as (multi)mulheres das crÔnicas de martha … · também mulheres! vacilam quando a nossas mais...
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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES
CURSO DE PSICOLOGIA
AS (MULTI)MULHERES DAS CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS: A
VONTADE DE TUDO NA CONTEMPORANEIDADE
Bruna Wendt
Lajeado, novembro de 2012
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Bruna Wendt
AS (MULTI)MULHERES DAS CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS: A
VONTADE DE TUDO NA CONTEMPORANEIDADE
Monografia apresentada na disciplina de
Trabalho de Conclusão de Curso II, do
Curso de Psicologia, do Centro Universitário
UNIVATES, como parte da exigência para a
obtenção do título de Bacharel em
Psicologia.
Orientadora: Profª. Ms. Débora de Moraes
Coelho
Lajeado, novembro de 2012
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“Mas desejo também que desejes com audácia, que desejes uns sonhos descabidos e que
ao sabê-los impossíveis não os leve em grande consideração, mas os mantenha acesos,
livres de frustração, desejes com fantasia e atrevimento [...] E desejo, principalmente, que
desejes desejar, que te permitas desejar, pois o desejo é vigoroso e gratuito [...].”
Martha Medeiros
“Toda mulher leva um sorriso no rosto e mil segredos no coração.”
Clarice Lispector
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Paulo e Noemia, por todo apoio e compreensão que
recebi durante todos os anos de graduação. A dedicação de vocês tornou possível a
realização de um sonho. Obrigada por todo amor e carinho. Essa conquista também
é de vocês!
A minha irmã Fabíola, por inspirar-me profissionalmente e pelo amor em
comum à Psicologia; e ao meu cunhado Fernando, pelas palavras de incentivo e
encorajamento.
A minha orientadora, Débora de Moraes Coelho, um agradecimento especial
por tornar-se minha companheira nesta caminhada. Sempre tão sensível, com
palavras afetuosas capazes de reduzir a ansiedade pela incerteza do que estava por
vir. Obrigada por acolher minhas ideias e pelos momentos de construção e
reconstrução.
À amiga, e quase irmã, Érica Franceschini, que não mediu esforços para
auxiliar-me nesta produção. Obrigada pelos abraços acolhedores e reconfortantes.
Nossa amizade fez cada minuto valer a pena.
A todos os colegas, amigos e familiares, obrigada por compartilharem comigo
momentos tão importantes da minha graduação e da minha vida. Foi fundamental tê-
los ao meu lado nesse percurso.
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RESUMO
Diante das particularidades de um novo tempo-espaço que a atualidade vem nos apresentando, este trabalho tem como objetivo refletir a respeito das multimulheres contemporâneas, utilizando como dispositivo de análise e pesquisa crônicas selecionadas nas obras de Martha Medeiros. Quer-se pensar sobre os modos-mulher que a atualidade está produzindo e reforçando, interferindo diretamente na construção da subjetividade feminina. Questiona-se também de que forma a mulher, mesmo envolvida pelos modos capitalistas de assujeitamento, pode encontrar brechas para singularizar-se a fim de construir novos modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção e modos de criatividade que potencializem uma subjetividade singular (GUATTARI; ROLNIK, 2005). O trabalho desenvolvido baseia-se em uma pesquisa qualitativa e bibliográfica, sendo esta uma escrita cartográfica que se destina a acompanhar os processos de produção do feminino que estão sendo construídos e articulados, alinhando-se sempre ao discurso de determinado contexto histórico-social.
Palavras-chave: Mulheres. Capitalismo. Singularizar-se. Devir.
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ABSTRACT
In front of the particularities of a new time-space that the present time has been presenting to us, this paper aims to reflect upon the multi-contemporary women, using as device of analysis and research short stories, selected in the works of Martha Medeiros. It is thought about the woman ways that the present times has produced and reinforced, interfering directly in the construction of female subjectivity. Wonders also how the woman, even involved by capitalist modes of subjection, can find time to single up to build new ways of sensibility, ways of relationship to each other, ways of production and ways of creativity that leverage singular subjectivity (GUATTARI; ROLNIK, 2005). The work is based on a qualitative research and literature, being a cartographic writing that is intended to monitor the production processes of the female being constructed and articulated, always aligned to the speech of a particular socio-historical context. Keywords: Women. Capitalism. Singled up. To become.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 01 – Vazio existencial .....................................................................................18
Figura 02 – Da vida e uma de suas injustiças mais freqüentes.................................26
Figura 03 - “O que você quer ser quando crescer”, década a década.......................37
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SUMÁRIO
1 PRÉ-INTRODUÇÃO: UM DEVANEIO INICIAL ....................................................... 8
2 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10
3 CARTOGRAFANDO AS (MULTI)MULHERES ...................................................... 13
4 AS (MULTI)MULHERES DAS CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS: A VONTADE DE TUDO NA CONTEMPORANEIDADE ............................................... 19 4.1 A subjetividade capitalista ................................................................................... 19 4.2 As (Multi)Mulheres da atualidade ........................................................................ 27 4.3 A ousadia de singularizar-se ............................................................................... 38
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 47
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 50
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1 PRÉ-INTRODUÇÃO: UM DEVANEIO INICIAL
Prosa e verso. Quem disse que
eu não saberia rimar? Mulheres
múltiplas, multimulheres. Ultimamente
tenho pensado sobre elas... aliás,
sobre nós. E aqui também não fico de
fora, sou mulher, mulheres: instigantes
e inconclusivas. Já que insistem em
desvendar nossos mistérios, aí vai um
recado: não se apressem.
Temperamento sanguíneo,
sorriso fulminante. O olhar arredio
insiste em manter-se em movimento.
Nem Da Vinci, com toda sua
versatilidade artística, poderia captar
nossas mais sublimes formas. Lutam
pelo que querem, mas querem que
lutem por elas.
Mesmo nuas, desejam estar
cobertas de razão. Quanta pretensão.
Tarde demais, deram asas a nossa
imaginação, voamos longe.
Românticas, por vezes perversas.
Querem um amor para vida toda, mas
toda vida para muitos amores.
Encaremos os fatos: de Cinderela
e Bruxa, todo mundo tem um pouco.
Príncipes (des)encantados. Esqueçam
os comerciais de margarina. Uma dose
de insegurança, por favor, com limão e
gelo. No quebra-cabeça, sempre
faltam peças. São largas lacunas,
intransponíveis.
Elas são mães, pais, esposas,
namoradas, donas-de-casa,
empregadas, empregadoras e hoje,
também mulheres! Vacilam quando a
ordem é despreocupar-se; mas não
titubeiam quando se sentem
desafiadas. Vai encarar? São
mulheres, femininas e masculinas, um
pouco de tudo e de tudo um pouco.
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Politicamente (in)corretas.
Espontâneas e desconcertantes.
Mulheres, por vezes meninas. Lêem
Nietzsche e Kafka, mas não
dispensam os contos de fadas dos
Irmãos Grimm. É o poder atômico de
sua amarga doçura.
Seres errantes, destino incerto.
Nômades. Pulam de galho em galho,
que hábito estranho. Ainda buscam o
que não sabem. Recuperam o fôlego.
Compromisso descompromissado.
Frias ou quentes, mornas nunca! Que
tal um manual (nada) prático para
(des)entender as mulheres?
Querem suas histórias
estampadas no Arquivo Confidencial e
esperam que o final feliz nunca chegue
ao fim. Sonham com acontecimentos
diários. Querem ser surpreendidas. E
quem não quer? Absorvem demais,
expelem de menos. É uma culpa
hormonal, promíscua, irreverente. E
que graça teria se não fosse assim,
visceral?
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2 INTRODUÇÃO
“Outro dia acordei com uma espécie de ressaca existencial, sentindo necessidade de me desintoxicar, e era óbvio que o alívio não viria com um simples gole de Coca-Cola. Precisava, antes de tudo, descobrir o que é que estava me pesando, e logo percebi que não era excesso de álcool, nem de cigarros, nem de noitadas, os bodes expiatórios clássicos do mal-estar, e sim excesso de mim.” (Martha Medeiros).
Ultimamente temos gasto tanto tempo pensando em assuntos referentes a
nós mesmos que por vezes sentimo-nos asfixiados pela necessidade de
corresponder às expectativas alheias, “buscando metas irreais, vivendo de frente pro
espelho e de costas pro mundo” (MEDEIROS, 2012a, p. 190). A Pós-Modernidade
tem nos exigido cada vez mais: a mulher, além de boa mãe e esposa presente, deve
garantir o sucesso em sua atividade profissional e manter um corpo esbelto e
saudável: são as multimulheres, para as quais as funções foram acumulando-se ao
longo do tempo. Ao poucos, a mulher foi recebendo novas atribuições e à medida
que as exigências ampliam-se, sente-se culpada por não cumpri-las de forma
brilhante e admirável.
Guattari (1992) aponta que o ser humano contemporâneo é
fundamentalmente desterritorializado, sendo que a subjetividade entrou no reino de
um nomadismo generalizado, não possuindo habitação fixa: é uma vontade de tudo
e, ao mesmo tempo, de nada. A atualidade nos expõe às particularidades de um
novo tempo-espaço, “o capital se apropria da plasticidade subjetiva para reverter
suas criações em produtos. Consumimos possíveis modos de ser, pensar, fazer”
(ROOS, 2006, p. 20). Consome-se pela necessidade de sentir-se incluído nos
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grupos sociais capitalistas os quais, com o objetivo de se manterem fortalecidos,
tendem a excetuar aqueles que não se adaptam ao modelo previsto.
Diante destas mudanças e transformações temporais, este trabalho
apresentado para a conclusão do Curso de Psicologia do Centro Universitário
UNIVATES terá como finalidade destinar um olhar crítico ao cenário atual e discutir
os modos-mulher que o contemporâneo vem produzindo e potencializando,
apontando a capacidade de singularizar-se possível a cada mulher. Para tanto,
utilizar-se-á como dispositivo de pesquisa e análise dez crônicas selecionadas nas
obras de Martha Medeiros, escritora gaúcha que explora o cotidiano feminino como
tema principal de suas obras.
Refletirá ainda a respeito da subjetividade enquanto potência psíquica, força-
viva que, assim como reflete Bauman (2004) possui infinitas possibilidades
instituintes de tecer um território existencial e subjetivo em contrapartida à
serialização e à reterritorialização propostas a cada minuto pela economia
capitalista. Frente às produções contemporâneas e a partir das crônicas de Martha
Medeiros, questiona-se, então, como se pode pensar a subjetivação feminina na
atualidade?
O trabalho será dividido em três capítulos sendo que o primeiro,
“Subjetividade capitalista”, procurará identificar de que maneira os modos de
produção capitalista vêm interferindo na construção de subjetividade dos sujeitos,
entendendo esta última como sendo essencialmente fabricada e modelada no
registro social (GUATTARI; ROLNIK, 2005). No segundo capítulo, “As
(multi)mulheres da atualidade”, será realizada uma breve contextualização histórica
a respeito das lutas do Movimento Feminista na tentativa de compreender como os
direitos conquistados foram determinantes para a mulher lançar-se, também, à cena
pública. Com a pretensão de dar conta de todas as atividades, sobrecarregam-se,
interferindo em sua produção subjetiva. No terceiro capítulo, “A ousadia de
singularizar-se”, questionar-se-á de que forma a mulher, mesmo envolvida pelos
modos capitalistas de coerção e assujeitamento, pode singularizar-se,
potencializando movimentos instituintes acerca de sua realidade.
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A relevância do trabalho encontra-se em problematizar a produção de
subjetividade que o contemporâneo vem produzindo na mulher. Além de apresentar
o cenário contemporâneo, refletir-se-á sobre os modos de vida oferecidos,
desejados e consumidos por elas, sendo que este estudo deseja fomentar o debate
a respeito da questão do feminino, rediscutindo aspectos emergentes do
contemporâneo, como a ideia da multimulher.
As crônicas, em que tudo é motivo de experiência e reflexão, foram o material
de pesquisa e análise escolhido para o trabalho. Constituem-se de relatos em
permanente relação com o tempo, alinham-se aos acontecimentos mundanos e
cotidianos; são narrativas despretensiosas, porém investigativas já que dão
visibilidade aos acontecimentos do dia a dia. Soma-se a isso o gosto pessoal pela
leitura de Martha Medeiros que, de uma forma sensível e divertida, acolhe as
demandas atuais aproximando-se de quem a lê. Acompanhá-la em livros, jornais e
outros meios midiáticos potencializa um repensar sobre determinados assuntos, é
uma reflexão constante a respeito do nosso tempo e das subjetividades produzidas
e sustentadas nele e por ele.
Portanto, esta pesquisa seguirá atravessada por questões que lançam o
pesquisador a investigar o ser mulher no século XXI. Logo, entendendo-se a
Psicologia como uma área em constante reatualização de suas reflexões e ações, o
tema demonstra-se relevante, pois faz repensar as práticas e os cuidados em saúde
destinados ao público feminino, considerando sua demanda atual, porém singular.
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3 CARTOGRAFANDO AS (MULTI)MULHERES
Este trabalho caracteriza-se como uma pesquisa bibliográfica e para tal
produção será utilizado o método cartográfico como instrumento de pesquisa e
análise, uma proposta um tanto quanto desafiadora já que, usualmente orientados
pelas concepções da ciência moderna, costuma-se fragmentar, racionalizar e
perseguir verdades absolutas. A cartografia, contrapondo-se aos pressupostos da
ciência moderna, conforme Barros e Kastrup (2009, p. 53), “consiste no
acompanhamento de processos, e não na representação de objetos” tendo em vista
que se interessa pelos movimentos produzidos no percurso, repleto de brechas e
desvios. O objetivo do método cartográfico é “desenhar a rede de forças à qual o
objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado” (BARROS; KASTRUP
2009, p. 57). Nesse sentido explica-se o nome dado ao método: cartografia, aquela
que trata da concepção, produção, difusão, utilização e estudo de mapas. Mapa
enquanto aquele que não reproduz, e sim, constrói; tem múltiplas entradas e é,
eminentemente, “conectável, desmontável, reversível e adaptável” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 22).
Em vez de coletar dados, quer-se produzi-los, sendo que esta produção de
dados se dá por meio de uma processualidade e é realizada na medida em que a
trajetória é percorrida e o território explorado. Abrir-se ao plano de afetos, aproximar-
se do campo como estrangeiros e ampliar o olhar e a atenção sobre os
acontecimentos nos auxilia nessa produção (BARROS; KASTRUP, 2009). Diante
disso, o cartógrafo se faz juntamente com as paisagens cuja formação ele
acompanha, “é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar
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e desovar, transvalorado” (ROLNIK, 2006, p. 65). É no sentido antropofágico que se
utiliza as produções de alguns autores tais quais Gilles Deleuze, Felix Guattari,
Suely Rolnik, Zygmunt Bauman, Peter Pál Pelbart, entre outros, cujas escritas
acompanham as ideias da Filosofia da Diferença a qual procura explicar a
complexidade Pós-Moderna evitando as simplificações reducionistas.
O objetivo de utilizar a cartografia nesta pesquisa é o de acompanhar os
processos de produção do feminino que estão sendo construídos e articulados,
alinhando-se sempre ao discurso de determinado contexto histórico-social. A
cartografia, conforme Romagnoli (2009), apresenta-se como valiosa ferramenta de
investigação, exatamente para abarcar a complexidade que se habita, zona de
indeterminação que a acompanha, colocando problemas, investigando o coletivo de
forças em cada situação e esforçando-se para não se curvar aos dogmas
reducionistas.
A produção de conhecimento se dá a partir das percepções, sensações e
afetos vivenciados no encontro do cartógrafo com seu campo; seu estudo nunca é
neutro, nem isento de interferências e, tampouco, é centrado nos significados
atribuídos por ele. Ler, refletir e produzir a partir do feminino impede qualquer
neutralidade; é o território existencial o qual se habita, e por ser uma temática
contemporânea, nada mais coerente que utilizar-se das cartografias do cotidiano
para investigá-la. Cartografar, de acordo com Romagnoli (2009), é mergulhar nos
afetos que permeiam os contextos e as relações que se pretende conhecer,
permitindo ao pesquisador também inserir-se na pesquisa e comprometer-se com o
objeto pesquisado, para fazer um traçado singular do que se propõe a estudar.
Diante disso, questiona-se: por que o feminino? Ler as crônicas de Martha
Medeiros nunca se constituiu um esforço, é um encontro prazeroso, uma reflexão
contínua e perene. A autora aborda o feminino com propriedade e implicação; ao
falar sobre a vizinha, sobre a amiga ou uma desconhecida qualquer, pensa sobre si,
opina, coloca-se; é política, assume riscos e compromissos. Talvez este
posicionamento empático e estas características afetivas da escrita de Martha
Medeiros tenham roubado a atenção dos leitores e funcionem como o punctum,
conceito elaborado por Barthes (1984). O autor promove algumas indagações que,
coincidentemente (ou não), afetavam aos indivíduos em geral “de todos os objetos
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do mundo, por que escolher (fotografar) tal objeto, tal instante, em vez de tal outro?”
(BARTHES, 1984, p. 16). Seria fascinação ou um interesse comum? Isso era
insuficiente, muito frouxo e heterogêneo. A foto proporcionava uma agitação interior,
uma festa, pressão do indizível que quer se dizer: “Parecia-me que a palavra mais
adequada para designar (provisoriamente) a atração que sobre mim exercem certas
fotos era aventura. Tal foto me advém, tal outra não” (BARTHES, 1984, p. 36). Neste
caso não eram fotografias, mas foi exatamente assim que as crônicas de Martha
Medeiros tocaram: foi um bom encontro, como diria Espinosa, mobilizador de
reflexões, questionamentos e novos olhares. A leitura tem acionado a vontade de
conhecer mais, pois afeta, modifica e aumenta a potência de agir (ROLNIK, 1995), é
imanência de forças, expansão de vida, de alegria. E é exatamente essas relações
que serão mapeadas pelo método cartográfico, para que se conheça a realidade em
sua complexidade.
A questão do feminino nas crônicas de Martha Medeiros opera como o
punctum, agitando uma grande benevolência, quase um enternecimento. O encanto
incomum parte da escrita, como uma flecha, e vem transpassar o apreciador da
obra; o punctum de uma foto “é esse acaso que, nela, me punge (mas me mortifica,
me fere)” (BARTHES, 1984, p. 46). É aquele “detalhe” que atrai o leitor: sente-se
que basta sua presença para modificar a nossa leitura, que se trata de uma nova
produção que eu olho; esse “detalhe” é o punctum, aquilo que produz algo, dispara,
irrompe, afeta.
Além da escolha do tema de pesquisa, também foi preciso fazer uma seleção
das crônicas que seriam utilizadas para tal produção. Optou-se pelas obras de
Martha Medeiros que contivessem crônicas, sendo que os livros utilizados foram:
Trem-bala (2001), Topless (2002), Doidas e Santas (2008) e Feliz Por Nada (2012).
Foi realizada uma leitura geral das crônicas e, na primeira seleção, escolhidas 15
que relacionavam-se aos temas principais, mulheres e o contemporâneo.
Entendendo-se que 15 era uma quantidade extensa, reduziu-se esse número para
dez crônicas sendo este o material final para pesquisa e análise. São elas: Mulheres
como vieram ao mundo (2001a); O mulherão (2001b); Mulher solteira procura
(2002a); Verdades e mentiras sobre as mães (2002b); O que mais você quer
(2008a); Um lugar para chorar (2008b); A pior vontade de viver (2008c); Intoxicados
pelo eu (2012a); Mulheres na pressão (2012b) e A mulher independente (2012c).
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Todas as crônicas apresentam a temática do contemporâneo e/ou das
multimulheres, as quais vieram acumulando funções ao longo do tempo e que,
mesmo adquirindo certa independência financeira com a ascensão de sua vida
profissional, permanecem presas às velhas exigências da sociedade: casar e ter
filhos ainda é essencial. Percebe-se assim que as crônicas apresentam-se sob
diferentes formas já que, ao mesmo tempo em que participam de nossa rotina e
invadem nosso dia a dia por meio dos veículos midiáticos, denunciam e refletem a
partir de questões cotidianas, adquirindo, assim, um caráter jornalístico.
Quanto aos recortes das crônicas, recorreu-se ao método da bricolage,
técnica artística utilizada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Deleuze e Guattari
definem bricolage como a capacidade de introduzir os fragmentos em
fragmentações sempre novas, “a regra de produzir sempre o produzir, de inserir o
produzir no produto, é a característica das máquinas desejantes ou da produção
primária: produção de produção” (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 13). Deste modo,
o método da bricolage diz respeito à multiplicidade e à não linearidade; os retalhos
unem-se tecendo uma nova paisagem rizomática tal qual os fragmentos das
crônicas que, ao entrecruzarem-se, potencializam novas reflexões não reducionistas
acerca da atualidade.
Além das crônicas, ferramentas flexíveis da escrita, buscou-se um diálogo
com outros autores, já destacados acima, cujos conceitos possam auxiliar na
produção, pensando o conceito, segundo Deleuze (1997a), não apenas como um
operador lógico, pois coloca-se além e aquém da lógica. Criar conceitos como uma
forma de transformação e ressignificação, sempre enquanto multiplicidade e que,
mesmo funcionando sob um esquema de rigidez, cabe a nós flexibilizá-los afim de
que produzam novos sentidos, pois um conceito sempre tem potencialidades de vir a
ser, nunca esgota. Conforme Romagnoli (2009, p. 172), os conceitos aparecem
como dispositivos que compõem o processo da escrita e que sua força “localiza-se
fora deles, em sua potência de criar, em sua capacidade de associar ideias, incitar
pensamentos, leituras, de entrecruzar linhas e pontos temporariamente arranjados,
para mais adiante serem desconectados ou reconectados em outra composição”.
Para finalizar, é importante mencionar o quanto esta produção foi um desafio,
já que falar a respeito da contemporaneidade é quase um testemunho existencial,
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pois, tal qual se questiona Pelbart (2009, p. 213), “a subjetividade está às voltas,
hoje, com uma questão trivial e a cada dia mais irrespondível: o que significa ser
contemporâneo ao próprio tempo em que vivemos, coexistir consigo mesmo?”. Não
que hoje aconteçam mais coisas do que antes, nem são elas necessariamente mais
cruéis ou dolorosas do que outrora, todavia, parece que ser contemporâneo a si
próprio nos expõe como nunca diante do presente, sem mediação, desarmados e
sobressaltados. É exatamente essa inquietação diante do contemporâneo que
permite ao corpo não só pensar e escrever, mas também afetar-se, sensibilizar-se
frente aos acontecimentos. O propósito, conforme Pelbart (2009), é não refugiar-se
em algum paraíso pretérito ou futuro, de modo nostálgico ou saudosista, mas estar
atento às urgências do presente, destes devires revolucionários que se gestam no
dia a dia. É preciso ampliar o olhar sobre a realidade, dar visibilidade às saídas
inventivas e garantir-se, como diria Nietzsche citado por Pelbart (2009, p. 214), um
“[...] grande experimentador de si mesmo”.
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Figura 01 – Vazio existencial
Fonte: Maitena Burundarena (Superadas 1, p. 11).
CAPITALISMO. Sistema econômico.
Produto e produção. Oferta e demanda.
Acumulação. Tempo é dinheiro.
Maquinismo sim,
Maniqueísmo não: bom ou ruim?
Quem sabe...
“[...] Reconheço que é muito bom viver bem e poder pagar as próprias contas,
tenham elas quantos dígitos tiverem. Mas dinheiro deveria ser educado da mesma
forma que um filho: nunca permita que ele seja insolente e ruidoso.”
(Martha Medeiros)
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4 (MULTI)MULHERES DAS CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS: A
VONTADE DE TUDO NA CONTEMPORANEIDADE
Nos subcapítulos a seguir serão abordados os temas do capitalismo, das
multimulheres e da singularização. Busca-se uma articulação entre os assuntos
entendendo-se que os conceitos se atravessam e permitem novas construções e
outros pensares.
4.1 A subjetividade capitalista
Em sua longa jornada, o Pequeno Príncipe chega ao quarto planeta onde
encontra o homem de negócios, ocupado, contando suas estrelas:
– E que fazes tu de quinhentos milhões de estrelas? Pergunta o principezinho. – Quinhentos e um milhões, seiscentos e vinte e duas mil, setecentos e trinta e uma. Eu sou um sujeito sério. Gosto de exatidão – ressalta o homem de negócios. – E que fazes tu dessas estrelas? – Que faço delas? – Sim. – Nada. Eu as possuo. – Tu possuis as estrelas? – Sim. [...] – E de que te serve possuir as estrelas? – Serve-me para ser rico – E para que te serve ser rico? – Para comprar outras estrelas, se alguém achar (SAINT-EXUPÉRY, 2006, p. 45).
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As ingênuas indagações do Principezinho fazem com que se reflita a respeito
da lógica capitalista e de uma de suas principais marcas: o acúmulo irrefreável de
capital e de bens. O homem de negócios, dito capitalista, está interessado no que
acumulou, preocupando-se, especialmente, em como acumular mais. É um
processo circular, portanto, contínuo, no qual acumula-se capital para aumentar o
volume de lucros e reinveste-se os lucros para aumentar a acumulação de capital.
Vive-se o tempo do Império, salientam Hardt e Negri (2006), o qual
caracteriza-se fundamentalmente “pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo
Império não tem limites” (HARDT; NEGRI, 2006, p. 14). Abrange a totalidade do
tempo, do espaço e, evidentemente, da subjetividade ao inserir-se, discretamente,
na trama social.
De fato, como poderia o Império atual manter-se caso não capturasse o desejo de milhões de pessoas? Como conseguiria ele mobilizar tanta gente caso não plugasse o sonho de multidões à sua megamáquina planetária? Como se expandiria se não vendesse a todos a promessa de uma vida invejável, segura e feliz? Afinal, o que nos é vendido o tempo todo, senão isto: maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir? O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida [...] (PELBART, 2009, p. 20).
A Pós-Modernidade e os modos capitalistas de produção vêm implicando, de
forma determinista, na construção subjetiva na atualidade que, enquanto reguladora
e reveladora do nosso modo de ser e estar no mundo, não pode ser separada da
produção social. De fato, como nos lembra Pelbart (2009) no trecho acima, no
contemporâneo tudo torna-se mercadoria, inclusive as formas de vida, ofertadas,
desejadas e consumidas a todo o momento pelos indivíduos. Bauman (2004) aponta
que a sociedade está diante de um comodismo contemporâneo e de uma cultura
consumista que favorece o produto finalizado para uso imediato: a satisfação é
instantânea e os resultados não exigem esforços prolongados. Mesmo que a
garantia seja de “seguro total”, este tempo repleto de novas conexões, de redes e de
multiplicidades infinitas, faz com que o sujeito depare-se com o desamparo e o
desalento decorrentes da aceleração contemporânea (BIRMAN, 2006).
“Eu(reka)!” diria Pelbart (2000, p. 11), já faz tempo que não se navega em um
rio do tempo que parte de um ponto e chega a outro, “fluímos num redemoinho
turbulento, indeterminado, caótico” (PELBART, 2000, p. 188). O tempo linear,
progressivo e cronológico vem sendo desconstruído pela Pós-Modernidade.
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Atualmente vive-se a multiplicidade de fluxos e direções a qual, ao tomar o sujeito
como alvo, tende a subjetivá-lo. A plasticidade subjetiva ignora padrões e, ao
permitir-se hibridizações, expõe-se aos perigos e às potências de habitar “uma nova
paisagem metaestável” (PELBART, 2000, p. 16).
A filosofia deleuziana evoca um tempo plural, paradoxal, vertiginoso e
intempestivo. Não há mais uma flecha do tempo, organizando passado, presente e
futuro; pelo contrário, é um tempo espiralado, mal um circuito termina já estamos
empreendendo esforços à abrupta escalada do próximo. É um tempo rizomático,
como indicam Deleuze e Guattari (1995), enquanto multiplicidade de sentidos e
direções; quase um emaranhado, um turbilhão.
É o tempo do agora que exige do sujeito estar sempre em movimento; é um
tempo acelerado, de alta rotatividade. É o tempo do descarte. Em suas crônicas,
Martha Medeiros lembra o leitor que a noção de tempo não cessa de acompanhá-lo
seja a partir do “relógio biológico” (MEDEIROS, 2002a, p. 18) que apressa a
maternidade, dos “despertadores” (MEDEIROS, 2008a, p. 73) que o lembra das
tarefas diárias e do “tempo livre” (MEDEIROS, 2008a, p. 73) que lhe falta. A
atualidade consagra um “ritmo frenético” (MEDEIROS, 2012b, p. 45) que
desestabiliza o sujeito e suas relações.
O capitalismo é perspicaz em suas investidas, vem se empenhando
arduamente no sentido de conquistar novos e velhos adeptos. Pelbart (2000)
exemplifica este movimento quando escreve sobre os olheiros, os quais são
enviados para as ruas para captar o estilo das pessoas que nelas transitam,
definindo padrões de moda a partir da inventividade dos próprios sujeitos: é a forma
como o capitalismo os lê. Nesse sentido, compreende-se que mesmo que as
tendências sejam extraídas do dia a dia dos sujeitos, estes ainda esperam que os
outros digam o que e como usar para, a partir daí, arriscarem-se. Assim, os olheiros
deliberam sobre moda e comportamento, havendo certa vampirização da potência
inventiva: o império é apenas um vampiro, sem o sangue da multidão, ele não é
nada, meramente uma força organizativa.
Em um mundo onde o capital é quem tem ditado as regras, vive-se certa
fragilidade nos contratos e laços sociais, bem como o despedaçamento das
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certezas, garantias e referências. Entendendo que a subjetividade, conforme
Guattari e Rolnik (2005), é essencialmente fabricada e modelada no registro do
social, acredita-se que a subjetividade capitalística é organizada a partir da
serialização dos sujeitos: os desejos são sempre iguais ou semelhantes. Guattari
propôs o conceito de Capitalismo Mundial Integrado (CMI) para designar o
capitalismo contemporâneo enquanto um achatamento do desejo. Conforme Rolnik
(2003), Guattari entende que o capitalismo é mundial e integrado, pois
potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em
simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele e porque tende
a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor de produção fique de
fora de seu controle. Logo, há um iminente empobrecimento subjetivo, o desejo é
interceptado, ou, no mínimo, obstruído.
Percebe-se que a proximidade entre os sujeitos não exige mais a
contiguidade física, evidenciando relações virtuais intensas, porém breves e
superficiais. Tem-se dificuldades em fazer escolhas, quer-se tudo ao mesmo tempo:
“ninguém está satisfeito” (MEDEIROS, 2008a, p. 73). Deseja-se arduamente
“sensações inéditas” (MEDEIROS, 2008a, p. 73), pois, apesar da inevitável
rotinização de nossas vidas, todos aspiram a “não ter nenhuma condescendência
com o tédio” (MEDEIROS, 2008a, p. 72).
Os modos de produção capitalista são caracterizados, de acordo com Guattari
e Rolnik (2005), por não funcionarem unicamente no registro dos valores de troca,
dos valores que são da ordem do capital. Eles funcionam também por meio de um
modo de controle da subjetivação: “é a própria essência do lucro capitalista que não
se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder
da subjetividade” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 21). A subjetividade é
constantemente afetada por um turbilhão de forças de toda espécie e o capitalismo,
ao poucos, vem instrumentalizando a potência subjetiva de criação a seu favor,
explorando-a de modo a extrair algum benefício. Essa apropriação da produção de
subjetividade pela proposta capitalista tem esvaziado o conhecimento de
singularidade: sente-se igual, pensa-se igual, sofre-se igual.
Entende-se assim que os modos de produção capitalista penetram fundo na
vida das populações, conforme Pelbart (2009), nos seus corpos, mentes, desejo e
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afetividade, totalidade do espaço, do tempo e da subjetividade. O controle é exercido
de forma sutil, entrelaçando-se ao tecido social e a sua heterogeneidade; agora os
mecanismos de monitoramento são mais difusos e flexíveis, executados por meio de
sistemas de comunicação, redes de informação e atividades de enquadramento, e é
como se fosse interiorizado e reativado continuamente pelos próprios sujeitos
(PELBART, 2000).
Essa produção capitalista, totalitária e massificante vem produzindo
indivíduos normalizados, de acordo com Guattari e Rolnik (2005), articulados uns
aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de
submissão. Em contraposição aos processos de singularização, a máquina
capitalista vem estruturando e reafirmando uma produção de subjetividade social,
desta forma, mais do que um modo de produção capitalista, vive-se hoje uma cultura
capitalista onde “o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição
subjetiva” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 21). De fato, a ordem capitalística é
projetada na realidade mundana e na realidade psíquica.
A atualidade tem mostrado que ainda há uma ordem dentro do caos
capitalista, em que os sujeitos tentam encontrar formas rápidas de administrar e
manter um núcleo identitário, o qual lhes dá referências suficientes para fugir, ainda
que momentaneamente, do desassossego trazido pela desestabilização
contemporânea. Nesse sentido, ressalta Rolnik (1995) que a ordem e o caos
passaram a ser pensados como indissociáveis: “do caos então sempre nascendo
novas ordens” (ROLNIK, 1995, p. 143), denotando um processo incansável de
desestabilização e reestabilização.
A complexidade das sociedades atuais vem afetando tanto as estruturas
concretas de organização social, como também as dimensões subjetivas. As
configurações da contemporaneidade, conforme Coutinho et al. (2007), têm
produzido processos de construção de identidades mais complexos e efêmeros que
em modelos sociais precedentes, reafirmando a transitoriedade contemporânea.
Este núcleo identitário, conforme Rolnik (1995), uma unidade provisória onde
cada um se reconhece, funciona como um registro de orientação ao sujeito e diz
respeito à ordem molar, considerando que esta última “corresponde às
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estratificações que delimitam objetos, sujeitos, as representações e seus sistemas
de referência”, enquanto que a ordem molecular “pelo contrário, é dos fluxos, dos
devires, das transições de fase, das intensidades” (GUATTARI apud ADÓ, 2012,
texto digital). Se distinguem, mas são inseparáveis; são ordens coexistentes que,
transversalizam-se formando a trama do tecido social.
Ainda que a identidade funcione na lógica molar do reconhecimento de si e
situe o indivíduo em relação ao outro, tende a barrar os “processos de
singularização, de criação existencial” (ROLNIK, 1997, p. 21-22), esvaziando a
capacidade do sujeito de conceber outras possibilidades para sua vida. São
identidades globalizantes flexíveis que, conforme Rolnik (1997), são consumidas
intensamente pelas subjetividades, mudando ao sabor dos movimentos do mercado
e com igual velocidade.
O perigo situa-se naqueles sujeitos que, na ânsia de manterem-se estáveis,
os ditos viciados em identidade, neutralizam-se frente aos acontecimentos e para
impedir que as forças abalem sua ilusão identitária, “breca-se o processo,
anestesiando a vibratilidade do corpo ao mundo e, portanto, seus afetos” (ROLNIK,
1997, p. 20). A autora denomina essas identidades de prêt-à-porter1, caracterizando-
as como “figuras glamurizadas imunes aos estremecimentos das forças” (p. 3). Em
uma de suas crônicas, Martha Medeiros descreve a necessidade do sujeito de
esconder sua fragilidade e manter o controle diante dos outros:
A dor vinha represada há dias, a mulher desejava apenas que não vazasse em hora imprópria [...]. Às dez e vinte de uma manhã de sexta-feira, numa rua bastante movimentada, ela começou a chorar [...]. Olhou pelo retrovisor para ver se a aparência denunciava sua situação, e resolveu que dava para enfrentar a vida, bastava não tirar o Ray-ban da cara [...]. Chegando ao supermercado, pegou o carrinho de compras e consultou a lista que a empregada lhe dera. Farinha. Carne de segunda. Azeite. Papel higiênico. Cebola. A mulher que ela não era assumira de novo o comando (MEDEIROS, 2008b, p. 60).
Nesse sentido, a identidade funciona como uma defesa do sujeito frente à
ilusão de desaceleração do processo; é uma necessidade humana, a de manter a
ordem, a segurança e os limites. O homem despotencializa-se quanto à sua
capacidade inventiva, já não se permite acompanhar os movimentos invisíveis de
sua própria vida; lhe falta o acesso à experimentação dos devires.
1 Termo de origem francesa; “pronto para levar”, “pronto para vestir”.
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Diante de tamanho assujeitamento e da humana necessidade de identificar-
se, questiona-se, portanto, de que forma se poderia singularizar tais modos de
subjetivação. Uma saída seria flexibilizar as estratégias manipuladoras e coercitivas
do capitalismo, possibilitando outros modos de afetação e sensibilidade, modos de
criação e de relação com o outro.
Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 22).
Frente aos impasses que o contemporâneo vem apresentando, e diante de
um território que desterritorializa-se e reterritorializa-se a todo o momento, propõe-se
nos capítulos seguintes, focar a pesquisa bibliográfica no público feminino.
Utilizando como dispositivo de análise e pesquisa as crônicas de Martha Medeiros,
tem-se o objetivo de refletir a respeito dos modos-mulher que a atualidade está
produzindo, vendendo e reforçando, interferindo diretamente na construção da
subjetividade feminina, a qual costuma orientar-se a partir da captura por papéis
mais identitários ou da produção de movimentos de singularização.
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Figura 02 – Da vida e uma de suas injustiças mais frequentes
Fonte: Maitena Burundarena (Mulheres Alteradas 1, p. 29).
MULTIMULHERES. Supermulheres sem
poderes mágicos. Adequar-se ou libertar-se?
Acumulam pedaços à sua interminável colcha de retalhos.
Imperfeitas bem-intencionadas.
Incríveis na arte de ser complexas...
“Sou tantas que mal consigo me distinguir. Sou estrategista, batalhadora, porém
traída pela comoção. Num piscar de olhos fico terna, delicada. Acho que sou
promíscua, doutor Lopes. São muitas mulheres numa só, e alguns homens também.
Prepare-se para uma terapia de grupo.” (Martha Medeiros)
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4.2 As (Multi)Mulheres da atualidade
Ao tornar-se o narrador da própria história, Bentinho nos leva a crer que foi
traído por Capitu, aquela dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2000,
p. 45). Já Emma Bovary, ao falar de si, não escondia toda sua insatisfação e
descontentamento com a vida que levava:
Tento ser mais cética, mais durona, mas sou totalmente tendenciosa quando alguma coisa diz que eu posso ser feliz [...]. Porque eu nunca tive motivos para acreditar em nada que dure para sempre. Porque eu sempre fui tocada pelas mais diferentes formas de vida (FLAUBERT, 1981, p. 24).
Ainda que mais de um século tenha se passado, Dom Casmurro (1899) e
Madame Bovary (1856) continuam sendo leituras atuais, intempestivas. Mesmo que
a narração parta de pontos de vista diferentes, descreve mulheres desgostosas com
as relações que haviam construído até certa etapa de suas vidas, algumas, impostas
pela ordem do matrimônio. Mulheres dispostas a reinventarem-se, enfatizando, de
forma sagaz ou escrachada, possíveis infidelidades. A insaciabilidade das
personagens não seria perdoada pela sociedade puritana e moralista, as “meninas
más” não poderiam ter outro final já que haviam optado por viver o amor fora do
casamento: Capitu, já separada de Bentinho, morre solitária e amargurada no exílio
europeu e Emma Bovary, atormentada pelo adultério e por inúmeras dívidas,
suicida-se ingerindo arsênico.
As obras de Machado de Assis e Gustave Flaubert jogam com os valores
culturais e sociais vigentes, apresentam mulheres desejantes na luta por emancipar-
se. Discretas feministas, Capitu e Emma Bovary caracterizam a ambiguidade do ser
humano, o qual tem anseios, arrependimentos, questionamentos e contradições que
até então, somente personagens masculinos costumavam apresentar, confirmando
os princípios da sociedade patriarcal da época.
Até a década de 1970 as mulheres costumavam ser excluídas da vida política
e da esfera pública. O papel da maternidade sempre foi tido como seu ideal máximo,
caminho da plenitude e realização feminina, sempre associado a um sentido de
renúncia e sacrifícios prazerosos. A respeito desse “instinto maternal”, Medeiros
(2002b) é categórica: “Maternidade, missão de toda mulher: mentira. Maternidade
não é serviço militar obrigatório. Deus nos deu um útero, mas o diabo nos deu o
poder de escolha” (p. 51).
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A segregação social e política a que as mulheres foram conduzidas, conforme
Louro (1997), tivera como consequência a sua ampla invisibilidade como sujeito já
que ocupavam-se, exclusivamente, da esfera privada. Kehl (1998) aponta que a
sociedade atual é herdeira de discursos que, historicamente, definiram uma
“natureza feminina” eterna e universal. Quanto a isso, Medeiros remete o leitor aos
tempos de mocidade das avós: “De fato, ninguém teve uma avó agitada, era outra
época [...]. Talvez fossem mulheres plenamente realizadas ou diabolicamente
frustradas, quem vai saber?” (MEDEIROS, 2012b, p. 45).
Dentre outros movimentos sociais brasileiros, as transformações evidenciadas
acima efetivaram-se, principalmente, a partir das lutas do Movimento Feminista
iniciado ainda na década de 1960 e intensificado na década de 1970. Esses
movimentos lutavam pelos direitos das mulheres e reivindicavam maior igualdade
entre os gêneros, bem como a expansão dos direitos civis e políticos; junta-se a isso
a luta contra a violência doméstica, o assédio sexual e o estupro. Louro (1997)
aponta que, com uma amplitude inusitada, alastrando-se por vários países
ocidentais, o sufragismo2 passou a ser reconhecido, posteriormente, como a
“primeira onda” do feminismo, compreendendo que seus objetivos mais imediatos
estavam ligados aos interesses das mulheres brancas de classe média. A chamada
“segunda onda” inicia-se no final da década de 1960 e é o momento em que o
feminismo, além de preocupar-se com questões sociais e políticas, voltou-se para as
construções propriamente teóricas,
[...] estes movimentos remeteram, principalmente, à necessidade de investir mais em produção de conhecimento e estimularam o desenvolvimento sistemático de estudos e de pesquisas que tivessem como objetivo não só denunciar, mas sobre tudo, compreender e explicar a subordinação social e a invisibilidade política a que as mulheres vinham sendo historicamente submetidas (MEYER, 2004. p. 14).
Ao contrário do que se pensam, o feminismo não ambiciona a igualdade entre
os gêneros. Conforme Louro (1997), ao avançar em suas teorizações, o feminismo
vai responder à “acusação” da diferença transformando-a numa afirmação, de modo
que, não apenas reconheça como também valorize, positivamente, a diferença entre
mulheres e homens. Diferença e igualdade expõem uma ideia dicotomizante
contestada pelo Movimento Feminista: as diferenças não são exclusividade dos
2 Movimento voltado para estender o direito do voto às mulheres.
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gêneros, pois mulheres e homens diferenciam-se entre si assim como quaisquer
outros sujeitos. Diferenciar-se, assim, não enquanto oposição e sim enquanto
processos de singularização.
O Movimento Feminista impulsionou as mulheres a reivindicarem outras
possibilidades de experimentarem-se. De certa forma, esgotaram-se do posto de
“guardiãs da família” (MEDEIROS, 2012b, p. 45): queriam ir além, circular por outros
espaços e conquistar novos territórios em que os processos de singularização
pudessem emergir e legitimar-se. As lutas das “minorias” tal qual o Movimento
Feminista, conforme Louro (2008, p. 20), tinham o propósito de tornar visíveis
“outros” modos de viver, os seus próprios modos, suas estéticas, suas éticas, suas
histórias, suas experiências, suas questões; um luta “pelo direito de falar por si e de
falar de si”.
Para Baptista (1995), a partir do movimento feminista, a mulher percebeu sua
condição e seu potencial intelectual, sua capacidade de trabalho e competitividade
em relação ao homem. Esse movimento levou as mulheres a sair dos limites da casa
para “trabalharem fora”, intensificando a divisão entre o público e o privado. Assim,
aos poucos, a maternidade e as tarefas domésticas foram sendo secundarizadas,
pois passaram a dividir espaço com outros possíveis:
Até nossos dias, a existência feminina sempre se ordenou em função de caminhos social e “naturalmente pré-traçados”: casar, ter filhos, exercer as tarefas definidas pela comunidade social. Foi esta época, poderíamos dizer, que encerrou essa rigidez: o destino do feminino entrou, pela primeira vez, em uma era de imprevisibilidade e abertura estrutural (ALONSO et al., 2002, p. 107-108).
Para as mulheres ditas burguesas, trabalhar fora de casa, muito mais do que
o sustento de vida, assume o sentido de produção da subjetividade. Em uma de
suas crônicas, Medeiros reflete: “Mãe foi mãe, mas faz um tempão. Agora mãe é
jogadora de basquete, é top model, é atriz, é superstar [...]. Mãe foi mãe, agora é
mãe também” (MEDEIROS, 2002b, p. 50). O trecho demonstra que, ao assumir a
cena pública, a mulher tende a subjetivar-se a partir de outras funções além da
maternidade.
Comenta Kehl (1998) que os desejos de grande parte das mulheres das
classes médias correspondem aos “anseios de viver a grande „aventura burguesa‟,
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para além do papel honroso que lhes era concedido, de mãe virtuosa e Rainha do
Lar” (KEHL, 1998, p. 15-16). Deste modo, ter um trabalho remunerado corresponde
ao desejo de escapar ao encerramento da vida doméstica e lhes garante a abertura
para uma vida social.
Assim como a mulher, a subjetividade feminina acompanhou o processo de
transformações sociais e históricas pelas quais passou a cultura ocidental. O Pós-
Feminismo em que se vive atualmente permanece lutando pela emancipação
feminina, entretanto revela uma mulher cheia de dúvidas e contradições: ao mesmo
tempo em que quer ser independente, deseja ser uma mãe presente; ao mesmo
tempo em que foca em sua ascensão profissional, espera encontrar um grande
amor. Os modos-mulher que vêm sendo produzidos pelo contemporâneo expõem
uma mulher presa às exigências de antigamente, mas disposta a conquistar seu
espaço social e profissional. Infere Medeiros (2002a) em uma de suas crônicas,
quanto ao desejo feminino do matrimônio:
Olhe bem para aquela moça sentada num bar, moderníssima. Ela quer casar [...]. Sim, elas são independentes, viajam, levam camisinha na bolsa, vão ao teatro e leem Camile Paglia. Mas querem casar, pomba! (MEDEIROS, 2002a, p. 18).
Quando Simone de Beauvoir, em “O segundo sexo” (1949), disse que “não se
nasce mulher: torna-se mulher” (1980, p. 9), expressou a ideia básica do feminismo:
a desnaturalização do ser mulher. Nesse sentido, o Movimento Feminista, diante de
suas próprias reivindicações, expõe uma óbvia diferença entre homens e mulheres,
porém, tem o desafio de demonstrar, conforme Louro (1997), que não são as
características anatômicas ou fisiológicas, tampouco as desvantagens
socioeconômicas tomadas de forma isolada, que definem as diferenças
apresentadas como justificativa para desigualdades entre homens e mulheres. Indo
além, a autora demarca que é a forma como essas características são
representadas ou valorizadas que vai constituir, efetivamente, o que é masculinidade
e feminilidade.
É nesse sentido que um grupo de estudiosas anglo-saxãs começou a utilizar
o termo gender, em português, “gênero”. Com este conceito, pretendia-se colocar
em questão a equação na qual se articulava um determinado modo de ser a um
sexo anatômico que lhe seria „naturalmente‟ correspondente, para argumentar que
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as “diferenças e desigualdades entre mulheres e homens eram social e
culturalmente construídas e não biologicamente determinadas” (MEYER, 2004, p.
14).
Entende-se que o conceito de gênero, segunda Meyer (2004), remete a todas
as formas de construção social, cultural e linguística implicadas com processos que
diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles que produzem seus corpos.
Diante de tantos atravessamentos, compreende-se que se é constituído como
homem e mulher num processo complexo que não é linear, progressivo ou
harmônico, logo, nunca estará concluído ou completo. A construção dos gêneros e
das sexualidades, de acordo com Louro (2008) é um processo minucioso e sutil, em
que a família, a escola, a igreja e, mais recentemente, a mídia são importantes
instâncias na constituição de homens e mulheres por meio de suas orientações e
ensinamentos. Quanto à mídia, Medeiros expõe:
[...] O cinema, a propaganda, as revistas femininas, as novelas, tudo ordena: seja linda. E dá-lhe malhar na academia para ficar com o corpo da Carolina Ferraz e fazer escovas e luzes no cabelo para poder substituir Adriane Galisteu numa emergência (MEDEIROS, 2001a, p. 145).
A pretensão é, segundo Louro (1997), entender o gênero como constituinte da
identidade dos sujeitos. É importante pensar que se assim como os gêneros, as
identidades se constroem em um contexto social e histórico, também estão
continuamente se transformando. Entende-se que é impossível definir uma
identidade fixa que se adapte conforme o gênero. Por isso, a Pós-Modernidade
aponta para o princípio da multiplicidade: já não há mais dicotomias, logo, não há
mais uma essência feminina ou uma essência masculina. Fala-se em feminilidades e
masculinidades, no plural.
Ao edificarem-se no âmbito da cultura, as identidades, embora múltiplas,
continuam correspondendo a determinados padrões socialmente valorizados. O
universo feminino não escapa disso. As estereotipias são desejos absolutos: ser
lindas, jovens, saudáveis e produtivas ainda são adjetivos perseguidos pelas
mulheres. Eficiência é seu nome do meio. Pegam carona no tempo acelerado do
capitalismo, têm múltiplas funções, são “supersônicas” (MEDEIROS, 2012b, p. 46).
Têm uma independência assustadora, aos olhos dos outros parecem não precisar
de ninguém, enfim, “um bloco de cimento” (MEDEIROS, 2012c, p. 30). As atividades
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de uma legítima mulher burguesa de classe média tendem a ser estressantes.
Descobriu que quer tudo, e tudo ao mesmo tempo: “onde foi parar nosso critério de
seleção? Já não sabemos distinguir o que é prioridade e o que pode ficar em
segundo plano: tudo virou prioridade” (MEDEIROS, 2012b, p. 46). Outra descoberta
recente: querem uma folga. Uma folga de si mesmas, da necessidade de provarem
a todo tempo que são capazes, “é uma autopromoção que beira o irreal”
(MEDEIROS, 2012b, p. 46).
À luz da contemporaneidade, as mulheres parecem estar em uma
permanente busca de si. Atualmente o mal-estar feminino desloca-se para outras
questões, talvez porque a cena contemporânea demonstre-se um tanto quanto
apolítica. Entende-se que as lutas até então situadas apenas no plano coletivo
transferem-se para um plano individual, marcado pelas batalhas narcísicas
relacionadas, principalmente, ao corpo e à vaidade. A ânsia por pertencimento faz
com que elas agreguem novas funções àquelas que, historicamente e socialmente,
lhes foram designadas. Hoje as mulheres são reconhecidas por suas capacidades
profissionais, todavia ainda cobram-se e sentem-se pressionadas a serem boas
mães para os filhos, boas esposas para seus companheiros e eficientes donas de
casa.
Essas mulheres “pós-cinderela” como destaca Corso (1999), são a própria
metamorfose ambulante, padecem de seus “superpoderes”, porém detestam limitar-
se. Sobre essa “multifuncionalidade” feminina, a psicanalista faz uma analogia com
um conhecido desenho infantil: “Fruto de um acidente científico, nasceram três
Meninas Superpoderosas: Florzinha, Docinho e Lindinha, que salvam a sua cidade
de todo o perigo [...]. Elas endurecem sem perder a ternura jamais. Quando não
estão lutando, brincam de boneca e fazem jus a seus nomes” (2002, texto digital). A
exigência, de si e dos outros, de inserir-se em diversos espaços também é
questionada por Medeiros:
Claro que mulheres podem tudo, está sacramentado. Mas será que devemos querer tudo? [...] Só uma mulher supersônica consegue ter eficiência absoluta em todos os quesitos: melhor mãe, melhor amiga, melhor filha, melhor namorada, melhor esposa, melhor profissional, melhor dona de casa e melhor bunda. É morte por exaustão na certa (MEDEIROS, 2012b, p. 46).
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Essa sobreposição de tarefas nos mostra o quanto “fazer-se mulher
transformou-se, pluralizou-se” (LOURO, 2008, p. 17). O que se sustenta, enquanto
observação da atualidade, é que nesta gama de opções que lhe é oferecida, a
mulher contemporânea não reconhece suas prioridades, quer tudo
concomitantemente. Elas têm vontade de independizar-se, mas isso não as impede
de sonhar com uma história de contos de fadas: um príncipe encantado, um
casamento pomposo e um extasiante “felizes para sempre”. No mundo real, o
encantamento se descompassa, ninguém lhes garante felicidade, mas elas têm
certeza de que não podem ser solteironas eternamente. A mulher se frustra e a
sociedade a julga: o que tem de errado comigo? O que tem de errado com ela?
Baptista (1995) afirma que as mulheres têm vontades ambíguas: têm desejo
de abrir-se à vida social visto que seus papéis de mãe e dona de casa já não são
mais valorizados, todavia, continua achando-os relevantes e indispensáveis. Da
mesma forma querem inserir-se no mercado profissional que lhes proporciona
identidade própria e valorização, mas que, em contrapartida, oferece-lhes uma
sensação de incompletude. Nesse sentido, muitas vezes, vivenciam esses dois
aspectos como divididos e se sentem mal por estarem trabalhando e não ao lado
dos filhos. Entretanto, quando estão em casa, sentem-se incompletas, necessitando
dar vazão ao lado profissional e ser menos absorvidas pelas tarefas domésticas.
Logo, o feminino, conforme Rago (2004), vem ocupando um novo lugar no
imaginário social: anteriormente era inferiorizado em relação ao gênero masculino,
agora circula por diferentes espaços e acumula novas funções; de alguma forma,
papéis modernos e papéis antigos passaram a coabitar. Assim, percebe-se que as
mulheres vivenciam uma ambivalência de sentimentos em relação à conciliação de
seus diferentes papéis, seja na esfera privada ou pública: “[...] Mulherão é a
empresária que administra dezenas de funcionários de segunda a sexta, e uma
família todos os dias da semana” (MEDEIROS, 2001b, p. 205). Logo, haverá sempre
um malabarismo a fim de equilibrar a dupla jornada:
Pode-se afirmar que a dinâmica da emancipação feminina consiste em uma difícil combinação entre a importância crescente de obter e consolidar sua competitividade no mundo do trabalho e o desejo de manter um papel de destaque na esfera privada, isto é, cumprir com as novas exigências de autonomia individual, sem desvencilhar-se de seu lugar de liderança nas atividades domésticas (OLIVEIRA; TRAESEL, 2008, p. 161).
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Elas objetivam novas conquistas, mas perdem-se em meio a tantas
possibilidades: já não conseguem diferenciar o que lhes é exigido e o que é desejo
singular, “estamos competindo bobamente com os homens, infantilmente com
nossas avós e estupidamente com nós mesmas. Ainda desejamos provar ao mundo
que yes, we can” (MEDEIROS, 2012b, p. 46).
Conforme Gilles (2000), para a mulher, o fato de se dividir entre dois mundos
vem acompanhado de conflitos e de interrogações, de uma busca de conciliação de
tarefas, que é frequentemente fonte de culpa e de insatisfação:
Quero ventilação, não morrer um pouquinho a cada dia sufocada em obrigações e em exigência de ser a melhor mãe do mundo, a melhor esposa do mundo, a melhor qualquer coisa [...]. Queria não me sentir tão responsável sobre o que acontece ao meu redor. Compreender e aceitar que não tenho controle nenhum sobre as emoções dos outros, sobre suas escolhas, sobre as coisas que dão errado e também sobre as que dão certo. Permitir-me ser um pouco insignificante” (MEDEIROS, 2008a, p. 73).
Tal qual comentam Alonso et al. (2002), para as mulheres, o mais insólito, é a
vivência de uma autodeterminação, ou de uma autonomia na exploração das
possibilidades, nas escolhas ou até na criação e invenção de alternativas. De certa
forma, a mulher vem conquistando o poder de governar-se, todavia há uma
necessidade de preencher todos os espaços possíveis, provocando a vontade de
tudo na contemporaneidade.
„Olha pra essa menina. Sempre com essa cara. Nunca está feliz. Tem emprego, marido e filho. O que ela pode querer mais?‟ Nada é tão comum quanto resumirmos a vida de outra pessoa e achar que ela não pode querer mais. Fulana é linda, jovem e tem um corpaço, o que mais ela quer? Sicrana ganha rios de dinheiro, é valorizada no trabalho e vive viajando, o que é que lhe falta? Imaginei a garota acusando o golpe e confessando: sim, quero mais (MEDEIROS, 2008a, p. 72).
Essa vontade de tudo, que faz querer sempre mais, é o que Deleuze (1997b)
chama de “gorda saúde dominante”, onde não se hesita em qualificar o corpo e a
subjetividade, resultando numa total absorção e neutralização das potencialidades
autopoiéticas3 do indivíduo que dizem respeito à capacidade inventiva de si, da
potência criadora da existência e da ousadia de singularizar-se; é produção e
autoprodução. Consome-se tudo que estiver pela frente, mas não há satisfação, pois
não se encontra tempo para digerir tudo que é devorado. O corpo, principal alvo
3 Conceito proposto por Humberto Maturana e Francisco Varela que diz respeito à contínua produção
de si mesmo.
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dessa gorda saúde dominante, funcionaria, conforme Coelho (2006), como um para-
raios recebendo as inúmeras experiências contemporâneas sem tempo de digeri-las.
A saúde gorda ajuda a manter certo controle sobre o devir da vida, e a ideia de
estabilidade é uma garantia que encanta o desamparo inicial.
Florípedes Paiva foi assim descrita pelo brilhante Jorge Amado: "[...] pequena
e rechonchuda, de uma gordura sem banhas, a cor bronzeada de cabo-verde, os
lisos cabelos tão negros a ponto de parecerem azulados, olhos de requebro e os
lábios grossos um tanto abertos sobre os dentes alvos [...]” (1987, p. 3). Dona Flor
era viúva de Vadinho, um malandro irreverente de vida boêmia que morrera em um
domingo de carnaval: “todos reconheciam o morto, era largamente popular, com sua
alegria esfuziante, seu bigodinho recortado, sua altivez de malandro, benquisto,
sobretudo nos lugares onde se bebia, jogava, e farreava” (AMADO, 1987, p. 3).
Apesar de Vadinho ser um marido politicamente incorreto, Flor o amava: era uma
paixão avassaladora. Após um período enlutada, Flor casa-se com o farmacêutico
Teodoro Madureira, um homem inteligente, fiel e metódico, o oposto do falecido
Vadinho.
Apesar de levar uma vida tranquila ao lado do farmacêutico, a rotina começa
a incomodar Flor. É após a festa de um ano de casamento que ela toma um susto
ao deparar-se com Vadinho deitado nu em sua cama. Ele era invisível a todos,
menos a Flor; sua insatisfação deu vida a ele. A partir desse momento a narrativa
gira em torno da indecisão da personagem principal até sua rendição à antiga
paixão, daí o título do livro: Dona Flor e seus dois maridos. Dividida entre o
comedido Teodoro e o extravagante e voluptuoso Vadinho, ela decide viver o melhor
de dois mundos. Enquanto um oferece sensualidade, o outro é amável e leal. É um
triângulo amoroso na possibilidade ambígua e inclusiva de dois amores para o
desmedido desejo humano. Era a vontade de ter tudo ao mesmo tempo: fogo e
calmaria, aventura e segurança, paixão e gentileza.
Assim como Dona Flor, os sujeito envoltos pela gorda saúde, estão sempre à
procura da estabilidade e não medem esforços para alcançá-la. Comenta Pelbart
(2000) que esta gorda saúde do espetáculo – acabada, madura, fechada e concluída
– jamais poderia acolher, abrigar ou favorecer uma porosidade ao excesso, uma
abertura ou permeabilidade; a gorda saúde dominante “é incapaz de ver, ouvir ou
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deixar-se atravessar por tanto excesso” (PELBART, 2000, p. 66). É uma tentativa de
controle que, ao mesmo tempo em que mantém o indivíduo estável, dificulta seus
movimentos de singularização e impede a (re)invenção de si mesmo. Não significa
fugir do mundo, como ressalta Pelbart (2000), “mas de uma certa saúde inteiriça do
mundo, redonda, perfeita, acabada, irremovível como uma montanha, para opor-lhe
um outro estado, uma imperfeição, um inacabamento, uma imaturidade pela qual o
mundo possa depois invadi-lo, até tomá-lo de assalto, mas de outra maneira”
(PELBART, 2000, p. 64).
Seja Capitu, Emma, Flor, ou qualquer outra. Ainda que décadas tenham se
passado, não há uma nova mulher, mas sim novas possibilidades que permitem a
ela subjetivar-se de maneiras diversas, estimulando ou não seus processos de
singularização.
Diante destas reflexões acerca da condição de incompletude dos sujeitos,
questiona-se de que forma a mulher, mesmo envolvida por esta gorda saúde e pelos
modos capitalistas de assujeitamento, pode singularizar-se, potencializando
movimentos instituintes? É o que será abordado no capítulo seguinte.
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Figura 03 - “O que você quer ser quando crescer”, década a década
Fonte: Maitena Burundarena (Mulheres Alteradas 1, p. 75).
SINGULARIZAR-SE. Transformar-se.
Experimentar ser várias. Devir-mulher.
“Perigoso é a gente se aprisionar no que nos ensinaram como certo e nunca mais se
libertar, correndo o risco de não saber mais viver sem um manual de instruções.”
(Martha Medeiros)
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4.3 A ousadia de singularizar-se
Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.
Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê. Quem sente não é quem é.
Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu [...]
Fernando Pessoa4
Alberto Caeiro, Álvaro Campos ou Ricardo Reis. Fernando Pessoa, por meio
de seus heterônimos, encerra em si vários “eus”, habilitando-se a ver o mundo
através do outro. Há, inevitavelmente, uma dispersão do eu; os limites identitários
são rompidos. Pelbart (2000) comenta que Pessoa era especialista no assunto de
virar outro, de outrar-se; percebe que “ele-mesmo” é também um heterônimo.
Outrar-se diz respeito aos devires que a vida permite; as possibilidades de
“estar” outro, sem tornar-se o outro: o devir não produz outra coisa senão ele
próprio. A partir do encontro com o outro, embarcar em possíveis linhas de fuga
desterritorializantes e compor algo inusitado. Vir a ser outro, sem perder-se de si.
Os modos de produção capitalista potencializam modos de subjetivação um
tanto quanto peculiares, conforme Pelbart (2000), uma subjetividade emergente e
polifônica, passível de uma série de questionamentos:
Que novas velocidades e lentidões ela anuncia, que novos poderes de afetar e ser afetado ela libera, de quais novos afectos é ela capaz, que novas potências e impotências, alegrias e tristezas ela gera, que novas destrutividades aí se gestam, que novas paixões de abolição se anunciam, que novos modos de vida se esboçam? (PELBART, 2000, p.19).
É uma subjetividade que, ao mesmo tempo em que reterritorializa-se sobre
referências identitárias arcaicas e midiáticas (PELBART, 2000), investe nos
processos de singularização, percebe que pode ser um pouco de tudo e tudo em um
pouco. É uma subjetividade conforme Pelbart (2000, p. 19) “mais esquizo, mais
fluxionária, mais rizomática, mais de vizinhança e ressonância, de composição de
movimentos”. Ela pretende fugir dos assujeitamentos instituídos e conectar-se a
4 Não sei quantas almas tenho. (s.d.)
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outros que não os mesmos: é irrequieta, uma legítima peralta. Nesse sentido,
postula Medeiros: “Que eu não tenha medo nem vergonha de ainda desejar. Quero
uma primeira vez outra vez. [...] Quero seguir desfazendo as virgindades que ainda
carrego, quero ter sensações inéditas até o fim dos meus dias” (MEDEIROS, 2008a,
p. 73).
É o desejo por essa subjetividade travessa que faz questionar “que
possibilidades nos restam de criar laços, de tecer um território existencial e subjetivo
na contramão da serialização e das reterritorializações propostas a cada minuto pela
economia material e imaterial atual?” (PELBART, 2009, p. 22). Ou ainda, de que
maneira se pode viabilizar redes autônomas não comandadas pelo capital com
intuito de criar novos sentidos para a vida? A invenção, afinal, não é exclusividade
dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, conforme Pelbart
(2009, p. 23) “ela é potência do homem comum”.
A mulher deveria perseguir a lucidez sobre suas escolhas, e a mudança
deveria partir do desejo e não do simples fato de mudar. Qual é o papel e quais são
os espaços que elas querem habitar? Afinal, elas querem reinventar-se ou a
metamorfose é alheia à sua vontade? Vale pensar numa economia afetiva,
sobretudo, biopolítica, que, de acordo com Pelbart (2009) não se refere mais ao
poder sobre a vida, mas sim à potência da vida, aquela que tem consciência do
efêmero e sabe-se “capaz de agarrar o instante e lidar bem com o que não é
definitivo – ou seja, tudo” (MEDEIROS, 2008c, p. 151).
Em meio a essa tentativa frenética de dar conta de todas as suas tarefas, a
mulher esquece-se de si e de seus processos de singularização. Dedica-se tanto a
conquistar novos territórios que acaba por desterritorializar-se. Já não sabe o que
realmente deseja e lhe falta atrevimento para descobrir. Conforme Guattari e Rolnik
(2005), o que caracteriza os novos movimentos sociais não é somente uma
resistência a esse processo de serialização que o capitalismo vem infligindo, mas
também na tentativa de produzir modos de subjetivação originais e singulares,
“processos de singularização subjetiva” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 54).
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O feminismo, conforme Guattari e Rolnik (2005) não coloca apenas o
problema do reconhecimento dos direitos da mulher, mas é portador de um devir
feminino por se tratar de uma economia do desejo que
Tende a colocar em questão um certo tipo de finalidade de produção das relações sociais, um certo tipo de demarcação, que faz com que se possa falar de um mundo dominado pela subjetividade masculina, no qual as relações são marcadas justamente pela proibição desse devir (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 85-86).
É esse devir que está conectado à possibilidade que a mulher tem de
singularizar-se, de tornar-se outra e continuar sendo ela. Permitir-se singularizar é
um processo complexo e desassossegante, não acompanha regras, pois é singular,
diz respeito ao si, ao mim e ao me:
À raça dos desassossegados pertencemos todos, negros e brancos, ricos e pobres, jovens e velhos, desde que tenhamos como característica desta raça comum, a inquietação que nos torna insuportavelmente exigentes com a gente mesmo e a ambição de vencer não os jogos, mas o tempo, este adversário implacável. Desassossegados do mundo correm atrás da felicidade possível e, uma vez alcançado seu quinhão, não sossegam: saem atrás da felicidade improvável, aquela que se promete constante, aquela que ninguém nunca viu, e por isso sua raridade. [...] Desta raça somos todos, eu sou, só sossego quando me aceito (MEDEIROS, 2008d, texto digital)
5.
Quanto ao processo de singularização e às questões de gênero, Maria Rita
Kehl indaga-se “o que resta da mínima diferença?” (2009a)6. Entende-se que as
mulheres, na ânsia de igualarem-se aos homens, têm sua potência de variação
novamente capturada pelos pressupostos capitalistas. Singularizar-se opera
exatamente na lógica oposta, a da diferenciação, onde a potência de variação é
usada a seu favor, a fim de produzir heterogeneidades e desvios no itinerário:
Todos são tão compreensivos, aceitam tão bem suas escolhas, torcem por tudo que você faz, não é mesmo? Desde que você faça o que está no script. Que siga o que foi determinado no roteiro, aquele que foi escrito sabe-se lá por quem e homologado no instante em que você nasceu. Mas e quem não quiser seguir esse script? (MEDEIROS, 2008c, p. 150).
São as assimetrias da vida, as irregularidades do sujeito. Para Guattari e
Rolnik (2005) é um singularizar-se que corresponde à construção de novos modos
de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção e modos de
criatividade que potencializem uma subjetividade singular; é uma singularização
5 A raça dos desassossegados.
6 Café Filosófico.
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existencial que coincide com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade
de construir o mundo no qual se vive, afinal “o desejo só pode ser vivido em vetores
de singularidades” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 56).
Pensar o indivíduo e seus processos de singularização faz lembrar as linhas
de composição propostas por Deleuze e Parnet (1998) em que o sujeito seria
constituído por linhas de segmentaridade molares e moleculares.
Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são, pois, atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. [...] Se são inseparáveis, é porque coexistem, passam uma para a outra, segundo diferentes figuras como nos primitivos ou em nós – mas sempre uma pressupondo a outra. Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica (DELEUZE; GUATTARI,1996, p. 90).
No plano molar encontram-se as linhas de segmentaridade dura, que dizem
respeito aos processos já constituídos e afirmam, conforme Neves e Josephson
(2002), práticas políticas de individualização, intimização, evitação da diferença e
dos encontros produzidos pelos afetos e desejo na produção de real social; são a
família, a profissão, a escola, entre outros que mantêm o sujeito territorializado.
Martha Medeiros ilustra esta territorialização ponderando sobre a importância do
casamento e a consequente constituição de uma nova família:
Não adianta remar contra a maré. Desde que nascemos, fica combinado assim: cresça, estude e case. [...] Tudo te empurra para o altar, a começar pelos desenhos animados. Branca de Neve, Cinderela, até o Mogli encontra sua cara-metade. Festa de São João termina com casamento na roça. Desfile de moda termina com vestido de noiva. Novela termina diante do padre. O recado está dado: casou cumpriu. Se vai ser feliz, são outros quinhentos (MEDEIROS, 2002a, p.18).
Já no plano molecular, deparamo-nos com linhas de segmentaridade bem
mais flexíveis, pois traçam pequenas modificações, se permitem desvios, fluxos e
devires. Referem-se a um momento de ruptura, de passagem e dizem respeito às
forças do invisível e do desejo.
Imaginei a garota acusando o golpe e confessando: sim, quero mais. [...] O que eu quero mais? Escutar-me e obedecer ao meu lado mais transgressor, menos comportadinho, menos refém de reuniões familiares, marido, filhos, bolos de aniversário e despertadores na segunda-feira de manhã (MEDEIROS, 2008a, p. 72-73).
Também neste plano, a linha de fuga, um tanto quanto abstrata, pois mesmo
parecendo secundária às outras duas, “está aí desde sempre [...] ela não tem que se
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destacar das outras; ela seria, antes, primeira, as outras derivariam dela”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146); conjuga-se aos movimentos de
desterritorialização que buscam escapar dos códigos totalizadores das linhas duras.
São linhas de segmentaridade imanentes, se atravessam e interferem-se
mutuamente; é uma coprodução, uma produção compartilhada. Todos são
compostos por estas três linhas, porém em cada um alguma se sobressai. É preciso
possibilitar que elas coexistam: um pouco de chão em meio à tamanha
desterritorialização para que o limiar de suportabilidade não seja ultrapassado a
ponto de gerar uma séria ruptura no indivíduo. Volta-se ao núcleo identitário que
cumpre essa função territorializante, mas sempre a partir de um equilíbrio provisório.
O singularizar-se, assim, diz respeito à produção de si. Para Barros (2003) é
viver na ordem da imprevisibilidade, do risco; ver a vida onde ela acontece,
vinculada não à vida produtiva, mas à produção da vida, investindo na potência de
transformar o sofrimento em algo criador; e dar visibilidade a outros encontros,
outros modos de subjetivação que afirmem a vida com toda sua adversidade.
Singularizar-se é assumir riscos e compreender que o “mercado capitalista” não é,
de forma alguma, uma entidade externa aos indivíduos, pelo contrário, é uma
invenção do próprio Homem e cabe a ele acomodar-se diante das situações ou
canalizar forças para possíveis mudanças.
Mesmo desterritorializada pelo capital, a subjetividade, como menciona
Pelbart (2000, p. 20), descobre modos de escapar às suas capturas nas mais
insuspeitas direções, seja nas modalidades inéditas de socialidade, de resistência e
de implicação com o presente: “é o que nos cabe cartografar sem cessar – novas
políticas de subjetividade”.
Ao longo de sua escrita, Medeiros rememora grandes nomes da literatura
brasileira, dentre eles Clarice Lispector e o célebre “Laços de Família” (1960). Em
um dos contos, “Amor”, se conhece a personagem Ana, uma dona de casa, casada
e mãe de dois filhos. Sua vida resumia-se às funções domésticas, cuidava de todos
com esmero. Certa vez, enquanto andava de bonde, impactou-se ao ver um homem
parado no ponto: era cego e mascava chiclete. Não sabia o motivo, mas aquele
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homem a desconsertara; talvez porque o ato maquinal feito na escuridão
comparava-se ao estilo de vida que levava: repetitivo, acrítico.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso (LISPECTOR, 1998, p. 23).
Ana desceu do bonde desorientada; sentou-se em um dos bancos do jardim
botânico: “o mundo se tornara de novo um mal-estar [...]. O que chamava de crise
viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas,
sofrendo espantada” (LISPECTOR, 1998, p. 22-23). O olhar afinou-se, passou a
avistar coisas que normalmente eram-lhe imperceptíveis: os ramos que balançavam,
as sombras que vacilavam no chão, o pardal que ciscava na terra, a aranha no
tronco da árvore. Aquele encontro havia lhe afetado de maneira incomparável, o
cego, o chiclete e o parque desestabilizaram-na e fizeram-na questionar o estilo de
vida que vinha levando: “E por um instante a vida sadia que levara até agora
pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver [...]. A vida era periclitante. Ela
amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo” (LISPECTOR, 1998, p.
26).
Assim como Ana, o sujeito que ousa singularizar-se, não é paralisado a partir
do encontro com o mal-estar; pelo contrário, afeta-se de tal modo a produzir
possíveis deslocamentos. Na crônica, Medeiros evoca o sentimento da personagem
de Clarice Lispector: “seu coração enchera-se com a pior vontade de viver” (2008c,
p. 150). Para Martha a “pior” vontade é “complexa, angustiante, subjetiva e intensa”
(p. 150). Ela não está disposta a negociar com a vontade dos outros, é uma vontade
genuína e inocente. A “pior” vontade de viver é a de não enraizar-se, de não render-
se a anseios fixos, de permitir-se ao nomadismo. A “pior” vontade de viver vai ao
encontro da experiência de singularizar-se, é o desejo de desejar sempre mais, é
(re)criação, (re)começo.
É a vontade da criança que ainda levamos dentro, entranhada. É o desejo de açúcar, de traquinagem, de fazer algo escondido, de quebrar algumas regras [...] A „pior‟ vontade é curiosa, quer observar pelo buraco da fechadura [...] (MEDEIROS, 2008c, p.150).
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Singularizar-se corresponde aos devires minoritários e moleculares dos
sujeitos, opondo-se ao padrão majoritário cultural do homem-branco-macho-
racional-europeu (DELEUZE; GUATTARI, 1997) a fim de manter-se numa condição
de inacabamento e imperfeição. É a Frágil Saúde Irresistível (PELBART, 2000, p.
67) que, por não engolir qualquer coisa e não empanturrar-se tal qual a Gorda
Saúde Dominante, pode permanecer mais aberta e permeável “[...] as muitas coisas
com as quais entra em estranhas relações de choque e metamorfose”.
Cabe aqui recordar de Franz Kafka (1883-1924) e de um de seus contos, “Um
artista da fome”, publicado em 1922. O conto narra a história do declínio dos
jejuadores, de como sua arte deixou de ser celebrada e admirada ao longo do
tempo. Viveu anos rodando as cidades europeias, sendo desafiado por seu
empresário. Costumava jejuar em torno de 40 dias embora tivesse a certeza de que
poderia superar esse limite. Quando percebeu que o “espetáculo da fome” já não
agradava mais ao público, demitiu o empresário e empregou-se num grande circo.
Convenceu a todos de que apesar da idade, jejuava tão bem quanto antes; assim,
fora lhe cedido um espaço perto dos estábulos, trajeto obrigatório para o público.
Nos primeiros tempos mal podia esperar o intervalo entre as apresentações
para receber os curiosos: “encantado, dirigia o olhar para a multidão que se
aproximava, até que logo [...] se convenceu de que o objetivo daquelas pessoas era
sempre, sem exceção, visitar os estábulos” (KAFKA, 1998, p. 32). Aos poucos,
percebeu que já não recebia a mesma atenção do público: “o jejuador podia jejuar
tão bem quanto quisesse – e ele o fazia – mas nada mais podia salvá-lo: passavam
reto por ele” (KAFKA, 1998, p. 33). Aos poucos, o artista foi sucumbindo à fome, e
antes de desfalecer, esclareceu que o jejum era uma necessidade e quando
questionado do porque não podia evitá-lo, responde com convicção: “Porque eu não
pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu tivesse encontrado, pode acreditar,
não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo”
(KAFKA, 1998, p. 35).
Tal qual o jejuador do conto de Kafka, o sujeito da Frágil Saúde Irresistível
não aceita qualquer tipo de alimento, é exigente, porém é capaz de fluir entre a
Frágil e a Gorda Saúde, pois sabe que não pode singularizar-se todo o tempo.
Singularizar-se, nesse sentido, é deixar-se atravessar pelo excesso. É manter
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infinitas possibilidades de ser outras sem perder-se de si mesma. É admitir, como
explana Corso (2008), que ainda se pode ser muitas, mas nunca todas, o que um
dia se compreende que é um alívio. É experimentar-se como mãe, esposa, dona de
casa, profissional ou qualquer outra coisa, sem deixar de ser mulher, um “mulherão”
(MEDEIROS, 2001b, p. 205).
Em suas crônicas, Martha Medeiros expõe momentos de rebeldia
correspondentes aos desejos transgressores da maioria das mulheres que a leem,
permitindo possíveis identificações. Mulheres que não querem o tédio, que são
exigentes e querem ser surpreendidas; mulheres cheias de expectativas e que
atrevem-se ao “direito ao desatino” (MEDEIROS, 2008a, p. 72). Mulheres que
anseiam por sensações inéditas, mas que permitem-se, por algum momento, ser
insignificantes. Mulheres que “reconciliam-se com seus defeitos e fraquezas”
(MEDEIROS, 2008a, p. 73), que conectam-se com “outras possibilidades de existir”
(MEDEIROS, 2008a, p. 73).
São aquelas que querem ser valorizadas em suas funções, que colocam-se
na vida com uma “postura própria, autônoma” (MEDEIROS, 2012c, p. 30); são
mulheres que permitem-se à sensibilidade e que sabem diferenciar independência
de solidão. Mulheres com o poder de escolha e com uma “liberdade de ir e vir”
(MEDEIROS, 2012c, p. 30). Mulheres que desejam muito e por vezes nada, que
estufam o peito diante dos embaraços da vida, mas que assumem quando as coisas
não vão bem. Mulheres multifuncionais, acumuladoras de tarefas, mas que sabem
(mesmo sem admitir), que o melhor caminho para dar espaço às coisas novas é
jogar fora as coisas velhas. Mulheres de Vênus que insistem em visitar outros
planetas, pois são insaciáveis e inacabadas.
“Doidas e santas”. Delirantes e fascinantes. Imprecisas. Embora tenham
conquistado certa liberdade sexual com as lutas feministas das décadas de 60 e 70,
ainda chocam-se ao ver um “topless” na Praia da Barra. Mesmo resistentes,
procuram acompanhar as mudanças sociais e econômicas a bordo de seu veloz
“trem-bala”. Querem ser onipresentes e onipotentes, mesmo que por vezes sua
vontade seja a de esticar as pernas no sofá e olhar um programa de culinária na
televisão. Tentam convencer-se de que ser “feliz por nada” é um ótimo negócio por
mais que no fundo sempre procurem motivos para tal felicidade. É essa eterna
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incompletude que as faz olhar para si mesmas e ecoarem em alto e bom som: aqui
tem uma história!
E, por serem sedentas para inventar novas histórias quando a vida se
estreita, criam para si brechas para singularizar-se, pois sabem que a história só
sobrevive se cortada pela transformação, pela diferença. Embarcam em um devir
que compõe para além da relação binária homem/mulher. Experimentam uma saúde
frágil e instável. Galopam o devir-mulher, permitem-se o nomadismo.
Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo [...]. A pergunta „o que você devém? É particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de pura captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 184).
São seres que fluem e que buscam sempre alianças rizomáticas, evitando os
perfis identitários machistas ou feministas que fixam. O devir-mulher enquanto força
molecular, enquanto” possibilidade de fluir nos signos assignificados, isto é, produzir
novas subjetividades ainda não capturadas pela forma de existir do capitalismo”
(KRAHE; MATOS, 2010, texto digital). É a possibilidade de desmanchar a
hegemonia homem-branco-macho-racional-europeu avizinhando-se com o incomum;
é um delírio saudável, uma abertura ao inesperado. É manter as lacunas do
inacabado. É dar vida ao inevitável. Ter uma história e inventar novas. Multidevires
às multimulheres.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda no século passado, Freud confessou sua perplexidade à amiga Marie
Bonaparte (Kehl, 2009b) com a célebre pergunta: “Afinal, o que quer uma mulher?”.
Certamente não tinha a pretensão de respondê-la, e hoje, nem um exímio
entendedor se aventuraria nessa missão. Tentar resumi-la em uma única resposta
seria arriscar-se em demasia.
Ao que Maria Rita Kehl (2009b) afirma, graciosamente: “eu quero o mesmo
que você, seu bobo”. E o mistério continua, “o mesmo que você” é exatamente o
quê? São muitas mulheres, portanto muitos desejos. A simplicidade convive com a
vontade de tudo. É pura imprecisão. Indecisão. Hesitação. A graça reside na dúvida
e assim segue-se tentando desvendar os enigmas do mundo feminino. Afinal, o
querem (d)as mulheres?
Esta produção, longe de querer sanar certos questionamentos, teve como
objetivo lançar uma olhar crítico sobre o cenário atual na tentativa de identificar e
refletir sobre os modos-mulher que o contemporâneo vem potencializando. Propôs-
se ainda, discutir a respeito das possibilidades de singularização das multimulheres
a fim de que pudessem buscar outros modos de viver sua subjetividade.
Não ambicionava, de modo algum, sugerir um modelo de como as mulheres
devem ser ou agir, pois a expressão “multi” refere-se a um modo de ser mulher ou a
mil. O intuito, então, não foi desvendar verdades absolutas, afinal, o sujeito,
envolvido pela complexidade contemporânea, dispensa qualquer conclusão
reducionista a cerca de sua realidade.
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Escrever sobre as mulheres foi, inevitavelmente, escrever sobre mim.
Constituiu-se como um processo de autoconhecimento, pois também sou uma
multimulher, acumuladora de tarefas e funções; exigente, vertiginosa. Tive Martha
Medeiros, outra multimulher, como parceira de escrita durante vários meses. A cada
momento que eu retomava suas crônicas, parecia que estávamos batendo um papo
informal em um barzinho vintage. Era uma afetação total. Foi uma produção coletiva,
de modo a tornar-se menos dolorida e sufocante: “O ato de escrever, para mim, é
mais cura do que sofrimento” (MEDEIROS, 2011, texto digital).
Sendo a subjetividade fundamentalmente produzida e modelada no registro
social, compreende-se que a captura capitalista objetiva manter o sistema em vigor,
de forma eficiente e rentável. Os sujeitos cujos desejos foram capturados pelos
modos de produção capitalista inclinam-se a um empobrecimento subjetivo, à
vontade de tudo, sem nunca satisfazer-se.
Nesse sentido esta produção teve como finalidade lançar às mulheres
possibilidades de transpor os efeitos dessa captura a partir dos micromovimentos de
singularização. São forças que operam enquanto potência de variação, ou seja, de
devir múltiplas outras composições para si de modo a produzir-se continuamente,
mantendo sempre sua condição de inacabamento.
Encerra-se aqui mais uma etapa da graduação do Curso de Psicologia. É a
ansiedade e a alegria de chegar ao fim, mesmo que o fim nunca chegue. Sigo com a
expectativa de que esse olhar curioso e travesso nunca se canse de desejar sempre
mais, mais reflexões, deslocamentos... mais desejos. Um olhar sensível que afeta-se
com o movimento mais simples e formidável que possa existir.
Foram inúmeras mudanças, infinitos desassossegos. Era a famosa
metamorfose ambulante a qual referiu-se Raul Seixas em uma de suas canções.
Construção e desconstrução, tudo ao mesmo tempo, de modo a não mais
diferenciarem-se um do outro. Territorializar-se e desterritorializar-se. Para falar
sobre as mulheres, um espaço propício: caótico e provisório.
[...] Tente o novo todo dia. O novo lado, o novo método, o novo sabor,
O novo jeito, o novo prazer, o novo amor.
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A nova vida. Tente [...]. Experimente coisas novas.
Troque novamente. Mude, de novo.
Experimente outra vez [...]. O mais importante é a mudança,
o movimento, o dinamismo, a energia. Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco,
Sem o qual a vida não vale a pena! Clarice Lispector
7
7 Mudança.
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