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AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL ATUAL
Por Fabiano Pimentel – Doutor e Mestre em Direito Público pela
Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Processual
Penal da Universidade Federal da Bahia e da Universidade do
Estado da Bahia. Membro da Academia de Letras Jurídicas da
Bahia. Conselheiro da OAB/BA e da Associação Brasileira dos
Advogados Criminalistas - ABRACRIM. Sócio-Fundador do
Escritório Fabiano Pimentel Advocacia Criminal. Advogado
Criminalista.
1. Introdução
O processo penal brasileiro dos dias atuais vive um momento de grande instabilidade, ou até
mesmo, vale dizer, de grande retrocesso. Não é incomum encontrarmos discursos, na grande massa popular,
em defesa de um processo penal punitivista, onde se busca a condenação do réu a qualquer custo, até mesmo
com violação de princípios que foram garantidos pela Constituição Federal. Hoje, o que importa é punir, e
punir de qualquer forma, desrespeitando qualquer regra ou princípio de direito, pois, para grande parte da
população, “os fins justificam os meios”.
Recentemente, o juiz Sérgio Moro, durante audiência pública realizada pela Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para discutir o Projeto de Lei (PL) 402/2015 afirmou que "para
avançar no combate à corrupção, é necessário reduzir as garantias individuais". Ouviu-se ainda expressão de
Antônio César Bochenek: “Devido à ditadura militar, a constituição de 1988 deu grande amplitude às
garantias individuais, o que hoje não é mais necessário, devido ao longo período de governos democráticos”.
Vivemos um período crítico do processo penal. O combate à corrupção e a impunidade agora
servem para justificar qualquer tipo de violação às garantias que foram conseguidas com derramamento de
sangue de muitos inocentes, em período ditatorial no qual o Brasil esteve mergulhado de 1964 até 1985.
Sabe-se que o governo democrático caracteriza-se pelo sistema de limites ao poder e esta
limitação é dada pelos direitos fundamentais, como bem asseverou o juiz Rubens Roberto Rebello Casara,
em debate no senado sobre o mesmo projeto de lei descrito acima: “O estado democrático de direito se
caracteriza por limites no exercício do poder. Cada vez que uma garantia constitucional é relativizada, o
estado caminha para o autoritarismo, o estado policial, para o estado total. No fascismo clássico italiano, no
nazismo alemão, no stalinismo soviético, em todos esses períodos a presunção de inocência foi relativizada”.
O Brasil, entretanto, nestes últimos acontecimentos, vem demonstrando que retornará a este
processo penal fascista descrito por Rubens Casara. Digo isto, principalmente, porque este discurso de
supressão de garantias vem sendo proferido pelas próprias autoridades que deveriam guardá-las, às vezes,
dito por aqueles que devem julgar os processos criminais, aí o cenário torna-se ainda mais preocupante.
O pior de tudo isso é que a grande massa da população aplaude estas atitudes, ovacionando as
medidas antigarantistas como se fossem grandes feitos, como se o direito pudesse ser desrespeitado em
determinadas hipóteses, previamente selecionadas ou para certos “inimigos do estado”, esquecendo-se que
um dia estas baterias acusatórias podem ser voltadas para qualquer um de nós e aí não haverá mais tempo
para contê-las. .
Este cenário vivido pelo processo penal brasileiro me fez lembrar a primorosa obra de
Francesco Carnelutti: “As misérias do processo penal”. Ao reler seu texto, pude perceber que a referida obra
permanece ainda tão atual e que as misérias que foram tão combatidas pelo mestre do processo penal italiano
retornaram com força máxima no processo penal brasileiro. Assim, ao reler sua obra, destaquei pontos que
eram verdadeiros alicerces do processo penal italiano, mas que estão sendo esquecidos no Brasil.
Passeamos então a descrever as 10 misérias do processo penal brasileiro da atualidade
relembrando as lições de Francesco Carnellutti.
2. A primeira miséria do processo penal brasileiro: a violação ao princípio da presunção de inocência.
“A Constituição italiana proclamou solenemente a necessidade de tal respeito declarando que o acusado
não deve ser considerado culpado até que seja condenado com uma sentença definitiva”. (CARNELUTTI,
2009, p. 53).
Recentemente a AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil – ingressou com proposta
de alteração do Código de Processo Penal (PLS 402/2015) permitindo o decreto de prisão preventiva para
determinados crimes após o julgamento da apelação pelo segundo grau de jurisdição, mesmo pendentes os
recursos extraordinários, além de propor outras reformas como: o fim do art. 600, §4º., do CPP; além de dar
o mesmo tratamento para as decisões do Júri; bem como, a redução das hipóteses de cabimento dos
embargos infringentes.
Assim justificou a AJUFE: “Após reuniões destinadas a discutir com a Associação dos Juízes
Federais do Brasil - AJUFE uma alteração na legislação processual penal brasileira, ofertou-nos aquela
associação o texto da presente proposição, destinada que é a promover alteração normativa que atribua maior
eficácia às sentenças condenatórias e aos acórdãos condenatórios no processo penal, evitando a eternização
da relação jurídica processual, com graves impactos na aplicação da lei penal. Não é razoável transformar a
sentença condenatória ou o acórdão condenatório, ainda que sujeitos a recursos em um “nada” jurídico,
como se não representassem qualquer alteração na situação jurídica do acusado”. (Justificativa da AJUFE
para o PLS 402/2015).
Fato relevante é que tais violações às garantias constitucionais foram propostas pelos juízes
que deveriam guardar os direitos fundamentais do cidadão. Isso é ainda mais preocupante...
Vejamos alguns artigos deste projeto de lei:
Art. 617-A: “Ao proferir acórdão condenatório por crimes hediondos, de tráfico de drogas, tortura, corrupção
ativa ou passiva, peculato, lavagem de dinheiro, o tribunal decidirá, fundamentadamente, sobre a
manutenção ou imposição da preventiva ou outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento de
recursos que vierem a ser interposto”. §2º: “Quando imposta pena privativa de liberdade superior a quatro
anos, a prisão preventiva poderá ser decretada, mesmo tendo o condenado respondido ao processo em
liberdade, salvo se houver garantias de que o condenado não irá fugir ou não irá praticar novas infrações
penais se permanecer solto”.
Inicialmente cumpre ressaltar que o decreto da prisão preventiva sempre foi possível em
qualquer fase no processo penal, seja na sentença ou no acórdão, desde que o juiz fundamente sua decisão e
estejam presentes seus requisitos estruturantes previstos no art. 312 do CPP.
O que nos causa espécie é o fato de que a prisão está reservada para determinados crimes, em
detrimento de outros, sem uma explicação convincente para tal distinção. Ademais, o que se busca aqui, de
forma direta, é a “automatização” da prisão preventiva após o julgamento da apelação, mesmo tendo o
acusado respondido ao processo em liberdade, ou seja, sem que os requisitos da prisão preventiva estivessem
presentes.
O pior ainda está por vir...
Na parte final do dispositivo o projeto ainda descreve que “quando imposta pena privativa de
liberdade superior a quatro anos, a prisão preventiva poderá ser decretada, mesmo tendo o condenado
respondido ao processo em liberdade, salvo se houver garantias de que o condenado não irá fugir ou não irá
praticar novas infrações penais se permanecer solto”.
Como se vê, a regra será a prisão, salvo se o condenado der garantias que não irá fugir. Como
se conceber tamanha inversão do ônus de provar determinado fato negativo? É possível provar que o
condenado jamais cometerá um novo delito, seja de que natureza for ? Como provar que o condenado não irá
fugir ? Como dar ao juiz uma garantia concreta que o condenado não deixará o distrito da culpa ou que não
praticará novas infrações penais se solto estiver ? Por óbvio que é um dispositivo que tem por objetivo
prejudicar o condenado e prendê-lo automaticamente, já que não conseguirá dar ao julgador tais impossíveis
garantias.
O Senador Ricardo Ferraço assim justifica a medida: “Os fundamentos da prisão preventiva
elencados no Projeto são diferentes daqueles previstos para o instituto no art. 312 do Código de Processo
Penal (CPP), pois, com o acórdão condenatório, já haveria certeza, ainda que provisória, quanto à
responsabilidade criminal do acusado, não se podendo falar mais, portanto, em “presunção” de inocência”.
O que é uma certeza provisória? Seria uma certeza não tão certa assim ? Uma certeza
condicional ?
Seria possível alcançar a certeza, um conceito tão absoluto, diante de um fato passado que
ficou no tempo? Nem mesmo nas ciências naturais se pode falar em certezas. Veja-se que Ilya Prigogine
afirmou o fim das certezas. Para o autor, as leis da natureza adquirem um significado novo e não tratam mais
das certezas morais, mas sim de possibilidades1.
Agora, imagine ser possível falar em certeza provisória, ou seja, uma certeza que é certa até
determinado período, que pode ser certa, ou não tão certa assim, a depender do momento temporal futuro.
Agora, imagine que esta certeza (que não é tão certa assim por isso recebeu o nome de “certeza provisória)
pode afastar o princípio da presunção de inocência, mesmo sendo um sinônimo de incerteza. Certeza
provisória é incerteza, e bem por isso, não pode ser fundamento para o início do cumprimento de pena.
1 “As leis da natureza adquirem então, um significado novo: não tratam mais de certezas, mas sim de possibilidades. Afirmam o
devir, e não mais somente o ser. Descrevem um mundo de movimentos irregulares caóticos, um mundo mais próximo do
imaginado pelos atomistas antigos do que das órbitas newtonianas”. (PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis
da natureza. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1996, p.159).
Este é o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No caso Oscar Alberto
Mohamed, o Estado Argentino foi condenado por violar o direito fundamental que tem todo acusado de
recorrer ou questionar uma sentença condenatória. Absolvido por homicídio culposo em 1ª instância, foi
condenado em 2ª. instância – “a pessoa recém condenada nesta instância, também tem o direito de revisão
ampla desta condenação”. Entendeu-se que foi negado o direito de revisão da sentença.
No Caso Ivan Suárez Rosero x Equador o réu ficou preso por mais de 04 anos e assim foi o
resultado do julgamento : “Esta corte defende que o princípio da presunção da inocência serve ao propósito
das garantias judiciais, ao afirmar a ideia de que uma pessoa é inocente até que sua culpabilidade seja
demonstrada. Do disposto no art. 8.2 da convenção se deriva a obrigação estatal de não restringir a liberdade
do preso além dos limites necessários para assegurar uma eficiente investigação, pois a prisão é uma prisão
cautelar não punitiva. Em caso contrário, se estaria cometendo uma injustiça ao privar a liberdade por prazo
desproporcional a uma pessoa cuja responsabilidade ainda não tenha se estabelecido. Seria o mesmo que
antecipar uma sentença, violando princípios universalmente reconhecidos”.
No Caso Ricardo Canese x Paraguai: “A corte frisou que a presunção de inocência implica
que o acusado não deve demonstrar que não cometeu crime e que o ônus da prova cadê a acusação”.
O Brasil, entretanto, na contramão da Corte Internacional, através do STF, acaba de negar o
HC 126.292 entendendo ser possível a execução provisória da sentença condenatória após confirmação da
sentença em segundo grau, afirmando que esta posição não ofende o princípio da presunção de inocência. O
acórdão ficou assim ementado: Ementa: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL
CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO.
EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório
proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o
princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição
Federal. 2. Habeas corpus denegado. (HC 126292, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno,
julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016).
Ora, o art. 5º, da CF é claro ao afirmar: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória”. Não há como relativizar um dispositivo tão expresso. O trânsito em
julgado exige o julgamento de todos os recursos defensivos e, só depois disso, é possível falar em certeza da
coisa julgada, não uma “certeza provisória” como equivocadamente afirmou o senador Ricardo Ferraço.
Não é outro o entendimento de Aury Lopes Jr, ao afirmar: “O STF é o guardião da
Constituição, não seu dono e tampouco o criador do Direito Processual Penal ou de suas categorias jurídicas.
Há que se ter consciência disso, principalmente em tempos de decisionismo (sigo com Streck) e ampliação
dos espaços impróprios da discricionariedade judicial. O STF não pode “criar” um novo conceito de trânsito
em julgado, numa postura solipsista e aspirando ser o marco zero de interpretação. Esse é um exemplo claro
e inequívoco do que é dizer-qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa, de forma autoritária e antidemocrática2”.
No mesmo sentido Lênio Streck: “Entretanto, o STF errou. Reescreveu a Constituição e
aniquilou garantia fundamental. Gostando ou não, essa é a Constituição que temos. E todos sabem de meu
elevado grau de ortodoxia quando se trata da Constituição. Até de originalista já fui chamado3”.
Assim, fica evidente o erro cometido pelo STF na interpretação constitucional do princípio da
presunção da inocência. Bem por isso, definimos como a primeira miséria do processo penal atual.
3. A segunda miséria do processo penal brasileiro: o fim do Habeas Corpus substitutivo nos Tribunais
Superiores.
Como se sabe, em primeira instância, caberá recurso em sentido estrito da decisão que
conceder ou negar a ordem de habeas corpus, conforme art. 581, X, do Código de Processo Penal. Caberá
ainda a remessa obrigatória ao Tribunal no caso descrito no art. 574 do mesmo Diploma Legal: “Os recursos
serão voluntários, excetuando-se os seguintes casos, em que deverão ser interpostos de ofício pelo juiz: I –
Da sentença que conceder habeas corpus”.
Na prática, entretanto, os advogados não ingressam com recurso em sentido estrito da decisão
que denega o habeas corpus apresentado na 1ª. instância. É extremamente comum, pela celeridade do rito, a
interposição de novo habeas corpus substitutivo do recurso em sentido estrito.
Esse pensamento, durante anos, foi utilizado pelos advogados e ampliado para instâncias
superiores. Assim, denegado o habeas corpus no Tribunal de Justiça, por exemplo, os advogados
2 LOPES JR, Aury. Fim da presunção de inocência pelo STF é nosso 7 a 1 jurídico. Disponível em
http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/limite-penal-fim-presuncao-inocencia-stf-nosso-juridico, acesso em 07 de julho de 2016. 3 STRECK, Lênio Luiz. Teori do STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declarar inconstitucional. Disponível em
http://www.conjur.com.br/2016-fev-19/streck-teori-contraria-teori-prender-transito-julgado, acesso em 07 de julho de 2016.
ingressavam com novo writ perante o STJ e, se denegado neste Tribunal Superior, ingressavam com outro
perante o STF, sendo plenamente aceito pelos referidos Tribunais o chamado habeas corpus substitutivo.
Sabe-se, entretanto, que conforme art. 102, II, a, e art. 105, II, a, da Constituição Federal,
caberá recurso ordinário, respectivamente para o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça da
decisão que denegar habeas corpus. O que não acontece na prática em virtude da celeridade do writ.
Contrariando esse entendimento, o STF, em julgamento realizado em agosto de 2012, deu
nova quinada em sua jurisprudência para admitir apenas o recurso em habeas corpus como medida
impugnatória das decisões que julgam improcedentes os habeas corpus nas instâncias inferiores4.
O STJ também vem entendendo pela impossibilidade de Habeas Corpus substitutivo de
Recurso Ordinário. Vejamos: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO.
DESCABIMENTO. COMPETÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES. MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO.
MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO DESTE TRIBUNAL, EM CONSONÂNCIA COM ASUPREMA
CORTE. POSSE ILEGAL DE ARMA. ALEGAÇÃO EXCESSO DE PRAZO NÃOANALISADA NA
ORIGEM. TESE DE NULIDADE DA DECISÃO QUE INDEFERIU ALIBERDADE PROVISÓRIA.
PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA PELA SENTENÇACONDENATÓRIA SUPERVENIENTE.
SUBSTITUIÇÃO DO TÍTULO PRISIONAL, QUEDEVE SER ANALISADO PRIMEIRAMENTE PELO
TRIBUNAL A QUO. AUSÊNCIA DEILEGALIDADE FLAGRANTE QUE, EVENTUALMENTE,
PUDESSE ENSEJAR ACONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO
CONHECIDO. (STJ - HC: 210256 CE 2011/0140214-4, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de
Julgamento: 13/11/2012, T5 - QUINTA TURMA).
Como se vê pela ementa acima descrita, o habeas corpus vem sofrendo sérias restrições em
sua impetração, admitindo-se apenas o recurso ordinário em habeas corpus, com prazo determinado e
tramitação morosa. Na prática, o recurso em habeas corpus é apresentado perante o Tribunal a quo, que faz o
4 Vejamos na íntegra a notícia disponível no site do STF sobre o tema: “A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF)
reformou seu entendimento para não mais admitir habeas corpus que tenham por objetivo substituir o Recurso Ordinário em
Habeas Corpus (RHC). Segundo o entendimento da Turma, para se questionar uma decisão que denega pedido de HC, em
instância anterior, o instrumento adequado é o RHC e não o habeas corpus. A mudança ocorreu durante o julgamento do Habeas
Corpus (HC) 109956, quando, por maioria de votos, a Turma, acompanhando o voto do relator do processo, ministro Marco
Aurélio, considerou inadequado o pedido de habeas corpus de um homem denunciado pela prática de crime de homicídio
qualificado, ocorrido na cidade de Castro, no Paraná. A Turma também entendeu que as circunstâncias do caso concreto
não viabilizavam a concessão da ordem de ofício. O réu pretendia obter a produção de novas provas e já havia feito o pedido de
habeas corpus no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em ambas as instâncias o pedido
foi rejeitado. Contra a negativa, a defesa impetrou habeas corpus no STF, em vez de apresentar um RHC. Segundo o ministro
Marco Aurélio, relator, há alguns anos o Tribunal passou a aceitar os habeas corpus substitutivos de recurso ordinário
constitucional, mas quando não havia a sobrecarga de processos que há hoje. A ministra Rosa Weber acompanhou o voto do
ministro-relator no que chamou de ‘guinada de jurisprudência’, por considerar o habeas, em substituição ao RHC, um meio
processual inadequado. A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha e o ministro Luiz Fux também votaram no sentido do novo
entendimento.. (disponível em http://www.stf.jus.br, acesso em 05.09.2013).
primeiro juízo de admissibilidade. Ainda é levado para o setor de digitalização, para ser enviado
eletronicamente para o STJ, numa demora de aproximadamente 90 dias.
Sensibilizado com a morosidade na tramitação do recurso ordinário, o Ministro Marco
Aurélio assim assevera em novo julgado: “Sensibiliza a comunidade jurídica e acadêmica a circunstância de
o recurso ordinário seguir parâmetros instrumentais que implicam a demora na submissão ao órgão
competente para julgá-lo. Isso acontece especialmente nos Tribunais de Justiça e Federais, onde se aponta
que, a rigor, um recurso ordinário em habeas corpus tramita durante cerca de três a quatro meses até chegar
ao Colegiado, enquanto o cidadão permanece preso, cabendo notar que, revertido o quadro, a liberdade, ante
a ordem natural das coisas, cuja força é inafastável, não lhe será devolvida. O habeas corpus, ao contrário,
tem tramitação célere, em razão de previsão nos regimentos em geral. Daí evoluir para, presente a premissa
segundo a qual a virtude está no meio-termo, adotar a óptica de admitir a impetração toda vez que a
liberdade de ir e vir, e não somente questões ligadas ao processo-crime, à instrução deste, esteja em jogo na
via direta, quer porquanto expedido mandado de prisão, quer porque já foi cumprido, encontrando-se o
paciente sob custódia5.”
As decisão que buscam restringir o uso do habeas corpus substitutivo de recurso ordinário
fundamentam-se no excesso de trabalho, em virtude de poder ser o habeas corpus impetrado a qualquer
tempo. O que se vê é uma tentativa de usar o recurso ordinário como forma de reduzir a quantidade de ações
constitucionais penais. Fica a impressão de que os tribunais superiores buscam causas impeditivas de acesso
à justiça, como forma de reduzir o número de processos, sendo verdadeiro obstáculo ao julgamento de
mérito dos pedidos de habeas corpus.
Assim se fez nas súmulas e jurisprudências impeditivas de recursos, com claro propósito de
reduzir o número de recursos, ferindo de morte o acesso à justiça. A quantidade de habeas corpus não é
motivo para impedir o seu uso irrestrito nos tribunais superiores. Deve o judiciário aparelhar-se melhor, na
busca do julgamento em tempo razoável, e não buscar subterfúgios, com decisões inconstitucionais, para
impedir o acesso aos tribunais, e consequentemente o acesso à justiça.
Tal decisão fere visivelmente o texto constitucional. O habeas corpus não pode ser limitado
em nenhuma hipótese. É uma garantia do cidadão contra os desmandos das autoridades públicas. Qualquer
restrição, até mesmo em sua forma, é uma ofensa direta à liberdade de locomoção na expressão de Ruy
Barbosa: “Dê-se ao ofendido o arbítrio de procurar, quando possa, o Tribunal menos frágil, mas não lhe
retire o de valer-se dos outros quando aquele, pela distância ou por qualquer obstáculo, não estiver ao seu
alcance”.
5 Trecho voto do Min. Marco Aurelio, em maio de 2013 HC 110328 /RS.
4. A terceira miséria do processo penal brasileiro – A tentativa de acabar com a sustentação oral em
habeas corpus no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
No ponto mais alto da escala está o juiz. Não existe oficio algum mais alto do que o seu e nem uma
dignidade imponente. Carnellutti.
Recentemente a comunidade jurídica nacional ficou estarrecida com a determinação do
Presidente da Primeira Câmara Criminal do TJRS que determinou o fim sustentação oral em sede de habeas
corpus, em virtude de ausência de previsão no RITJRS, in verbis: “O Presidente da Primeira Câmara
Criminal do TJRS, no uso de suas atribuições, considerando o disposto no art. 14 do art. 177 do RITJRS
afirma que será admitida a sustentação oral somente nas hipóteses expressamente previstas no CPC e no
CPP e que os arts. 610-613 apenas prevê a hipótese para apelação e RESE, determino que a partir de 23 de
março de 2016, só serão permitidas sustentações orais em RESE e Apelação”.
Como se vê, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que tem uma história de
respeito às garantias do processo penal foi levado pela “onda antigarantista” na qual está mergulhado o
processo penal atual e, por intermédio do Presidente da 1ª. Câmara Criminal, achou por bem reduzir mais
uma garantia do réu e prerrogativa do seu defensor, no caso, impedir a sustentação oral em sede de habeas
corpus.
Tal atitude revela afronta direta ao princípio da ampla defesa justamente no momento mais
importante do julgamento que é a sustentação das razões orais da impetração pela defesa, onde o advogado
pode esclarecer fato relevante, explicar questão fática incorretamente apreciada pelo Tribunal ou chamar
atenção dos julgadores para aspectos jurídicos, que podem mudar a decisão e, consequentemente, mudar o
status libertatis do Paciente, além de configurar grave violação das prerrogativas dos advogados.
Bem por isso, a restrição foi revogada após a intervenção da OAB/RS, conforme notícia
disponível na rede mundial de computadores: “A restrição de sustentação oral de advogados em julgamentos
em Habeas Corpus na 1ª Câmara Criminal do TJRS foi revogada em sessão do Órgão Especial da Corte
nesta terça-feira. O novo entendimento foi em decorrência do requerimento da OAB/RS e causou a alteração
do regimento interno para autorizar o procedimento. Desde o dia 4 de abril, a OAB/RS já vem tratando do
tema. Na data, o presidente da Ordem gaúcha, Ricardo Breier, enviou ofício ao presidente do TJRS,
desembargador Luiz Felipe Silveira Difini, questionando a medida. Posteriormente, também os presidentes
reuniram-se na Ordem gaúcha para viabilizar uma solução em favor das prerrogativas da advocacia. Em
decorrência da intervenção da seccional gaúcha, o Tribunal de Justiça garantiu aos advogados a sustentação
oral em Habeas Corpus durante 10 minutos, revogando comunicado da 1ª Câmara Criminal. De acordo com
Breier, o entendimento do Órgão Especial do TJRS demonstra a importância do respeito às prerrogativas da
advocacia. ‘A decisão legitima a imprescindibilidade da advocacia como defensora dos direitos dos
cidadãos, por isso, é fundamental que o advogado tenha o direito a fala. Essa decisão anterior configurava
uma afronta à Constituição e ao pleno exercício profissional. Seguiremos atuando fortemente na defesa das
nossas prerrogativas”, afirmou o dirigente6’ ”.
Como se vê, a medida foi revogada depois da intervenção da OAB/RS, mas a simples
tentativa de violar este direito já configura um ato preocupante. A sua realização, ainda que
temporariamente, é a prova inequívoca de que estamos voltando ao processo penal antigarantista, onde nem
mesmo o direito de ser ouvido está garantido. Tempos difíceis para o processo penal...
5. A quarta miséria do processo penal brasileiro: o uso indevido das interceptações telefônicas.
Aqui destacamos duas misérias que viraram rotina no que tange às interceptações telefônicas:
a repetição indeterminada da medida e a divulgação indiscriminada dos conteúdos sigilosos para a imprensa
nacional.
Sabe-se que o art. 5º., da Lei 9296/96 define o prazo de 15 dias prorrogáveis por mais 15 por
uma única vez, in verbis: “a decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma
de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual tempo uma
vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”.
A lei é clara. Não há espaço para uma interpretação ampliativa neste caso. Fica
evidenciado que o prazo é de 15 dias, prorrogável por uma única vez, desde que seja imprescindível para
a obtenção da prova.
Entretanto o STF tem decidido que o prazo pode ser prorrogado indefinidamente quando o
fato for complexo, a exigir investigação diferenciada e contínua. Vejamos: “EMENTA Habeas corpus.
6 Disponível em http://jornal-ordem-rs.jusbrasil.com.br/noticias/339511186/oab-rs-conquista-fim-da-restricao-de-sustentacao-oral-
no-tjrs, acesso em 07 de julho de 2016.
Constitucional. Processual Penal. Interceptação telefônica. Crimes de tortura, corrupção passiva, extorsão,
peculato, formação de quadrilha e receptação. Eventual ilegalidade da decisão que autorizou a interceptação
telefônica e suas prorrogações por 30 (trinta) dias consecutivos. Não ocorrência. Possibilidade de se
prorrogar o prazo de autorização para a interceptação telefônica por períodos sucessivos quando a
intensidade e a complexidade das condutas delitivas investigadas assim o demandarem. Precedentes. Decisão
proferida com a observância das exigências previstas na lei de regência (Lei nº 9.296/96, art. 5º). Alegada
falta de fundamentação da decisão que determinou e interceptação telefônica do paciente. Questão não
submetida à apreciação do Superior Tribunal de Justiça. Supressão de instância não admitida. Precedentes.
Ordem parcialmente conhecida e denegada. 1. É da jurisprudência desta Corte o entendimento de ser
possível a prorrogação do prazo de autorização para a interceptação telefônica, mesmo que sucessiva,
especialmente quando o fato é complexo, a exigir investigação diferenciada e contínua (HC nº 83.515/RS,
Tribunal Pleno, Relator o Ministro Nelson Jobim, DJ de 4/3/05). 2. Cabe registrar que a autorização da
interceptação por 30 (dias) dias consecutivos nada mais é do que a soma dos períodos, ou seja, 15 (quinze)
dias prorrogáveis por mais 15 (quinze) dias, em função da quantidade de investigados e da complexidade da
organização criminosa. 3. Nesse contexto, considerando o entendimento jurisprudencial e doutrinário acerca
da possibilidade de se prorrogar o prazo de autorização para a interceptação telefônica por períodos
sucessivos quando a intensidade e a complexidade das condutas delitivas investigadas assim o demandarem,
não há que se falar, na espécie, em nulidade da referida escuta e de suas prorrogações, uma vez que
autorizada pelo Juízo de piso, com a observância das exigências previstas na lei de regência (Lei nº 9.296/96,
art. 5º). 4. A sustentada falta de fundamentação da decisão que determinou a interceptação telefônica do
paciente não foi submetida ao crivo do Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, sua análise, de forma
originária, neste ensejo, na linha de julgados da Corte, configuraria verdadeira supressão de instância, o que
não se admite. 5. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, denegado. (HC 106129, Relator(a):
Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 06/03/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-061
DIVULG 23-03-2012 PUBLIC 26-03-2012)”.
Fica a pergunta: O que é um fato é complexo, a exigir investigação diferenciada e contínua ?
Trata-se de um conceito extremamente abstrato, a ensejar o perigo de que as interceptações indeterminadas
virem regra do sistema jurídico, em detrimento da garantia de uma investigação com prazo determinado.
Tal conceito, pela sua abstração, pode gerar interpretações equivocadas, e um caso simples,
vir a ser tratado como se complexo fosse, simplesmente porque a autoridade policial ainda não obteve a
prova desejada a ensejar a culpabilidade do investigado, na análise das interceptações telefônicas. Nesta
linha de pensamento, sempre seria possível prorrogar um pouco mais a interceptação para obter a tão
almejada prova da condenação. Tudo pode se tronar complexo para a obtenção desta prova. Até uma
investigação pode se tornar eterna... Para este processo penal tudo vale, tudo pode...
Vale até determinar a interceptação telefônica e, mesmo fora do prazo, e sem mais o amparo
da ordem judicial, continuar utilizando a prova e divulgá-la na imprensa nacional.
Foi o que aconteceu recentemente em interceptação telefônica divulgada pelo juiz Sérgio
Moro, sendo objeto de crítica contundente do Prof. Lênio Streck: “E o que dizer após o mico que o juiz
Sérgio Moro pagou ao Supremo Tribunal Federal, pedindo calorosas desculpas em longas 30 páginas?
Quando entrei no MP vi uma cena bizarra: um promotor havia pedido, equivocadamente, o
arquivamento de um caso escabroso. Fê-lo em 65 páginas. Ao que o velho procurador lhe disse: quem
arquiva em 65 páginas, denuncia em folha e meia. Serve para Moro. Muita desculpa. Muito drible.
Muito malabarismo verbal. Depois ele se irrita quando os réus não contam toda a verdade. Viu como é,
doutor? Por vezes, é difícil explicar o inexplicável. Além disso, Moro criou uma nova espécie de
extinção de punibilidade: por pedido de desculpas. Por exemplo, a violação da Lei 9.296, mais o artigo
325 do CP foram considerados como um mero descuido. Ele não imaginou que, mesmo sendo fruto de
um “erro” na obtenção das escutas (mormente de Dilma e Lula), isso poderia ter repercussões na vida
política. Verbis: “compreendo que o entendimento então adotado possa ser considerado incorreto, ou
mesmo sendo correto, possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários. Jamais foi a
intenção desse julgador, ao proferir a aludida decisão de 16/3, provocar tais efeitos e, por eles, solicito
desde logo respeitosas escusas a este Egrégio Supremo Tribunal Federal”. O STF poderia conceder o
prêmio Poliana à Moro. E a reforma do Código Penal pode acrescentar novas hipóteses de extinção da
punibilidade: o pedido de desculpas. Mas tem um problema. Devem ser diretas. Sinceras. Como as
delações, matéria da qual Moro entende bem demais. Bem, que lê tanta notícia, mesmo?7”.
No caso em tela, o juiz Sérgio Moro obteve acesso à interceptação telefônica envolvendo
conversa da Presidente Dilma Rousseff que possuía, à época, foro privilegiado. Bem por isso, deveria o
magistrado enviar o conteúdo sigiloso das conversas para o STF, foro competente para analisá-la e não
divulgar o material para a imprensa nacional. Em assim agindo, tornou a prova ilícita, imprestável para ser
utilizada no processo penal.
7 http://www.conjur.com.br/2016-mar-31/senso-incomum-moro-criou-tipo-extincao-punibilidade-pedido-desculpas
6. A quinta miséria do processo penal brasileiro: a utilização da prisão preventiva para obter delação
premiada.
“À solenidade, para não dizer à majestade, dos homens de toga contrapõe-se o homem no cárcere. Não
esquecerei nunca a impressão, que deste tive a primeira vez na qual, ainda adolescente, ingressei na Corte
de uma seção penal no tribunal de Turim. Aqueles, dir-se-ia, sobre o nível do homem; este, em baixo, preso
na cela, como um animal perigoso. Sozinho, pequeno, apesar de sua elevada estatura; perdido, ainda que
procurasse ser desembaraçado; pobre, miserável, necessitado...” (CARNELUTTI, 2009, p. 23).
É exata a definição de Carnelutti sobre o “homem da jaula”. Efetivamente, na expressão do
autor, o homem da jaula é um necessitado. Nas condições das prisões brasileiras, ainda mais. Necessita de
tudo. De alimentação adequada e estabelecimentos condignos à assistência médica e jurídica. Os homens da
jaula, nestes aspectos, não podem ser comparados aos homens livres. É obvio que eles não se encontram nas
mesmas condições psíquicas e físicas de um homem que se encontra em plena capacidade ambulatorial.
O sucateamento do cárcere, o seu empobrecimento e empodrecimento, parecem que estão na
ordem do dia. A prisão, quanto mais fétida, quanto mais desumana e vil, mais tende a agradar a massa
populacional, sedenta pelo espetáculo do delito e de sua punição, isso com o aval de algumas autoridades,
que quase nada fazem para mudar este estado.
Na visão estrábica dos defensores do quanto pior melhor, a prisão deve ter um cenário
horrível para gerar no preso aversões psíquicas e físicas. Ela deve ter uma visão infernal para gerar no
espírito do encarcerado uma vontade desesperada de sair dali, de livrar-se do suplício, isso a qualquer custo e
de qualquer forma. Por isso, a prisão perde sua duração razoável, pois quanto mais demorar o cárcere,
quanto maior for o período de prisão preventiva, para eles, melhor e mais rápida será a obtenção da delação
premiada, isso com o aval de promotores, juízes e, até mesmo, dos Tribunais Superiores.
Para os defensores de um processo penal desumano e antigarantista, quanto mais demorada
for a prisão, quanto mais desumana, quanto mais apodrecida e fétida, quanto pior for a alimentação e suas
instalações, mais desespero gerará no encarcerado e, consequentemente, mais rápida será a delação e a
solução do processo penal, a qualquer custo.
Na expressão de Bruno Espiñeira Lemos8: “Diga-se mais. Nenhum acordo de delação pode
ser considerado válido diante de alguém que se encontra preso (não é necessário dizer o que isso significa
enquanto liberdade volitiva e vontade livre, em tais circunstâncias) com o propósito específico de estímulo
para facilitar a confissão ou estímulo para cooperação com as autoridades de investigação, ambos
fundamentos inidôneos e ilegais para a manutenção de prisões preventivas”.
Trata-se de verdadeira tortura para obter a prova. Um retorno ao período medieval, na
expressão de Aury Lopes Jr: “o episódio é mais um exemplo da degeneração das prisões cautelares, que
vêm sendo usadas como um meio de constrangimento situacional para obtenção de confissões ou
delações premiadas, que posteriormente serão usadas como provas. Ou seja, uma releitura do modelo
medieval, em que se prendia para torturar, com a tortura se obtinha a confissão, e, posteriormente usava-
se a confissão como a rainha das provas9".
Para Geraldo Prado: “No lugar de defender a ordem constitucional, que presume inocente
o acusado e o protege contra iniciativas que visam constranger a produzir confissões — que podem não
corresponder à verdade, como está provado na boa literatura — o MPF prega o emprego da prisão
provisória como método destinado a burlar a garantia que tem o dever de resguardar. Iniciativas do
gênero desacreditam o processo penal e, ao contrário do que postula o MPF, podem levar ao
comprometimento da própria investigação10".
Na expressão de Gustavo Badaró: “As delações de investigados presos são um terrível
retrocesso. Devem ser consideradas inválidas, por não atenderem ao requisito do caput do art. 4º da Lei nº
12.850/2013, que exige a voluntariedade da colaboração. E se um investigado preso desejar fazer a delação e
o Ministério Público assim considerar que tal colaboração poderá ser efetiva? Que este dê o primeiro passo,
postulando a soltura do investigado que se dispõe a ser colaborador. Solto, terá a liberdade que lhe dará a
voluntariedade para aceitar ou não a delação. A lógica não pode ser “prender para delatar”, mas no caso de
investigados presos, soltar para voluntariamente delatar! Se nada for feito, sem a genialidade de Sobral
Pinto, no futuro nos restará postular a anulação dos contratos de delações premiadas de investigados presos,
invocando como fundamento o Código Civil, que em seu artigo 171, inciso II, ao tratar da invalidade dos
8 Lemos, Bruno Espiñeira. Delação premiada e prisão preventiva (não estamos em Berlim). Disponível em
http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/delacao-premiada-e-prisao-preventiva-nao-estamos-em-berlim/, acesso em 23 de julho
de 2016. 9 Notícia disponível em http://www.conjur.com.br/2014-nov-28/professores-criticam-parecer-prisao-preventiva-lava-jato, acesso
em 23 de julho de 2016. 10
Notícia disponível em http://www.conjur.com.br/2014-nov-28/professores-criticam-parecer-prisao-preventiva-lava-jato, acesso
em 23 de julho de 2016.
negócios jurídicos, considera anulável negócios jurídicos celebrados mediante ‘coação’ ou em ‘estado e
perigo’!11
”.
Nestas condições, o encarcerado não tem condições psíquicas e físicas de fazer delação
premiada. Tudo o que disser, ou quase tudo, será consequência do desespero de sair do cárcere. Para o preso
só restará uma possibilidade: a delação. Só assim alcançará a liberdade, que deveria ser a regra do sistema
processual garantista. A prisão de exceção, passou a ser a regra. A delação, o caminho necessário para a
obtenção da liberdade.
Que miséria do processo penal atual!
7 - A sexta miséria do processo penal brasileiro: o grampeamento telefônico ilegal de escritórios de
advocacia.
“O Ministério Público está ao seu lado; insto constitui um erro, que com uma maior conscientização em
torno da mecânica do processo terminará por ser retificado” (CARNELUTTI, 2009, p. 38).
Vejamos a notícia disponível no CONJUR: “O juiz federal Sergio Moro não quebrou o sigilo
telefônico apenas de Roberto Teixeira, advogado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas também
do telefone central da sede do escritório dele, o Teixeira, Martins e Advogados, que fica em São Paulo. Com
isso, conversas de todos os 25 advogados da banca com pelo menos 300 clientes foram grampeadas, além de
telefonemas de empregados e estagiários da banca. A interceptação do número foi conseguida com uma
dissimulação do Ministério Público Federal. No pedido de quebra de sigilo de telefones ligados a Lula, os
procuradores da República incluíram o número do Teixeira, Martins e Advogados como se fosse da Lils
Palestras, Eventos e Publicações, empresa de palestras do ex-presidente. E Moro autorizou essa escuta por
entender que ela poderia ‘melhor esclarecer a relação do ex-Presidente com as empreiteiras [Odebrecht e
OAS] e os motivos da aparente ocultação de patrimônio e dos benefícios custeados pelas empreiteiras em
relação aos dois imóveis [o triplex no Guarujá (SP) e o sítio em Atibaia (SP)]12
’ ”.
11
Badaró. Gustavo. Quem está preso pode delatar?. Disponível em http://jota.uol.com.br/quem-esta-preso-pode-delatar, acesso em
03 de agosto de 2016. 12
Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-17/25-advogados-escritorio-defende-lula-foram-grampeados, acesso em 23
de julho de 2016.
Vejamos também a resposta da força-tarefa: “Procurados pela ConJur, os membros da força-
tarefa da operação “lava jato” afirmaram que o telefone do Teixeira, Martins foi incluído no pedido por
constar no site "FoneEmpresas" como sendo da Lelis. Além disso, os membros do MPF ressaltam que Moro
autorizou a interceptação. Uma busca pelo número de telefone no Google, no entanto, já traz em seus
primeiros resultados o escritório de advocacia. Os procuradores também argumentam que não juntaram
transcrições das escutas do telefone central do escritório nos autos do processo — constando no relatório os
registros das ligações envolvendo o número”.
O CONJUR noticia um fato que deixou a comunidade jurídica estarrecida. Os 25 advogados
de um escritório de advocacia e pelo menos 300 clientes foram interceptados por ordem do juiz Sérgio
Moro. Na notícia, há ainda um fato ainda mais estarrecedor: “a interceptação do número foi conseguida com
uma dissimulação do Ministério Público Federal. No pedido de quebra de sigilo de telefones ligados a Lula,
os procuradores da República incluíram o número do Teixeira, Martins e Advogados como se fosse da Lils
Palestras, Eventos e Publicações, empresa de palestras do ex-presidente13
”.
O fato foi esclarecido em nota oficial pelo MPF: “Lamentando a não observância das boas
práticas jornalísticas pelo site Consultor Jurídico, que não analisou minimamente os autos de interceptações
telefônicas objeto da 24ª fase da Operação Lava Jato, falha essa que resultou na distorção dos fatos
apresentados na matéria Todos os 25 advogados de escritório que defende Lula foram grampeados,
publicada no site, a força-tarefa Lava Jato vem esclarecer: (1) Conforme consta na petição, o telefone foi
obtido por fonte aberta na internet, como vinculado à LILS PALESTRAS, cuja quebra foi deferida pelo
juízo. (2) Nos relatórios juntados aos autos, não constam transcrições de diálogos do referido número como
alvo. (3) No entanto, constam no relatório ligações em que telefones de alvos mantiveram conversas com
terceiros que utilizaram o referido número. (4) Quanto ao referido escritório, cumpre rememorar ainda o
quanto posto pelo Juízo na decisão proferida nos autos da interceptação, o que revela que Roberto Teixeira é
investigado: 'Rigorosamente, ele não consta no processo da busca e apreensão 5006617-29.2016.4.04.7000
entre os defensores cadastrados no processo do ex-Presidente. Além disso, como fundamentado na decisão
de 24/02/2016 na busca e apreensão (evento 4), há indícios do envolvimento direto de Roberto Teixeira na
aquisição do Sítio em Atibaia do ex-Presidente, com aparente utilização de pessoas interpostas. Então ele é
investigado e não propriamente advogado. Se o próprio advogado se envolve em práticas ilícitas, o que é
objeto da investigação, não há imunidade à investigação ou à interceptação'. (5) Além de tudo isso, no
evento 42 dos autos 5006205-98.2016.4.04.7000, Roberto Teixeira se tornou alvo da medida tendo sido
diretamente interceptado e investigado em razão da existência de evidências de seu provável envolvimento
em crime, o que torna a reclamação inócua. Diante das explicações acima, todas evidentes nos autos da
13
Idem.
medida mencionada, a referida notícia insere-se na estratégia de confundir a opinião pública, criando
factoides sem qualquer fundamento”.
Em seu esclarecimento, o MPF afirma, em síntese, que o número de telefone foi obtido na
internet, no site da “fone empresas” e que constava em nome da empresa LILS PALESTRAS, cuja quebra
foi deferida pelo juízo e que “há indícios do envolvimento direto de Roberto Teixeira na aquisição do Sítio
em Atibaia do ex-Presidente, com aparente utilização de pessoas interpostas. Então ele é investigado e não
propriamente advogado”.
De uma forma ou de outra, o fato envolve violações das prerrogativas dos advogados.
Inicialmente, custa acreditar que o MPF, dispondo de tantos bancos de dados para obter o telefone correto da
LILS PALESTRAS, empresa investigada, teria se valido de um numero que consta na internet, sem ter o
cuidado de averiguar se aquele número que se encontrava no site “fone empresas” realmente era da empresa
investigada e não do escritório de advocacia. Um equívoco lamentável, já que o próprio MPF diz que foi
levado a erro pelo site supramencionado.
O segundo argumento, entra em contradição com o primeiro. Ora, se o objetivo era investigar
o escritório de advocacia, já que na visão do MPF “um dos advogados era investigado”, por que não foi
requerida a quebra em nome do próprio advogado e sim em nome da LILS PALESTRAS ? O MPF deveria
pedir a quebra diretamente do advogado e não em nome da LILS PALESTRAS ...
Ademais, o fato de uma dos investigados ser advogado, autoriza a interceptação das conversas
dos outros 25 advogados do escritório e dos 300 clientes não investigados? Já que o MPF não fez a
interceptação intencionalmente, já que foi um equívoco ocorrido na fonte confiável da internet, por que
continuou a ouvir conversa de todos os advogados por todo o prazo da interceptação ? Por que não pediu o
desligamento do grampo, já que houve um equívoco?
Veja que: “A operadora de telefonia que executou a ordem para interceptar o ramal central
do escritório de advocacia Teixeira, Martins e Advogados já havia informado duas vezes ao juiz federal
Sergio Fernando Moro que o número grampeado pertencia à banca, que conta com 25 advogados.
Apesar disso, em ofício enviado ao Supremo Tribunal Federal nesta semana, Moro afirmou desconhecer
o grampo determinado por ele na operação lava jato14”.
Em resposta, os advogados Roberto Teixeira e Cristiano Zanin Martins afirmaram:
“Tomamos conhecimento na data de ontem (16/03/2016) de que o Juiz Federal Sérgio Moro, acolhendo
14
Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-31/operadora-informou-juiz-sergio-moro-grampo-escritorio, aceso em 23 de
julho de 2016.
pedido de Procuradores da República da Força Tarefa Lava Jato, autorizou nos autos do Processo nº
98.2016.4.04.7000/PR, a realização de interceptação do telefone celular do advogado Roberto Teixeira. O
advogado Roberto Teixeira funciona naquele processo e em outros procedimentos a ele relacionados como
advogado do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fato público e notório e comprovado por meio de
procuração juntada aos autos e pelo acompanhamento pessoal de atos processuais. Isso significa que a
intenção do juiz e dos membros do Ministério Púbico foi a de monitorar os atos e a estratégia de defesa do
ex-Presidente, configurando um grave atentado às garantias constitucionais da inviolabilidade das
comunicações telefônicas e da ampla defesa e, ainda, clara afronta à inviolabilidade telefônica garantia pelo
artigo 7º, inciso II, do Estatuto do Advogado (Lei nº 8.906/1994). Cite-se, como exemplo disso, a conversa
telefônica mantida entre o advogado Roberto Teixeira e o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no
momento em que este último foi surpreendido, no dia 04/03/2016, pela arbitrária condução coercitiva
determinada pelo próprio Juiz Federal Sérgio Moro. Toda a conversa mantida entre advogado e cliente e a
estratégia de defesa transmitida naquela oportunidade estava sendo monitorada e acompanhada por Moro e
pela Polícia Federal, responsável pela condução do depoimento. A justificativa do juiz Moro lançada no
processo para grampear o advogado foi a seguinte: “O advogado Roberto Teixeira, pessoa notoriamente
próxima a Luis (sic) Inácio Lula da Silva, representou Jonas Suassuna e Fernando Bittar na aquisição do
sítio de Atibaia, inclusive minutando as escrituras e recolhendo as assinaturas no escritório de advocacia
dele”. Essa afirmação é a maior prova de que Roberto Teixeira foi interceptado por exercer atos privativos
da advocacia — o assessoramento jurídico de clientes na aquisição de propriedade imobiliária — e não pela
suspeita da prática de qualquer crime. Moro foi além. Afora esse grampo ostensivo no celular de Roberto
Teixeira, também foi determinada a interceptação do telefone central do escritório Teixeira, Martins e
Advogados, gravando conversas dos advogados Roberto Teixeira e Cristiano Zanin Martins e de outros
membros que igualmente participam da defesa do ex-Presidente Lula e de seus familiares — inclusive no
processo sob a presidência do Juiz Moro. O grampo do telefone central do escritório foi feito de forma
dissimulada, pois o juiz incluiu o número correspondente no rol de telefones que supostamente seriam da
empresa LILS Palestras, Eventos e Publicações Ltda., que tem como acionista o ex-Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. A estratégia do juiz Sérgio Moro e dos membros da Força Tarefa Lava Jato resultou no
monitoramento telefônico ilegal de 25 advogados que integram o escritório Teixeira, Martins & Advogados,
fato sucedido com a também ilegal divulgação das conversas gravadas nos autos do processo, juntamente
com a divulgação de outras interceptações ilegais. Não é a primeira vez que o Juiz Moro protagoniza um ato
de arbitrariedade contra advogados constituídos para assistir partes de processos por ele presididos. Por
exemplo, no julgamento do HC 95.518/PR, pelo Supremo Tribunal Federal, há registros de que o juiz Moro
monitorou ilegalmente advogados e por isso foi seriamente advertido pelos Ministros daquela Corte em
28.05.2013. O Juiz Sérgio Moro se utiliza do Direito penal do inimigo, privando a parte do “fair trail”, ou
seja, do julgamento justo. Não existe a imprescindível equidistância das partes e tampouco o respeito à
defesa e ao trabalho dos advogados. Atenta contra o devido processo legal e a todas as garantias a ele
inerentes o fato de Moro haver se tornado juiz de um só caso, conforme resoluções emitidas pelo Tribunal
Regional Federal da 4ª. Região e atuar com pretensa jurisdição universal, atropelando até mesmo o sagrado
direito de defesa. Além das medidas correcionais e judiciais cabíveis, o assunto será levado à Ordem dos
Advogados do Brasil para que, na condição de representante da sociedade civil, possa também intervir e se
posicionar em relação a esse grave atentado ao Estado Democrático de Direito15
”.
Assim se manifestou a OAB: “O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
classificou como inadmissível a violação da comunicação entre advogado e cliente e ressaltou que o combate
à corrupção não pode ferir a Constituição. Reportagem da revista eletrônica Consultor Jurídico (AQUI)
revelou nesta quinta-feira (17/3) que o juiz Sergio Moro autorizou o grampo de 25 advogados do escritório
que atende ex-presidente Lula. A banca Teixeira, Martins e Advogados teve seu telefone central interceptado
e conversas dos advogados com mais de 300 clientes foram violadas. “É inadmissível no Estado
Democrático de Direito a violação das ligações telefônicas entre advogados e clientes”, afirmou ainda na
quinta à noite o presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia. Ele destaca que a gravação de
advogados e clientes, mesmo com autorização judicial, sem que os profissionais estejam sendo investigados,
fere prerrogativa garantida pela Lei 8.906 de 1994, o Estatuto da Advocacia. A Ordem quer combater a
impunidade e a corrupção. Defendemos a celeridade processual e o levantamento de sigilo destes processos
em nome de um princípio maior, que é o da informação, mas não podemos permitir que isso seja feito
ferindo a Constituição Federal”, ressaltou Lamachia16
”.
Conversas sigilosas entre clientes e advogados foram realizadas por pessoas não investigadas
e interceptadas pela polícia, estratégias de defesa foram devassadas, aspectos processuais e discussões
jurídicas, com certeza, chegaram ao conhecimento da polícia, gerando grande prejuízo para a advocacia e
para seus clientes. Com isso, percebe-se que a interceptação telefônica dos escritórios de advocacia está
sendo feita sem o devido cuidado. Fica claro que vivemos um cenário de grave atentado às garantias da
inviolabilidade das comunicações telefônicas entre clientes e advogados e da ampla defesa, com ofensa
direta ao Estatuto da Advocacia.
Mais uma miséria do processo penal atual...
15
Disponível em http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/03/moro-fez-grampo-ilegal-de-escritorio-de-
advocacia-diz-defesa-de-lula.html, acesso em 23 de julho de 2016. 16
Disponível em http://racismoambiental.net.br/?p=203657, acesso em 23 de julho de 2016.
8. A sétima miséria do processo penal brasileiro: a condução coercitiva de investigado e o direito de
não constituir prova contra si mesmo.
O princípio do “nemo tenetur se detegere” reflete a expressão “ninguém é obrigado a
constituir prova contra si mesmo”. Este princípio, que foi fortalecido na Convenção Americana sobre
Direitos Humanos como um direito fundamental do ser humano, restou descrito no artigo 8º, § 2º, alínea "g",
in verbis: “Garantias judiciais: G) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se
culpada”.
Para Paulo Queiroz: “Quanto às suas implicações penais e processuais penais, há um certo
consenso no sentido de que o princípio compreende: 1) o direito ao silêncio, preso ou solto o investigado
(CF, art. 5°, LXIII; CPP, art. 186), podendo, inclusive, responder a certas perguntas e não responder a outras,
silêncio que não pode ser interpretado em seu desfavor; 2) a necessidade de ser previamente informado dessa
garantia; 3) privilégio de não prestar juramento ou compromisso de dizer a verdade; 4) o direito de se recusar
a entregar documentos e de praticar qualquer comportamento ativo que o incrimine (fornecer material
grafotécnico etc.); 5) a recusa de participar de reconhecimento, acareação ou reprodução simulada dos fatos;
6) o direito de ser dispensado do interrogatório (CPP, art. 457, §2°, final); 7) a vedação de perguntas
capciosas, em tom de ameaça ou de elogio que induzam o indivíduo à confissão ou delação; 8) a irrelevância
da mentira para fins de individualização da pena1; 9) o direito de não se submeter ao teste de alcoolemia; 10)
a possibilidade de invocação do princípio perante qualquer juízo ou autoridade pública, cível ou criminal,
policial ou parlamentar; 11) a não caracterização dos delitos de falso testemunho, desobediência ou desacato,
quando no exercício estrito do privilégio; 12) a disponibilidade da garantia pelo colaborador na forma da Lei
n° 12.850/2013, art. 4°, §14°; 13) a ilegalidade de toda prisão fundada na recusa de colaborar com a
investigação; 14) aplicabilidade à pessoa jurídica17
”.
É exatamente o ponto “6) o direito de ser dispensado do interrogatório (CPP, art. 457, §2°,
final)” que nos interessa neste item, ou seja, a premissa de que o direito de não comparecer ao interrogatório
é um reflexo direto do direito de não constituir prova contra si mesmo.
Trata-se de um princípio que se relaciona diretamente com a ampla defesa, especificamente
no que tange ao direito à autodefesa. O réu, em seu de direito de autodefender-se pode ter conduta negativa
ou positiva. Pode agir positivamente para responder as perguntas da autoridade, se assim for conveniente à
sua autodefesa e dizer a verdade, ou não. Pode ainda não responder as perguntas de forma verdadeira, e disso
17
Queiroz, Paulo. Nemo tenetur. Disponível em http://www.pauloqueiroz.net/nemo-tenetur/ acesso em 26 de julho de 2016.
nenhuma consequência poderá advir, principalmente no tocante à presunção de culpa. Pode ainda deixar de
responder as perguntas da autoridade, valendo-se do direito ao silêncio, que também é reflexo do princípio
do “nemo tenetur se detegere”.
O que importa aqui é garantir ao réu o direito de não se prejudicar com seu próprio
depoimento, ou seja, é o direito de autopreservação que se impõe aqui. O réu não é obrigado a constituir
qualquer meio de prova que possa colocar em risco sua liberdade ambulatorial. A autopreservação é o que se
protege com esta garantia fundamental.
Em descompasso com esta garantia, assevera o artigo 260 do CPP: “Se o acusado não atender
à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser
realizado, a autoridade poderá mandar conduzí-lo à sua presença”.
Veja que tal dispositivo se já não se adéqua aos princípios constitucionais, também não mais
encontra amparo pela nova redação do art. 457 do CPP: “O julgamento não será adiado pelo não
comparecimento do acusado solto ... que tiver sido regularmente intimado. §2º.: Se o acusado preso não for
conduzido, o julgamento será adiado para o primeiro dia desimpedido da mesma reunião, salvo se houver
pedido de dispensa de comparecimento subscrito por ele ou seu defensor”.
O que se extrai deste dispositivo é que o réu pode deixar de comparecer ao julgamento do
Tribunal do Júri e, consequente, deixar de exercer sua autodefesa, se isso for necessário para sua melhor
estratégia defensiva. Ora, se é um direito fundamental a impossibilidade de submeter o acusado a qualquer
procedimento que possa resultar em uma prova prejudicial; se é uma garantia o direito de permanecer em
silêncio, o que justifica a determinação para o acusado comparecer à autoridade já que ele pode comparecer
e não dizer nada ?
As misérias, entretanto, não param por aí. Em julgamento no HC 107644/SP, o STF decidiu
que a condução coercitiva pode ser determinada pela autoridade policial sem ordem judicial, como um
reflexo direto do art. 6º., do CPP. Com isso, a condução coercitiva passa a ser um ato discricionário da
autoridade policial, sem o controle do judiciário. Vejamos mais um julgamento inconstitucional do próprio
STF: “HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONDUÇÃO DO
INVESTIGADO À AUTORIDADE POLICIAL PARA ESCLARECIMENTOS. POSSIBILIDADE.
INTELIGÊNCIA DO ART. 144, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO ART. 6º DO CPP.
DESNECESSIDADE DE MANDADO DE PRISÃO OU DE ESTADO DE FLAGRÂNCIA.
DESNECESSIDADE DE INVOCAÇÃO DA TEORIA OU DOUTRINA DOS PODERES
IMPLÍCITOS. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA POR DECISÃO JUDICIAL, APÓS A
CONFISSÃO INFORMAL E O INTERROGATÓRIO DO INDICIADO. LEGITIMIDADE.
OBSERVÂNCIA DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE JURISDIÇÃO. USO DE
ALGEMAS DEVIDAMENTE JUSTIFICADO. CONDENAÇÃO BASEADA EM PROVAS
IDÔNEAS E SUFICIENTES. NULIDADE PROCESSUAIS NÃO VERIFICADAS. LEGITIMIDADE
DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E
CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. ORDEM DENEGADA. I – A própria Constituição
Federal assegura, em seu art. 144, § 4º, às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de
carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais . II – O art. 6º do Código de
Processo Penal, por sua vez, estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade
policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito, todas dispostas nos incisos II a VI. III
– Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da autoridade policial competente (art. 4º do
CPP), para tomar todas as providências necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a
condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucio nais
dos conduzidos. IV – Desnecessidade de invocação da chamada teoria ou doutrina dos poderes
implícitos, construída pela Suprema Corte norte-americana e e incorporada ao nosso ordenamento
jurídico, uma vez que há previsão expressa, na Constituição e no Código de Processo Penal, que dá
poderes à polícia civil para investigar a prática de eventuais infrações penais, bem como para exercer
as funções de polícia judiciária. V – A custódia do paciente ocorreu por decisão judicial
fundamentada, depois de ele confessar o crime e de ser interrogado pela autoridade policial, não
havendo, assim, qualquer ofensa à clausula constitucional da reserva de jurisdição que deve estar
presente nas hipóteses dos incisos LXI e LXII do art. 5º da Constituição Federal. VI – O uso de
algemas foi devidamente justificado pelas circunstâncias que envolveram o caso, diante da
possibilidade de o paciente atentar contra a própria integridade física ou de terceiros. […]. (STF, HC
107644/SP, relator min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, publicado
em 18-10-2011)”.
Destaque-se o trecho: “III – Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da
autoridade policial competente (art. 4º do CPP), para tomar todas as providências necessárias à
elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos,
resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos”.
É incompreensível a decisão do STF. Ao final do texto no III exige que a autoridade
policial resguarde as garantias constitucionais, mas ele mesmo, o STF, em sua decisão, viola um
direito fundamental, no momento em que possibilita à autoridade policial determinar condução
coercitiva de investigado, de forma discricionária e sem fundamentação, sem considerar o direito de
ser dispensado do interrogatório, corolário do direito de não constituir prova contra si mesmo.
Tempos difíceis do processo atual...
O réu deve deixar seus afazeres para ir ao fórum ou à delegacia “dizer que nada tem a dizer” ?
Na expressão de Adauto Suannes: “o réu que, por força da Constituição Federal, tem o direito de ficar
calado, deve deixar seus afazeres habituais (com perda do dia de serviço, por exemplo), para ir ao fórum
dizer que nada tem a dizer, mesmo tendo defensor constituído, que o represente no processo e que, portanto,
pode falar por ele. Positivamente, é muito amor a nossa lusitana herança burocratizante18.”
Ressalte-se aqui que o fato do acusado ser intimado para o seu interrogatório e entendendo
este ato como um meio de autodefesa, o seu não comparecimento é também, em alguns casos, uma forma
defesa indireta e não um ato desrespeitoso ou uma desobediência à ordem judicial. Juízes, delegados e
promotores precisam entender o interrogatório como um meio de defesa, amparado pelo princípio do nemo
tenetur se detegere. Logo, determinar a condução coercitiva de investigado ou acusado, considerando que
ele tem o direito de permanecer calado, é uma violação à referida garantia fundamental e, consequentemente,
sua violação é mais uma miséria do processo penal atual.
9. A oitava miséria do processo penal brasileiro: o teste de integridade, as medidas anticorrupção e a
possibilidade de utilização do flagrante forjado.
O MPF lançou campanha nacional com o intuito de buscar assinaturas para a propositura de
um anteprojeto de lei de iniciativa popular intitulado as "10 medidas contra a corrupção" com o intuito de
modificar a legislação brasileira no que tange ao combate à corrupção.
Louvável seria a iniciativa do MPF se não fosse o conteúdo antigarantista e inconstitucional
de alguns de seus dispositivos. Dentre eles, destaca-se a possibilidade de utilização do flagrante forjado, ou
seja, a prática de “simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou o empregado, com o
objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para combater crimes contra a administração pública”.
18
SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2ª.ed. São Paulo: RT, 2004, p. 335.
É o que a doutrina chama de “teste de integridade” e consiste na “possibilidade de órgãos
públicos, por suas corregedorias, controladorias, ouvidorias, com a ciência do Ministério Público, submeter
seus agentes, de modo aleatório ou dirigido, à simulação de situações que envolvem questões morais e de
predisposição à prática de infrações contra Administração Pública, para fins disciplinares e para instrução de
ações cíveis, de improbidade administrativa e, ainda, persecução penal. O Anteprojeto, prevê, também, a
possibilidade de gravação do teste e a aplicação, no que couber, das normas da Lei Anticorrupção19
”.
Vejamos ainda: “A primeira proposta do MPF propõe que o Brasil passe a usar o flagrante
forjado. Nas palavras exatas: simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado,
com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração
Pública. Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, professor de Direito Processual Penal, a proposta soa
‘absurda’, é ‘imoral’, ‘inconstitucional e ilegal’. Ele ressalta que o Estado Moderno se fundou na presunção
de que o cidadão é honesto e inocente até que se prove o contrário. Segundo ele, um país que aprove o flagra
forjado está indo ‘no caminho da barbárie’, conforme escreveu em seu artigo. O tema foi também abordado
pelo juiz federal Flavio Antônio da Cruz: ‘Ao empregar o aludido teste, o Estado acaba por deitar por terra
um compromisso importantíssimo das democracias liberais: a crença de que o sistema de Justiça criminal
está destinado a garantir que nenhum inocente seja punido. A culpa deve ser aferida pela efetiva prática de
uma conduta objetiva e subjetivamente típica, ilícita e culpável, apurada sob devido processo’20
”.
Como se vê, pretende o referido anteprojeto a utilização de simulação de situações, sem o
conhecimento do agente, com o objetivo de testar sua conduta moral. Trata-se da utilização de estratagema
pelo próprio Estado com o intuito de simular situações que possam conduzir o funcionário público ao delito.
Ou, na expressão do anteprojeto, simular situações que possam comprovar a integridade dele.
Caso o referido anteprojeto seja aprovado, o Estado poderá se utilizar de situações que levem
o agente ao delito como a forjar ou preparar a cena do crime, num gesto que nos faz lembrar a figura do
algoz que prepara a sua ratoeira com a isca mais suculenta, pronta para disparar e capturar o roedor menos
avisado. É trama realizada pelo próprio Estado, com a ajuda dos seus agentes e equipamentos, e tem por
objetivo levar o funcionário público para uma verdadeira “cilada administrativa”.
E o pior de tudo é que as pessoas (em sua maioria) assinaram o anteprojeto sem saber o seu
conteúdo. Foram levadas pela “onda punitivista” como se estivessem “combatendo a corrupção” sem saber o
19
ZANELLATO, Vilvana Damiani. Teste de Integridade: 1ª Medida contra a Corrupção. Disponível em
http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/teste-de-integridade-1a-medida-contra-a-corrupcao/, acesso em 27 de julho de 2016. 20
Notícia extraída do site CONJUR disponível em http://www.conjur.com.br/2015-dez-09/grandes-criminalistas-criticam-
medidas-anticorrupcao-mpf acesso em 27 de julho de 2016.
que estão assinando e as repercussões desses conteúdos inconstitucionais, como bem asseverou Rubens
Casara: "Pense-se, por exemplo, no paradoxo que seria uma campanha, paga com dinheiro público, com o
objetivo de recolher assinaturas para um projeto de lei de iniciativa 'popular', na qual se pede para 'quem for
contra a corrupção' assinar o documento, isso sem que os signatários sejam informados do conteúdo do
projeto, das repercussões constitucionais, sociais ou mesmo econômicas das medidas propostas e, em
especial, dos reflexos do projeto no campo das liberdades públicas21
".
Mais um ataque às garantias constitucionais, mais uma miséria do processo penal atual.
10. A nona miséria do processo penal brasileiro: as medidas anticorrupção, a tentativa de inversão do
ônus da prova e a possibilidade de utilização da prisão preventiva para obrigar o réu a devolver o
produto do crime.
As medidas anticorrupção ainda conseguem violar mais garantias do processo penal. Trata-se
de verdadeiro retrocesso ao sistema processual penal constitucional, com afrontas diretas aos direitos
fundamentais. Pela leitura do texto, extrai-se que a prisão preventiva pode ser utilizada para obrigar o réu a
devolver o produto do crime.
Vale a transcrição da notícia do site CONJUR: “Um outro item proposto pelo Ministério
Público Federal prevê a prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado. Para o
criminalista Marcelo Leonardo a medida é um contra-senso. “É absurdo propor no país cuja constituição
proíbe a prisão por dívida, uma proposta de prisão preventiva a obrigar pessoas a supostamente devolver
dinheiro”, afirma. ... ‘O que querem na verdade fazer é uma presunção de que se você não encontrar os
valores supostamente desviados, justificaria a prisão preventiva. Isso fere profundamente qualquer parâmetro
de presunção de inocência’, afirma. Na opinião de Lúcio Delfino, a proposta da prisão preventiva fere a
Constituição. ‘Se ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado, como reza nossa
Constituição Federal, como admitir a validade de prisões com fins de evitar dissipação do dinheiro
desviado?’, questiona. Para ele, não há devido processo quando o acusado é tratado como se culpado
fosse22
”.
21
Disponível em http://www.justificando.com/2015/12/10/especialistas-de-peso-condenam-medidas-contra-a-corrupcao-
propostas-pelo-mpf/, acesso em 28 de julho de 2016. 22
Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/ministros-advogados-apontam-inconsistencias-propostas-mpf, acesso em
03 de agosto de 2016.
Para Lenio Streck: “O MPF quer que seja possível decretar prisão preventiva para ‘permitir a
identificação do produto e proveito do crime’ ou ‘assegurar sua devolução’ ou ‘evitar utilização para fuga ou
defesa’. Será que entendi? O cidadão pode ser preso como forma de pressão para que devolva o dinheiro? A
prisão como forma de coação? Claro, seguem a linha da prisão para celebrar ‘delação’. Adverte o MPF que
‘não se trata de prisão por dívida’! Claro que não. Afinal, se permitem a ironia, sequer uma dívida foi
constituída ainda! Sequer um julgamento ocorreu! Chamando as coisas pelo nome: É uma prisão como
constrangimento, coação, simplesmente para que o acusado entregue o dinheiro23
”.
O que propõe o MPF por meio de iniciativa popular é exatamente o que apontou Lenio Streck.
É a utilização da prisão preventiva para coagir o preso a devolver o produto ou proveito do crime. O
indivíduo só receberá a liberdade se devolver o dinheiro ilícito. Isso sem que haja julgamento de mérito
sobre a causa. É a antecipação de um dos efeitos da sentença condenatória, sem que ela nem mesmo exista. É
o desvirtuamento da prisão preventiva numa tentativa de extorquir o preso para que devolva o dinheiro, ou
devolve ou permanece preso, como se os requisitos da prisão preventiva não importassem para ele, mas
apenas a devolução do dinheiro e, com isso, confesse o crime. É uma confissão à moda medieval, com
tortura psicológica e restrição da liberdade.
Ora, a partir do momento que o preso devolve o dinheiro ele se alia diretamente ao fato.
Trata-se sim de uma confissão da ação principal ou da secundária, se ele não corrompeu ou foi corrompido,
recebeu o dinheiro ilegal. Logo, terá de confessar e entregar o dinheiro desviado. O que vemos aqui é uma
extorsão para obtenção de confissão e devolução do dinheiro, como única forma de obtenção da liberdade.
Isso já vem sendo feito em sede de delação premiada, o que querem é ampliar a utilização da
“extorsão”, agora para obtenção de devolução de valores supostamente desviados, já que não houve trânsito
em julgado ainda. É o processo penal do “vale tudo”. Tudo vale para condenar e obter resultados favoráveis
à acusação... até mesmo prender para receber o produto/proveito do delito, antes mesmo do resultado final
do mérito da ação penal.
Mas não é só isso. Tem mais...
O MPF em seu anteprojeto busca a inversão do ônus da prova e quer punir criminalmente
servidores públicos que enriqueceram de forma não compatível com os ganhos do cargo e não conseguirem
provar que o dinheiro veio de meio lícito. Como se vê, não é mais a acusação que deve provar que o dinheiro
é ilícito, mas sim o réu que deve provar que a origem do dinheiro é lícita.
23
STRECK, Lenio Luiz. O PACOTE ANTICORRUPÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E O FATOR MINORITY REPORT.
Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-03/senso-incomum-pacote-anticorrupcao-mpf-fator-minority-report, acesso
em 03 de agosto de 2016.
Inverteram-se os papeis...
Ainda na expressão de Lenio Streck: “Sugere o MPF o crime de ‘enriquecimento ilícito’, no
qual o agente é culpado caso não consiga explicar o aumento de seu patrimônio. Nítida inversão do ônus da
prova. Segundo o MPF, isso não seria inversão, mas ‘escolher a única explicação para a discrepância’, com
‘base na experiência’. Nessa mesma linha, é proposto o chamado ‘confisco alargado’, onde diante da
condenação por determinados crimes a diferença entre o patrimônio existente e aquele cuja origem foi
demonstrada é perdido. Trata-se, como o próprio MPF reconhece na justificativa, de uma ‘presunção
razoável’ da ilicitude (sic). Sim, vocês leram corretamente: Presunção Razoável da Ilicitude! Não sei o que é
pior: condenar com base na inversão do ônus da prova ou partindo de uma presunção?24
”.
O MPF pugna por meio do seu anteprojeto que o réu deve demonstrar que é honesto, ou seja,
o réu deve provar que é um homem de bem, que os seus ganhos são lícitos e que é inocente. A acusação não
quer mais o encargo de provar a culpabilidade do réu.
Não se respeita mais a Constituição, não importa mais a Convenção Americana de Direitos
Humanos, o princípio da presunção de inocência. Nada vale. Somos considerados culpados, até que
comprovemos a nossa inocência.
Não é este “Estado de Exceção” que nós queremos...
11. A décima miséria do processo penal brasileiro: o perigo do processo penal “fast-food”.
Recentemente, a imprensa nacional noticiou o caso de uma condenação criminal em apenas três
dias. Vejamos a notícia: “O Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), por meio da Promotoria de
Justiça de Xapuri, ofereceu denúncia contra acusado de crime de roubo, ainda em audiência de custódia,
possibilitando a instrução do processo e condenação do réu no mesmo dia. No caso concreto, o réu foi preso
no dia em flagrante pela polícia após a prática de crime de roubo de um aparelho celular. No inquérito
policial, confessou o crime, bem como, foram apreendidas, em seu poder, o telefone da vítima e a arma
branca utilizada para a prática do delito. Apresentado em audiência de custódia, seu flagrante foi
devidamente homologado e a prisão convertida em preventiva. Na mesma ocasião, já foi oferecida denúncia
24
STRECK, Lenio Luiz. O PACOTE ANTICORRUPÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E O FATOR MINORITY REPORT.
Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-03/senso-incomum-pacote-anticorrupcao-mpf-fator-minority-report, acesso
em 03 de agosto de 2016.
que, devidamente recebida pelo magistrado, Luis Gustavo Alcalde Pinto, abriu vista ao advogado do réu, que
já ofereceu também em audiência a defesa preliminar. Designada a instrução processual para o mesmo dia,
restou ao réu condenado a pena de cinco anos e quatro meses de reclusão em regime inicial semiaberto25
”.
Como se pode perceber, o réu foi condenado em apenas três dias. Pode-se afirmar que a
preocupação com a morosidade processual é superior à inquietude por uma possível justiça carente de
qualidade. Talvez porque a análise da qualidade da prestação jurisdicional exige um estudo mais complexo,
enquanto que a análise da morosidade processual exige um critério mais objetivo26
.
Daí a necessidade de se analisar o direito fundamental a um processo sem dilações indevidas e
como isso pode influenciar, decididamente, na impossibilidade de acesso à justiça. Por dilações indevidas,
pode-se entender ser um conceito jurídico indeterminado que não se identifica somente com o mero
transcurso do tempo dos prazos processuais. Tal conceito exige uma análise do conteúdo concreto em cada
caso, atendendo a critérios objetivos congruentes com seu enunciado genérico27
.
Os juízes estão obrigados a garantir este direito, mesmo quando essa dilação se deva à carência
ou falta de estrutura da própria organização judicial. Não é possível restringir-se o alcance e o conteúdo
deste direito mesmo na hipótese de má administração do dinheiro público o que resulta na carência de
estrutura da própria administração pública, ao contrário, exige-se dos juízes o cumprimento de sua função
jurisdicional, garantindo a liberdade, a justiça e a segurança com a celeridade que permita a duração razoável
do processo28
.
Essa lentidão dos processos tanto pode ser causada por ações ou por omissões. A omissão faz
com que o magistrado deixe de realizar atos necessários ao bom andamento da causa, gerando morosidade
processual. De outro lado, ações indevidas como a suspensão de uma audiência indevidamente, ou a
admissão de uma prova desnecessária, podem ter caráter eminentemente protelatório29
.
A duração de um processo pode estar relacionada com a complexidade da causa ou com a
conduta pessoal das partes, que geram demoras desnecessárias, carentes de uma finalidade defensiva
25
Disponível em http://www.delegados.com.br/noticias/promotor-oferece-denuncia-em-audiencia-de-custodia-e-obtem-
condenacao-de-reu-em-apenas-3-dias#sthash.lBurUAnr.dpuf, aceso em 03 de agosto de 2016. 26
QUIRÓS, Joaquím García Bernaldo de. El derecho fundamental a um proceso sin dilaciones indebidas. Derechos procesales
fundamentales. Madri: Manuales de formación continuada, n. 22, 2004, p.414. 27
QUIRÓS, Joaquím García Bernaldo de. El derecho fundamental a um proceso sin dilaciones indebidas. Derechos procesales
fundamentales. Madri: Manuales de formación continuada, n. 22, 2004, p. 416. 28
QUIRÓS, Joaquím García Bernaldo de. El derecho fundamental a um proceso sin dilaciones indebidas. Derechos procesales
fundamentales. Madri: Manuales de formación continuada, n. 22, 2004, p.419. 29
QUIRÓS, Joaquím García Bernaldo de. El derecho fundamental a um proceso sin dilaciones indebidas. Derechos procesales
fundamentales. Madri: Manuales de formación continuada, n. 22, 2004, p. 428.
plausível. Dessa forma, surgem no processo o que Zapater chamou de tempos mortos, ou seja, períodos de
tempo gastos sem efetividade para o processo30
.
Mas repita-se: não é uma celeridade a qualquer custo e de qualquer forma31
. A celeridade no
processo penal deve ser uma celeridade garantista, um verdadeiro equilíbrio entre os direitos fundamentais e
a morosidade que acaba por ser verdadeira hipótese de negação da tutela jurisdicional32
.
A morosidade do processo penal é flagrante quando estamos diante de um caso de réu preso.
Sem dúvida a prisão extemporânea ou exagerada é uma ilegalidade manifesta. Quanto mais tempo demora o
processo, mais tempo permanece o réu encarcerado, sem uma conclusão definitiva do mérito da causa.
Entretanto, a dilação indevida do processo também deve ser reconhecida quando o réu estiver solto, pois o
processo penal, em si mesmo, já é um estigma de angústia33
.
A prisão só deve prevalecer enquanto cumpre a sua função cautelar, por isso a prisão somente
deverá ter duração tanto subsistam os motivos que a ocasionaram, devendo ser posto imediatamente em
liberdade o preso quando desaparecidos os pressupostos que concorreram para adotá-la ou quando se declare
sua inocência. A gravidade desta medida cautelar tem gerado uma necessária consciência de proteção do
direito da liberdade, daí a necessidade de fixar limites máximos para sua duração34
.
Para que seja garantido o acesso à justiça exige-se a necessidade de um processo eficaz. Para
alcançá-lo exige-se a apreciação da causa por juiz competente, uma resposta jurisdicional rápida e uma
30
ZAPATER, Enrique Bacigalupo. La noción de um proceso penal com todas las garantias. Derechos procesales fundamentales.
Madri: Manuales de formación continuada, n. 22, 2004, p. 509. 31
Para CANOTILHO: “Note-se que a exigência de um direito sem dilações indevidas, ou seja, de uma proteção judicial em tempo
adequado, não significa necessariamente justiça acelerada. A aceleração da proteção jurídica que se traduza em diminuição de
garantias processuais e materiais (prazo de recurso, supressão de instâncias). Noutros casos, a existência de processos céleres,
expeditos e eficazes – de especial importância do direito penal mas extensiva a outros domínios- é condição indispensável de uma
proteção jurídica adequada (exemplo: prazos em casos de habeas corpus, apreciação da prisão preventiva dentro do prazo de 48
horas, suspensão da eficácia de actos administrativos, procedimentos cautelares)”. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
constitucional. 6ª. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993, p.652/653). 32
Veja a expressão de AURY LOPES JR: “Já advertimos do grave problema que constitui o atropelo das garantias fundamentais
pelas equivocadas políticas de aceleração do tempo do direito. Agora, interessa-nos o difícil equilíbrio entre os dois extremos: de
um lado, o processo demasiadamente expedito, em que se atropelam os direitos e garantias fundamentais, e, de outro, aquele que
se arrasta, equiparando-se à negação da (tutela da) justiça e agravando todo o conjunto de penas processuais ínsitas ao processo
penal”. (LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, volumeI, 5ª. ed. rev. e atual. Rio de
Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 144). 33
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, volumeI, 5ª. ed. rev. e atual. Rio de
Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 145. 34
VILAR, Silvia Barona. Garantías y derechos de los detenidos. Derechos procesales fundamentales. Madri: Manuales de
formación continuada, n. 22, 2004, p. 91.
decisão devidamente fundamentada. Além disso, deve ser reconhecida a possibilidade de um processo em
útil, pois justiça tardia equivale à denegação de acesso à justiça35
.
A experiência histórica revela que em uma sociedade autoritária as garantias fundamentais são
reduzidas, enquanto que nas sociedades livres, as garantias fundamentais são preservadas. Por outro lado,
poder-se-ia dizer que uma maior proteção do não culpável só aumenta a possibilidade de absolver-se um
culpável. Tal fato não corresponde à realidade. Neste esquema de protótipos ideais, pode-se dizer que os
regimes autoritários, se caracterizam por um nível de baixa proteção do não culpável, com grande risco de se
condenar um inocente36
.
O julgamento das causas penais, de forma célere demais, nem sempre reflete o valor justiça. A
questão do julgamento justo exige a análise de questões extra temporais. Para que haja um julgamento justo,
o magistrado deve analisar o processo em seu aspecto formal e substancial.
Inicialmente, deve analisar se foi respeitado o aspecto formal do procedimento, ou se ocorreram
nulidades durante o curso processual. Deve analisar se foi respeitado o devido processo legal e todas as
garantias do acusado, como por exemplo, se houve ampla defesa, se o réu foi acompanhado de advogado de
sua confiança ou se foi julgado por um juiz competente.
Em seu aspecto substancial, deve o magistrado analisar o mérito da causa, decidindo as questões
de fundo com a apreciação livre das provas para chegar a uma decisão condenatória ou absolutória. Tal
decisão deve ser realizada com o devido cuidado, numa análise minuciosa de todos os fatos que circundam o
caso penal.
Para essa análise minuciosa, o tempo, muitas vezes, é necessário. A instrução processual pode
demorar e essa demora, é necessária para a conclusão justa do processo criminal. Não se pode buscar uma
celeridade a qualquer custo. Qualquer forma de violação aos direitos fundamentais do réu é arbítrio e
autoritarismo, inadmissíveis no processo penal.
No caso do Acre, não consigo acreditar que réu teve defesa ampla, já que a confissão foi
utilizada como uma prova absoluta. Por isso, a necessidade de um cuidado maior com o tempo no processo
penal. O processo penal “fast-food’ é antigarantista e, bem por isso, pode-se concluir que deve haver um
35
“A proteção jurídica através dos tribunais implica a garantia de uma proteção eficaz. Neste sentido, ela engloba a exigência de
uma apreciação, pelo juiz, da matéria de facto e de direito, objecto do litígio ou da pretensão do particular, e a respectiva resposta
plasmada numa decisão judicial vinculativa”. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6ª. ed. rev. Coimbra:
Almedina, 1993, p.652). 36
ZAPATER, Enrique Bacigalupo. La noción de um proceso penal com todas las garantias. Derechos procesales fundamentales.
Madri: Manuales de formación continuada, n. 22, 2004, p. 471.
equilíbrio entre a dilação indevida e a celeridade antigarantista. Preferíveis as palavras de Carnelutti, tão
atuais: “A semente da verdade necessita, às vezes, de anos, ou mesmo de séculos, para tornar-se espiga... O
processo dura; não se pode fazer tudo de uma única vez. É imprescindível ter-se paciência. Semeia-se, como
o faz o camponês e é preciso esperar para colher-se... O Slogan da justiça rápida e segura, que anda na boca
dos políticos inexperientes, contém, lamentavelmente, uma contradição in adjesto: se a justiça é segura, não
é rápida; se é rápida, não é segura37
”.
12. Conclusão.
As misérias do processo penal continuam nos nossos dias, aqui reveladas em graves violações
aos direitos e garantias processuais penais. O discurso de impunidade que surge das ruas ganha força e serve
para rasgar a constituição, criando um processo penal cuja punição é buscada a qualquer custo e de qualquer
forma. Direitos não importam mais, garantias são relativizadas e o arbítrio virou a regra do sistema
processual de hoje.
Vale tudo no combate ao crime ? As regras do jogo não servem pra nada ? O discurso
punitivista extraído das ruas só revelará sua ignomínia quando o próximo acusado for um de nós,
principalmente numa acusação injusta e desmedida. Aí sim, saberemos que o processo penal é muito mais do
que um conjunto de regras de procedimento, que é, em verdade, um conjunto de garantias que jamais podem
ser violadas sob pena de retornarmos ao modelo inquisitivo, característico de governos autoritários e
ditatoriais.
Depois de tantas violações às garantias do processo penal, o indivíduo é condenado e vai
preso, sem o respeito às regras do jogo e cumpre sua pena... O processo garantista já é um martírio, um
processo fascista, ainda mais... Depois de cumprir a pena, o réu pensará que tudo terminou ... o que não é
verdade na expressão de Carnelutti: “As pessoas creem que o processo penal termina com a condenação, não
é verdade; as pessoas creem que a pena termina com a saída do cárcere e não é verdade. As pessoas creem
que o cárcere perpétuo seja a única pena para toda a vida; e não é verdade. A pena não termina nunca. Quem
em pecado está perdido, Cristo perdoa, mas os homens não”.
37
CARNELUTTI, Francesco. Diritto e processo. Napoli: Morano, 1958, p. 158.
13. Referências.
BADARÓ. Gustavo. Quem está preso pode delatar?. Disponível em http://jota.uol.com.br/quem-esta-preso-
pode-delatar, acesso em 03 de agosto de 2016.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6ª. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993
CARNELUTTI, Francesco. Diritto e processo. Napoli: Morano, 1958.
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LEMOS, Bruno Espiñeira. Delação premiada e prisão preventiva (não estamos em Berlim). Disponível em
http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/delacao-premiada-e-prisao-preventiva-nao-estamos-em-berlim/,
acesso em 23 de julho de 2016.
LOPES JR, Aury. Fim da presunção de inocência pelo STF é nosso 7 a 1 jurídico. Disponível em
http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/limite-penal-fim-presuncao-inocencia-stf-nosso-juridico, acesso em
07 de julho de 2016.
- Direito processual penal e sua conformidade constitucional, volumeI, 5ª. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Lumem Juris, 2010.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal Ferreira. São
Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1996.
QUEIROZ, Paulo. Nemo tenetur. Disponível em http://www.pauloqueiroz.net/nemo-tenetur/ acesso em 26
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QUIRÓS, Joaquím García Bernaldo de. El derecho fundamental a um proceso sin dilaciones indebidas.
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STRECK, Lênio Luiz. Teori do STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declarar inconstitucional.
Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-fev-19/streck-teori-contraria-teori-prender-transito-julgado,
acesso em 07 de julho de 2016.
- O PACOTE ANTICORRUPÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E O FATOR MINORITY REPORT.
Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-03/senso-incomum-pacote-anticorrupcao-mpf-fator-
minority-report, acesso em 03 de agosto de 2016.
SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2ª.ed. São Paulo: RT, 2004.
VILAR, Silvia Barona. Garantías y derechos de los detenidos. Derechos procesales fundamentales. Madri:
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ZANELLATO, Vilvana Damiani. Teste de Integridade: 1ª Medida contra a Corrupção. Disponível em
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