosse inundar toda a terra. Para melhorar tudo, dois pneus furaram
simultaneamente no taxi que tinha alugado. E sempre me disseram que o
Escoteiro é Alegre e Sorri nas Dificuldades! Ótimo. Ainda bem que fui e sou do
Movimento Escoteiro e claro, não me arrependo.
Esperando a chuva passar, dormitava no banco traseiro quando ouvi um bando
de jovens chegarem à janela. Bateram e perguntarem se precisávamos de ajuda.
Assustei-me. Era um local ermo, ainda distante do meu destino e ali parado em
uma estrada vicinal sem movimento não podia vacilar. Olhei para o motorista e
vi que ele dormia a sono solto.
O mundo é pequeno. E põe pequeno nisto. Não é que me deparo com uma bela
patrulha sênior, com capas e mochilas as costas, uniformizados, todos com uma
simpatia sem igual, sorrindo e esperando uma resposta que não vinha. Abri o
vidro e um deles se aproximou oferecendo ajuda. Disseram ter prática em trocar
pneus debaixo de chuva.
O taxista disse que só tinha um estepe e não sabia como fazer para arrumar
outro. Com dois pneus furados a situação se complicava. Enquanto três
trocavam um, o outro mais atrás se ofereceu para ir até ao almoxarifado da
mineradora e lá pedir ajuda. Caramba! Do pior para o melhor.
Naquele pequeno mundo perdido, encontrei uma patrulha disposta a encarar a
dificuldade e com um excelente humor e Espírito Escoteiro. Com aquela
chuvarada ali estavam eles, sem mostrar cansaço e com uma disposição em
fazer uma boa ação que era surpreendente.
Foi assim que conheci a admirável Patrulha Aconcágua, ou melhor, os “Cinco
Magníficos” como se intitulavam. Afirmo que não era empáfia ou arrogância por
parte deles. Nada disto. Eram sinceros nos seus ideais e se quiséssemos ver a
Lei e a Promessa engajada em membros do Movimento Escoteiro ali estava o
exemplo mais sadio que tomei conhecimento em toda a minha vida escoteira.
Anotei o endereço do Grupo Escoteiro e o horário das reuniões. Prometi que na
primeira oportunidade lá estaria para confraternizarmos e fazê-los cumprir a
promessa de me contarem todas as historias desta patrulha, bem conhecida por
muitos outros seniores de outros estados.
Antes que esqueça, trouxeram uma picape da mineradora e levaram o último
pneu voltando em seguida com ele consertado. Fechei um bom contrato e
quando me dei conta os seniores tinham se invadido sem poder agradecer ou
mesmo oferecer uma carona para o local que escolhessem.
Comprometi-me que na primeira oportunidade lá estaria em visita ao grupo
escoteiro que pertenciam e não faltaria ocasião para voltar a ver aqueles
surpreendentes seniores que conheci de uma maneira singular, pois só ver o
tempo chuvoso, a lama na estrada, rapazes sem medo, oferecendo ajuda já daria
uma magnífica historia que tanto gosto de narrar.
Meses após retornei ao Estado que onde conheci os seniores. Tardei para tirar
um domingo e com um carro alugado, fui até a cidade deles. Não ficava longe.
Cheguei cedo, almocei no hotel onde fiquei e às duas horas da tarde parti para a
sede do Grupo Escoteiro. Não sabia se lá estariam, poderiam estar em atividade
extra sede.
No caminho vi com surpresa, diversos jovens bem uniformizados, lobinhos,
lobinhas, escoteiros e escoteiras e vários seniores e guias se dirigindo ao ponto
de reunião. Gostei do que vi. O garbo e boa ordem faziam-se presente. Sabia que
o proselitismo e a cidadania eram ponto de honra naquele Grupo Escoteiro.
O oitavo artigo que tanto reclamei ali estava evidente nas passadas animadas,
rumo a mais um dia de confraternização, aprendizado, adestramento e iriam
cultivar a formação de bons cidadãos onde o caráter seria ponto importante.
Um deles me viu e lembrou-se de quando nos encontramos pela primeira vez.
Veio sorridente, dando-me um Sempre Alerta, pegando-me pelo braço levando-
me até o Chefe do Grupo. Este, jovem ainda, lá pelos seus 29 anos, mostrava
estar bem preparado para exercer o cargo que exigia muita responsabilidade.
Conversamos bastante. Fiquei sabendo de todo o histórico do Grupo e gostei.
Falei também de mim, minha história no movimento desde lobinho, e quando
passei para os pioneiros fui obrigado a afastar devido ao serviço militar fora da
cidade de origem.
No retorno, me saí otimamente em um vestibular e me formei em Engenharia
Elétrica. Neste período, ajudava como assistente no meu Grupo de origem. Não
entrei muito em detalhes da minha vida profissional e familiar. Nesta história ela
não é importante.
Fomos conhecer os demais chefes e suas respectivas sessões. Gostei de tudo e
melhor ainda da tropa sênior. Aguardei ali conversando com um e outro o final
da reunião. Aconteceu por volta de 18 horas.
Toda a patrulha sênior, ou melhor, os cinco magníficos vieram me encontrar.
Saudações, abraços e como velhos amigos sentamos na escada que levava a
sede já fechada, e ali ficamos horas conversando.
Apresentaram-se um a um, rindo e mexendo com os braços, tentando serem
modestos, pois sem exceção apresentavam uma naturalidade própria de jovens
comedidos e respeitosos.
Léo era o mais velho, com 17 estava preocupado pelo convite do Mestre
Pioneiro para fazer a ponte. Achava que abandonar sua patrulha agora não
estava nos seus planos para este ano. Moreno, alto pela sua idade, meio
gordinho, mas com boas musculaturas, era o monitor.
Ned era o sub. Claro que na patrulha não desconheciam a democracia sênior e
as eleições determinadas pela Corte de Honra e Leo sempre era reconduzido e
Ned permanecia no cargo. Também moreno cor de jambo, tinha aspecto de ser
descendente de mameluco. Altura normal, sem ser magro tinhas olhos negros e
penetrantes.
Junior fizera também 16 anos assim como Ned. Bem magro, caladão, mas todos
diziam ser o faz tudo na patrulha. Cabelos castanhos cortado rente, Não gostava
de falar de si.
Max era o mais novo na patrulha. 15 anos, fizera a rota no inicio do ano anterior.
Morava no mesmo bairro e na mesma rua que o Junior. Eram bem mais ligados.
Sem considerar que estavam na mesma sala no colégio. Magro também e
cabelos loiros, dando a impressão de ter pais nórdicos.
E por último, Jan, negro, com uma simpatia radiante, poderia ser considerado o
melhor sorriso da patrulha. Com 15 anos, já estava entrando-nos 16. Diziam os
outros que Jan era o matemático e pesquisador da patrulha. Adorava ficar horas
e horas na internet. Não sei por que, sempre tinha uma manta pequena em volta
dos ombros.
Gostei deles. A uniformização perfeita. Ainda usavam o caqui curto, mas com
boinas verdes, bem posicionadas, estilo força aérea francesa.
Ali ficamos conversando horas e horas. Perguntei o porquê estavam debaixo
daquele dilúvio, num terreno ruim tomado pela mineradora (explorava minério de
ferro e carvão mineral) e não tinha visto nenhuma árvore ou riacho para um bom
acampamento.
Jan foi quem me contou o porquê. Fazendo uma pesquisa sobre raios para sua
escola, encontrou um fato interessante. Dizia-se que se em terreno pedregoso,
ou principalmente com minérios ou carvão mineral, se caísse um raio de
enormes proporções, no local onde tocaria o solo, havia possibilidade de
produzir um pequeno diamante.
Sorri com sua explanação. Até podia ter certa lógica, mas acreditava ser
impossível tal fato. Mas deixemos Jan continuar. Comentou com a patrulha e
esta achou que poderiam fazer uma expedição até a mineradora, para isto teriam
que de estarem alerta observando sempre os institutos de pesquisas e estarem
preparados pelo menos 24 horas antes e tentar a sorte onde poderia cair um
raio.
Ficar acantonado próximo não seria difícil. Pediriam autorização e mostrariam
sua intenção de aprender e conhecer melhor uma exploração de minérios.
Gostariam de ficar ali por uma noite e garantiram que nada fariam de errado.
Feito isto, não podiam programar e tentar a sorte que fosse num sábado ou
domingo. Durante meses nada aconteceu. Foi no carnaval deste ano que
descobriram que uma enorme frente fria se aproximava. Diziam os
meteorologistas que toda a cidade deveria ficar em alerta. Dito e feito. Ligaram
para a mineradora e garantiram já terem em mãos a autorização do diretor.
Em menos de uma hora, estavam uniformizados e suas mochilas preparadas
com ração de dois dias e pequeno material de sapa. Seus pais já conheciam
seus arroubos e sabiam que podiam confiar. Autorizar era um fato consumado.
Correram até a rodovia que não era longe tentando carona. Conseguiram com
um caminhoneiro que conduzia uma cegonha vazia. Até a entrada da mineradora
não era mais que 80 quilômetros, depois mais 12 na estrada de terra. Chegaram
já à tardinha e acantonaram em uma casa de madeira, a beira de uma cratera que
estava abandonada e agora era esperar.
Na segunda choveu a cântaros, mas sem raio. A chuva cessou à tarde. Na terça
uma enorme nuvem negra se aproximava, não havia vento. Trovões se ouviam
ao longe e calculando pela velocidade do som, viam que em pouco tempo a
tempestade chegaria até eles. Era mais ou menos 19 horas. Colocaram suas
capas e correram para a beira da cratera, ali permanecendo. Tinham um binóculo
militar, com visão noturna.
Não demorou nem 30 minutos e um raio enorme aclarou todo o vale. Ned estava
com o binóculo. Garantiu que viu onde ele tinha caído. Corremos ao local. Foi
difícil chegar lá. Muito buraco, a estradinha de descida péssima. Levamos pelo
menos 40 minutos. Decepção! - não encontramos nada apesar de vasculharmos
centímetros por centímetros. Paciência valeu à tentativa disseram.
No dia seguinte a chuva não parou. Como temos experiência de jornada com
chuvas retornamos e eis que os encontramos parado e com os pneus furados.
Temos sempre como meta, em qualquer acampamento, excursão, ou seja, em
qualquer atividade ao ar livre fazer uma boa ação, que é sempre anotada em
nosso Livro de Ouro. Ali temos mais de 50 páginas já escrita.
Contavam sem afetação. Conheço muitas tropas seniores, um sem numero de
seniores de outros Grupos Escoteiros e tive a oportunidade de trocar ideias,
conhecer suas belas histórias. Ali estavam exemplares do que se espera dos
seniores. Planejam, montam, organizam e fazem suas grandes atividades
aventureiras.
Sem falsa modéstia, todos eles garantiram ter mais de 100 noites de
acampamentos e excursões noturnas. Participaram de um sem número de
aventuras seniores em nível regional e nacional. Foram todos eles ao último
Jamboree no Chile.
Olhei no relógio e vi que passava de 22 horas. Ficaram preocupados, nos
despedimos e fiquei de voltar novamente no mês seguinte. Sorriram e disseram
que tinham muita coisa para contar. Se viesse mesmo, iriam conhecer uma
fenomenal. O Castelo medieval e a espada samurai. Franzi a testa tentando
compreender.
Sorriram me deram sempre alerta e partiram. Fiquei surpreso. O que seria?
Agora era esperar o mês que vem. Sabia que a reunião dos gerentes da empresa
seria ali realizada naquela data.
Vamos aguardar. Tinha certeza que a patrulha Aconcágua tinha muita coisa para
contar.
"O maravilhoso da fantasia é nossa capacidade de torná-la
realidade.”
Anônimo.
Os cinco Magníficos
(Os cinco Magníficos são seniores da patrulha Aconcágua, do 568º Grupo
Escoteiro Pico da Neblina. Rotineiramente estarão aqui contando suas epopeias
divertidas e aventureiras. Muitas já vividas pelos nossos magníficos seniores de
todo o pais. Sejam bem-vindos a patrulha Aconcágua e os cinco Magníficos).
Historia de hoje: O Castelo Medieval e a famosa espada samurai.
"Preste atenção ao que está fazendo, o ontem já lhe fugiu das
mãos, o amanhã ainda não chegou.”
Anônimo.
Capitulo II
Aconteceu a reunião que tinha previsto. O Presidente da Empresa não deu folga
no primeiro dia. No segundo também não. Começávamos o Seminário pela
manhã e terminava sempre à noite, após 21 horas. Dalí ia direto para a cama. Se
continuasse assim, todos os quatro dias seriam tomados com reuniões e
reuniões.
No quarto dia, era uma quinta feira. Fomos até 23 horas e todos se despediram.
Havia liberdade de permanecermos no hotel até domingo à tarde e assim
devíamos remarcar nossas passagens aéreas. Telefonei e marquei a minha para
domingo às 18 horas. Eram somente três horas de viagem e chegaria sem
problemas na mesma noite.
Na sexta me dei uma folga para compras e no sábado pela manhã aluguei um
carro não pensando duas vezes no que iria fazer. Claro. Visitar aqueles seniores,
ou melhor, dizendo os “Cinco Magníficos”, pois estavam me devendo outras
histórias.
Acredito que não contei para vocês. Desempenho como neófito amador e já me
considerava um anódino na função de um pseudo “Escritor”. Escrevia artigos
sobre o Movimento Escoteiro e agora um livro sobre histórias vividas pelos
nossos jovens praticantes. Considerava algum inédito e totalmente diferente dos
escritos até então.
Como vivi poucas aventuras quando escoteiro e sênior eu me deliciava quando
ouvia dos jovens, suas histórias contadas com simplicidade e emoção. Assim
durante minha viagem de duas horas, meus pensamentos deram vazão às
duvidas e o que podia ser o tal castelo que me contaram.
Cheguei rápido, almocei, já trajava o meu uniforme, e lá pelas 15 horas estava na
porta da sede minha velha conhecida se assim posso dizer. Cumprimentos,
lembranças, abraços e desta vez fui convidado pelo chefe Sênior para colaborar
com ele no desenvolvimento da reunião que se passaria naquele sábado.
Estava exultante por encontrá-los em reunião. Duas alcateias cumprindo o
programa estavam fazendo um acantonamento. A tropa das escoteiras fora até
outro grupo conforme confraternização programada pelo distrito.
Foi uma reunião simples. Mais voltado para o adestramento de escaladas. Foi
dividida em três partes: Quais os materiais necessários, Como usá-los e guardá-
los e técnicas de escaladas. Vi que o Chefe Sênior era um perfeito conhecedor
do assunto. Soube posteriormente que escalara o Pico do Aconcágua, nome da
patrulha dos “Cinco Magníficos”. Eu, no entanto era um autêntico pata-tenra.
A reunião foi desenvolvida em um parque próximo onde havia um enorme
paredão de pedra, bem íngreme e deu para que os seniores pudessem ter uma
ideia bastante razoável de uma escalada. Durou exatamente três horas. Às 18 em
ponto estavam todos os presentes na cerimônia de Bandeira, com a participação
de todo o Grupo Escoteiro.
Sempre Alerta, debandar e lá estavam os seniores em minha volta, me
abraçando e vi que as outras patrulhas de aproximaram. (eram um total de três
patrulhas de cinco e seis seniores em cada uma). Bastante simpáticos todos
eles, mas aos poucos saíram ficando somente eu e os “Cinco Magníficos”.
Convidei-os para irmos até uma pequena lanchonete, onde havia mesas na
entrada e lá ficaríamos mais a vontade. Aceitaram. No caminho fiquei sabendo
que o Léo recebera uma flechada. - Não entendi! Disse. - Cupido chefe foi
flechado! Agora pouco participa durante a semana conosco. Fica sempre ao
lado de sua amada e esqueceu os amigos!
Leo estava vermelho e gaguejando disse que estavam enganados. Ele já tinha
explicado e nunca, de maneira nenhuma iria abandonar a patrulha. Afinal era
ponto de honra os cinco sempre juntos. Claro, ele gostava da jovem, achava que
era um amor diferente, mas a patrulha vinha em primeiro lugar.
Lembrei de mim no passado. Bem esta não é minha história. Pedimos
refrigerantes e mistos quentes para todos. A conversa estava animada. Haveria
no mês seguinte uma viagem até a Serra do Altaneiro e iriam todos os seniores
principiarem na senda da escalada. Tinham feito algumas agora, no entanto
sabiam onde o “sapato iria apertar”.
Convidaram-me e recusei polidamente. Estaria em viagem ao extremo sul do
pais e dificilmente chegaria a tempo. Conversa vai conversa vem, lembrei a eles
a tal aventura do castelo. Entreolharam-se e ficaram silenciosos. Pensei comigo
o que estaria havendo.
Jan, o contador de historias da patrulha começou a narrar. Antes Ned me pediu
que mantivesse segredo. Assim como eu, ninguém acreditaria na história, mas
como não eram fanfarrões e nem gostavam de carapetas, preferiram manter
segredo do ocorrido. Se tornasse público, iriam servir de caçoada e toda a
credibilidade da patrulha iria para o brejo.
Reafirmei minha discrição e que nunca em tempo algum nada diria. No entanto
comentei sobre meu livro e lá as histórias eram adaptadas e os nomes trocados
nunca eram citados. Concordaram e Jan deu continuidade à história.
No ano anterior, meados de agosto, ele mesmo descobriu na página da internet
um tema que chamou atenção dele e da patrulha. Era comum suas pesquisas em
diversos sites e aqueles mais estrambóticos tinham sua preferência. Sempre
descobria temas interessantes para servir de ideias nos acampamentos, assim
como do diamante que não existiu (deram risadas) e outros que serão
mencionados numa próxima vez.
Leu num site de Óvnis, que em um determinado dia, precisamente às 15 horas,
vinte minutos e oito segundos, uma atividade temporal seria formada com a
conjunção de oito planetas, todos em sintonia com o “XB14A* (nome dado pela
NASA, num hipotético planeta que se aproximava da terra) no paralelo 12, que se
espalharia com força centrífuga num raio de dez metros.
Todo aquele que estivesse no seu raio, e isto se daria na pedra do anão (ficava a
120 quilômetros de distancia) no horário determinado do dia 22 de agosto às 15
horas, vinte minutos e oito segundos, seria tele transportado através do tempo
durante doze horas quando automaticamente se faria o retorno. O site não
explicava se era para o passado ou para o futuro.
Contei a todos e deram boas risadas da “papagaiada” da história. Mas
infelizmente, o tema ficou martelando na cabeça de cada um. No sábado
seguinte, já no final da reunião, Junior e Max comentaram a troca de
informações com outros internautas e eles confirmaram. Pronto. A ideia estava
lançada. Agora faltava a preparação e depois a ação.
E se fosse verdade? Seria a viagem do século! Se pudessem fotografar e filmar
seria a prova definitiva. No entanto teriam que manter o mais alto segredo.
Seriam uma zombaria e gozação que iria perdurar por muito tempo no grupo
Escoteiro. Assim foi feito. Preparamos tudo. Um dia antes partimos em ônibus
de carreira para a Pedra do Anão.
22 de agosto seria um sábado. Estávamos em período escolar e assim viajamos
à tarde de sexta e regressaríamos no domingo. Para a tropa sênior dissemos
que iríamos acampar no Rio Prateado, velho conhecido de todos. Claro que a
Corte de Honra aprovou assim como os chefes seniores. Mesmo nada
acontecendo, a Pedra do Anão era excelente para passarem algumas noites.
Santa Rosa era um povoado de menos de 2.000 habitantes. Quando descemos
do ônibus todos vieram às janelas para nos verem. Sorrindo cumprimentamos a
todos e fomos em frente. Até a Pedra do Anão seria pelo menos 20 quilômetros e
agora a jornada seria feita na Empresa de Transporte “Vulcabrás (Celebre marca
de sapato do passado)”.
Lá pelas onze da noite chegamos. Armamos à barraca próximo a pedra e
dormimos a sono solto. Todos nós não tínhamos problemas para dormir. Era só
encostarmo-nos a uma árvore, deitar na grama ou em pedregulhos que o sono
para nós era reparador.
O sábado amanheceu lindo. Um sol sem nuvens, Junior fez um café suculento
com ovos mexidos bacon e pães amanteigados fritos, o que comemos com
fartura. Não pretendíamos fazer almoço. Aspirávamos a partir de 13 horas nos
aboletar na Pedra do Anão e após as 15 horas, vinte minutos e oito segundos se
nada acontecesse daríamos belas gargalhadas e nosso destino seria uma
majestosa cachoeira que vimos na estrada.
Um belo banho, uns bons mergulhos, boas risadas, boas lembranças seria tudo
que nos lembraríamos da tal viagem temporal no tempo. O impossível
aconteceu. Passado dois minutos do horário, já íamos levantar quando uma
nuvem envolta em um redemoinho imenso nos alcançou.
Girando como um peão gigantesco, nada vimos ou sentimos. Em questão de
segundos estávamos todos os cincos, deitados em uma grama verde, próximo a
uma imensa árvore frondosa. O dia era sem sol, cinzento e fazia frio sem chegar
ao extremo.
Ficamos em pé e surpresos vimos um jovem de uns 17 anos descer rápido da
árvore e ligeiro se pôs a correr morro abaixo. Max foi até o pé da arvore e
olhando para cima avistou o que seria uma grande faca ou quem sabe uma
espada. Ele mesmo aboletou árvore acima e com surpresa viu uma enorme
espada amarrada em um galho à grande altitude do chão. Dalí pouco passantes
poderiam ver.
Desamarrou-a com dificuldade, pois as cordas eram feitas de couro trançado e
difícil manuseio. Devagar, deixou-a cair até o chão e para nossa surpresa era
uma bela espada, de aproximadamente 1 metro e setenta, com cabo de osso
branco de leopardo, tendo encravado em algumas partes pedras preciosas que
não soubemos deduzir e desconhecíamos tal arte.
Leo tentou levantar a espada e viu que seu peso era enorme. Mal conseguiu com
as duas mãos. Neste ínterim, Junior chamou a atenção de todos, pois tinha
avistado no vale abaixo, um enorme castelo. Além dele, um rio bem largo, que
serpenteava entre vales e algumas pequenas florestas em sua volta.
Ficaram ali aturdidos com tudo aquilo, e não faziam a mínima ideia onde
estavam. Foi Jan o mais estudioso que sugeriu ser um Castelo Francês. Disse
que tinha visto uma enorme foto de um tal Castelo de Chambord, que ficava em
Loir-et-Cher na França. Estilo Renascentista tinha formas medievais e ficava as
margens do rio Loire.
Tudo levava a crer que poderia ser real e pela falta de estradas e movimento
aéreo, deviam estar de volta aos anos de 1519 data da construção ou então
próximo ao século XVII onde foi frequentemente usado pelo Imperador Carlos V.
Depois disto vários outros Imperadores, inclusive convidados ilustres de outros
países o utilizaram.
Pelo sim ou pelo não, o melhor era ir até Lá. Leo levava a espada às costas, tipo
carregar machados grandes tão habilmente transportados pelos escoteiros. Foi
uma boa descida. Entraram em uma pequena estrada forrada de pedras, que mal
dava passagem a uma carruagem ou dois cavalos.
Eu os ouvia com atenção. Se aquilo fosse uma armação era muito bem feita e
engendrada. Dariam grandes atores no futuro. Mas a historia prometia e nada
melhor que esperar seu final para então dar um veredito de culpabilidade ou
inocência dos “Cinco Magníficos”.
Os cinco Magníficos
(Os cinco Magníficos são seniores da patrulha Aconcágua, do 568º Grupo
Escoteiro Pico da Neblina. Rotineiramente estarão aqui contando suas epopeias
divertidas e aventureiras. Muitas já vividas pelos nossos magníficos seniores de
todo o pais. Sejam bem-vindos a patrulha Aconcágua e os cinco Magníficos).
Historia de hoje: O Castelo Medieval e a famosa espada samurai.
Não deixes que a tua fantasia seja guiada pelos teus olhos, nem deixes que teu
querer seja formado pela tua fantasia> deixa teu entendimento conter-se entre
teus olhos e tua fantasia.
F. Quarles
Capitulo III
Jan era um esplêndido contador de histórias. Sabia como narrar, usava todo o
seu corpo, sua expressão, seus cinco sentidos no inicio e no prelúdio de cada
frase e no contexto geral.
Eu também me prendia a narrativa. Claro, já tinha lido algum parecido e quem
sabe já sabia do término, pois não era uma história nova. Mas a aventura dos
seniores se tivesse (e quem sabe foi) sido real, seria extraordinária.
Jan continuou enquanto os demais também reviviam a historia, prestando
atenção, completando aqui e ali alguma falha. Vamos dar sequência ao que dizia
o narrador.
Avistaram próximo ao Castelo, várias casas feitas de adobe e cobertas por
folhas de capim trançado, tendo várias crianças correndo aqui e ali e uns
poucos aldeões em pé ou sentados a meditarem ou conversando pausadamente
entre si.
Pararam surpresos quando o viram, mais ainda quando se aproximou um grupo
de cavaleiros que pelos uniformes só podiam ser soldados do castelo. Eles
ficaram receosos com aproximação belicosa daqueles burlescos personagens.
Aproximaram deles e um falou em uma língua que nada entenderam. Depois
souberam ser francês. Desceu do cavalo e tomou a um só pulso a espada de
Leo, empurrando-o para o chão. Logo os demais amarraram as mãos de todos e
os fizeram marchar rumo ao portão de entrada. Ninguém mais falou. Os “Cinco
Magníficos” eram agora os “Cinco Medrosos”.
Entraram no castelo e ficaram abismados com o que viram. Uma enorme
escadaria em dupla-hélice, iluminação em cima por uma espécie de farol. Devia
ter mais de 128 metros de fachadas e depois ficaram sabendo que o Castelo
possuía mais de 800 colunas esculpidas e um telhado elaboradamente
decorado.
Dizia os historiadores que o palácio raramente estava habitado. Servia mais para
curtas visitas. Tinha enormes e massivas salas, janelas abertas e tetos altos,
impossíveis de bom aquecimento naquela região fria. Diziam ainda que para
trazer os alimentos necessários ao alojamento de uma corte, precisariam de
mais de 2.000 pessoas no transporte. Além do pavilhão de caça, tinham uma
cavalariça para mais de 300 cavalos.
Isto tudo ficamos sabendo depois. Logo que nos aproximamos da enorme
escadaria, um homem bem vestido, que identificamos ser natural do Japão se
aproximou correndo e logo se apoderou da espada. Em seguida nos levaram a
presença do que julgamos ser o Senhor do Castelo. Nunca ficamos sabendo seu
nome.
Sempre falando em francês parecia ser compreensivo e mais educado, pois se
tratavam de cinco rapazes com uniformes estranhos e precisavam saber quem
éramos. Como não obtinha respostas e só falávamos em português além do
mais gaguejando, ele nada entendia.
Foi então que Ned arriscou seu inglês mais americanizado. Entreolharam-se e
um deles se aproximou respondendo em inglês. Agora poderíamos explicar.
Queriam saber por que tínhamos roubado a espada samurai do Senhor Feudal
Kajimoto natural do Japão, convidado especial do Imperador Carlos V.
Disseram que estávamos infringindo leis severas e principalmente com um
convidado tão ilustre. O furto de sua espada nunca seria perdoado e de acordo
com a lei francesa, seria punida com a morte na guilhotina. Agora é que estavam
embananados. Muitos de nós levamos as mãos até o pescoço.
Ned afirmou que estavam enganados. Estavam ali a passeio (não soube explicar
de onde eram) e viram um jovem esconder a Espada em uma árvore. Como ele
fugiu, pegaram a espada e vieram ter ao Castelo. Seria um disparate roubar a
espada e voltar ao castelo.
O Senhor do Castelo sorriu com a explicação e com a resposta. Mas logo o tal
do Kajimoto, que parecia muito influente falou uma torrente de palavras,
totalmente inteligíveis, mas pela sua expressão entendíamos que queria punição
sem piedade. Amaldiçoado Japona. Queria ver a todo custo arrancado nosso
couro cabeludo. Ou melhor, nossas cabeças do corpo.
Levaram-nos para cima do castelo, onde havia uma enorme masmorra, toda feita
de pedra, com uma pequena janelinha e nos empurraram nos jogando ao chão e
fechando a grande grade daquela infernal prisão. Sentamos em um canto, sem
nenhuma ideia, sem nenhum pensamento, sem nenhuma ação dos “Cinco
Magníficos”.
Estávamos “fritos” se querem saber, disse Jan. Nem bem passou uma hora e
ouviram passos. Viram com surpresa o jovem que pulou da árvore, o provável
ladrão da espada samurai e atrás uma mocinha de seus 15 anos, com uma
beleza que deixou a todos abestalhados. Era linda demais. Se naquela época
existem beleza assim, era melhor ficarem por ali e não voltarem mais ao
presente.
Falando em francês o que não entendiam nada, levou os dedos aos lábios
pedido silencio. Abriu a porta e pediu que a seguíssemos. Assim foi feito.
Passamos por escadas íngremes, portas abrindo à leve toque, tuneis
intermináveis, até que chegamos fora do castelo, distantes uns quinhentos
metros.
O jovem, que falava um pouco de inglês nos disse que o pai da jovem havia
prometido ela em casamento com o Sr. Kajimoto e ele iria levá-la para o Japão,
onde tinha um Castelo Medieval fortificado, próximo a Kyoto e era riquíssimo,
pois vivia da cobrança de impostos e taxas dos servos. Fazia leis e aplicava-as
em seu domínio. Invadia militarmente os feudos de outros nobres e assim
aumentava a sua riqueza e a conquista de terras.
Como a guerra era uma atividade comum naquela época, à França o convidou
para uma visita e nada melhor que unir famílias evitando uma contenda
desnecessária no futuro. Ainda não conheciam bem a força do inimigo acharam
uma solução para em anos próximos invadirem o Japão e aumentarem a riqueza
francesa. (nem o famoso General e autointitulado Imperador Napoleão
Bonaparte pensou em algum assim.).
Os dois se amavam e ela pensou em um plano simples que poderia dar
resultado com o roubo de sua estimada Espada Samurai e assim sua volta ao
Japão sem levar uma esposa. Parece que tudo daria certo se não
aparecêssemos de surpresa onde ele escondia a espada furtada.
Não achavam que tínhamos culpa e assim planejaram nossa fuga, agora era
conosco. Disseram adeus e partiram. Ficamos empacados, sem saber o que
fazer. Um pequeno Conselho de Patrulha e nenhuma ideia ou sugestão. Para
onde ir? Ir aonde? Não tinham a mínima ideia onde estavam, e pelos seus
cálculos se passariam pelo menos quatro horas antes do retorno, isto é claro se
fosse verdade o tal site.
Como o Castelo estava ao sul (nos orientamos pelo sol, ralo, mas que dava para
sentir onde estava) o melhor era ir para o norte. Assim foi feito, e para apressar
nossa jornada, combinamos de ir no passo duplo escoteiro por duas horas.
Assim poderíamos percorrer pelo menos 18 quilômetros sem nos cansarmos.
Já estávamos a caminho por uma hora quando avistamos uma nuvem de poeira
a nossa frente. Saímos da pequena estrada e logo passou por nós um numero
razoável de cavaleiros, e pelo semblante deviam ser japoneses. Bem feito. Agora
o pau vai quebrar na casa de “Noka”, ou melhor, no tal Castelo de Chambord.
Continuamos e vimos uma pequena estalagem, deduzimos que só podia ser
devido a uma taboa de madeira pendurada em um poste onde se lia “Le Figarô”
o que seria não sabíamos e nem queríamos saber. Estávamos com fome, sede
não, pois passamos por diversos regatos com águas límpidas e sempre
mantínhamos nossos cantis cheios.
Parar era bobagem, a pista seria conhecida daí em diante. Mas precisávamos
saber aonde íamos e como esconder dos guardas do castelo. Apareceu na porta
um homem de uns 80 anos, cabelos brancos e poderíamos jurar que se
estivesse de uniforme, seria Baden Powell sem tirar e nem por. Igualzinho!
Sorriu para nós e em um belo e limpo português, nos convidou a entrar. Piscou
com os olhos para todos e subiu conosco ao segundo andar, onde havia uma
mesa, seis cadeiras e duas camas. Mandou aguardar e logo veio um jovem com
uma excelente galinha caipira, tostada e em sua volta tomates cortados e um
terrina de arroz ainda saindo fumaça.
Olhei para o Leo e perguntei se estávamos sonhando. Ele me disse que não,
pois tinha pensado a mesma coisa. Comemos feito loucos. A fome é avarenta e
não escolhe hora e lugar. Comemos até não aguentar mais. O sono velho
chegou. Combinamos uma guarda de hora em hora. Max era o primeiro e eu o
último.
Acordamos todos com o Ned dizendo que faltava menos de dez minutos para o
nosso retorno ao presente. Aguardamos ali ansiosos. Deu a hora, nada, 5
minutos nada, 10 minutos nada. O desespero apareceu. Ficar ali para sempre!
Rezamos pedindo a Deus que não deixasse acontecer.
Um redemoinho gigante apareceu. Entramos em parafuso. Acordamos na Pedra
do Anão já escuro. Gritamos de alegria. Vimos nossas barracas armadas. Foi
uma festa. Escapamos por pouco.
O final você já sabe, disse Jan. Voltamos alegres, felizes e cantando poemas
escoteiros que vivenciam belas aventuras. O que teria sido feito do Jovem que
nos salvou? E da jovem será que a obrigaram ainda a se casar? Mas que
carranca tinha o tal do Senhor Feudal do Japão. Para um samurai ele parecia
mais um coisa ruim.
Perguntei ao Max o que ele achou do estalajadeiro. Falando português e tudo.
Seria um sonho nosso? Ou seria o espírito de BP? Ninguém tinha respostas.
Infelizmente nossos celulares que poderíamos ter filmado ou ter fotografado não
funcionaram naquela época. Porque não sabemos.
Não temos provas, só nossa palavra, mas nos comprometemos a não contar
para ninguém. Não iam acreditar e seriamos ridicularizados. Fiquei ali pasmado
com a narrativa. Tinha fundamento. Tinha contorno, tinha presença, mas poderia
ter sido montada anteriormente e compraram a ideia falsa como verdadeira.
No entanto qual o objetivo de uma história sem embasamento, sem procedência
real por parte de cinco seniores que se mostravam cordiais, amigos, irmãos e
claro com plena ciência das Leis Escoteiras?
É difícil aceitar como verdadeira, mas também difícil desmentir o relato. Seja
como for, em sonho ou em realidade foi uma aventura sem igual. Passaram por
situações incríveis. Poderiam ter morrido e a fuga não foi cinematográfica, pois
não havia ali bandidos e mocinhos.
Sorrimos todos, pedi uma nova rodada de refrigerantes e todos aceitaram novos
lanches desta vez a escolha de cada um. Ficaram satisfeitos com o relato.
Sorriam entre si na confiança que depositei em todos eles. Prometeram-me que
quando voltasse me contariam novas histórias novas aventuras.
Desta vez me aguçaram a mente quando comentaram sobre a Mansão do
Duende Cor de Rosa. “Caramba” mais uma? Agora um duende, enfim que assim
seja. Mais uma para o meu livro tão necessitado de tantas aventuras e de tantas
histórias que só os escoteiros sabem contar.
Despedimo-nos prometendo um breve encontro. Cada um foi para o seu lado, ao
seguir o meu, deparei com um velhinho dos seus possíveis oitenta e quatro
anos, sorridente, encostado em um poste me olhando e me dando uma
piscadela. Poderia jurar que era o sósia de Baden Powell. Deus do Céu! Até eu?
Até eu?
E quem quiser que conte outra...
* Não leve a vida tão a sério. Afinal, você não vai sair vivo dela mesmo!
UMA LINDA HISTÓRIA DE AMOR EM MEU CLÃ
Em uma montanha bem perto do céu,
Existe uma lagoa azul.
Que só a conhecem aqueles que têm
A dita de estar em meu Clã!
Jovi me procurou uma tarde de domingo, cinzenta, sem garoa e com temperatura
agradável para um verão escaldante. Eu não costumava sair aos domingos e ficava
em casa lendo alguma coisa ou mesmo conversado com Nininha, minha esposa.
Meus dois filhos, na pré-adolescência estavam em atividade da Tropa Escoteira.
Minha esposa estava em visita a um vizinho adoentado.
Não tenho certeza, mas acho que a última vez que vi Jovi, foi no ano anterior.
Assim mesmo de passagem. Ele estava em um ponto de ônibus e parei oferecendo
uma carona. Levei-o até sua casa, pois não era tão distante da minha.
Conversamos pouco. Jovi era reservado para falar e eu estava em um dia não
muito agradável.
Lembro quando Jovi entrou para a Tropa. Eu era o Chefe e vi que ali estava um
jovem sério, amigo, sincero e podíamos sem sombra de dúvida contar com ele.
Claro, ele também podia contar com todos nós. Recordo que ficou na tropa até ser
transferido para os seniores. Daí em diante não saberia precisar quando saiu do
Grupo Escoteiro.
Seus pais eram pessoas simples que procuravam dar uma educação esmerada a
Jovi. Diversas vezes nos encontramos, em Conselhos de Grupos ou Reunião de
Pais. Lembro que duas vezes os visitei. Era comum para nós escotistas,
conhecermos melhor a formação dos jovens em casa, pois, assim teríamos
melhores condições de colaborar.
Fiquei surpreso com a visita de Jovi. Não era usual. Podia dizer que tínhamos uma
amizade relativa. No escotismo aprendemos que os jovens muitas vezes confiam
mais em nós os chefes que em seus próprios educadores. Pais e mestres
escolares. Acredito que estava agora com 18 a 19 anos. Confirmou-me depois 18
anos.
Inicialmente conversamos banalidades. Contou-me que trabalhava de caixa em um
Banco, estudava a noite e já estava fazendo o segundo ano de Economia. Morava
ainda com seus pais e com sua irmã mais velha que ainda não tinha casado. Seu
salário era pequeno, ajudava em casa e pagava a faculdade, não sobrando para
comprar o carrinho de seu sonho.
O assunto que o tinha levado a minha casa, soube bem mais tarde. Jovi era
parcimonioso nas suas ações e modesto na sua vida particular. Claro ainda não
havíamos feito uma grande amizade para uma abertura maior. Depois de algumas
horas ele entrou no assunto. O que o levou a conversar comigo e não com sua mãe
ou outro rapaz seu amigo, acredito deveu-se ao passado, onde juntos, confiávamos
plenamente um no outro.
Pediu desculpas por ter ido se aconselhar comigo. Deixei-o a vontade. Conversa
vai, conversa vem e ele com dificuldade, entrou no assunto que o tinha levado até
ali. Contou que estava voltando do trabalho, quando no ponto de ônibus viu uma
jovem de seus 17 anos, morena, cabelos negros compridos e achou-a
extremamente formosa. Sentiu um calafrio como nunca sentiu antes e viu que ali
estava a jovem dos seus sonhos.
Ainda não havia notado o seu traje. Verificou, entretanto que usava o uniforme de
escoteira, calça cinza, camisa azul clara, lenço e na cabeça uma pequena boina
preta que devia estar presa com um prendedor. Pela idade observou que só
poderia ser pioneira.
- Olha chefe, ouça toda a minha história antes comentar, pois sei que estou sendo
infantil e contando histórias que deveria contar para meus amigos da minha idade.
Disse. – Retruquei que ficasse a vontade. Eu tinha todo o tempo e ele é quem
decidiria quando parar.
– Bem, continuou Jovi – Como sabe não estou participando do movimento
atualmente. Faz um ano que deixei o Grupo e não sei se sabe, o trabalho e a
faculdade me tomam todo o tempo. Sinto saudades, mas quando puder claro que
irei retornar. O Escotismo durante muito tempo foi o amor da minha vida e a ele
agradeço por muito que me deu. Assim acho um tema espinhoso e acredito que
depois desta conversa é bem possível meu retorno de imediato.
– continuou Jovi - Naquele dia fiquei embasbacado com aquela jovem. Não me
aproximei. Sou meio tímido com as moças, isto é sou tímido demais completou. Fui
para casa sonhando com ela. Meu coração sempre batia em disparada quando
pensava na jovem que eu vira e não conseguia apagar do meu pensamento. No dia
seguinte fui correndo ao ponto de ônibus e não a vi. Isto aconteceu nos dias
seguintes. Tinha que encontrá-la e fui pela manhã até a Direção do Distrito saber
onde havia clãs próximos ao meu bairro.
Não havia nenhum. Em atividade sabiam que em um bairro distante estava um Clã
em funcionamento, sem registro na Direção Nacional. Claro que fui até lá em um
sábado. Apresentei-me e nada da moça dos meus sonhos. Saí de lá desanimado.
Não podia perdê-la. Não poderia deixar de encontrá-la novamente. Sabia que não
encontraria ninguém como ela. Éramos alma gêmea, disso tinha certeza.
Durante dois meses percorri todas as ruas próximas ao ponto e nada. Estava
ficando apatetado, sonhando acordado e pensando que a perdi para sempre.
Voltava da faculdade já tarde, em uma sexta feira, calado, taciturno pensando nela
e ouvi vários jovens rindo, conversando alto e quando passaram por mim lá estava
ela! Meu coração disparou.
Ela nem olhou para mim. Alegre de braços dados com um jovem. Não estava de
uniforme. Deviam estar vindo de alguma festa ou quem sabe de uma faculdade ou
escola nas imediações. Dei um tempo e fui atrás. Agora não podia perdê-la. Deveria
saber onde morava.
Não fomos muito longe. A menos de três quadras ela se despediu e entrou onde
devia ser sua casa. Simples mas com um belo jardim na frente. Só por isto vi que
se tratava de uma família fraterna e trabalhadora. Fui em frente, e voltei para minha
residência. Foi uma noite maravilhosa. Sonhei e como sonhei! Ela lá estava nos
meus sonhos, em meus braços dizendo que eu também era sua alma gêmea.
Sei que o Senhor Está me achando excessivamente infantil. Desculpe-me chefe.
Mas nunca gostei assim de verdade de nenhuma outra moça. Tive amigas, poucas,
mas namoro mesmo nenhum. Para dizer a verdade, no final do dia o meu caixa não
bateu. A minha chefia estranhou, não era usual. Quem batia sem parar era o meu
coração, forte, animado com uma vontade louca de revê-la novamente.
No dia seguinte, sábado, fui até a casa dela. Comprei um pequeno ramalhete de
flores tomei coragem e bati. Ela mesma abriu a porta. Fiquei ali em pé, engasgado
sem saber o que dizer. Meu coração disparou. Ali estava ela, linda, radiante sem
saber quem eu era e de onde tinha vindo. Uma pequena tremedeira se apossou de
minhas pernas. A única palavra que saiu foi o “Sempre Alerta!”. Ela sorriu e disse
“Servir!”. Fiquei petrificado! Dei meia volta e saí correndo pela rua com o ramalhete
na mão sem saber o que fazer.
Não dormi nada à noite. Ralhava comigo por ter sido tão idiota. Estava parecendo
um jovenzinho apaixonado pela primeira garota e na hora de se apresentar, banca
o perfeito boboca, um tolo. Porque não me apresentei? Por quê? Repetia sempre.
Tudo bem poderia dizer que era a primeira vez, mas receio de se apresentar? Só
mesmo comigo tal fato poderia ter acontecido.
Agora voltar lá estava fora de questão. O que fazer não sabia. Meus pensamentos
não concatenavam e achei melhor dar tempo ao tempo. No dia seguinte, domingo,
fui dar umas voltas para pensar como deveria agir e não como um pateta como fui.
Teria que montar um plano. Raciocinava que quando a visse a tremedeira e a
gagueira poderiam voltar.
Próxima a minha casa, existia uma pequena praça bem arborizada, local aprazível e
que frequentemente ia até lá para estudar. Sentei em um banco, serrei os olhos e
pensava, pensava. Nada, nenhuma ideia, nenhum projeto simples. Nada. Nada e
nada. Serrei os dentes com raiva de mim mesmo. Ainda com os olhos fechados
ouvi uma voz dizendo “Sempre Alerta!”.
Abri os olhos e ali estava ela. Bem na minha frente. Uniformizada. Linda, formosa,
bela. Fiquei em pé embasbacado. Ela parada me olhava e repetia, “Sempre Alerta!”.
Com voz fanhosa repeti “Sempre Alerta”. Não sei como, gaguejando perguntei a ela
se não era “Servir” o lema pioneiro.
- Claro disse, mas como você foi a minha casa, me deu Sempre Alerta, correu e
sumiu, fiquei matutando quem era você, se era do movimento ou estava querendo
fazer uma piada comigo. – Desculpe! Mil perdões repeti. Não quer sentar?
Perguntei. Ela sentou e fiquei ali, olhando para frente, sem coragem de olhar para
ela.
Começamos a conversar e eu me deslanchei. Falei de mim, ela me contou sua
história, falei de minha família e ela também. Quando olhei no relógio era mais de
15 horas. Vi que como eu ela também não tinha almoçado. Convidei-a até uma
lanchonete próxima. Sabia que daí para frente não a deixaria fugir nunca mais. Era
a primeira conversa, o primeiro encontro, mas o amor que sentia era mais forte que
tudo.
Bem chefe, não vou entrar em todos os detalhes, pois o principal é que já estamos
namorando há dois meses, eu não consigo ficar longe dela e agora insiste para que
eu entre no Clã Pioneiro. Ele se reúne aos sábados e em alguns dias da semana
fazem algumas reuniões para discutirem assuntos relacionados ao Clã.
Minhas dúvidas são muitas. Mas as principais são fortes motivos para não voltar à
ativa. Voltar porque a amo, Voltar para ficar ao seu lado? Voltar para ser um
pioneiro? E o ciúme? Será que terei ciúme dela? E quando ela for a um
acampamento e eu não estiver presente? Por outro lado não acho interessante o
que os pioneiros fazem. São atividades para mim estranhas. Também tenho que
estudar e muito.
Eu gosto muito do Escotismo. Pretendia voltar algum dia. Não gostaria de ser um a
menos e estar lá por ser namorado de Debye (seu nome). Não seria bem visto.
Acredito mesmo que iria ser um crítico do que fazem. Sei que ela gosta de mim e
não podemos ficar longe um do outro. Ela falou em sair. Não concordei. Afinal tinha
sido dois anos escoteira e três como guia.
Bem não sei qual atitude tomar. Não quero que o senhor se sinta pressionado para
um aconselhamento agora. Poderei voltar outro dia. Quem sabe uns dias pensando
não só o senhor, e eu também poderíamos ter outro caminho não tão difícil como
este.
Concordei com Jovi. Antes de sua saída, pedi o endereço do Grupo Escoteiro onde
o Clã se reunia. Achei que fazendo uma visita poderia ter uma ideia melhor.
Não era um expert em pioneirismo. Conhecia bem o livro Caminho para o Sucesso
de Baden Powell. Era só. Fora pioneiro em outras épocas. Agora o que faziam era
para mim um tema desconhecido. Acreditava que ainda sonhavam com grandes
aventuras, escaladas, explorar florestas nativas, ou mostrar suas qualidades
técnicas em grandes acampamentos, construindo enormes pioneiras. Era o que
pensava.
Recordava bem o que estava escrito no livro, quando BP formalizou o pioneirismo -
“Serviço ao próximo ou a comunidade é o resultado prático do Escotismo para
Pioneiros”. Todos os Pioneiros devem ser incentivados a ajudar de todos os
modos possíveis no funcionamento das Tropas e Alcateias do seu Grupo Escoteiro
ou de outros Grupos.
Ganhado assim experiência no adestramento dos Escoteiros ficam preparados
para no futuro se tornarem Chefes Escoteiros e pais. Para isso deve-lhes ser dadas
responsabilidades em setores definidos, quando auxiliando os Escotistas do
grupo.
“Atividades de cooperação e atividades de competição Inter Clãs, por meio de
conferencias, jogos e trabalhos práticos são necessários para que os Clãs se
conheçam entre si, estimulando as amizades e emulações.”
Seria isto mesmo que os pioneiros estão fazendo? Não sei. Só acreditava que nada
justificava a Jovi não participar. Entretanto precisava dizer a ele o que vi e senti,
pois se me procurou queria uma resposta e eu teria que satisfazê-lo.
Naquele Sábado coloquei meu uniforme social (usava sempre o de campo quando
atuando na tropa), passei pelo Grupo Escoteiro que atuava e deixando algumas
instruções aos dois assistentes me dirigi ao Grupo Escoteiro onde Debye era
pioneira. Não era muito longe. Em menos de 15 minutos no meu carro lá cheguei.
Havia uma boa movimentação em todas as sessões e fui muito bem recebido pelo
Chefe do Grupo, que a principio de manifestou surpreso com minha visita. Fui
franco com ele. Expliquei do porque, a finalidade e de que um assunto tão pueril
merecesse tal tratamento. Ele entendeu bem. Achou interessante e até me colocou
a par do desenvolvimento do Clã.
O Mestre Pioneiro era novo. Um pai que foi convidado e assumiu. No início sem
muito entusiasmo. Sua esposa não participava. Fez um CAB pioneiro, e junto com
os nove participantes, desenvolvem suas atividades, com uma prisma mais voltada
para a amizade, passeios, e vejo muito poucas atividades aventureiras. Acredito
que por ser a maioria não oriunda das fileiras escoteiras, ainda não tiveram
motivação para tal.
Claro que dentro dos princípios do Pioneirismo, seguem o conceito de BP, meio
informal e fazem questão das normas básicas, deste o estagio de transição (Ponte
Pioneira), estágio Probatório, Introdutório, e esquecem um pouco as regras básicas
de atividades ao ar livre, mas são firmes na Pré-vigilia Pioneira, na Investidura, mas
sua continuidade no adestramento pioneiro deixa muito a desejar. Até hoje nenhum
deles atingiu as condições necessárias para pelo menos ter um com a Insígnia de
BP.
Eles gostam muito de participar de encontro de clãs, mutirões e sempre tem alguns
mais afoitos para mudanças sem sequer ter uma experiência anterior no ramo ou
em outras sessões do Grupo Escoteiro. Mas uma coisa afirmo – São excelentes
rapazes e moças (cinco moças e quatro rapazes). Dois rapazes e duas moças são
oriundos do grupo os demais vieram a convite.
O Mestre Pioneiro havia chegado e me foi apresentado. Excelente pessoa. Muito
interessado. No entanto os pioneiros com exceção de três não eram muito
pontuais. Só depois de 40 minutos do inicio chegaram mais três. Os demais tinham
faltado. Ele me explicou que sempre foi assim. Mas não desapareciam por muito
tempo. Debye foi uma das primeiras a chegar. Seu entusiasmo estava à flor da pele.
Jovem bonita, simpática, muito educada, mostrava toda sua força aprendida como
escoteira e guia.
Vi que ela era uma autêntica líder. Os outros a olhavam com admiração. Fiquei ali
por algum tempo. Não vi nada novo. Não vi também motivo para que Jovi não
participasse. Eram moças e rapazes com formação moral excelente e isto seria
benéfico a ele. Acredito que seu retorno às lides escoteiras traria muitos
benefícios.
Acho que os demais do Clã precisavam de outro com novas ideias e possivelmente
Jovi seria esta pessoa. Claro, levando em consideração seus afazeres profissionais
e escolares.
Conversei com Jovi posteriormente. Ele não disse nem sim e nem não. Um
domingo ele apareceu em minha casa junto com Debye. Estavam de uniforme. Jovi
tinha se tornado um pioneiro. Foram me fazer um convite para um acampamento,
cujo Clã tinha aprovado por unanimidade. Aceitei. Foram três dias excelentes. Senti
a força do Clã Pioneiro. Eram rapazes e moças fazendo um escotismo de magnífica
qualidade.
Jovi soube respeitar a unidade do grupo, sem demonstrar que ali estava sua noiva
e futura esposa. Todos tinham grande respeito por ele e por ela. Notava seus
olhares apaixonados e seus sorrisos de amor eterno.
Três anos mais tarde, participei de uma linda festa de casamento. Jovi e Debye se
casaram. Convidaram-me para Padrinho. Fizeram questão de estar de uniforme. Os
pioneiros de vários clãs amigos estavam presentes. Com bastões os receberam na
porta da igreja e em todo seu trajeto. Conseguiram um violinista e um violoncelista
pioneiros que tocavam divinamente. Olhe, foi maravilhoso quando o Padre
encerrou a cerimônia. Num coro digno de uma apresentação faustosa, cantaram a
Canção do Clã, que arrancou lágrimas de muitos.
Jovi e Debye formam um casal surpreendente. Ainda não tem filhos. É iniciante de
uma Empresa de Cosméticos e pretende tão logo se afirme perseguir a ideia de ter
seus “rebentos”. Esperam que com o tempo tenham pelo menos um casal. Serão
ambos escoteiros no futuro me disseram. Claro, se gostarem. Eu torço por isto.
Deixo claro que esta historia não serve de exemplo para outros pioneiros de outros
Clãs. Um Clã não existe para que casais se aproximem e formem uma família como
eles. A amizade o companheirismo e os princípios de BP ali estão presentes. Estes
são os fatores mais importantes. Sei que todos os pioneiros e pioneiras amam o
escotismo. É este o motivo porque estão ali. Todos conscientes que estão no
Caminho para o sucesso!
A sede de riscos que nunca se acaba
As rochas que há a escalar,
Um rio tranquilo que canta e que chora
Jamais poderei olvidar!
A FELICIDADE É FEITA DE DOCES MOMENTOS
Se você pode ajudar, em auxilio de alguém, faça isso agora.
Enriqueça o seu vocabulário com boas palavras.
Aprendendo a escutar, você saberá compreender.
Francisco Candido Xavier
Morava em uma casinha diminuta. Apenas dois cômodos. Ali convivia com meu
pai, minha mãe e um irmão mais novo. Ficava próximo a uma pequena cidade,
distante umas cinco léguas. Meu pai lavrava a terra, plantando feijão, um pouco
de arroz em uma várzea próxima. Também plantava mandioca e nas barrancas
do Rio das Flores, colhiam muita abobora que dava para o sustento da família.
Nossa casa não tinha eletricidade e televisão só conhecíamos na fazenda do Seu
Malaquias. Meu pai não tinha salário e trabalhava de sol a sol. Tínhamos um
burrinho já velho e algumas galinhas e porcos no chiqueiro atrás da nossa casa.
Um radinho a pilha servia para ouvirmos quando jantávamos. Gostava de ouvir a
tal Hora do Brasil.
Pela manhã, corria quatro quilômetros com meu irmão até uma pequena escola
na Fazenda do Seu Malaquias. Minha professora dona Niquinha era muito brava
e todos os alunos tinham medo dela. Mas no fundo sabia que ela se preocupava
em que todos nós aprendêssemos para no futuro termos outro tipo de vida que
não aquela da roça “braba”.
Quando retornava, comia uma pequena refeição composta de um pouco de
feijão com abobora e de vez em quando um peixe ou uma seriema que meu pai
caçava. Não reclamava. Satisfazia-me com um prato e não pedia mais. Nasci
nesta vida e não conhecia outra. Sempre estava às tardes na capina com meus
pais.
Meu nome é Tãozinho e tenho 13 anos. Sou alto, bem magro, ainda tenho todos
os dentes, pois escovo sempre com uma escova que havia ganhado na escola.
Não tinha pasta de dente e usava uma pequena planta que minha mãe fervia e
deixava de molho até virar uma pasta. Era boa. Deixava sempre um frescor na
boca.
Aos domingos minha família ia sempre à fazenda do seu Malaquias para assistir
a jogos de futebol, pois sempre tinham times visitantes para jogar com os
empregados da fazenda. Ali tinha oportunidade de brincar com vários meninos
onde jogávamos peão, finquinho e bolinhas de gude.
Era uma vida simples. Não conhecia outra e gostava de tudo que fazia. Nunca
reclamei e sempre tinha um sorriso nos lábios. Meu irmão mais novo, com nove
anos era diferente. Ficava sempre raivoso, quase não ria, mas ele era meu
grande amigo de todas as horas.
Meu brinquedo preferido era um caminhão que fiz com uma lata vazia de
goiabada e com quatro carretéis que achei na fazenda do seu Malaquias.
Gostava de puxar o carrinho quando estava sem fazer nada. Tinha também uma
flauta que fiz de bambu, e tocava sons inteligíveis que ninguém gostava.
Quando meus pais matavam um porco, e não era sempre, minha mãe limpava a
bexiga e depois de cheia de ar deixava secar. Eram excelentes bolas de futebol.
Eu e o meu irmão brincávamos muito a noitinha.
No ano passado meu pai me levou até a cidade de São Quirino. Tinha ido outras
vezes, mas era bem pequeno e não me lembrava de nada. Fiquei abismado com
as ruas, as casas e perplexo com a igreja, uma torre alta, sinos e dentro um
silencio de fazer medo. Vi a estátua de Jesus em um canto, e assustei-me com
tanto sangue. Meu pai e minha mãe sempre contavam a vida de Jesus.
À tarde fomos a um cinema. Não conhecia. Assustei com os tiros, era um filme
de faroeste. Não entendia bem, pois falavam em uma língua estranha. Mas adorei
o filme e dos pirulitos que meu pai comprou. Depois não voltamos mais a
cidade.
Numa sexta feira quando retornava da escola com meu irmão, vi dois ônibus se
aproximando da fazenda do seu Malaquias. Dois homens vestindo uma roupa
caqui com chapéus esquisitos desceram e conversaram longamente com seu
Malaquias. Fiquei refletindo quem eram, porque suas calças eram curtas e
porque aqueles meiões. Quem sabe eram jogadores de futebol.
Fiquei ali parado com meu irmão olhando e imaginando quem estaria nos
ônibus. Havia muita algazarra e muita cantoria que eu não entendia. Após alguns
minutos os ônibus tomaram rumo de nossa casa. Cortamos caminho pelo
córrego das Antas e chegamos antes dos ônibus.
Não foi preciso ir muito longe. Logo vimos os ônibus parados próximo ao
córrego e distante uns 300 metros do rio das Flores. Era um descampado e
sempre pensei que meu pai poderia fazer um campo de futebol. Bem perto havia
um grande bambuzal e mais atrás a mata da fazenda.
Uma meninada sem tamanho desceu do ônibus e fizeram fila igual na escola. Só
que estavam durinhos e na frente um com um pau e uma bandeira amarrado.
Todos de chapéu e também de roupa caqui com um lenço no pescoço. “Diacho”
o que seria aquilo pensei.
Logo todos se abraçaram e começaram a gritar. Gritaram e voltaram para as
filas. Depois o homem mais velho mexeu com os braços e todos fizeram uma
corrida até ficaram em uma espécie de roda. Outro homem já havia fincado um
pau maior e amarraram uma bandeira que sabia ser de nosso pais.
Achei bonito tudo aquilo. Ficaram com os dedos na testa e cantaram o nosso
hino. Estava perplexo com tudo aquilo. Zezé o meu irmão me cutucou e disse
que era hora do almoço e a mamãe iria brigar. Não queria sair dali, mas fui
correndo com ele, almocei e expliquei ao papai o que tinha visto e se ele me
deixava ficar lá olhando.
Meu pai era muito compreensivo. Concordou e saí correndo com o Zezé até
onde estava a meninada. Quando cheguei lá eles tinham feito um cercadinho, e
dentro tinha barracas de lonas e vários bambus. Vários deles estavam cortando
no bambuzal e montavam mesas, cadeiras e outras armações que não entendi.
Chegamos mais perto deles e vi um com o pau e a bandeira na mão que se
aproximou de nós. Cumprimento-nos e disse que eram escoteiros da capital. Se
já conhecíamos. Disse que não e tentou explicar o que era. Não entendi bem,
mas achei bacana tudo o que ele me dizia.
Cada turminha se chamava patrulha tinha seu cercadinho que ele dizia ser a
casa deles enquanto estivem acampados. Os homens eram chamados de chefes
e tinham também o cercadinho deles. Eles fizeram um fogão de barro (muito mal
feito) e expliquei a melhor maneira de usar o barro com pequenos pedaços de
madeira para fortalecer.
Fiquei ali a tarde toda. Convidaram-me para jantar e agradeci. Fui até em casa,
era hora do meu banho e quando estava no rio me lavando ouvi vários gritos.
Olhei para ver o que era e vi um deles quase no meio do rio (não era largo)
gritando e mexendo com os braços. Vi que estava afogando.
Eu era um bom nadador e sabia como agir. Nadei até ele, peguei por traz e puxei-
o até a margem. Logo os chefes e vários escoteiros apareceram. Deitaram-no de
costa e apertaram sua barriga. Um deles deu um beijo varias vezes e o menino
voltou a respirar (respiração artificial boca a boca).
Abraçaram-me, disseram que era herói e coisa e tal. Não entendi nada. Tirar um
afogado do rio era obrigação de cada um. Conversaram com meu pai e pediram
para eu participar com eles até o domingo. Nunca imaginei que isto pudesse
acontecer. Zezé não quis. Estava com medo.
Mamãe me colocou a melhor roupa e fui com eles. Ensinaram-me como ficar na
patrulha, os apitos, como correr em fila, os sinais que o chefe fazia. Não
entendia muito bem, mas olhava para os da frente e não era difícil participar. O
chefe apitou e corremos até o chefe que mandou ficarmos em circulo.
(chamavam ferradura e da ferradura nosso burrinho não tinha nada)
À noite, após a janta que jantei com eles (o cozinheiro deles cozinhava mal prá
burro!) fizeram uma brincadeira muito gostosa. Rezaram o Pai Nosso e foram
dormir. Eu fui para minha casa prometendo estar lá bem cedo. Foi uma noite
linda, não conseguia dormir e só pensava no sábado com eles, os meus novos
amigos.
Cheguei com o dia clareando. Estavam todos dormindo. Fiquei ali sentado na
grama, olhando suas armações (alguma bem feitas outra não) até que quando o
sol já estava no alto eles levantaram correndo, cada um foi fazer uma coisa e o
cozinheiro foi fazer o café. Ajudei a ele com o fogo e de uniforme tomamos café
juntos com um pão dormido. Mas tinha manteiga biscoitos e adorei tudo.
Logo um apito longo e todos ficaram de frente ao seu cercadinho. O Monitor me
disse que era a inspeção. Os chefes chegaram, gritaram e cumprimentaram os
chefes. Cada chefe ficou olhando dentro e fora do cercadinho. Naquele momento
nada estava entendendo, mas achava bonito e gostava de estar na fila durinho
como eles.
Assim passou o dia. À tarde fizemos um jogo na mata. Cada monitor levava uma
bússola. Disseram que o chefe escondeu um tesouro nela e com um papel
desenhado quem achasse o tesouro ganhava. Achar um tesouro na mata era
complicado. Eu conhecia bem ela e nunca vi nenhum tesouro lá.
Eles se assustaram com uma cobra pequena. Era uma suçuarana que não fazia
mal a ninguém. Peguei-a com a mão e mostrei. Não quiseram pegar. Um dos
monitores encontrou o tesouro. Era uma caixinha cheia de chocolates.
Distribuíram entre todos. Adorei o chocolate. Não lembrava quando tinha
comido um.
A noite foi a mais linda da minha vida. Acenderam um fogo e em volta dele
cantaram, contaram piadas, juntos como teatrinho da escola brincavam e
cantavam. Mostraram umas palmas esquisitas.
Depois fizeram um círculo e cantaram uma musica muito bonita. Muitos
choraram. Diziam que não era mais que um até logo, não era mais que um breve
adeus e que bem cedo junto ao fogo, nos tornaríamos a nos ver. Lembrei que no
dia seguinte eles iriam embora. Chorei também. E Chorei muito.
No domingo logo após a inspeção começaram a desmontar as barracas e
algumas construções que chamavam de pioneirias. Após subirem a bandeira foi
feito outra brincadeira chamada de Escalpes. Enfiamos o lenço na cintura e
tentavam tomar o lenço um dos outros. Como era um terreno grande não foi
fácil, mas consegui tirar seis lenços.
À tarde, após o almoço (pedi o cozinheiro para fazer e adoraram minha comida)
guardaram tudo no ônibus. Só ficou o mastro com a bandeira. Formaram e o
chefe me chamou a frente com o monitor. Disse para ficar em posição de sentido
e repetir com ele as palavras:
- Prometo, pela minha honra, fazer o melhor possível para – Cumprir o meu
dever para com Deus e minha Pátria, ajudar o próximo em toda e qualquer
ocasião e obedecer a Lei do Escoteiro. Ao final mandou baixar o braço e
explicou as leis escoteiras.
Caramba! Como era bonito tudo aquilo. Não estava aguentando vi que o choro
estava chegando e não seria bonito chorar ali. Ele se aproximou de mim e
colocou um lenço deles no meu pescoço com um anel. Disse que dali em diante
eu era um Escoteiro Honorário, com todos os direitos de pertencer ao 825º
Grupo Escoteiro Leão do Norte. Meus olhos agora estavam cheio de lágrimas.
Juntaram todos com os braços ao redor do pescoço de cada um e gritaram alto:
- Só os valentes entre os valentes são escoteiros. Temos orgulho de nossa
patrulha, de nossa tropa de nosso grupo! Um por todos, todos por um. Anrê,
Anrê, Anrê. Para mim, um Escoteiro Honorário foi como um lindo sonho real que
estava acabando.
Abraçaram-me, despediram entraram no ônibus e se foram acenando. Eu fiquei
ali, parado por muito tempo. A noite chegou e eu continuava ali. Ainda em pé.
Não queria sair. Não podia abandonar a mais incrível aventura de minha vida.
Como fantasminhas eu os via correndo cantando e brincando. Tudo que
aconteceu ficavam como lembranças vivas em minha mente.
Minha mãe e meu pai vieram me buscar. Não queria ir. Achava que podia
esquecer quando saísse do calor que deixaram. Fui para a casa chorando. Dormi
abraçado com meu lenço de Escoteiro Honorário. Nunca esqueci aqueles três
dias que duraram para sempre em minha vida.
Nunca mais os vi. Hoje, morando em Sesmaria, uma cidade a beira do rio das
Flores, tenho uma pequena loja de tecidos e lembro-me daqueles dias como se
fossem agora. Olhos meus três filhos ainda pequenos e desejo para eles tudo
aquilo que tive em três dias, uma vida, uma história para eles.
Li muito sobre os escoteiros. São valentes, são heróis, aprendem a ser grandes
homens de bem. Li também que sabem o que é ter caráter, honra e tudo mais. Eu
sei bem o que é isto. Foram três dias apenas, mas também aprendi tudo isto. O
melhor, a irmandade. Foram meus irmãos mesmo sem ser um deles.
Quem sabe meus filhos um dia também terão esta oportunidade?
E quem quiser que conte outra...
Se tiveres de chorar por algum motivo que consideres justo, chora trabalhando
para o bem, para que as lágrimas não se te façam inúteis. * Nos dias de
provação, efetivamente, não seriam razoáveis quaisquer espetáculos de bom
humor, entretanto, o bom ânimo e a esperança são luzes e bênçãos em qualquer
lugar. *
Quando os sonhos não se realizam
Daqui a alguns anos estará mais arrependido pelas coisas que não fez do
que pelas que fez. Solte as amarras! Afaste-se do porto seguro! Agarre o
vento em suas velas! Explore! Sonhe! Descubra!
(Mark Twain)
Acho que o nome dele era Matheus, não tenho
certeza. Mas todos o chamavam de Miltinho, porque
não sei. Nunca me disseram. Quem sabe foi seu
avô, pois assim era chamado e como ele tinha todo
o jeito dele, nada como manter o apelido carinhoso.
Era filho único e com 12 anos já estava no sexto
ano do fundamental. Estudava em um bom colégio pago e mesmo não
sendo um estudioso por natureza, não tinha por que reclamar de suas
notas. Não diferia muito dos jovens de sua idade. Gostava de futebol e
sempre que podia, ia para a quadra do colégio bater uma bola com os
amigos. Também não era um futuro craque.
Em seu bairro tinha alguns amigos, não muitos. A noite se encontrava com
eles para um papo ou até uma brincadeira qualquer. Nos fins de semana
nem sempre saia com seus pais. Sempre ia até uma pequena quadra
esportiva, próximo a sua casa e lá passava as tardes de sábado ou
domingo.
Seu pai trabalhava como gerente financeiro de uma cadeia de lojas e nunca
chegava em casa antes das 9 da noite. Sua mãe, dona de casa era quem
mais estava junto a ele no dia a dia. Nunca seu pai o levou para passear
nos finais de semana e pouco interessava pela sua vida não perguntando
nada quando se encontravam.
Um tarde de um sábado, vindo da quadra de futebol, viu três escoteiros
vindos em sua direção. Já os tinha visto antes, mas não sabia como eram o
que faziam e onde se encontravam. Passaram por ele conversando entre si
e dobrando a esquina desapareceram como fumaça no ar. Ele ficou ali
meditando, meditando e ponderou o que seria aquilo e como fazer para
participar.
Comentou com sua mãe sobre sua intenção. Ela não disse nem sim e nem
não. Resolveu investigar por conta própria. Descobriu o local deles. Era um
colégio a oito quadras de sua casa. Foi lá em um sábado. Viu muitos
meninos e meninas brincando, correndo e um chefe apitando. Não
entendeu muito, mas pelo sorriso estampado no rosto de todos, achou que
devia ser bom.
Ficou ali até alguém de uniforme aparecer perto dele e perguntou como era
para participar. O encaminharam para a sala onde estava o que devia ser o
chefão. Ele o olhou de alto a baixo. Perguntou por que queria ser escoteiro.
Ele não soube responder, mas disse que queria experimentar.
Gentilmente explicou o que fazia um escoteiro. Suas incumbências, suas
atividades e muita responsabilidade quando fizer sua Promessa Escoteira.
Encantou quando ouviu como eram os acampamentos, as excursões às
viagens de longa distancia a grande fraternidade mundial que sempre se
encontra nos Acampamentos Nacionais, Regionais ou Distritais.
Emocionou-se ao saber o que era um Jamboree e não conseguia imaginar
mais de 10.000 escoteiros reunidos e acampados em um só local. Ficou
sabendo de um tal General Inglês que foi o fundador. Soube que mais de
150 países possuíam grupamentos escoteiros.
Pensou que seria bom pertencer a uma patrulha. Jogar com eles. Tomar
decisões, vida em grupo imaginou. Já imaginava ter seu distintivo, fazer
sua promessa, mas logo acordou do seu sonho, pois era apenas narrativa
do Chefe para ele. Precisava tomar uma serie de providencias antes de sua
aceitação.
Recebeu uma ficha de inscrição que devia ser preenchida pelo seu pai e
sua mãe. Tudo bem. Ele foi para a casa sonhando acordado e quase se
perdeu no retorno, tomando um rumo desconhecido.
Entregou a ficha a sua mãe. Com o pai achava difícil de falar, não se
entendiam bem. Quando a noite surgiu viu o barulho do carro. Estava
chegando do trabalho. Um comprimento seco, um banho, o jantar e logo foi
para a sala ver o jornal da noite na TV. Já estava desistindo. Sua mãe se
aproximou e sussurrou para o pai o desejo do filho. Entregou a ele a ficha
de inscrição para sua assinatura.
Ele a principio não estava entendendo. Riu e veio falar com ele. Parabéns
disse agora você escolheu bem. No próximo sábado irei com você até lá
para conversar com o responsável. Ele não acreditou e seu pai o levou até
seu quarto (o dele) e tirou de dentro de uma mala antiga, um uniforme de
escoteiro o lenço e o chapéu e o presenteou. Era o seu quando jovem.
Participara por quatro anos. Fora monitor e primeira classe. Mudaram de
cidade, onde foram não havia grupos. Mas ele não tinha esquecido.
Sempre pensou em colocá-lo em um Grupo Escoteiro, mas não sabia onde
e ele não tinha se manifestado a respeito. O tempo foi passando e ele se
esqueceu de tudo. O trabalho o absorvia muito. Pediu desculpas ao filho.
Disse que iria apoiá-lo e acompanhar em todas as situações que se
fizessem necessárias.
Foi um dia mais feliz de sua vida. Foi para o seu quarto e colocou o
uniforme na cama. Ficou ali a admirá-lo. Não se conteve. Vestiu a camisa,
colocou a calça curta, devagar colocou os meiões. Olhando no espelho
colocou o lenço. Ainda não sabia como colocar. Como gravata ou mais
longe do pescoço. Viu que o uniforme era grande para ele. Não se
importou. Achou que era o máximo. Quando colocou o chapéu ficou
aparvalhado. Estava lindo, assim o achava.
Durante a semana o vestia se olhava no espelho e sonhava. Era como
estivesse fazendo a promessa, acampando, junto a novos amigos, vivendo
em uma patrulha e ele contava nos dedos com o dia em que iria participar
pela primeira vez. Logo que o dia amanheceu, acordou e foi até a janela.
Sorriu para o sol e fez sua oração matinal agradecendo a Deus pela
oportunidade.
Saiu de casa para conversar com um amigo e contar para ele a novidade.
Ao atravessar a rua, foi pego por um carro a toda a velocidade, fugindo da
policia que vinha logo atrás. Foi arremessado à grande distancia. Ficou
inconsciente.
Levado ao hospital ficou em coma dois meses na UTI. Saiu do coma, mas
sem movimentos no corpo, ficara paraplégico.
Durante um bom tempo não lembrou mais de seus sonhos. Agora eram
outros. Pensou que com o tempo seus movimentos voltariam, ele não
desanimou e o tempo passou.
O fim da historia fica para outra oportunidade.
E quem quiser que conte outra...
O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e
semeando, no fim terás o que colher.
Soren Kierkergaard
RESPEITÁVEL PÚBLICO! COM VOCES... O PALHACINHO JUJÚ
O grande homem é aquele que não perdeu a candura de sua infância.
Provérbio chinês
Prefiro contar histórias alegres. As tristes me trazem desânimo e fico um pouco
depressivo. Minha mente sofre à medida que escrevo e muitas vezes as
lágrimas aparecem suaves e rolam pelo meu rosto. Não paro de escrever.
Continuo. É a hora que não posso perder a narrativa. Estão rindo de mim?
Paciência. Sou emotivo e isto é que me fez acreditar muito no Movimento
Escoteiro.
Não sei a impressão do que irão ter quando terminarem de ler este conto. Claro
se forem até o fim. Este não é um conto cheio de alegrias, e nem um conto de
fadas. Ainda não sei se vai ter um final feliz. É possível que sim ou talvez não.
Finalmente, será que vale a pena escrever histórias aonde não vai se aproveitar
o conteúdo a não ser chorar? Claro, a humanidade não é cheia de histórias
infelizes? Onde os seres sofrem e sabem que isto faz parte de suas vidas?
A cada dia, a cada hora nos perguntamos o porquê de tudo isto. Porque é
assim? Não podia ser de outra maneira? – Rezamos, pedimos a Deus uma
mudança, uma alteração, no entanto a verdade é nua e crua. Tudo tem uma
razão de ser.
Em cada esquina encontramos pessoas taciturnas, caladas, deprimidas,
andando como se fossem zumbis, pensando em seus problemas e como
resolvê-los. Acredito que em também sou assim. Não seria lindo se todos
sorrissem, dissessem bom dia! Boa tarde! Como Vai? Mas isto não acontece. A
cidade não tem culpa. A culpa é nossa.
Não sei se este conto aconteceu. Acredito que sim. Estou pensando em não
narrar para vocês. Irão duvidar. Iram achar que inventei e tirei de dentro de uma
cartola de um mágico qualquer. Entretanto as mágicas são sempre como os
palhaços, sabem nos encantar e sorrir com suas maneiras hilárias. Sabem como
fazer-nos rir. Acredito que vocês já leram ou ouviram em algum lugar que os
palhaços também choram.
Mas vamos lá. Justino nasceu dentro do Circo “Mundo Mágico”. Seus pais de
descendência húngara, eram malabaristas, conheceram e se casaram dentro do
circo. Não sabiam outra maneira de ganhar a vida, e o amor àquela lona enorme
estava no coração, nas veias, na mente em todo o lugar do corpo. Seu número
não era incrível como se dizia na apresentação. Eram sempre aplaudidos e isto
era o bastante.
Possuíam um pequeno trailer e lá guardavam toda sua fortuna ganha no circo.
Poucas roupas, uma TV velha, um refrigerador a gás, algumas lembranças
adquiridas aqui e ali. Não tinham sonhos grandiosos. Nem conta em banco, nem
cartões de crédito. Sabiam que enfrentar o mundo fora daquela grande barraca
seria um salto gigantesco. Acreditavam não estar preparados para isto.
Sua mãe não acreditou quando ficou grávida. Seu pai fez uma festa, distribuiu
charutos e a noite dançaram e dançaram. Valsas vienenses, polcas e até um Fox
trote, sem esquecer alguns sambas que desconheciam e que amigos trouxeram
em discos de vinil para tocar em sua vitrola que funcionava perfeitamente.
Finalmente Justino nasceu em uma noite próxima ao natal. O Circo ficou em
festa e como presente não houve cobrança de ingressos naquele dia. Claro,
mesmo assim o Circo não lotou. Lá estavam às mesmas pessoas, os mesmos
amigos. Já estavam naquela cidade há meses. Sem dinheiro não havia
possibilidade de ir para outra.
A princípio Justino sorria, pouco chorava, e seus pais tinham nele toda a alegria
do mundo. O tempo foi passando e ao completar dois anos, viram que Justino
não conseguia andar. Tentaram tudo e nada. Levaram Justino a um médico que
diagnosticou uma doença rara que não era conhecida. Suas pernas não estavam
atrofiadas. Assim mesmo Justino jamais iria andar. Justino sentia dor, sentia
vibração, mexia com os dedos e por mais que quisesse não conseguia se firmar.
Seus pais não desistiram. Fizeram todo o tipo de terapia. Gastaram o que tinham
e o que não tinham. Sem melhoras. Justino fez sete anos. Vivia em uma cadeira
de rodas e os que não sabiam de sua deficiência viam ali um menino
encantador. Ele cantava, girava na sua cadeira como se fosse um malabarista. E
tinha um dom: - Se pintava de palhacinho e se transformava no mais alegre
contador de piadas.
Deixaram-no um dia se apresentar aos expectadores. Foi um sucesso. Ficou
conhecido e aos sábados e domingos e a
criançada enchia as arquibancadas, batiam
palmas, pulavam, gritavam – Viva o palhacinho
Jujú! Para Justino aquilo era o máximo em sua
vida.
Justino por fora, demonstrava uma força
incrível. Era admirado. Nunca reclamava de
sua situação. Seus pais acreditavam que ele
tinha a plena felicidade. Mas infelizmente não sabia o que Justino sentia por
dentro. O que se passava no coração daquele menino alegre e bonachão.
Justino nada dizia. Aprendeu com a vida que conviver com seus medos, suas
sombras e seus sentimentos era a melhor maneira de demonstrar para si próprio
que podia vencer. A noite, em um cantinho do circo, se recolhia em uma sombra
e chorava. Chorava por não poder correr, brincar como qualquer criança e ir à
escola normalmente.
Esta foi sua primeira desilusão. Tentaram várias escolas próximas ao circo para
matriculá-lo. Não foi aceito. Mostraram dificuldades de locomoção dentro da
escola, os professores não estavam preparados e afinal ele era um circense sem
ponto fixo. Para matricula havia necessidade de mostrar o tal comprovante de
endereço e o do circo não servia.
Quando se aventurava a sair das cercanias do circo, nenhum menino, nenhuma
turminha o aceitava. O olhavam com piedade, demonstravam compaixão ou
mesmo gritavam piadinhas sem nexo. Coisa que Justino detestava. Justino
voltava para seu ponto de reunião, atrás do trailer e ali chorava. Rezava pedindo
a Deus uma vida diferente.
No dia seguinte, entretanto, quando a noite chegava, lá estava o Palhacinho Jujú
a fazer a plateia sorrir, cantar, brincar como nunca. Agora os aplausos não
faziam mais a alegria de Justino. Sentia-se feliz ali e infeliz depois. Tentava
demonstrar para os pais que era um menino normal. Eles, entretanto estavam
preocupados.
Justino fez onze anos. Houve festa. Não grande desta vez. Uns poucos amigos
do circo e alguns jovens que sem Justino saber, seu pai pagou para eles
participarem. Pediu segredo. Não contariam para ninguém. Mas Justino viu que
não se sentiam a vontade e nem se enturmou.
Justino naquele dia, no seu canto predileto chorou e chorou. Pediu a Deus que o
levasse. Não podia continuar assim. Só seus pais e amigos do circo o amavam.
Mais ninguém. Estava aprendendo a ler, escrever e já fazia a matemática como
ninguém, mas graças ao senhor Josué, proprietário do circo que exigia muito
dele.
Olhem meus amigos. Fico deprimido quando conto esta história. Uma mágoa
forte bate em meu coração. Lagrimas aparecem. Fico pensando se devo
continuar contado a vocês. Tenho dúvidas. Não sei se vai trazer algum benefício.
Mas afinal vocês são escoteiros e os escoteiros são amigos de todos e irmãos
dos demais escoteiros.
Tenho que prosseguir. A Lei do Escoteiro é clara. Alegria e sorrir nas
dificuldades faz parte da nossa rotina. Vou então continuar com mais uma parte
da fábula que pode ou não ser verdadeira. Cada um acredite se quiser!
No dia seguinte, logo cedo Justino foi até a uma ponte onde passava o Trem
rápido da manhã. Ficou ali pensando se não seria melhor levar sua cadeira de
rodas até ao meio da ponte e esperar o trem. Quem sabe era a melhor solução?
Viu ao longe uma luz branca, vindo em forma de bruma em sua direção. Ficou
com medo. Uma mulher linda, com estrelas em sua volta disse que não. Não era
a solução para Justino.
Justino ficou cismado, deu meia volta e voltou “chusmado” para o circo. Não
pensou mais em morrer. Mas a tristeza continuava funda em seu coração.
Chorar não parou. Isto era o que o ajudava a enfrentar as charadas do dia a dia.
Naquele sábado Justino não estava querendo se apresentar. Falou para seus
pais que o demoveram da ideia. Justino com dificuldade fez sua caricatura de
Palhacinho Jujú e mais triste que um palhaço não devia ser, se apresentou no
picadeiro.
Justino viu na arquibancada, um grande numero de jovens, meninos e meninas,
alguns de azul, outros de caqui, com chapelão esquisitos que o aplaudiram com
uma palma diferente, incrivelmente bonita, que tocou no fundo do coração de
Justino.
Justino não sabia o que era e de onde seriam, mas se esforçou muito para que
eles se divertissem com o Palhacinho Jujú. Mais palmas, mais Justino se
transformava. Contou as mais lindas piadas. Até se arriscou no número do barril
que rola e eles “rolaram” de rir. Justino queria continuar. Encontrou de novo sua
vontade de viver. No entanto outra apresentação viria a seguir.
Saiu do palco pela coxia e ali atrás das cortinas ficou olhando a meninada. Eram
alegres, batiam palmas diferentes, cantavam canções esquisitas e aplaudiam
com uma sinceridade que tocou fundo o coração de Justino. Porque não era
também um deles? Perguntou a si próprio Justino.
A noite escura sem luar veio trazer de novo a realidade a Justino. A alegria do
momento mágico se foi. De novo foi para o seu canto chorar. As lágrimas
rolavam e Justino ficou ali horas e horas engasgado, não compreendendo
porque tinha que ser assim.
Ele dormiu e sonhou. Um sonho lindo. Um campo com arvores aqui e ali, todos
correndo, bandeiras ao vento, cantavam o Rataplã, e ao longe avistaram um
acampamento, cheio de meninos, correndo também, brincando, jogando, e viu
passar em sua mente toda a felicidade que um escoteiro que tem pernas sadias
pode ter.
Acordou. Pensou que seu sonho era realidade e iria acordar em uma barraca, ver
o campo verdejante, naquelas campinas onde se avistava um rio com lindas
cascatas, brilhantes, e ali junto com seus novos amigos, iria também brincar,
jogar, subir em cordas, atravessar os rios, matas, florestas!
Acordou sim. No seu trailer, na sua cama de sempre. Sua mãe a fazer o café de
sempre. Sua cadeira de rodas ao seu lado. Seu pai a cantarolar uma canção
húngara como sempre o fizera. A realidade bateu firme em Justino. Lágrimas
correram em seu rosto. Uma amargura profunda bateu forte no coração de
Justino.
Não deixou que seus pais vissem sua tristeza. Empurrou sua cadeira até a mesa,
só tomou o café. Não conseguia engolir o pão. Sua garganta não deixava. Como
todos os dias seu pai o levou até fora do trailer e ali ficou a olhar para o sol, que
dizem brilhar para todos, mas que não brilhava para o desafortunado Justino.
Naquele dia, ele não foi passear pelos arredores como fazia sempre. Ficou ali
taciturno, silencioso e mudo para o mundo que não gostava dele. Uma algazarra
se formara no circo. Não entendeu bem. Chegaram vários adultos uniformizados
de caqui, com chapelão na cabeça, a procura do Palhacinho Jujú. Seus pais se
entreolharam e ouviram o que os chefes diziam.
Falavam que o Grupo Escoteiro votou a favor de levar o Palhacinho Jujú até o
Grupo e homenageá-lo. Justino continuava não entendendo. Quando o viram
vieram e o abraçaram. Diziam que Justino era um grande Escoteiro sem o saber.
O queriam na abertura da reunião e ali entregarem para ele um certificado de
gratidão.
Justino não sabia o que dizer. Seus pais concordaram. Ficava a critério de
Justino decidir se ia ou não. Ele estava perplexo. Não queria de novo sorrir e
depois voltar às lides de suas tristezas noturnas sem saber se o dia de amanhã
continuaria a ser o mesmo que sempre foi para ele.
Mas como ele experimentara uma alegria que nunca teve quando no palco e foi
aplaudido por eles, Justino achou que devia ir. Carecia de mostrar a todos que
ele também era forte, não tanto como eles e podia sem sombra de dúvida
rodopiar sua cadeira e fazer o que eles faziam.
Justino foi. Era um sábado à tarde. Estavam lá dezenas de meninos e meninas.
Todos acercaram dele e fizeram mil perguntas. Quando se formaram em volta de
um mastro, Justino também se formou perto de um chefe. Todos não tiravam os
olhos dele. Quando a Bandeira Nacional foi hasteada, Justino chorou. Agora
diferente. De Alegria.
Após a cerimônia chamaram Justino ao meio da ferradura e entregaram a ele um
certificado de gratidão do Grupo Escoteiro. Uma honra que não era entregue a
qualquer um. Justino se emocionou. Um convite de um monitor o fez ficar
indeciso, mas Justino não tinha medo. Aceitou. Naquele dia se tornou um Lobo.
Mais um na patrulha.
Divertiu-se como nunca. Jogou com eles como se tivesse duas pernas. Cantou
com eles. Aprendeu a dar nós em árvores, a fazer sinais, o que era uma patrulha,
como era o Grupo Escoteiro. Uma grande fraternidade que se expandia pelo
mundo todo. Justino vibrava em todo o seu ser.
Final da reunião. Justino sabia como era. Sempre foi assim. Agora tudo acaba
voltar para casa. A rotina não muda, pensou. Sua mente procurava uma resposta
que não vinha. E se no sábado seguinte pudesse voltar de novo e viver com
eles? Sonhar em ser um deles? Um sonho impossível. Ali não cabia Justino. Era
pobre, morava longe e a cadeira de rodas era um empecilho enorme.
Seu caminho era continuar sua vida de Palhacinho Jujú. Agora não se
importava. Achava que valeu aquele dia. Ele sabia que tudo sempre acaba ou em
vitória ou derrota. Não era um derrotado. Foi, viu, amou, participou e claro,
acabou! Tudo sempre acabava para ele. Sempre foi assim.
Voltou para casa, não triste, mas pensando em tudo que viveu junto aqueles
formosos escoteiros e escoteiras. A noite foi para seu cantinho onde chorava,
mas desta vez não chorou. Afinal Deus lhe deu uma oportunidade única. Ser
Escoteiro por um dia. Isto era muito mais do que tinha sonhado.
Ficou ali por longo tempo vendo as estrelas, alguns cometas que passavam com
pressa, admirando a beleza do infinito, mostrado ali naquele palco iluminado,
que não era o seu circo, mas a beleza que Deus produziu para que os homens
pudessem sentir quão pequenos eram diante de tudo.
Os dias passaram e no outro final de semana uma enorme surpresa. De novo
apareceram os mesmos chefes que o homenagearam. Disseram aos seus pais
que o Grupo Escoteiro votou e por unanimidade resolveram adotar Justino
como um escoteiro. Não haveria despesas. Eles iriam buscá-lo e trazê-lo. Tudo
por conta do Grupo. Meu Deus! Seria possível?
Seus pais ficaram em dúvida. Justino também. Mas o coração do Palhacinho
Jujú falou mais alto. Aceitou e tornou-se um Escoteiro da Patrulha Lobo. Fez
amigos, amou cada um deles. Cresceu na patrulha. Foi segunda classe e nos
acampamentos demonstrava uma agilidade sem tamanho. Ninguém notava que
o Palhacinho Jujú andava em uma cadeira de rodas.
Um belo dia, em um acampamento em Lagoa Dourada, acordou não viu ninguém
e sua cadeira de rodas tinha sumido. Olhou para todos os lados e alguém
parecia empurrá-lo para cima e para frente. A mulher da nuvem branca e as
estrelas cintilantes estava ali com ele sorrindo e dizendo para não desistir.
Andou com dificuldade, mas andou. Todos aplaudiram. Estavam escondidos e
pretendiam fazer que Justino fizesse o que tinha de fazer.
Alguns disseram ser um milagre. Outros que Justino era um forte. Mas eu prefiro
dizer que o espírito escoteiro fazia de Justino um grande e formoso escoteiro. E
foi isto que o fez voltar a andar.
Era gentil, educado, fazia amigos com facilidade. Admirado por todos pelo seu
esforço pessoal. Sua promessa foi dita com sinceridade e a Lei Escoteira era
tudo para ele. O escotismo faz coisas maravilhosas que só os que creem sabem
o que estou dizendo. Duvida-se pergunte a quem já foi ou é escoteiro.
Justino voltou a andar normalmente. Estudou, entrou em uma faculdade, se
formou, se tornou um homem com grandes qualidades morais. Trabalhando
comprou um novo e enorme trailer para seus pais. Eles não queriam uma casa.
O trailer era onde se sentiam bem. Justino ali continuou a morar. Não trabalhava
mais no circo, mas era ainda muito querido por todos.
Peguei vocês hein? Acharam que o final seria a morte de Justino ou seu
desencanto com o mundo? Engano. Existe sempre um final feliz. Basta ver a
história como uma verdade, como uma lição de vida para nos. Tenho certeza que
quando leram sobre escoteiros no circo, já sabiam que Justino encontraria seu
caminho e sua felicidade.
Claro, chorar é bom e como dizem faz bem a saúde. No entanto acreditar em um
final feliz é melhor ainda. Eu gosto de lembrar a história de Justino. Conheci seu
circo, seus pais, e Justino foi para mim um grande escoteiro e um grande
exemplo. Quando adulto voltou às lides escoteiras como Escotista. Foi um
grande chefe.
Hoje, o circo não existe mais. Todos se foram. Até Justino. Pena. Lembro-me
ainda das piadas, da maneira de interpretar do Palhacinho Jujú. Mas em cada
coração daquela juventude do Grupo Escoteiro que conviveu com Justino, bate
forte ao lembrar-se do Palhacinho Jujú. A emoção de vê-lo andar nunca será
esquecida. Eu sei disto. Não acreditam? Eu estava lá!
E assim termina a historia do Chefe Justino, ou melhor, do Palhacinho Jujú.
E quem quiser que conte outra...
"A alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido.
Não na vitória propriamente dita.”
Mahatma Gandhi
O CHAPÉU DE TRES BICOS
♪♪O meu chapéu tem três bicos,
Tem três bicos o meu chapéu!
O meu chapéu tem três bicos,
Tem três bicos o meu chapéu. ♪♪
“Velha canção escoteira do nosso chapéu de abas largas”
Tinha história aquele Chapéu com Três Bicos. Pertenceu a três amos diferentes.
Sempre os serviu lealmente e por cada um deu tudo o que podia para ser um
autêntico Chapéu Escoteiro com Três Bicos. Poderia até dizer que em sua
biografia adquiriu vida, teve momentos alegres e momentos tristes. Amparou
impacto, tempo ruim e em todas as ocasiões se orgulhou de si próprio do
serviço ao próximo.
Hoje, está ali, pendurado na parede, já velho, desbotado, ainda com um dono
que não o usa mais. Quem sabe, mesmo velho e apagado poderia voltar à ativa
novamente. Afinal ele ainda se considera um autentico Chapéu escoteiro com
Três Bicos. Sabe que foi substituído e não reclama por ter sido abandonado
depois de tantos e tantos anos. Seu atual dono dizia que sua aposentadoria
tinha chegado.
Poderia dizer que foi ele quem me contou sua história. Sei que não acreditam e
vão rir de mim. Afinal Chapéu com três bicos é Chapéu com três bicos. Não fala
não pensa é um objeto inerte e eu não teria como ouvi-lo. Falar então... Mas a
verdade é que sua história tão cheia de aventuras e grandes atividades
aventureiras não poderiam ser esquecidas.
Acreditem se quiserem. Foi num domingo chuvoso, estava eu olhando o dilúvio
pela janela, que caia aos borbotões na calçada da casa de um Velho Chefe que
visitava e ouvi o seu chamado. A princípio não vi ninguém, achei até ser
brincadeira do meu amigo. Depois com sua insistência, olhei e ele balançou
suas abas em minha direção. Estava pendurado em uma parede da sala, limpo,
abas retas e orgulhoso do que era.
Por favor, não riam! Juro que é verdade. Pelas barbas de Satã! (não sei se ele
tem barba). Ele queria desabafar. Ninguém o ouvia e achou que eu poderia ser
seu amigo e ter boa audição no que tinha a contar. Não era uma história das mil
e uma noites, claro que não. Afinal ele era um Chapéu Escoteiro com Três Bicos
e eu o poderia chamar de Chapéu de Três Bicos.
Tudo começou com seu primeiro dono. Vadinho. Um escoteiro que morava lá
pelas plagas do norte do estado. Entrou na tropa com onze anos. Para fazer seu
uniforme engraxava sapatos durante a tarde todos os dias de semana. Pela
manhã estava na escola. Conseguiu juntar o dinheiro necessário. Isto levou
quase cinco meses. Tempo que esperou para fazer a promessa, pois sem o
uniforme não poderia ter feito.
Não tinha o Chapéu Com Três Bicos. Aguardou uma oportunidade para comprá-
lo. Era difícil. Só estava a venda na capital de dois estados do país. Como buscá-
lo, fazer o pagamento, transporte seria uma epopeia digna de um “super
escoteiro”. Sabia que um dia iria ter um. Era calmo e ponderado. Esperou o
momento oportuno.
Quase todos os irmãos escoteiros da tropa possuíam um. Ele e mais dois
usavam um bibico, o que não lhe agradava muito. Sua mãe e seu pai tinham um
grande respeito por ele. Era estudioso, bom filho, um excelente escoteiro; A Lei
Escoteira era ponto de honra para sua ação diária.
Uma irmã de seu pai morava na capital de um daqueles estados. O pai escreveu
para ela. Sabia que a carta iria demorar e que somente através de um portador
poderia receber o Chapéu com Três Bicos. Recebeu uma resposta dois meses
depois. O endereço não batia. Pedia outro. Mandaram outra carta com um
número de telefone do Comissário Regional daquele estado.
Voltando ao Chapéu com Três Bicos, ele contou que nasceu em um dia qualquer
de março, lá pela década de 50. Seu pai, o Senhor Prada foi quem o fez com
muito carinho. Naquela época eram destinados somente aos membros do
escotismo. Sonhava no dia que teria um dono. Gostaria que fosse um ótimo
escoteiro que o mantivesse sempre limpo e com as abas retas.
Lembrou quando foi vendido a uma Loja escoteira. O colocaram no fundo do
bazar, embrulhado e esquecido. Outro Chapéu com Três Bicos ficara em
exposição. Assim ficou por lá mais de seis meses. O atendente da cantina um
belo dia, comentou sua venda. Ele explodiu em alegria. Afinal teria um dono e
poderia ajudá-lo em tudo que o Chapéu de Três Bicos pode fazer. Rezava para
ser um escoteiro com o espírito voltado para o bem.
Vadinho voltava de um acampamento de tropa. Cansado, (voltavam a pé), ajudou
sua patrulha a guardar a tralha que estava estocado na carrocinha. Quando
conseguiram comprá-la todos foram tomados por uma satisfação imensa, pois
agora levar e trazer o material de acampamento ficaria bem mais fácil.
Da sede até sua casa ainda tinha uma boa jornada. Ele estava acostumado.
Sempre fazia este caminho e os passantes e moradores já o conheciam de longa
data. Ao avistar sua residência, viu no portão da cerca de madeira, suas irmãs,
seu pai e sua mãe, e ficou intrigado.
Quando entrou em casa, viu em cima da sua cama, o seu novo Chapéu de Três
Bicos. Incrível! Extraordinário! Ria, cantava e abraçava a toda a sua família. O
Chapéu de Três Bicos também sorria. Gostou de Vadinho. Achou que seria
muito útil e dali em diante, também iria pertencer àquela família tão simpática.
No dia seguinte Vadinho procurou um marceneiro, para saber quanto seria para
fazer um porta chapéu. Tinha visto o Chefe com um, e viu que seria ótimo para
guardá-lo mantendo sempre as abas retas durante anos e anos. Combinaram o
preço e Vadinho trabalhou mais e mais engraxando sapatos para pagar sua
encomenda.
No primeiro sábado, orgulhosamente exibiu seu chapéu com três bicos a todos
os seus irmãos escoteiros. Agora sentia que estava bem uniformizado. O
Chapéu com Três Bicos também se orgulhava de seu dono. Fazia tudo para
protegê-lo do sol e da chuva, mas quando chovia Vadinho corria para um local
protegido para abrigar é claro o seu chapéu com três bicos.
Um dia, em uma atividade feita em uma serra próxima a sua cidade, passaram
por uma estreita trilha tendo ao lado um despenhadeiro de grande profundidade.
Um pé de vento o pegou de frente e seu Chapéu com Três Bicos vou para longe.
Deu para o ver caindo bem lá no fundo.
O Chapéu Com Três Bicos se assustou com aquilo. Nunca pensou que pudesse
acontecer. Não gostaria de acabar no fundo de um penhasco, molhado talvez a
rolar e correr por regatos e córregos, esquecido e se desmanchando lentamente.
Não. Não podia acontecer. Tinha certeza que Vadinho iria salvá-lo.
Vadinho de maneira nenhuma iria desistir do seu Chapéu com Três Bicos.
Mesmo contrário às sugestões da chefia, estudou como ir até ao fundo do
penhasco e resgatar seu Chapéu com Três Bicos. Voltou por dois quilômetros e
encontrou uma pequena trilha que descia até o fundo. Subiu córrego acima e
alcançou o ponto onde estaria o seu Chapéu com Três Bicos.
O Chapéu de Três Bicos viu Vadinho se aproximando. Permanecia em cima de
uma árvore e sabia que Vadinho não poderia vê-lo. Não podia deixá-lo ir embora.
Balançou, balançou, esperneou, se mexeu tanto que caiu próximo onde Vadinho
estava. Os dois, o Chapéu de Três Bicos e Vadinho deram urras de alegria.
“Anrê, Anrê, Anrê! Pró Brasil? Maracatu”. Pronto, o agradecimento tinha sido
realizado.
O Chapéu de Três Bicos ficou com Vadinho por mais de oito anos. Um dia ele foi
para outra cidade e presenteou seu Chapéu com Três Bicos a um novo
escoteiro. Não gostou do seu novo dono. Zito era desleixado, não tinha
interesse pelo Chapéu com Três Bicos, e fazia dele gato e sapato. Mesmo sem
uniforme, usava-o e o surrava com todas as intempéries possíveis.
Quebrou sua proteção das abas largas e o jogava de qualquer jeito em cima do
guarda roupa. Soube depois de um ano que Zito já não participava mais do
escotismo. Durante três anos ficou com Zito. Esquecido em um canto,
desprezado, sem nenhuma utilidade para um nobre escoteiro. Foi substituído
por um boné qualquer. O Chapéu com Três Bicos estava triste e magoado.
Um dia um tio de Zito viu o Chapéu com Três Bicos em cima do guarda roupa.
Perguntou a Zito se não o presenteava. Sabia que um chefe de tropa escoteira
seu amigo precisava de um. Como era pobre e sem condições financeiras não
tinha adquirido na capital. Zito é claro viu uma oportunidade de ganhar uns
trocados. O tio pagou o que ele pediu.
O Chapéu de Três Bicos vibrou com a mudança de dono. Ainda não sabia quem
era o terceiro que ia servir. Não importava. Estava cansado do abandono, da
sujeira, se sentia torto e com cheiro ruim.
Miguel era o seu novo dono. Era um bom chefe. Não entrou no movimento como
menino. Já tinha 18 anos quando iniciou sua senda na chefia escoteira. Não
entendia nada. O Grupo tinha enorme falta de chefes. Miguel tinha coragem.
Aprendeu sozinho ou mesmo com seus monitores as técnicas e a maneira como
fazer para a tropa prosseguir em sua caminhada.
Todos os jovens o admiravam. Fora duas vezes a capital fazer cursos
escoteiros. Aprendeu muito. Estava fazendo dois anos de atividade. Quando
soube do Chapéu com Três Bicos e se alegrou. Ao vê-lo, entristeceu. Velho,
torto, sem cor e alquebrado.
O Chapéu com Três Bicos sentiu-se desprezado. Pensou positivo e deu
negativo. Mas logo viu que Miguel não tinha desistido dele. Soube por meio de
outros chefes antigos como reformar um chapéu. Pegou uma escova nova de
engraxar sapatos, molhando aos poucos com água potável, escovou todo o
Chapéu com Três Bicos várias vezes.
Após ver que a limpeza deu resultado, faltava endurecer a aba para se tornar um
verdadeiro Chapéu escoteiro com Três Bicos com abas retas e planas. Aprendeu
com sua mãe como engomar roupas e viu que ali poderia fazer o mesmo. Jogou
pouca goma, também molhada na escova e com o ferro de passar roupa,
colocou o chapéu com três bicos em uma superfície lisa, passando a borda do
ferro calmamente, sem forçar para não agredir a cor e não borrar.
Em pouco tempo o chapéu estava como novo. Faltava somente a proteção.
Miguel mesmo a fez. Agora sim, o chapéu com três bicos estava em perfeitas
condições de ser usado.
O Chapéu com Três Bicos serviu Miguel por mais de 15 anos. Já velho, perdeu
muito a cor, no entanto ainda permanecia fiel as origens. Miguel não comprara
um novo. Lembrava sempre dos anos que conviveu com Miguel. Das excursões,
dos acampamentos, de suas viagens para participar em eventos burocráticos ou
de decisões do escotismo nacional.
Um dia, Miguel apareceu com um Chapéu com Três Bicos novo. Falou para o
amigo Chapéu com Três Bicos que não estava abandonando-o. Estava na hora
de sua aposentadoria. Afinal estava fazendo seus trinta e cinco anos de
nascimento. Precisava descansar. Miguel o colocou em sua sala. Agora casado,
com filhos, seu Chapéu com Três Bicos era um troféu a ser mostrado a todos.
Tinha orgulho dele.
Achei até que Miguel sabia de toda a história. Quem sabe o Chapéu com Três
Bicos também tinha contado a ele. Eu era muito amigo de Miguel. Ele estava
agora com 68 anos. Ainda era ativo nas atividades escoteiras.
Olhei para o Chapéu com Três Bicos e o parabenizei. Disse que também tinha
um em casa. Não com tantas histórias para contar. Agora que conhecia sua
fábula, eu também teria mais cuidado com meu Chapéu com Três bicos. Quem
sabe depois disto, ele seria mais falante, e me diria o certo e o errado em seu
uso.
Miguel adentrou a sala e me viu falando com o Chapéu com Três Bicos. Fiquei
encabulado e sorri meio sem jeito. Miguel não disse nada. Também sorriu.
Ficamos eu e ele calados como a dizer que o segredo seria bem guardado.
Fui para casa pensativo. Quantos Chapéus com Três Bicos neste “mundão”
escoteiro não tem grandes histórias para contar? Quantos são felizes com seus
amos e quantos estão tristes com o tratamento que recebem. Hã! Que saudade.
Que saudade do meu Chapéu com Três Bicos...
♪♪O meu chapéu tem três bicos...
E quem quiser que conte outra...
"Há corações que param no passado; e para que isto não
aconteça com você deixo-lhe este pequeno lembrete, para que o
seu coração, ao mover-se no futuro, encontre sempre algo no
presente.”
Anônimo.
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
(Quinzenalmente ou mensalmente, iremos publicar contos na linha do
imaginário. o titulo acima servirá para mostrar que o acontecimento é
obra de ficção, mas não avalizo que possa ter alguma veracidade.
Você decide).
Historia de hoje: O lobinho, o Chefe Escoteiro e o Cavalo Dourado.
"O maravilhoso da fantasia é nossa capacidade de torná-la
realidade.”
Anônimo.
Lito tinha nove anos. Ia fazer 10 no mês seguinte. Tinha um aspecto alegre,
bonachão, contador de piadas, e apesar do seu aspecto nissei, seu pai nascera
neste pais assim como sua mãe. Na alcatéia ninguém prestava atenção nisto.
Eram como se fossem irmãos. Ali acho que pela idade e pela fraternidade, não
havia discriminação de raça, cor ou credo.
Estava no grupo a mais de um ano. Bom lobinho participava de tudo e seus pais
davam o maior apoio. Sua matilha era muito unida. Ainda não era primo e nem
segundo. Não tenho certeza, mas acho que sua família seguia a religião Budista.
Não andava sem motorista e guarda costa.
Quando seu pai ou sua mãe aparecia, era sempre acompanhada de dois ou mais
seguranças. Eu não estava acostumado com estes acontecimentos, pois novo
no grupo, ia conhecendo aqui e ali seus pormenores. Nada contra. A vida de
cada um tem sua razão de ser e deve ser respeitada.
Um dia, eu e alguns outros escotistas quando num final de reunião, fomos tomar
um chopinho, o que nada nos desmerecia claro, desde que não ultrapassemos a
cota do bom senso, e nem estivemos com crianças presentes. Conversa vai,
conversa vem, entramos no assunto de alguns pais, sem a intenção de
censuras, mas somente ver as vantagens do escotismo para todas as famílias
do Grupo, sem distinção.
Um dos chefes foi bastante franco quando se referiu ao pai de Lito. – Olhem, não
tenho a menor dúvida. Acho que ele pertence à máfia chinesa. Uma vez o vi em
uma praia, todo tatuado como são os membros da yakuza. Ficamos amatutados
com tal observação. Víamos algumas vezes comentários na imprensa, mas sem
definir quem, quando e onde.
Num acantonamento, já no fim da tarde, duas assistentes dos lobinhos saíram
do sítio, a procura de um bosque para montar um jogo. Quando andaram menos
de 150 metros, avistaram um carro preto, encostado na estrada, cuja vista
escondia toda a entrada.
Sentados embaixo de uma árvore, dois indivíduos trajando terno preto e ambos
de óculos escuros percorriam com os olhos toda a jornada feito por elas. Bem
abaixo, perto de uma pequena elevação, outros dois. Claro, não havia a menor
dúvida. Eram seguranças do Lito a mando do seu pai. Todo o cuidado era
pouco.
O medo do sequestro era grande. Quando soube vi com certeza que ou ele era
um mafioso ou um grande industrial, mas sua maneira arrogante no trato com os
seguranças, sua autoridade quando falava ou olhava para alguém dizia que não
era qualquer um. No grupo conversava pouco, mas era presente nas reuniões de
pais e Conselho de Grupo.
Lito pouco ligava. Para ele a vida era para brincar, estudar e ser lobinho. Não
sabia como era em casa, mas acredito que cercado de cuidados devia não
gostar muito. Como lobinho tinha muita liberdade, muitos amigos, muitas
brincadeiras e a conquista de estrelas era para ele um objetivo de que não abria
mão.
Em um sábado de agosto, ele não apareceu. Para todos na alcatéia foi surpresa.
Desde que foi admitido nunca faltou à reunião. Não era norma perguntar aos
pais ou telefonar. Claro sabiam que um impedimento qualquer devia ter
acontecido. Mas no sábado seguinte também não veio. Nenhum contato dos
pais.
No terceiro sábado começamos a ficar preocupados. Se os pais quisessem sua
saída da alcatéia não teriam agido deste modo. Calados, sem comunicação e
sem contato. Não era estilo deles. Nunca foram ausentes e tenho certeza tinham
investigado a vida de cada assistente, de cada Escotista. Por suas maneiras de
agir sem sombras de dúvida que confiavam e muito no Grupo Escoteiro.
O Chefe do Grupo resolveu ir à casa de Lito na manhã de um domingo. Foi
barrado na porta por um segurança. Identificou-se e mesmo assim não foi
recebido. Ficou magoado com o tratamento. Não acreditava que os pais agissem
daquela forma.
Quando ia saindo, viu dois carros da policia adentrando na mansão. Como um
mais um são dois, é claro que houve alguma coisa para ter aquele aparado
policial. Ele sabia da posição do pai, junto à sociedade local. Era benquisto, mas
a “boca pequena” corria o boato de sua atuação mafiosa e onde a fogo todo
mundo sabe o que acontece.
Era melhor não perguntar e se possível nada dizer aos escotistas do Grupo.
Calar agora seria o melhor remédio. Seu silencio, no entanto não foi estendido
muito tempo. A pressão da Akelá para uma resposta ou mesmo uma explicação
era sempre presente.
Ele pediu cautela e prudência nos seus relatos, pois caso contrário poderiam
sofrer represálias e comparativamente não tinham nenhuma defesa ou mesmo
autoridade para adentrar na vida de alguém tão influente.
Mas o tempo não dá trégua. A voz também não. Corria o boato que Lito tinha
sido sequestrado. Por não ter os meios de comunicação anunciado ou mesmo
comentado, poderia ser verdade. Sempre nestes casos se pede silencio.
Um mês, nenhuma notícia de Lito. Após 45 dias, nossa preocupação estava
agora sobre controle e no inicio da reunião apareceu sorrindo e brincando nada
mais nada menos do que o Lobinho Lito. Acompanhado de seus pais e em cada
ponto do pátio um segurança.
Não havia o que dizer, pois a alegria substituiu todo o medo e o receio do que
pudesse acontecer daí para frente. O pai pediu desculpas, não entrou nos
detalhes e explicou que em todas as reuniões pelo menos até o final do ano ele
tinha que manter os seguranças dentro e fora do pátio. Que não nos
preocupássemos. Nada de mal aconteceria a ninguém.
Ali era dizer não e Lito não voltar ao Grupo ou concordar e manter Lito no
Grupo. A segunda opção foi aceita. Aos pais foi dado uma explicação simples de
como era a família de Lito e que isto poderia proteger também os seus filhos.
Alguns não concordaram e retiraram seus filhos.
Antes do desfecho final da reunião, vi Lito em pé e em volta vários lobinhos,
escoteiros, escoteiras seniores e guias, enfim um bom número de jovens
ouvindo as histórias de Lito, comentando seu sequestro. Seu pai tinha pedido
para nada dizer, mas ele sempre aberto franco, contou o que aconteceu.
Na saída da escola muitos bandidos renderam os dois seguranças e o levaram.
Colocaram uma venda e ele não viu nada. Só tiraram quando ficou em um
pequeno quartinho, sem TV sem nada. Chorou muito, mas não adiantou. Aos
poucos foi se acostumando com a penumbra e suas refeições era um marmitex
cujo cardápio além de ruim ele nunca tinha comido.
Tinha muita fome e aprendeu a comer de tudo. Em poucos dias parou de chorar.
Lembrava de Mowgly, que não tinha medo de Shere Khan e ele como lobinho
também podia enfrentar. Lembrou da lei do lobinho e viu que tinha de manter os
olhos e os ouvidos abertos. Assim adormeceu e sempre adormecia quando a
tristeza invadia e lembrava-se de seus pais e seus amigos lobinhos.
Não tinha mais noção do tempo. Não sabia se era noite ou dia. Quando dava
sono dormia se não ficava sentado em um colchonete e quando dava cantava
algumas canções que a alcatéia tão bem cantava. Era assim que vivia aquele
momento tão incerto.
Foi em um dia que acordou sorrindo. Seu sonho tinha sido maravilhoso. Um
chefe Escoteiro já velho, uniformizado e com barbas brancas, sorrindo como se
fosse seu avô, lhe deu o Melhor Possível e ele prontamente respondeu. Disse o
Chefe que ele não se preocupasse, pois o Cavalo Dourado iria no dia seguinte
libertá-lo, e ele iria ao encontro dos Chefes que vivem no Grande Acampamento
das Nuvens Brancas.
Ele não sabia o que era aquilo. Mas acreditou no Chefe. Logo que acordou viu
junto a ele um grande e belo cavalo. Todo dourado, brilhante com faíscas em
diversas partes, como se fossem milhões de vagalumes em suas volta.
Sorriu e montou no cavalo. Logo se viu correndo pelas campinas, voou para o
céu e em poucos minutos se encontrava em um local lindo, cheio de escoteiros,
lobinhos, chefes, um jardim, muitas barracas, jovens correndo daqui para ali, e
não paravam de sorrir e cantar canções escoteiras.
Viu então próximo a uma pedra branca como leite, sentado a moda índia, o chefe
que havia o visitado no seu sonho. Sorridente, levantou e cumprimentou Lito,
dizendo para ele que era muito bem vindo, mas não podia demorar, pois seus
pais estavam muito preocupados. Iria levá-lo até um local na terra, onde ele
poderia telefonar e seus pais iriam buscá-lo com presteza.
Sentiu os olhos chamejantes e quando esfregou e os abriu, estava em um posto
de gasolina. Correndo pediu a um homem que telefonasse para seus pais. Deu o
numero e em pouco tempo o posto de gasolina estava cheio de carros da policia
e seus pais também chegaram.
Muitos abraços, à volta para casa, à lembrança do Cavalo Dourado, do Chefe
Escoteiro do Acampamento das Nuvens Brancas. Seus pais sorriam, fingiam
acreditar, mas sabiam que aquilo era um sonho de Lito. A realidade devia ser
outra.
Eu também não acreditava. A maioria dos jovens ficaram fascinados com a
história de Lito. Ali mesmo ele foi aclamado como herói e todos queriam saber
como encontrar o Cavalo Dourado e o Grande Acampamento. Ele não soube
explicar.
Meses se passaram. Ficamos sabendo que dois membros da quadrilha de
sequestradores foram presos. Outros seis não tiveram a mesma sorte. Morreram
de maneira cruel, como se fosse uma vingança e melhor não especificar como.
Um dos presos contou que Lito sumiu em um dia mesmo com a porta trancada.
Ela não fora aberta. Continuava trancada. Não sabiam como ele tinha escapado,
pois onde estava não tinha janelas, só a porta.
Eu também fiquei encafifado, mas acreditar na tal historia do Cavalo Dourado
seria impraticável. O que aconteceu realmente não sei. Ninguém soube explicar.
Mas Lito continuou por muitos e muitos anos ainda no Grupo Escoteiro. Mesmo
na tropa, contava a mesma história e soube por amigos que agora como sênior
mantêm sem mudar uma vírgula, a história do Cavalo Dourado...
E quem quiser que conte outra...
Não permita que a dificuldade lhe abra porta ao desânimo porque a dificuldade é
o meio de que a vida se vale para melhorar-nos em habilitação e resistência.
As guias de Hamelim e a doce Anne
"Veja as qualidades e elogie; os defeitos logo desaparecerão.”
Anônimo.
Espero que não confundam. Nada a ver com o conto do Flautista de Hamelim.
Claro, precisavam de mais guias. Não estava sendo fácil a Tropa de Guias Olavo
Bilac tocarem sua programação. Muitos motivos existiam. Mas antes de entrar
nesta parte, vamos voltar no tempo e saber do porque e como foi o início da
história.
Lembro de Anne quando lobinha. Muito ativa, tinha alguma dificuldade para
aprender as etapas. Estava indo bem e as outras meninas fizeram dela uma líder,
apesar das dificuldades que ela enfrentava para fazer uma ou outra prova. Pena
que entrou com nove e em poucos meses já fizera os 10 anos. Ficou pouco
tempo na alcatéia.
Anne era assim. Direta mas não muito inteligente. Andava com pequena
dificuldade. Quando nasceu viram que sua perna direita estava atrofiada.
Precisou de várias cirurgias para ela voltar ao normal. Levou tempo para
aprender a andar. Agora, tinha dificuldade e mancava um pouco. Anne não
reclamava. Nasceu assim e se acostumou.
Suas amigas do bairro a respeitavam e adoravam seu jeito de ser. Meiga,
prestativa, caritativa isto é, não poderia ser considerada uma grande samaritana,
mas faltava pouco.
No colégio as professoras eram só elogios. Não sei por que Anne era tão
admirada e adorada. Tinha dificuldades para acompanhar as demais colegas nas
matérias aplicadas. Quem sabe por ser tão amada estas dificuldades eram
completadas com o grande interesse das professoras em ajudá-la. Era comum
para Anne tais tipo de ajuda. Mas independente disto, ela se esforçava e
mostrava a todos que tinha iniciativa e poderia chegar lá.
Seus pais a amavam. A dedicação ia às raias do impossível. Nada os demovia
dos desejos de Anne e dos seus sentimentos. Desde quando nasceu, eram
assim. Frequentes em sua vida. Dedicação extrema. Chegavam ao ponto de
atrapalhar o desenvolvimento de Anne. Isto mudou um pouco quando ela
manifestou interesse em participar do escotismo.
Anne não possuía um belo sorriso. Bonita? Não sei. Talvez uma simpatia que
substituía todos os atributos necessários. Anne era admirada por todos que a
conheciam. Cabelos loiros, magrinha, altura media para a idade. Seus olhos
azuis eram profundos. Era difícil explicar como Anne atraia a todos e a amizade
que demonstravam era inteiramente genuína.
Aos dez anos e meio, passaram Anne para a tropa escoteira feminina. Ela
chorou muito na passagem. Claro, houve uma preparação desde sua trilha. Ela
sabia e compreendia. As saudades não seriam tantas, pois todos os dias lá
estavam a Tropa e a Alcatéia.
Anne sentiu muitas dificuldades no inicio. Nas excursões era sempre a última.
Nos jogos de força ou corrida se a patrulha dependesse dela, não marcariam
pontos. Mas Anne se sobressaia em outros jogos, onde nem sempre a força e
agilidade imperava.
Nos acampamentos ia bem. Aprendeu a cozinhar com sua mãe e era uma
excelente cozinheira na patrulha. Só isto era motivos de receber os elogios da
monitora. As demais patrulhas sempre esperavam um convite para almoçar ou
jantar lá (era comum os convites).
Anne mal mal “tirou” a segunda classe. Um dia, estava em uma atividade de
domingo fora da cidade, quando o Chefe do Grupo chegou apressado. Anne
quando soube da notícia ficou petrificada. Não acreditava. Seu pai tinha sofrido
um ataque cardíaco e faleceu em seguida. Não deu tempo nem de levá-lo ao
hospital.
Quase todo o grupo participou do funeral. Anne não chorava. Seu semblante
triste tentava compreender e imaginar como seria sua vida de agora em diante. A
mãe de Anne há abraçava o tempo todo. Foram para casa. Ela jurou a Anne (sua
mãe) que nada iria lhe faltar. Seu pai não deixou muita coisa, mas com a pensão
e seu trabalho (era costureira) não precisariam da caridade de ninguém.
Anne continuou no Grupo Escoteiro. Já fazia quatro anos que estava na tropa
escoteira. Fez quinze anos e ela foi convidada a fazer a rota sênior. Não gostava
muito da ideia, mas elas, as guias precisavam dela. Eram somente três e com
Anne seriam quatro.
A chefe não tinha nenhum conhecimento de como chefiá-las e orientá-las
tecnicamente. Fez um CAB e teve algumas ideias. Mas todas esbarravam no
número. Eram poucas. Nada podiam fazer com quatro. Fizeram boas excursões
e dois acampamentos. Mas tudo meio parado. Mesmo criando programas a tropa
de guias não entusiasmava.
Em uma atividade nacional sênior, viram com surpresa que varias patrulhas
eram mistas. Isto aumentava em numero e as patrulhas eram bem divididas.
Conheceram uma tropa com quatro patrulhas. Mas viram que somente oito eram
de sexo masculino. Os demais eram jovens femininas.
Discutiram muito o assunto. A tropa sênior do grupo ia bem. Tinha duas
patrulhas com seis e mais quatro escoteiros fazendo a rota. Em pouco tempo
seriam três patrulhas. A ideia de juntar as duas tropas não agravam as guias
exceto uma que tinha olhares melosos a um sênior. Souberam depois que eles
também não aderiram à ideia.
Foi em uma atividade filantrópica, mais especificamente a boa ação mensal da
patrulha que conheceram diversas jovens com idades semelhantes à delas. Era
uma instituição de menores abandonados, dirigida por padres e irmãs católicas.
Várias delas se acercaram e tocavam seus uniformes, seus distintivos, seus
lenços enfim, estavam a admirar tudo o que viam. Contaram 12 mocinhas órfãs
de quinze a 17 anos. Haviam outras com idades inferiores. Como tinham feito
um programa de palestras e alguns jogos logo sentiram que não seria aquilo que
as meninas queriam.
Anne foi para casa pensativa. Contou para sua mãe o acontecido. Tinha uma
ideia na mente, mas não sabia o que era e nem como desenvolvê-la. Sua mãe a
incentivou a fomentar com as demais guias o que poderiam fazer por aquelas
meninas.
Varias discussões, várias ideias, mas nenhuma como Anne tinha em mente e
não sabia o que era. Durante vários meses, Anne e as demais fizeram todo tipo
de conceitos, meditações, concepções, mas nunca chegaram a um meio termo.
Continuaram a frequentar a instituição. Anne se tornou muito amiga de todas as
doze que ficavam juntas e estas tinham uma verdadeira veneração por Anne.
Puff! Heureca! Um punhado de estrelas brilharam na mente de Anne. Ali estava a
tropa de guias completa. Doze e mais quatro seriam dezesseis. Três patrulhas de
cinco e podiam crescer. Outras meninas do orfanato queriam se aproximar.
Apareceram os senões. Das outras guias, da chefe, do Chefe do Grupo.
Impossível diziam. Fazer as reuniões lá aos sábados não era frutífero. Levá-las
ao grupo sem condições. Como uniformizar todas elas? Como seria a reação
das irmãs e dos padres? O que a instituição pensaria a respeito?
Anne não desanimou. Sabia que o possível era fácil de resolver. O impossível é
que seriam elas. Mas Anne sempre aprendeu e até leu em um livro do fundador
que o impossível não existe. Havia uma caricatura de alguém chutando a palavra
impossível do caminho. Anne era assim. Quando colocava algum em sua mente
nada iria demovê-la.
Anne numa terça foi até a sede da prefeitura local. Uniformizada é claro. Não
conseguiu falar com o prefeito e foi recebida por um assessor. Disse o que
esperava da prefeitura. Um ônibus ou um van escolar para transportar todos os
sábados às meninas até ao grupo. Ida e volta. Este transporte estava
subordinado às atividades especiais do Grupo nas suas programações anuais
que seriam fornecidas a prefeitura.
Resolvido. Não aceitou só a palavra pediu um documento para poder ter
aberturas nas outras “impossíveis” soluções que foram apresentadas. Procurou
uma empresa próxima e pediu para falar com o diretor. Foi recebida de imediato.
Nada como uma escoteira bem uniformizada.
Pediu para eles adotarem as doze do orfanato em suas participações no Grupo
Escoteiro. Sem querer ensinar, tinha lido que as despesas eram dedutíveis no
imposto de renda. Isto incluiria o uniforme e gastos com acampamentos ou
viagens. Se houvesse maior procura de outras jovens do orfanato, até um
número limite a empresa também assumiria. Concordaram.
Ficaram titubeantes no inicio, mas viram que ali tinha um manancial de
marketing para os funcionários e clientes. Exigiu deles uma documentação para
comprovação e mostrar ao orfanato que existiam várias instituições e empresas
dispostas a colaborar.
Agora o principal. Convencer as irmãs e os padres da ideia e mostrar os
benefícios que isto poderia trazer para o orfanato e as meninas na pré-
adolescência. Era o mais difícil. Conversou com o Chefe do Grupo e com sua
chefe da tropa. Sugeriu a eles que fossem com as guias e lá tentariam fazer um
pré-informativo, de poucas horas com a participação dos diretores e assistentes
da instituição.
Não foi fácil. O diretor, um Padre antigo e radicado lá há muitos anos não estava
concordando. Os demais padres e irmãs convenceram a ele deixar que os
chefes dessem o informativo. Assim foi feito. No dia, todo o Grupo Escoteiro
realizou suas atividades no orfanato. Era só órfãs e não havia nenhum menino
ali.
A reunião e o informativo foi um sucesso. Quando no final Anne pediu a palavra
e com documentos mostrou o que tinha conseguido e qual era sua ideia, muitos
na plateia bateram palmas. O diretor concordou. Era uma experiência inédita. De
descendência francesa, conheceu quando menino o movimento escoteiro
apesar de não ter participado.
Passaram-se dois anos. A tropa de guias cresceu. O flautista de Hamelim trouxe
as jovens que faltavam. Anne sorria. As guias sorriam. Os seniores ficaram
admirados. A região soube e parabenizou.
Está fazendo mais de três anos que não visito o grupo escoteiro de Anne. Mas
mesmo que a ideia tenha prevalecido por muitos anos, tenho certeza que valeu.
Não era bonita, não era inteligente, andava com dificuldade, mas tenho certeza
que milhares de guias espalhadas nesta nação gostariam de ser a doce Anne!
E quem quiser que conte outra...
"Há corações que param no passado; e para que isto não
aconteça com você deixo-lhe este pequeno lembrete, para que o
seu coração, ao mover-se no futuro, encontre sempre algo no
presente.”
Anônimo.
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
(Quinzenalmente ou mensalmente, iremos publicar contos na linha do
imaginário. o titulo acima servirá para mostrar que o acontecimento é obra de
ficção, mas não avalizo que possa ter alguma veracidade. Você decide).
Os cinco Magníficos
(Os cinco Magníficos são seniores da patrulha Aconcágua, do 568º Grupo
Escoteiro Pico da Neblina. Rotineiramente estarão aqui contando suas epopeias
divertidas e aventureiras. Muitas já vividas pelos nossos magníficos seniores de
todo o pais. Sejam bem-vindos a patrulha Aconcágua e os cinco Magníficos).
Historia de hoje: A Mansão do Duende cor de Rosa
"Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem que às
vezes poderíamos ganhar pelo medo de tentar.”
Shakespeare.
Capitulo I
Estava cansado de ficar parado no aeroporto. Para dizer a verdade cheguei às 08
da manhã para um voo as 09 e já eram mais de 14 horas e nada. Sempre a
mesma desculpa. Aeronave de conexão atrasada no norte. Partida será
impreterivelmente às 15 horas. Isto aconteceu desde a manhã. Novo horário de
partida e nada.
Uma coisa que o escotismo me ensinou é não perder a calma. Quem a perde
também perde a razão. Se não tinha o voo meus clamores nada resolveriam.
Tinha telefonado para a filial do norte explicando o acontecido. A reunião com a
empresa que fecharíamos um contrato foi avisada e compreenderam
perfeitamente.
Já passavam mais de quatro meses que não voltava àquela cidade. Duas coisas
me prendiam o retorno. O excelente contrato com uma gorda comissão e claro,
rever aqueles rapazes que me impressionaram tanto que as lembranças
continuavam vivas em meu cérebro. Estou falando dos “Cinco Magníficos”.
Aquela narrativa do Castelo e a Espada Samurai me deixaram intrigado. Não vou
acreditando em tudo que ouço. Sou meio São Tomé. Ver para crer. Mas se vocês
conhecessem a Patrulha Aconcágua, veriam jovens de caráter e se estivessem
mentindo seriam os mais perfeitos atores que já conheci.
Agora estava de volta. Neste meio tempo voei para várias outras cidades e
sempre nas folgas não deixava de visitar Grupos Escoteiros existentes. Era
comum ficar pesquisando via internet para obter endereços de Grupos
Escoteiros, e com eles mais me confraternizava e divertia que ficar zanzando em
shopping ou cinemas. Não era o meu forte.
Acredito que poucos escotistas conseguiram conquistar uma gama de amigos
escoteiros de norte a sul do país como eu. Creio mesmo que sou um dos poucos
que conhece a plena realidade do Movimento Escoteiro praticada por todos eles.
Mas isto é outra historia. Contada quem sabe em outro local.
Não esquecia e sempre, as lembranças de minha esposa e de minha filha eram
marcantes. Sempre conversava com elas pela internet e riamos a valer com as
peripécias da minha “guria” na escola. As professoras adoravam suas maneiras.
Com apenas quatro anos, fazia ares de mocinha de 15 a 16. Isto encantava pela
sua sagacidade e maneiras inocentes.
Mas não estou aqui agora a narrar sobre meus amores (não se esqueçam, minha
esposa e minha filha) e sim a continuar a saga daqueles seniores que um dia me
marcaram para sempre. Olhe que como já disse, conheço um sem números de
seniores, guias, escoteiras e escoteiros. Igual a eles não. Ninguém sabe o dia de
amanhã. Quem sabe um dia vou conhecer.
Depois de muita labuta, consegui um voo já à noitinha e com menos de 2 horas e
meia cheguei meio cansado e sonolento a cidade de destino. Ao tentar um taxi vi
um jovem simpático de menos de 30 anos me acenando. Fui até ele e me
ofereceu um “alternativo” bem mais barato. Ou seja, um taxi sem autorização de
transportar passageiros no aeroporto.
Não tenho este costume. Gosto das coisas legais. Nada de quebra galho. No
entanto ele foi tão hospitaleiro e com uma simpatia radiante que aceitei.
Explicou que fez uma corrida perto dali e não queria voltar vazio. Na viagem até
o centro contou as novidades, e me perguntou se havia lido sobre os dois
chefes escoteiros que enfrentaram uma quadrilha de ladrões em um Shopping.
Foi surpresa. - Não respondi, pois nada sabia. Por quê? Perguntei. – Ele
sorridente respondeu que era um deles. O outro um seu amigo. Estavam após a
reunião de tropa sentados na praça de alimentação, esperando suas namoradas
(ambas guias, uma de 16 outra de 17 anos) e viram uma correria dentro dos
corredores.
Levantaram-se e viram dois homens trajados com coletes da policia civil,
atirando em um dos seguranças do shopping. Ao passar perto deles, deram uma
rasteira em um e o meu amigo jogou uma cadeira em outro. Junto com outros
seguranças eles foram dominados.
Caramba! Pensei. Um risco enorme. E ele ficou ali, dirigindo, rindo e relatando
como se fosse um filme de mocinhos e bandidos. Como também sou escoteiro e
milito no movimento ha mais de 15 anos, achei uma atitude meio insensata. Não
disse isto para ele, mas acredito que poderia correr um serio risco de vingança,
quando ambos os bandidos forem soltos.
Mas ao mesmo tempo, raciocinei que se alguém não se prestasse a tal tipo de
ação, seriamos um bando de covardes, deixando a sociedade a mercê de tais
marginais. Pelo sim e pelo não, fiquei calado e não fiz nenhum comentário.
Ele era um jovem falante e mostrava ser novo no escotismo. Disse que fizera
três anos que tinha entrado e agora não sairia nunca mais. O escotismo tornou-
se sua segunda vida. Amava tudo que existia nele. Encontrou amigos sinceros e
leais e agora tinha encontrado sua alma gêmea.
Chegamos ao hotel, agradeci, peguei o endereço do Grupo e prometi uma visita
tão logo pudesse. Ele tomou posição de sentido e com um grande sorriso disse:
Sempre Alerta! Meu novo amigo escoteiro. Respondi sorrindo. Tomei uma ducha
e liguei para a filial. Estava marcado nova reunião no dia seguinte às 09 horas.
Tudo transcorreu naturalmente e tínhamos um novo contrato naquela cidade.
Era quinta feira e resolvi passar ali o fim de semana. Afinal a cidade dos meus
amigos seniores não era mais que 150 quilômetros a nordeste. Fui para lá na
sexta à noite com um carro alugado.
Foi bastante emotivo o nosso reencontro. Já conhecia boa parte dos escotistas
do grupo e um sem numero de seniores e escoteiros. Os Cinco Magníficos
continuavam os mesmos. O mesmo sorriso, a mesma aparência e uma união de
fazer inveja.
Mal terminou a reunião e lá fomos nós para o barzinho conhecido, uma rodada
de refrigerantes, um telefonema de cada um para suas casas avisando onde
estavam e no mais tardar 10 ou 11 da noite estariam de retorno.
Ali estava o Ned, o Leo, o Jan, o Junior e o Max. Todos com o mesmo semblante.
Seria muita pretensão que em quatro meses quando nos vimos pela última vez
tivessem modificado a fisionomia. Ninguém cresce ou muda neste tempo.
Perguntei como foi à escalada no na Serra do Altaneiro e me disseram que fora
simplesmente espetacular.
- Olhe Chefe – Dizia o Ned – Nosso grupo foi com três patrulhas. Mais dois
grupos souberam da atividade e se convidaram. No final éramos oito patrulhas
seniores. Duas patrulhas eram mistas. Cinco garotas estavam lá, a fazer o que
só homens deviam fazer.
Leo interrompeu – Não Ned, conte a verdade. Elas deram um verdadeiro show.
Escalaram em menor tempo, sem arranhão, e sempre mantiveram o clima de
amizade e olhe, eram bastante humildes pelo que faziam melhor que nós.
- Ban! Disse o Ned - Ainda acho que cada um deve procurar o seu lugar. – Você
ficou chateado porque sua namorada não gostou e recebeu a maior bronca! –
disse o Junior. – Nada disto. Ela compreendeu perfeitamente. É minha opinião
pessoal. – O que não é compartilhada pelos outros da patrulha – disse o Jan.
- Bem, chega de uma discussão que não leva a nada. As guias são uma
realidade e queira ou não muitas tropas seniores serão mistas amanhã ou
depois. Disse o Leo. Não a nossa disse o Max.
Jan tomou a palavra. Comentou que mesmo recebendo um aprendizado na sede,
a patrulha não foi bem. Conversamos depois e as opiniões divergiram. Mas pelo
menos temos uma noção bem maior de escalada que hoje.
Perguntaram onde andei o que fiz e como estava o meu Grupo Escoteiro. Como
neste período só fiquei cinco sábados em minha cidade, nada havia de novo
para comentar. Comentei sobre o Acampamento Nacional de Patrulhas e se eles
iriam. Claro disseram. Temos muitos amigos espalhados pelo pais e aumentar o
número é sempre bom. Alí a diversão era sempre agradável.
Soube do acidente do Chefe Escoteiro hoje de manhã? Foi aquele que ajudou a
prender bandidos em um Shopping – falou o Jan. – Caramba! Tremenda
coincidência. Viajei com ele do aeroporto até o hotel quinta feira quando
cheguei. Como está? Como foi? Jan respondeu que nada bem.
Uma menininha de três anos escapuliu da mão de sua mãe e correu para a rua.
Ele vinha em seu taxi e quando viu jogou o carro em cima de um poste. A
menina não teve nada e ele está na UTI em observação, mas sem perigo de
morte. O passageiro que estava com ele nada sofreu.
Graças a Deus. Quando retornar vou visitá-lo, disse. Foi muito simpático e
prestativo. Espero que recupere logo. Jan era o mais palrador. Contava tudo que
vinha a sua cabeça. De um assunto saltava para outro. Logo estava comentando
que o Leo e o Ned conseguiram um emprego.
Agora eram trabalhadores brasileiros. Cheios da grana. Riu a valer da sua piada.
A patrulha acompanhou. Mas olhe Chefe quando foram formalizar a admissão,
logo foram dispensados. Nem começaram e foram demitidos. Por quê?
Perguntei. Exigiram que aos sábados e domingos, além de feriados não
trabalhassem.
Disseram que eram Escoteiros Seniores e tinham reuniões aos sábados, e
sempre aos domingos e feriados eram dias de atividades extra sede. Não
podiam faltar. Pelo sim e pelo não, a moça do Depto. Pessoal não gostou. O
horário e dias de trabalho estão no contrato. Não haveria mudanças. Se
quisessem bem, caso contrário havia outros interessados.
A patrulha caiu na gargalhada! – Leo e Ned não gostaram. Não é bem assim
chefe, disse o Leo. O horário era de 14 às 22 horas com folga no meio da
semana. No colégio não havia horário pela manhã. Conversei com meu pai e
aconselhou a esperar. Ainda devia estudar mais e quem sabe após os 18 anos
eu tentaria alguma área especifica do curso técnico que estava fazendo.
O bate-papo continuou alegre e descontraído. No entanto vi que as horas
passavam rápidas e não querendo perder mais uma historia fantástica perguntei
ao Jan sobre a tal Mansão do Duende cor de Rosa. O que se tratava e como foi.
Todos ficaram calados! Mudos. Entreolharam-se. Não entendi.
Aqueles minutos de silencio não me deram nenhuma pista do que se tratava.
Acreditei que apagaram a historia que me prometeram contar e agora os cinco
ficaram estáticos. Transformaram-se em estátuas. Parecia que estava vendo um
filme mudo em uma poltrona de um cinema, esperando o complemento, o inicio
e o fim da história e nada.
Voltei a olhar para eles. Ainda estavam calados. Tudo bem, disse – Se acham
que não devo saber nada a respeito, entendo perfeitamente. – Jan replicou
educadamente – Não Chefe, não se trata disto. É que se o Senhor envolver-se
nesta história, quem sabe poderá levar resíduos para sua cidade, e seu sono e
sonhos poderão ter surpresas desagradáveis!
E agora? Estavam me colocando de encontro à parede. O que aqueles seniores
fizeram e sabiam que não podiam contar? Que terrível segredo seria a tal
mansão? Quem seria o Duende? E porque cor de rosa? Permaneci mudo e sem
saber o que dizer.
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
Os cinco Magníficos
(Os cinco Magníficos são seniores da patrulha Aconcágua, do 568º Grupo
Escoteiro Pico da Neblina. Rotineiramente estarão aqui contando suas epopeias
divertidas e aventureiras. Muitas já vividas pelos nossos magníficos seniores de
todo o pais. Sejam bem-vindos a patrulha Aconcágua e os cinco Magníficos).
Historia de hoje: A Mansão do Duende cor de Rosa
"Se você rouba ideias de um autor, é plágio. Se você rouba de muitos autores, é
pesquisa."
(Wilson Mizner)
Capitulo II
Esquecemos do horário. Passava das dez da noite, aproximando das onze. Não
dava para continuar. Eram jovens, tinham horários e naquela noite não saberia
nada da historia da Mansão. Junior foi quem me convidou para almoçar em sua
casa, e após o almoço poderíamos todos conversar tranquilamente na varanda
de sua casa.
Não costumo aceitar tais convites partindo de jovens. Mas ele me garantiu que
não haveria problema. Sua mãe era Akelá e seu pai um dos diretores do grupo.
Consultou os demais e todos concordaram. Inclusive Ned. Isto porque sua cara
metade o esperava para um cineminha.
E porque você não vai? – perguntei. Não, respondeu. Não quero perder a
narrativa da história e gostaria de ver se vai acontecer a tal maldição que eles
nos disseram. Maldição? Perguntei. - Não se preocupe chefe, acreditamos que
foi só um susto para não voltarmos mais lá – Disse Ned.
Comecei a ficar preocupado. Afinal se não estavam brincando pelo menos
estavam me assustando. Despedimo-nos e fui para o hotel não antes de anotar o
endereço do Junior. Ele me deu o telefone e fiquei de ligar antes de sair. Não vi
nenhum sorriso, nenhum assovio entre eles, nada que pudesse demonstrar que
tentavam me amedrontar.
Dormi o sono dos justos. Nem me lembrei da tal maldição, da mansão de nada.
Estava muito cansado, pois a semana para mim foi muito corrida. Acordei tarde.
Vi que passavam das nove da manhã. Tomei um banho, coloquei uma roupa
esporte e antes de sair liguei para a casa do Junior.
A mãe dele, muito educada atendeu e disse que seria uma honra me receber
para o almoço. Fiquei meio sem jeito. Não foi difícil achar a rua e a casa. Na
varanda vi o Junior e sua irmã. Logo apareceu seu pai e sua mãe.
Cumprimentos, apresentações e além de mim, o Max também estava lá. Ele se
convidara como sempre fazia.
Uma família simpática e divertida. Um almoço dos deuses. O pai de Junior era
Engenheiro Mecatrônico, e trabalhava freelance para hospitais, clinicas e quem
quisesse seus serviços. Sua mãe prestava serviços de auditoria e trabalhava
mais em casa pela internet. Uma família “letrada”, unida e feliz.
Notei que não sabiam das historias dos “Cinco Magníficos”, ou se sabiam
achavam que tudo não passava de invenção deles. Às duas e meia da tarde, os
demais chegaram. Por sugestão de Jan, levamos algumas cadeiras de camping
e fomos ate uma pequena pracinha próxima. Local arborizado, crianças
brincando e vi que ali teríamos a privacidade para conversarmos mais a vontade.
Avisei ao Jan que estava na hora de começar. Chega de protelação falei. Eles de
novo se entreolharam, balançaram a cabeça concordando e Jan tomou a
iniciativa. Olhe chefe, não podemos assumir se alguma coisa acontecer. Só nós
conhecemos a historia e nada foi comentado com terceiros.
Para dizer a verdade, nada comentamos destas atividades com nossa chefia
sênior. Comentar seria motivo de gracejos, pilhérias, pois nenhum chefe ou
sênior acreditariam em nós. Conversamos sobre a confiança que depositamos
no senhor e para falar a verdade, ainda não temos certeza se podemos confiar.
No entanto, - continuou o Jan, desde a primeira vez o Senhor demonstrou ser
alguém que acredita e nunca desde que o conhecemos não achincalhou ou
caçoou de nós. – Agradeci. Mas pedi que continuassem, pois não podemos
controlar o tempo e ele passa rápido.
Olhe chefe, dizia o Jan, nada foi programado. Surgiu assim de repente, durante
uma reunião de seniores do distrito. Um sênior do Grupo Escoteiro Avante nos
procurou no final da atividade. Contou-nos uma história estranha. Vimos que ele
estava receoso, alarmado e tentou conversar com sua chefia. Ela não deu
crédito e ainda riram dele.
Já nos conhecíamos de outras atividades distritais e conforme suas palavras
escutaram de outros seniores que nos achavam “esquisitos”, talvez misteriosos
ou mesmo na sua maneira franca, excêntricos. Claro, não era sua opinião. No
entanto precisava de ajuda e achou que podíamos colaborar com ele.
Depois daquela “lenga lenga” toda, e claro seu elogio, prestamos atenção na
historia que contou. No sábado anterior, ao sair do colégio às 13 horas, viu um
velho, deitado na calçada, respirando com dificuldade, vestindo um terno preto,
com colete e gravata borboleta, sob um sol inclemente e ninguém parava para
socorrê-lo.
Continuou com sua narrativa de maneira não tão sutil. - Não sei se sabem, mas
fiz dois cursos de primeiros socorros e vi logo que poderia ser uma “insolação”.
Muitos que passavam achavam ser um pileque de um “velho desenvergonhado”
e nada faziam. Estava com meu cantil, pois não ando sem ele, o puxei até uma
sombra, desapertei sua gravata e camisa, tirei o paletó e molhando meu lenço de
bolso, fiz diversas massagens em sua testa e em volta do pescoço.
- Ele logo voltou a si e pedi para uma senhora ligar pedindo uma ambulância.
Foi então que notei que sua face era meio rosa, tinha as orelhas pontudas, sem
o chapéu caído ao lado só tinha fiapos de cabelos dos lados. Seu nariz me
lembrava muito um duende de um foto que vi recentemente.
A ambulância chegou e ele rejeitou peremptoriamente. Mesmo com a insistência
dos médicos e enfermeiros ele continuou a recusar. Desistiram e ele com minha
ajuda ficou em pé e estranhamente me encarou dizendo – Conheço você! Já o vi
por aqui de uniforme. Você sempre ajuda as pessoas. Ainda bem que o
encontrei.
Não entendi nada. Logo em seguida pediu desculpas, sorrindo de maneira
bizarra e insistindo que o levasse até sua casa. Deu o endereço e vi que ficava
atrás do cemitério do Bairro Saudade. Não era longe. O acompanhei em silencio.
Quando chegamos, avistei uma mansão sinistra, e por mais que insistisse não
entrei e voltei para minha casa.
Durante a semana, recebi diversas vezes um telefonema, (não sei como ele
descobriu) que deduzi ser o Velho Duende (desculpe o apelido), dizendo que
contava comigo, que sua sobrevivência dependia de mim. Disse que seu tempo
estava acabando e se não o ajudasse ele iria ficar aqui para sempre e não
voltaria jamais para sua família. Falei com meu pai e ele riu achando que estava
assistindo muito filme de terror.
À tarde de quarta feira, ele ligou novamente. Implorou, mas disse que precisava
de pelo menos seis rapazes para ajudá-lo no maior problema de sua vida. Falei
com minha mãe, com meu chefe de tropa, com outros seniores da minha
patrulha. Todos acharam que eu estava fantasiando e pela minha idade deveria
ser mais sério como sênior.
Foi então que nos procurou chefe – dizia o Jan, pois como dizia, éramos os
únicos que podiam ajudá-lo. Como? Perguntei – Indo comigo na casa do Velho
Duende amanhã, domingo - disse. O senhor sabe que gostamos de uma
aventura e o convite era um desafio. Passamos por poucas e boas e esta não
podíamos deixar de lado – continuou o Jan.
Fizemos um pequeno conselho de patrulha e decidimos ir com ele no dia
seguinte. Iríamos todos uniformizados. Isto mostraria nossa identidade e não um
bando de moleques invadindo casas alheias. Trocamos a noite vários
telefonemas entre nós. Estávamos preparados. O Velho Duende não iria nos
assustar facilmente. Claro se fosse verdade a narrativa do sênior.
Eram dez e meia quando nos encontramos próximo ao cemitério do Bairro
Saudade. Junto com o Sênior, cujo nome é Juací, nos dirigimos a tal mansão.
Realmente. O aspecto funesto era assustador. Nunca gostei muito de filme de
terror, mas ali estava um perfeito exemplar que podiam aproveitar para fazer um
belo filme.
Era cópia fiel de uma mansão assombrada que tinha visto na internet. Se me
lembro bem, chamava-se Mansão Llancaiach Fawr, que pertenceu à família
Princhard, numa pacata região do Sul de Gales, perto de Cardiff. Construída com
paredes de quatro pés de espessura, a casa era uma verdadeira fortaleza se
houvesse invasão de inimigos.
Mas vamos voltar a nossa narrativa. A mansão ficava afastada do bairro mais de
um quilometro. Andamos neste período por uma pequena estrada de terra, sem
avistar uma única casa. Ao chegarmos uma janela se abriu alguém colocou a
cabeça para fora e rapidamente tirou e fechou a janela. Já sabiam de nossa
presença e de nossa chegada.
Batemos a porta e foi aberta de chofre. Conheci o tal Velho Duende, como já o
chamávamos. Agora usava uma roupa verde, suas orelhas pontudas e nariz
também pontudo não deixava a menor dúvida com quem se parecia. Não vimos
ninguém atrás dele. Entramos em uma sala pouco iluminada, com um pé direito
muito alto, duas grandes escadas levavam ao andar superior.
As poltronas extremamente velhas, aqui e ali cadeiras com braços e as cortinas
rosa na penumbra, davam um aspecto irreal de boas vindas. Olhei por todos os
lados e não vi ninguém. Mas poderia jurar que estávamos sendo observados por
muitos olhos perdidos em cada canto da casa.
Agradeceu a Juací por ter vindo e nos deu as boas vindas. Juací explicou que
não tinham muito tempo e se possível que ele entrasse no assunto. Nossos pais
sabiam que estávamos ali e nos esperavam para o almoço e não podiam atrasar.
Vi que Juací era decidido. Talvez mais que nós, pois nosso grupo se mantinha
unido, bem perto um dos outros e receosos com aquele velho, com aquela casa
escura onde não avistamos ninguém a não ser ele.
Mandou que os seguíssemos. Temerosos e um pouco acovardados, fomos em
frente, ou seja, atrás do velho. Ele não falava nada, mas escutamos um farfalhar
de vozes, ou melhor, um zumbido estranho, parecendo que milhares de ratos
estavam reunidos disputando um belo queijo francês. Ele abriu uma porta, e
desceu centenas de degraus até um local com um brilho incrível.
Eu que sou um estudioso de tumbas egípcias, vi ali uma replica perfeita.
Estávamos bem abaixo do porão da mansão. Ali considerando a entrada e a
descida em parafuso por escadas de madeira descemos mais de 150 metros
abaixo da superfície da casa.
Era assombroso o que vimos e encontrar um salão como aquele. Interessante
que não havia luz, tochas, no entanto o local era bem iluminado. Estávamos
todos perplexos com tudo que estávamos vendo. Afinal estávamos no Brasil e
não no Egito.
O porquê alguém construir algum assim, era para nós um mistério. Não
tínhamos nenhuma noção de quem o fez. Devia ser alguém muito excêntrico,
com dinheiro, conhecedor dos segredos dos faraós, e nada como fazer uma
réplica. Quem sabe queria ser enterrado como se fosse a primeira múmia
brasileira.
Durante alguns minutos ficamos parados, estáticos, sem saber o que dizer. As
paredes pareciam cobertas de ouro, e podíamos ver vários escritos em
hieróglifos. Nenhuma porta, nenhum sinal de outra passagem.
Até ali não entendíamos que tipo de ajuda ele iria precisar de todos nós.
Aguardávamos que dissesse alguma coisa e ele de cabeça baixa, mexia com os
braços, com o corpo e aconteceu! Uma enorme porta se abriu como se fosse
uma engrenagem milenar.
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
Os cinco Magníficos
(Os cinco Magníficos são seniores da patrulha Aconcágua, do 568º Grupo
Escoteiro Pico da Neblina. Rotineiramente estarão aqui contando suas epopeias
divertidas e aventureiras. Muitas já vividas pelos nossos magníficos seniores de
todo o pais. Sejam bem-vindos a patrulha Aconcágua e os cinco Magníficos).
"Nunca diga às pessoas como fazer as coisas. Diga-lhes o que deve ser feito e
elas surpreenderão você com sua engenhosidade."
(George Patton)
Historia de hoje: A Mansão do Duende cor de Rosa
Capitulo III
Nossos olhos não despregaram da porta. Ela se abria devagar, sem nenhum
barulho, sem nenhum gemido. O silêncio era mortal. Estava imaginando o outro
lado. Tesouros com barras de ouro, pedras preciosas, colares, pulseiras, objetos
incrustados brilhando, mas, que decepção. Ao abrir vimos outro salão, bem
menor, como se fosse o inicio de um corredor, só que não tinha mais que uns 10
metros de comprimento, por uns dois de largura.
Ao adentrar no salão, a porta se fechou. O Velho Duende resolveu explicar tudo.
Porque estávamos ali, e o que esperava de nós. Sua voz fanhosa e fantasiosa
saía de sua boca em sons guturais. Desta vez não gesticulava. Seu semblante
não tão simpático, agora demonstrava uma agonia sem precedentes, como se
nós fossemos o salvador, aqueles que afinal poderiam dar um novo rumo em
sua vida.
- Meu nome é Josuhá – disse - tenho 486 anos e sou natural de Leprechauns,
cidade próxima a Mooinjera, segunda dimensão oposta da Irlanda. Somos todos
Goblins, ou pode nos considerar Elfos ou Gnomos, mas nos consideramos bem
mais civilizados. Não sei como vim parar nesta cidade. Há seis meses atrás, fui
transportado sem perceber e me vi alojado nesta mansão. Ela estava
abandonada e quando me dei conta me vi só, sem víveres, e cercados de
ratazanas que habitam aos milhares na Mansão.
- Vasculhei todos os quartos, salões, e descobri esta sala por acaso. Quando
aqui vinha, não tinha nenhum conhecimento de como abrir esta porta que vocês
viram. Não sou mágico, e nem um Zanganito. Perguntei o que era Zanganito e
ele respondeu que eram Duendes encantados. Foi então que uma luz cintilante
me mostrou como voltar e ao mesmo tempo manter escondida nossa civilização
dos Browne, uma raça que quer exterminar a nossa.
- A luz, que deduzi ser do meu Mestre Zincayan disse que existem seis portas a
serem ultrapassadas. A cada uma é necessário cumprir uma missão para que a
outra se abra. Não me foi permitido saber qual e nem ser participante dela. As
missões só podiam ser realizadas por jovens, puros nos seus pensamentos,
palavras e ações. Jovens em que se pudesse confiar, e que tivessem coragem
para não desistir de cada missão apresentada.
- A principio, continuava o Velho Duende, agora chamado de Josuhá, não
entendi o que isto significava. Enquanto não sabia onde encontrar esses jovens,
passei a conhecer sua cidade, seus habitantes, o que pretendiam suas agruras,
seus sorrisos, enfim, analisei muitos e pouco compreendi. É difícil entender
vocês, mas sem querer, me dei um dia com um escoteiro ajudando e
colaborando sem pedir nada em troca.
Deduzi que sua organização era feita de pessoas honestas, com honra e
lealdade suficiente para me ajudar. Não sabia como encontrá-los. Fiquei
zanzando por meses e nada encontrando. Era difícil perguntar, pois todos
tinham receio do meu rosto e da minha voz.
- De tanto andar, um dia perdi a noção de tudo, desmaiei e quando abri os olhos
me dei com um de vocês, o mesmo traje do outro que vi praticando boas ações.
Vi que me ajudava, e que em pouco tempo recuperei minhas forças e quando se
prontificou a me levar a um hospital agradeci. Achei que tinha encontrado o que
precisava. Não precisava procurar mais.
- Consegui convencê-lo e eis que você me aparece com mais cinco. Perfeito.
Não sou ótimo nas palavras, mas acredito que podem me ajudar. Não se
assustem com as missões que irão aparecer. Não serão tão difíceis. Se forem,
será o meu fim. Deixei na minha terra, uma esposa e uma filha. Não sabem onde
estou e se vou voltar.
Olhe chefe, - continuou o Jan – Não estava gostando nada daquilo. Não
sabíamos o que encontraríamos. Afinal de Indiana Jones nas suas mais
perigosas missões, estávamos longe. De sua coragem e perseverança nem sei o
que pensar. Ned foi quem tomou a iniciativa para saber como eram as missões.
Josuhá tocou em um ponto da parede, e eis que apareceu um grande
formigueiro, com milhares de formigas do tamanho de abelhas andando aqui e
ali.
Disse-nos que um de nós, que conseguisse passar, sem matar nenhuma formiga
e ser picado por elas, abriria a porta da segunda missão. A coisa engrossou.
Como passar? Como fazer? Junior disse que conseguiria. Tirou do bolso uma
barrinha de chocolate e aos poucos pingando água do seu cantil em cima, o
chocolate foi desmanchando formando uma pequena bolha doce em um canto
do formigueiro. Dito e feito. As formigas correram em cima do chocolate. Junior
em pouco tempo atravessou sem machucar nenhuma delas.
Josuhá deu pulos de alegria, logo viu que o formigueiro tinha desaparecido.
Apertou outra parte da parede e um enorme fosso cheio d’água apareceu. Ele
disse que no fundo, quem mergulhasse deveria encontrar uma agulha azul, e
deveria ser picado por ela. Não haveria sangue e a água evaporaria em
segundos. Não poderia vir á tona para respirar enquanto não encontrasse a
agulha azul. Se emergisse, tudo estaria acabado.
Max se ofereceu. Disse que sempre foi bom de mergulho e sem esperar
consentimento mergulhou de uniforme, só deixando para traz o cantil e a boina.
Passou-se um minuto, dois minutos, três minutos e começamos a ficar
preocupados. Quatro minutos e vimos à água desaparecer com uma rapidez
incrível. No fundo Max estava como que desmaiado. Pulamos no buraco, uma
pequena respiração artificial boca a boca e pressão no tórax próximo ao coração
e logo ele voltou a si.
Josuhá apertou outro local na parede. Duas missões foram cumpridas.
Restavam quatro. Uma pequena passagem se abriu. Quatro cascavéis de metro
e meio estavam rastejando daqui e dali. Não precisamos perguntar. Vimos um
anel pequeno, sem ornamentos, no meio das cobras. Alguém teria que ir lá
pegar.
Ninguém falou nada. Todos nós morríamos de medo de cobras. Conhecíamos
bem as cascavéis. Juaci se prontificou. O que ele iria fazer? Não tínhamos a
mínima ideia. Ele pé ante pé se aproximou da primeira cobra e jogou um
punhado de areia em seus olhos. A cobra começou a saltar e em seguida Juaci
fez o mesmo com a segunda e a terceira. Faltava a quarta. Ele saltou em cima de
Juaci que se desvencilhou e deu seu cantil para ela. Foi uma mordida e tanto no
cantil. Deu tempo para Juaci pegar o anel. As cobras sumiram.
Mais uma e agora restavam três. Josuhá não perdeu tempo. Já estava sorrindo e
sonhando com seu retorno. Apertou outro canto da parede. Uma fumaça preta
tomou conta do final do salão. Josuhá disse que era uma fumaça venenosa.
Quem aspirasse morreria em segundos. A missão consistia em atravessar a
fumaça, encontrar a parede do outro lado e achar o ponto exato onde tinha um
botão que a fazia desaparecer.
Agora sim. Quem de nós se ofereceria? Nem bem pensei e eis que o Leo se
prontificou. Tirou um lenço de bolso, cortou duas pequenas partes com seu
canivete, molhou com água e fazendo duas pequenas bolas, enfiou em cada
narina bem fundo. Ao ver aquilo até eu perdi a respiração. Leo correu e entrou
na densa fumaça. Graças a Deus não demorou muito. Em menos de 3 minutos a
fumaça tinha desaparecido.
Mais duas pela frente. Eu estava suando a bicas. No entanto vi que os demais
estavam se divertindo! Só mesmo estes “Cinco Magníficos”. Josuhá de novo
apertou a parede. Apareceu no chão o desenho de três trevos de quatro folhas
cada um. O sortudo teria que pisar em pelo menos seis folhas e estas deveriam
soltar um pó amarelo. Pisando em uma folha que soltasse o pó azul seria
considerado erro. Teria duas chances de erro.
Era uma das piores. Se não conseguíssemos perderíamos todas as missões
completadas. Eu me ofereci. Sempre fui um “cara de sorte”. Ganhei diversas
vezes as rifas que comprei. Nunca joguei em loterias e nada de errado acontecia
comigo. Considero-me um sortudo. Tudo dava certo em todas as situações
difíceis em minha vida. Sabia que ali também minha sorte não faltaria.
Que seja o que Deus quiser pensei e lá fui. Nas primeiras quatro folhas pó
amarelo. Sorrisos e aplausos. Nas outras duas pó azul. Tristezas, desânimos.
Não teria outra chance. Pisei em outra, pó amarelo. Fiquei amarelo de medo!
Faltava uma. Fiquei ali parado, pensando, margeei duas e pisei na ultima. Pó
amarelo! Gritos, alegria, abraços.
Faltava somente uma. Eu tremia como vara verde. Os demais continuavam
eufóricos. Não sabiam dos perigos ou não queriam acreditar que tudo fosse
verdade. Eu não. Sabia e tinha certeza que um só erro, um de nós poderia até
perder a vida.
Josuhá apertou novamente a parede. Desta vez estremeci. Uma parte dela
começou a se movimentar em direção a outra. Tínhamos somente uma área de
dois metros quadrados que não se mexia. Ali ficamos. Josuhá disse que a
parede iria parar a 15 centímetros da outra. Alguém teria que ficar ali e não ser
esmagado.
Não dava para mim. Era meio gordo. Mas Ned se ofereceu. Com mais de um
metro e oitenta era um perfeito vara pau. Encostou-se à parede contrária,
diminuiu a barriga, virou a cabeça para o lado e esperou. Sentiu que a parede se
aproximava e achou que seria esmagado. A parede parou. Vimos Ned esticado
sem mexer. Estava prensado entre as paredes e não podia sair.
A parede continuava lá. Olhamos para Josuhá. Ele nada dizia. Vimos à parede
virar pó. Josuhá nada dizia. Um barulho tremendo aconteceu. Foi então que
Josuhá olhou para nós e disse, corram o mais que puder. Tudo deu certo. Volto
para minha gente. Vocês não podem dizer para ninguém o que viram ou fizeram.
Quem souber disto, pode virar um Duende quando aparecer um Arco Iris a sua
frente. Cuidado!
Olhamos para traz e vimos à escada de madeira se desmanchando. Em saltos
enormes subimos como se fossemos uma pantera correndo de seu matador.
Chegamos ao salão. Saímos rápido pela porta, corremos até umas árvores.
Vimos a Mansão se transformar. Não dava para acreditar. Voltou sua pintura
quando construída, apareceu em volta um belo jardim.
Em poucos segundos, todo cenário tinha mudado. A Mansão era uma linda e
esplêndida casa. Vimos até pequenos rolos de fumaça saindo pela sua chaminé.
Incrível! Não dava para acreditar o que era e no que se transformou. Em uma
janela uma linda jovem apareceu. Mais acima em outra janela o sorriso de
Josuhá, com seu nariz afilado, sua tez esverdeada nos acenando e
desaparecendo em seguida.
Voltamos para nossas casas sobressaltados. Era uma história fantástica. Eu não
acreditava em tudo que vi. Perguntei a cada um se tinha realmente acontecido.
Brancos como papel, só diziam sim com a cabeça. Durante uma semana não
dormi direito. Na reunião seguinte resolvemos voltar lá no domingo.
Convidamos Juaci.
Uma bela surpresa. Uma grande casa, verde musgo tinha surgido. Um lago cheio
de flores, gansos e patos nadavam alegremente. Próximo a casa corria um
regato de águas límpidas. Duas crianças de mais ou menos oito anos brincavam
no jardim da frente. Nem sinal de Josuhá.
Combinamos de não contar para ninguém. Claro, a maldição para nós não tinha
tanto significado, mas o deboche, a troça e zombaria não faz parte de nosso
dicionário. Olhe chefe isto aconteceu há dois meses atrás. Nunca mais vimos ou
ouvimos falar em Duendes. Josuhá era uma sombra do passado que se foi.
Se ele voltou para sua cidade, junto dos seus, e se alcançou a felicidade da
volta, pois aqui se sentia deslocado, ótimo. Quem sabe um dia poderemos ir até
a segunda dimensão que disse e lá encontrá-lo de novo. Já passamos por tantas
coisas que nada seria difícil para aumentar nossas aventuras.
A tarde chegou. O sol estava se pondo. Debaixo daquelas árvores a brisa corria
leve e solta. Olhei o semblante de cada um. Nenhum parecia estar inventando
novamente esta história. No entanto era difícil de acreditar. Foi bem narrada. Se
for mentira ficaram um bom tempo preparando e decorando cada situação. Nos
Cinco Magníficos nenhum sinal de que foram bons na história inverossímil.
Levantei para despedidas. Meu voo seria às 23 horas e tinha pouco tempo para
arrumar tudo. Fiquei calado. Não opinei. Não disse nem sim e nem não. Era uma
história fantástica! Quem sabe digna de um grande filme feito por grande diretor
ficcionista de cinema americano. Não sei se já li algum parecido. Acredito que
sim, mas não me lembrava. Eles não demonstravam nada. Eram excelentes
atores. Já tinha dito isto.
Mas e se fosse verdade? E a maldição? Ficar verde com orelhas pontudas e
nariz afilado ao ver um Arco Iris? Até seria bom, pois quem sabe encontraria o
tal Pote de Ouro que os Duendes tanto procuram? Despedimo-nos, e quando
abracei o Jan, ele me disse ao pé do ouvido – Pode acreditar chefe. É e foi
verdade. Não há mentiras. O Escoteiro Tem uma só palavra e sua honra vale
mais que sua própria vida.
Dei meu sempre alerta e voltei ao hotel. Tomei um banho, troquei de roupa, e
quando ia saindo com minha mala o telefone tocou. Era o Jan. Estava me dando
um até logo, pois contava que voltasse novamente. Ele tinha se reunido com a
patrulha e eles concordaram que da próxima vez me contariam à aventura que
viveram com o “Prefeito e o Padre Fantasma da Cidade Perdida”.
Incrível! Espantoso! Estes “Cinco Magníficos” eram terríveis em suas historias e
aventuras. Mas eu não deixaria de voltar. Sentia-me bem junto deles. Confesso
que não acreditava totalmente, mas a dúvida era grande! Contavam com tanta
veracidade e de maneira tão escoteira que um embuste estava fora de questão.
Os cinco representavam bem seu papel. A cada narrativa mais ficava
impressionado. Em toda minha vida escoteira nunca conheci alguma patrulha
que tivesse tantas aventuras para contar. Ali, escondidos em uma pequena
cidade estavam os perfeitos exemplares de todos nós escoteiros, que procuram
suas próprias aventuras. Mais uma para meus contos com aquela mistura de
ficção e realidade.
Eu me considero diferente de muitos. Acredito nos escoteiros. Afinal fazem uma
promessa, tem uma Lei para seguir e sabendo que a honra é importante em suas
vidas nunca, mas nunca iriam mentir... Pois sim, vou acreditar!
E quem quiser que conte outra...
"Dando um chute na sílaba da palavra impossível IM, qualquer pessoa terá a
certeza de sucesso."
Baden Powell (BP)
O TESOURO DO CONDOR – UM JOGO INESQUECIVEL
Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao
menos por desonestidade.”.
(Sócrates)
Faltava pouco menos de meia hora para o encerramento da reunião de tropa.
Estávamos em reunião de patrulha, a pedido do conselho de monitores, para
discutirmos, sugerir e ver como deveria ser o Grande Jogo cujo programa anual
marcava a sua execução para o próximo mês de outubro. Era uma tradição e
nunca o deixamos de realizar.
Olhos de Peixe havia sido transferido para nossa patrulha, a menos de cinco
meses, ele tinha vindo de um grupo da capital do estado, mas se incorporara
como se fosse o mais antigo. Enquanto discutíamos, ele deu uma sugestão que
achamos excelente. Toda a patrulha votou a favor. Na reunião do sábado
seguinte, ficamos sabendo que a Corte de Honra havia aprovado e foi uma
alegria geral. Nós tínhamos uma ideia do jogo, mas sabíamos que o Chefe Jessé
iria melhorar, e claro, dar uma grande “pitada” de aventura.
Uma semana antes da nossa atividade, recebemos duas cartas pregos, uma para
ser aberta no dia do jogo, as 06 as da manhã do dia do jogo e a outra no campo,
após o inicio do jogo, que seria sinalizado por grandes rolos de fumaça que
avistaríamos de onde deveríamos estar localizados.
Sabíamos e era ponto de honra, só abrir as Cartas Pregos no dia e horário
determinado. Isto não tinha discussão e nem era discutido! Recebemos também
quatro bandeirolas amarelas, e a lista de materiais a ser levado: – lanche para
um dia, cantil, um par de bandeirolas de semáforas, uma bússola silva, quatro
bastão, uma machadinha, um facão com bainha, uma faca mateira.
Não olvidar de levar três lenços sobressalentes (lenços do grupo), estojo de
primeiros socorros, uma lona para chuva, meias reservas, reserva financeira
para duas passagens de ônibus. Como cada um de nós tinha o seu bastão foi
alertado para não nos esquecermos de levar.
Todos deveriam estar preparados para uma atividade movimentada e para isto
levar um calçado adequado. Claro, não direi o que passei na semana anterior, na
espera deste grande jogo, que seria o meu primeiro na patrulha. Dormia e
acordava pensando no grande dia.
Às seis horas da manhã em ponto, a patrulha já estava a postos, na praça
próximo ao ponto de ônibus e abrimos a primeira carta prego.
Gostaria de esclarecer que a Patrulha Águia, era composta de sete escoteiros,
eu (Zé bolinha), Pinga Fogo, Zé Colmeia o monitor, Fu Manchu, Olhos de Peixe,
Picolé o sub e Pé de Bode (só apelidos para preservar os nomes). Todos
primeiras e segundas classes, ou seja, uma patrulha bem “escolada”.
Dizia: (a Carta Prego)
1) – Vocês devem tomar o ônibus de Cariri, que irá passar as 06h25min,
descer no ponto final. Ali pegar a Rua das Flores, ir ao seu final. Lá
encontrarão uma estrada carroçável, segui-la por 2 km (deve ser marcado
com o passo duplo). Após orientar pela bússola e tomar o rumo ENE,
mais ou menos 67,5 graus, percorrer mais 800 metros, atravessar um
pequeno córrego com águas límpidas e boa para beber.
2) Segui-lo no sentido nascente por 200 metros e montar o campo assim
especificado: - em forma de pontos cardeais (um x) com mais ou menos
15 metros de uma ponta a outra e vice versa. Colocar em cada ponto um
bastão com uma bandeirola amarela, (o bastão deverá ser fincado no
máximo com um palmo de fundo). No meio do x, ficará o totem de
patrulha, colocado na mesma maneira. Devem fazer um pequeno cercado
de 2 x 2 metros usando madeira do campo e cipó. Mais tarde saberão
para que.
3) – Ao inicio do jogo, as demais quatro patrulhas também estarão como
vocês, como o campo armado e idêntico em algum lugar próximo. Fora da
vista.
4) – Aguardem o inicio do jogo, que pode demorar de uma a duas horas.
Fiquei em posição de alerta e mantenha um escoteiro de vigia.
Nada mais dizia. Sabíamos que as outras patrulhas estavam nesta hora fazendo
o mesmo.
Aguardamos uns bons setenta minutos e eis que vimos de um morro próximo,
rolos de fumaça, com o sinais de “O jogo já começou – guerra”. Abrimos
imediatamente a segunda carta prego e ela dizia:
1) - Vocês devem colocar os lenços presos pelo cinto, (proibido amarrar)
somente dois palmos para dentro da calça, e defenderem como puderem
as quatro bandeirolas em volta (amarelas) e principalmente o totem que
se for tomado vocês todos morrem perdendo o jogo.
2) – Se defendam das outras patrulhas para não perderem o lenço, pois
assim serão considerados mortos e devem receber ordens do “matador”
que irá conduzi-lo para o campo de prisioneiros.
3) – Cada patrulha tem um campo próprio e cercado que fica no centro
próximo do bastão totem, para no caso de fazerem prisioneiros.
4) – O objetivo do jogo é defender as bandeirolas e principalmente o totem e
ao mesmo tempo ir aos demais campos de patrulha e fazerem o que eles
vem fazer com vocês.
5) – A patrulha que conseguir mais vidas (tirar os lenços), tomar as
bandeirolas ou ter o maior numero de bastão totem, é a ganhadora.
6) É proibido – Lutas, brigas, palavrões (olhem a lei escoteira) e discussões
inúteis;
7) É aceito – Qualquer tipo de truque, força (sem denegrir imagem), ou
qualquer situação a ser criada para ganhar o jogo.
8) O jogo terá a duração de seis (seis) horas, a contar do sinal de o Jogo já
começou – guerra. O sinal de fumaça “O jogo já terminou – paz”
determina a paralisação imediata do jogo.
9) Lembrem-se, vocês devem proteger o seu campo e também atacar os
demais. Como fazer e o que fazer fica para o conselho de patrulha
resolver.
10) Estaremos toda a chefia em local privilegiado, vendo vocês através de
potentes binóculos. Onde veremos qual a patrulha mais esperta e a mais
não tão honesta! (naquela época não havia telefone celular, se fosse hoje,
seria proibido.).
11) Boa sorte Patrulhas da Tropa Mafeking!
Começamos o jogo. Seu desenrolar foi o esperado. Muitas surpresas, muitas
alegrias e até um pouco de confraternização.
COMPLEMENTO
Foi um jogo para nós escoteiros. O final deixo por conta de cada um pensar
quem ganhou. Quando passei para os seniores fizemos novamente o mesmo
jogo, desta vez em dois dias. Bem mais difícil.
Vejamos:
1) – O jogo foi aplicado em dois dias. Cada patrulha ficou acampada junto a sua
base, portanto o material a ser levado foi acrescentado de três refeições e
barracas. Tudo isto levado por nós seniores em mochila e saco próprio.
2) – Foi preparado um mapa do tesouro com sua localização e cada patrulha
recebeu uma copia. O mapa foi picotado em tantas partes quanto forem os
bastão com bandeirolas e colocado em sacola própria amarrado a estes.
3) – Para se localizar o tesouro, é necessário pelo menos que três bandeirolas
sejam tomadas. Assim pode-se ver onde está escondido. Só a chefia sabia
onde estava. Estiveram lá antes do jogo.
4) – No primeiro dia, a tomada de bandeirolas só foi até às 18 horas. A partir
deste horário até 08 horas da manhã seguinte, o jogo foi interrompido. Tudo
isto é claro com sinal de Morse e em alguns casos por semáforas ou fumaça.
A chefia decidia.
5) – O segundo dia foi reservado para a busca do tesouro. Só para as patrulhas
que conseguiram o mapa ou parte deste. As que não conseguiram ficaram
em seu campo até o final do jogo. Uma programação especial foi preparada
com antecedência pela chefia. Eles, os chefes não gostavam de ociosidade
no campo.
Prefiro não comentar quem foi campeão. Só posso afirmar que todos
conseguiram parte do mapa. Foi uma surpresa o tesouro. Seis canivetes suíços
e para o segundo lugar um belo corte de picanha e um lombo de porco para um
churrasco. Os segundistas fizeram um belo e delicioso churrasco para todos o
que atrasou em mais de 3 horas o retorno à sede, mas com grande
confraternização.
Foi um Grande Jogo e alguns anos depois repetimos novamente.
E quem quiser que conte outra...
Nenhuma propriedade, nenhuma quantia de ouro e prata é mais estimável do
que a honestidade." (Cícero).
João Peçanha – o famoso Chefe Borboleta
“Amigo: alguém que sabe de tudo a teu respeito e gosta de ti assim mesmo."
(Elbert Hubbard)
O nome dele era João Peçanha. Nós o chamávamos de Borboleta. Nada de
eufemismo não. Também não tinha nada de afeminado. Não sei por que do
apelido, mas era comum em nosso Grupo Escoteiro. Não perdoávamos
ninguém.
Um dia apareceu na sede com o livro do Velho Lobo na mão, O Guia do
Escoteiro (Por volta de 1920, o “Velho Lobo” denominação adotada pelo
Almirante Benjamin Sodré começa a publicar na revista “Tico-Tico” uma coluna
regular denominada “Escotismo”. A partir desse material o Velho Lobo publica
em 1925 o Guia do Escoteiro, reeditado em 1932, 1943, 1954 e em 1994, neste
último ano, pelo Centro Cultural do Movimento Escoteiro).
Disse que tinha comprado de um amigo e que este ganhou de outro. Nada
contra. Para nós naquela época era nossa Bíblia. Pediu para olhar nossas
atividades e ali ficou por uns dois meses. Conseguiu conquistar amizades e eu
mesmo tinha por ele enorme consideração.
Pelos meus cálculos, devia ter entre 28 e 30 anos. Era até simpático, mas se
vestia pobremente (quando aceito como Escotista, demorou um bom tempo para
adquirir o uniforme completo) Procurou-me um dia se podia participar. Disse-me
que conhecia de cor e salteado tudo que o Velho Lobo escreveu no livro. Podia
fazer os nós de olhos fechados e sabia todas as provas ali descritas. Eu nesta
época era Escotista de tropa e “sapeava” nas horas vagas nos seniores. Eles
sempre me convidavam para suas atividades.
Conversei com o Batista, nosso Chefe de Grupo e ele que também ficou amigo
do Borboleta concordou de pronto. Ficamos sabendo que ele tinha uma pequena
oficina de conserto de bicicletas e morava com a mãe num bairro afastado.
Foi uma grande surpresa. Na primeira atividade da tropa Sênior (onde ele foi
como assistente) demonstrou um conhecimento que nos deixou boquiabertos.
Nunca tínhamos visto nada igual, pois se declarara nunca ter sido escoteiro em
sua vida. Sabia como ninguém aplicar amarras, dar nós, mostrou-nos novas
técnicas de armar barracas de duas lonas suspensas, sabia como construir
pioneirias, para nós todas novas, nadava como um peixe, nunca se cansava, era
o primeiro a levantar (sempre cantando o Ra-ta-plã) e o último a se deitar.
O que marcou mesmo o chefe Borboleta foi uma excursão de oito dias feita nas
férias de janeiro (lá pelos idos de 1959) onde iríamos percorrer
aproximadamente 450 quilômetros entre ida e volta, por quatro cidades. Dois
motivos nos prendiam nesta jornada. Ambos merecedores de toda a atenção e
prometia e muito no nosso currículo que não anotávamos a não ser gravar na
memória.
O primeiro era de grande monta. Ficamos sabendo por fonte não autorizada que
existia um Grupo de Bandeirantes numa cidade afastada, atrás do Pico Baraúna.
Isto chamou a atenção dos seniores e eu também fiquei interessado. Nunca
tínhamos visto uma bandeirante. Só de histórias e de algumas leituras aqui e ali.
O segundo era velho conhecido. Nos últimos dois últimos anos, sempre
participávamos no aniversário de um grupo Escoteiro amigo de uma cidade
localizada no Vale da Redenção, e nos anos anteriores tínhamos ido em viagem
de trem. Agora não, chegaríamos de bicicleta. Só a Tropa Escoteira e os
Lobinhos iriam de trem.
Seria uma pequena volta, mas valeria à pena. Eram terras desconhecidas e nada
melhor do que explorá-las antes que outros escoteiros lá estivessem.
Conversamos com diversos amigos e desconhecidos que pudessem nos dar
informações, pois ir pela estrada principal estava fora de cogitação. Aumentaria
o percurso em 200 km.
No dia marcado partimos pelas cinco da matina. Borboleta foi conosco. Eu era
um convidado da tropa Sênior. A primeira cidade ficava a uns 80 k,
(descobrimos uma estrada carroçável) atrás do pico famoso em nossa cidade.
Um caminho além-mundos. Típicos de nossas escolhas. Não foi fácil. Só subida.
Nestas, empurrávamos as bicicletas a pé. Éramos um total de 15 sendo 12
seniores e três chefes.
Borboleta era o mais animado. Enquanto estávamos sem ar na subida, ele
cantava a Arvore da Montanha a pleno pulmões. Um grande praça, alegre,
prestativo e o nosso salvador quando alguma bicicleta dava defeito. Se
necessário, cortava um pedaço de arame farpado e dele fazia a peça necessária
para o reparo.
Chegamos por volta das 09 da noite. Foi uma viagem e tanto. A maior parte
empurrando bicicletas morro acima. Alguém da tropa apelidou de Serra do
Escorrega Sapo. Porque não sei. Claro, muitas escorregadas. Lembro que no
caminho encontramos um jipe descendo a serra, com quatro capuchinhos, um
deles fez um sinal e achei que nos “benzia”. Deve ter nos achado malucos.
Procuramos um pequeno campo de futebol e armamos as barracas. Ninguém
por perto. Dormimos. Acreditamos ser um local pacífico e não montamos
guarda.
Levantamos cedo. Lá pelas 06 e meia. Surpresa. Uma enorme multidão fazia
círculo em volta das barracas. O prefeito chegou pouco depois. Deu-nos as boas
vindas. Não sabíamos como agir. Convidaram-nos para um almoço no Lions
Club da cidade. E sabe quem praticamente nos chefiou? O meu amigo
Borboleta. Ficou amigo do Prefeito, do Delegado, do Juiz e não sei de mais
quem.
Na hora do almoço, apareceram as Bandeirantes, olhe meus amigos, eram mais
de 150 moças. Não vi Nenhum chefe masculino. Em compensação muitas
senhoras mostrando ser as coordenadoras e ficamos embasbacados. Pudera, a
visão era estonteante e acho que nunca mais esqueci aquela abantesma
inexplicável aos olhos de um jovem Escotista.
Meus amigos, na época eu estava na flor da idade, apenas 18 anos. Muitas delas
de cair o queixo, lindas! Soberbamente bem uniformizadas, de blusa branca,
saia azul e um lencinho dobrado no pescoço. Os seniores perderam a voz! Nada
diziam a não ser admirar o que nunca tinham visto e tão cedo iriam ver de novo.
Para uma pequena cidade que não tinha mais do que 15.000 habitantes, eram
uma surpresa e tanto!
Estavam formadas em fila de três, me parece por “batalhões”, como se fossem
desfilar. Maravilha. Bandeirantes militares. Fizeram algumas evoluções ao som
de uma fanfarra também feminina, muito boa por sinal e depois de algum tempo
partiram em direção ao centro da cidade, marchando garbosas, sem dizerem
adeus. Nenhuma delas. Não houve apresentação e assim como chegaram
partiram.
Após o almoço perguntamos onde era a sede delas. Disseram-nos que era
proibido a entrada. Mas insistimos e lá fomos. Não encontramos ninguém.
Mesmo sendo uma cidade pequena, não vimos nenhuma de uniforme. Sumiram!
Não entendemos nada. Era ou não um núcleo de Bandeirantes? Ou eram uma
imitação fazendo a vez de jovens militares? Nunca tivemos a resposta.
Nada mais havia a fazer ali. Nosso programa era de partimos a tarde e assim foi
feito. Anoiteceu e uma bela lua cheia iluminava a estrada de terra. Uma bela e
grande descida. Mais de 45 quilômetros naquela descida infernal pela noite
adentro. Foi aí que aconteceu a tragédia. Numa curva, em grande velocidade,
levei um grande tombo, rolando pelo chão e terminando em uma cerca de arame
farpado.
Dito e feito. Senti que havia fraturado a perna. Osso pontudo aparecendo abaixo
do joelho. Uma dor incrível. Todos em volta assustados. Eu chorando baixinho,
mas querendo mostrar uma força que não tinha. Era impossível suportar,
principalmente vendo o osso e o sangue que saía aos borbotões. Dizem que os
heróis e corajosos não choram. Não sou corajoso e nem tenho sina de herói.
Nesta hora conheci o verdadeiro Chefe Borboleta. Mandou-me esticar a perna e
sem avisar mexeu com o osso e ele voltou para o lugar. Uma dor terrível e gritei
alto. Tirou seu lenço e pediu outros cinco. Amarrou forte em cima da fratura.
Saiu e voltou com quatro pedaços de madeira de mais ou menos duas
polegadas por uns 25 centímetros. Amarrou em cima da pseudo atadura. A dor
continuava. Colocou-me nas costas e partiu a pé. Outro levaram minha bicicleta
e a dele.
Chegamos numa fazenda e o proprietário foi muito gentil. Tinha uma pequena
charrete e após colocar um cavalo nela, nos levou até a próxima cidade. Foram
mais 15 km só descendo. Minha bicicleta ia amarrada a charrete. Chegamos lá
com o dia amanhecendo. Apesar da dor, uma vista de tirar o chapéu – O rio
brilhando com o nascer do sol cintilante e ofuscando a vista.
Graças a Deus lá tinha um médico que sorriu e cumprimentou a todos com a
mão esquerda. Disse ter sido escoteiro quando jovem. Ótimo. É sempre assim.
Dou sorte em encontrar ex-escoteiros. Disse-nos que sendo uma fratura exposta
ele ia alinhar o osso no lugar e engessar. Explicou que se não fosse pelo pela
atadura do chefe eu poderia até perder a perna. Agora, dizia, era necessário ficar
uns meses com o gesso sem movimentar a perna.
Concordei discordando em silêncio. Não ia perder a atividade em Redenção.
Sabia que ali passava o trem rápido das 12 horas e nada mais confortável que ir
para a segunda atividade assim. Nada falamos para o médico. Os demais sabiam
que seria impossível em voltar para casa.
O Chefe Sênior despachou minha bicicleta para minha cidade de origem.
Telegrafou para um amigo na estação e guardá-la até eu chegar. Chegamos na
cidade de destino ainda à tarde. Na estação encontrei vários escoteiros e chefes
que esperavam outros grupos escoteiros que já estavam naquele trem inclusive
o nosso.
Fui levado até o local do campo de carro e lá fiquei por toda a atividade.
Arrumaram para mim uma muleta e foi uma festa. À noite a tropa sênior chegou
com o chefe Borboleta. Eles vieram no final da jornada pedalando. Entre uma e
outra cidade, era perto, apenas 100 km.
O programa foi excepcional. Não participei diretamente. “Moletando” aqui e ali,
conversa com um, visitava outro e assim de barraca em barraca, de campo em
campo, revia e fazia novas amizades. No encerramento, durante a Cadeia da
Fraternidade, mesmo com sacrifício, participei e chorei. Para mim isto era
comum. Já não sentia mais dor na perna.
Deixei lá muitos amigos. Voltei outros anos, até que mudei de cidade. As
notícias precárias e distantes mais se afastavam do meu cotidiano.
Soube por fontes não oficiosas que o chefe Borboleta ficou no grupo por mais
alguns anos. Soube depois que resolveu ir tentar a sorte em Serra Pelada, época
do inicio da garimpagem de ouro e que estava atraindo muitos brasileiros
sonhadores. Nunca mais ouvimos falar dele. Quem sabe ficou rico.
Fiquei batizado de chefe Muleta Torta pelos seniores. Tudo bem. Foi uma
experiência. Valeu. Ainda mais por ter por perto um chefe durão como o meu
amigo Borboleta. Quanto não daria para voltar no tempo. Sei que isto é
impossível, mas foram anos de uma extrema felicidade. As lembranças são
como punhados de ouro em pó que soltos ao vento brilham ao sabor do sol.
E quem quiser que conte outra...
Não confunda jamais conhecimento com sabedoria. Um o ajuda a ganhar a vida;
o outro a construir uma vida.
Sandra Carey
A Montanha do Pássaro Azul
Deixa um traço de alegria onde passes e a tua alegria será sempre acrescentada
mais à frente. *
Uma vez, em viagem por uma cidade do interior, me contaram uma historia
simples, divertida que aconteceu na vida dos seniores do Grupo Escoteiro
local. Disseram-me que o ocorrido foi motivo de piadas e algumas
“chacotas” por parte de amigos que ficaram sabendo do fato. Como era
inusitado todos estranharam pela maneira como aconteceu.
Afirmaram-me ser um fato real. Como eram escoteiros os que me
contavam, acreditei. Nunca duvido, pois sei que o Escoteiro tem uma só
palavra e sua honra vale mais que sua própria vida.
Aconteceu com a Tropa Sênior. Na época eram duas patrulhas, foram
quatro há alguns anos atrás. A evasão foi provocada porque O Chefe
Sênior ficou doente, afastado por alguns meses e o assistente não soube
conduzir com maestria a tropa. Alguns desistiram. Outros continuaram.
Eram aqueles que diziam que com chefe ou sem chefe a tropa anda. E
andou mesmo.
O Chefe Sênior logo voltou às lides e tudo continuou como antes de sua
saída. A patrulha Yawara tinha cinco seniores e a Anajé seis.
Há muitos anos a Tropa Sênior Tiriyó tinha como tradição, manter limpa
uma pequena capela na Serra da Piteira, mais conhecida por eles como a
Montanha do Pássaro Azul. Porque este nome não sabiam. Num
determinado dia do mês de agosto, aniversário da santa que dava nome a
capela, uma multidão de devotos e romeiros e diversos padres subiam até
lá e rezavam varias missas.
Muitos dos devotos cumpriam promessa e estas muitas vezes levavam a
pequenos acidentes. A presença dos seniores era considerada uma dádiva
pelos padres. Mais tarde uma equipe do Corpo de Bombeiros colocou no
local uma equipe para ajudar.
Aguardavam com saudade esta data. Para eles foi e sempre seria uma
grande atividade. Na quinta antes da partida, estavam todos na sede,
preparando o material necessário. Sairiam à noite de sexta e voltariam no
domingo. Sem barracas, pois dormiriam na própria capela. Pouca
intendência e pouco material de sapa. Usariam a ração B, dois cafés, dois
almoços e uma janta. Tudo acondicionado nas mochilas de cada um.
Gostavam da viagem. Encontravam-se na praça da estação, e pegavam o
trem noturno das 19:30 horas. Uma delicia de passeio. Claro que de
segunda classe. Poltronas de madeira, mas se divertiam muito. Passavam
pela primeira cidade e após hora e meia ficavam na escada do trem para
descer.
O trem não parava. Uns 400 metros antes do túnel o trem diminuía a
marcha, pois não podia passar por ele a mais de 20 ou 30 quilômetros por
hora. Aproveitavam o embalo e desciam do trem em movimento. Eram
peritos nisto. E como gostavam.
O maquinista velho conhecido sabia e colaborava. Não podia haver erro.
Após o túnel era descida e a locomotiva chegava a alcançar 60 por hora.
Ali, próximo ao túnel começava a subida. Primeiro atravessavam uma
pequena mata de não mais que um quilometro e após esta uma subida
muito íngreme que levava ao topo onde devagar iriam chegar à capela. Era
mais uns 5 a 6 quilômetros.
Gostavam desde caminho por ser mais aventureiro e pela viagem de trem.
Muito capim “gordura” e em lá no alto só samambaias. Os devotos e os
padres iam de ônibus ou condução própria pela estrada e em determinado
local ficavam estacionados. A subida a pé, não era mais que dois
quilômetros.
Após percorrem um bom trecho, o chefe deu ordens de parada e descansar
por vinte minutos. Foi aí que aconteceu. Como não estava presente um dos
participantes me contou. Era o meu narrador quem falava.
Ao sentar para descansar, um sênior colocou sua mochila em posição para
servir de travesseiro, mas ela sumiu no meio do capim “gordura”, e isto o
assustou. Não só ele como todos quando foi dado o alarme. Com facões
começaram a capinar e descobriram um grande buraco que por ser noite
não se tinha a ideia da distancia do fundo.
Improvisou-se com um pequeno lampião a gás, amarrado a um sisal, e ele
foi iluminando tudo. Era de estarrecer. Mais de 50 metros até o fundo.
Claro, havia sempre uma pequena saliência a cada dez metros. Viram a
mochila presa na segunda saliência.
Improvisaram com uma corda a descida de um sênior. Mas esta não dava
para ir até a segunda saliência. O jeito foi descer mais dois seniores e
amarraram na ponta da corda um sisal para puxar depois. Chegaram até a
mochila e ficaram boquiaberto. Varias entradas de minas, pequenas
cavernas, com trilhos e carroças de madeira, mas em estado de
deterioração avançada.
Avisaram o chefe. Todos quiseram descer. Ele preparou um sisal duplo,
passado em volta de uma pequena arvore para puxar a corda quando
retornarem. Todos desceram. Levaram um rolo de sisal para
eventualidades.
Iniciaram a exploração da mina. O sisal serviria para mostrar o caminho de
volta. Não iriam muito longe. Pequenas estalactites já estavam sendo
formadas. Nada descobriram e o chefe explicou que por ser uma região
aurífera no passado, devia ter sido explorada ainda na época dos escravos,
abandonada por que não existia mais ouro.
Eis que um sênior viu uma pequena pepita encravada na lateral do túnel.
Escavaram com o facão e descobriram mais cinco. Alegria geral. Os
seniores estavam ficando ricos. Mais oito pepitas e nada mais
encontraram. Voltaram. O chefe guardou as pepitas. Iria avaliar com
alguém que conhecesse ouro. Estava determinado que uma parte fosse
usado para a reforma da sede e um material novo de intendência para as
patrulhas. Seniores e Escoteiras.
Saíram do buraco e foram para o seu destino. Tudo transcorreu
normalmente. Fizeram uma grande limpeza na capela. Deu trabalho. A água
era retirada de uma pequena mina 500 metros abaixo. Melhoraram também
a mina de água. Estava entupida de mato.
No domingo começaram a chegar os romeiros. Cantando, alegres e os
padres os avistaram. Comprimentos e agradecimentos. O dia seguiu
tranquilo. À tardinha, quando não havia mais ninguém começaram a
descida. Voltaram pelo caminho que levava a estrada. Mais curto. Lá
pegaram um ônibus de carreira.
Na viagem do retorno sonhavam como era ser rico, passeios, roupas novas
e dar uma vida melhor aos pais. O sonho não demorou muito. A chegada à
cidade foi rápida.
No dia seguinte dois seniores e o chefe foram até um ourives. Ele riu e
disse que as pepitas não tinha valor. Por que, perguntaram. São chamadas
de “ouro de tolos”, colocadas em paredes de minas por exploradores
profissionais, que nada descobrindo deixam suas pistas para os
inexperientes.
É a reforma da sede ficou para outra ocasião. Mas valeu para aqueles
seniores aquela e muitas outras atividades que marcaram a vida de todos.
E quem quiser que conte outra...
A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve
fazer do seu próprio conhecimento.
Platão
A FANTÁSTICA EPOPÉIA DA ALCATEIA ENCANTADA
O abutre Chill conduz a noite incerta
E que o morcego Mang ora liberta -
É esta a hora em que adormece o gado,
Pelo aprisco fechado.
É esta a hora do orgulho e da força
Unha ferina, aguda garra.
Ouve-se o grito: Boa caça aquele
Que a Lei d Jângal se agarra”.
Canto noturno da Jângal.
Conheci a chefe Tininha na metade da década de oitenta. Na época dirigia e
atuava na equipe de adestramento regional e contribuía na direção e
participação de cursos diversos. Foi um período raro, pois passava muitos fins
de semana no Campo Escola, onde habitei fartamente por anos e anos.
Sempre que ali abrolhava, eu me transformava. Meu espírito vagava a procura de
um éden perfeito, feito de jardins e flores e ali eu me encontrava. O aroma da
mata, a brisa leve e solta, o silencio reinante, era como se fosse transportado
para quem sonha com uma morada depois da vida. A mata tomava conta de toda
área e o progresso com suas edificações eram totalmente camuflados.
Não só nós, dirigentes ou membros de uma equipe, mas os alunos inclusive se
sentiam numa doce elevação do espírito, como se fosse um momento mágico. O
desenrolar de um curso nutria conotação máxima e o aproveitamento era total.
Pelas minhas lembranças tive a oportunidade de conhecer pelo menos 1.000
escotistas cujo tempo curto, nos uniu em palestras, jogos e troca de ideias para
um aprendizado sadio e virtuoso dos ensinamentos de Baden Powell.
Tininha quando a vi pela primeira vez, devia ter aproximadamente 28 anos. “Bem
pesada”, e proporcionalmente tinha uma aparecia harmônica. Conseguia manter
uma agilidade que atraía um entusiasmo nos demais. Altura razoável, sempre
com um sorriso, cabelo preto curtos, vestia sobriamente o traje escoteiro,
sempre bem arrumada sem afetação.
No primeiro curso conversamos pouco. Fiquei sabendo que era Akelá de um
Grupo de outro bairro, e estava no movimento há mais de 10 anos. Não teve
oportunidade de chegar a Insígnia, mas este era seu sonho.
Alguns anos depois, participava de um CIM, na época Curso da Insígnia da
Madeira ramo lobinhos, e lá reencontrei Tininha. Vi que seu objetivo estava
sendo alcançado. Como tinha obrigação de poucas palestras, nas horas livres
conversávamos banalidades.
Narrou de forma sucinta a historia do seu grupo e alcatéia. Estavam em um
bairro de classe media alta, e vários fatores implicavam no desenvolvimento
pleno da alcatéia. Os pais nunca pediam e sim exigiam como se os filhos
estivessem em um colégio de elite, pago e que eles pudessem decidir o
programa e o método. Era, portanto uma situação peculiar e emblemática. Talvez
única para meus conhecimentos.
Não falamos mais. Não havia tempo. Era um curso corrido sem vagares e isto
era bom. Pouco tempo e precisava ser aproveitado. Quando mais vigília melhor
o aproveitamento. Ao final não vi Tininha e mais dois anos se passaram.
Num sábado comum, sem nada importante, durante as reuniões das sessões,
estava eu cachimbando em um canto do pátio (naquela época tinha este horrível
vício) e para surpresa adentrou Tininha, uniformizada, sorrindo e me
cumprimentando. Notei que portava o lenço da Insígnia.
Após um dialogo interessante, Tininha me contou as agruras e benesses que
passou no grupo de origem. Um episódio em particular mudou sua maneira de
pensar e de como enfrentar uma dificuldade real. No inicio acreditou que
conseguiria depois a circunstância a levou a refletir que suas forças seria
desiguais. Palavras da Tininha:
- Olhe chefe, em nosso programa anual, conforme uma ideia lançada pelo
senhor no último curso, planejamos fazer um acantonamento com a alcatéia de
três dias, em local aprazível, próximo a Mata Atlântica, um lindo sítio, muito
agradável, gentilmente cedido por um dos pais. Na primeira reunião com os
progenitores, algumas mães se opuseram ao programa dizendo ser ele perigoso
e arriscado e se não mudássemos de local, seus filhos não iriam.
O fato mais preocupante para elas (as mães) foi de que ficaríamos acampados
em barracas, próximo a casa sede, bem próximo à mata. Mas o que vimos
quando lá chegamos que era um bosque gramado e cheio de apetitosos locais
para uma mística perfeita, inclusive com uma Pedra de Conselho e pequena
gruta próxima. Acreditei que ali os lobinhos poderiam plenamente viver as
peripécias de Mowgly.
Não eram os que elas pensavam. Entendi que o assunto não deveria ter
continuidade. “Era malhar em ferro frio”. A metade concordou em permitir à ida
dos seus filhos a outra não. No final, quatro foram irredutíveis, mas aceitaram a
participação dos rebentos, exceto a maioral que iniciou a discussão.
O Chefe do Grupo não disse sim e nem não. Fiquei com minhas três assistentes
plenamente sós. Disse a elas que se aceitássemos a mudança, não teríamos
mais liberdade no futuro para programar conforme preceitos aprendidos. Nossa
responsabilidade já era sobejamente conhecida, pois não era o primeiro
acantonamento feito. Todas nós possuíamos filhos e nunca iríamos arriscar
nossos lobinhos em uma atividade perigosa.
Possuíamos uma alcatéia mista, com 11 lobinhos e 16 lobinhas. Acima dos 24
regidos pelo POR. Achava que era uma ótima alcatéia. Vários lobinhos e
lobinhas chegando a Cruzeiro do Sul e pelo menos cinco fazendo a Trilha
Escoteira. Nossa lista de espera passava de 28 pedidos de inscrição. Não sei o
porquê o grupo deixava de instituir a segunda alcatéia.
Bem, era férias de julho, o tempo nem quente nem frio em uma manhã linda de
sol, lá estávamos com a “lobada” se extasiando em armar barracas, gentilmente
cedidas pela tropa escoteira. Parecia que a amálgama seria desordenada. Não
era. Tudo tinha uma razão de ser. Cada matilha aprendeu a fazer fazendo a
colocar em pé, uma barraca para seis lobinhos. Não ensinávamos. Entregamos a
barraca e eles faziam.
Era do método escoteiro, mas porque não ali? Pelo que estávamos vendo era
uma alegria só e os resultados surpreendentes. Quase todos conseguiram,
algumas matilhas levou mais tempo, mas faltava apenas um aperto ali e aqui que
nós chefes o faríamos antes da noite.
A Chefia era formada por mim, três assistentes e dois casais de pais que se
prontificaram a se responsabilizar pela intendência e refeições. O primeiro dia
foi cheio de energia e quando imitamos uma sessão da Alcatéia de Mowgly a
discutir na Pedra do Conselho a assistente informou que Shere Khan, o turuna
tinha mudado seu campo de caça e foi “prear” por outros montes.
A caçada a Chere Khan, o turuna foi liderada pelo Lobo Gris. Uma aventura sem
igual. Mais tarde com a dança de Kaá, a festa foi geral. À noite brincamos e
jogamos. Dois jogos um calmo e um cheio de mistério fez com que todos
ficassem preocupados com o aparecimento de Shere Khan a qualquer momento.
Sentados ou deitados na grama em círculo, após diversas canções atiladas,
estava a contar parte da história da jângal e dizia – Olhem quando Mowgly não
estava aprendendo, sentava-se ao sol para dormir. – Os bocejos continuaram
aqui e ali. A “lobada” estava extenuada. – Mesmo assim continuei: Urra, Urra,
rosnou Bagheera entre dentes. Urra que tempo virá em que esta coisinha nua te
fará urrar noutro tom...”
Não adiantava continuar. Agora alguns já cochilavam sentados. O sono chegara.
Junto com as assistentes colocamos todos eles para dormir nas barracas. Com
uma participação pequena, fizemos com eles uma oração para agradecer o dia e
nossas atividades. Não houve algazarra e em minutos o silencio era total. A
noite prometia e um céu estrelado dizia para dormirmos tranqüilas. Eu e as
assistentes fomos para a nossa barraca, e os pais ficaram na Casa Sede.
Acreditei não precisar montar uma atalaia noturna. O proprietário nos confirmou
da impossibilidade de estranhos ao local. Era todo murado e com um grande
portão de aço com chaves e cadeados. Acreditamos. Dormimos como anjos.
Pela manhã, acordamos a “lobada”. Quatro deles não estavam na barraca. Seus
materiais de dormir e mochilas também não estavam. “Deus do Céu!” pensei.
Chamamos os pais na casa sede. Telefonamos ao chefe do Grupo. Eu sempre fui
uma pessoa calma, mas estava com os nervos a flor da pele. Tremia e pensava
no pior. Fiz uma oração e pedi a Deus para nos ajudar.
Uma das assistentes continuou a programação com os demais lobinhos. Eu
estava totalmente “perdida”. Nunca pensei que fosse acontecer comigo. Como?
O que aconteceu? Ora, estávamos bem próximo à mata Atlântica. Poucos se
arriscavam a entrar nela. Agora nem eu. Pensei na negativa das mães da
realização da atividade. Seria uma bomba! Iria sofrer consequência inevitáveis.
O Chefe do Grupo chegou. Era calmo e ponderado. Em momento algum fez
recriminações. Tudo tinha o seu tempo. Ficou ciente de tudo. Antes de chamar
os Bombeiros e o salvamento ligou para uma das mães para solicitar que
avisasse as outras e virem para o sítio o mais tardar. Narrou o acontecido. Pediu
para manter a calma e dizer a todas que tudo seria resolvido a contendo.
Ela riu e disse para não se preocupar. A mãe que foi contra a realização do
Acantonamento, convenceu a todas nós a darem um susto na chefia da alcatéia
principalmente a mim. Foram na calada da noite e sem ninguém perceber
entraram no sítio (possuíam o chave do portão, e como conseguiram não sei)
levando os filhos em completo silencio.
Espantoso! Pensou o Chefe do Grupo. Que falta de responsabilidade. Disse a ela
que avisasse as demais que se não trouxessem seus filhos imediatamente, ele
daria parte a policia que os lobinhos tinham sido sequestrados. Não importava
se eram as mães, pois tinha em poder as autorizações assinadas e a
responsabilidade era dele.
Uma hora depois elas chegaram. Não houve maiores explicações e nem as
pedimos. Foram-se. Os filhos lobinhos ficaram. Faz parte de um grande jogo
disse ele aos lobinhos. Os quatro lobos foram à cidade dos homens e voltaram.
Aplausos, jogos, histórias, mística até mesmo um pequeno passeio dentro da
mata com um guia contratado.
Olhe chefe disse, passei por poucas e boas. A palavra arrogância não a
conhecia em toda sua plenitude. Aprendi muito depois disto. Mas continuo
acreditando que o movimento é maravilhoso e muitos pais sabem de sua
importância. Vi e senti na própria pele a participação de vários deles se
solidarizando e prestativos se colocaram a disposição para outros
acantonamentos ou excursões.
Insisti com as revoltosas a deixarem seus filhos continuarem. Uma não aceitou.
Fiquei penalizada devido ser seu filho um jovem com potenciais tremendos para
continuar no movimento devido a sua enorme motivação.
Fiquei lá mais um ano. Minha família mudou para este bairro, e agora estou aqui.
Pedindo uma vaga e comigo trago uma transferência. O senhor me aceita?
E quem quiser que conte outra...
“As estrelas desmaiam, concluiu o Lobo Gris, de olhos erguidos para o céu,
onde me aninharei amanhã? Porque Dora em diante os caminhos são novos...”.
Kipling
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
(Quinzenalmente ou mensalmente, iremos publicar contos na linha do
imaginário. o titulo acima servirá para mostrar que o acontecimento é
obra de ficção, mas não avalizo que possa ter alguma veracidade.
Você decide).
Educai as crianças, para que não seja necessário punir os adultos.
Pitágoras
Historia de hoje: As aparições do Chefe Trovão
Todo o sábado à tarde, levava meu filho para as reuniões da tropa escoteira que
se realizavam em seu grupo. Ele se sentia realizado, e não aceitava faltar ou
chegar atrasado. A princípio não achei tedioso, pois, ficava por ali esperando o
término e aproveitava para ver o que faziam. Assim como eu vários pais ali
também permaneciam.
O Chefe Trovão ficava quase sempre conversando conosco. Não participava
diretamente. Não era o Chefe do Grupo. Sabia que era bem reconhecido, pois
todos o tratavam de maneira respeitosa. Soube depois que era um dos poucos
que dirigia cursos, e conhecia como ninguém o fluxograma, o projeto e o intento
do programa escoteiro.
Tornou-se para nós um amigo e assim como os demais chefes após as reuniões
sempre nos reuníamos em casa de alguém, para conversar, sorver é claro um
uísque importado, claro que alguns preferindo cervejas ou refrigerantes. Com o
tempo, o chefe Trovão convenceu a todos nós a participar mais diretamente no
programa escoteiro, colaborando com o Grupo em questão.
Nada como experimentar. Reuniu 25 pais, e durante uma tarde de um sábado e o
dia inteiro do domingo, aplicou a todos o CAP (Curso de Adestramento
Preliminar). Foi divertido, mas logo nosso tempo aos sábados, domingos e
alguns dias da semana começaram a ser tomados, em função única e somente
para as atividades escoteiras.
Nos primeiros meses estávamos em dúvida, mas com o passar do tempo ficou
enraizado em nossos pensamentos e sem notar nos dedicamos de corpo e alma
ao movimento escoteiro. Fomos mordidos pelo mosquito encantado de Baden
Powell. Daí para um CAB e a parte II da Insígnia foi um pulo.
No mês de julho, estava marcado um acampamento de cinco dias, numa
pequena mata pertencente a um amigo do chefe Trovão, a tropa escoteira e
sênior iriam participar. Claro que também estaríamos presente. Aos poucos
fomos aprendendo como preparar o material, a intendência, as caixas de
patrulhas, ou seja, tudo aquilo que os escoteiros conhecem tão bem.
Ficamos sabendo pelos outros chefes dos mitos do acampamento, e um fato
chamou a atenção. O chefe Trovão fazia questão que todos participassem do
banho das “três e meia” da madrugada no primeiro dia de acampamento.
Para isto era preciso um sabonete especial, que seria emprestado pelo chefe.
Era uma tradição. Ninguém podia faltar. “Que diabos” pensei. Por quê? Qual a
finalidade? Como havia um respeito nato ao Chefe não perguntamos. Vamos ver
o que é e depois comentar.
No dia marcado partimos. Alegria geral. Chegamos cedo ao local. Lindo se
querem saber. Uma grande lagoa tendo em volta uma pequena floresta nativa.
Havia uma bela clareira e a poucos metros acima corria um córrego com águas
limpas com uma pequena cascata. Chamada de Bica Molhada por todos que
acamparam ali.
Os monitores escolheram seu campo e nós ficamos em um campo próprio não
muito distantes deles. Esqueci de explicar que há mais de três dias fazia um frio
horroroso em nossa cidade, e verificamos que ali no campo, na madrugada
chegaria tranquilamente abaixo de zero. Principalmente próximo à lagoa.
Tudo transcorreu nos conformes. À tardinha, ainda com sol, todos se lavaram
junto ao lago, e nós fomos até uma bica bem abaixo, que corria em bambus
formando uma ducha sem igual. Após o jantar, foi feito um jogo. Terminado a
reunião como os monitores, cada um foi procurar o seu canto para dormir.
Já tínhamos se esquecido de tudo e eis que o chefe Trovão nos chamou a todos
dizendo que o horário de três e meia era sagrado, não gostaria que ninguém
faltasse ou chegasse atrasado. Nesta hora foi que nos lembramos do tal banho.
Achei um absurdo. Um frio de rachar. Isto no inicio da noite. Acreditei que
estava de seis as dez graus.
Já ia discordar quando o chefe Trovão me olhou enviesado e como estivesse
lendo o meu pensamento, apontou para mim dizendo: - Sinto muito, quem faltar
vou considerar como falta de “Espírito Escoteiro”. “Diacho” E agora? Como não
podia fugir e os demais não comentaram, não falamos nada. Tínhamos enorme
respeito pelo Chefe Trovão.
Dormi preocupado. Era o cúmulo do absurdo. Se isto era escotismo meu pai era
um macaco falante. Não aceitava tal ideia ou tal imposição. Pensei que no outro
dia juntaria minhas tralhas e iria embora. Mas meu filho estava ali. Seria uma
falta muito grande e uma tremenda decepção para ele. O jeito era esperar a
madrugada, pois achava que aquilo não passava de uma piada.
Não acordei às três e meia. Ninguém acordou. Não fomos chamados. Mas o Cléo
um dos pais acordou dez minutos após e chamou a todos nós. Levantamos
assustados, um frio de rachar. Enrolado em um cobertor nos reunimos em volta
do que restava do fogo aceso frente às barracas. O chefe Trovão não estava na
sua. Já tinha partido sozinho.
O que fazer então? Cada um deu sua opinião no final, resolvemos ir até a ducha
e pedir desculpas ao chefe Trovão. Não era longe nem perto. Uns 400 metros
abaixo da lagoa. Saímos tiritando de frio. Na trilha todos nós sentíamos
calafrios. Não acredito em fantasmas nem em alma do outro mundo. Mas não sei
por que, talvez o silencio, as arvores sombrias, sombras na lagoa. O medo me
bambeava as pernas.
Pé ante pé avistamos a ducha (ficava uns 10 metros abaixo de nós) e vimos o
chefe Trovão só de short, debaixo da ducha com as mãos levantadas, abaixando
junto ao corpo e ficando em pé repetindo sempre, a rezar numa linguagem
inteligível até que uma luz brilhante apareceu.
Olhe, estava tremendo igual vara verde. Nunca tinha visto nada igual. A luz foi
aumentando e em poucos segundos, diversos vultos como sombras também lá
estavam saudando o chefe Trovão. “Deus do Céu” que era aquilo? Ainda não
tinha visto nada. O chefe levantou as mãos para o céu e ficou acima do chão uns
dois metros continuando sua reza e os vultos numa espécie de dança ficaram
rodando em sua volta.
Um grande redemoinho foi formado. Não vi mais os vultos e o chefe Trovão. A
luz brilhante começou a faiscar, lançando raios para todos os lados. Fugimos
dali, esbaforidos, tremendo, alguns garanto que tinham molhado os pijamas,
ninguém falou nada, todos queriam ir à frente e ninguém atrás.
Cada um entrou em sua barraca, ofegando, esperando a calma chegar. Que
nada, a tremedeira não passava. Não estávamos acostumados com isto. Os
minutos foram passando, estávamos acalmando e eis que bem no inicio da
trilha, pela fresta da barraca avistamos o chefe Trovão.
Com um short curto, a toalha jogada nos ombros, assoviava alegre o “Acampei
lá na montanha”. Parecia estar em uma praia num escaldante verão. Não
mostrou curiosidade em saber se estávamos acordados. Fez uma pequena
ondulação com o corpo, mexeu com os braços e se dirigiu a sua barraca. Ao
entrar se voltou e abanou as mãos em direção à mata. Nada vimos.
No dia seguinte levantamos calados. Poucos conseguiram dormir. O
acampamento cumpriu seu programa. Os escoteiros alegres, os seniores com
seu grito de guerra, enfim uma grande exultação de um programa que se não
fosse o acontecido, poderia dizer sem similar.
Retornamos no dia marcado. O Chefe Trovão parecia o mesmo. Professor, tutor,
instrutor, mas sempre quando nos encarava, um sorriso maroto brotava para
logo mostrar sua carranca de chefão.
Na semana seguinte, notei que somente eu e mais dez pais ainda estávamos
participando do grupo. Os demais mandaram as mães levar os filhos e avisar ao
Chefe do Grupo que não poderiam continuar no movimento.
Não sei por que, não houve comentário. Parece que um pacto de silencio
acometeu a todos. Eu mesmo nem com minha esposa falei do assunto e do
acontecido. Acho que todos tinham medo de serem ridicularizados.
Mas acredito e disso não tenho nenhuma dúvida, que o Chefe Trovão tem um
pacto com o coisa-ruim ou então com espíritos amigos, cuja visita recebe
sempre no afamado “banho das três e meia e seu sabonete mágico”.
O porquê de seu convite pode ter alguma lógica. Se formos nada acontece e
demonstramos disciplina em uma tradição, se não ele sempre está só para seus
encontros maquiavélicos. Ele sabe que aqueles que viram seu ritual nada dirão.
O medo de tudo o receio de represálias, seu estilo dominador nos faz esquecer o
fato.
Continuo até hoje no escotismo. Sou Escotista de tropa escoteira. O Chefe
Trovão há alguns anos mudou de cidade. Não ouvi falar mais nele. Ninguém no
grupo comenta o assunto. Dizem que o Chefe do Grupo também participa do
ritual, mas eu não posso provar. Não vi. Quando me lembro dele, sem querer
vejo chifres em sua cabeça. Deus me livre!
E a vida continua, falei por falar. Narrei por narrar. Não vi, não sei, não ouvi
estou com os olhos fechados e minha mente não pensa. Esqueçam o que disse!
E quem quiser que conte outra...
"O pensamento positivo pode vir naturalmente para alguns, mas
também pode ser aprendido e cultivado, mude seus pensamentos
e você mudará seu mundo”
Norman Vicent Peale
O Riacho de Águas Claras
* Eu cavo, tu cavas, ele cava, nós cavamos, vós cavais, eles cavam... Não é
bonito, mas é profundo!
Eram cinco na patrulha Javali. Todas com menos de ano e meio no
escotismo. Moravam em bairros diferentes e não se conheciam. Agora
eram grandes amigas. Na patrulha descobriram afinidades e isto fortaleceu
mais e mais a fraternidade existente entre elas.
Estudavam em colégios diferentes. Só a sub-monitora estava na mesma
classe que a mais nova da patrulha. Quase não se enturmavam com as
outras amigas do bairro e do colégio. Viviam telefonando entre si,
provocando inclusive dissabores quando do pagamento da conta
telefônica. Só uma delas, a mais velha com 14 anos tinha um pseudo
namorado. Digo pseudo porque quase nunca se encontravam.
Haviam acampados juntos por varias vezes. A tropa possuía três patrulhas.
Só a delas com cinco. As demais tinham seis meninas cada uma.
No ano passado fizeram um acampamento precedido de uma jornada
noturna. No programa elaborado por sugestão delas, iriam até um tal
Córrego de Águas Claras, cujas referencias era do Chefe da Tropa Sênior,
onde passariam a noite em bivaque e depois partiriam para o local de
acampamento.
Participaram as patrulhas escoteiras femininas e duas patrulhas de guias.
Seis adultos ficaram na supervisão. Dois chefes escoteiros
experimentados e quatro das chefes escoteiras e guias. Todas com muita
vivência.
Acho que a experiência não deu muito certo. Entraram em uma mata de
eucaliptos bem fechada. Um dos chefes disse que conhecia o caminho. O
programa dizia para andarem por uns cinco quilômetros e iriam encontrar
um pequeno riacho de águas claras e belas corredeiras. Ali pernoitariam e
pela manhã, partiriam para o local do campo, onde varias viaturas de pais e
colaboradores já haviam levado o material de campo.
A ideia era acampar após a jornada por mais três dias consecutivos.
Andaram por um bom pedaço do caminho e nada do tal Riacho de Águas
Claras. Lá pelas três da manhã, a chefia desistiu. Procuraram um local
onde pudessem pernoitar. Jogaram as lonas e cada uma se enroscou com
a outra. Adormeceram sob as estrelas. Poucos se viam delas devido à mata
bem fechada.
Pela manhã, arrumaram o material e partiram. Nada do tal riacho. Ainda
bem que tinham um pequeno lanche e se refestelaram dele, pois não
sabiam quando iam almoçar. Somente lá pelas quatro da tarde chegaram
ao tal riacho de águas claras. Foram descendo sua margem por alguns
quilômetros e chegaram ao local de acampamento. Pais e escotistas de
cabelo em pé.
Esqueceram que ali tinha uma chefia a altura e não sendo iniciantes do
movimento, levamos tudo numa bela brincadeira. Achamos inclusive que a
chefia havia preparado tudo para nos assustar e mostrar como resolver
situações imprevisíveis.
Foi um lindo acampamento. Pena que uma patrulha teve que pedir ajuda as
chefes para acender o fogo, pois o orvalho da manhã molhou a madeira
que tinha sido separada para uso. Faltou experiência de cobri-la com um
lona. Ficamos com pena da patrulha, pois era ponto de honra para todas
que devíamos fazer tudo sem pedir nada os chefes.
Afinal já tínhamos aprendido esta arte antes em vários outros
acampamentos. Mas errar é humano e persistir no erro é burrice! Sem
menosprezo é claro. Sempre achamos que nada devíamos aos escoteiros
na arte de acampar. Uma vez acampamos próximos e comparativamente
éramos muito superiores em diversas etapas. Mas isto é outra história.
Estávamos na sede, conversando sobre a atividade e soubemos que a
paróquia onde estávamos locados o pároco queria de volta sua área (a
sede), nos dando um prazo de 30 dias para desocupar. Foi é claro um Deus
no acuda. O que fazer? – Vimos que os chefes se reuniam, houve reuniões
dos diretores e o pároco se mantinha irredutível.
Era uma preocupação geral. Não foi a primeira vez. Um grupo amigo nosso
em outro bairro passou por isto. Nossa monitora deu a ideia de irmos a
patrulha completa até o Bispo. Afinal era o superior do pároco. Topamos
mas não sabíamos como proceder. Falar ou não com a chefia. Não falamos,
cometemos um erro, mas que mais tarde se mostrou um acerto.
No sábado partimos à tarde, hora que nos informaram que encontraríamos
o Bispo em sua residência episcopal (não sei se é assim que se pronuncia).
Lá chegando ele não estava. Resolvemos esperar. Era dia de reunião.
Pensamos que iramos chegar atrasadas. Mas o bispo só chegou às cinco
da tarde. A reunião se fora. Paciência. Depois explicaríamos as chefes.
Era um bispo bonachão. Sorria para todos nós. Contou-nos que tinha sido
escoteiro quando jovem. Fez-nos perguntas e mais perguntas. O que
sabíamos nossa técnica, adestramento, conhecimento e como era a
patrulha.
Pediu para darmos o grito de patrulha, o grito da tropa e o do grupo. Ao
terminarmos nos presenteou com a palma escoteira que se lembrava até
hoje. Trouxe o chapéu de abas largas e lenço que guardava até hoje. Logo
ficamos amigas dele. Só lá pelas 19 hs horas entramos no assunto. Ele
disse que não nos preocupássemos. Iria tomar providencias.
Foi então que perguntou se também havíamos feito à excursão no Riacho
de Águas Claras. Sim dissemos. E se perderam? Sim respondemos. Ele riu
a mais não poder. Não nos contou mais nada. Ficamos com um ponto de
interrogação, pois não entendemos por que.
Voltamos para nossas casas. A minha família estava em polvorosa. Onde
estava? O que aconteceu? – Expliquei tudo. Meus pais eram maravilhosos.
Sempre me deram um grande apoio e confiavam em mim. Sabiam que eu
era uma escoteira, conheciam a lei e acreditavam que eu faria tudo para
não desonrá-la.
No sábado seguinte quando chegamos à sede, fomos recebidas por uma
palma escoteira e o Grito do Grupo na hora do cerimonial. O Chefe do
Grupo nos parabenizou. O pároco estava presente, sorridente e pediu
desculpas a todos. Fora mal informado. (O Bispo deve ter dito poucas e
boas).
Fomos tomadas por grande contentamento e exultantes olhamos uma para
com as outras como a dizer – Conseguimos!
Até hoje não sei o que é e o que seria a historia do Riacho de Águas Claras.
O chefe não contou. As chefes também. Tentamos matutar com outras
patrulhas. Nada. Fizemos pesquisa na internet. Nada. Fomos à prefeitura.
Nada. Desistimos.
Vamos deixar a historia correr naturalmente para que outras patrulhas no
futuro possam excursionar ao Riacho de Águas Claras e quem sabe
quando crescermos vamos entender melhor o porquê de seu prestígio.
E quem quiser que conte outra...
Guarda a lição do passado, mas não percas tempo lastimando
aquilo que o tempo não pode restituir. * Quando estiveres à beira
do desalento pergunta a ti mesmo se estás num mundo em
construção ou se estás numa colônia de férias.
O orgulho de ser Escoteiro
No escotismo tudo é um doce sonho.
Se ouve falar da Ilha de Brownsea, De Gilwell Park, sobre toda aquela mística,
aquela fraternidade, aqueles aprendizados maravilhosos.
Ouve-se contar sobre os Jamborees passados, sobre o ultimo Mundial no Chile,
sobre os acampamentos em outros estados.
Passam-se os dias, passam-se os sábados, o escoteiro interessado, aprende,
estuda, e, se diverte. Acampa com a maior boa vontade, enfrenta problemas,
discute as realidades, chora no Fogo de Conselho, se anima com a Jornada.
Sobe ao cume de um Pico, se alegra ao ser Escoteiro da Pátria.
Mas o tempo continua a passar e se prepara para a ponte pioneira, para quem
sabe ser chefe da “escoteirada”.
Se recorda das palavras de BP, que para ser possível basta tirar o IM da
palavra... Mas começa a duvidar de tudo, de tudo que o escotismo é capaz de
fazer acontecer.
Pois nem mesmo um sonho da Juventude a classe media baixa pode o
escotismo ter. Assim mesmo o Escoteiro apaixonado continua no Movimento.
Amar, com todo aquele pique de garoto, com todo o amor ao fundador, com toda
a vontade de continuar a caminhada que pode levar mais um jovem a recomeçar
a poesia por BP inventada.
Guia Nathalia Mendes Andrade
G.E Siemens 50 PR.
Foi em março, me lembro bem, pois tinha recebido a Segunda Classe na semana
anterior. Rael estava fazendo onze anos e sua passagem foi análoga de outras e
de muitas lágrimas da Akelá. Como sempre quando fazíamos a passagem, a
Alcatéia ficava deprimida. Não sei por que, quem sabe a cerimônia é realizada
em um clima de adeus.
Eu conhecia este filme. Também fiquei muito triste quando aconteceu a minha,
mas logo me acostumei. Em menos de cinco meses, quase não recordava da
minha vida de lobinho.
Rael escolheu a minha patrulha, Lobo. Interessante, quase todos os lobinhos
quando iam fazer a trilha sempre escolhiam esta patrulha. Talvez pelo monitor,
apesar de cada dois anos ser substituído. No inicio do ano foi eleito um novo e o
Tavinho assumiu. Estava se saindo bem. Sei que não era fácil liderar uma
patrulha com três primeiras classes e ele ainda não tinha conseguido a sua.
Rael se tornou um bom escoteiro. Ficamos amigos, pois morávamos quase
perto um do outro. Digo quase, pois sua residência ficava a dois quarteirões da
minha. Isto não impedia de encontrarmos durante a semana. A pedido do
monitor estava colaborando para sua etapa de noviço, onde renovaria a
promessa e receberia o distintivo.
Sua mãe e seu pai eram ótimas pessoas. Entretanto um dia vi seu pai chegar
meio tonto, e vi que sua mãe não gostou. Foram para o quarto e deu para ouvir
os desentendimentos. Achei melhor voltar outro dia. Rael ficou muito triste e me
disse que não era sempre. Ele passava meses sem demonstrar que bebia antes
do retorno para casa.
Rael fez a promessa. Sua mãe fez questão de estar presente apesar do chefe não
autorizar sempre tal tipo de participação.
Dois anos depois, eu tinha “tirado” minha Primeira Classe e Rael “tirou“ também
sua Segunda Classe. Nesta época fui eleito monitor da patrulha e achei que o
próximo seria Rael.
No ano seguinte fiz a Rota Sênior. Escolhi a patrulha Ibituruna, pois lá estavam
meu ex-monitor e outro amigo da Tropa Escoteira. Dei-me bem com os seniores.
Um pouco diferente da tropa. Ali o sistema de decisão era bem maior. Diziam
eles (nós) que onde tem um sênior, tem uma tropa e se houver um chefe ótimo,
se não a tropa anda do mesmo jeito.
Não sei bem se é assim. Quando nosso chefe foi transferido profissionalmente
para outra cidade, a tropa baqueou. Pelo menos cinco seniores desistiram.
Ficamos só em doze. Mas as atividades aventureiras eram marcantes. O que ali
vivi daria um livro de aventuras que Kipling teria dificuldade em escrever.
(modesto hein?).
Mas voltemos aos “entretantos” de nossa história. Tento reunir aqui e ali os
pormenores, pois já se passaram muitos anos e nem sempre guardo todos os
detalhes e de como aconteceram.
Onde morava, possuía um bom número de amigos, nenhum deles escoteiro ou
sênior. Apesar de convidá-los eles não tinham interesse. Quando narrava dos
acampamentos, das aventuras na floresta, nos picos escalados, eles riam e
diziam que não era o que buscavam. Desconheciam é claro o mérito e a
importância do escotismo na vida dos jovens.
Tudo bem, não era por isto que deixaríamos de ter aquela afeição adquirida de
muitos anos. Como dizia um ex-chefe, qualquer um pode entrar em um Grupo de
Escoteiros, mas ser escoteiro não é para qualquer um.
Uma noite, estávamos na porta da casa de um deles e surgiu o comentário de
uma quadrilha de traficantes, a vender drogas no bairro. Disse que conhecia
pelo menos quatro meninos que estavam “fumando”. Não entendi bem e ele
explicou o que era. Fiquei perplexo. Não achava que isto poderia acontecer no
nosso bairro.
Este meu amigo comentou também que tinha quase a certeza que um escoteiro
estava no meio deles. Duvidei. Não havia ali nenhum de nós naquele bairro. Ele
disse que era de outro e deu as coordenadas de como ele era. Deduzi que só
podia ser o Rael. Não era possível. Ele estava na “bica” de ser eleito monitor.
Conseguiu sua Primeira Classe. Sabia dos perigos das drogas, não podia estar
no meio de uma turma viciada.
Pelo sim pelo não, resolvi investigar. Fui uma noite até seu bairro. Ele não
estava em casa. Sua mãe não sabia onde tinha ido. Dei uma volta no quarteirão e
nada. Já estava desistindo quando o vi junto com mais dois, dando enormes
gargalhadas e fazendo arruaças, não condizentes com sua apresentação
pessoal e sua vida escoteira.
Achei melhor não interpelá-lo. Escondi-me e voltei para minha casa. Passei a
noite pensando o que fazer. Na reunião do sábado seguinte conversei com o
monitor da PT para saber sua opinião, de um escoteiro estar envolto com
drogas. Abri o jogo com ele e disse que era o Rael.
Não chegamos a nenhuma conclusão. Se informássemos ao chefe poderia haver
sua exclusão da tropa e até mesmo seus pais poderiam ser informados. Claro
que visto de outra forma era a maneira correta de versar o assunto, deixar que
os adultos tomem as providencias. Mas eu pensava diferente. Achei que podia
conversar com o Rael e quem sabe poderia ajudar e mudar alguma coisa.
Fui a sua casa, fora do dia da reunião e o encontrei. Fomos dar uma volta no
quarteirão. Abordei o assunto diretamente e sem rodeios. Ele ficou surpreso.
Negou em princípio, mas depois afirmou que estava “puxando”, mas não era um
viciado. Falei do que adiantava sua promessa, do que aprendeu da Lei Escoteira,
de sua responsabilidade na patrulha e o exemplo que estava dando para os
demais.
Ele me ouviu em silencio. Finalmente me disse que já não estava mais usando
drogas, mas estava preso a quadrilha. Eles ameaçaram contar aos meus pais e
inclusive em um dia que não me lembro tiraram uma foto. Era uma prova difícil
de ser contestada. Ele não sabia como sair do “enrosco” sem se prejudicar. E
completou que eram bandidos e que o ameaçaram de morte.
O pior foi que o obrigaram a ser o responsável pelo bairro na distribuição e
deram instruções peremptórias para introduzir o vício no Grupo Escoteiro. Lá
segundo eles seria um manancial sem igual. Muitos eram filhos de pais de
classe media o poderiam arrecadar mais.
Agora sim, pensei! Tudo estava piorando e eu não tinha como ajudar ao Rael e
nem aconselhá-lo. Disse para ele que deveria contar francamente aos seus pais
e alertar o chefe da tropa e de grupo. Ele ficou pensativo e concordou. Vi que
estava olhando através de mim. Disse que dois traficantes estavam se
aproximando. Falou para eu ir embora já, e nem me virar. Voltou ao encontro
deles.
Fui saindo rapidamente e gritaram para parar. Perguntaram quem eu era. Os dois
eram jovens e mal encarados na faixa de 15 18 anos. Não dei resposta e
continuei em frente. Logo saí correndo virando uma esquina. Correram atrás de
mim. Ouvi um tiro. Mais dois. Senti uma picada no ombro. A bala passou de
raspão. Pulei um muro e bati na porta de uma casa. Abriram. Expliquei o que
acontecia.
Lá fora, os dois ficaram na espreita esperando eu sair. O Dono da casa ligou
para a policia. Sua esposa fez um pequeno curativo, pois a bala só passou de
leve e um pequeno filete de sangue sem maiores consequências. Quando a
policia chegou, fugiram. Levaram-me até a delegacia próxima. Liguei para meus
pais. Aconselharam-me a contar o que sabia. O Rael também foi chamado.
Foi uma semana cheia. Repleta de medos, vergonha e com um final
surpreendente e policialesco. Soube que prenderam os dois que atiraram em
mim e mais outros. Não sei se ficamos livres deles, pois um dia iriam sair da
prisão. Rael se emendou e continuou no Grupo. Vimos que ali nossa Lei tinha
uma enorme significação. Infelizmente não foi eleito naquele ano como monitor.
Ficou para o próximo.
Sempre acreditamos que somos imunes a tais vícios. Felizmente temos algum
que poucas organizações de jovens possuem. Aprendemos a respeitar o
próximo e o nosso corpo. Proteger o irmão escoteiro é ponto de honra. Respeito
às leis e normas faz parte do nosso aprendizado. Enfim, temos uma Lei
Escoteira admirável. Podia acontecer de novo, mas não seria fácil.
O tempo passou. Hoje já crescido não soube de outros acontecimentos como
este. Acho que ficamos livres. Fiz uma reflexão no meu intelecto de todos os
jovens que conheci. Ela também abarcou outros grupos. Não me lembrei de
nenhum deles (os jovens) hoje em sua vida adulta com conduta imprópria.
Todos são excelentes cidadãos, conscientes de suas responsabilidades morais
e demonstram um exemplo nato para todos os amigos da comunidade. É assim
o escotismo. Formação do caráter. Ter honra. Isto é que nos faz ter o “Espírito
Escoteiro”.
Acredito que o Movimento Escoteiro não tem similar. Se tivéssemos milhares ou
centenas de milhares de jovens participando, poderíamos ter outra visão da
juventude atual. Cabe a todos nós fazermos de tudo para tornar possível tal
objetivo.
Você meu caro ou minha cara sabe o que significa ser escoteiro ou escoteira.
Assim como eu possuem o orgulho de pertencer a este movimento tão querido.
Sabe do valor que tem o seu uniforme, de sua equipe e de seu grupo. Sabe que
não está só. Tem milhões de irmãos espalhados pelo mundo.
Traga para o nosso meio seu amigo e sua amiga. Você estará contribuindo para
obtermos mais um nas fileiras do escotismo e os benefícios serão imensos.
E assim fazendo, a nação prazerosamente agradece.
E quem quiser que conte outra...
"O pensamento positivo pode vir naturalmente para alguns, mas
também pode ser aprendido e cultivado, mude seus pensamentos
e você mudará seu mundo”
Norman Vicent Peale
DO DESTINO NINGUEM FOGE
Felicidade,
sentimentos que transborda de bons fluídos,
que faz tudo ficar mais fácil,
mais compreensivo,
é uma chave para o sucesso.
Anônimo
Certa vez, há muito tempo atrás, fui convidado por um Grupo Escoteiro de uma
pequena cidade do interior, para proferir uma palestra sobre os Valores do
Escotismo na sociedade.
Era um Grupo simples, com um efetivo excelente e uma alegria e amizade que
não se encontra facilmente aonde vou. Moças e rapazes sorridentes, me olhando
respeitosos e dentro de seus olhos sentia o verdadeiro “Espírito Escoteiro” tão
procurado por todos nos.
Durante a palestra, em um salão paroquial repleno, composto por muitos pais,
amigos simpatizantes e até alguns membros da sociedade política da cidade,
observei um chefe, que permaneceu encostado em uma parede, me olhando
com olhos ávidos, prestando uma atenção canina, que fez com que me perdesse
algumas vezes na continuidade da palestra.
Este chefe, aparentando uns 50 anos, tinha um aspecto não muito simpático,
apesar de estar muito bem uniformizado, com o caqui tradicional (um pouco
velho, mas limpo e bem passado) um chapéu de abas largas bem posto, meiões
dentro dos padrões e o lenço impecavelmente bem dobrado. Seu semblante
deixava a desejar. Sua boca parecia inchada e uma grande mancha no rosto não
dava um ar atraente a sua pessoa.
Cabelos negros, lisos e compridos, contidos por um “rabo de cavalo” simples,
dava uma conotação estranha e extravagante. Tinha uma maneira de andar meio
bizarra com os braços abertos, ombros curvados, mas seu sorriso era
contagiante.
Após a palestra, fui dar uma volta no pátio onde se realizava as reuniões, e vi ali
um bom escotismo sendo praticado por uma alcatéia mista, duas tropas uma
masculina e uma feminina e uma tropa sênior composta de uma só patrulha.
O chefe em questão estava em pé, observando o andamento das reuniões,
sempre curvado, e esperando que alguém o chamasse. Estranhei que ele não
participasse diretamente de alguma sessão.
O Chefe do Grupo que me acompanhava vendo minha curiosidade explicou:-
Apareceu aqui há uns quatro anos. Fica sempre afastado, pois sabe que sua
fisionomia assusta os jovens e também os adultos. Com o tempo estamos nos
acostumado a ele. Remo era o seu nome, o sobrenome ninguém sabia. O
uniforme foi doado por um chefe que mudou desta cidade e acho que a doação
foi como o descobrimento de uma grande pessoa. Sua alegria, mesmo com um
sorriso torto, contagiava.
Sempre tivemos receio de convidá-lo para uma das sessões. Não fizemos sua
promessa, achamos que não deveríamos. Os pais não o viam com bons olhos.
Afinal acreditávamos que fosse analfabeto e você sabe a dúvida em colocar
alguém assim em uma sessão é preocupante.
Ele é um dos primeiros a chegar à sede, faz a limpeza com esmero, fica a porta
esperando que alguns de nós peçamos alguma coisa e é de uma vassalagem
preocupante. No inicio das reuniões sempre está pronto a colaborar com a
chefia, buscando materiais, e limpando o pátio quando alguém joga algum ao
chão ou mesmo depois das reuniões.
Muitas vezes quando venho à noite à sede, o encontro sentado no meio fio,
como, a saber, que eu viria. Entra comigo e enquanto faço minhas obrigações ou
mesmo aguardo outros para alguma reunião, ele está a ver figuras sem parar na
pequena biblioteca escoteira que temos aqui no grupo. Claro que sempre dou
um livro para ele levar para casa, sempre com muitas gravuras. Ele sorri e me
agradece muito.
Enfim, nos acostumamos com ele, como se acostuma com um... Ele ia dizer cão
amigo, mas preferiu se calar. Acho que não era sua intenção desmerecê-lo. O
pouco que sabemos é que trabalha no moinho do português (muito conhecido
na cidade) e mora em um pequeno quarto alugado num bairro afastado.
Achei interessante o fato. Para mim inusitado. Os anos se passaram e de novo
voltei ao Grupo citado e agora não me lembro bem o motivo. Foi num verão
atraente, mas cujo calor ameaçava passar dos 40º. Cheguei pela manhã,
viajando boa parte da noite em um ônibus de carreira.
Após os comprimentos de praxe, conversava com um ou outro Escotista e foi
então que dei falta do Chefe Remo. Seu lugar de sempre onde ficava encostado
a parede estava vazio. Vi com espanto lagrimas nos olhos do chefe do grupo e a
tristeza nos demais quando perguntei a respeito.
- Ele desapareceu um dia da sede e não voltou mais. Sentimos uma grande falta.
Não tínhamos mais aquele que limpava que ficava a nossa disposição como um
servo sem salário, nunca reclamava, estava sempre pronto a ajudar e então
chegamos à conclusão que não demos o valor necessário ao um grande homem,
a um grande Escotista que foi sem ter sido.
Todos, sem exceções sempre esperavam chegar à sede e encontrá-lo ali,
subserviente, pronto a ajudar e nunca esperando nada em troca. Até mesmo os
jovens perguntavam por ele. Antes do seu desaparecimento ele já participava de
pequenas atividades, mais como colaborador e assim a admiração pela sua
fidalguia estava crescendo no coração de todos.
Esperamos duas semanas e fomos ao moinho onde ele trabalhava. Ficamos
sabendo que ele desapareceu também de lá. Seu Manuel dono do moinho foi
com a policia ao quarto dele e nada encontrou. Convidou-nos a ir até lá para
vermos como era.
Meu amigo foi uma punhalada no coração, pois o quarto dele era uma linda sede
escoteira, com um quadro enorme de BP. Quadro de nós, de sinais, bandeirolas
de semáforas penduradas na parede, uma colcha bordada com flor de Liz jazia
em sua cama e uma linda Bíblia aberta na pagina onde se lia o salmo jazia acima
de uma pequena cômoda. Ficamos chocados com tudo. Nunca esperávamos
isto.
Seu quarto era muito limpo e bem arrumado. Não havia cartas, papeis nada que
pudesse identificar de onde era e para onde foi.
O tempo passou não mais que cinco meses e ficamos sabendo que ele tinha
sido atropelado em uma cidade próxima, e imprensado a um poste tinha morrido
na hora. Mesmo com sua identidade não sabiam de onde era e de onde vinha. O
enterraram como indigente. Ele estava com o cinto escoteiro e um dos
investigadores resolveu fazer uma consulta à direção escoteira do estado. Em
vão. Ele não tinha registro lá.
Alguém sugeriu consultar o Grupo Escoteiro mais próximo. Conversa daqui e
dali se passaram vários meses. Um pai soube e comentou do desaparecimento
do Chefe Remo. Ele o conhecia e recordava como todos ficaram preocupados.
Ao confirmar a identidade, não havia mais dúvida.
Foi um choque para todos nós. Não sei por que, se foi uma boa ideia, mas
reunimos todo o grupo e um dia de domingo à tarde fomos até a cidade onde
havia sido sepultado. Em volta de sua campa simples, fizemos uma oração, a
cadeia da fraternidade, todos chorando, engasgados dizendo com dificuldade
que não era mais que um até logo, não era mais que um breve adeus, pois bem
cedo junto ao fogo, tornaríamos a nos ver.
Ali, com os olhos marejados de lágrimas, vimos um beija flor verde azulado,
sozinho, batendo asas em volta do seu tumulo, e enquanto permanecemos ele
também ficou, sem pousar, sem cansar. Não digo que seria um sinal, nada disto,
eu mesmo não acredito. Sou meio céptico com essas coisas. Um fato não pode
ser esquecido, o chefe Remo merecia ter tido muito mais de nós. Pelo menos
sua promessa.
Voltamos tristes, silenciosos. Não havia canções, só as lembranças pululavam
na face e no íntimo de cada um. Agora sabíamos que tínhamos conhecido um
grande escoteiro, um grande chefe, mas só demos o valor quando ele se foi. Não
houve medalhas, não houve certificados de gratidão. Nem um simples
agradecimento verbal. Só mesmo a lembrança ficou. Saudosa, dolorida e que
nunca mais vai ser esquecida em nosso grupo escoteiro.
Fiquei pensando que nem sempre a escrita, a formação intelectual e docente
deve ser avaliada para a escolha de um líder. Como diz o Grande Arquiteto do
Universo, a muitas moradas na casa de meu pai. Ele se sentia satisfeito com o
que fazia e ali era o seu lugar. Confirmar tais indivíduos que se multiplicam por
todas as plagas, dando seus valores merecidos, faz parte de nossa aceitação em
chamá-los de escotistas, de chefes.
Voltei para casa meditando. Era um Escotista cumpridor de seus deveres. Não
almejava nada. Fazia seu trabalho sem recompensas. Era o lixeiro, o carregador,
o apanhador de sonhos. Vi então que a Lei do Escoteiro também é a lei do Chefe
Escoteiro. Nunca mais voltei lá. Não porque não quis, não houve oportunidade.
Mas o chefe Remo ficou marcado para sempre em minha memória.
E quem quiser que conte outra...
Aqueles que amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós.
(Amado Nervo)
O HERÓI QUE NÃO MORREU
“Papai Noel, você que não se atrasa,
Na visita anual que faz a terra
Vê se pode mandar voltar em minha casa
“O meu papai que foi brigar na guerra”
Tenho dificuldades de lembrar-me desta história. Passou-se no inicio da década
de cinquenta. Estava com 11 anos, e ao contar, pode haver lapsos de memória
ou mesmo falta de sincronismo. Espero que me perdoem. Afinal tenho bloqueios
de minha época de menino, e mesmo assim vou tentar ser bem fiel ao fato que
ainda tenho dúvidas se aconteceu.
Tinha renovado minha promessa, pois fora lobinho por três anos e meio, e
estava lutando para “tirar” minha segunda classe. Havia 10 meses que fizera a
passagem. Não era fácil. Como muitos conseguiram eu também ia conseguir.
Participava da patrulha Lobo. Um ótimo time e gostava de todos os meus
amigos patrulheiros, alcunha bem conhecida na época.
Não me esqueço que naquela ocasião quem conseguisse a primeira classe e se
fosse bem na prova de técnica e segurança da faca e machadinha (das
pequenas) poderia usá-las no cinto. Via o orgulho do Monitor e do sub, além do
Nonô, que exibiam pelas ruas em seus cintos, a faca do lado direito e a
machadinha encapada do lado esquerdo, na vinda e ida à sede. Sonhava em
fazer o mesmo.
Mas não é esta a história. Ela não é sobre mim. Ela é do Tito. Um jovem moreno
claro, cabelos pretos, olhar triste, calado e que se tornou um enigma para mim.
Da precária lembrança recordo que Tito adentrou na patrulha cinco meses após
minha chegada. Sua apresentação foi bem estranha. Não havia sorrisos em seu
rosto. No grito da Patrulha ele nada dizia nem mesmo acompanhar com os
lábios.
Em reuniões de Patrulha Tito não se manifestava. Várias vezes notei que ele
estava em sintonia com alguém. Não sabia quem ou o que podia ser. Não ouvia
vozes só sua maneira de olhar, balançar a cabeça como concordando. Tito era
estranho. Estranho mesmo. Os outros não comentavam. Aceitavam Tito como
ele era.
Um dia procurei o Chefe Jessé e comentei sobre o fato. Expliquei que não falei
nada para a patrulha. Não queria criar um clima ruim de falta de confiança ou
mesmo de fraternidade. Claro, tinha conversado com o monitor e ele me disse
que nada observou.
O meu chefe de tropa era um “cara” legal. Disse que não me preocupasse. Cada
um de nós temos os nossos problemas e agimos conforme fomos criados em
nossa família. Disse também que poderia notar que irmãos sempre são
diferentes e compete a cada um de nós aceitarmos como são.
Quando ia saindo o Chefe preocupado, me pedindo reserva, e não comentar-se
com ninguém, que o pai de Tito, um Australiano, nos últimos meses da guerra,
se alistou. Foi imediatamente enviado para frente de batalha, já em território
alemão onde foi morto por uma granada que explodiu a sua frente.
Sua mãe já estava grávida de oito meses quando ele partiu em 1943. Tito nasceu
prematuro. Seus avôs resolveram não ficar na Austrália e vieram para o Brasil.
Ele sabe o que aconteceu. Não esconderam nada.
Fiquei pensativo. Talvez na minha pequena cabecinha de jovem de 12 anos não
pudesse raciocinar direito e entender como hoje entendo. Mas uma semana
depois já tinha esquecido boa parte do que o chefe me contou.
Acredito que comecei a me preocupar e até a ficar com medo, em um
acampamento de fim de semana que fizemos nas Corredeiras de São Mateus.
Por duas vezes acampamos lá. Um lindo local. Bom arvoredo, e muitas
plantações de coqueiros que o proprietário do terreno não tinha plantado e disse
que podíamos usar a vontade.
Não imaginem grandes corredeiras. Nada mais que um pequeno riacho, que em
época de seca, atravessávamos pulando pedras sem molhar os sapatos. Como
tinha um belo descampado, com capim comum, armávamos as barracas sem
dificuldade e dificilmente seriamos atingidos por uma enchente.
Estávamos só a patrulha. Empurrávamos com alegria a carrocinha pela
estradinha de terra e vi ao longe uma enorme nuvem negra prenunciando chuva.
Como dizia o meu Grande chefe Francisco Floriano de Paula, nuvens baixas cor
de cobre, é temporal que se descobre. Tem-se chuva e depois vento, fica em
guarda e toma tento.
Ainda havia um bom caminho para percorrer. Resolvemos dar uma pequena
corrida, pois o caminho era bom sem subida. Olhei em volta e não vi Lito. Estava
bem atrás de cabeça baixa, balançando o corpo dizendo baixo, tudo bem! Tudo
bem!
Veio correndo até nós e nos mandou parar. Paramos. Um raio de enorme
proporções caiu a menos de 10 metros além de nós na estrada. Derrubou uma
árvore de bom tamanho. Se Lito não tivesse nos parado não sei o que
aconteceria.
Quando contornamos a arvore caída, ele disse ao Monitor que não fosse para as
Corredeiras de São Mateus. – Por quê? Disse o Monitor. - Fiquei sabendo que
uma grande “Tromba d’água” iria cair dentro de poucas horas e vai inundar
tudo! – disse.
Ficamos pasmados! Primeiro o raio agora a enchente. Afinal quem era Lito? Ele
de cabeça baixa, não falou mais. Fomos até próximo às corredeiras e vimos do
alto da estrada que nada havia. Nem chuva, nem Tromba d’água, nada. –
Esperem, disse Lito, aguardem. Não demorou muito e um trovejar como se fosse
um grande avião pousando mostrou uma enormidade de água vindo.
Subimos com a carrocinha uns 10 metros acima do morro e a água tomou conta
de todo o vale. Se tivéssemos ido em frente, não sei o que seria de nós. Claro, a
inundação teria levado todos. Olhamos para o Lito e ele de cabeça baixa nada
mais falou.
Bem, não vou entrar em mais detalhes, pois assim como veio, a “Tromba
d’água” se foi. Não sujou muito a grama e pudemos acampar com um pouco de
tranquilidade.
Outra vez foi quando viajamos de trem até uma cidade onde iríamos acampar
com outra tropa amiga. Lito na estação começou a balançar a cabeça, os braços
dizendo, tudo bem! Tudo bem! Sabia que dali não viria boa coisa. Logo ele
procurou o Chefe e disse que o trem iria se atrasar, pois tinha desencarrilhado o
último vagão onde morreu o condutor.
O chefe foi até ao Chefe da Estação e este não sabia de nada, o trem já tinha
partido da estação próxima e deveria adentrar pelos seus cálculos daí a 15
minutos. O tempo passou e nada. Duas horas depois foi enviado uma vagonete
para saber o acontecido. Confirmou o que Lito tinha dito.
Agora sabíamos que Lito tinha alguma anormalidade. Naquela época não
tínhamos ideia de nada. Ficamos é com medo de Lito. Mesmo assim fingíamos
que ele era mais um patrulheiro e o tempo foi passado. Ele já tinha notado e
mesmo assim continuava.
Estamos em um Acampamento nas férias de julho, onde ficamos por sete dias.
Sai só com um facão para tentar achar um galho se possível de goiabeira, pois
pretendia fazer um arco e soube que ali conseguiria. Não pretendia ir longe. Só
saiamos em dupla e disse ao Monitor que voltaria logo e mostrei aonde iria.
Ao subir uma pequena elevação avistei a minha frente, Lito, sentado próximo a
um Jequitibá não muito grande e falando com alguém. Não vi ninguém. Fiquei ali
a espreita e Lito parou de falar. Alguém me tocou nas costas e quando olhei
Deus do céu! Um homem fardado, com uma aureola branca em volta da cabeça e
disse para não ter medo.
Dizer para um menino de 12 anos não ter medo naquela hora era fora de
propósito. Tremia e já ia correr quando ele disse que era o pai de Lito. Como?
Pensei eu. O pai de Lito morreu na guerra. Ele leu meu pensamento e disse que
sim, havia morrido, mas sua alma vinha sempre visitar Lito. Ele era parte dele.
Precisava dele.
Não estava entendendo nada. Meus joelhos tremiam. Notei que minha calça
estava molhada e pingando. Verdade. Não vou mentir. Fiz poucas e boas como
escoteiro e sênior, mas naquela primeira vez eu era um grande medroso. O tal
pai de Lito, sorriu (era bem simpático) e me disse que seu filho tinha uma grande
amizade por mim. Ele contava comigo e eu não poderia decepcioná-lo.
Para mim tudo bem. Naquela hora concordava com tudo. Não vi mais a aparição.
Lito estava ajoelhado e chorando. Chorava e chorava. Fui até ele e o peguei pelo
braço. Ele se levantou e me abraçou. Disse que eu era o único que sabia do seu
contato com o pai. Ele não tinha contado para ninguém.
Queria ser diferente. Não conseguia. Quando começou a vê-lo não entendia
nada. O tempo foi passando até que um dia ele se aproximou e disse que era o
seu pai. Ele sabia que a noite eu pedia a Deus para trazê-lo de volta. Afinal que
adiantava uma medalha escrito nela herói?
Se os tais heróis não voltam para casa, será que vale a pena ser herói? – Não
entendi bem o que Lito queria dizer, mas ele continuou dizendo que sua mãe
chorava muito. Tentava disfarçar quando ele estava presente, mas seus olhos
sempre vermelhos denunciava.
Em um natal, quando tinha seis anos, continuou Lito, eu pedi a Papai Noel que
trouxesse o meu pai de volta. Ele voltou à noite, e sentado no chão ao pé da
minha cama, conversou comigo por um longo tempo. Fiquei alegre, quando
acordei e procurei minha mãe não vi mais papai.
Ele me aparecia não frequentemente. Sempre a me dizer o que ia acontecer, o
que devia fazer, me orientava com minhas lições, dizia que estava sempre junto
de mim em todos os lugares. Aquilo estava se tornando para mim uma obsessão
finalizou ele.
Olhe meu amigo, continuou. Adoro o meu pai, mas já pedi a Deus para levá-lo
para junto de si. Acho que está na hora de ele partir. Não queria um pai assim,
queria ele em carne e osso. Disse isto para ele ontem depois que falou com
você. Olhe você é o único que conseguiu vê-lo. Minha mãe não acredita em mim
e nem o Padre Lívio.
Acho que tudo aconteceu assim como estou contando. Pode ser que tenha tido
outras passagens que não me lembro. Só sei que um semana depois, Lito me
procurou e disse que se pai ia embora. Despediu dele e disse que o esperaria em
outra vida. Disse para não me preocupar. Que iria viver até aos 90 anos. Já
pensou?
Lembro que o tempo passou. Dois anos depois fui eleito monitor da Patrulha.
Lito era o meu sub. Entendíamo-nos perfeitamente bem. Não houve mais
comentários do seu pai. Lito se tornou alegre, bem disposto e todos gostavam
muito dele.
Poucos se lembravam da enchente, do raio e de várias outras premonições dele,
claro, pois seu pai era o seu confidente. Muitos fatos se sucederam de forma
natural. Vivi o escotismo em sua plenitude. Nunca vi um acidente, um braço ou
perna quebrada, um afogamento. Nada. Agradeço a Deus por isto.
Mas também tenho que agradecer ao pai de Lito, pois poderia ter morrido com
um raio ou com uma enchente. Estou vivo. Graças a Deus.
Daquele passado distante, tento reviver o que aconteceu com Lito. Não lembro.
Lá pelos idos de 1971, estava dirigindo um curso de Chefes de Alcatéia, e notei
que um aluno me parecia conhecido. Olhei sua ficha, e estava escrito Lindomar
Fernando Neto. Não me toquei. No final do curso, ele me olhou e disse – Não
lembras meu caro chefe?
Lembrei! Agora já homem era a cara do seu pai. Abraçamo-nos, fomos após as
despedidas juntos até um restaurante. Jantamos, tomamos uma cerveja (ele só
refrigerante) e me contou sua vida depois da minha saída. Não quis casar.
Achou que devia ser um discípulo da Igreja de Deus. Entrou em um seminário e
agora era um padre da paróquia de São Manoel.
Convidou-me para um dia ir visitá-lo. Eu iria surpreender com o seu Grupo
Escoteiro. Sorri. Quem diria! Bem como todo final de história feliz, ele também
sorriu. Ele foi para um lado e eu fui para o outro. Nunca mais nos vimos. E que
seja o que Deus quiser.
E quem quiser que conte outra...
“Vê se você, que pode mais que a gente,
E quem tem uma força sem igual,
Pode-me dar agora este presente
Em uma noite, milagrosa de natal!”
Um começo, uma saudade.
"A felicidade não está no fim da jornada, e sim em cada curva
do caminho que percorremos para encontrá-la.”
Anônimo.
Algumas passagens em nossas vidas deixam marcas que não podem ser
apagadas. Sejam elas de fatos nostálgicos, ou fantasiosos, não importa. Cada
uma destas ocorrências são registradas de forma igual, sem pretensões de
saber qual a melhor ou pior.
É como sempre disse, se você não participa não tem história para contar. Mas
nós do Movimento Escoteiro somos os campeões de histórias vivas que a cada
dia vão aumentando os arquivos em nosso cérebro, já formados com tantas
outras que nos trazem memórias vividas de um passado remoto.
O sol está se pondo, já não o vejo. Casas e casas apagam e destroem esta vista
que deve ser maravilhosa. Fecho os olhos e lembro-me dos setenta. Um grito de
patrulha, um sub campo, mais de 150 seniores. Uma história um fato marcante e
uma grande amizade.
Acho que foi em 1966. Uma atividade nacional em que despretensiosamente me
inscrevi. Estava com 26 anos e naquela época um simples chefe de tropa,
tentando a Insígnia de Escoteiros. Já tinha participado de um, mas fui conhecer
outro pela segunda vez. Com um amigo e Escotista irmão instalamo-nos no
campo da chefia, pois minha tradição era de ser um “Eterno vagabundo sem ter
o que fazer” nestes acampamentos.
Para minha surpresa nomearam-me chefe do sub. campo Sênior. Não sei quem
foi o dono da ideia. Não conhecia nenhum dos dirigentes da atividade. Nunca em
tempo algum dirigi ou colaborei com tal tipo de acampamento. Para mim
totalmente desconhecidos. Seria uma responsabilidade que não tinha tamanho.
Relutei um pouco em aceitar, expliquei as razões. No entanto confiaram em mim
e sempre gostei de um desafio. Tudo era desconhecido, jovens de vários
estados entre 14 a 17 anos e quem já trabalhou ou trabalha com eles (os
seniores) sabem como são. Gostam-se ótimo, se não gostam “papagaio, seja o
que Deus quiser.”.
Um amigo, assistente de alcatéia e outro também de alcatéia (Akelá), eram meus
assistentes. Fora eu que fora sênior por três anos, e tinha uma passagem em
uma Tropa Sênior das antigas em uma época meio selvagem tinha muitas
dúvidas como chefiar um sub campo. Seria um maneira para eu testar a mim
próprio até onde poderia ir. Não importava se não tinha experiência de tal
envergadura para dirigir mais de 150 seniores de quinze estados brasileiros.
Quando me apresentei como chefe do sub. campo (ninguém foi lá me
apresentar) vi sorrisos marotos, alguns não prestando atenção (eram 28
patrulhas) e me senti um peixe fora d’água. Mas foi só o começo, à medida que
as horas e os dias se passavam (cinco dias), viramos uma família. Como me
sentia feliz ali. As amizades cresciam, de norte a sul éramos um só espírito um
só coração.
Não pensei que seria daquela maneira. O medo às duvidas e as apreensões
foram aos poucos suprimidas. Passei a gostar deles e eles de mim. Em dois dias
iam até a barraca da chefia, sentavam-se à mesa que construímos, conversavam,
trocavam ideias, piadas e uns poucos comentavam de suas vidas.
O maior espetáculo, no entanto era quando se fazia a chamada do sub campo
em privado ou geral. Uma patrulha de um estado brasileiro tinha um grito bem
comprido e quando todos já haviam terminado lá estavam eles ainda a declamar
seu histórico e seus feitos.
Já no segundo dia, uma patrulha aqui, outra ali terminavam seu grito e faziam
uma grande roda abraçando entre si e terminando o grito com eles. Depois todas
as patrulhas seniores faziam o mesmo.
Em qualquer chamada geral, todos os demais subcampos ficavam esperando os
seniores. Era uma festa, Correndo, gritando, rindo, falando, cantando e a
apoteose sempre era da patrulha dos setenta (Baden Powell), com seu grito de
patrulha. Não me lembro bem, mas acho que era mais ou menos assim:
- Somos do setenta, Grupo São José!
Somos a patrulha, a patrulha que é,
Baden Powell patrulha boa, melhor não há.
Vem cá prá ver, para acreditar!
(havia mais duas estrofes, mas esqueci).
Existe patrulha melhor, talvez sim.
Talvez não, quem sabe, só Deus.
E o grito não parava aí, continuava mais e mais, e os seniores, unidos, ombro a
ombro, mãos unidas, meus amigos, era um espetáculo de encher os olhos e
batidas fortes no coração. Já sabíamos que pelo menos 10 minutos nas
chamadas seriam dedicadas ao sub campo Sênior.
Todos acostumaram com aquela fraternidade, surgida do nada, mas que uniu e
muito as patrulhas rumo ao crescimento individual e coletivo.
Não posso esquecer aquele acampamento de patrulhas. Ficou gravado em
minha mente, e hoje recordo com saudades daquele tempo, onde aprendi a
admirar os seniores, em qualquer lugar do mundo.
Gostaria de ter participado de outras, de encontrar novamente com eles. Mas o
Escotismo é sempre assim. Uns vãos, outros entram, outros saem, alguns ficam
e nunca mais nos vemos.
Não me sai da lembrança aquele Acampamento Nacional de Patrulhas, penso
onde estarão aqueles jovens hoje, se alguns ainda participam se trazem como
eu as lembranças do passado que nunca irão ser esquecidas. Lá se foram 44
anos. Muito tempo!
Um dia, se pudesse voltar atrás, seria novamente um chefe sênior. Fui uma vez,
por pouco tempo, só três anos. Mas devia ter continuado. Acho que tenho uma
queda por eles. São senhores de si. Sabem o que querem. Podem decidir suas
vidas tranquilamente principalmente se passaram por uma tropa de escoteiros.
Foi uma época áurea. Eram poucas as minhas responsabilidades no cenário do
Escotismo Nacional. Depois tudo mudou. Mais encargos falta de tempo, outros
tipos de sonhos, família, filhos, enfim as velhas mudanças de atitudes tão
sobejamente conhecidas.
O Escotismo tem histórias. Epopeias são escritas aqui e ali. Isto nos faz
continuar, reviver, pensar no agora e no futuro. Gosto dele. Sinto-o na pele, no
corpo no coração. Quando vejo jovens sorrindo acredito que é isto que nos
fazem permanecer, continuar, motivar, e olhe, digo sempre, nada nos paga tanto
como ver um deles, crescido, mostrando que o escotismo ajudou a forjar
cidadania e caráter. Isto é maravilhoso.
Gostaria de voltar a uma atividade assim com os seniores. Sei que não vai ser
possível. As pernas não ajudam. A voz não é a mesma. A respiração cansativa.
Cantar com eles não consigo mais. Mas só de olhar a alegria, a vivacidade, a
esperteza e a coragem, acho que devo me inscrever urgentemente em uma
atividade assim. Vai valer à pena ficar sentado e olhar... Reviver... Sentir a
vibração...
♪♪ - “Tropa Sênior, sênior é, é que é bacana”.
Ah! Somos do setenta. Eu ainda sou até hoje...
E quem quiser que conte outra...
"Todos os dias Deus nos dá um momento em que é possível
mudar tudo que nos deixa infelizes. O instante mágico é o
momento em que um "sim" ou um "não" pode mudar toda a
nossa existência. "
Anônimo.
OLIMPIADAS ESCOTEIRAS INESQUECÍVEIS
“Quem ao crepúsculo já sentiu o cheiro da fumaça de lenha, quem já ouviu o
crepitar do lenho ardendo, quem é rápido em entender os ruídos da noite, deixai-
o seguir com os outros, pois os passos dos jovens se volvem aos campos do
desejo provado e do encanto reconhecido”.
Kipling
Era o meu quarto acampamento. Tão logo passei para a tropa de
escoteiros as atividades aventureiras ao ar livre se multiplicaram. Conhecia bem
a Mata do Quati, um local excelente para acampar, com varias aguadas, e o
melhor, uma bela cachoeira que hoje deu lugar a uma pequena hidroelétrica que
abastece satisfatoriamente a cidade onde morava.
Lembro bem na época da piracema, onde nos divertíamos em pegar peixes com
as mãos, que se multiplicavam na subida complexa de altos e baixos, rindo,
brincando entre as pedras, com aquela nevoa a tomar conta de toda orla da
cachoeira. Sempre que ali acampávamos não faltavam as fritadas de lambaris,
piaus, corvinas e tantos outros peixes, feitas pelo nosso cozinheiro da patrulha.
Um expert em cozinha de campo.
Podíamos escolher a vontade onde montar o nosso campo, pois beirando o Rio
do Morcego, a mata deixava belas clareiras, mas a preferida era próxima da
cachoeira, claro sem considerar o Córrego do Marmelo, que desembocava no
rio, formando um remanso onde nos banhávamos de manhã e a tarde. As
patrulhas muitas vezes ficavam até 200 ou 300 metros distantes uma da outra.
O barulho diabólico e magnífico da queda d’água era como se fosse uma
melodia para os nossos ouvidos e a noite, o som entre as arvores trazia toadas
cantigas que a plenos pulmões desafiávamos as demais patrulhas, num quebra
coco frenético.
Não tenho certeza, mas a cachoeira do Sonho não era muito conhecida da
comunidade local. Pouco visitada. Talvez pela localização, afastada da cidade
por mais de 10 quilômetros e precisávamos andar mais quatro mata adentro.
Através de pequena trilha chegávamos até ela. A queda d’água com mais de 20
metros de altura, com aproximadamente 50 de extensão, caindo de um só salto,
formava um grande lago de águas revoltas todo coberto por uma névoa algumas
vezes densa outras vezes não.
Lembro que sempre quando acampávamos ali, não sei se por tradições criadas
por outras patrulhas mais antigas que devem ter iniciado, no penúltimo dia
ininterruptamente, realizávamos nossas olimpíadas, o que na época
chamávamos de competição escoteira, onde individualmente e sem representar
as patrulhas, fazíamos diversas provas bem diversa das hoje realizadas.
Eu não era bom em todas. Mas a prova do macaco sempre me deixava ou em
primeiro ou segundo. Na prova da machadinha e da faca, também não era tão
ruim. Não era bom na prova dos nós, da escalada, da travessia e da rodada dos
pneus, fora o medo do salto na cachoeira amarrado em uma boia. Quando os
seniores resolveram participar e foram aceitos, logo a alcatéia com a aprovação
do Akelá foi incluída na grande olimpíada anual com atividades próprias.
Foi necessário fazer um regulamento, onde os lobinhos, escoteiros e seniores
pudessem participar de acordo com a idade, peso e altura. Na época não entendi
bem, mas confiávamos nos nossos chefes e nunca em tempo algum
discordamos de uma ou outra vitória de alguém não merecida. Escolhíamos as
provas que iríamos realizar, e pelo tempo não podiam ser mais do que três ou
quatro.
Toda a chefia e o Chefe do Grupo sempre estavam presentes neste dia. Eram os
juízes e quem nos entregava os prêmios, tais como uma faca nova, um canivete
escoteiro, um chapéu Prada de abas largas, um lenço de outro grupo, um
distintivo qualquer, ou mesmo medalhas simples, bronze, prata ou ouro, como a
dizer que éramos os mais perfeitos naquela contenda anual.
A data programada para esta atividade escoteira era aguardada com ansiedade.
Não tive muitas vitórias e meus prêmios eram raros, mas a diversão era
garantida. O local, a Mata do Quati abarcava todos os seus predicados,
satisfazendo as necessidades técnicas, mateiras e como tradição não podia ser
alterada. Ali começou e ali teria o seu término.
Não sei quando iniciou a participação dos Grupos Escoteiros das cidades
vizinhas. Não lembro bem, mas acho que a primeira ideia foi dada quando
acampamos na cidade do minério, onde se localizava uma grande ferrovia que
extraia minério de ferro e manganês em grandes quantidades e em enormes
comboios de vagões puxados por ate cinco locomotivas eram transportadas até
o porto, há mais de 800 quilômetros de distancia, situado em um estado vizinho.
A Ferrovia sempre nos oferecia um vagão especial quando acampávamos em
áreas próximas da estrada de ferro, (amabilidade cedida devido a um ex-
escoteiro atual diretor de operações) a ponto de parar fora dos locais
programados para descer. Isto em toda a sua extensão bastando planejar com
antecedência. Ele, o nosso vagão era o ultimo do comboio.
Foi em um julho simpático, inverno gostoso, quando lá acampamos (na cidade
do minério), e junto com o grupo escoteiro local muito amigo de todos nós, que
participamos de uma olimpíada pela primeira vez. Sempre fazíamos
acampamentos em conjunto, mas com atividades próprias de campismo e
confraternização.
De surpresa nos convidaram para participar de uma olimpíada no ginásio local,
onde se conheceria o melhor corredor, nadador, saltador e outras modalidades
que pouco conhecíamos. Claro que aceitamos, mas foi uma derrocada sem
tamanho. No encerramento conseguimos acho eu umas oito medalhas contra
mais de 50 do grupo da cidade.
Antes de retornarmos, reunimos todos os monitores inclusive os seniores e um
de nós que não lembro quem, achou que aquela derrota tinha que ser revertida.
Deu a ideia para que convidássemos o Grupo Escoteiro da Cidade do minério
para participar da nossa competição anual, e daríamos a eles oportunidades
para se preparem, pois não deram esse gosto para nós.
Claro que aceitaram. E até que não foi ruim. Reunir dois grupos, mais de 50
escoteiros, 25 seniores e 40 lobinhos na Mata do Quati foi fantástico. As
competições foram realizadas com companheirismo e respeito. Era ponto de
honra os anfitriões fornecerem toda a alimentação aos visitantes. Isto sempre
acontecia em qualquer cidade que possuía um Grupo Escoteiro.
Na primeira Olimpíada executadas em conjunto, demos um verdadeiro banho,
conquistando mais de 70% dos prêmios. No entanto, isto foi mudando através
dos tempos. Os visitantes mais e mais se preparavam e não eram considerados
uns pata tenras como dizíamos.
Quando mudei da cidade em fins de 63, havia mais de três grupos que
participavam se tornando uma tradição distrital. Não sei atualmente se ainda
persiste, mas as competições escoteiras realizadas e consideradas hoje como
olimpíadas olímpicas não nos traziam como as de antes, lembranças vivas de
nossa vivencia mateira e técnicas escoteiras forjando aventuras reais.
Acredito que podem existir vários grupos que realizam ou participaram de tal
atividade. Pode ser que muitos grupos em nosso país tenham conhecimento de
tal intensidade técnica e mateira. E isto é extraordinário. Eram marcantes e
facilitavam sobremaneira o desenvolvimento nas provas de classe.
Algumas provas apostilo abaixo para exemplificar o que fazíamos e outras
tantas não são aqui descritas para não atropelar novas ideias que surgirem com
a leitura deste artigo:
- Subir em menos de um minuto em uma árvore de até 8 metros, descer pelo
volta do salteador em 15 segundos. Não era para qualquer um;
- Fazer 25 nós escoteiros ou de marinheiros em seis minutos. Até que era fácil;
- Nadar de um lado ao outro do Rio do Morcego, (60 metros) no tempo máximo
de 10 minutos com águas revoltas. Era um perigo constante;
- Descer o rio e cair na parte mais baixa da cachoeira preso a uma câmara de ar.
Adrenalina pura;
- Receber uma caneca média, um pouco de pó, açúcar e três palitos de fósforos
para fazer um café em 8 minutos sem ter nada preparado. Não era tão difícil;
- Participar da prova da faca e machadinha, com lançamentos a distancia e
acertar na melancia ou mamão do campo, não era tarefa simples. Só para os
mais treinados;
- Cortar uma tora de madeira de mais ou menos seis polegadas com um facão
em menos de 3 minutos. Considerado tarefa fácil;
- Ir e voltar numa falsa baiana de mais ou menos 6 metros de comprimento, por
cima do Córrego do Marmelo em dois minutos. Sorrisos constantes dos
primeiras classes;
- Transmitir sem ajuda de um “espelho” por semáforas 30 ou 40 letras por
minuto. Só para bons sinaleiros;
- Construir uma armadilha para caça de animais ou pássaros que funcionasse
em menos de 10 minutos. Prova considerada relativamente simples;
- Montar uma barraca de olhos vendados em 4 minutos. Facílimo para os
escoteiros pata tenras;
- percorrer uma trilha de 300 metros em semicírculo com sinais de pistas
simples em 12 minutos. Para lobinhos. Os escoteiros percorriam em terreno
pedregoso tentando achar pegadas feitas com botinas militar do chefe Do
Grupo;
- Encontrar pelo cheiro uma onça pintada, com os olhos vendados. (a onça era
representada por um cão, muito amigo nosso e colocávamos amarrado em seu
corpo sacolinhas de alho picado com gordura vegetal). Só mesmo para os
velhos mateiros;
- Preparar um sinal de fumaça recebendo dois palitos de fósforos com fogo
verde e transmitir um S.O.S. em 4 minutos. Não era muito simples;
- Carregar nos ombros a moda escoteira outro escoteiro da sua altura e peso por
200 metros em 5 minutos. Tarefa para os melhores corredores;
- Descobrir dentre oito feridos espalhados em um raio de 150 metros, quais as
tipoias corretas em 2 minutos. “Beleza”;
- Fazer uma pequena cabana para abrigo de dois escoteiros com mãos limpas só
com folhas e galhos secos em 15 minutos. Muitos faziam em 06 minutos;
Carregar um peso ou sacos de pedras de aproximadamente 50% do seu peso,
sem usar as mãos atados com uma grande tipoia presa à cabeça (usávamos um
pequeno lençol) em uma distancia de 100 metros em 05 minutos. Considerado
prova simples;
- Discursar como um palestrante, alto e em bom tom sem interrupção, a Lei
Escoteira do último ao primeiro artigo. Ou de dois em dois numero par,
terminando em numero impar. Sem erro era de uma bondade só, afinal saber a
Lei era obrigação;
- Ficar amarrado a uma árvore em uma distancia de 12 metros, para servir de
alvo onde dois escoteiros atirariam 20 tomates maduros, distantes mais ou
menos 20 metros em uma lata acima da cabeça. Tempo de duração – 5 minutos.
Uma prova de coragem;
- Mergulhar em um remanso, com um ou dois metros de profundidade e ficar por
05 minutos usando um canudinho do galho (pé) da abóbora ou do mamão. Uma
festa na primeira vez;
- Montar uma fogueira de Fogo do Conselho, para duração de hora e meia, não
necessitando de manutenção, em 20 minutos. Só mesmo para aqueles com a
especialidade de acampador;
- Mostrar na prática como é o passo escoteiro, percurso de Gilwell em uma área
de mata nativa por uma hora. Na Mata do Quati poucos conseguiam;
- Receber um recado verbal no inicio das atividades e ao final explicitar ao chefe
o que foi falado sem esquecer nenhuma palavra. Poucos conseguiam;
Durante uma jornada de 20 minutos na Mata do Quati, identificar pelo menos
seis pássaros diferentes e no retorno desenhar dois deles e imitar pelo menos
três com seus cantos na floresta. Dificílimo;
Com o passar dos anos, outras provas foram acrescentadas. Sempre provas
técnicas treinadas e aprendidas na arte de aprender a fazer fazendo. Muitas
foram esquecidas e substituídas, pois não tinham mais o sabor da aventura ou
por repetirem sempre os mesmos ganhadores. Todas elas, criadas por nós
tinham seu encanto pessoal. A recompensa pelo primeiro lugar incluía o gosto
da vitória.
Sempre foram as patrulhas que deixavam tudo preparado quando da realização
das Olimpíadas. Os escotistas eram os observadores e aqueles que serviam de
juiz. Não gostávamos de receber tudo pronto, pois isto nada significava em uma
avaliação de nossa capacidade técnica.
O tempo passou. Vi outro dia grupos escoteiros participando de olimpíadas
programadas para eles, uma copia dos métodos olímpicos hoje realizados. Pelas
fotos estavam compartilhando com alegria e júbilo. Participei na década de 80/90
de olimpíadas assim programadas, diferentes daquelas do passado, no distrito
em que atuava. A participação era maciça e muito bem vista por todos os
participantes.
Mas sempre me lembro do Rio do Morcego, da Mata do Quati, das grandes
competições lá acontecidas. Do barulho da cachoeira do Sonho que
sussurravam sons repicantes e harmoniosos aos nossos ouvidos. Foram
tempos que nunca serão esquecidos. Soube que um grande aeroporto foi
construído ali. Um Alto Forno siderúrgico que se alimenta com carvão vegetal
também. Acredito que a mata se foi. Quem sabe substituída por uma floresta de
eucaliptos.
O rio a cachoeira represada formando um grande lago e o córrego devem ainda
existir. Espero que não estejam poluídos. Todas as lembranças são substituídas
pelo presente e não podemos fugir da realidade. Acredito que ainda existem
outros rios, matas e córregos sem os festivos temas que permaneceram na
modernidade da poluição universal. Faz parte dos novos tempos. O escotismo
não pode e não deve aceitar tal conjuntura.
Acredito e quanto a isto não tenho nenhuma dúvida, que existe um local
parecido com o Rio do Morcego e o Córrego do Marmelo em qualquer lugar
deste nosso imenso território, onde grandes atividades escoteiras acontecem ou
estão sendo desenvolvidas. Seja em forma de competições ou de olimpíadas,
mas utilizando as técnicas escoteiras hoje tão esquecidas.
Quem sabe, muitos como eu poderão quando envelhecer, lembrar que o
escotismo foi e sempre será visto como uma grande aventura. Cheio de
surpresas e uma vida mateira magnífica, como uma grande escola da vida, que
deu a mim e a todos que participam ou participaram deste notável programa, um
orgulho próprio, sem soberba, deixando um rastro de troféus fantásticos,
conquistados com o passar dos anos, que ficarão marcados para sempre em
nossa memória.
E quem quiser que conte outra...
Uma pequena parte do Adeus de Baden Powell:
- A felicidade não vem da riqueza, nem do sucesso profissional nem do
comodismo da vida regalada e da satisfação dos próprios apetites. Um passo
para a felicidade é, enquanto jovem, tornar-se forte e saudável para poder ser
útil e gozar a vida quando adulto.
- O estudo da natureza mostrará a vocês quão cheio de coisas belas e
maravilhosas Deus fez o mundo para o nosso deleite.
- Fiquem contentes com o que possuem e tirem disso o melhor proveito. Vejam
o lado bom das coisas em vez do lado pior.
- Mas o melhor meio de alcançar a felicidade é proporcionar aos outros a
felicidade.
- Procurem deixar este mundo um pouco melhor do que o encontraram e,
quando chegar à hora de morrer, poderão morrer felizes, sentindo que pelo
menos não desperdiçaram o tempo e que procuraram fazer o melhor possível.
- Mantenham-se fieis a Promessa Escoteira, mesmo quando já tenham deixado
de serem rapazes. Que Deus ajude a todos a procederem assim,
Do amigo, BADEN POWELL OF GIWEL.
Recordações
Às vezes é melhor ficar quieto e deixar que pensem que você é um idiota do que
abrir a boca e não deixar nenhuma duvida.
Reminiscências de um Velho Lobo
Os maravilhosos lobinhos...
Estava eu absorto em meus pensamentos, triste, problemas mil e olhando para
baixo, pensando, pensando, quando um lobinho Pata Tenra passou pôr mim,
(muito bem uniformizado por sinal) parou, ficou em posição de sentido e disse: _
“Melhor possível chefe!“ - Fiquei em pé e sorri meio sem jeito retribuindo a
saudação. Melhor possível! Melhor Possível...
- Ah! Esses lobinhos maravilhosos e suas maravilhosas poses e sorrisos...
E meus problemas? Hã, esqueci todos...
Quando passei para a Tropa de Escoteiros
- Logo após ter passado para a tropa de Escoteiros, vindo da Alcatéia, senti uma
grande liberdade na patrulha pôr mim escolhida (deixavam que os lobinhos
pudessem escolher suas patrulhas ao fazer a Trilha). O Chefe e dois dos
assistentes foram grandes amigos e foi um choque ao ver um monitor dirigir sem
a presença dele em diversas ocasiões. Era um susto e tanto, pois na Alcatéia não
tínhamos essa liberdade tão aberta!
- Ali encontrei muita amizade e companheirismo. Tinha alguma preocupação com
a liberdade de todos e me preocupava sempre com que fazíamos. Havia sempre o
receio se desse errado em alguma atividade.
- Nem bem tinha completado três meses de tropa, e saímos pela manhã de um
domingo (somente a patrulha em uma carta prego) indo de ônibus até a periferia
da cidade e lá nos dirigimos a um sitio de um velho amigo do Grupo, que pôr sinal
era sempre visitado pôr muitos escoteiros.
- Na patrulha havia dois cargos em aberto, explico melhor - Todos nós
escolhíamos nossas responsabilidades na patrulha e caso houvesse mais de um
interessado no mesmo cargo, era feito sorteio. Assim, escolhi ser o escriba da
Patrulha. Tinha facilidades para escrever e como um “Pata Tenra” achava ser a
mais fácil.
- Chegamos ao sitio pôr volta das 08 e meia da manhã. Não era bem um sitio,
estava mais para uma fazenda. Somente um sitiante na porta de entrada, pois o
local quase não era explorado e se mantinha intacto principalmente a mata e
pastos. Alguns bois, alguns cavalos, e mais nada. A casa sede era pobre. Três
cômodos sem banheiro. Instalamo-nos e logo procuramos uma arvore para o
cerimonial da Bandeira. Deram-me a honra de hasteá-la.
Nosso monitor era calmo e ponderado. Era um autentico líder. Comecei a me
acalmar à medida que participava das atividades. Os chefes já não faziam falta.
Treinamos barraca, machadinha, nós (sem teoria) e corte de lenha, tudo isso pela
manhã.
As 12 h fizemos um lanche. Foi nesta hora que resolvi dar um giro pôr conta
própria sem falar com os demais. Atrás da casa havia um arvoredo muito bonito e
ouvi um barulho de uma cascata. Dirigi-me até lá. Não era tão perto.
Andei um bocado! - No meio das árvores só o barulho me chamava à atenção.
Enfim avistei um pequeno riacho com águas límpidas e claras. Tão claras que se
avistava o fundo. Fiquei hipnotizado! - Como era belo tudo aquilo! - Lembrei dos
diversos contos da História da Jângal, contadas pela nossa Akelá, nas belas
historias de Mowgly junto ao Balu e Baguera.
- Passei um pouco de água no rosto e vi que era hora de voltar junto a Patrulha.
Dei meia volta e senti um calafrio! - Não sabia pôr onde tinha vindo! - Comecei a
tremer nos meus 11 anos, agora cheio de dúvidas. Não sabia se chorava ou se
confiava que me achariam facilmente. Optei pôr ficar ali.
- O tempo passava e eu já estava chorando baixinho. Senti uma mão no meu
ombro. Levei um enorme susto. Era o nosso monitor. Graças a Deus! - Voltamos
junto e no caminho pensei que meu papelão seria ridicularizado pôr todos.
Estava cada um fazendo uma atividade diferente. Nosso monitor pediu a um 2a.
Classe para me dar um adestramento de posicionamento e marcação de pontos
cardeais para ser usado quando se anda em pequenos bosques. Ainda não estava
na hora de um bom adestramento de bússola e orientação. Tudo deveria fluir
naturalmente e na hora certa!
- Não houve sermão. Só um pequeno lembrete pelo monitor e comigo a sós. Sorri
agradecido. Nunca mais se repetiu.
O esforço para fazer a promessa
- Eu me lembro até hoje de como foi difícil para “tirar“ as provas de Noviço. Todo
o dia olhava meu uniforme com carinho. Estava perfeito no guarda roupa.
Engomado. O cinto já havia recebido várias “graxas” para “amaciar” o couro e
fazê-lo durar mais. O metal brilhava, pois eu não economizava na pasta de dente
(usada naquela época para manter o metal e seu brilho).
Aguardava com ansiedade o dia da minha Promessa. Já sabia ela de cor e
salteado e tinha até treinado em frente ao espelho, a “pose” que iria fazer. Só
quem passou pôr isso sabe o valor da Promessa.
- Entendia perfeitamente o seu significado - Era sempre assunto no “Conselho de
Patrulha”. A Corte de Honra tinha aprovado e o próprio chefe conversou diversas
vezes comigo a respeito.
Quando chegou o dia foi o mais feliz em minha vida. Aquele uniforme tinha um
valor tremendo. Lutei pôr isto. Mereci usá-lo. Os desafios das demais provas
seriam mais fáceis agora.
Nunca mais esqueci aquele dia.
Quando sênior indo para os pioneiros
Por diversas vezes tomamos conhecimento que perto de uma cidade, existia uma
que era considerada “Cidade fantasma“. Ficava próxima a um rio caudaloso que
acompanhava a estrada de ferro.
- A História era antiga. Quando da construção da Ferrovia, devido ao ataque
frequente dos Índios e da malária, que dizimava completamente a maioria dos
trabalhadores, não havia peão que ficava muito tempo na Empresa encarregada
da construção. As obras estavam frequentemente ficando atrasadas.
- O Governo pressionado, pois queria a todo custo terminar a obra, ofereceu
liberdade condicional aos presos na Capital e algumas grandes cidades, em troca
do trabalho forçado para a Estrada de Ferro. Pelo contrato, após um ano de
serviço, estariam livres.
- A lenda contava que em uma determinada cidade, como muitas que apareciam
com a ferrovia à maioria dos criminosos ali residiam.
- O padre local sempre fora contra este tipo de fato e era frequentemente jurado
de morte pelos bandidos. Durante uma procissão da Semana Santa junto a
milhares de fieis, agarraram o “dito cujo“ e o enterraram em frente à Matriz só
com o pescoço para fora.
Dizem que suas últimas palavras foram que não ficaria pedra sobre pedra naquela
cidade. A maldição parece que “emplacou“. Dai há alguns anos a cidade foi
ficando deserta e praticamente não ficou uma viva alma. (a Estrada de Ferro
mudou de itinerário e a população acompanhou, fundando outra cidade).
- Chegamos lá antes das 11 da manhã. Havia uma rua com calçamento de pedra e
pequenas paredes era o que restavam das casas que ali existiram. Montamos
barraca. Queríamos ouvir o famoso e “Celebre” grito do Padre que todos juravam
ouvir após a meia noite. Era um desafio a nossa coragem. Não perguntamos e não
pedimos orientação a ninguém. Ali eram os quatro mais experientes do Grupo.
Não havia nada que não enfrentávamos de frente.
- A tarde corria solta. O sol se pôs no horizonte e se foi. A noite chegou brava e eu
estava fazendo o meu “Celebre e histórico“ sopão. Ainda não eram 11 horas da
noite. O Grito foi ensurdecedor! - Gelei! - Os “mosqueteiros“ correram para a
cozinha. Ficamos ali grudados uns aos outros. Era uma tremedeira geral. O Grito
aumentava mais ainda quando o vento soprava mais forte. Caminhamos em
direção ao Grito. Não preciso explicar como estávamos. Vinha da praça onde
enterraram o padre, pensei.
- O medo aflorava a pele! - Mas éramos insistentes e caminhávamos no rumo da
pedra onde pensávamos vinha o grito. Que piada. O grito do padre nada mais era
que uma fenda que ia de um lado a outro da pedra. O vento forte vindo do rio
próximo entrava pôr um lado e saia pôr outro e uma espécie de apito davam
impressão de um grito.
Sobre o uniforme sênior
- Estava eu - em um ônibus absorto em meus pensamentos e eis que uma
surpresa agradável aconteceu. Em um ponto subiu uma patrulha Sênior, que pela
maneira como conversavam, deviam estar de retorno de alguma atividade
aventureira. Abri o meu melhor sorriso, mas nenhum deles olhou para mim. Ia-me
apresentar quando um passageiro a minha frente comentou com seu amigo - Que
“diabos” é isso?
- Não sei retrucou o outro devem ser alguma gangue de bairro. - Parece que
alguns deles têm algumas roupas parecidas e dois deles estão com um lenço no
pescoço! Podem ser de algum desses colégios indisciplinados de bairro!
Já ia interferir na conversa para dizer que eram escoteiros seniores, mas desisti -
logo vi um dos jovens mascando chicletes e ouvia displicente um radinho de pilha
em som alto. Seus uniformes estavam em pandarecos. Uns três estavam com o
lenço pendurado no cinto e com a alça da camisa fora da calça. Alguns
incomodavam os demais passageiros com suas mochilas carregadas, sem se
preocuparem com a boa educação.
Pensei comigo, não deve ser uma boa tropa sênior. Pensam que são, mas tenho
certeza que não. Conheço os seniores. São leais as normas. Fazem questão de se
apresentarem como representantes do Movimento Escoteiro. Acredito que estes
ainda não “pegaram” o Espírito Escoteiro.
É melhor que pensem que são jovens de algum colégio, pois seus jeans
desbotados e camisas azuis sem os lenços e com boinas pretas viradas ao
contrário não os identificam.
Melhor para o Movimento Escoteiro.
Ensinamentos de um velho escoteiro
Todas as sextas feiras, a chefia e pais convidados do nosso grupo escoteiro,
reuníamos em um pisaria, e ali conversando, trocando ideias, nos conhecíamos
melhor. Além é claro da motivação que isto trazia para todos nós.
A noite transcorria calma e gostosa, quando alguém gritou próxima a porta: - É
um assalto! - Todos para o chão! Quem se mexer leva bala! - Tremi na base -
Alguém pisou em minhas costas - Levanta a cabeça e leva um balaço seu m.! Só
os ladrões gritavam. Ninguém falava nada. Falar o que?
- Uma sirene baixa e aumentando o volume progressivamente foi ouvido pôr
todos, um principio de silencio e logo um dos ladrões gritou alto! - Corram, é a
policia! - Cada um pra si e Deus pra todos. Em segundos desapareceram. Graças
a Deus não levaram nada e ninguém foi ferido.
Estávamos acalmando aos poucos. Meu coração ainda estava disparado. Outra
rodada de chope foi pedida. Poucos falavam agora.
- Afinal e o carro da policia que não chega?
A sirene começou baixa de novo. Um assistente da Tropa Sênior era o
responsável pôr ela.
Pó meu! - foi você? - Não era a policia? - Se os ladrões descobrem você estava
frito - onde aprendeu?
- Aprendi com um velho chefe em um curso. Ele me disse que se imitasse bem
poderia utilizar algum dia - completou. É, acho que valeu!
Historias de Fogo de Conselho
Foi escolhido um local, próximo a uma pequena mata, onde existia uma casa
abandonada e todos concordaram. Ficava a uns 400 metros do acampamento. A
Patrulha de serviço não perdeu tempo. Logo que chegaram preparou o fogo
dentro dos padrões técnicos para evitar incêndios, e tinha que ser acesa com no
máximo dois palitos de fósforos. Se não conseguissem, outra patrulha assumiria
o que dificilmente acontecia.
Não havia um “Animador de Fogo de Conselho”. Este iria surgir naturalmente no
desenrolar da noite. Qualquer programa escrito estava fora de cogitação. Não
iriam se prender a um roteiro, pois ali, naquela noite e em todas às outras a
participação era completa. Sabiam o que queriam e iriam fazer conforme a
Tradição de Tropa.
Se havia uma coisa que detestavam, era o tal Lampião do Conselho. Dava até
vontade de rir do tal Lampião. Diziam que um bom mateiro ascende o fogo em
qualquer tempo e em qualquer lugar. Eu acreditava, pois o adestramento da tropa
sempre foi um dos melhores. Enquanto isto os demais não se afastavam muito,
pois a escuridão da noite e o lugar davam calafrios. (não havia luar)
Todos foram chamados e se assentaram a bel prazer, enquanto um Escoteiro
acendia o fogo. Nesta hora, ficaram de pé, e como tradição antiga invocaram os
Espíritos dos Ventos e a viva voz, cantaram a Canção do Fogo de Conselho.
Cantavam com gosto. Às chamas já se esticavam aos céus quando terminaram.
Ouviram alguém bater palmas. Não eram eles. Se havia alguém escondido para
amedrontar não seria com aquela Tropa. Um dos chefes deu uma busca em volta
da casa e dentro dela. Nada.
Continuaram. Logo uma Patrulha imitava outra quando da enchente (no primeiro
dia uma forte chuva abarrotou as barracas de lama). Surgiram palmas escoteiras
inventadas na hora. Uma parada para conversa, um chocolate quente, uma
mordida num biscoito. Conversas paralelas. Alguém alimenta o fogo, um dedilha
o violão e outro começa a cantar. Alguns acompanham dois se encaminham para
o centro da arena e começam a representar um Chefe e um Monitor. Risadas,
palmas.
Pedem um jogo, um Monitor se oferece para fazer um novo, aprendido em outra
atividade. Um grito. Não muito alto. A tropa se cala. É brincadeira de alguém. Eles
aceitam a participação do “Fantasma”. Vai quebrar a cara pensam. Não foi a
primeira vez. Ouvem outras em outros acampamentos. Agora não seriam
surpreendidos.
Continuam às canções, improvisações, batem papos, jogos e até um pequeno
Adestramento de primeiros socorros. Não faltou o Contador de Historias, e nessa
o monitor mais antigo se destacava. Era assim o fogo da Tropa.
Às brasas começaram a aparecer. A lenha foi terminando e todos demonstravam
sono. Uma boca abre aqui, outra ali. A noite avançou sem ninguém perceber. Um
Chefe convida a todos para encerrarem com a Cadeia da Fraternidade. Começam
a cantar e param. Todos olham para dentro da casa e veem uma luz azul brilhante.
Ficam estáticos. Alguns vão até lá e dentro da casa não há luz! - Já existem
tremedeiras. Sem falar voltam para o acampamento. Ninguém quer ir à frente nem
ficar atrás.
Dormiram encostados uns nos outros mesmo com a chefia alegrando e
encorajando todos. No dia seguinte, após o desarme do campo, na cerimônia da
Bandeira, um morador das proximidades estava presente assistindo de longe. Um
Chefe o convidou para participar na ferradura. Ele veio sem jeito e ali permaneceu
até o final.
Uma rodinha se formou em redor dele, e ficaram sabendo a historia da “Morada
do Fantasma”: - A casa foi construída pôr um jovem, - dizia - filho de um “meeiro”
(usa a terra de uma fazenda para plantar, e paga parte da colheita ao dono)
quando se casou. Com menos de quatro meses, ele matou a mulher porque achou
que esta o traia. Não era verdade.
Foi preso e condenado há vários anos de prisão. Ninguém sabe onde está e
quando vai sair da cadeia. O que todos sabem é que o espírito ou “fantasma” da
mulher não abandonou a casa e até hoje e a mantém limpa e arrumada, mesmo
sem móveis sem nada. Um padre já benzeu a casa, mas ela não sai de lá.
E quem quiser que conte outra...
Se num passado recente os homens tivessem sido adestrados para a paternidade,
que nação diferente seriamos hoje! A massa, em vez de uma pequena minoria
seria educada para produzir homens de caráter firme, camaradas sadios, sabendo
como gosar e tirar o melhor proveito da vida, mas ponto o bem dos outros antes
dos seus interesses egoístas.
Baden Powell
JIPARANÃ, O VALENTE ESCOTEIRO DO OESTE.
Nós geralmente descobrimos o que fazer percebendo aquilo que não devemos
fazer. E provavelmente aquele que nunca cometeu um erro nunca fez uma
descoberta.
Samuel Smiles
Conheci Jiparanã em agosto de 63. Não esqueço
a data porque foi um fato peculiar. Estava
atuando como Chefe Sênior e na falta do Capitão
Marlon, nosso Chefe do Grupo o substituía nas
suas funções, pois também era o Sub. Chefe do
Grupo. Naquela época ainda existia esta
hierarquia. Lembro como era prático e como nos
facilitava nos impedimentos. Esquecemos, no entanto esta terminologia e vamos
retornar ao meu amigo Jiparanã.
Quando o vi pela primeira vez, surgiu de repente em nossa sede em um sábado.
Estava preparando junto com dois seniores, um jogo de força e agilidade,
usando cinco bastões, dois tambores de 200 litros, quatro garrafas com água
pela metade, cordas grossas, três cadeiras, cinco velas e duas lonas de mais ou
menos 3 m quadrados. Eles viram este jogo feito durante um exercício dos
recrutas do Tiro de Guerra e gostaram muito. Substituímos os fuzis pelo bastão.
(Nas pequenas cidades mais distantes de um quartel do exército, com
dificuldades de recrutamento e para utilizar os jovens na idade de serviço
militar, foram criados pequenos batalhões com o nome de Tiro de Guerra. Até
hoje ainda existem).
De modo gentil perguntei a ele se poderia ajudar. Sem se apresentar e com um
vozeirão de “arrasa quarteirão” disse que era para abrir uma vaga ao seu filho.
Com oito anos desejava para ele uma formação militar, rígida e disciplinar e ali
no grupo Escoteiro, pois isto poderia fazer dele um “homem” bem cedo, disse.
Não pediu. Ordenou. Não o conhecia ainda e não gostei do modo como se
dirigiu a mim falando alto e exigindo em vez de solicitar. Sem meios preâmbulos
o mandei voltar outro sábado para conversar com o Chefe do Grupo. Não estava
disposto a dialogar com uma pessoa autoritária e mal educada.
Além de participar do movimento desde lobinho, também tinha meus repentes
que a custo controlava. Servi o exército por um ano e pensando em ser um
oficial por sugestão do nosso Chefe do Grupo ingressei na Policia Militar por um
ano e meio. Não deu certo. Não era o que queria. Portanto obtive uma formação
de não levar desaforo para casa.
Ele não me ouviu e sem pestanejar saiu deixando seu filho e na porta falando
alto: – Tomem conta dele. Se alguma coisa acontecer vocês serão os
responsáveis.
Partiu como chegou. Caramba! Pensei. E agora? O que devia fazer? Ainda não
existia o celular e nem telefone na sede para avisar ao Chefe do Grupo. No salão
vi o menino que estava em posição de sentido olhando para mim, muito
circunspecto achei que seria mais sensato levá-lo até ao Akelá, explicando os
motivos e deixá-lo participar, pois no sábado quando o Chefe do Grupo
estivesse presente falaríamos a respeito.
No final da reunião Dinho (apelido do menino) foi embora sem nos avisar e antes
de ir chegou próximo a mim, fez pose militar e me deu O Melhor Possível com
uma saudação de lobinho muito bem feita que me espantou para o seu primeiro
dia.
Fui para casa tentando controlar os nervos. Naquela época era comum todos
nós dentro das limitações de distância ir a pé, uniformizados, pois assim fomos
ensinados para que todos pudessem conhecer bem os escoteiros. Já tínhamos
o respeito da comunidade, mas era sempre bom fazer nosso proselitismo
pessoal.
Pensava o pior e como aprendi a domar meus ímpetos inesperados concluí que
não haveria uma segunda vez. Aquele pai iria saber com quem estava falando e
iria exigir respeito e educação. Não podia passar em branco. Claro, tinha pela lei
escoteira o maior respeito, mas se isto fosse do domínio público, seria motivo
de piada para todos.
Mal virei à esquina e o vi em um bar. Com mesas e cadeiras espalhadas debaixo
de uma castanheira antiga, onde sempre me reunia com amigos ele estava só,
bebendo uma cerveja. Ele se levantou e fez sinal para aproximar. Ora, ora! Fala-
se no tinhoso e ali estava ele. Pensei – Se não desse bola seria mal educado, se
desse atenção poderia ouvir o que não queria. Enfim entre o sim e entre o não
me aproximei.
Não vou entrar em detalhes da conversa, do salgadinho, da cerveja e dos
“causos” contados por ele. (não se assustem por saber que um chefe de
uniforme estava ficando “borracho” em um bar, mas ainda permanecia sóbrio e
consegui chegar em casa sem delongas). Saí dali impressionado com que ouvi e
vi. Jiparanã se tornou um grande amigo e que ficaria na lembrança para sempre.
Não mudou sua maneira, mas dentro de si tinha um enorme coração.
Um dia, sem indagar ou perscrutar antes, aproximou de mim em uma reunião e
perguntou quando podia fazer o uniforme e onde compraria o chapéu e os
distintivos. Expliquei para ele que não era assim, havia normas, ele teria que
passar por elas. – Bolas para as normas – disse. E na semana seguinte apareceu
de uniforme surpreendendo a todos nós. O próprio Chefe do Grupo resolveu
relevar. Procurou-me e comentou que aquilo era “Fogo de Palha” e logo logo ele
iria submergir.
Isto não aconteceu. Por duas vezes sem avisar se inscreveu em cursos na
capital e os fez com seu rompante habitual. Mas fora isto era um comparte e
excelente Escotista. Dedicado, organizado e prestativo. Ficou como meu
assistente na Tropa Sênior e os jovens o adoravam. Muitos ficavam horas no
seu estabelecimento comercial (açougue) conversando e aprendendo com ele
suas aptidões.
Nas atividades ao ar livre e nos grandes acampamentos se mostrava um
excelente mateiro, deixando muitas vezes os seniores embasbacados com seus
conhecimentos de sobrevivência na selva. Isto fez dele um herói e garanto que
não me senti ofendido. Para mim era magnífico, pois motivos óbvios estavam
sendo programados para minha mudança de cidade. E assim teria alguém para
me substituir.
Conseguiu se impor e elaborava atividades com grupos de outras cidades e
acredito que o comparecimento maciço era por sua causa. Todos admiravam
seu caráter, sua maneira franca e generosa e convites sempre apareciam para
mudar de cidade. Chamamentos estes que partiam de outros Grupos Escoteiros.
Incrível como o Chefe Jiparã com seus rompantes conquistava aqui e ali. Fez
uma gama de amigos o que me deixava boquiaberto. Não aceitou nenhum
convite. Era convicto em seus ideais. Gostava e amava nosso Grupo Escoteiro.
Seu gênio e altivez aos poucos foi contido, mas era comum quando ouvia uma
piada de suas pernas nuas abaixo da calça curta que por sinal era bem
composta de cabelos, voltava e dizia – Você acha bonita? Deve ser igual a da
sua mãe! Porque não vai lá olhar? Eu já vi e gostei! – Claro ninguém respondia.
Seu estilo, seu bigode, sua altura, sua força não era para ser arrostada.
Passaram-se acho eu, uns dois anos, Jiparanã era bem conhecido pelos
dirigentes regionais e em um Conselho Nacional se mostrou erudito,
conhecedor e sempre que podia usava da palavra falando do que entendia ou
nada sabia. Todos aplaudiam sua participação. Sua coleção de amigos já era
numerosa.
Por motivos inequívocos mudei de cidade. Cinco anos depois tive uma noticia
que me deixou apalermado. Jiparanã tinha sido preso e fora condenado a três
anos de prisão. Nossa amizade era tanta, que na semana seguinte pedi licença
na minha empresa por cinco dias e peguei o trem noturno até a minha antiga
cidade.
O meu amigo Capitão Marlon me contou a história. Jiparanã estava em seu
açougue e chegou dois bêbados rindo e debochando, falando que ele um
autêntico “homossexual” (em outras palavras claro) e que devia fazer o mesmo
com seus meninos do “escoteiro”. Você pode imaginar o que aconteceu.
Jiparanã deu uma tremenda surra nos dois. Foram parar no hospital.
A história poderia ter terminado ali, mas os dois borrachos em uma noite, o
atacaram em uma esquina, e mesmo ferido a faca em diversos lugares, matou
um deles torcendo seu pescoço. Claro que foi legítima defesa. Mas o que foi
morto era de uma família rica que contratou um advogado para assessorar o
promotor.
O juiz levando em consideração o passado de Jiparanã, pois conhecia seu
trabalho no escotismo, lhe deu três anos com possibilidade de sair em um ano
por bom comportamento. Fui visitar Jiparanã na penitenciária. Ele estava
sorridente, alegre e me recebeu com regozijo, me abraçando e apresentando aos
amigos da prisão. Senti-me forasteiro ali. Conversamos por horas.
Antes de partir o visitei outra vez e ele me disse que recebera uma carta da
Direção Nacional, suspendendo-o das suas atividades de Escotista, e enquanto
não fosse feito o inquérito habitual ele não podia vestir o uniforme e participar
de atividades afins.
O Chefe do Grupo me mandou uma correspondência, um ano depois,
comentando o caso de Jiparanã. Saiu da cadeia, e não voltou mais ao
escotismo. A Direção Nacional o absolveu, mas colocou ressalva na sua
participação.
Os seniores estavam com nova chefia, mas apesar da proibição, Jiparanã ainda
fazia atividades com eles, sem uniforme, mas com aquela maneira cativante que
de arrogante passou a ser amado por todos que o conheciam. Seu filho (esqueci
de comentar que era viúvo) passou para a tropa de escoteiros, foi primeira
classe e nos seniores conseguiu a eficiência II. Ainda lá permanece.
Não tive mais notícias. Muitos episódios me fizeram pensar em outras plagas.
Jiparanã deixou saudades. Foi para mim um caso especial. Onde estiver e se
ainda estiver vivo (deve estar com mais de 80 anos) espero que tenha alcançado
a felicidade que sempre mereceu. Fico com saudades sempre que lembro dele,
Jiparanã, o valente escoteiro do oeste!
Talvez esta não seja uma história interessante. Sei disto, mas quando me sinto
nostálgico e me lembro de um passado distante me disponho a escrever.
Histórias são histórias e cada uma delas tem sua razão de ser. Nem sempre
conhecemos os bons e os maus em profundidade. Se merecem fazemos
referências se são amigos contamos histórias.
Em meu rol de amigos, que foram tantos, mantive na lembrança os fatos, as
histórias e antes que desapareçam para sempre, as anoto-as para que não se
percam no redemoinho do esquecimento.
E quem quiser que conte outra...
Nos longos embates, é possível lentamente modificar a própria visão de
mundo.
Por entre subidas e descidas, o homem pode compreender sua fragilidade
e tornar-se generoso com o próximo.
Ele pode entender a imensa bobagem que é viver ofendido e magoado e
valorizar em excesso coisas transitórias.
Assim, não espere morrer para ir para o céu.
Construa um céu em sua consciência e viva nele desde já.
Trata-se do único caminho para a verdadeira felicidade.
Pense nisso.
Trechos de Emmanuel
As travessuras da Matilha Marrom
"O pensamento positivo pode vir naturalmente para alguns, mas
também pode ser aprendido e cultivado. Mude seus pensamentos
e você mudará seu mundo”
Norman Vicent Peale
O Balu e a Bagheera estavam descontentes com o acontecido. Não foi a primeira
vez. Se continuassem deste modo às providencias de aconselhamento teriam
que ser outras. Afinal deviam ter pleno conhecimento da Lei do Lobinho e a
matilha Marrom não era formada por lobos novos. A Alcatéia era mista e na
Marrom havia três meninas e três meninos. Quase todos com mais de um ano no
Grupo Escoteiro.
O que fizeram, ora, ora! Estavam todos em uma esquina e esperando as pessoas
iniciarem a travessia da Avenida e quando o sinal ficava verde, escolhiam
pessoas idosas para irem por traz e buzinar com grande algazarra uma
Guguzela, bem perto do ouvido. Porque fizeram isto? Perguntaram. Ora Balu o
sinal podia abrir e os carros passariam por cima deles. Só ajudarmos!
Bela ajuda. Existiram outras. Entraram em um jardim de uma residência, e ali
colheram todas as flores disponíveis. Como nada entendiam do corte e como
fazer, destruíram boa parte do jardim. O proprietário vendo aquilo os pôs para
correr e foi até ao Grupo Escoteiro reclamar. De novo? – Bagheera perguntou.
Hoje é o dia da mulher e íamos distribuir rosas e outras flores para todas as
senhoras que encontrássemos!
Sem contar a boa ação que disseram ter feito, de amarrar com sisal todos os
cachorros que encontraram na rua, uns com os outros e quando tinham uma
matula de mais de 15 cães, eles fizeram uma grande algazarra em frente a um
posto médico. Ora! Que boa ação foi esta? Perguntou o Balu. - Era para facilitar
os donos encontrarem quando procurassem seu cão perdido!
Agora a Akelá precisava ser informada. Devido à viagem urgente ao interior
motivado por enfermidade na família havia viajado. Voltaria no próximo sábado.
Comentaram com o Chefe do Grupo que deu boas gargalhadas. Depois viu que
não tinha agradado aos chefes. Parou de sorrir e perguntou o que fizeram a
respeito.
Até agora só aconselhamos, tiramos pontos deles na reunião, estão sem se
classificarem na contagem final para receberem o totem do Lobo Gris. Dois
deles tem a entrega da segunda estrela suspensa assim como a primeira estrela
de uma lobinha.
Não sei se vai adiantar. A Akelá vai chegar e vamos tentar novas reprimendas.
Quando falamos em trocar alguns deles de matilhas, resistiram e choraram.
Quem sabe é o corretivo que pode resolver. O Chefe de Grupo ficou pensativo.
Nunca tinha visto nada igual.
Foi uma surpresa tudo aquilo. Pensando bem, eles não eram maus. Seus
objetivos tinham finalidade e poderia se feito de outra forma com finalidades
reais. Bastava ter criatividade sem prejudicarem a alguém. Sabia que eles tinham
amor a alcatéia, ao grupo, e a sua maneira achava que cumpriam a Lei do
Lobinho.
Mesmo com aquela idade não distinguia malicia nos seus atos. Claro que a
vizinhança não pensava assim e tinham certas reservas. Isto podia prejudicar a
imagem dos escoteiros. Assim sendo o assunto deveria ser tratado de maneira
enérgica antes que o mal crescesse mais que a raiz.
A Akelá retornou e a colocaram-na ao par. Ela sorriu de leve e disse que não nos
preocupássemos. Ela tinha uma boa ideia para isto e afinal, eles iriam mudar
para sempre seus arroubos mirabolantes. Não nos colocou a par do que seria.
Lili havia feito oito anos. Não demonstrava isto. Quem não soubesse afirmaria
que passara dos dez. Seu raciocínio e desenvoltura corriam paralelos a um
adulto. Seus pais já observavam isto. Quem sabe foi o motivo para a colocarem
no Grupo Escoteiro. Ouviram da psicóloga sobre matriculá-la em uma
organização, onde houvesse uma disciplina mais rígida, sem tolher sua
liberdade e criatividade.
Adorava seus amigos lobinhos. No inicio teve dúvidas. Com alguns meses já
liderava a matilha Marrom. Não era a prima e nem segunda. Isto não importava.
Todos ali gostavam dela e suas ideias eram acatadas sem discussão. Fora ela
quem planejara todas as traquinagens da matilha. Nunca nenhum deles disse
que ela é quem liderava. Assumiam juntos as responsabilidades.
Tinha uma grande admiração e amor pela Akelá. Quando a matilha fazia
travessuras, Lili ficava com medo da descoberta pela chefe. Passou a organizar
suas “expedições” em locais mais distantes. Já estavam agindo ha mais de
quatro quarteirões da sede. Para isto chegavam sempre uma hora antes do
início das reuniões.
Sabia de cor a Lei do Lobinho e em sua casa lera por inteiro o livro da Jângal.
Conhecia de cor e salteado as aventuras da alcatéia de Sheone. Sonhava com
Mowgly e sempre pensou porque Kipling não tinham posto na história uma
lobinha, companheira de Mowgly.
As etapas para receber os distintivos conforme o desenvolvimento na Alcatéia,
ela sabia de cor. Não tinha ideia por que não entregava a ela tudo aquilo que
julgava ter direito. Não entendia a tal de progressividade. Considerava os demais
da matilha como seus irmãos. Talvez por ser filha única, ali se encontrou como
se fossem da mesma família.
No sábado seguinte, após a reunião fora chamada para uma conversa em
particular com a Akelá. Lili estava preocupada. Ninguém sabia que as ideias e as
traquinagens eram dela. Mas a Akelá parecia saber. Pensou que seria afastada
do grupo. Seu coração batia forte só em pensar nisto. Não poderia sair, ninguém
tinha o direito de expulsá-la pensava.
Foi de cabeça baixa. Seus olhos estavam vermelhos. A Akelá a abraçou e disse
para não se preocupar. Lili era tudo de bom que a alcatéia possuía. Sem ela dizia
a alegria não seria reinante nas reuniões. Não entrou em detalhes de sua
traquinagem e sua liderança sobre os demais. Somente a convidou para ir com
ela ao Zoológico no domingo. E os outros perguntou? Só eu e você respondeu a
Akelá.
Já falei com seus pais e eles deram autorização. Quero mostrar uma coisa para
você que sei vai ajudá-la muito no seu crescimento e na sua forma de pensar e
liderar. Não entendi bem, mas adorava ir ao Zoológico. Dormiu pensando no
passeio. A Akelá chegou cedo. Ela ainda não havia tomado café. Colocou seu
uniforme e viu que a Akelá também estava uniformizada.
Conversaram pouco durante a viagem. Mas se soltaram quando lá chegaram. A
Akelá pediu para ela prestar bem atenção de como os animais, pássaros, repteis
e peixes diversos se comportavam. Porque será que cada um tem sua morada.
Porque não os colocam juntos como na floresta. Ela não entendeu bem, mas
tentou ao seu modo olhar de maneira inusitada para todos eles.
Ao meio dia, pararam para fazer um lanche em um quiosque. Após, a Akelá
começou a contar para ela como os animais viviam em seus habitat naturais.
Explicou como o Rei da Selva tratava os demais. Falou sobre o respeito, as
normas – claro, eles também tem normas disse. E que ali viviam melhor que
como os homens vivem.
Nenhum deles de maneira nenhuma iriam brincar com quem não fosse da sua
família. Quando ela e a matilha Marrom saiam para alguma diversão, estavam
entrando na vida das pessoas. Cada uma tem sua maneira de ver, de achar, de
interpretar o que querem ou não querem. E como se o javali invadisse o lago de
hipopótamos para brincar. Seria morto na hora não?
Lili ficou pensando nas palavras da Akelá. Achava que a mensagem transmitida
da ida ao Zoológico tinha coerência. Em nenhum momento a Akelá deu
exemplos do que fizeram, mas Lili sabia onde ela queria chegar. Prometeu a si
mesmo que iria mudar. Afinal como ela disse todos nós temos nossos direitos e
nossos deveres. Devemos ver onde começa e onde termina para não
prejudicarmos ninguém.
Passaram-se dois meses. A Alcatéia vivia em plena harmonia. Não houve mais
traquinagens. A matilha Marrom se transformou. Todas as demais notaram e se
aproximaram mais dela. Lili ficou mais querida de todos os lobinhos e lobinhas.
Recebeu sua segunda estrela e chorou de felicidade. Sonhava em ser uma
lobinha cruzeiro do sul.
Não tinha a mínima ideia de como seria a tropa das Escoteiras. Sabia que um dia
iria chegar lá. Mas o amanhã é outro dia. Lili vivia o presente, pensando nos
erros do passado e tentando não errar para o futuro.
Seu pensamento agora era voltado para a grande aventura de sua vida. Iriam
acantonar com mais cinco alcateias com uma programação de quatro dias. A
Akelá, o Balu e a Bagheera contaram como seria. Não disseram as surpresas,
mas Lili vivia o presente pensando no mês seguinte. Como deveria ser
maravilhoso. Conhecer mais de uma centena de lobinhos e lobinhas.
E a matilha Marrom continuou unida por muitos e muitos anos. Alguns passaram
para a tropa, entraram outros, mas a amizade, a fraternidade e o respeito faziam
parte da vida de cada um.
Nas cerimônias do Grande Uivo, os marrons saltavam com alegria e vivacidade a
dizer a plenos pulmões quem eram e o que seriam – “Melhor, melhor, melhor? –
Sim, melhor, melhor, melhor e melhor”.
E quem quiser que conte outra...
Quem estuda e não pratica o que aprendeu é como o homem que lavra e não
semeia. Provérbio árabe
QUANDO A UNIÃO FAZ A FORÇA
Se procuro em minhas recordações as que me deixaram um sabor duradouro, se
faço balanço das horas que valeram sempre me encontro com aquelas que não
valeram à pena.
Antoine de Saint-Exupéry
Nada neste mundo acontece por acaso. Tudo tem sua razão de ser. O sonho de
uma máquina do tempo para voltar ao passado e tentar mudar o que aconteceu
seria dentro da prisma religiosa impraticável. Razões? Varias. Uma delas é que
eu não seria o que sou hoje. Não teria participado de tantas e tantas atividades
escoteiras que só me trouxeram uma enorme fortuna de amigos e de
lembranças.
Cidades, estados, vilas, por onde viajei e morei fiz amigos conheci jovens e
adultos do movimento escoteiro. Sempre recebi mais do que merecia e sem
sombra de dúvidas me mostrou que nosso escotismo é uma fraternidade
universal. Tive a felicidade de viajar para outros países e lá muito aprendi. E as
lembranças depois que o tempo passou, continuam viva na minha memória do
qual irão permanecer nesta e na outra vida.
Às vezes lembro-me de um fato ou outro. Quando reminiscência do passado
eclodem de maneira real, lá estou eu grafando, seja na minha pequena caderneta
ou similar, registrando antes que o lance apague e esvaneça como poeira solta
ao vento.
Não foi um grande episódio, mas que mereceu um registro, pois acredito que
não é uma situação incomum e pode acontecer se não aconteceu na vida de
qualquer Escotista.
Pelo final da década de 60, participava como chefe de uma tropa escoteira
desconhecida, pois nosso território se compunha de três grupos escoteiros em
cidades próximas. Não conhecia ninguém da alta cúpula regional, salvo alguns
dos meus diretores de cursos que observei eram de outros estados e pelo que
via até então não estavam mais participando de atividades escoteiras.
Um grande empreendimento visando jovens, (Campo de Férias) que estava
sendo montado próximo a uma pequena cidade no interior do estado, tinha
raízes indígenas e escoteiras. Seu principal executivo teve a feliz ideia de lá
realizar uma grande atividade a nível nacional.
Convenceu a Direção Regional a promover um Acampamento Nacional de
Patrulhas, no terreno onde seria montado o Campo de Férias. O
empreendimento arcaria com várias responsabilidades, no intuito de facilitar a
participação dos escoteiros do mais longínquo rincão brasileiro.
Uma viagem aos Estados Unidos mostrou a ele como funcionavam os
acampamentos de férias. (hoje uma realidade e alguns deles oferecendo mais do
que o escotismo oferece) Sabíamos como ele também que o empreendimento
visava o lucro, diferente do nosso escotismo. Assim, sua ideia não deixava de
ter alguma razão, pois seria conhecida nacionalmente. Pelo que eu saiba era o
primeiro no território brasileiro.
Conseguindo trazer pelo menos alguns milhares de escoteiros o marketing seria
certo. Conseguiu e vendeu seu peixe a quem de direito. Prometeu mundos e
fundos. Alimentação para todas as patrulhas, infraestrutura local, transporte da
capital até o local e vice versa (mais ou menos 280 km) e até iria trazer uma tribo
indígena para montar ocas e ensinar aos participantes a técnica do arco e flecha.
Bem, todos acreditaram e o primeiro passo foi dado. Foi contratado um
profissional (mais tarde um grande amigo meu) para montar a estrutura do
evento. Circulares as Regiões, Grupos, inscrições, taxas, muitos detalhes tudo
aquilo que se requer numa situação desta. Tudo feito com antecedência de uma
ano.
Fiquei sabendo que mais de 800 jovens e adultos de todo o Brasil inscreveram-
se. Os mil e tantos que se esperava não foram conseguidos, mas mesmo assim
já era um grande passo. Com a cobertura nacional através do radio e de jornais,
inclusive duas grandes revistas de consideráveis repercussão o sucesso do
acampamento seria um fato inédito naquele estado.
Animado em conhecer com era um acampamento nacional e ver escoteiros de
diversos estados brasileiros me inscrevi juntamente com mais 14 escoteiros do
grupo escoteiro que participava. Não foi possível a inscrição de todos. Tentamos
de toda maneira conseguir através de eventos próprios, condições financeiras
para abancar as despesas, mas não deu certo.
Chegou o grande dia e lá chegamos com duas patrulhas e dois escotistas. O
encontro seria na Praça da Estação as 09 hs no centro da capital. As instruções
era que o transporte sairia as 09:30 hs. Fomos os primeiros a chegar. Nosso
trem não atrasou. Logo a praça estava cheia de escoteiros e escotistas. Só ali
mais de 300 participantes. Os demais Iriam de ônibus fretados direto ao local e
outros foram de condução própria.
10 hs nada dos ônibus. 11 hs nada. Começamos a nos preocupar. Convidei um
amigo Escotista e nos dirigimos ao Escritório onde estava a organização e lá
encontramos o profissional (jovem ainda) nervoso, pronto a explodir e
engasgando nos disse que o responsável não providenciou nada. Onde estava
ele perguntei. Sumiu! Disse ele. Não sei o que fazer! Enfim, não tinha ônibus. E
as demais provisões estão lá no campo? - Não sei, respondeu.
Pensando e matutando me preocupei. E agora? Onde estavam os dirigentes
regionais? O responsável disse que dois deles tinham passado ali e estavam
atrás do proprietário do evento. Na praça um numero enorme de escoteiros
esperando, alegres, esperançosos e avisar que não haveria mais acampamento
nacional seria uma calamidade. E os que foram para o local? Era uma situação
peculiar.
Apareceram ali outros escotistas. Conversas, ideias até que achamos uma
solução e para isto precisávamos de escotistas residentes na capital.
Conseguimos 15. Fizemos uma reunião de emergência e fomos francos com a
situação. Alguns não quiseram se comprometer. Ficamos em 10.
Montamos um plano de operação. Onde conseguir ônibus agora? – Anotamos
endereços e partimos. Eu e um jovem sênior de 17 anos, fomos de ônibus
urbano até o Batalhão da Policia militar mais próximo. Procuramos o
comandante. Pessoa gentilíssima. Explicamos a situação. Cederam-nos dois
ônibus. Ida e volta. Chegariam à praça em três hs. O que dois escoteiros bem
uniformizados podem fazer não?
Voltei para o escritório. Somente um dos escotistas tinha chegado. Conseguiram
dois ônibus para as quatro da tarde. Foi chegando um a um. Finalmente vimos
que houve um bom retorno. Seis ônibus foram conseguidos. Resolvido. Dava
para todos. Fomos para a praça avisar o resultado da operação. Com o passar
da hora, cada um fazia seu lanche aqui e ali. Escoteiros não se apertam.
16 horas. Foram embarcados os últimos. Minha tropa estava no derradeiro.
Muita alegria. Canções, e dormi.
Acordei no local. Uma grande movimentação. Um distrital da área tentava
organizar e pedia colaboração dos escotistas que iam chegando. Soube que o
executivo proprietário do empreendimento continuava sumido. A intendência
estava incompleta. Faltava parte dos víveres. Avistei os tais índios (uns 20)
montando suas ocas sem saber o que acontecia.
Procurei o Distrital. Como posso ajudar? Pediu-me para ir com ele até a cidade.
Iria falar com o prefeito. Conseguimos uma caminhonete e partimos para a
cidade mais próxima. Procuramos a prefeitura. Grande prefeito, Disse que
resolveria sobre a intendência e resolveu.
Tivemos depois o problema da madeira. O prometido era 20 bambus por
patrulha. Não havia nada no campo. De novo com o distrital e a turma que tinha
colaborado na capital (Era composta de jovens de 18 a 21 anos escotistas de
primeira qualidade e que alguns anos depois se tornaram meus assistentes
quando assumi o comissariado regional). Fomos a pé até duas fazendas
próximas. Pediram ajuda a colonos ali residente para cortar bambus e em pouco
tempo uma grande quantidade estavam no campo.
A abertura programa para as 18 hs só foi realizada às 21 horas. Ficamos
juntamente com os jovens da minha tropa emocionados. Foi um espetáculo
maravilhoso. Nunca tinha visto tantas bandeiras e uma ferradura tão grande. As
21:30 hs foi chamado à intendência. Não houve atividades naquele dia.
Todos foram dormir altas horas da noite. Era o primeiro dia e a montagem dos
campos de patrulha era primordial. O acampamento parecia ter engrenado.
Como os chefes de Campo e Sub Campo, intendência, programação entre outros
já haviam sido escolhidos antes e claro, cada patrulha sabia o que fazer, foi
como se o programa não tivesse tido tantos percalços.
Tenho certeza que não fossem os escotistas que se materializaram no escritório
no dia anterior e depois a resolver cada dificuldade em cada tempo todo o
programa teria sido um fracasso geral. Empenharam-se, deram tudo de si e
poucos muito poucos ficaram sabendo da real situação.
Tínhamos um subcampo de escotistas. Fiquei ali olhando e vendo se tudo corria
a contendo. Ninguém da direção me conhecia. Fui conhecendo a cada um. Pena,
tinha alguns que só faltavam colocar nele um crachá com um nome – Baden
Powell II. Não sei por que isto acontece. Tanta gente simpática, amiga e esses
presunçosos achando que são o máximo, mas todos sabiam que era só fachada.
O acampamento transcorreu na mais perfeita paz. Um grande sucesso. Sou
mesmo um chorão. E como chorei neste acampamento. Chorava sempre que via
a grandeza do nosso movimento. Aprendi a fazer uma oca perfeita, mas não fui
muito bom no arco e flecha. Descobri um rio próximo e passava algumas horas
lá pescando. O que comi de lambari frito não dá para explicar. Desculpe não me
considerava um baldio. Não me convidaram para nada. Ficava sem o que fazer
no sub campo dos escotistas.
No final, no dia do encerramento, apareceu o executivo idealizador. Com aquela
cara de quem comeu de graça e gostou. Sorria para todo mundo como se nada
tivesse acontecido. Parecia um desses políticos sorrindo, dando abraços e
abraçando criancinhas. Depois a região entregou a ele uma medalha ouro de
gratidão (?). Muitos outros receberam certificados e agradecimentos.
Aqueles que materializaram o acampamento, colocando lá a maioria dos
participantes nem uma palavra. Claro, o importante não foi o que fizemos e sim a
nossa obrigação de servir. Aprendi com meu chefe que quando ajudamos não
esperamos recompensa. Nem sermos lembrados. Dizem que os escoteiros
pecam pela modéstia.
Mais tarde, o executivo do empreendimento apareceu de novo na minha vida,
mas desta vez havia aprendido muito com tais tipos. Fica para outra narrativa a
continuação de uma novela com final feliz.
Mas esta é outra historíola, eram outros tempos. Hoje acredito que tudo é feito e
realizado na mais perfeita organização. Soube que temos em várias regiões
atilados escotistas que montam atividades com mil ou 10 mil escoteiros com
grande facilidade.
E o retorno, ah! O retorno. Pneu furado, radiador fumarento, motorista
temulento, bem são coisas da vida. Por acaso isto também não aconteceu a
você?
E quem quiser que conte outra...
.
Autor: Gustave Flaubert
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
(Quinzenalmente ou mensalmente, iremos publicar contos na linha do
imaginário. o titulo acima servirá para mostrar que o acontecimento é
obra de ficção, mas não avalizo que possa ter alguma veracidade.
Você decide).
Historia de hoje: Jim, O Escoteiro do Futuro.
Não há nada mais perigoso do que acreditar que se detém a fórmula que vai
continuar sempre conduzindo ao sucesso.
Tom Lambert
Conheci Jim no outono passado. Um menino esperto para sua idade. Olhando
poderia dizer que estava com 12 ou 13 anos. Não perguntei. Jim morava na
capital do estado, em uma bela mansão e só pelos seguranças na porta, atentei
que era de uma família de posse, e que Jim não tinha liberdade de locomoção.
Isto era habitual nestas famílias o que tirava muito o alvedrio em suas atividades
cotidianas. Jim pertencia ao 847º G. E. Quênia, por sinal um magnífico grupo.
Conhecia muitos dos seus chefes e sempre quando a serviço ou de férias indo
aquela cidade, não deixava de visitá-los.
Jim era o sub. monitor da patrulha Corvo e todos gostavam e admiração sua
figura. Ainda não tivera condições de ser um primeira classe, mas estava
caminhando para isto. A patrulha tinha certo receio de Jim. Além de literato
mostrava ser douto em quase tudo que constava nos livros escoteiros editados
em nosso pais.
Seu pai, um importante executivo de uma montadora alemã, viajava muito ao
exterior e não se esquecia de Jim, comprando todos os livros do gênero que Jim
gostava, principalmente de motes escoteiros. Possuía uma bela biblioteca em
sua casa. Muitos dos livros escoteiros que estão no grupo, foram doados por
Jim.
Desculpem. Não escrevi como Jim era. Estatura mediana para sua idade, magro,
cabelos totalmente loiros, olhos azuis e adorava vestir o uniforme caqui curto,
não deixando de lado o chapelão, comprado pelo pai em Londres. Seu chefe de
Tropa me garantiu que Jim era um exímio interprete, falava e escrevia
corretamente oito idiomas. Surpreendente! Não imaginava.
Soube também que era exímio em informática e a dominava com maestria. Podia
dizer que poderia dominar qualquer programa ou subjugar o mais famoso
hacker ou docente na área. Boa parte do seu tempo vivia enfurnado em seu
quarto fazendo estripulias honestas na senda do mundo virtual.
Estava eu uma tarde de sábado a observar o andamento das reuniões na grande
área reservada aos escoteiros pelo clube, que era a entidade mantenedora,
quando Jim aproximou e pediu que o levasse para casa. Não estava passando
bem. Procurei o Chefe do Grupo, que concordou e me avisou que não era a
primeira vez. Para não me preocupar.
Cheguei à mansão de Jim, e quando ia me despedir ele insistiu que eu entrasse
em sua casa. Tentei recusar, mas ele foi tão enfático que não pude denegar.
Avisado os seguranças, entrei em sua casa. Seus pais não estavam, haviam
viajado para a Europa na semana anterior. Estava somente sua Avó e uma
governanta e por esta fui recebido.
Jim pegando em minhas mãos, me levou até seu quarto. Senti-me estranho e
meio sem jeito com tudo aquilo. Fui com a sublime missão de satisfazê-lo e
retornar em seguida. Não foi o que aconteceu.
Em seu quarto, bem grande por sinal, Jim me contou uma história, que para não
desmerecê-lo, ouvi profundamente. O que narrava, para mim eram enigmas
inteligíveis. Perguntou-me se tinha lido os volumes escritos por J.J. Benitez,
Operação Cavalo de Troia. Claro que conhecia, mas perguntei a ele do que se
tratava. Ele contou-me uma historia que sublinhava a perplexidade. Que
imaginação tinha aquele menino.
Mas vamos ao relato de Jim. Explicou que após ler os seis volumes, achou que
poderia construir uma maquina do tempo, bem melhor do que a escrita por
Benitez. Ele tinha um conhecimento que os participantes na época do
acontecido não tinham. Possuía hoje um tecnologia muito superior.
Demorou seis meses para construí-la. Usou um pequeno sótão no sitio, ou
melhor, dizendo fazenda, onde passava alguns fins de semana. Poucas claro. O
escotismo tinha preferência. Quando terminou ficou em dúvida aonde iria pela
primeira vez na viagem do tempo. – Quanta fantasia! Pensei. Seria um ótimo
novelista no futuro, quando crescesse.
Mas voltemos a Jim e sua história fantástica. Uma das suas manias era de
pesquisar e conhecer bem, como teria sido realizado o primeiro acampamento
escoteiro em Brownsea, como foi o convite, suas reações, como era o estilo dos
jovens. Tinha o sonho de ver a sua frente Baden Powell em pessoa. Assim
programou sua máquina para aquela época, dia e mês do evento. Pesquisou
horário e não conseguiu uma cópia exata do uniforme da época.
Conseguiu fazer um uniforme escoteiro inglês (não tinha certeza se estava nos
padrões), e embarcou em sua máquina, em um domingo, quando seus pais
estavam ausentes. Seu destino era a Ilha de Brownsea, no dia 31 de julho de
1907, as 09 AM. Sabia que BP lá estava desde o dia 29, mas somente neste
chegou os últimos oito jovens convidados.
A viagem demorou exatos cinco minutos. Sua máquina pousou perto do local,
em um matagal. Isto era esperado, pois a ilha era praticamente desabitada.
Percorreu mais ou menos 300 metros e avistou a aglomeração de mais de uma
dezena de pessoas. Pelos uniformes e participantes, tinha certeza que era
horário da cerimônia da bandeira e ficou perplexo com o aspecto de BP e dos
demais.
Quase não havia jovens pequenos. A historia dizia que foram escolhidos e
convidados jovens entre 12 e 17 anos. Achou-os bem mais velhos. Estavam
conversando entre si e logo um dos acompanhantes de BP que ele calculou ser
Sir Percy Everatt chamou a todos e pediu para formarem um semicírculo.
Colocaram uma bandeira em um pequeno mastro de madeira com todos
cantando o hino inglês. Deus salve a Rainha.
Não teve dúvidas. Aproximou e fez a saudação habitual, dando um sempre alerta
em inglês. Um dos adultos que só podia ser o Major Keneth Mc Larem,
companheiro de armas de BP perguntou quem era e ele.
Como dominava bem o idioma inglês, explicou que era escoteiro brasileiro.
Deram muitas risadas. Conversou pouco com o major e vi que estava incrédulo
com tudo aquilo. Tentou se aproximar de BP, mas não conseguiu.
Sua maquina estava programada para retornar 20 minutos após o pouso e não
tinha mais tempo. Só dez minutos restantes e voltaria para o presente. Se não
estivesse nela no tempo final ficaria ali para sempre. Não era boa ideia. Que
pena quanto daria para ter visto as quatro patrulhas, corvo, lobo, maçarico e
touros em ação.
Deu adeus e correu em direção à máquina. Ninguém se preocupou com ele e não
o seguiram. Entrou e em cinco minutos estava de volta ao presente. Tentou
voltar outras vezes, mas a maquina não obedecia. Seu pai ficou zangado quando
a descobriu. Mandou alguns empregados desmontá-la e nem perguntou sua
utilidade.
Fiquei ali olhando para Jim. Estava preocupado com a imaginação fértil do
menino. Seus pais deveriam preocupar-se mais no seu desenvolvimento.
Naquele momento me preocupou a fantasia de Jim. Prometi a mim mesmo que
quando retornasse ao grupo de Jim, falaria com o Chefe do Grupo.
Na saída, Jim me presenteou com um CD, disse que era de uma grande atividade
que tinha participado. Coloquei no bolso do paletó e após agradecer ao seu
convite, cumprimentei a Avó que estava na sala (me ignorou completamente) e
parti.
No retorno a minha cidade nem pensei mais no assunto. Estava muito cansado e
logo ao chegar a minha casa dormi o sonho dos anjos. Acordei cedo e voltei às
lides profissional. Retornei lá pelas tantas, tomei um banho, fiz uma leve refeição
e antes de dormir lembrei-me do CD de Jim.
Coloquei no aparelho, e quando apareceu às primeiras imagens quase caí da
poltrona. Impossível! Jim tinha filmado todo o tempo que passou em Brownsea.
Ali vi perfeitamente BP, o Major, Sir Percy e os demais escoteiros. Fiquei
apalermado! Assustado mesmo! Ou para não dizer, pelas barbas do Profeta! –
Na tevê com nítida imagem não podia haver qualquer montagem.
Afinal o que era o menino Jim? Um superdotado, um hacker inigualado? Um
cientista promissor? Enfim, não podia contar esta historia para ninguém.
Guardei o CD e nunca o mostrei para amigos ou colegas escotistas. Era meu
dever ficar calado para não ser chamado de tolo!
(Aguardem para breve, outras aventuras de Jim, o escoteiro do futuro!).
E quem quiser que conte outra...
Quem estuda e não pratica o que aprendeu é como o homem que lavra e não
semeia.
Provérbio árabe
AVENTURAS E ATIVIDADES AVENTUREIRAS DE CHEFES ESCOTEIROS
“Quem cede a sua liberdade essencial em troca de um pouco de segurança
temporária, não merece nem liberdade nem segurança”.
BENJAMIM FRANKLIN
Porque a escolha do caminho eu não sei. Não me pergunte. A resposta é sempre
a mesma. Livre arbítrio. Claro, poderia ter escolhido outro, mas não, escolhi
aquele. Devia ter perguntado aos outros chefes, mas não perguntei. Tudo bem,
agora era ir em frente e seja o que Deus quiser.
A trilha se fora e agora nem a bússola ajudava. Um caminho íngreme, cheio de
ribanceiras, com aguada a cair de belas cachoeiras, mas que não nos levavam a
lugar algum. Claro, estava com medo e quem não estaria no meu lugar? Os
demais se mantinham calados e nada diziam. Achavam que eu era o guia e sabia
o que estava fazendo. Caramba! Puro engano, no começo me sentia bem, mas
agora estava trêmulo, com a respiração pesada e me maldizia pela ideia daquela
louca aventura.
Pensei que eu e mais onze escotistas do grupo que prestava a minha
colaboração estávamos bem preparados, alguns claro, Insígnia da Madeira e isto
era ou não um passaporte para uma grande aventura? – Se para as tropas
estávamos sempre sugerindo tais atividades e olhe sempre ficávamos com
inveja dos jovens por que nós chefes também não podíamos ter a nossa?
No Conselho de Chefes dei a ideia e foi aprovada de pronto. Nem discussão
houve e olhe que nosso conselho era bem animado e a plena democracia era ali
praticada com muita seriedade. Fiquei surpreso ao ver a adesão de tantos. Onze.
Inclusive uma chefe de tropa feminina e outra de guias. Outros tantos não iriam
porque teriam atividades escoteiras ou familiares e profissionais já programadas
naquele fim de semana prolongado.
A Serra do Mirvana foi à escolhida. Diziam os que lá estiveram que era um lindo
local ainda com matas preservadas, lindas cachoeiras e no pico uma vista de
tirar o fôlego. Conseguimos um mapa do local, e até nos foi oferecido um guia o
que educadamente recusamos. No programa sairíamos de ônibus na terça a
noite e voltaríamos no domingo.
Afinal somos ou não grandes exploradores, guias natos de jovens meninos e
meninas que também se animam a escalar das serranias as alturas?
(contemplais que vereis, são jovens escoteiros, entusiastas, joviais, briosos
brasileiros que lá vão brincar ao léu de uma aventura! – parte de um poema
escoteiro).
Mas imaginem quem praticamente se obrigou a ir conosco quando ficou
sabendo da grande aventura dos molezas, como ele próprio batizou. Claro, nada
menos que o “Velho”. Um antigo escoteiro, 83 anos, com seu andar claudicante,
respiração sempre fora do normal, e para aquela atividade seria o “fim da
picada” ele ir conosco.
Seria é claro um estorvo e uma grande responsabilidade para os demais chefes.
Falei para a Vovó tentar dizer a ele para desistir da ideia. Ela sorriu amavelmente
e disse que isto seria impossível. - Se ele morrer no campo ou em uma atividade
ao ar livre e melhor ainda em um acampamento, já disse a você, ele morre feliz.
Lá também é seu hábitat.
- “Velho”, pense bem - dizia eu - vão ser cinco dias enfurnados em matas,
corredeiras, subidas e mais subidas, praticamente vamos dormir sobre as
estrelas, pode chover, esfriar, muitas vezes nosso almoço será frio, pois não
teremos tempo de acender fogo a não ser à noite.
- Você alega ter algumas dores aqui e ali, toma mais de seis remédios por dia,
afinal quer se matar? Eu não quero ver você dar um “siricutico” de velhice
comigo na hora H. Infelizmente desta vez você não pode ir.
- Porque disse aquilo não sei. O “Velho” pela primeira vez me olhou com os
olhos cheios de lágrimas e nada disse. Ficou calado, sentado em sua poltrona
preta de vime, com seu cachimbo apagado, a me olhar com aqueles olhos que
preferia ter ido para o “meio dos infernos” a sentir aquele olhar tão meu
conhecido, tão amado e agora eu me odiava profundamente.
Ele se calou. Nada mais disse. Fiquei ali mais algum tempo conversando com a
Vovó, mas com a voz engasgada. Ela também nada comentou. Comi um ou dois
biscoitos de polvilho, tomei um pouco de chocolate quente que demorou a
descer pela garganta e fui embora.
No caminho para minha casa me maldizia pela ideia. “Deus do Céu” o homem
que aprendi a gostar, a amar, a ter como meu guia, meu professor, meu pai e
agora estava lá, magoado comigo, tentando nos seus derradeiros anos de vida
voltar ao passado, fazer atividades como sempre fez e eu ali, dizendo para ele
que não?
Quando voltei do serviço à tarde, passei na casa dele. Estava na mesma posição
de ontem à noite, taciturno, sem falar, olhou para mim, seus pequenos olhos
azuis me encararam, mas nada disse. Não era o “Velho” que conhecia.
A Vovó comentou que ele passou a noite na poltrona, calado, sorrindo para ela,
mas sem argumentar, sem ao menos dizer que eu estava errado, não podia mais
fazer aquilo, seu tempo se foi com o tempo e agora era lembrar, lembrar e sorrir
com o que fez com o que construiu, com as amizades adquiridas e mais nada.
Liguei da minha casa para todos e expliquei a situação. Disse que infelizmente
eu tinha que assumir a responsabilidade e levá-lo. Claro ouve argumentos
contrários, mas todos conheciam o “Velho” e assim, dei a notícia para ele,
sorridente, pensando que ele iria pular da poltrona, e dizer – Maravilha, muito
bem, agora uma volta ao passado e morrer feliz. Mas não, ele continuou calado,
nada disse.
Os dias foram passando, os preparativos, as conversas, as ideias, a compra de
passagens, alimentação, enfim um “mundão de coisas” que nós escotistas bem
conhecemos. Sempre passava pela casa do “Velho” e ele nada dizia calado
como sempre, totalmente diferente do “Velho” que conhecia. Cheguei à
conclusão que a senilidade dele estava mais que presente. Levá-lo seria um
perigo e um grande erro.
Como não houve manifestação por parte dele e da Vovó nos dias que se
seguiram, achei que ele tinha desistido e para não sofrer mais vendo seus olhos,
sentindo a dor da ilusão de ser um velho, alguém que agora não serve para
nada, a não ser falar, falar e falar evitei ir a sua casa durante a semana. Acho que
consegui esquecer pensando na adrenalina que se aproximava.
No dia determinado, nos encontramos na sede lá pelas dezoito horas. As
esposas e parentes com seus veículos nos levaram até a rodoviária, onde de
ônibus partiríamos as vinte e duas horas. Nossa viagem seria de mais ou menos
três horas e meia, e desceríamos próximo ao rio dos Mandaquís, já bem na
entrada da Serra do Mirvana, conforme nos foi explicado pelo motorista. O
retorno poderia ser ali, no domingo entre dezesseis e dezesseis e trinta horas,
horário do retorno do ônibus.
Na rodoviária, despachamos nossas mochilas pelo bagageiro, pois levá-las junto
conosco dentro do veículo seria um contra censo. Ficamos ali batendo papo,
comentando as últimas e de repente, para nossa surpresa vimos sentado em
uma poltrona longe da nossa, nos observando de soslaio nada mais que o
“Velho”, sorridente, com a Vovó e a filha que devia tê-lo trazido.
Caramba! Pelas barbas de Maomé! Esta eu não esperava. Dirigi-me a ele, assim
como todos os escotistas, pensando que ele fora ali para despedir de nós, dar-
nos alguns conselhos (era seu feitio) e nos desejar uma excelente atividade
aventureira.
Mas não, o “danado” já tinha despachado sua mochila inglesa tão conhecida de
todos. Ali estava com seu uniforme caqui curto, seu chapéu de abas largas com
jarrete e tudo que tinha direito, uma pequena bota preta bem engraxada, uma
faca escocesa na cintura do lado direito além do canivete suíço, do lado
esquerdo uma machadinha, pequena e afiada bem protegida com a capa.
Sem esquecer é claro, seu cantil americano de 1940 que ganhou de um soldado
seu amigo, que participara da segunda guerra mundial. Perto da faca, um
pequeno cabo de uns 15 metros, enrolado a moda escoteira, (fácil para soltar e
usar) e no pescoço, enfiado no bolso direito sua bússola “Silva”, velha de guerra
como ele dizia. Levava ainda uma forquilha pioneira, que conforme explicou era
para tornar sua caminhada mais confortável.
Rimos alto. Ninguém nada disse contra, não houve oposição e agora sabíamos
que poderíamos não atingir o objetivo, ou seja, o pico do Mirvana. Mas valeria a
pena ter a companhia do “Velho”. A Vovó e a filha nos incentivaram, e se elas
não estavam preocupadas teríamos como obrigação de também concordar com
a participação dele.
A viagem foi um sucesso. Ninguém pode dormir. O “Velho” não deixou. Cantava,
contava piadas, motivaram os outros passageiros a cantar a Arvore da
Montanha, Japeanã, o Cucu, Anauê, Piripiri, Aconcágua, avançam as patrulhas,
Canção do Clã e tantas outras canções lindas que já tínhamos esquecido em
nosso repertório e que ali voltou-nos à lembrança de quem canta seus males
espanta!
Agradecemos aos passageiros, ao motorista, todos enfim que naquelas três
horas e meia ficaram nossos amigos e vimos o “Velho” já equipado com sua
mochila às costas, nos chamando de molengas e dizendo - As patrulhas já
avançaram e estes chefes “pernas de pau?” – Rimos e esperamos que durante o
percurso ele se mantivesse sempre assim.
Naquela época não tínhamos o telefone celular e acho que se tivéssemos
perderia a graça de uma boa aventura, de uma boa jornada, pois na hora H era
só telefonar e pronto. Bombeiros, salvamento, helicópteros tudo para salvar os
marmanjos que se dizem chefes. Partimos. Era uma boa subida no início em
uma estrada de terra que nos levaria até o rancho dos guardas florestais. Ali já
éramos esperados, pois pedimos antes autorização.
O “Velho” parecia conhecer o caminho. Acho que pesquisou muito sobre ele ou
quem sabe, já tinha ido ao pico algum dia no passado. Não sabíamos, mas ele
nos mostrou exatamente onde era a cabana e quando chegamos não tinha
nenhuma dúvida. Era como ele havia descrito.
Encontramos um guarda ainda acordado, nos apresentamos, conversamos e ele
educadamente disse que o caminho era perigoso, se sabíamos o que iríamos
enfrentar, enfim, nos deu ainda todas as dicas. Pernoitamos na cabana, bem
espaçosa, com colchonetes improvisados e o “Velho” foi o primeiro a dormir. Vi
em seu rosto um sorriso, uma alegria contagiante que naquele momento não
pensei nas consequências de levá-lo conosco.
Deve ter sonhado com seu passado, com suas aventuras, com uma vida
escoteira tão cheia que até hoje, após oito anos que o conheço, pouco sei a seu
respeito. Ainda teria muito tempo com ele, para ouvir, sentir o que é ser e ter o
“Espírito Escoteiro”.
Pela manhã, nem bem a aurora tinha dado as caras e já estávamos enfrentando a
subida. Eu estava com o mapa. Achei que era um bom conhecedor em leituras
de mapas e ensinava aos monitores como fazer um croqui, ensinava o passo
duplo, ensinava como fazer um percurso de Gilwell, portanto era o mais
indicado. O “Velho” aceitou normalmente. Não fez nenhuma objeção.
Era o primeiro dia, a alegria era geral. Já pelo meio da manhã, a vista era
maravilhosa e isto sem atingir o pico que calculávamos ser lá pelas dezesseis
ou dezessete horas. Já não havia mais estradas só uma picada que nos levava
diretamente a uma floresta, cujo final desconhecíamos.
Paramos lá pelas treze horas, lanchamos, descansamos um pouco e partimos.
Notei que o “Velho” agora estava calado, mas não tinha aparência de cansado.
Só não falava com ninguém. Sempre escrevendo em um bloquinho que levava
no bolso de trás. Se perguntado, respondia em monossílabos. Bem, melhor
assim, esperávamos que ele aguentasse firme, pois nosso palpite era que
iríamos ter problemas com ele.
O relógio marcou quatro horas, cinco horas da tarde e ainda estávamos naquela
mata, que aos poucos ia se fechando e a trilha já não existia mais. Tinha
desaparecido. Olhava de vez em quando minha bússola, consultava os outros e
sempre achando que o caminho era o correto. Ao “Velho” não perguntamos,
pois achamos que ele não tinha a menor ideia onde estava e não poderia ajudar.
As chefes femininas caminhavam até melhor do que nós, e sempre com um
sorriso nos lábios.
Escureceu. Um breu. Tínhamos lanternas e velas. Paramos, comemos um
pequeno lanche e resolvemos dormir ali. Não alcançaríamos o pico naquela
quarta. Ficaria para a quinta, o nosso programa era elástico e poderia ser
modificado.
Dormimos não sem antes termos um pequeno fogo, algumas canções, histórias
e estórias contadas, o “Velho” contou uma de um vaqueiro que se apaixonou
pela filha do fazendeiro do Juruá e morreu afogado no Rio das Sete Noivas, onde
quem morre diziam não vai para o céu. Ninguém sabe por que e como morreu,
pois era um excelente nadador. Ela nunca mais se interessou por ninguém. Não
saia de dentro de casa. Passou anos e anos trancada até que seus pais
morreram.
Um dia alguém foi visitá-los e não acharam ninguém. A casa estava vazia, com
todos os móveis. Sua história demorou mais de meia hora para ser contada. Mas
prendeu a atenção de todos. Só mesmo o “Velho”.
Veio à quinta. Partimos. Achávamos que após umas duas ou três horas a mata
desapareceria e avistaríamos o pico. Diziam que lá tinha uma bela cachoeira, e
que a margem um belo bosque para passar dias e dias acantonados.
Nada. Já tínhamos lanchado e nossa caminhada continuava. Quatro horas da
tarde, a mata não acabava. Logo víamos que o caminho estava se tornando
impossível. Pedras e mata fechada, espinhos, corredeiras fortes enfim,
dificuldades que nunca poderíamos imaginar.
Fizemos um pequeno intervalo lá pelas dezoito horas, trocamos ideias e
resolvemos escolher um local para pernoitarmos. O “Velho” sempre calado a
não ser de vez em quando assoviar o Rataplã nada disse e claro nem foi
perguntado. Ainda bem. Ele tinha um excelente espírito escoteiro para sua
idade.
Não foi uma noite das melhores. Dormimos mal, Cada um pensando o que ia ser
da atividade. Eu estava muito preocupado. Principalmente com o “Velho”. Ele
parecia dormitar encostado a uma árvore. Não quis montar seu pequeno
colchonete e seus apetrechos noturnos.
No dia seguinte partimos. Comecei a me preocupar com a jornada ou acho eu, a
aventura que não sei se estava começando ou terminando. Interessante que o
“Velho” nunca mostrava sinais de cansaço. Olhei que sua mochila estava bem
cheia, com todos os seus apetrechos, e seu uniforme se matinha em forma, pois
não dormia com ele (tinha um macacão próprio para dormir) e quando o
olhávamos era como tivesse saído do chuveiro e se preparar para uma atividade
nacional.
Agora a preocupação era de todos. O caminho sumiu. Só subida que
demorávamos mais de uma hora para percorrer poucos metros. Lá pelo meio
dia, paramos e após um lanche partimos. Veio à tarde, nada. Ainda olhava o
mapa, colocava minha bússola em ação e assim andávamos mais uns poucos
metros.
Escureceu. Como sempre era melhor pernoitar, uma pequena chuva começou a
cair. Agora tudo bem. Vamos ser presenteados. Vimos o velho com sua
machadinha começar a cortar alguns galhos. Sentados, já com capas de
plásticos que tínhamos levado, notamos que em poucos minutos o “Velho” fez
uma pequena cabana que não daria para dormir, mas sentados caberiam todos e
assim passamos a noite.
E eu me preocupando com ele e ele nos mostrando aos poucos como fazer e o
que fazer. Durou pouco a chuva, mas molhou todo o terreno que estávamos. O
“Velho” nos mostrou como com pequenos galhos verdes entrelaçados e folhas
poderíamos dormir sem sentir o frio do chão molhado. Vivendo e aprendendo!
No sábado, bem cedinho, nos reunimos e decidimos voltar. Era melhor. Não
estávamos no caminho certo. Eu e todos os chefes já nos considerávamos
perdidos.
O “Velho” não concordou. Afinal nosso objetivo era o pico e se a Serra do
Mirvana nos amedrontava, não tínhamos condições de sermos chefes
escoteiros. Somos escotistas, não é qualquer serrinha que vai nos dar uma
lição. – “Velho”, você está vendo o que acontece, está junto conosco, não tem
opinado, mas sabe que não temos a menor noção de rumo. É melhor voltar e
depois contar para todos esta aventura que estamos vivendo e lembrar-se dela
sempre.
- Pode ser uma boa ideia – disse o “Velho”. Lembrarmos de nossa derrota nesta
serrinha porcaria. Mas acho que não é digna de chefes escoteiros. Afinal hoje é
sábado, temos até à tarde para atingir nosso programa e então pensar na volta.
Vi que não era bom argumentar com o “Velho”. Perder mais um dia naquela
mata não estava nos meus planos.
O “Velho” educadamente me perguntou se cedia a ele por umas duas horas a
liderança da atividade, não mais que isto. Vou mostrar a vocês como trato
serrinhas como esta. Todos riram. Acho que não conheciam o “Velho”. Não sei o
que ele queria, em um terreno desconhecido, com sua idade, talvez até mais
cansado do que parecia e agora querendo tomar as rédeas da atividade?
- Bem, porque não “Velho”, disse um dos chefes, acho que todos nós
concordamos e perguntou aos demais um por um. Por unanimidade deram ao
“Velho” aquela oportunidade. Poderia ser uma das suas ultimas de sua vida,
pois não acreditava que ele pudesse fazer uma nova atividade como aquela e se
assim o fizéssemos feliz, valeria a pena sem sombra de dúvida perder mais
algumas horas antes do retorno.
O “Velho” sorrindo, disse a plenos pulmões – “Quem for escoteiro que me siga!”
e lá foi cantando - Avançam as patrulhas, lá ao longe, lá ao longe! E nós sem
saber o que dizer o seguimos, mas sem nenhuma esperança. Andamos bem
umas 2 horas, descendo, subindo, para noroeste, para sudeste, para esnordeste,
sulsuldoeste, enfim estava eu já perdido na direção e no rumo seguido.
Esperei dar meio dia e já ia dizer para o “Velho” que seu tempo tinha terminado
e meus amigos, avistamos uma trilha e poucos metros à frente saímos da mata e
de lá já se podia avistar o pico. Com menos de 2 horas atingimos o ponto final.
“Maravilha”, “danado de “Velho”, ou ele conhecia o caminho ou estava glosando
com nossa cara ou então era melhor leitor de mapas do que eu e os outros”.
“Velho”, você me deixa surpreso, afinal você já tinha vindo aqui não? – Claro
que não, o que fiz foi pesquisar bem o local nos mapas e na biblioteca do bairro
deu para pesquisar bastante. Eu sabia de cor o tamanho da mata, quando
andaríamos e que as trilhas iam dar. Durante o percurso fiz meu próprio mapa e
sabia onde estávamos a cada passo.
Poderia ter mostrado o caminho certo desde o primeiro dia, mas achei que
vocês mereciam uma bela aventura para não se esquecerem durante todas as
suas vidas. Que vocês pratiquem e aprendam – “Se vais para o mar, avie-te em
terra” meus queridos chefes escoteiros.
A vista era realmente fantástica. O dia estava lindo. Sem nuvens e podíamos
avistar paragens longínquas que não conhecíamos e acho que não iríamos
conhecer tão cedo. O final da tarde de sábado foi estupendo. Vermelho ao sol
por, delicia do pastor. Alegre, cantante, abraços, sorrisos e a beira de um
pequeno córrego com seu trovejar de águas calmas e doces acantonamos.
A noite foi tranquila, um céu cheio de estrelas, uma pequena lua minguante, o
vento soprando leve de sueste a nordeste, um fogo aceso, muitas historias, o
cachimbo do “Velho” com seu perfume adocicado, as canções, ah! As canções.
Lindas, cantadas com suavidade e quase acreditei que éramos um conjunto
harmonioso a se apresentar para uma plateia de mais de 10.000 escoteiros em
um Jamboree realizado ali, naquele momento mágico.
Dormimos embalados pela grande aventura que passamos. Com sonhos
simples, outros fantásticos, de um começo, de um meio difícil e de um final feliz.
A volta foi sem atropelos. Com menos de quatro horas de descida já tínhamos
chegado à rodovia. O ônibus não demorou e o retorno tranquilo com muito
ronco de chefes esgotados dormido.
Na quarta feira seguinte, fui à casa do “Velho”, e conversa aqui e ali (ele estava
sorridente, totalmente diferente do “Velho” que conhecia) falamos das
atividades aventureiras para chefes escoteiros. – Improvisação – disse - Saber
onde como e onde, mas sempre improvisando. Só assim poderemos ter uma
grande aventura para lembrar.
Mas “Velho”, porque nos deixou tanto tempo a deriva, poderia ter nos ensinado
e assim chegaríamos mais cedo ao pico, podendo apreciar mais aquela bela
paisagem.
- Olhe, - respondeu o “Velho”, o sabor da aventura vem do improviso, da
dificuldade, da duvida e até desconfiança do certo e do errado. Lembro que
aprender a fazer fazendo é o melhor método e nunca, mas nunca mesmo poderá
ser substituído. Isto vale para os jovens, mas vale também para nós adultos.
Esperei o momento certo para agir, pois vi que todos não estavam devidamente
preparados para uma atividade com aquela.
Se – continuou o “Velho” – não tivesse deixado vocês a vontade, tentando
acertar e mostrasse o certo, será que valeria a pena chegarmos cedo, ver belas
paisagens e em compensação perderíamos os tombos, o medo, a chuva, a
improvisação, enfim tudo aquilo que passamos e que chamamos sempre uma
grande aventura – Suas é claro, pois é já vivi muito isto.
- Olhe “Velho”, até posso concordar, mas tive medo por você, tive dúvidas em
levá-lo, pensei sempre no pior, mas você nos mostrou que devemos sempre
confiar. Quando achamos que o ajudávamos, era você quem nos ajudava.
Vovó veio cantando baixinho, e rindo disse do que o “Velho” tinha contado a
semana inteira para ela e para a filha a historia dos chefes “patetas” na Serra do
Perdidos. Já estava cansada com aquela lenga toda e gravei tudo para que ele
não repetisse para todos a mesma coisa. – o “Velho” ralhou amigavelmente com
a vovó e ela disse que era brincadeira. Riram a valer da piada.
Fui embora para casa, ruminando como são as coisas. Não procuramos nossos
velhos para nada. A não ser para um abraço, um sorriso forçado, e achamos que
somos os donos da verdade. Olhamos para eles com ar de superioridade, pois
achamos que temos todas as soluções e quando damos conta já é tarde demais.
Paciência, este não é meu caso. Cada dia aprendo mais com o “Velho”, oitenta e
dois anos e ainda dando exemplos, ensinando como se faz.
E quem quiser que conte outra...
A ESCOLA DA VIDA
_ A vida é bela quando não é complicada.
(Robert Browwing);
- Este mundo é duro para conquistar: Cada rosa tem seus
espinhos, mas cada rosa tem sua beleza.
(Frank L. Stanton)
- Somos bobos quando somos jovens! Porque pensamos
sermos mais sábios dos que passaram pela escola da vida,
esquecendo que deveríamos aprender deles algo todos os
dias.
(Janes na Fisbrug Gazette).
BADEN POWELL
Meu Amigo Chefe Gafanhoto e um inesquecível Acampamento
O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e
semeando, no fim terás o que colher.
Cora Coralina
A vida não é feita de sonhos, mas eles existem. Nós escoteiros temos o
privilegio de poder ver em nossas vidas o sol da manhã, a chuva na primavera
ou a brisa leve a açoitar suavemente o rosto. A majestade da visão do alto de
uma montanha qualquer e o cheiro da terra após a nevasca são sonhos reais.
Nada como sonhos e lembranças que ainda permanecem firmes para alegrar as
noites frias de inverno ou o sol escaldante do verão.
Sempre é bom voltar ao passado principalmente se são fatos que nos trazem a
juventude de uma época, a aventura de uma historia a força do caminho a seguir
ou o equilíbrio de decidir se valeu ou não tomadas de decisões que
desapareceram com o tempo.
Foi numa tarde de junho, lá pelos idos de 1960, apesar de estarmos no inverno,
o sol estava a pino. Na pausa do trabalho me deslocava a minha casa para
almoçar e minha mãe me entregou uma correspondência recebida àquela
manhã.
Logo vi que era do meu amigo Chefe Gafanhoto (prefiro preservar seu nome),
pois somente dele ainda recebia alguma carta.
Eu o conheci no ano anterior, quando fiz meu primeiro CAB (Curso de
Adestramento Básico). Ainda lembro, acho que foi em setembro de 1958. Tinha
recebido um convite da Direção Regional para fazê-lo, totalmente sem ônus.
Foi uma aventura a saída, de uniforme e calças curtas, com meu chapelão e a
mochila ofertada por um militar aposentado. Carregada de apetrechos exibia o
garbo que sempre tive. O peso mostrou que poderiam diminuir e muito os
aprestos. A viagem foi de trem e aquele curso o primeiro de muitos outros que
viriam a seguir, ficou marcado na minha saga escoteira. Mudou completamente
minha vida e a maneira de pensar como Escotista.
Cheguei à capital pela manhã, uma viagem de 12 hs, sem dormir direito, mas
com aquela excitação do primeiro acampamento ou da promessa escoteira. Fui
direto para o local determinado e com a mochila as costas, alcancei sem
problemas o campo escola conforme as instruções que havia recebido.
No meio de um arvoredo, avistei uns 12 ou 15 chefes, conversando, rindo e
cantando. Cheguei e na melhor pose tomei a posição de sentido e gritei para
todos – “Sempre Alerta”. Riram da minha pose militar (era assim que tinha
aprendido). Mas foram camaradas durante o curso e um deles, moreno magro
três anos mais velho que eu aproximou e apresentou-se como chefe Gafanhoto,
de uma cidade bem próxima a minha e que eu ainda não sabia da existência de
um grupo escoteiro.
Gafanhoto e eu ficamos muito amigos. Éramos da mesma patrulha. Estávamos
na mesma barraca e os cinco dias de campo deram tempo suficiente para nos
conhecermos mais, e planejar planos para o futuro. (fizemos a parte de campo
da Insígnia um ano depois, foram mais oito dias juntos).
Assim nos conhecemos e assim trocamos muitas correspondências, pois
apesar de sua cidade ficar a 180 quilômetros da minha, era uma época muito
difícil para um intercambio maior. Estrada de terra, poucos ônibus e tínhamos
que fazer uma baldeação, pois de sua cidade até o entroncamento da rodovia
federal a distancia era de 58 quilômetros em uma péssima estrada carroçável e
com poucos veículos circulando. Telefone nem pensar. Muito difícil. (mais tarde,
fui lá varias vezes de bicicleta, eu e vários escoteiros da tropa).
Mas voltemos à correspondência do Chefe Gafanhoto. Ele me convidava para
um acampamento com as tropa escoteira, nas férias de julho, na fazenda de um
pai de um escoteiro dele, de uma semana, com quase todas as despesas pagas.
(o pai ofereceu transporte em carros de boi, da estrada até a fazenda (nove
quilômetros) carne de boi, porco e frangos, ovos, gordura de porco, arroz, feijão
leite, verduras e frutas da época, pois havia um belo pomar em sua fazenda).
Seria uma incoerência não aceitar tal dádiva, pois vi que os gastos seriam
mínimos e já estava em nosso programa um acampamento nesta data. Era só
mudar o local.
Conseguimos através da prefeitura local um caminhão que nos levaria até o
entroncamento e nos buscaria no dia determinado. Os preparativos foram
intensos, a tropa muito motivada (quatro patrulhas duas com sete escoteiros e
duas com oito).
Chegou o grande dia, saímos pela manhã, e a viagem de caminhão seria de mais
ou menos três hs até a entrada da fazenda. Combinamos via correspondência
encontrar a tropa do ch. Gafanhoto entre 12 e 13 horas. De lá, juntos iríamos até
o local determinado.
O pior ainda estava por acontecer. Uma chuva torrencial nos pegou pelo
caminho. Era um caminhão sem lona, só com bancos. Abrimos algumas lonas,
mas o vento pouco ajudava. Chegamos com um atraso de duas horas. E então
vimos que a estrada onde estava marcado o encontro e encontraríamos o chefe
Gafanhoto estava toda enlameada, e a única ponte havia sido levada pela
enchente. Do outro lado, avistamos a tropa do nosso amigo. Algazarra dos dois
lados, mas sem possibilidade de atravessarmos, pois o riacho totalmente cheio
e sem ponte nos obrigava a estudar um novo plano.
Aos gritos tentamos nos comunicar, mas pouco se entendia por causa da chuva
e do barulho do riacho. Um dos monitores veio com um par de bandeirolas
(todas as patrulhas tinham sinaleiros) e aí começamos a nos entender por
semáforas. Decidimos dispensar nosso caminhão. Estava fora de cogitação
voltar.
Ali mesmo ao lado da estrada os monitores começaram a armar suas barracas
de duas lonas, fizeram uma pequena cozinha e um pequeno acampamento foi
montado em instantes. Do outro lado a tropa fazia a mesma coisa. Um posto de
transmissão foi montado e conversamos com todos do outro lado, devagar, mas
nos entendo bem.
À noite, a chuva tinha diminuído, mas não cessada. Dormimos molhados, mas
com sonhos de um sol brilhante e quente ao alvorecer.
O amanhecer não trouxe um belo dia, mas pelo menos sem chuva. Para surpresa
um monitor me comunicou (estava só, pois os assistentes não vieram por
diversos motivos) que achou em sua barraca, quatro escorpiões amarelos.
Preocupado, chamei os monitores e juntos inspecionamos todas as barracas.
Eram em grande numero. Um perigo. Mas sempre temos a proteção de Deus.
Ainda bem não tivemos alguém picado por um deles. Desmontamos devagar o
campo, olhando com carinho as dobras (para não levar escorpiões juntos) e
resolvemos fazer uma jangada para a travessia, pois sem a ponte a diminuição
das águas seria demorada. Nosso programa era acampar junto à tropa do ch.
Gafanhoto e de maneira nenhuma iríamos desistir da nossa intenção.
Demoramos mas conseguimos. Foi divertido passar uma corda para o outro lado
a fim de firmar a jangada. Um monitor fez um arco e uma flecha, amarrou um
cabo (juntamos cinco cabos para dar o comprimento ideal, pois todos usavam
cintura um na época) e foi preciso de muitas tentativas antes de conseguir.
Não era uma bela jangada, mas deu para o gasto. A travessia demorou toda à
tarde. La pelas 19 hs, estávamos confraternizado com a outra tropa. Era o inicio
de uma grande amizade entre os jovens. Dois dias haviam-se passado. Não
perdidos, pois a aventura apenas tinha começado.
Quatro carros de bois estavam a nossa espera. Carregamos todo o material
pesado e conversando e cantando, marchamos para o local do acampamento. O
pai e dono da fazenda veio a cavalo, nos parabenizou pela travessia e disse que
tinha pedido a sua cozinheira para fazer um grande sopão de arroz e muito angu
(polenta) com carne de porco. Não precisaríamos fazer o jantar naquele dia.
Aqueles nove quilômetros até a fazenda foi o inicio de uma grande fraternidade.
Cantando, sorrindo, fazendo amizades que iriam perdurar por muitos e muitos
anos. Quando chegamos a casa sede, jantamos e lá pela meia noite, iniciamos a
montagem de nosso acampamento.
A tropa do chefe Gafanhoto era muito bem adestrada. Vimos que eles possuíam
todas as pioneirias básicas em cada campo de patrulha. Os monitores também
eram de uma cortesia e lealdade e assim procediam em todas as atividades em
conjunto. Montamos um pequeno campo de chefia onde eu o Chefe Gafanhoto e
mais quatro assistentes escolhemos como nossa morada.
Não vou aqui entrar em detalhes de tudo que aconteceu. Teria que escrever
mais cinco ou quem sabe vinte folhas. Não quero que os amigos que me leem
percam tempo e quem sabe poderiam perder o interesse. Portanto com certa
mágoa e pesar, fico sem narrar a invasão dos bois ao campo, da lagoa do sapo
gigante de três pernas, do peixe de cinco quilos pego por um escoteiro da
patrulha leão. De escoteiros que sumiram por um dia inteiro, e só retornaram à
tarde com três sacolas cheia de goiabas deliciosas.
Seria bom narrar como usamos a floresta dos bambus gigantes, imensos, do
escoteiro que quebrou a perna, foi a cavalo até um médico próximo e voltou para
o acampamento. Mesmo assim não deixou de participar das outras atividades.
Não me esqueço da caça ao porco selvagem, do Lobo Guará que apareceu com
seis crias e não saiam do campo, de três jovens filhos de meeiros que se
juntaram as patrulhas em todo acampamento (muito choro na partida), e da
gruta do lago cinzento inexplorada. Tomamos banhos diversas vezes em seu
lago profundo.
Foi interessante a insistência de dois pistoleiros que queriam participar conosco
de um grande jogo noturno (houve interferência do dono da fazenda), da invasão
dos carrapatos, do cachorro ladrão e da árvore fantasma. Do córrego das pedras
preciosas, da filha do fazendeiro que encantou a dois chefes que se achavam
formosos, do feijão tropeiro feito no último dia, do leite fresco que fez ambas as
tropas correrem para o mato frequentemente, e do Fogo de Conselho, uma
apoteose.
Impossível esquecer o barulho feito pelas rodas dos carros de boi, de todos a
cantarem e rirem durante o retorno, enfim de detalhes que nos deslumbrou e
nunca foram esquecidos. Não houve participantes que na estrada federal,
quando da partida de cada tropa para sua cidade, choraram e alguns já dentro
do caminhão, se mostravam deprimidos e tristonhos.
Final do acampamento. Voltamos para nossa cidade. O riacho estava meio seco,
fácil para atravessar a pé. Voltamos para nossas vidas. Nas reuniões de tropa,
os comentários faziam inveja aos seniores que não foram e historias para os
lobinhos que um dia também teriam o que contar.
Foi um dos meus melhores acampamentos. Ficou marcado na lembrança. Ali
fizemos amizades que perduraram por muito tempo.
Depois da década de 70, não vi mais o ch. Gafanhoto. Ele não deu mais noticias
e nem eu. Mudei-me daquela cidade e talvez seja culpado por não procurá-lo
mais uma vez. Não sei se o grupo dele permanece na ativa, mas era um grande
chefe e com escoteiros que obtiveram tudo aquilo do escotismo e das aventuras
que ele oferece.
Como é bom ser escoteiro. Sempre temos história para contar. Assim como
você que me lê, garanto que deve estar se lembrando, do acampamento
inesquecível, marcante em forma de memória que permanecerão vivas por toa a
existência. São saudades assim que marcam uma vida. Fazem de nós escoteiros
uns românticos do passado e do futuro.
Histórias dignificam o “Espírito Escoteiro”. Somos uma irmandade sem igual.
Temos em comum, a força e mesmo fantasiosos agradecemos a Deus por tudo
que nos oferece. E quando o tempo passar poderemos dizer sem receio que
também somos heróis. E olhar aqui e ali e falar – “Valeu a pena e se valeu”!
E quem quiser que conte outra...
"Cada homem tem a sua hora. Cabe a cada um escolhê-la.”
Anônimo.
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
(Quinzenalmente ou mensalmente, iremos publicar contos na linha do
imaginário. o titulo acima servirá para mostrar que o acontecimento é
obra de ficção, mas não avalizo que possa ter alguma veracidade. Você decide).
Historia de hoje: Jim, o Escoteiro do Futuro – Em as Minas do Escaravelho
Negro.
Capitulo I
Vocês já conhecem Jim, o escoteiro do futuro. Como disse antes tem entre 12 ou
13 anos. No conto I ele afirmou ter construído uma máquina do futuro e voltou
ao passado, exatamente no início do primeiro acampamento realizado em
Brownsea por BP em 1911. Fantástico não? Mas o inacreditável foi que Jim me
presenteou com um CD, onde gravou sua viagem. Não sei o que dizer,
sinceramente!
Sempre que vou à capital visito o Grupo Escoteiro do Jim. Gosto deles. São
todos excelentes amigos e diferente de muitos. Quando chego me enchem de
mimos, abraços, apertos de mão e não faltam convites para lanches, chope, uma
noite em casa de alguém enfim, apesar de estarem em um bairro nobre da
cidade, mostram uma fraternidade inigualável.
Ontem mesmo lá estive. Revi amigos, trocamos ideias, e claro, lá estava Jim, o
escoteiro fantasioso e que em seu imaginário idealiza fábulas inexplicáveis,
como se fosse um contista do futuro. Jim era único. Na patrulha Corvo era
benquisto e sempre muito solicitado nas intrínsecas atividades do dia a dia da
patrulha e do grupo. Superdotado intelectualmente, falava corretamente oito
idiomas. De família classe alta, considerava o movimento escoteiro seu habitat
natural.
Mas já fizemos a apresentação de Jim em nossa historíola anterior. Assim
vamos aos “entretantos” e aos “finalmente”. Ouvi dele próprio. Uma historia
burlesca e que nunca poderia ser cômica se não fosse pela criatividade, tão
simétrica como Jim, com seu sorriso franco, em afirmar sempre que o Escoteiro
tem uma só palavra, tem honra e tem caráter. Enfim, adjetivos que não
esclarecem a veracidade da narrativa.
Como todos os Grupos Escoteiros, nos meses de férias escolares são
interrompidos as atividades escoteiras. Salvo para cumprir programas montados
anteriormente, sejam acampamentos, grandes excursões ou mesmo um Ajuri,
Camporee, Encontro Nacional de Patrulhas, ou quem sabe um Jamboree. Fora
isto, os jovens seguem seus pais em férias e só se ouvem falar deles no inicio
das atividades com datas semelhantes com a do colégio.
Jim padecia com tais ociosidades. Seus pais viviam viajando. Poucos ligavam
para ele. Poderia se quisesse fazer seu próprio programa. Seu benfeitor sempre
colocou a sua disposição um veículo com motorista e era frequente ter consigo
um guarda costa. Poderia ir para onde almejasse.
O escotismo sempre foi uma taboa de salvação para Jim. Lá ele se encontrava.
Eram afáveis com ele. O tratavam como igual. Ninguém se preocupava se era
rico ou pobre, se falava diversos idiomas ou se sabia todas as respostas. Isto
não era importante para eles. Este fato alimentava seu amor que dia a dia crescia
pelo Escotismo.
Assim abominava as férias. Ficar longe dos amigos escoteiros, das atividades e
dos acampamentos aborrecia e muito a Jim. Permanecia em sua casa, uma
monumental mansão, com mais de quinze quartos, um sem número de
empregados, uma governanta dominadora e sua Avó que pouco ligava. Subia
escadas, ligava o PC, descia escadas, levava uma barraca até o jardim, usava de
mil formas para armar em 2 minutos, enfim, uma rotina entediante.
Quando dava na telha, ia ao sítio, uma verdadeira fazenda próxima a capital. Lá
tinha seu canto preferido, um pequeno porão, escondido nos fundos da
cocheira. Não era um porão qualquer. Quem como eu que conhecia sabia que
existia uma parafernália de computadores, peças, ferramentas, onde montava
seus inventos, ou curtia um bom papo com vários escoteiros de uma centena de
países. Mesmo assim a rotina retornava. Para ele era uma usança tediosa.
Numa noite, Jim foi dormir bem na madrugada. Seus pensamentos voaram por
plagas nunca antes imaginadas. Reviveu muitas das suas aventuras escoteiras.
Do ralhar de sua Akelá tão amada, só porque com a matilha saiam a convidar
outros meninos dizendo a alcatéia estava distribuindo chocolates. Claro não era
verdade, mas conseguiam atrair múltiplos jovens ao movimento. Jim sempre
pagava para eles uma guloseima qualquer na bomborniere perto da sede.
Não esquecia nunca o sorriso maroto do chefe da tropa, e até da reunião feita
entre o Chefe do Grupo e seus pais, quando levou uma patrulha ao cemitério
para uma prova de coragem. Afinal do que seria o escotismo sem uma pitada de
criatividade?
Claro, foi bem planejada, foram bem camuflados, mas com o uniforme escoteiro
por baixo. Não deram sorte, pois o administrador da necrópole viu e chamou a
polícia. O uniforme serviu de prova e como disse Jim, um escoteiro se apresenta
como tal, e quem foi lá deveria se portar como um escoteiro. Interessante que a
tal prova de coragem significava ficar sentado em um banquinho, dentro de um
mausoléu por hora e meia, entre onze e três da madrugada.
Foram duas noites. Eram sete na patrulha e um dia só não dava. No segundo dia
foram descobertos. Daí os atropelos, da polícia, dos pais, da reunião de chefes.
Claro, dentro do grupo a traquinagem era aceita de maneira disfarçada, pois
mostrava inventividade e argúcia, um dos princípios básicos do fazer fazendo
até ver o erro.
Jim sorria de suas recordações. Lembrou também de outra atividade com a
patrulha em um cinema. Sempre diziam que deviam fazer marketing do que é e o
que fazem os escoteiros. Assim planejaram com Jim transmitir uns CDs em um
cinema, onde passava um filme famoso que atraia centenas de cinéfilos. Como
passar os CDs é que precisavam de uma boa dose de inventividade.
Jim deu a ideia. Comprariam em uma tabacaria uma boa quantidade de rapé,
quando o cinema estivesse cheio, eles jogariam o rapé dentro da sala de
operação e o operador teria que sair até ao banheiro. Com mascaras entrariam e
com a porta trancada passariam os CDs já previamente gravados com atividades
escoteiras. Jim fez uma abertura no CD que ultrapassava em muito as grandes
criações do cinema.
O plano deu certo. Conseguiram passar todo o relato apresentado nos CDs.
Parece que a gerencia não aderiu ao plano. De novo a policia, de novo os pais de
novo a reunião de chefes. O pior é que foi assunto em toda a imprensa. A
Direção Nacional quis saber de tudo. Sempre os adultos com aqueles
aconselhamentos que nunca mostravam uma pitada de aventura.
Jim não esquecia a hilariante invenção sua de uma imagem tridimensional e com
a patrulha a levaram até a Câmara de Vereadores e quando todos estavam
reunidos, Jim com uma gravação já feita, lançava a imagem próxima a púlpito e
os vereadores atônitos viam e ouviam sobre o Grande Movimento Escoteiro e de
Baden Powell seu fundador.
A ideia era levar a imagem a um programa de auditório de uma grande rede de
televisão, mas precisava ser antes testada. Até que valeu. A imprensa deu uma
pequena ajuda.
Uma atrás da outra as recordações volitavam na mente de Jim. Ficou assim
horas e horas. Sabia que seu pai se divertia com ele. Não dizia, mas apoiava.
Talvez pela sua ausência. Quem sabe por que não teve esta oportunidade
quando criança e sabia o quanto valia estas aventuras e criatividades para as
fantasias de um infante. Acho que foi por isto que ele o matriculou no Grupo
Escoteiro. Quem sabe ali teria tudo àquilo que não teve.
Pensando, refletindo, buscando no passado o sonho do presente, Jim dormiu.
Bem tarde como disse. Dormiu até às duas da tarde. A governanta preocupada
foi ao seu quarto e o acordou. Jim levantou sorrindo. Tomou banho, almoçou e
foi até o jardim, onde embaixo de uma algodoeira em flor sentou-se na grama e
sua imaginação começou a laborar uma aventura formidável.
Lembrou quando seu pai o levou até uma das fazendas que possuía em Mato
Grosso. Tinha outras em Minas, Goiás e Paraná. A primeira, bem ao norte,
fazendo fronteira com a Venezuela. Como era grande. Eram tantos bois que se
perdiam de vista. Outro campo enorme com uma plantação de soja. O
administrador logo ficou seu amigo. A cavalo ou motorizado, ambos “fuçavam”
aqui e ali na labuta diária.
Jim se divertiu a beça. Andou e dirigiu diversos tratores de esteira, de pneus,
aprendeu a manobrar um D-12 Caterpillar com maestria e nos primeiros dias foi
uma descoberta. Andava as tarde léguas e léguas a cavalo. Quando resolveu
fazer isto sozinho se assustaram. Jim nada disse. Um belo dia saiu no seu
“campeio” diário e colocou todos os funcionários em polvorosa. Ligaram para
seu pai. Ele disse para não preocuparem. Jim sabia o que estava fazendo.
Claro, Jim era escoteiro de segunda classe e não se apertava. Não se separava
nunca da sua velha “Silva” de guerra (bussola). Sabia onde estava e onde
deveria ir. Foi então que avistou em meio da floresta uma grande fenda, com
crateras enormes. Em redor, grutas e mais grutas. Apeou do cavalo, amarrou o
mesmo em uma árvore e se aproximou.
Levou algum tempo para descer até uma parte da cratera. Viu um grande lago e
logo se aproximou de uma das grutas. Não deu para chegar perto. Precisa de
cordas. Era enorme, com estalactites e tudo. Jim ficou fascinado. Sabia que um
dia isto iria acontecer. Agora só, sem equipamentos e sabendo que os outros
desconheciam onde estava se deteve e voltou à fazenda. Ficou o dia inteiro
pensando em entrar nas grutas.
Perguntou ao administrador o que se tratava. Soube que antes do pai adquirir a
fazenda, uma empresa de exploração de minérios ali esteve. Acreditavam que lá
haveria uma mina de bauxita em grandes proporções. Mas quando atingiram as
grutas, mais de 50 metros abaixo do solo desistiram. Não era viável. Seu pai
comprou e ninguém mais lá esteve.
Jim sempre sonhou em explorar uma gruta ou mesmo uma caverna nunca
visitada pelo homem. Era um sonho e quem sabe poderia se tornar realidade.
Porque não aproveitar as férias e ir até a fazenda do se pai? Seria uma apoteose
no seu currículo. Era só planejar e uma parte do seu sonho seria realizado.
Não pretendia fazer isto sozinho. Precisava de amigos. Carecia da patrulha. Os
corvos eram bom em tudo que faziam. Nunca disseram não a uma boa aventura.
Eram destemidos, audaciosos e intrépidos. Sempre que planejavam a tarefa era
cumprida. Se conseguisse a ajuda deles seu plano teria um final bombástico.
Mas antes do convite, detalhou um plano com pormenores e como realizá-lo. A
fazenda não ficava ali e sim a mais de 1.500 quilômetros isto até Cuiabá, pois
além teriam que viajar na rodovia Cuiabá-Santarém mais 233 quilômetros. Era
uma jornada e tanto. Quando ia com seu pai, o jatinho levava pouco menos de
três horas. Agora não. Não tinha jatinho.
Ligou para seu pai. Sabia que estava em Bremen na Alemanha. Não teve
dificuldade em falar com ele. Depois das trocas saudosas de pai e filho distantes
entrou no assunto. Seu pai autorizou que o motorista que o servia o levasse até
a fazenda em Mato Grosso. Só pediu para levar junto um segurança. As
despesas ele podia usar o cartão de crédito e gastasse o que fosse necessário.
Para isto seria aumentado o crédito a favor.
Perfeito! Meio caminho andado. Pesquisou na internet quais os equipamentos
necessários. Copiou a lista e durante uma semana percorreu as lojas
especializadas. Não podia usar muito espaço no veículo. Precisava levar pelo
menos cinco escoteiros com ele. Resolveu que o utilitário da fazenda também
iria. Seu segurança seria o motorista.
A constância é contrária à natureza, contrária à vida. As únicas pessoas
completamente constantes são os mortos.
Aldous Huxley
Ooxxoo
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
Aqueles que fazem o pior uso do seu tempo são os primeiros a reclamar de que
o tempo é curto.
Jean De La Bruyere
Historia de hoje: Jim, o Escoteiro do Futuro – Em as Minas do Escaravelho
Negro.
Capitulo II
Tudo pronto, agora era fazer os convites. Nada de telefones. Com o motorista foi
em casa de cada um. O monitor tinha viajado com os pais. Não iria. Sobravam
sete. O sub não viajou e nem ia viajar. Conversou com seus pais. Explicou. Se
quisessem seu pai podia telefonar para eles. Só não entrou em detalhes da
aventura que irão fazer. Concordaram.
Com o intendente da patrulha também teve a permissão dos pais. Ele estranhou
que confiassem tanto assim nele. O próximo o bombeiro/lenhador tinha viajado.
Mais um fora do mapa. O Construtor estava em casa. Foi muito difícil convencer
seus pais. Liguei para o meu e ambos se comunicaram. Mais um na aventura.
Faltavam ainda o socorrista e o escriba. Ambos viajando.
Seriamos, portanto quatro. Não era um bom número, mas dava para montar uma
aventura incomparável. Todos ficaram cientes do que deviam levar como tralha.
Não esquecer dois uniformes de campo completo. Os demais itens eram do
conhecimento de todos. A saída seria dia 11 de janeiro e eu passaria em casa de
cada um pessoalmente entre 06 e 08 horas.
Agora era esperar o grande dia, uma grande viajem que pelos seus cálculos
terminaria dois dias depois. Não pretendiam viajar a noite. Traçou um roteiro
onde dormiriam em um hotel beira de estrada. O administrador fora alertado
para preparar a Casa Grande, pois iria receber além de Jim, mais três jovens. Os
dois motoristas ficariam na Casa de Hóspede.
Foi um grande dia a saída. O motorista era consciencioso, nada de correrias.
Velocidade não era o seu forte. Muito bom. Pararam para almoçar e comeram um
peixe delicioso. Às 8 da noite encontraram o hotel de pernoite. Já haviam
percorrido quase a metade do caminho. Antes de dormir ficaram checando o
programa, pois pretendiam ficar nas grutas três dias seguidos sem emergir de
lá!
No dia seguinte, pé na estrada. O bom humor era uma presença constante.
Piadas, repassaram todas as canções escoteiras que conheciam, lembraram de
aventuras anteriores e ficaram macambúzios com a falta dos demais membros
da patrulha. Próximo à divisa com o estado de Rondônia e quase fronteira com a
Bolívia entraram em uma estrada vicinal, de terra, das piores possíveis. Só as 19
h chegaram à entrada da fazenda.
Da porteira ate a sede, mais 12 quilômetros. Para quem percorreu mais de 1800
era café pequeno. A área onde ficava os galpões, a casa de maquinas e a Casa
Grande estavam todas iluminadas. Quando esteve lá na última vez, um gerador
a óleo diesel fornecia a iluminação. Esta só à noite e desligada antes das 23 h.
Agora não. A fazenda recebia eletricidade diretamente da Cia Energética e sem
interrupção.
Cansados, dormiram logo. Acordaram com o canto do galo. A expectativa estava
agora aflorando a pele. Sabiam pelo programa que fizeram que somente no dia
seguinte iriam para o local planejado. Jim os levou para uma volta a fazenda.
Com um trator pequeno de pneu, colocou uma pequena vagonete e foram até a
curralama, ao Rio Araguaia, conheceram parte do rebanho de gado, visitaram a
casa de inseminação e só depois do almoço continuaram.
Ficaram abismados com a plantação de soja. Perdia de vista. Chegaram próximo
a grande floresta amazônica e pela primeira vez tomaram contato com ela.
Tomaram banho em um regato cheio de corredeiras com águas límpidas e muito
frias.
No segundo dia, dormiram como anjos. Claro, acordando sempre com o cantar
do galo. Depois do café, verificaram toda a tralha, os equipamentos, todos eles
emborcados na mochila. O administrador os levou até próximo às crateras, pois
dali em diante só a pé ou a cavalo. Claro, fez todas as recomendações possíveis,
pois não aceitaram a ida de um adulto com eles. Achava um absurdo o pai de
Jim autorizar tamanha sandice, e que ele reprovou desde que soube pela
primeira vez.
Enfim, patrão é patrão. Ficaria de olho e diariamente daria uma volta próximo ao
local para sentir se havia ou não necessidade de intervir. Jim disse que somente
na sexta feira estariam de volta. Não haveria horários fixos. Acreditava que até
as 18 h estavam de volta. Pedia para manter de plantão próximo o vagão para o
retorno.
O jogo já começou guerra ou a aventura já começou. Lá estavam eles,
equipados com suas mochilas e muitas outras tralhas, a observarem toda a
extensão da cratera e o grande lago que no fundo se formava.
Começaram a descida. A principio sem ajuda de cordas. Quando se
aproximaram da gruta escolhida, foi necessário usar uma corda de meia
polegada para descer. Demorou, pois as mochilas foram arriadas em separado.
A entrada da gruta era espetacular. Parecia um grande salão arredondado sem
outras entradas ou cavernas visíveis. Exploraram toda a área.
Encontraram uma pequena fenda e ligaram suas lanternas presas ao capacete.
Jim tinha comprado um modelo especial e mais moderno, tipo “magic click”
com duas lâmpadas de alta potencia. Levavam lâmpadas de reservas. Estavam
uniformizados.
A fenda mal cabia um deles. Jim foi o primeiro entrar. Gritou para os demais
prosseguirem, pois havia um caminho perfeito para continuarem a exploração.
Era uma espécie de mina, descendo a mais ou menos 45º e sempre em linha
reta. Andaram uma hora e pararam. A descida era muito irregular. Seguiram
novamente. Logo ouviram um barulho enorme, devia ser alguma cascata ou
pequena cachoeira subterrânea.
A perspectiva da aventura fazia esquecer o medo. Eles não sabiam o que era
fraqueza ou temor. Sentiam o sangue pulsar. A sede da descoberta aflorava a
pele. Chegaram a uma pequena abertura onde avistaram o riacho, não era fundo,
pois enxergavam as pedras abaixo. Sem tirar as roupas ou tênis seguiram
dentro do riacho por uns bons vinte minutos.
Outro salão, desta vez maior. Ali descansaram e fizeram um lanche. Haviam
levado quatro rações (refeições rápidas) e intendência para três dias. Se
precisassem cozinhar não haveria problema. Claro a falta de lenha seria
substituída por um pequeno fogareiro a gás que deveria durar mais de 6 h
conforme o fabricante. A água não era problema. Jim sabia das nascentes
subterrâneas e claro ainda levavam seus cantis.
Um dos escoteiros pediu silencio. Dizia ter ouvido um ruído. Ficaram quietos e
nada. Jim nesta hora deu uma pequena pausa em sua narração. Era único.
Perfeito na sua maneira de falar e agir. Achei que sua mente fértil precisava
descansar para uma maior inventividade em sua historia. Eu gostava de ouvir o
Jim. Poderia ficar horas e horas com ele. Narrava fazendo gesto, em pé, sentado
enfim a gesticulação era frequente.
Logo retornou ao fio da meada. Como os demais nada ouviram seguiram em
frente em outra abertura a uns 50 metros abaixo. Agora podiam caminhar juntos.
Um barulho de asas entrecortou a escuridão, aclarada pela luz de suas
lanternas. Ficaram quietos e aguardaram. Nada mais ouviram. Devia ser
morcegos. Só se for morcegos gigantes disse um escoteiro. Jim não se
preocupou.
Caminharam novamente por duas horas. Jim olhou seu relógio, marcava 17 h.
Viu que andaram bastante naquele dia. Achava que podiam seguir até as 20 h
onde parariam para um jantar quente e uma noite de sono.
A mina se transformava numa imensa caverna. Maravilhosa por sinal. Surpresos
viram uma luz tênue, mostrando ao fundo uma espécie de lanterna fulgurante de
cor púrpura. Apagaram suas lanternas dos capacetes. Dava para ver o suficiente
para andar e ver a distancia.
Não andaram muito. Diversos pássaros enormes, alguns voando outros parados
sobre as pedras os observavam. Ficaram estáticos. E agora? Seriam perigosos?
Seus aspectos não demonstravam ameaça. Seguiram em frente os pássaros
nada fizeram a não ser piar um som desconhecido para Jim.
A surpresa foi agora maior. Um gnomo de proporções até maiores do que a
lenda conta e um pouco diferente daqueles que aparecem em desenhos antigos.
Estava diante dele, apareceu assim como um fantasma a formar um corpo e a
sorrir de forma desafiadora.
Logo apareceram outros cinco. Um deles, falando um dialeto que Jim logo
soube ser zulu (tinha que ser a imaginação de Jim era fora do normal) pediu para
segui-los. Jim conhecia bem o idioma. Sabia que BP aprendeu e ele também não
ficaria atrás.
Jim falou para os outros não terem medo. Traduziu o que entendeu como uma
missão de paz e para tranquilizá-los mais, foi até o que devia ser o chefe e o
cumprimentou com a mão esquerda. O gnomo nada entendeu. Sorriu de novo e
fez um sinal para segui-lo. Foram com eles. Agora era um caminho cheio de
nevoeiros, mas que dava para ver o passo seguinte.
Andaram bem umas duas horas. Pelo cálculo de Jim, já devia passar de 21
horas. Mas o cansaço ainda não havia se externado neles. A curiosidade era
maior que tudo. Todos da patrulha Corvo sabiam disto. Medo não era uma
palavra usada na patrulha. A sede de aventuras era uma realidade. Mas sempre
realizada com astúcia, inteligência e sagacidade. A responsabilidade era fato na
patrulha.
Finalmente chegaram a uma sala de tamanho desproporcional, separadas por
pequenos arbustos, tipo “hibiscos” (não sei como nasceram ali). Foram
introduzidos em um local em que existia várias pedras formando pequenos
bancos, algumas em círculos outras espalhadas de forma longitudinal. Sentaram
em algumas delas e aguardaram.
Não demorou muito e viram aproximando um Gnomo bem velho, com um
cavanhaque branco e comprido e ao lado, à frente e atrás, centenas de
escaravelhos negros, insetos não muito agradáveis e adorados pelos Egípcios.
Eram um pouco parecidos com aqueles de um filme que assistiram (A Múmia).
Mas bem maiores aproximadamente 05 a10 centímetros de altura.
O Gnomo chefe levantou uma mão rente à cabeça e com um sinal pediu para
aproximarem. Jim estava desconfiado. A perspectiva de desvendar tudo aquilo
sobrepujava a razão. Achegaram todos. Foi então que observaram que a voz do
Gnomo agora falava em português. Interessante que ele não abria a boca e o
som vinha de dentro de cada um. Só podia estar ligado à mente de todos. Como
fazia isto, deveras não sabiam.
Antes de iniciar, viram que em volta centenas ou milhares de gnomos se
acercaram. Não os tinham visto chegarem. Não fizeram barulho e para dizer a
verdade, disse Jim, parece que se materializaram no local. Estranhamos. Mas até
o momento não nos fizeram mal. Se quisessem poderiam ter agido antes.
A esperança, enganadora como é, serve, contudo para nos levar ao fim da vida
pelos caminhos mais agradáveis.
François La Rochefoucauld
Ooxxoo
AS LEGENDÁRIAS LENDAS ESCOTEIRAS
* Rosas são vermelhas, o céu é azul, alguns poemas rimam, mas não esse.
Historia de hoje: Jim, o Escoteiro do Futuro – Em as Minas do Escaravelho
Negro.
Capitulo III
Durante todo este período, os escaravelhos ficaram mudos e paralisados. Mas
todos, sem exceções mantinham os olhos diretamente nos quatro escoteiros
que invadiram o espaço de outra metrópole, desconhecida e olvidada por
aqueles jovens. Jim nunca leu nada a respeito. Tampouco poderia imaginar
algum assim. Pensou que poderia ser uma alienação, produzida pela descida,
pelo ambiente enfim por qualquer coisa.
Mas se fosse como poderia os quatros estar sintonizados na mesma frequência?
Impossível é claro. Jim pensava e meditava como explicar o fenômeno. Mas o
Velho Gnomo, com sua voz metálica, mas simpática, estava transmitido a todos
suas observações de tudo aquilo. Dizia o Velho Gnomo: (palavras de Jim)
- Nunca pensamos receber a visita de vocês. Achávamos que aqui não nos
achariam. Depois que suas maquinas perfuram a terra acima de nossa morada,
ficamos em dúvida. Pensamos em fechar todas as entradas, mas nosso mestre
do universo disse para não fazermos. Ele disse que não nos preocupássemos.
Com a rotação da terra e dentro de poucos anos, seríamos transferidos para
outra dimensão e lá estaríamos salvo de vocês humanos.
Jim já intrigado mais encafifado ficou. O velho Gnomo continuou – Mas vocês
chegaram. São jovens, não oferecem perigo. Vou consultar o mestre se
deixamos vocês partirem ou se deverão ficar aqui para sempre! - Isto não estava
no programa. Jim não pretendia ficar ali. Tinha que fazer alguma coisa, mas logo
que pensou seu pensamento foi captado pelo velho Gnomo.
Foi neste período que Jim e os demais fizeram uma viagem das mais
misteriosas. Tudo aconteceu em segundos, mas parecia ter passados anos e
anos. Estavam viajando pelo universo em uma velocidade espantosa. Foram
plantados em um planeta cor púrpura. Espetacular mesmo. Jardins imensos,
flores e todas elas azuladas ou purpurina.
Não avistaram casas, ruas nada. Só viram bosques imensos, grandes lagos de
beleza indescritível. Milhares e milhares de Gnomos passeando e os
escaravelhos juntos, como se tivessem o mesmo pensamento e a mesma forma
de agir. Andaram aqui e ali, ou melhor, ali não se andava. Volitava. Sim, isto
mesmo, estavam acima do chão, e pareciam ter asas.
Um Gnomo disse a eles que ali habitavam e todos eram como irmãos. Não havia
crimes nada que transgredisse a paz. O amor era tudo que conheciam. Não
precisavam dormir alimentar, não precisavam de vestimenta, só os estudos
transcendentais, espirituais e o trabalho do amor os satisfazia plenamente. Jim e
os demais estavam fascinados!
Tinham os Kikalões (escaravelhos) como companhia. Eles os ajudavam em tudo.
Nos serviços mais pesados e difíceis. Um pouco diferente dos animais
domésticos da terra. Eram como se fossem irmãos, mas precisavam de alguns
anos ou talvez milhares e milhares de anos para se aprimorarem mais. Claro que
vocês não entendem o que significa anos. Para nós um ano é uma hora, ou pode
ser um minuto. Depende do nosso crescimento no amor, na bondade.
Na terra sempre precisaram de nós os Ayesiwes, (nome do planeta). Estamos há
anos luz de distancia de vocês, mas nosso transporte telepático se faz em
questão de segundos. Não só lá como em vários outros planetas recebem nossa
ajuda. Conhecemos o fundador de sua seita, ele era um “mwyrta”, espécie de
mentor de uma raça menor, mas superior as suas.
Este era o motivo de lá estarmos com uma expedição de ajuda. Sempre levamos
o amor como arma. Nosso maior instrumento de guerra é a paz. Sua terra disse
está passando por uma fase muito difícil. Catástrofes, guerras, falta de
fraternidade, de amor. Assim lá estamos sempre sintonizados com o bem. Este é
o motivo de fazermos lá uma morada.
O passeio se evaporou como um passe de mágica. Estavam de volta a gruta e
Jim começou a ficar com medo. Isto nunca aconteceu. Tudo que pensava o
velho Gnomo ouvia. Falaram de amor, de paz, mas será que podiam confiar?
Não podia pensar. Eles sabiam de tudo o que pensavam.
Ele de surpresa, falou para o velho Gnomo – Não precisam ter nenhum receio de
nós. Não faremos nada. Nossos pais e amigos sempre alegaram que temos a
imaginação fértil e nunca acreditam em nós. Afiançamos e para isto damos
nossa palavra de escoteiro que o que houve aqui nunca será relatado. Acreditem
em nós, somos escoteiros. Temos palavra, temos honra!
Parece que Jim falou muito alto e isto prejudicou muito a conversa. O velho
Gnomo estremeceu e pediu a Jim que falasse só em pensamento. Era difícil para
eles, não estavam acostumados. Claro tudo que pensavam estava sendo
transmitido a todos os Gnomos ali presentes.
Jim notou que os escaravelhos começaram a fazer um círculo em volta de cada
um. Isto o preocupou. O Velho Gnomo os tranquilizou. – Jovens, os Kikalões são
de paz. Se nada fizerem de mal, eles também não o farão. Jim contou que um
dos escaravelhos ou Kikalões parecia estar dentro dele, sorrindo
enigmaticamente. Caramba! Que bichos interessantes pensou Jim. Se pudesse
levar um para casa para estudá-lo seria curioso tentar um relacionamento. O
Velho Gnomo disse a Jim que não era possível.
É, pensava Jim, estou pensando e eles ouvindo. Como fazer para não pensar.
Falou para todos os escoteiros ficarem recitando em pensamento, as dez leis
escoteiras. Terminando e começando. Deste modo eles não leriam mais os seus
pensamentos. Jim achou que valeu.
O velho Gnomo sorriu, fez uma espécie de saudação, fechou os olhos e todos
desapareceram. Os escaravelhos começaram a fazer um círculo em volta dos
quatro e ali permaneceram por mais de seis horas. Viram que não havia mais
sinais de gnomos. Pensou no velho Gnomo e não obteve resposta. Estavam a
mais de 18 h acordados.
Claro, que o cansaço tomou conta de todos. Logo colocaram suas lonas de
dormir no chão e apagaram por completo. Jim disse que não soube o que houve
neste período. Acordaram e nada viram. Os gnomos, os escaravelhos haviam
desaparecido. Ficaram perplexo com tudo. Perguntaram entre si se foi um
sonho. Não sabiam responder.
Resolveram retornar. Viram que era tarde de quinta e na sexta tinham prometido
estar de volta. Sabiam que o retorno seria demorado. A subida, as pedras, as
corredeiras tudo iria dificultar um melhor rendimento. Arrumaram suas tralhas e
deixaram para fazer uma refeição quente longe dali.
Voltaram taciturnos, sempre pensando em tudo, duvidando da realidade e agora
sabiam que eram a maior ou se não a grande aventura de suas vidas.
Lembravam de sua promessa ao velho Gnomo. Afinal tinham palavra. Nada
podiam dizer.
Pararam em uma caverna de tamanho médio, e fizeram uma sopa, e comeram
com gosto. Até então só lanches frios. Dormiram por cinco horas. Acordaram e
retornaram a subida.
Na sexta, aproximadamente às quinze horas chegaram a Gruta da entrada,
galgaram sem dificuldade as saliências e subiram na cratera com facilidade. Não
avistaram ninguém. Também não viram o vagão que Jim tinha solicitado.
Olharam para a entrada da gruta para dizer adeus.
Impossível! Lá estavam milhares de gnomos e não sei quantos escaravelhos a
sorrir e acenar um adeus diferente dos nossos. Bateram palmas. Era real. Um
barulho surdo se ouviu e uma nuvem de pó cobriu a entrada da caverna. Quando
se dissipou, não havia mais gruta e nem caverna. Só uma parede de pedra como
se nunca existisse ali uma abertura.
Viram o administrador se aproximando. Acharam que nunca mais nenhum ser
humano iria entrar ali. Não havia mais grutas. Eles os gnomos e os
escaravelhos, ou melhor, os Kikalões do planeta Ayesiwes nunca seriam
descobertos ou importunados. Sorriram entre si. A história dos Corvos agora
era outra. Participaram da aventuras de suas vidas.
“qui, que quod, com o Corvo ninguém pode. Arka, uenka, lelenka, atenta!
Atenta!” sou um corvo, agüenta! – Assim deram o grito da patrulha, para que ali
naquelas plagas distantes, onde começa outra nação, saibam que a Patrulha
Corvo estivera presente, e nunca em tempo algum tivera receio ou temor.
Tinham aversão por medrosos.
O administrador não entendeu nada. Pudera. Nunca fora escoteiro, não sabia
como ter o “Espírito dentro de nós”. Como dizia a velha canção escoteira: De BP
trago o espírito, sempre na mente! Sempre na mente, sempre na mente! - De BP
trago o espírito junto de mim e no meu coração estará!
Voltaram à fazenda. À noite, fizeram uma pequena fogueira. Em volta dela
cantaram. Um escoteiro imitou o velho Gnomo. Riram a valer. Outro imitou o
andar do Kikalões. Agora só faltava imaginar uma dança, para nunca mais,
nunca mais mesmo esquecerem-se daquele magnífico povo de gnomos e
Kikalões e daquele planeta – Ayesiwes! Onde o amor era tudo o que conheciam.
No sábado retornamos. Dormimos boa parte da viagem. Eu voltei as minhas
lides da rotina infernal, aguardando ansioso o retorno às aulas e as minhas
atividades escoteiras – dizia Jim. Estávamos sentados em um degrau da entrada
do pátio, onde se realizava as reuniões, eu o Jim e mais três escoteiros da
patrulha Corvo. Anoitecia.
Não sabia o que falar. Era mentira? Uma história inventada e falsa? Ou era um
fato verdadeiro. Não sabia. Jim sempre me surpreendia. Riu a olhar para mim, e
pegou sua mochila tirou de Lá um CD e me presenteou. Sabia o que seria. Jim
novamente filmou tudo.
Pensei que com sua inteligência e seus conhecimentos de computação e
informática, Jim poderia quem sabe montar através de programas criado por ele
toda aquela história, frutos de sua imaginação, mas a dúvida me assaltava.
Sempre me abordava aquele sentimento. Mas ao ver novamente o filme da
aventura de Jim e seus amigos da patrulha não havia como duvidar.
Ali materializado na TV, as imagens eram nítidas sem nenhuma mostra de
falsificação. Perguntei para Jim se ele comentou com outros. Claro ele disse,
aqui somos todos irmãos escoteiros e o velho Gnomo sabe que o que aqui se
diz aqui se fica. Em sonhos ainda tenho contato com ele. Conversamos muito.
Ele muito me orienta e manda recados para os outros da patrulha que estiveram
em visita ao seu lar.
É..., Jim é impagável. Extraordinário melhor dizendo. Aqui conto suas histórias,
suas aventuras, suas criações ficcionistas por autorização dele. Sabe que todos
que irão ler acreditarão ser historias sem h. Nunca aconteceram. São frutos da
imaginação do escritor. Que assim seja.
Até outra aventura de Jim. O Escoteiro do Futuro!
E quem quiser que conte outra...
Se não existe vida fora da Terra, então o universo é um grande desperdício de
espaço.
Carl Sagan
O Escoteiro Juquinha em busca do Vale dos Sonhos
Não é preciso estar no pico da montanha para sentir o ar puro da manhã. Ele
está presente na ponta da janela que se abre para um novo dia toda vez que o
coração transpira pela ansiedade. Na sinfonia infinita da vida. Não é o mesmo
que eu quero. Quero apenas sentir que a uma razão para viver quando se acorda
a cada manhã. Ame a vida, pois na vida a alguém que ama você.
Acredito que vocês conhecem alguém como Juquinha. Ele é aquele
que não para quieto nas formaturas, está sempre rindo, adora o escotismo, é o
primeiro a chegar e o último a sair. Inconfundível. São nossas alegrias quando
aos sábados encontramos aqueles jovens maravilhosos querendo ser cidadãos,
valorosos, sonhadores, enfim, qualidades reconhecidamente de escoteiros
espalhados por todo o mundo. Claro, tenho certeza que existem vários
Juquinha em seu Grupo Escoteiro.
Juquinha era bem gordo para sua idade. Apenas doze anos. Na
patrulha o chamavam de “meio quilo”. Porque não sei. Deveria ser “uma
tonelada”. Não era tão rápido como os demais, se esforçava para não ser o
último. No entanto sempre era o último. A patrulha não se incomodava com isto.
Gostavam dele e acostumaram ao seu jeito de ser. O que mais preocupava a
patrulha era quando saiam para alguma atividade externa, onde sem transporte
móvel, só podiam usar o “ETVV” (Empresa de Transporte Viação Vulcabrás –
antiga marca de sapato usado por escoteiros exploradores). Ou seja, a pé
mesmo.
Sempre paravam para esperá-lo quando havia uma distância de
mais de 50 metros. Aguardavam e Juquinha chegava suando, mas sorrindo. Era
uma de suas qualidades. Por duas vezes, quando estavam indo em uma
excursão a Serra do Curral, uma boa subida de uns dois quilômetros, esperaram
por Juquinha em uma curva e após mais de meia hora, Lino, o Sub Monitor e
Peri um escoteiro mais antigo voltaram para ver o que ouve.
Desceram mais de quinhentos metros e nada do Juquinha.
Começaram a ficar preocupados e foi então que o avistaram. Estava deitando em
cima do capim gordura e algumas samambaias, bem altas por sinal fazendo de
sua mochila um travesseiro e roncava descaradamente. Não era sempre que isto
acontecia. Além de comer demasiado, Juquinha na véspera de alguma atividade,
ficava tão aceso que mal dormia só pensando no dia seguinte. Nesta última, foi
dormir após as três da manhã, não sem antes contar mais de 8.000 carneiros
pulando a cerca. (diziam ser bom para os que tem insônia)
Claro, todos sabiam de sua dificuldade em acompanhá-los, mas eles
gostavam muito de Juquinha. Ele era parte da patrulha e quando por um motivo
ou outro não estava presente, todos sentiam muita falta dele. Em acampamentos
se tornou um excelente cozinheiro. Nas horas de folga, não dava folga a si
mesmo, buscando aqui e ali, a lenha necessária para o seu adorável fogão de
barro e guardava com boa proteção de chuva ou o orvalho da madrugada.
Um dia disse que ia fazer um bolo de chocolate em um
acampamento. Vou fazer e depois farei um pudim com caldas de caramelo.
Todos riram e duvidaram. Juquinha passou vários meses planejando. No sitio do
Marinho, um amigo da patrulha treinou por várias vezes. Com sua mãe não deu
sossego enquanto ela não fizesse com ele o bolo. Isso por mais de cinco vezes.
No acampamento de tropa não disse nada a ninguém. Levou tudo
que precisava para fazer o Bolo de Chocolate. Seriam quatro dias, aproveitando
um feriado prolongado. A tropa não perdia um. No primeiro dia, Juquinha
explorou as redondezas, a procura de um local apropriado. Encontrou a 100
metros do campo da patrulha uma pequena elevação ideal para fazer o seu
forno. Nas horas de folga corria ate seu forno e trabalhava nele sem parar.
Sempre escondido. Pretendia fazer uma surpresa a todos.
Juquinha montou um contorno de um forno na elevação. Fez isso
devagar, mas em menos de duas horas ficou pronto. Começou a abrir o miolo
com calma, pequeno no inicio e crescendo até atingir o ponto ideal para colocar
a forma. A massa não seria difícil de fazer. No primeiro dia, o forno ficou pronto.
Juquinha até ficou surpreso. Achou que ira demorar mais. Atrás da elevação ele
cavou uma pequena abertura e lá colocou um bambu verde, que dava
comunicação com o forno.
No segundo dia, levantou cedo. Bem cedo, primeiro que todos. Foi
até sua amada edificação, com gravetos e algumas achas já rachadas (era perito
em corte de lenha) e colocou fogo no forno. Viu que saia fumaça da chaminé que
fez e ficou preocupado que descobrissem. Como o vento soprava ao contrário
do campo de patrulha, achou que não descobririam. Após o almoço, a limpeza
do campo e do vasilhame, as patrulhas foram reunidas para um grande jogo, que
seria realizado num perímetro de mais de dois quilômetros fora do
acampamento. Juquinha fingiu uma dor de cabeça para ficar na barraca
descansando.
Todos saíram e Juquinha correu até a cozinha da patrulha e em pouco
tempo preparou a massa. Colocou-a na forma e saiu rápido rumo ao seu forno.
Ele estava bem quente. Juquinha colocou mais algumas achas nas laterais e
assentou a forma bem no meio. Já tinha preparado com cipós trançados e barro,
um fechamento da abertura do forno.
Juquinha ficou ali por cinquenta minutos. Abriu a tampa e viu seu
bolo saindo pela borda, já dourado e com um pequeno e fino galho, viu que
estava bem assado. Juquinha riu de prazer. Sabia que o bolo estava uma delícia.
Com um pano de prato, retirou a forma e a levou até a cozinha de sua patrulha.
Retirou todo o recheio da forma com cuidado, colocou em um prato largo que
tinha levado. Deu três passos atrás e olhou com orgulho o seu feito. Uma grande
palma escoteira foi ouvida. Toda a tropa estava ali escondida e esperando que
Juquinha desse seu sorriso já conhecido. Tinham-no visto preparando tudo e
resolveram fazer uma surpresa.
Todos correram a abraçá-lo e o chefe o parabenizou. Falou algumas
palavras a Juquinha que ele nunca mais esqueceu. Disse que ele era um
pioneiro a fazer um bolo em acampamento. Agora todos poderiam aprender com
ele. Seria um feito comentado por muitos anos, até por grupos de todo o país.
Juquinha não cabia em si de orgulho. Disse para si mesmo e para sua patrulha
que a perseverança e a tenacidade, fazem parte de todos escoteiros. Comeram
do bolo com apetite e vontade de quero mais.
Claro, Juquinha tinha se tornado um perito em fornos e sua fama se
espalhou. Fazia bolos de diversos tipos e um delicioso pudim caramelado de dar
água na boca. Mas não só de manjares e pitéus deram fama a Juquinha. Ficou
conhecido pela sua enorme capacidade imaginativa. Em maio passado sumiu de
um acampamento, logo pela manhã, após a inspeção diária. Desta vez, seu
sumiço foi longo. Muito longo. A preocupação foi geral. Pararam tudo para as
buscas.
O monitor disse que Juquinha comentara de um sonho seu a noite.
Disse que na escarpa próxima ao acampamento, existia um vale dos sonhos e
convidou a todos para conhecer. Riram. Mas Juquinha falava sério. Agora uma
busca completa estava sendo realizada nas Escarpas Pantaneiras como eram
conhecidas. As buscas foram até às quatro da tarde. Estavam desistindo e o
chefe pretendia pedir ajuda da equipe de salvamento dos bombeiros. Ideia que
não agradava a ninguém. Nunca isto aconteceu antes.
Juquinha, logo após a saída de todos para um adestramento de base,
onde seria colocado o conhecimento das patrulhas em orientação sem bússola.
Principalmente à noite com as estrelas conhecidas e reconhecer a posição de
Beta e Épsilon onde se torna mais fácil seguir um rumo, Juquinha se escondeu e
tomou o caminho das Escarpas Pantaneiras. Queria provar a todos da existência
do Vale dos Sonhos. Quem sabe o que encontraria lá. Colocou seu cantil, sua
faca escoteira e nem sua bússola Silva velha de guerra levou.
Partiu em busca dos seus sonhos. Tinha a certeza que era verdade.
Não demorou mais que uma hora para chegar próximo, onde um regato de
águas cristalinas, corredeiras pequenas, pequenos lambaris pulando, brincavam
de esconde-esconde. Juquinha não sabia onde era a entrada para o vale.
Procurou por mais de duas horas. Cansou-se e como sempre foi tirar seu
cochilo em uma pedra grande, onde o sol não batia. Juquinha dormiu. Dormia
fácil.
Tinha certeza que estava vendo um Veado-campeiro. Não havia
dúvidas. Olhava para Juquinha com uma maneira peculiar. Não tinha medo.
Levantava e abaixava a cabeça como a dizer – siga-me! – Juquinha não se fez de
rogado, atravessou o riacho e seguiu o animal, que olhava para trás e para
frente, dando pequenos saltos harmoniosos. Andaram pouco. Entraram um
bosque bem espesso. .
Juquinha viu a sua frente uma enorme gruta. Tinha trazido sua
lanterna de bolso e entrou sem medo. A luz do sol já não entrava mais na parte
que Juquinha estava. Não se intimidou e foi em frente. Em pouco tempo e uns
trezentos metros percorridos viu um clarão mostrando outra saída.
Deslumbrante! Juquinha jamais tinha visto um local como aquele. Um lindo e
enorme vale colorido, com arvores anãs, cheias de frutas, e impossível! Na
mesma árvore nasciam goiabas, mangas, laranjas, maçãs e peras.
Juquinha ficou embasbacado. Estranho, estranho mesmo. Não era
fatível. A lógica não dava razão pelo que seus olhos viam. Pegou uma maçã e
deu uma mordida. Meu Deus! Que maçã gostosa! Impossível! Nunca tinha
comido uma assim. Juquinha sorriu e foi em frente. Parou estático quando a sua
frente um enorme Leão apareceu. Estou perdido pensou. O Leão se aproximou e
fez uma mesura para ele, e sorriu. Leão sorrindo! Se contar ninguém vai
acreditar. O Leão abaixou e Juquinha entendeu que era para montar. Assim o
fez. Cavalgaram por quase meia hora.
Juquinha avistou um grande vale colorido, onde arcos Iris brilhavam
em todos os lugares, nas mais lindas cores nunca vista. Viu então várias e
lindas fadas, com suas asinhas azuis a voejarem em sua volta. Maravilhoso
pensou Juquinha. Elas o conduziram por um caminho florido, onde abelhas cor
de mel e diversos beija-flores não paravam de voar. Viu pássaros nunca antes
visto – Inhambus, pica-paus, macucos, azulona, mergulhão caçador, tesourão,
saracura-do-mato, canários de todas as cores. Uma infinidade. Impossível
descrever todos.
Juquinha estava deslumbrado. Ficou mais ainda quando viu uma
enorme cascata, com peixes em profusão e pode ver os abotoados, bicuda,
curimbatá, jaú, pacu, piapara, traíra e tucunaré. Não dava para ver tudo, eram
centenas a subir a cascata, saltitando como se fosse um lindo balé
representando a mais sublime dança do amor. Ao lado, sentados e sorrindo,
alguns cantando, Juquinha viu diversos escoteiros, como ele, gordos, mas
muito bem uniformizados e batendo palmas com sua chegada. Palmas
escoteiras, transtudo, cubanas, aviãozinho, marchar é, trenzinho, escocesas,
estouro da boiada, um dedinho e um grande e enorme grato, Gratíssimo. Enfim
tudo ali era maior que tudo que tinha conhecido.
Dois escoteiros, com vários distintivos que ele não soube precisar, a
não ser o Liz de Ouro, cordão verde amarelo, dourado e centenas de
especialidades, o cumprimentaram e assim como eles, Juquinha não andava.
Levitava acima do chão alguns centímetros. Um grande círculo foi feito, e o que
parecia ser o monitor de todos eles, deram as boas vindas a Juquinha. Uma
canção suave, parecida com a Arvore da Montanha, era tocada por violinos, e o
coro dos papagaios azuis era entoado de maneira espetacular.
Juquinha sorria, cantava junto a eles. Esqueceu de seus amigos, de
sua patrulha, de sua tropa. Tinha esquecido até de sua família. Alguém o
cutucava e ele se sentiu incomodado. Virou para quem o azucrinava e ia dar uma
bronca quando reconheceu Romildo seu monitor. Espantou por vê-lo ali. Já ia
perguntar quando toda a tropa apareceu. Viu que estava começando a escurecer
e então, e então, só você mesmo Juquinha. Tinha dormido toda à tarde. Viu que
tinha sonhado e sabendo da bronca que ia levar, pensou com seus botões que
tinha valido a pena.
Afinal, Juquinha mesmo em sonhos, tinha encontrado o seu Vale dos
Sonhos, ou agora Vale Encantado dos grandes escoteiros. Preferiu não contar
nada do que viu. Não iam acreditar nele. Voltaram para o acampamento e tudo
retornou ao normal. Agora Juquinha além de excelente cozinheiro, além é claro
de grande escoteiro, era também como o “Apanhador de fantasias nos campos
do Vale dos Sonhos”. Ele gostava quando o lembravam disto. Afinal Juquinha
era um sonhador, aquele que faz do seu sonho a realidade por toda a vida.
Juquinha cresceu. Tornou-se um Pioneiro. Seu corpo agora era
admirado por todos. A gordura se transformou em músculos. Há tempos que
não vejo Juquinha. Nos aqui do 882º Grupo Escoteiro Walt Disney sentimos
saudades dele. Suas historias ficaram para a eternidade. Serão conhecidas por
todo aquele que pertencer a Fraternidade Mundial dos Escoteiros.
Como disse no inicio seu grupo também deve ter um Juquinha. Vocês
sabem do valor de alguém como ele. Deixem-no viver sua vida e sonhar, isto vai
fazer bem. Ouvirão sempre grandes histórias. Aqueles que são mais volumosos
do que os demais, são mais sonhadores. Planejam seus sonhos nós ínfimos
detalhes.
Eu gostaria de ter sido como Juquinha. Fui de sua patrulha. O admirava.
Seus feitos foram escritos por mim, nas anotações do livro da patrulha. Eu era o
escriba e mais que nunca seu confidente. Nunca esqueci o Juquinha. Soube que
ele se tornou um aventureiro, em busca de ouro e diamantes na floresta
Amazônica. Não sei se vai achar alguma coisa, mas era seu sonho e sua
aventura. Um dia quem sabe, ele retorna e vai me contar sobre A tribo das
mulheres guerreiras que habitam o alto Rio Negro. Quem sabe vai dizer como é
o por e o nascer do sol no pico da Neblina onde a garça branca tem seu ninho.
Um dia visitei seus pais. Já velhos, mas com um brilho nos olhos
quando falam de Juquinha. Disseram-me que no ano anterior, estava explorando
a nascente do Rio Amazonas, aquele que corta todo o norte da América do Sul, e
que tem o maior volume de água de todos os rios existentes. Estava em sua
nascente, no rio Apurimac próximo a Cordilheira dos Andes.
Muitos anos se passaram. Mas eu não esqueço Juquinha. Gostaria de
um dia tornar a vê-lo. Quem sabe? O mundo dá tantas voltas que posso virar
uma esquina e encontrá-lo. Que Deus me ajude que seja verdade. A saudade
dele é muita. Olhe, não esqueça. Dê meu abraço e um grande aperto de mão ao
Juquinha de sua patrulha. Tenho certeza, ele é o orgulho da Tropa de Escoteiros
e que mantém viva a chama de aventura que todos somos possuídos. Isto é
nosso. Temos este direito. Somos Escoteiros!
E quem quiser que conte outra...
Como é lindo, Senhor, poder enxergar com estes olhos que me destes, poder
sentir a natureza entrando pelos meus poros, me envolvendo e dizer:
“Deus existe, olhai e vede a lua cheia ou minguante, o sol forte ou fraco, às
árvores, com suas folhas embaladas pelo vento, vento esse que nos refresca e
embeleza ainda mais as coisas que movimenta. E as águas? Ah! as águas, tão
frescas, tão poderosas e tão necessárias à vida.”
Vida, resumo da natureza!
Olhai e bendizei a natureza, pois ela, irmãos, é muito mais importante do que
tudo que estais acostumados a admirar e comprar...
O SOL BRILHA PARA TODOS
“De tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos
maus, o homem chega a rir-se da honra, desanimar-se de justiça e ter vergonha
de ser honesto”.
Rui Barbosa
Chamavam-me de Raoni. Mas meu nome mesmo era Anderson. Poderiam ter
posto outro apelido, mas acharam que eu parecia com o tal Cacique com este
nome. Não sei. Eu aceitava. Era uma maneira da patrulha dizer – Você é mais um
de nós, somos do mesmo sangue, tu e eu! – Era assim os Javalis, minha
patrulha do coração. Nem quero nem dizer como amava aquela patrulha.
Éramos muito unidos. Fora das reuniões, nos reuníamos sempre em meu bairro
ou no bairro de algum deles. Íamos ao cinema, passeios, trabalhos escolares,
sempre juntos. A família de cada um conhecia todos os outros. Nosso chefe
admirava a união da patrulha e incentivava as outras a fazerem o mesmo. Dava-
nos como exemplo em tudo, principalmente nos acampamentos, onde nosso
campo sempre era o primeiro a ser montado. Sempre éramos o primeiro a dar o
Grito de Almoço pronto e assim seguia durante todo o desenrolar do
acampamento.
Foram vários. Consegui alcançar a marca de 25 noites de acampamento. Marca
difícil de ser alcançada com a idade que tinha. Estava a caminho da primeira
classe. Faltava somente a prova de jornada, que estava sendo preparada pelo
chefe Ivan. Ele dizia que eu era novo ia fazer 13 anos. Mas me disseram que
seria feita no mês seguinte. Já estava tudo esquematizado. Local conhecido e
Tavinho iria comigo. Ele seria o seguinte na prova de jornada.
Mas nem tudo era só alegria, distração, aprendizado. A vida nos traz situações
que nos transformam em menos de pequenos segundos, minutos. De uma vida
plena de alegria a um buraco negro que desconhecemos tudo pode acontecer. E
aconteceu. Foi em uma tarde de domingo, estava em casa só com minha mãe e
meu pai, quando adentraram a minha casa sem pedir licença, vários policiais em
busca de meu pai.
Meu mundo caiu. Comecei a chorar. Minha mãe se desesperou. Gritava
perguntando o que era aquilo, ninguém dizia nada. Arrastaram meu pai,
espancavam-no sem cessar e o levaram até o camburão e em questão de
minutos o levaram. Os vizinhos acorreram, tentaram nos ajudar. Mas ajudar em
que? Alguém lembrou que conhecia um advogado. Não entendia nada. Porque
meu Deus, porque levaram meu pai? Meu grande amigo. Sempre estava junto e
sempre me apoiou em tudo. Era e sempre foi alem de pai, o meu melhor amigo.
No dia seguinte, ficamos sabendo da acusação. Ele tinha seduzido uma moça,
maior de idade, e a teria matado a punhaladas em um matagal. Impossível!
Impossível! Meu pai não. Nunca. Foi um desespero total. Éramos uma família
simples. Meu pai trabalhava como gerente em uma loja de sapatos em um
shopping. Tínhamos o necessário. Dificuldades haviam, mas quem não as tinha?
Eu estudava em um Colégio Estadual, e minha mãe era dona de casa.
Nossos parentes moravam no norte do pais e dificilmente entravamos em
contatos com eles. Não tínhamos condições de pagar um advogado. Minha mãe
tentou um defensor público. Todo Grupo Escoteiro ficou em polvorosa.
Conheciam o meu pai. O meu melhor amigo. Minha patrulha se solidarizou
comigo. Vinham sempre me visitar. Eu passei a faltar às reuniões. Os olhares de
filho de um assassino estavam presentes nos olhos de muitos. Aquilo me
machucava profundamente. Doía e como doía.
No dia da morte da jovem, era dia de folga e meu pai tinha saído. Disse que iria
ver um novo emprego do outro lado da cidade. Saiu cedo e só voltou à tarde.
Não explicou onde foi e só usava metáforas. Minha mãe que o adorava começou
a duvidar de sua inocência. Ninguém acreditou nele. Todos os consideravam
culpado. Haviam muitas provas. Eu não. Eu sabia que ele não faria isto. Não era
assim, seu coração era nobre e nunca deixou de ajudar ninguém. Cometer um
desatino não poderia cometer. Eu não acreditava.
Sua prisão preventiva foi decretava. Durante uma semana, a imprensa falada e
escrita só tinham o crime dele em suas manchetes. A loja que meu pai
trabalhava se recusou a qualquer indenização. Cancelaram nosso cartão de
saúde. Ficamos numa situação desesperadora. De penúria mesmo. Nossa casa
era própria, Graças a Deus. Mas não tínhamos nenhum ganho. No inicio tivemos
a ajuda dos vizinhos. Mas aos poucos eles também se afastavam.
Não ia mais ao Grupo Escoteiro. Mas duas vezes ou mais por semana, recebia a
visita dos javalis. Eles eram fieis. Meus melhores amigos. Iguais a eles difícil
imaginar outros. Não sei talvez os únicos depois de meu pai. Eles insistiam para
eu voltar. Pedi um tempo. Contaram do ultimo acampamento, da ultima
excursão, das reuniões, e meus olhos ficavam marejados de lágrimas. Pedi a
eles que não me contassem mais. Quem sabe seria melhor até que não viessem
mais. Afinal estavam juntos do filho de um assassino. Mas não os javalis. Eles
não. Eram fieis. Acreditavam em mim e em meu pai.
Minha mãe vendeu o carro do meu pai e comprou uma Kombi. Ela em um mês
fez tudo para transformar em um carrinho de “cachorro quente” e outras
guloseimas. Sua ideia era ficar no bairro, indo de rua em rua oferecendo seus
quitutes. Agora precisava de mim para ajudar. Claro, isto para mim seria muito
bom, pensei. Quem sabe esta angústia, aquela tristeza e a saudade tremenda
que sentia do meu pai e do Grupo Escoteiro pudesse ser esquecida.
Depois da escola lá estava eu, junto a minha mãe, gritando pela rua, enquanto
ela dirigia devagar. No principio mal deu para pagar a gasolina. Depois foi
melhorando. Deu para colocar um som, fazer algumas adaptações. A procura
aumentou tanto que minha mãe passou a atender por encomenda. Enquanto isto
aos domingos íamos visitar meu pai na prisão.
Era de uma tristeza de dar dó. Cada dia mais definhava. Não era o meu pai que
conhecia. Quando nos via, nos abraçava como se fosse à única coisa que valia a
pena continuar vivendo. Conversamos banalidades. Ele nunca contava como era
a prisão. Não tocava no assunto da morte da jovem. Ali, os três ficavam
remoendo dores ocultas, tentando com palavras simples mostrar que nada tinha
acontecido.
Um ano depois meu pai foi julgado. Condenaram-no há 25 anos. Chorei muito. A
família da moça morta aplaudiu e gritava no fórum – assassino! – Assassino.
Para uma criança de 13 anos ouvir aquilo, era como se estivessem arrancando
seu coração. Saímos dali aos pedaços. Foram fatos gravados e que quando me
vinham à mente eu chorava, soluçava, mas sempre escondido da minha mãe.
Não queria fazê-la sofrer mais.
Eu ainda estava ajudando minha mãe. Ela fazia seus quitutes, eu entregava.
Cresci mais. Fiquei mais forte. Minha patrulha não deixava de me visitar. Só
mesmo os Javalis. Incrível uma patrulha como ela. Não falavam do Grupo, dos
programas. Atenderam-me. Mas a visita deles era sempre uma alegria nos meus
domingos tristes e silenciosos.
As visitas à prisão continuavam. Meu pai, um esbelto homem no passado, não
era agora mais que um fantasma, barba cheia, cabelos revoltos, magro, andava
curvado e não tinha amigos ali. Sabia que não tinha mais em lugar nenhum.
Sabíamos que iria morrer em pouco tempo. Mesmo tentando demovê-lo a se
alimentar melhor ele sorria calmo como sempre foi.
Melhoramos de vida um pouco graças ao trabalho de minha mãe. Dois anos se
passaram, eu estava com 14 anos e já era um homem. Resolvia tudo em casa
para minha mãe. Fazia as entregas das encomendas. Muitos de minha patrulha
ainda continuavam a me visitar. Poderia ter voltado para o grupo, mas não voltei.
Mesmo com o tempo que passou achei que não devia. Seria sempre o filho de
um assassino.
Um dia, apareceu em nossa casa, uma senhora, simpática, vestindo
simplesmente, com um jovem de 11 anos e se apresentou a minha mãe, dizendo
ser aquela que meu pai tinha estado com ela no passado no dia do crime. Minha
mãe não acreditou. Ela disse que antes que meu pai casasse, eles tiveram um
caso, e disto tinha nascido um filho. A principio ela escondeu dele. Não tinha
nenhum amor entre si, e ela não queria ter uma família com ele. Seus pais
também nunca gostaram dele. Pediu que se afastasse dela, e se quisesse
poderia visitar seu filho. Mas sempre seria o filho dela e não dele.
Quando o filho nasceu meu pai implorou para visitá-lo uma semana sim uma
semana não. Ela concordou. Faziam isto escondido dos pais dela. Eles não iriam
aceitar. Nunca tiveram mais nenhum caso. Encontravam-se sempre em um
parque já conhecido dos dois. Quando soube do assassinato, não prestou
atenção a data. Não disse nada. Achava que ele podia ser culpado. Ficamos
embasbacados com aquela história. Ela disse que era evangélica, e não queria
se envolver. Minha mãe não condenou. Foi até simpática com o seu filho o filho
do meu pai e meu irmão.
Enquanto elas conversavam na sala, eu e o Miltinho fizemos amizade. Nunca
pensei em ter um irmão e agora tinha um. Foi duas surpresas que mudaram
minha vida. Meu pai era inocente, mas não tínhamos condições de provar.
Quando o visitamos na cadeia perguntamos por que não contou. Ele nada disse.
Chorava e chorava. Parecia uma criança.
Seis meses mais tarde, prenderam um homem que havia matado várias moças
em matagais próximos. Confessou o crime que consideram fosse o meu pai o
culpado. O delegado viu o erro cometido. Mesmo assim demorou mais de cinco
meses para o Juiz ordenar sua soltura. Quando ele chegou em casa, foi uma
festa. Festa de poucos. Somente uns dois ou três vizinhos pingados. Os demais
não quiseram vir, ficaram envergonhados.
Meu pai estava um “trapo” quando chegou a casa. Poucas notícias na imprensa.
Agora não era mais manchete. A injustiça fora grande, mas ele nunca culpou
ninguém. Nem foi ao seu ex-emprego reclamar alguma coisa. Ofereceram a ele
entrar com uma petição para exigir do Estado uma indenização. Ele também não
quis. A vida continua. Isto fez parte do meu crescimento dizia.
Miltinho estava presente com sua mãe quando meu pai adentrou a sala. Foi uma
festa ele saber que aceitávamos Miltinho como um irmão. Meu pai não explicou
até hoje porque não falou a verdade. No fundo eu sabia que não queria
prejudicar a mãe de Miltinho. Também deveria ter medo de que se soubéssemos
não confiaríamos mais nele. Não sei. Pode ser que sim ou não.
Meu pai, eu e minha mãe, aumentamos nossa produção. Ele agora é outro
homem. Recuperou um pouco do que tinha sido em sua mocidade. Esta se fora
para sempre. Mudamos para uma casa maior. Voltei para o Grupo Escoteiro com
a cabeça erguida. Tinha um pai, um herói que admirava. E era Inocente. Todos
precisavam saber disto. Sofrer como ele sofreu ser acusado de um crime que
não cometeu e se sacrificar por alguém, acredito ser poucos pais que fariam
isto. Fora ofendido, injustiçado, tratado como assassino. Poucos se
aproximaram dele na prisão. Lá não fez amigos, era taciturno. Sua vida lhe
pertencia, ali só a ele e mais ninguém. Disse-me que não queria saber o que
fizeram. Não queria julgar. Tinham-no julgado e ele não faria o mesmo.
Meu irmão Miltinho também entrou para o Grupo Escoteiro. Ele está com a
corda toda. Só fala nisto. Todo fim de semana sua mãe o traz a nossa casa onde
é muito bem recebida e ele é adorado pelo meu pai. Não tenho ciúmes. Agora
somos uma família feliz. Deus soube conduzir nosso destino para que não
descobríssemos a verdade quando fosse tarde de mais.
Eu e mais dois da patrulha Javali, estamos fazendo a rota sênior. Meu irmão
pertence aos lobos, uma grande e antiga patrulha do grupo. Não consegui
minha primeira classe, mas vou lutar para ser Escoteiro da Pátria. Tenho certeza
que vou conseguir. Amo o escotismo, a lei escoteira para mim é ponto de honra.
Tenho a promessa no coração.
Não tenho mágoas de alguns chefes que não ficaram do meu lado. Cada um teve
suas razões. Tenho certeza que onde estiverem terão se arrependido do
julgamento precipitado. Lembro das palavras de Ivan Teorilang, que dizia “Ao
julgar e condenar alguém, não se esqueça que você também poderá estar
suscetível ao mesmo erro, haja visto sua condição humana, portanto, pense e
pese antes de constranger seu semelhante”.
Hoje, o importante para mim é minha família, meu pai que se recupera das
agruras que passou e não condena ninguém, do meu irmão, da minha fantástica
mãe, e... Da minha patrulha sênior é claro. Os Tiradentes são como os Javalis.
Unidos, sempre para frente. Não conhecem a derrota. Amo esta patrulha, adoro
meu grupo, sou apaixonado pelo Movimento Escoteiro.
Ah, só mesmo o escotismo. Como te amo. Como você mudou minha vida. Você
com toda sua sabedoria soube fazer de mim um homem. Com caráter, com
honra. Não vou deixá-lo nunca. Irei ser um pioneiro, e depois serei um chefe.
Sim um chefe para mostrar a todos os jovens que o caminho para o sucesso
está aqui. E fazê-los sorrirem, ajudá-los e fazendo isto, como dizia Baden Powell
eu também terei a minha felicidade.
E quem quiser que conte outra...
“A injustiça”, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em
flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo
à semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na
fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade,
Promove a venalidade [...] promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza,
sob todas as suas formas.”.
(Rui Barbosa)
Mensagem do velho ao moço
"A alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido.
Não na vitória propriamente dita.”
Mahatma Gandhi.
Você já foi criança um dia... Mas os anos se dobraram e fez de você
um jovem, quase um adulto... Agora você me olha com certo
desprezo só porque muitos anos se dobraram para mim e hoje eu sou
um velho...
Você observa minhas mãos trêmulas e encarquilhadas e se
esquece que foram as primeiras a acariciar as suas, inseguras na
infância. Critica os meus passos lentos, vacilantes, esquecendo-se de
que foram eles que orientaram seus primeiros passos.
Reclama quando lhe peço para ler uma palavra que meus olhos
já não conseguem vislumbrar com precisão, esquecido das várias
palavras que eu repeti inúmeras vezes para que você aprendesse a
falar.
Fala da lentidão das minhas decisões, esquecendo-se de que
suas primeiras decisões foram por elas balizadas. Diz que eu sou um
velho desatualizado, mas eu confesso que pensei muito pouco em
mim, para fazer de você um homem de bem.
Reclama da minha saúde debilitada, mas creia muito trabalho foi
preciso para garantir a sua. Ri quando não pronuncio corretamente
uma palavra, mas eu lhe afirmo que me esqueci de mim mesmo, para
que você pudesse cursar uma Universidade.
Diz que não possuo argumentos convincentes em nossos raros
diálogos, todavia, muitas foram às vezes que advoguei em seu favor
nas situações difíceis em que se envolvia.
Hoje você cresceu... É um moço robusto e a juventude lhe
empolga as horas... Esqueceu sua infância, seus primeiros passos,
suas primeiras palavras, seus primeiros sorrisos... Mas acredite tudo
isso está bem vivo na memória deste velho cansado, em cujo peito
ainda pulsa o mesmo coração amoroso de outrora... É verdade que o
tempo passou, mas eu nem me dei conta...
Só notei naquele dia... Naquele dia em que você me chamou de
velho pela primeira vez, e eu olhei no espelho... Lá estava um velho de
cabelos brancos, vincos profundos na face e certo ar de sabedoria
que na imagem de ontem não existia.
Por isso eu lhe digo meu jovem, que o tempo é implacável, e um
dia você também contemplará o espelho e perceberá que a imagem
nele refletida não é mais a que hoje você admira...
Mas você sentirá que em seu peito o coração ainda pulsa no
mesmo compasso... Que o afeto que você cultivou não se
desvaneceu...
Que as emoções vividas ainda podem ser sentidas como nos
velhos tempos... Que as palavras amargas ainda lhe ferem com a
mesma intensidade... E que apesar dos longos invernos suportados,
você não ficou frio diante da indiferença dos seres que embalou na
infância...
Por isso eu lhe aconselho meu filho:
Não ria nem blasfeme do estado em que eu estou eu já fui o que
você é, e você será o que eu sou... Aquele que despreza seus velhos é
como galho que deixa o tronco que o sustenta tombar sem apoio.
A ingratidão para com os que nos sustentaram na infância é
semente de amargura lançada no solo, para colheita futura. Assim,
façamos aos nossos velhos o que gostaríamos que nos fizessem
quando a nossa idade já estiver bastante avançada.
Não sei de onde copiei, mas quando sinto que a velhice vem
chegando e olho dentro de mim, acredito que tenho a verdadeira
felicidade do mundo. O amor e apoio dos meus filhos e da minha
esposa. Netos maravilhosos, genros e noras que me respeitam e me
amam. E claro milhares de amigos. O que dizer mais?
E quem quiser que conte outra.
* Eu queria morrer como o meu avô, dormindo tranqüilo, e não
gritando desesperadamente, como os quarenta passageiros do
ônibus que ele dirigia!