as produções audiovisuais em super 8 e suas temáticas no final da década de 1970
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As produções audiovisuais em Super 8 e suas temáticas no final da década de 1970
na cidade de Juiz de Fora - MG1
SANTOS, Ana Clara Campos dos2 MUSSE, Christina Ferraz3
Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO: O artigo pretende analisar o contexto da I Mostra de Juiz de Fora doCinema Super 8, realizada em 1979 na cidade de Juiz de Fora-MG, seguindo preceitosdiscutidos no grupo de pesquisa Comunicação, Cidade, Memória e Cultura, doPrograma de Pós-Graduação em Comunicação da UFJF. Utilizam-se autores dememória e história oral, além de estudiosos de cinema e cultura do período entre 1964 e1984, época em que o regime militar vigorava no Brasil. Percebe-se que as temáticasdos filmes projetados eram correlacionadas aos sentimentos da época, como a
propagação de movimentos contraculturais, a admiração por cantores a favor daliberdade sexual e de expressão, e a preocupação de notar e retratar pessoas ditas àmargem da sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: História da mídia; audiovisual; super 8; memória; história oral.
1. Introdução
O presente artigo é um trabalho produzido para o projeto “Cidade e
Memória: a construção da identidade urbana pela narrativa audiovisual”, no qual é
pesquisada atualmente a I Mostra de Juiz de Fora do Cinema Super 8, realizada de 18 a
21 de dezembro de 1979. A abordagem trata o evento inserido em determinado contexto
político e cultural, seguindo preceitos discutidos no grupo de pesquisa Comunicação,
Cidade, Memória e Cultura, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFJF.
O método utilizado foi por entrevistas de história oral, baseadas nas
lembranças sobre um acontecimento marcante ou não na vida de pessoas que viveram a
época e tiveram alguma participação na mostra. Na memória de alguns, essas
lembranças são mais nítidas, na de outros, já nem tanto. Por questões de limitações ou
capacidade de armazenamento do próprio indivíduo ou por questões mais subjetivas,
como selecionar que fatos foram suficientemente marcantes para suas vidas, cada
1 Trabalho apresentado ao GT História da Mídia Audiovisual do 3º Encontro Regional Sudeste deHistória da Mídia, realizado nosdias 14 e 15 de abril de 2014 na Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ).2 Estudante de Graduação em Comunicação da UFJF e participante do grupo de pesquisa em
Comunicação, Cidade, Memória e Cultura. E-mail: [email protected] Vice-coordenadora do PPGCOM/UFJF e líder do grupo de pesquisa Comunicação, Cidade, Memória eCultura. E-mail: [email protected]
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entrevistado reconstruiu uma narrativa singular sobre aquele período que coincide com
a democratização lenta e gradual do país.
Como referência no campo da comunicação, foi utilizado o jornal Diário
Mercantil, considerado o meio impresso mais importante da cidade na época. Como
forma de manifestação cultural e artística, foi abordado um meio audiovisual: o cinema.
A bitola Super 8, muito popular nos anos 1970, tinha equipamento caro, mas ainda
assim era muito mais barato que o das bitolas de 16mm e 35mm. O Super 8 era
amplamente utilizado por amadores e por pessoas que se interessavam por fazer cinema.
Neste artigo, abordam-se, também, os aspectos artesanais do cinema analógico e as
temáticas de alguns filmes apresentados na mostra, que é nosso objeto de análise.
É importante lembrar que, no final da década de 1970, o governo militar
estava no ritmo de efetuar uma abertura política lenta e gradual. Um dos fatores que
enfraqueceu o governo ditatorial foi o fato de, em 1978, o presidente norte-americano
Jimmy Carter ter visitado o Brasil e deixado clara a insatisfação com a política brasileira
de direitos humanos. Em dezembro do mesmo ano foi revogado o Ato Institucional nº5,
que tinha iniciado em 1968, o momento mais duro do regime militar brasileiro. Antes
disso, o assassinato de Vladimir Herzog, no DOI-CODI (Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) do II Exército, em São Paulo,
em 1975, sinalizava que o arbítrio tinha seus dias contados.
2. A memória reconstruída pelas narrativas
Mais do que pesquisar fatos históricos em documentos oficiais, como na
imprensa local, a história oral é guiada pela memória e nos permite um conhecimento
mais multifacetado do passado, visto de vários ângulos diferentes. A notícia de jornal
pode ser apenas mais um relato. A história oral é plural e nos deixa a par dos
sentimentos de quem viveu determinado período, nos mostrando o que há além da
versão “oficial” dos fatos, levando em conta não apenas os fatores econômicos, políticos
e grandes movimentos sociais, mas também os pequenos movimentos culturais, os
subgrupos, as vozes periféricas.
O período estudado é a década de 1970, que teve sua maior parte dominada
pelo Ato Institucional nº 5, e foi a única década inteiramente sob regime militar no
Brasil. Livros e filmes são produzidos até hoje para mostrar o que se vivia naquela
época. Aspectos relacionados aos direitos humanos são hoje, quase trinta anos após o
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fim da ditadura, relembrados em depoimentos dados à Comissão Nacional da Verdade.
A comissão foi criada em 2012 para revelar casos de desrespeito aos direitos humanos,
principalmente no período de ditadura militar. No total, já foram dados 422
depoimentos4 à Comissão Nacional da Verdade em audiências públicas de diversos
temas. De acordo com Michael Pollak (1992), existem expressões que atribuímos a
certos períodos temporais que fazem referência direta a certos acontecimentos que
marcaram a memória social. Como os Anos de Chumbo5, que podem ser considerados
uma espécie de ferida coletiva, assunto que causa certo desconforto ao ser discutido, até
mesmo por ter, ainda hoje, fatos silenciados ao conhecimento da sociedade.
A história oral pode ser considerada subjetiva, pois a memória humana é
seletiva e não reproduz fatos concretos e unilineares. De acordo com Ecléa Bosi, “a
memória é, sim, um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela
cultura e pelo indivíduo (BOSI, 2003, p.53). Mas os jornais e documentos oficiais não
são também produtos de homens e mulheres que viveram ou estudaram determinado
período de tempo?
A história oral faz com que os entrevistados reativem memórias de acordo
com as perguntas, com o entendimento do entrevistador sobre o assunto e com a
vivência presente de ambos, de modo que cada entrevista se torna única. O que é
lembrado ou re-construído pelo entrevistado depende desses fatores. Segundo Jô
Gondar, “o próprio passado pode se modificar, a posteriori: a partir do relampejar de
uma experiência presente, podemos reativar e recombinar os traços mnêmicos, de modo
a reconstruir a nossa própria história” (GONDAR, 2000, p.41).
Os documentos podem nos dar uma visão simplista e ordenada dos
acontecimentos, mas não traduzem todo o sentimento e conflitos de uma época ou
acontecimento. A importância da história oral pode ser explicada por Maurice
Halbwachs, quando afirma: “fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar,mas também para completar, o que sabemos de um evento do qual já estamos
informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos permaneçam obscuras”
(HALBWACHS, 1990, p.25).
4 Disponível em: http://www.cnv.gov.br/index.php/component/content/article/2-uncategorised/364-tabela-de-eventos. Acesso em: 12 mar. 2014.5
Os Anos de Chumbo são assim chamados por representarem o período mais repressivo da ditaduramilitar no Brasil, estendendo-se do fim de 1968, com a instituição do AI-5, até o final do governo deEmílio Garrastazu Médici, em 1974.
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A história oral permite que registros sobre o tempo e o espaço vivido por
uma pessoa aflorem. Registros, estes, que não aparecem em jornais ou em outros
documentos. De acordo com Verena Alberti, a história oral constitui “terreno propício
para o estudo da subjetividade e das representações do passado tomados como dados
objetivos, capazes de incidir (de agir, portanto) sobre a realidade e sobre nosso
entendimento do passado” (ALBERTI, 2004, p.42). Dessa forma, as entrevistas são
úteis para situar-se no tempo e no espaço, permitindo uma compreensão mais ampla do
passado recente, reconstruído pelo diálogo, o silêncio, as hesitações e as dúvidas.
3.
A cultura na cidade do golpe
O golpe civil-militar de 1964 foi deflagrado na cidade de Juiz de Fora
(MG), o que torna a pesquisa mais interessante do ponto de vista acadêmico da
memória. O período de regime militar no Brasil aconteceu de 1964 até 1985; o golpe
civil-militar (civil, porque teve apoio de segmentos elitistas da sociedade) foi dado sob
o pretexto de que o presidente João Goulart era uma ameaça comunista. Com o regime
militar, as eleições presidenciais foram suspensas, o posicionamento político era motivo
de prisão, a cultura e a liberdade de imprensa e de expressão eram reprimidas. Apesar
disso, durante os primeiros anos do golpe, a cultura sobreviveu e teve grandes eventos:
“Juiz de Fora, em meados dos anos 1960, tem uma vida cultural muito intensa. Há
eventos variados, mostras de filmes, espetáculos de grupos teatrais de vanguarda,
exposições de artes plásticas, festivais de música, tudo isso, apesar da ditadura”
(MUSSE, 2008, p.155). Alguns desses eventos foram, por exemplo: em 1966, o 1º
Festival de Cinema de JF, evento que teve continuação no ano seguinte, com a
premiação do filme Terra em Transe, de Gláuber Rocha. Durante a década de 1960, a
Galeria de Arte Celina constituía um espaço de reunião de pintores, artistas plásticos,
cinéfilos, atores, músicos e escritores (MUSSE, 2008).As pessoas entrevistadas para esta pesquisa afirmaram que havia certa
liberdade cultural na cidade de Juiz de Fora. Talvez pelo fato de os prefeitos terem sido
da oposição: Um dos entrevistados, Flávio Cândido6, afirma que “havia um clima de
maior liberdade na cidade; acho que a gênese dessa liberdade estava no MDB, que é o
partido de oposição – consentida ou não, mas era de oposição – é uma outra cara, não é?
6 Nascido em 1957, Flávio Cândido Flávio Cândido curso engenharia civil de 1974 a 1978 na UFJF, mas
não se formou. Tinha 21 anos quando participou da mostra de Super 8 e estudou cinema em Niterói, naUniversidade Federal Fluminense nos anos 1980 para trabalhar profissionalmente. Hoje trabalha com produções em cinema, TV e produção cultural.
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(CÂNDIDO, 2013). Os entrevistados para este trabalho não tiveram problemas com a
polícia, nem se envolveram tanto com as questões políticas a ponto de precisarem ter
medo da ditadura. Mas todos tinham algo em comum: o interesse por assuntos políticos
e sociais, e o objetivo de poder mudar o pensamento vigente no país através das
imagens.
No final dos anos 1970, este grupo que fazia cinema, na maior parte das
vezes, não era composto de pessoas que faziam militância política. Aqueles que fizeram
mais militância, o grupo dos anos 1960, foram muito perseguidos depois do AI-5 e,
portanto, se desmobilizaram, foram para o exílio ou foram presos e alguns até
torturados. Com o início do processo de abertura, a partir do final da década de 1970,
esta nova geração, mais ligada na contracultura, começou a produzir.
De acordo com Antônio Walter Sena Júnior, conhecido como Toninho
Buda7, aquela época (depois de 1975) era de muita intolerância política, por causa da
ditadura, mas ao mesmo tempo, havia uma tolerância no sentido cultural. Ele diz que a
intelligentsia8 do país estava atiçada e produzindo muito: “Se estivessem acontecendo
coisas de cultura, normalmente todo mundo poderia falar, teoricamente, não é? Era um
momento de liberdade, e tal” (BUDA, 2013). Segundo Buda, Juiz de Fora sempre foi
um foco cultural do país, o ponto mais importante fora do eixo Rio - São Paulo, com
muitas produções culturais e artísticas:
Era uma coisa perigosa também, o que tornava a produção maisinteressante. Mas tinha uma efervescência na contracultura também,fabulosa. Que era todo o pessoal também que, decepcionado com aesquerda – que havia também esse momento de decepção com aesquerda – entrou muito para esse lado de esoterismo, sabe? (BUDA,2013)
A liberdade cultural era grande em todo o país, principalmente na área da
contracultura. De acordo com Heloísa Buarque de Hollanda (2004), no início da década
de 1970 chegaram ao Brasil as informações sobre o movimento contracultural – a
identificação dos artistas dessa vertente era com as minorias de gênero, étnicas, e não
mais com o proletariado oprimido.
7 Nascido em 1955, Toninho Buda se formou em engenharia na UFJF e tinha 24 anos na época da mostra.Atuou em diversas artes como música, cinema e teatro e também na área da saúde: atualmente é residenteem Educação Física, no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Adulto do Hospital
Universitário da UFJF.8 Pessoas que produzem trabalhos intelectuais complexos e criativos, com objetivo de desenvolver edisseminar a cultura.
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Como já é esperado na História Oral, as opiniões sobre o passado recente
são muito diferentes. Afinal, são relatos, todos eles contaminados pela subjetividade. O
entrevistado Márcio Assis9 também era da linha das produções contraculturais e
trabalhou como fotógrafo em jornais alternativos. Porém, ele demonstra tristeza ao dizer
que Juiz de Fora sempre foi uma cidade conservadora, independente da ditadura.
Falando especificamente da década de 1970, ele se diz pertencer a uma geração que se
rebelou contra o conservadorismo da cidade. E a forma de rebeldia era através das
imagens.
Apesar do que comenta Márcio Assis, Flávio Cândido afirma que a vida
cultural e a formação na cidade de Juiz de Fora eram fortes. Grandes obras do cinema
brasileiro e estrangeiro poderiam ser assistidas em cinemas comerciais e de rua. Flávio
Cândido acha curioso o fato de que se podia assistir ao filme O Encouraçado
Potemkin10 em cineclubes e um livro de Karl Marx: “era uma ditadura meio esquisita
(risos), você consegue comprar livro de Marx na banca, não era lá grande repressão;
embora tenha havido, foi muito mais branda do que nesses outros países
latinoamericanos” (CÂNDIDO, 2013).
Já Arthur Lobato11 tem outra visão sobre o assunto: “se a polícia entrasse na
sua casa e tivesse O capital, do Karl Marx, você ia preso. Era proibida qualquer
literatura que falasse „povo‟” (LOBATO FILHO, 2013). No mesmo ano, Lobato foi
diretor de cultura no antigo ICHL (Instituto de Ciências Humanas e Letras da Faculdade
de Filosofia e Letras da UFJF) e programou de fazer uma projeção do filme O
Encouraçado Potemkin, cuja exibição era proibida, mas a obra circulava, mesmo assim.
O entrevistado Márcio Assis conta que passou o ano de 1970 viajando fora
do Brasil – morou em Paris, Londres, Nova York e Los Angeles, por ser, segundo ele,
uma época muito rica, com muitas coisas acontecendo pelo mundo. Como ele, milhares
9 Nascido em 1950, Márcio Assis aprendeu a fotografar com o pai no inicio dos anos 1960 e na década de1970, morando em Nova York. Comprou seu primeiro equipamento semi-profissional e durante a décadade 1970, trabalhou na Gazeta Jovem (jornal do de Juiz de Fora) ajudou a criar a revista Momento, fundou,
junto com Cláudio Márcio de Aguiar Pinto, a "Corpus" núcleo de arte, entidade que promoveu váriasexposições e cursos. Atualmente trabalha para secretaria de cultura do Rio de Janeiro fotografandoacervos de museus.10 O Encouraçado Potemkin, dirigido pelo russo Sergei Eisenstein, tornou-se um dos mais respeitadosclássicos do cinema. O filme foi feito por encomenda para comemorar os 20 anos da RevoluçãoSoviética. Fonte: http://www.cineclick.com.br/oencouracado-potemkin. Acesso em: 24 de setembro de2013.11 Arthur Lobato estudou filosofia em 1979, na Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile/UFJF) e já tinhacarteira assinada como fotógrafo e cinegrafista. Em 1980, tirou seu registro profissional de jornalista
repórter cinematográfico, profissão que exerceu ininterruptamente até abril de 2013. Atualmente mora emBelo Horizonte e desenvolve trabalhos com vídeos e fotos, mas dá maior ênfase à carreira de Psicólogo,se envolvendo com um projeto de saúde do trabalhador.
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de brasileiros deixaram o país, alguns compulsoriamente: “Eu tive muitos amigos,
muitos parentes que tiveram que se mudar do Brasil para não ir mesmo parar nos porões
da ditadura, não é?” (ASSIS, 2013). No início dos anos 1970, ele havia voltado a Juiz
de Fora e ainda sentia o peso de o país estar sendo governado por militares.
4. A imprensa como espaço de resistência
Na década de 1970, a televisão emerge como meio massivo comunicacional,
ou seja, tinha uma programação quase inteiramente voltada para a massa. A Rede Globo
se consolida como líder de audiência, com programas cômicos e de entretenimento com
apresentadores como Chacrinha, Dercy Gonçalves e Sílvio Santos (BARBOSA, 2013).
O cinema também apresentava características da cultura de massa. Sem críticas políticasou sociais, a cultura de massa visava ao entretenimento para “distrair e afastar qualquer
tendência a fazer pensar” (VENTURA, 2000, p.60).
O jornal Diário Mercantil (DM) era considerado o meio de comunicação
mais representativo da cidade de Juiz de Fora na década de 1970. O jornalista e
colunista de cinema do DM, Décio Lopes, era um grande incentivador das artes,
principalmente da produção em cinema Super 8. É importante ressaltar que até mesmo
os documentos considerados oficiais passam por subjetividades – por mais objetivos
que pareçam ser, eles são influenciados pelo contexto no qual foram produzidos, como
afirma Gondar: “uma lembrança ou um documento jamais é inócuo: eles resultam de
uma montagem não só da sociedade que os produziu, como também das sociedades
onde continuaram a viver, chegando até a nossa” (GONDAR, 2005, p.17). O jornalista
Décio Lopes, falecido em 2012, era crítico de cinema e foi responsável pela promoção
da mostra de cinema Super 8 em sua coluna de cinema no jornal. Apesar de o Diário
Mercantil ter sido um jornal elitista e ter demonstrado apoio ao governo militar, Décio
era contra o regime e cobrava uma postura ativa dos jovens para mudar a situação do
país.
Décio Lopes também foi um dos responsáveis pelo Centro de Estudos
Cinematográficos (CEC) de Juiz de Fora. É perceptível o engajamento de Lopes com o
movimento, por trechos de suas matérias, como: “Juiz de Fora e a Zona da Mata têm
servido de inspiração e cenário para inúmeras realizações superoitistas” (LOPES,
1979b); ou ainda: “é hora de mostrar, seja o que for esteticamente, os resultados do
nosso movimento superoitista” (LOPES, 1979a).
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Por todo o incentivo aos cineastas independentes, Décio Lopes criou laços
com os cineastas da cidade, que o tinham com afeto. Segundo Arthur Lobato, Décio
influenciou toda uma geração e cobrou dos jovens uma posição ativa no processo de
transformação do país. Em entrevista, Toninho Buda disse que Décio era um grande
amigo e pertencia à contracultura à esquerda, lembrando que foi ele quem promoveu o
primeiro e único festival de Cinema Super 8 de Juiz de Fora: “Você fala em cinema em
Juiz de Fora, o nome é Décio Lopes” (BUDA, 2013).
5. A bitola e a mostra
A película de Super 8 foi lançada em 1965 pela Kodak como uma evolução
do filme de 8 mm, pois sua superfície de imagem era maior. O Super 8 foi amplamente
utilizado no Brasil na década de 1970 entre cineastas amadores, para eventos sociais e
registros familiares, sendo antecessor da fitas VHS12 e MiniDV13 como meio
audiovisual doméstico (SUPPIA, 2009). Para fazer filmes em Super 8 havia algumas
características peculiares que diferenciavam o Super 8 de outras películas. A começar
pelo preço: o Super 8 custava cinco vezes menos que a película de 16 mm e até vinte
vezes menos do que a de 35 mm (ROCHA, 2011). A câmera era portátil e simples de
usar, facilitando principalmente o acesso da classe média à bitola, pois ainda tinha
custos altos para as camadas mais populares.
O filme de Super 8 tinha cerca de três minutos para registrar o que
realmente era desejado. A montagem dos filmes era feita a mão: o filme era cortado e
emendado com fita adesiva. Girava-se uma manivela a rodar os fotogramas e assisti-los
em um visor. O aspecto manual e analógico do filme é algo que marca os antigos
usuários da película: “Naquela época, para você editar um filme Super 8, era um
trabalho quase que artesanal. Você tinha que projetar, cortar, emendar... E a gente
fazendo isso tudo de uma forma artesanal, mesmo” (ASSIS, 2013). Segundo FlávioCândido, que morava em Juiz de Fora na década de 1970, o filme de Super 8 era levado
para um laboratório fotográfico, e de lá era mandado para revelar em São Paulo,
12 VHS é a sigla para Video Home System (Sistema Doméstico de Vídeo). É um sistema de gravação deáudio e vídeo lançado em 1976, composto de fitas de vídeo e de um equipamento de gravação ereprodução que permitia o registro de programas de TV e sua posterior visualização.13 O vídeo digital ( Digital Video, ou DV ) é um formato digital de vídeo que permite a gravação em fitas
magnéticas. O MiniDV é um dos mais populares formatos de fita para DV e destina-se ao mercadoamador e semi-profissional, com a grande vantagem de um tamanho reduzido e qualidade superior,comparado ao formato VHS.
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demorando de 30 a 40 dias para voltar. Existia até mesmo uma emulsão que só era feita
no Panamá e usada para revelação (CÂNDIDO, 2013).
A maioria das câmeras não tinha som em trilha na película. Flávio Cândido
afirma que o som de um de seus filmes foi mostrado “ao vivo”, em f ita cassete,
sincronizado com a exi bição do filme. “O som era ao vivo. Como eu falei, gravei a fita e
a gente falava o texto, se tivesse que falar. Era muito precário, não é? Muito precário
porque as pessoas não tinham equipamento" (CÂNDIDO, 2013). Por conta disso, no
momento da exibição, o diretor lia algum texto ou comentava as imagens mostradas ao
público. E, finalmente, durante a projeção, havia o receio de o projetor mascar o filme e
todo o trabalho se perder.
O trabalho artesanal de revelar o filme e as dificuldades das produções
daquela época criam uma relação de afetividade do sujeito com o trabalho. Os cineastas
tinham tempo limitadíssimo para registrar uma imagem na película, em comparação às
câmeras digitais. O custo ainda era alto, atraindo apenas as pessoas que tinham mais
interesse e condições de comprar um equipamento.
Mesmo com algumas dificuldades e limitações, eram feitas mostras e
festivais por todo o Brasil, com espaços dedicados à bitola, nos quais eram exibidas
produções caseiras, comerciais ou cinematográficas. De acordo com Ana Carolina
Escosteguy e Cristiane Gutfreind (2007), em 1972, foi criado um festival do formato em
São Paulo; em 1976, um concurso de filmes sobre a cidade de Porto Alegre é
promovido pela prefeitura local. Ana Flávia Ferraz (2013) afirma que o Festival do
Cinema Brasileiro de Penedo (AL) aconteceu a partir de 1975 por oito anos
consecutivos. Era um espaço que o Super 8 ocupava juntamente com o 16mm e o
35mm, onde era realizada, inclusive, uma Mostra Competitiva Super 8. Outro evento, o
Festival de Cinema Super 8, foi realizado em Campinas (SP) entre 1970 e 1982
(SUPPIA, 2009).Um desses festivais dedicados ao Super 8 foi a I Mostra de Juiz de Fora do
Cinema Super 8, realizada de 18 a 21 de dezembro de 1979, no centro da cidade. A
mostra teve um júri formado pelo artista plástico, poeta e músico Eugênio Malta, pelo
jornalista Antônio Messias da Rocha Filho e por Neusa Lopes, jornalista e crítica de
cinema.
Segundo os entrevistados, o evento foi de grande importância. Toninho
Buda afirma que fazia filmes apenas para guardar, como se faz com fotografias, masquando surgiu a oportunidade, ele mandou quatro filmes. Márcio Assis diz que também
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não tinha nenhum objetivo, apenas o de registrar o momento e guardar em seu arquivo
pessoal. Já Flávio Cândido disse que não fazia os filmes por fazer – a mostra era como
um mercado de exibição, um estímulo à produção e exibição. Os entrevistados e seus
respectivos filmes foram os seguintes:
Toninho Buda exibiu quatro filmes na mostra: Capoeira14; O Sagrado e o
Profano15; Casamento Negro16 e Contatos Imediatos de IV Graal (Figura 1). Este
último ganhou a categoria de melhor filme experimental. O filme era uma “crítica feroz
à sociedade convencional” (BUDA, 2012), pois condenava as instituições da igreja, da
universidade e da família tradicional. A recepção não foi das melhores: o público ficou
indignado com o filme, principalmente pelo fato de as pessoas, na época, serem muito
ligadas à religião, segundo Buda. Algumas cenas deste filme foram divulgadas,
recentemente, em um longa-metragem sobre o cantor Raul Seixas17. De acordo com
Buda, os produtores do documentário gostaram muito de Contatos Imediatos,
principalmente por ser um documento que retrata a sociedade alternativa.
As câmeras Super 8 com som eram mais raras. A de Márcio Alcântara de
Assis possuía som e, por isso, ele produziu o filme Gil no Sport . Era o registro de um
show do cantor Gilberto Gil (Figura 2), “um ícone da liberdade brasileira” (ASSIS,
2013), no Sport Clube de Juiz de Fora. O filme registra toda a música Marina. O
interesse de Assis era pelo registro de som e imagem, da presença de palco do cantor.
Na Mostra, Flávio Cândido da Silva exibiu dois filmes: Malandança18 e
Ovelia. Recebeu por Ovelia (Figura 3) o prêmio de melhor filme, melhor fotografia e
melhor montagem. Remete ao conceito de “ovelha negra”. Segundo o autor, o filme é
um ensaio sobre uma luz que abre a cabeça das pessoas e as faz enxergar melhor as
coisas: “É uma coisa, uma necessidade que se tinha na época, da liberdade, da ânsia de
enxergar, de ver, discutir, etc. [...] Não tinha uma carga política explícita, embora
tivesse uma veia política” (CÂNDIDO, 2013).
14 Filmagem de um treino na Academia de Capoeira do Bonfim, em 1973. Toninho Buda fazia parte dostreinos de capoeira da academia.15 Segundo o autor, o filme é uma visita ao cemitério central de Juiz de Fora no dia dos mortos: são cenasdiversas, de pessoas rezando, acendendo velas e fazendo despachos de macumba.16 Cena da celebração de um casamento; a cena também é mostrada em Contatos Imediatos.17 O documentário sobre Raul Seixas no qual as cenas de Contatos Imediatos foram divulgadas se chama
Raul: o início, o fim e o meio, produzido em 2012. 18
Malandança é de temática social e tem caráter documental: Flávio Cândido explica que queria filmar pessoas na rua, mendigos, catadores, pessoas marginalizadas na sociedade burguesa. Malandança
significa uma andança ruim da vida.
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Arthur Lobato Filho (Figura 4) exibiu cinco filmes na Mostra: Experiências
de Animação; Resquícios; Fantasia Brilhante; Evolução Loucura Metafísica no Ser
Humano19 e Nordeste – Povo, Artesãos, Arquitetura. Este último ganhou o prêmio de
melhor documentário. De acordo com Lobato, Nordeste foi fruto de uma viagem que
fez de barco a vapor pelo Rio São Francisco atravessando a região nordeste do país. Ele
pensava de uma maneira preocupada com questões sociais:
Eu quero ir pro nordeste, mas eu quero mostrar a realidade, eu queromostrar a feira de Caruaru, eu quero mostrar o vapor, mas na visão dequem vive lá. Então, no vapor, eu filmava os trabalhadores, a mão deobra, os pescadores, então, assim, era uma tentativa de fazer umaanálise sociológica no meio a partir do ser humano, entendeu?(LOBATO FILHO, 2013)
Fernando Farinazzo participou da mostra com a animação Um Comício
(Figura 05). Foi encomendada ao autor uma vinheta para o Programa Teixeira Neto, um
programa de auditório da TV Industrial20. A ideia de Um Comício teve roteiro feito pelo
apresentador, Teixeira Neto, o qual aparece no filme como um candidato político, que,
após desagradar a população em um comício, precisou fugir das agressões do povo. O
filme foi feito com aspecto comercial e seria passado para a bitola 16mm, porém não
chegou a ser exibido na televisão, pois a TV Industrial deixou de veicular programação
local em 1979, quando foi vendida para a Rede Globo.
Nota-se, com a maioria das descrições, que os filmes revelam preocupações
sociais e uso da situação política corrente na época, mas, principalmente, demonstram
preocupações em compreender o mundo à nossa volta através de transformações
individuais. Outros filmes da mostra, cujos autores ainda não foram encontrados, têm
nomes que remetem a registros de fatos e eventos possivelmente correntes nas vidas dos
jovens que fizeram os filmes. Algumas temáticas foram: uma pescaria, festas de
carnaval, um campeonato de motocross, a filmagem de uma peça de teatro da época, um
casamento e a inauguração de uma boate. A questão do cotidiano, dos anônimos, passa
a fazer parte das preocupações dos diretores.
6.
Considerações finais
Percebe-se que as temáticas dos filmes eram relacionadas aos sentimentos
da época, como a propagação da Sociedade Alternativa, movimento contracultural
19
Filme de ficção, em que o autor apresentava todos os seus anseios e dúvidas existenciais.20 Emissora instalada em Juiz de Fora entre os anos de 1964 a 1979, período no qual foi o único canalcom programação local. Foi pioneira no interior do Brasil.
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popular na década de 1970; a admiração por certos cantores da época, como Raul Seixas
e Gilberto Gil, que eram a favor da liberdade sexual e de expressão; o registro do
cotidiano de pessoas à margem da sociedade, as chamadas minorias sociais – pessoas
em situação de rua, trabalhadores da região Nordeste do país. São produções que
revelam aspectos culturais, apesar de seus autores viverem em uma sociedade em que a
repressão autoritária do governo tentava, mas não conseguia reprimir os jovens de se
expressarem da melhor maneira que conseguiam: através das imagens. Os filmes
representam formas de ver o mundo e o desejo de mudar a qualidade de vida de si
mesmo e do próximo.
O cinema e as produções audiovisuais são formas de expressão cultural que,
se feitos de forma factual, ajudam a registrar determinados contextos. A bitola de Super
8, sendo um formato caseiro, mais acessível à população de classe média, possibilitou
que os cineastas amadores fizessem cinema e registrassem suas vontades, paixões e
características culturais da época. Apenas os que se interessavam de verdade pela arte
de filmar eram os que economizavam dinheiro para comprar equipamentos e fazer seus
filmes. Já os espaços dedicados à produção audiovisual, como cineclubes e festivais de
cinema eram lugares de sociabilidade e troca de experiências, como a I Mostra de Juiz
de Fora do Cinema Super 8. O jornal Diário Mercantil documentou a mostra e não
deixou que esta se perdesse no tempo. Em uma cidade de porte médio, o cinema era
uma das formas de entretenimento e, mesmo na época da ditadura, os jovens
conseguiam respirar em alguns espaços de liberdade e democracia.
Por meio dos depoimentos dos entrevistados, é possível conhecer diferentes
interpretações do passado e reconstituir a história recente do Super 8 de maneira plural.
Assim, distancia-se de uma visão unificada acerca do passado. Cada relato é único e real
para a pessoa que o conta, é sua própria verdade, independente da objetividade dos
fatos. A seleção feita pela memória dos entrevistados ajuda a reconstruir o passado emsuas diversas nuances, podendo ser semelhante, distinto ou mais detalhado do que a
forma como é apresentado nos livros de história ou nos jornais antigos. Os depoimentos
dos participantes da I Mostra de Juiz de Fora do Cinema Super 8 esclareceu pontos
obscuros e lacunas sobre este passado recente, ressignificando-o e permitindo uma
compreensão mais ampla da história.
Referências
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POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº 10,1992. pp.200-212.
ROCHA, Flávio Rogério. Ivan Cardoso e Torquato Nosferatu: O Super 8 Terrir na Marginália70. Revista Universitária do Audiovisual, jul. 2011. Disponível em: <http://www.rua.ufscar.br/site/?p=5078 > Acesso em: 31 jan 2014.
SUPPIA, Alfredo Luiz. As sete vidas do Super-8. 2009. Ciência e Cultura. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252009000100025&script=sci_arttext >.Acesso em: 31 jan 2014.
ANEXO I – Imagens
Figura 1 - Toninho Buda em Contatos Imediatos de IV Graal
Fonte: frame do filme Contatos Imediatos de IV Graal , de Toninho Buda e Antonio Guedes
Figura 2 - Gil no Sport , filme de Márcio AssisFonte: ASSIS, Márcio. Frame do curta-metragem Gil no Sport
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Figura 3 - Cena de Ovelia no jornal Diário MercantilFonte: Diário Mercantil , 15 fev. 1980.
Figura 4 - Arthur Lobato mostra sua câmera Super 8, que guarda até os dias de hojeFonte: http://www.youtube.com/watch?v=tL__277Qr6U&feature=youtu.be
Figura 5 – Um Comício: vinheta de abertura que não foi ao arFonte: frame do filme Um Comício, de Fernando Farinazzo