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AS RELAÇÕES SOCIAIS E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: UM OLHAR SOBRE A REALIDADE DOS ALUNOS DO CURSO TÉCNICO EM QUÍMICA-INTEGRADO

Professor PDE: José Natal de Oliveira1 Orientador: Dr. Sidnei José Munhoz²

Resumo

Este trabalho é fruto do envolvimento e participação nos estudos oferecidos pela

política de formação continuada para professores da SEED, o Programa de

Desenvolvimento Educacional do Paraná - Turma 2010. Compor o material

corresponde a analisar e mostrar como a cidadania se desenvolveu historicamente e

como a juventude compreende e vive a sua cidadania em seu tempo. Ao mesmo

tempo em que traduz a intenção de contribuir, de forma responsável e solidária, para

que se verifique o diálogo entre a teoria e a prática, busca-se atender às

expectativas pedagógicas quanto ao conteúdo “Cidadania e Relações Sociais”. Este

trabalho representa a preocupação em estabelecer uma linha de análise com base

nas Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, uma vez que a prática cidadã se

insere como um dos conteúdos específicos do eixo estruturante: Relações Culturais.

A sistematização deste estudo centraliza a abordagem e o diálogo com os

documentos e as representações das continuidades, rupturas e transformações

observadas neste processo histórico. O resultado da pesquisa e produção

estruturou-se em temáticas sobre os princípios que fundamentaram a cidadania na

Grécia Antiga com Aristóteles; a contribuição de Santo Agostinho para o conceito de

cidadania na Idade Média; as contribuições de Hobbes e Locke para a formação da

cidadania na modernidade e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que

continua sendo referência para as constituições democráticas na atualidade.

Palavras-Chave: Cidadania. Históra. Homem. Direito. Introdução

A elaboração do presente artigo tem a colaboração atenta e disponível do

amigo e Orientador professor Dr. Sidnei José Munhoz, que a despeito de toda gama

de compromissos acadêmicos constituiu-se em um interlocutor interativo. Provocou,

1 - Professor PDE de História do Colégio Estadual José Luiz Gori de Mandaguari.

² - Professor Associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá.

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abriu questionamentos e com seus apontamentos, ofereceu a possibilidade de

proceder a construção de um material capaz de subsidiar os alunos.

O estudo ora apresentado possui as dimensões que a situação de pesquisa

proporcionou. Sem colocar ponto final ao tema, pretende estimular o contato direto

de professores e alunos para aprofundar o debate. Objetiva também, estabelecer

diálogo com todos aqueles que se interessam e possuem inquietações no campo da

formação cidadã, finalidade especial da educação pública brasileira. Como toda

pesquisa conta com a possibilidade de novos desdobramentos, superação, e

apresenta caminhos a serem trilhados por futuros aprofundamentos nos momentos

de formação continuada dos profissionais da educação.

É relevante analisar as relações sociais para compreender como a cidadania

se revela numa sociedade de classes em que as ideologias dominantes sempre

prevalecem. Esta atividade além de atender às exigências do curso de formação

continuada PDE, apresentará ao Colégio José Luiz Gori e ao Município de

Mandaguari um retrato parcial, porém relevante de seus alunos da 1ª série do curso

Técnico em Química-Integrado tendo por finalidade contribuir na formação de

cidadãos conscientes.

A escolha do curso Tecnico em Química-Integrado do Colégio Estadual José

Luiz Gori se deve ao fato de que, por ser um curso profissionalizante, o tema

cidadania não desperte, naturalmente, o interesse dos alunos. Por serem ainda

jovens ou adolescentes, não receberam ainda uma sólida formação que os orientem

para uma presença ativa nos destinos de sua comunidade.

Ao manter contato com os alunos pode-se verificar que eles têm muita

dificuldade em perceber sua importância na sociedade, principalmente, no seu local

de trabalho, em sua moradia e na convivência social. Assim surgem os

questionamentos: Por que as pessoas mais simples não se interessam pela

organização social local? Por que muitas vezes são manipuladas pela mídia ou por

personagens que aproveitam de seu comodismo? O que leva essas comunidades a

defenderem ideologias de exclusão das quais são vítimas?

Partindo destes questionamentos é possível buscar respostas mesmo que

parciais com a intenção ajudá-las no processo de conscientização de seu papel

social e cidadão. Para que isso aconteça, a escola e, principalmente, os conteúdos

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das ciências humanas, “História”, são espaços favoráveis para o aprofundamento do

tema proposto.

Por esta razão, tem-se por finalidade neste trabalho, debater com os alunos

temas referentes à cidadania com intuito de mostrar o seu grau de influência ou de

participação no destino de sua comunidade ao exigir seus direitos como cidadãos;

incentivar os alunos e sua comunidade a se organizarem para conquistar seus

direitos; despertar nos alunos a prática cidadã em busca de interesses coletivos;

ajudar os alunos e sua comunidade a perceberem quando estão sendo manipulados

pelas ideologias dominantes; estimular os alunos para que estes se interessem

pelas causas populares na comunidade onde vivem.

A cidadania na Grécia Antiga

No Estado natural, em tese, todos os participantes da sociedade primitiva

tinham direitos iguais, limitados apenas pelas leis da natureza. Entretanto, como não

havia garantia alguma, também não havia direito. No Estado antigo primitivo, apenas

uma minoria tinha seus direitos de cidadania protegidos, sendo que a maioria da

população, como a mulher e o escravo, era desprovida desse direito.

A cidadania tem sido observada ao longo da história sob diversas

perspectivas e de várias maneiras, respeitando os direitos políticos e sociais

pertinentes a cada época. Na Grécia, a cidadania era uma condição humana

intimamente ligada à sua vida em sociedade. Pode-se destacar que para a

civilização ocidental tal concepção com origem na Grécia foi fundamental.

Na Grécia Antiga imperava o regime aristocrático que concebia ao aristocrata

a condição de cidadão como algo natural. Quem pertencia à aristocracia era

naturalmente cidadão. Para isso, bastaria nascer em território grego que seus

direitos políticos estavam garantidos. Conforme foram surgindo mudanças internas,

a cidadania também foi estendida a estrangeiros, permanecendo proibida apenas

aos escravos. Com essa mudança, o espaço que antes pertencia apenas à

aristocracia, passou a pertencer às Assembleias e aos Conselhos, que eram

constituídos de maior participação popular.

Mesmo com essa extensão do direito de cidadania, a sociedade grega

manteve a distinção social como forma de limitação da participação popular. Tal

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privilégio continuou sendo das altas magistraturas possuidoras de status e riqueza.

O termo cidadania continuou associado à prática política que sustentou a

democracia grega, que excluía muitos cidadãos de praticá-la devido sua relação

familiar. Quem era cidadão possuía um status que o colocava numa posição social

com mais direitos que o homem comum.

Na minha opinião foi Aristóteles, na obra Política, quem melhor definiu o que é

cidadania e quem eram os cidadãos para a sociedade grega. Para ele, toda cidade é

composta por cidadãos, que têm a capacidade de participar dos assuntos referentes

à justiça e ao governo: “Chamamos cidadão aquele que tem direito de participar nos

cargos deliberativos e judiciais da cidade” (ARISTÓTELES, 1998, 189).

Como é sabido, o homem, para Aristóteles é por natureza um “animal

político”. No homem, é inata a tendência de viver em sociedade com os próprios

semelhantes, sendo, portanto, a vida social uma necessidade natural. Entretanto,

essa sociedade precisa organizar-se. É preciso haver governo, pois decisões são

necessárias. Ao se indagar sobre quem deve participar do governo, no pensamento

aristotélico, surge a figura do cidadão. “É cidadão realmente ‘aquele que tem a

capacidade e a oportunidade de participar do governo” (ARISTÓTELES, 1999, 219).

Aristóteles trouxe grandes contribuições para o tema ora em exame. O

entendimento de Aristóteles influenciou não apenas a Grécia de seu tempo, mas

também muitas legislações de diversas épocas, especialmente a tentativa de

resgate dos ideais gregos, no período do Renascimento.

O Direito grego antigo trazia uma série de restrições sobre quem poderia ser

considerado cidadão. Eram considerados cidadãos os homens adultos (maiores de

dezoito anos), livres que contribuíam ativamente à organização da comunidade.

Quanto à participação na organização comunitária, Aristóteles sugere que “aquilo

que efetivamente distingue o cidadão dos demais é sua participação no judiciário e

na autoridade, isto é, nos cargos públicos e na administração política e legal”

(ARISTÓTELES, 1999, 212).

Excluíam-se do status de cidadão as mulheres, os escravos e os metecos

(estrangeiros habitantes na pólis). No mundo grego, o status do cidadão era

transmitido por meio de critérios de consanguinidade:

[...] de acordo com a definição de cidadania que propusemos, se esses antepassados participavam no exercício das magistraturas, então eram

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realmente cidadãos, na medida em que o critério de cidadania segundo a qual alguém é cidadão quando nascido de pai ou mãe cidadãos, nunca poderia ser aplicado aos primeiros habitantes de uma cidade ou seus fundadores. (ARISTÓTELES, 1998, 191).

Para Aristóteles, na prática, cidadão é aquele que tem pai e mãe cidadãos.

Por meio do significado político, que revestia a noção de (cidadania) e do sistema de

sua atribuição na sociedade grega, é possível constatar o caráter oligárquico da

primeira ‘democracia’. Assim sendo, entre os gregos, os conceitos de cidadania e de

cidadão estavam intrinsecamente ligados aos direitos políticos, à participação no

governo da pólis.

Nesse sentido, cidadão era aquele homem livre, possuidor de origem e de

algum bem econômico, por isso, inscrito no censo da cidade, que participava das

deliberações de interesse público, da jurisdição e seus consequentes benefícios.

(SILVA PINTO, 1997, 34).

O bom cidadão para Aristóteles tem características que o diferencia da

característica de homem bom. Assim ele o descreve:

A virtude do bom cidadão deve pertencer a todos porque é esta a condição necessária para a cidade ser melhor; mas, por outro lado, a virtude do homem bom não pode pertencer a todos, já que não é necessário que sejam homens bons os cidadãos que vivem na cidade perfeita, tanto mais que a cidade é composta por elementos distintos. (ARISTÓTELES, 1998, 197).

Com essa afirmação Aristóteles diferencia o bom cidadão do homem bom,

pois a cidade é composta de homens que nem sempre são prudentes e

responsáveis, mas todo bom cidadão deve possuir essas virtudes. Cabe ao bom

cidadão saber e poder governar e também saber ser governado, reconhecendo a

autoridade de todos os homens livres.

Essa autoridade pode ser exercida por um só homem ou por uma assembleia

dependendo do regime pertinente a cada cidade (monarquia ou aristocracia), desde

que todos que a exerçam sejam bons cidadãos, isto é, aqueles que na função

pública são movidos pelo bem comum. Por não governar visando ao interesse

particular, o bom cidadão não deve se perpetuar no poder:

O que é reto deve entender-se como equitativo; e o que é reto equitativamente deve visar o interesse da cidade e da comunidade dos cidadãos. Um cidadão é, em geral, o que alternadamente governa e é governado, mas o seu estatuto varia de regime para regime. No regime

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melhor, é cidadão aquele que é capaz e que escolhe deliberadamente governar e ser governado, visando uma vida virtuosa. (ARISTÓTELES, 1998, 239).

A alternância no poder garante a todo cidadão a oportunidade de governar

além de ser governado, pois ser apenas governado é o destino de todos aqueles

que não possuem cidadania. Isso também revela o critério de igualdade e liberdade

entre os cidadãos que só se realizam na vida em sociedade, pois, nela, o cidadão

está em função da cidade e não a cidade em função do cidadão.

Para Aristóteles quem não consegue fazer parte de uma comunidade e se

considera como alguém que se basta a si mesmo, não pode ser considerado

humano, é um “bruto” ou um “Deus”.

Portanto, Aristóteles considera cidadãos todos aqueles que vivem em uma

cidade e sem os quais a cidade não existiria. A cidadania está condicionada à

participação na administração da coisa pública. Como membro de uma Assembleia

que legisla e governa a cidade e administra a justiça, precisa ter tempo livre, o que

impossibilita a participação do escravo, do colono, do estrangeiro e da mulher.

Desse modo, os cidadãos na Grécia Antiga eram um número reduzido cujas

necessidades eram satisfeitas pelas demais camadas sociais.

A cidadania na Idade Média

Na Idade Média, pode-se constatar nova realidade social, econômica e

política que é responsável pelas transformações da sociedade. Durante a formação

do feudalismo várias mudanças aconteceram na esfera política e, por essa razão,

surgem dois tipos de cidadania. Nos primeiros séculos após a queda do Império

Romano, nota-se a perda do significado de cidadania herdado da antiguidade

clássica.

Os ideais de fidelidade ao espaço público, que marcaram a cidadania na

Grécia e em Roma, mudaram, transformando a participação política num assunto

secundário. As questões de cunho religioso superaram as de ideais políticos.

Os camponeses medievais herdaram dos bárbaros a prática de subordinação

à nobreza, responsável pela segurança e progresso de toda a sociedade como

questiona Marc Bloch: “Ninguém pensava que este (o povo) tivesse que ser

consultado, diretamente ou por intermédio dos seus eleitos. Não tinha ele como seus

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representantes naturais, segundo plano divino, os poderosos e os ricos?” (BLOCH,

450).

Essa questão, apresentada por Bloch, sintetiza bem o espírito cidadão da

época. Os pobres eram convencidos a se sentirem amparados naturalmente pelos

ricos pois esse era o seu destino preestabelecido pelas leis divinas. Assim, os

estamentos superiores eram os únicos que tinham o direito de ser julgados pelos

seus iguais. Os estamentos inferiores eram julgados pelos seus superiores,

dificultando o acesso direto e equilibrado aos direitos públicos e particulares a todos.

Constitui-se aí uma sociedade em que seus membros são diferenciados

política e juridicamente. O saber e o poder concentravam-se nas mãos do clero e da

nobreza, e davam apenas a estas castas, o direito de cidadania. Ser cidadão era,

nesse contexto, um privilégio da elite, consequentemente negado aos servos que,

para acessar o poder público, precisavam da mediação dos estamentos superiores

(clero e nobreza).

O pensador que mais contribuiu com essa mentalidade foi Santo Agostinho.

Herdeiro da doutrina paulina, Agostinho, na obra A cidade de Deus faz uma

interpretação à luz da Fé Cristã. Para ele, a história humana é a história da salvação

dos homens, considerando que a função do poder, das instituições e do cidadão no

mundo está a serviço desta salvação.

A proposta agostiniana na Cidade de Deus é apresentar a dupla face da

realidade humana: o homem como cidadão do mundo e o homem como cidadão do

céu. Diz Agostinho:

Dividi a humanidade em dois grandes grupos: um, o dos que vivem segundo o homem; o outro, o daqueles que vivem segundo Deus. Misticamente damos aos dois grupos o nome de cidades, que é o mesmo que dizer sociedades de homens. Uma delas está predestinada a reinar eternamente com Deus; a outra, a sofrer eterno suplício com o diabo. (AGOSTINHO, XV, I, 173).

Assim sendo, o homem medieval, adepto da fé cristã, aceitou a condição de

peregrino no mundo, tendo em vista a salvação. Já aqueles que continuaram

adeptos da cultura romana pertenciam à cidade dos homens, fixada no mundo.

Para Agostinho, na cidade terrena estão aqueles que amam a si mesmos e

desprezam a Deus; procuram sua própria glória; sua condição de cidadão é de

dominador. Na Cidade de Deus estão aqueles que amam a Deus e desprezam a si

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mesmos; buscam a glória de Deus; são peregrinos neste mundo alimentado pelo

amor e não pelo poder.

O filósofo considera a política como uma atividade fundamental para garantir

a paz e a justiça no mundo. Para que isso aconteça, o governante deve amar e

servir ao verdadeiro Deus.

Seguindo as orientações do verdadeiro Deus, é útil para a sociedade que ela

seja governada pelo mesmo homem por muito tempo e em qualquer lugar, pois sua

função é garantir a felicidade passageira, os bens materiais, para os seus

governados, que devem se preocupar apenas com a piedade e a bondade.

Os dons, que os governados recebem de Deus, são suficientes para lhes

garantir a verdadeira felicidade nesta vida e depois na vida eterna. A eles não é

importante se preocuparem com o governo das coisas terrenas.

Essa preocupação direcionada ao governante é indispensável para a

concretização do bem comum. Assim, os interesses coletivos superariam os

interesses particulares dos governantes e evitariam as injustiças sociais, a violência

e as revoltas populares.

O exercício do poder temporal só será bem sucedido quando governantes e

governados são conduzidos pela bondade Divina, procurando a paz temporal

sempre em comunhão com Deus.

O homem, por sua própria força, diz Agostinho, não consegue organizar uma

sociedade realmente justa. Ele precisa do auxílio de Deus, pois cada homem traz

consigo as marcas do pecado, das paixões e desejos desordenados, que, muitas

vezes, levam-no a dominar tiranicamente seus semelhantes.t

A criação de um Estado com a finalidade de ordenar a vida dos cidadãos na

busca do bem comum, só cumprirá esse propósito quando for permeado pelos

valores do Evangelho.

O Estado, segundo Agostinho, deve funcionar como a harmonia dos

instrumentos de uma orquestra, pois mesmo sendo diferentes entre si formam um

conjunto harmônico que revela a beleza da música. Diz o autor:

Assim como na cítara, nas flautas, no canto e nas próprias vozes se deve guardar certa consonância de sons diferentes, sob pena de a mudança ou a discordância ferirem ouvidos educados, e tal consonância, graças à combinação dos mais dessemelhantes sons, se torna concorde e congruente, assim também igual tonalidade na ordem política admitida entre as classes alta, média e baixa suscitava o congraçamento dos cidadãos. E aquilo que no canto os músicos chamam de harmonia era na cidade a concórdia, o mais

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suave e estreito vínculo de consistência em toda república, que sem justiça não pode, em absoluto, subsistir. (AGOSTINHO, II, XXI, 90)

Aqui Agostinho descreve a postura de Cipião quando este se refere à

república romana, comparando-a como uma grande orquestra, que, embora seja

formada por instrumentos diferentes, ambos cumprem suas funções para a beleza

da música.

Na sociedade deve-se respeitar as diferenças entre os cidadãos, seus direitos

e deveres para que a sociedade viva em plena harmonia. Para Agostinho, nenhuma

sociedade será capaz de subsistir sem reconhecer os direitos dos seus cidadãos.

Para ele, o povo não é uma massa sem rumo e sem ideais; o povo é formado por

pessoas, que possuem direitos e deveres, cujo governante deve regê-los tendo

sempre em vista o bem comum.

Ainda para Agostinho, o Estado que surgiu para promover a paz e o bem

comum dos cidadãos não pode se desvirtuar dessa missão. Segundo esse

pensador, o Estado existe em função dos cidadãos, mas só realizará esse objetivo

quando seus governantes se abrirem a Deus, que é verdade absoluta. Isso revela a

total dependência da criatura ao seu criador, para que aquele realize qualquer

iniciativa sobre a terra.

Agostinho entende que o Estado só será capaz de promover a convivência

pacífica dos cidadãos ao se decidir pela caridade, isto é, ao amor que Deus imprime

nos governantes e governados, despertando-lhes para o amor social. Uma

sociedade bem sucedida só é possível com o ideal do Criador, pois a felicidade que

os homens almejam na terra só poderá ser construída quando Deus for amado

acima de todas as coisas.

Para o autor, somente assim todos os cidadãos experimentarão a justiça e a

paz no mundo, enfrentando as dificuldades que são próprias de todos aqueles que

estão no mundo como peregrinos. O ideal de um Estado solidário e fraterno deve

prevalecer, pois este é também o desejo de Deus, que seus filhos tenham paz e

alegria neste mundo, mesmo que seja em vista da eternidade.

A cidadania na Idade Moderna: Thomas Hobbes

Com o advento da modernidade, três direitos foram fundamentais e surgiram

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separadamente para solidificar a condição de cidadania ao homem moderno: os

direitos políticos, civis e sociais. Os direitos políticos se firmavam no direito de votar

e de ser votado, pleiteando espaço no parlamento. Os direitos civis, voltados para a

jurisdição nos tribunais. Os direitos sociais se preocupavam em reajustar a

sociedade que se despertava para uma nova realidade, superando o modelo

medieval. Segundo Marshall:

O divórcio entre eles era tão completo que é possível, sem distorcer os fatos históricos, atribuir o período de formação da vida de cada um a um século diferente. Os direitos civis no século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX. Estes períodos, é evidente, devem ser tratados com a elasticidade razoável, e há algum entrelaçamento, especialmente entre os dois últimos. (MARSHALL, 1967, 66)

A separação entre os direitos, que são referencias à cidadania moderna fez

com que estes se parecessem estranhos, como se fosse possível fragmentar a vida

do cidadão em campos que jamais poderiam formar o conjunto dos direitos

fundamentais do homem.

Os direitos políticos, anteriormente privilégio da nobreza feudal, continuam

pertencendo a uma minoria, agora determinada por classe burguesa que sobrevivia

do trabalho árduo da maioria, que até este momento era destituída de cidadania.

A centralização do poder político foi responsável pela supressão temporária

dos pequenos direitos que os burgueses possuíam. Eles só voltaram a ser

importantes com a supressão das monarquias absolutas, por meio das revoluções

da modernidade.

Um dos pensadores importantes para a modernidade foi Thomas Hobbes,

que, embora coloque a questão da cidadania em segundo plano, atribui ao Estado

moderno a condição de independência em relação aos vínculos feudais. Segundo

Dal Ri Junior:

O soberano em Thomas Hobbes é já absoluto, tendo dizimado todos os vínculos patrimoniais, corporativos e familiares que poderiam interferir na sua relação direta com os cidadãos e com a cidade. Com o desaparecimento destas interferências, o cidadão se vê sozinho de fronte ao soberano. (DAL RI JUNIOR, 2002, 53)

Surge uma relação individual entre o soberano e o cidadão na perspectiva da

doutrina dos direitos naturais. Essa relação tornou-se conflituosa, pois já existia na

sociedade moderna a ideia de que a sociedade era um todo superior e acima das

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partes. Segundo Noberto Bobbio, tal concepção marcou a ruptura na ordem

constituída:

A concepção individualista custou a avançar porque foi geralmente considerada fomentadora de desuniões e discórdias, de rupturas da ordem constituída. Em Hobbes atinge o conflito entre o ponto de partida individualista (no estado de natureza só há indivíduos sem ligações entre si, cada qual fechado na sua própria esfera de interesses de todos os outros) e a persistente representação do Estado como um corpo em grande escala, um homem artificial, do qual o soberano é a alma, os magistrados são as juntas, penas e prêmios são os nervos.” (BOBBIO, 2000, 479).

A noção de igualdade entre os cidadãos está vinculada à ideia de que ambos

estão sujeitos à autoridade estatal. É, portanto, com Hobbes que se consolida a

ideia do cidadão como sujeito de direitos. Para Hobbes, o estado de natureza é que

garante aos homens a condição de iguais, tanto física quanto espiritualmente.

Nessa igualdade todos têm a mesma esperança em atingir seus objetivos,

sendo que estes podem desencadear uma luta constante entre eles. Vivem em

constante desconfiança e alimenta a competição. Neste estado, os homens dão

mais importância às paixões e desejos e, por não existirem leis, paixões e desejos

não são controlados. No Leviatã Hobbes afirma:

E dado que a condição do homem é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. (HOBBES, 1979, 78)

Para Hobbes, fica claro que diante da condição em que o homem se

encontra, faz-se necessária a criação de um sujeito artificial, o Estado. O Estado tem

como função combater as paixões humanas, buscando uma racionalidade que os

coloquem numa condição de paz. O Estado é o instrumento regulador das aptidões

humanas existentes no estado de natureza.

Dessa forma, individualismo extremo cede lugar a regras contratuais que

estabelecem um pacto com um só homem ou assembleia de homens, cuja função é

governar em nome de todos os cidadãos. Para isso, é necessário que cada um

renuncie ao seu direito de governar a si mesmo, entregando-o ao soberano e se

deixando governar por ele.

Assim, um homem ou uma assembleia de homens é o soberano sendo que

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todos os demais são seus súditos. O papel do homem, como cidadão, é garantir que

o pacto firmado entre todos com o soberano seja cumprido para que haja paz na

sociedade.

Hobbes admite a necessidade do cidadão e do soberano para evitar “o estado

de guerra” entre os homens, advogando assim um pacto de submissão do cidadão

ao Estado. Nota-se que Hobbes defende a necessidade de existirem garantias

individuais dos cidadãos, como limitadores do agir soberano. O cidadão é sujeito de

direitos.

Ademais, compreende Hobbes que o cidadão é igual aos outros. Não há

distinções entre classes, clãs, famílias. “Todos os súditos são cidadãos que se

sujeitam ao poder soberano estatal, na pessoa do soberano. Torna-se evidente,

portanto, o ideal de cidadão, como sujeito de uma série de direitos subjetivos”

(JÚNIOR, 2003, 56).

A cidadania na Idade Moderna: John Locke

O filósofo inglês John Locke entende que o estado de natureza garante ao

homem o direito de agir dentro do limites da lei, sem precisar ou depender da

vontade de outro. Neste estado, impera a igualdade entre todos, pois ninguém tem

mais poder e ambos estão submetidos às mesmas condições naturais.

A lei que rege o comportamento dos cidadãos é a razão e ela ensina que

nenhum homem tem o direito de prejudicar o outro em relação à sua vida, sua

liberdade e seus bens. Assim diz Locke:

O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão-só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses. (LOCKE, 1978, 36)

O ponto de partida para Locke é que, no estado de natureza, impera a paz e a

harmonia, desde que os homens que são dotados de razão não sejam empecilhos

para que todos desfrutem dos direitos naturais da propriedade. A propriedade para

Locke é especificamente a vida, a liberdade e os bens.

Nesse ambiente, impera a justiça e a caridade, pois os homens são movidos

por um amor recíproco que fundamenta os deveres que um tem para com o outro.

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Se para Hobbes a igualdade e a liberdade provocam conflito entre os homens, em

Locke, ao contrário, essa condição provoca a harmonia e o respeito mútuo. Para

Locke, os direitos naturais existem independentemente da existência de um Estado

consolidado.

A garantia da vida, da liberdade e dos bens é um desejo presente em todo

individuo e, por ele, buscam a harmonia, mesmo sem ter uma autoridade comum.

O estado de natureza, segundo Locke, caracteriza-se pela paz, boa vontade,

cooperação mútua e preservação, pois o que se procura é comum a todos. Dessa

forma, todos os homens são responsáveis pela execução das leis:

E para impedir a todos os homens que invadam os direitos dos outros e que mutuamente se molestem, e para que se observe a lei da natureza, que importa na paz e na preservação de toda a humanidade, põe-se, naquele estado, a execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens, mediante a qual qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei em tal grau que lhe impeça a violação, pois a lei da natureza seria vã, como quaisquer outras leis que digam respeito ao homem neste mundo, se não houvesse alguém nesse estado de natureza que não tivesse poder para pôr em execução aquela lei e, por esse modo, preservasse o inocente e restringisse os ofensores. (LOCKE, 1978, 36)

Locke, portanto, vê o estado de natureza de forma positiva para garantir os

fundamentos de uma cidadania focada nos direitos fundamentais. Mesmo assim, ele

considera necessária a formação de um governo. Ora, se o cumprimento e a

execução das leis são de responsabilidade de cada cidadão, por que é necessário

um governo? Locke procura justificar alertando que no estado de natureza pode

haver inconvenientes e violação dos direitos.

Nesse caso, o Estado surge com o dever de consolidar os direitos naturais,

ou seja, a harmonia. Para tal finalidade ele necessita de um contrato social que

conceberá a cada cidadão seus direitos naturais. É um poder limitado que só terá

legitimidade como correspondente dos anseios do cidadão.

O governo só existe para que os direitos naturais sejam preservados. Caso

isso não aconteça, cabe ao povo o direito de romper com o contrato social. Se o

Estado não cumprir a sua parte no acordo, a sociedade tem autoridade suficiente

para não cumprir também a sua parte.

A partir desse argumento tem-se aqui a transição do estado de natureza para

a sociedade civil que Locke a descreve:

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O homem, nascendo, conforme provamos, com direito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, por igual a qualquer outro homem ou grupo de homens do mundo, tem, por natureza, o poder não só de preservar a sua propriedade, isto é, a vida, a liberdade e os bens, contra os danos e ataques de outros homens, mas também de julgar e castigar as infrações dessa lei por outros (...). Contudo como qualquer sociedade não política não pode existir nem subsistir sem ter em si o poder de preservar a propriedade e; para isso, castigar as ofensas de todos os membros da sociedade, haverá sociedade política somente quando cada um dos membros renunciar ao próprio poder natural, passando-o às mãos da comunidade em todos os casos que não lhe impeçam de recorrer à proteção da lei por ela estabelecida. (LOCKE, 1978, 67).

Aqui se pode perceber que Locke analisa a natureza humana com mais

otimismo que Hobbes. O papel do Estado é limitado e os cidadãos têm do direito de

preservar a vida, a propriedade, a liberdade e todos os seus bens, além de serem

responsáveis pela correção do comportamento daqueles que não cumprem a lei.

Para Locke a realidade de vida dos homens faz com que eles busquem a paz e

preservem a vida utilizando-se da razão.

De qualquer maneira, os indivíduos abrem mão de seus direitos privados,

estabelecem um governo comum, que terá como objetivo a autoconservação e a paz

na sociedade. Essa sociedade é fruto do consentimento entre os homens e o

contrato é fundamentado no princípio de que é a vontade da maioria.

Nesse momento, a cidadania é estendida a todos os homens e, com ela, os

fundamentos da democracia moderna.

A declaração dos direitos do homem e do cidadão

No final do século XVIII, iniciando o período considerado contemporâneo

temos a influência da Revolução Francesa, que pretende sintetizar as características

que dão mais visibilidade ao conceito de cidadania. Nesse movimento

revolucionário, surge a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. É por

intermédio da Declaração que as nações democráticas fundamentam suas

constituições, elencando uma série de direitos que torne a vida cidadã possível de

ser praticada em todas as nações. Paul Singer, em seu artigo Cidadania é para

todos elege as dez primeiras cláusulas como a síntese da prática cidadã, proposta

pela Declaração:

1 - Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem se fundar na utilidade comum. 2 - O fim de toda

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associação política é a preservação dos naturais e irrenunciáveis direitos humanos. Estes direitos são a liberdade, propriedade, a segurança, a resistência a toda opressão. 3 - A origem de toda soberania está essencialmente no povo. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não se origina dele. 4 - A liberdade consiste em tudo poder fazer que não prejudique um outro. Portanto, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que os que asseguram o gozo dos mesmos direitos pelos demais membros da sociedade. Estes limites só podem ser fixados pela lei. 5 - A lei só tem o direito de proibir ações que prejudicam a sociedade. Tudo o que a lei não proíbe não pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que a lei não ordena. 6 – A lei é expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de participar pessoalmente ou por meio de seus representantes na elaboração da mesma. 7 – Nenhum homem pode ser acusado, detido ou mantido preso a não ser nos casos previstos em lei e nas formas por ela prescritas. 8 – A lei só deve prescrever castigos que são indubitável e evidentemente necessários e ninguém pode ser punido a não ser por força de uma lei aprovada, divulgada e juridicamente aplicada antes do cometimento do crime. 9 – Como cada homem é considerado inocente até que seja declarado culpado, se sua detenção for considerada inevitável, todo rigor que não seja necessário para assegurar a detenção deve ser severamente proibido por lei. 10 – Ninguém pode ser incomodado por causa de suas opiniões, inclusive as religiosas, na medida em que sua expressão não perturbar a ordem pública, inscrita na lei. (SINGER, 2008, 210-211).

O objetivo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é defender a

igualdade de direitos de todos os cidadãos e condenar as distinções sociais. É

importante salientar que a lei, ao expressar a vontade geral, permite que cada

cidadão tenha o direito de participar de sua elaboração. Cabe ao Estado preservar

os direitos à liberdade, à propriedade e à segurança dos cidadãos. Ela defende uma

liberdade que só poderá ser impedida se esta for causa de prejuízos à liberdade dos

outros cidadãos:

Este existe para estabelecer direitos iguais a todos os homens, ainda que perante a lei, e acenar com o fim da desigualdade a que os homens sempre foram relegados. Assim, diante da lei, todos os homens passaram a ser considerados iguais, pela primeira vez na história da humanidade (COVRE, 2005, 17).

Após essas concepções pode-se afirmar que os homens mantêm-se como

cidadãos na medida em que estão sujeitos às mesmas leis e podem utilizar-se delas

como forma de defesa e de intervenção no destino de sua comunidade.

A nova visão de cidadania considera que a violação da lei é a destruição total

das conquistas históricas que o homem teve em relação à sua liberdade, igualdade

e fraternidade que, nesse contexto, se resume na prática da cidadania.

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Reflexão cidadã apresentada pelos alunos

Antes da aplicação do Projeto em sala de aula, os alunos foram questionados

sobre suas posturas cidadãs frente aos problemas de sua comunidade. Por suas

declarações, ficou evidente a deficiência quanto à compreensão do conceito de

cidadania. Mesmo assim se manifestaram relatando a carência dos serviços públicos

com educação, saúde, segurança, moradia e outros.

Sobre a saúde, afirmaram que é apenas voltada para a prevenção da dengue

por ser uma preocupação nacional e, que mesmo assim, não atinge a população

rural. Na há hospitais para tratamento de doenças como infarto, derrame e vítimas

de acidentes, tendo que recorrer aos municípios de maior porte e de longa distância.

Em relação ao ensino, os alunos observaram a ausência de escolas do

ensino fundamental do segundo estágio e ensino médio nos bairros, pois ambas

estão localizadas no centro da cidade. A má distribuição geográfica das escolas

exige o deslocamento dos alunos que, com certos riscos, são transportados para as

escolas em condições desumanas de locomoção.

Sobre a segurança deram ênfase à agressividade dos policiais que, muitas

vezes, tratam o cidadão como marginal. Sua presença nos bairros é esporádica e

ineficiente, facilitando o tráfico e consumo de drogas, além de crimes e

agressividade entre moradores.

Também deram sua opinião sobre a corrupção visível nos programas sociais

do governo federal, como o bolsa família, que nem sempre beneficia quem

realmente precisa, sendo manipulado por agentes públicos para atender a

interesses particulares.

Questionaram a falta de projetos de orientação para a juventude nos campos

do emprego, do lazer e da cultura. A ociosidade cultural e profissional facilita o

ingresso de muitos jovens no mundo do crime e da promiscuidade.

Para os jovens, os agentes públicos eleitos pelo voto direto do povo nem

sempre cumprem as promessas feitas no ato da campanha, e a população não

exige tal cumprimento. Se os eleitos fossem responsáveis e cumprissem suas

promessas, o bem público seria respeitado e despertaria na juventude o interesse

pela política e, consequentemente, seria mais visível sua cidadania.

Após a aplicação do projeto em sala de aula, os alunos perceberam que a luta

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por uma cidadania mais eficaz era uma luta histórica, que, passando pelos gregos,

pelos medievos e pelos modernos, chegou, atualmente, como ponto de referência as

constituições democráticas, com base nos Direitos Universais do Homem e do

Cidadão.

Perceberam que as sociedades atuais são fundamentadas nestes alicerces

históricos. Por essa razão, salientaram a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão como fonte de orientação cidadã, que despertaram-nos para o interesse em

assuntos ligados à política, à economia, à educação, à saúde à segurança e ao bem

estar social.

Deram destaque especial à liberdade, considerando-a como essencial para a

concretização das lutas em defesa de seus direitos. Ao destacar a essencialidade da

liberdade, os alunos salientaram o compromisso ético em agir com responsabilidade,

para que sua ação não seja instrumento de agressividade que possa prejudicar o

seu semelhante.

Interessaram, também, pela organização da sociedade em pequenas

comunidades locais, para conscientização de seus membros a fim de exigirem seus

direitos e para cobrarem do Estado os benefícios necessários ao bem estar social, à

garantia de uma vida segura, livre, e com expectativas de futuro. Que as leis sejam

cumpridas com isonomia, dando aos pobres e aos ricos o mesmo tratamento.

Desta forma, o princípio da igualdade estará garantido e, com ele, a certeza

da plena cidadania.

Considerações Finais

Com essas noções históricas sobre cidadania pode-se estudar a história local

a partir das relações sociais. Por haver sobrevivido a longos períodos em que os

governos não favoreceram avanços sociais nem cidadania, uma parcela

considerável da população brasileira se sente inferiorizada e se comporta como

sujeito passivo que não se compromete com os problemas reais em seu cotidiano.

Tem-se aqui uma deficiência cuja raiz está numa visão limitada de mundo em

que os problemas devem ser solucionados pelos outros. Muitos não entendem como

sua responsabilidade lutar para garantir direitos fundamentais, como: liberdade de

organização, vida digna e participação nos destinos de sua comunidade e, por

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extensão, de seu país.

Mesmo assim, pode-se constatar que muitas lutas já existem, embora não

pareçam expressivas, mas mantêm vivo o espírito de inconformismo presente em

muitas comunidades. São resistências frágeis, mas que cumprem um papel social

na busca de soluções para seus problemas.

Nesse contexto, torna-se importante o papel de uma educação capaz de

provocar, junto a outras instâncias da vida social, as transformações desse modelo

de sociedade, que dificulta o acesso de cada sujeito à prática cidadã. Uma educação

que não busque a reprodução do sistema, mas que seja capaz de transformá-lo.

As mudanças pelas quais o mundo atual passa exige dos educadores uma

postura crítica e mais significativa para o ensino de História. A História, como

conhecimento sobre o homem e sua intervenção no mundo, deve permitir a

professores e alunos um posicionamento claro e decisivo frente aos problemas de

seu tempo, pois essa postura é fundamental para a formação cidadã.

Nas atividades realizadas em sala de aula, os professores de História devem

criar situações de ensino que levem os estudantes a saírem da condição de meros

espectadores e acumuladores dos fatos históricos, para ingressarem numa ação

educativa que os tornem participativos.

Assim, a escola será considerada o espaço de integração entre comunidade,

aluno e professor, enquanto se produz conhecimento. Nesse contexto, a educação

escolar integra-os ao mundo pelo conhecimento cognitivo e pela vivência, garantindo

uma prática cidadã capaz de promover avanços sociais.

O ensino de História na formação básica dos alunos deve capacitá-los para,

como sujeitos históricos, interferirem nos rumos da própria educação, assim como

no destino da sociedade. O ensino de Historia, assim compreendido, permite ao

estudante maior compreensão da realidade social em que cada um está inserido.

A relevância desta visão transformadora amplia a discussão sobre a prática

da cidadania, tendo-a como direito de vivê-la e dever de torná-la real e praticável.

O estudo da História, para os alunos do ensino médio, deve definir a

cidadania como uma atividade pública, onde o espírito comunitário e solidário se

revela superando a mera exigência de direitos.

Assim, a prática cidadã supera a ideia que os alunos têm da cidadania, que,

muitas vezes, não contempla responsabilidades com o Estado e com a sociedade. A

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compreensão desta realidade exige uma aproximação entre o ensino de História e a

cidadania vivida ou desejada pelo estudante.

Cabe ao professor de História promover o envolvimento de seus alunos com a

realidade cotidiana, articulando-a com os conhecimentos propostos. Esta articulação

se refere a questões políticas, econômicas, culturais e sociais. Ela exige

problematização e crítica das realidades e, ao mesmo tempo, formas de garantir ao

professor e aos alunos a condição de sujeitos que produzem a história nos

ambientes de trabalho, escola, bairro, etc.

Para Fonseca, assim se produz a cidadania:

Essa concepção de ensino aprendizagem facilita a revisão do conceito de cidadania abstrata, pois ela nem é algo apenas herdado via nacionalidade, nem se liga a um único caminho de transformação política. Ao contrário de restringir a condição de mero trabalhador e consumidor, a cidadania possui um caráter humano e construtivo, em condições concretas de existência. (FONSECA, 2003, p. 94)

Educar visando à formação da cidadania é um tema que perpassa o ensino

de História no momento. Para tanto, torna-se fundamental que o professor tenha um

olhar crítico, que possibilite ao aluno um ensino cuja aproximação com a vida

colabore com a formação da cidadania. Para Paulo Freire, esse processo só se dará

numa educação que seja:

[...] democrática, coerente, competente, que testemunha seu gosto de vida, sua esperança no mundo melhor, que atesta sua capacidade de luta, seu respeito às diferenças, sabe cada vez mais o valor que tem para a modificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua presença no mundo, de que sua experiência na escola é apenas um momento, mas um momento importante que precisa ser autenticamente vivido (FREIRE, 2002, p. 127)

A visão democrática do ensino de Historia, sua coerência e competência,

como afirma Freire, é preocupação deste projeto. Pretende-se compreender as

relações sociais que os sujeitos de uma determinada comunidade têm em seu

cotidiano, e que, sobretudo, se revelam na vivência em sala de aula.

A formação do cidadão e de sua cidadania é a garantia de uma sociedade

viva e atuante, que, embora esteja inserida na esfera global da humanidade, tem

uma vida concreta e ativa, onde sua história é escrita no cotidiano, através de suas

relações sociais.

Assim, pode-se considerar que a História, como conhecimento reordenado

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permite o entendimento da sociedade em suas diversidades histórico-culturais, onde

suas singularidades são referendadas no âmbito das dimensões macroestruturais,

quanto cotidianas.

Nesta concepção serão reconhecidos os níveis históricos do vivido, do

refletido e do concebido, pois, aí se encontram os homens e suas experiências

concretas. “Essa perspectiva exige de nós professores de história, outras posturas

em relação às temporalidades, à cidadania e ao ideal de progresso.” (FONSECA,

2003, p. 94)

Além das conclusões expendidas durante a exposição, conclui-se pelo

presente estudo que o instituto da cidadania é tema de alta relevância, e ao mesmo

tempo, alvo de grandes debates que permearam o desenvolvimento da sociedade

humana.

Ao longo da história, nota-se que a posição adotada, no que concerne ao

tema em destaque, definiu os rumos da participação popular no governo, bem como

determinou a amplitude do acesso dos participantes do Estado aos direitos.

No Estado antigo clássico, o status de cidadão era apenas do homem livre,

que inscrito no censo da cidade, podia participar das deliberações e da jurisdição

pública. Esta concepção antiga de cidadania, consistente nos direitos políticos

apenas de alguns, praticamente se manteve também na Idade Média.

Com o advento da Revolução Francesa e outros acontecimentos históricos do

final do Século XVIII, a cidadania passou a ser concebida como o direito de

participar das decisões políticas, porém ainda limitado a alguns membros da

sociedade, excluídas ainda as mulheres.

De forma geral, as Constituições brasileiras repercutiram a evolução da

concepção de cidadania, que, inicialmente, consideravam cidadãos apenas os

homens com os seus direitos restritos aos políticos. Apenas mais recentemente as

mulheres conquistaram direitos civis e sociais.

Contemporaneamente a concepção de cidadania foi ampliada, incluindo as

mulheres e todos os natos e naturalizados, com iguais deveres e direitos civis,

políticos e sociais.

Dessa forma, procura-se, neste estudo, um entendimento abrangente, que

considere a todos como cidadãos, sujeitos a direitos e deveres sociais, civis e

políticos, como decorrência do princípio da cidadania. Esse status de cidadania atual

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ultrapassa os limites da política e exige que cada cidadão seja um agente ativo, que

em sua comunidade lute para que os direitos individuais e coletivos sejam

respeitados por todos e pelo poder vigente.

Com o presente artigo, pretende-se formar um roteiro de estudos sobre as

políticas educacionais que possibilitem a realização do objetivo primordial da escola,

a formação cidadã, bem como buscar caminhos alternativos que façam a cidadania

se manifestar por meio da vida cotidiana das comunidades.

As atividades serão realizadas por intermédio da pesquisa de campo, que

constará de questionário para identificação da realidade vivida pelos alunos, em

relação à sua prática cidadã local. As informações serão mapeadas, analisadas e

discutidas com os alunos, com a finalidade de propor condições de ação junto à sua

comunidade. Todos os passos serão precedidos da literatura proposta nas

referências e de outras que se fizerem necessárias para fundamentação.

Dessa forma, pretende-se realizar uma ampla e detalhada discussão sobre

alguns conceitos históricos de cidadania que possam contribuir para um efetivo

processo de inclusão cidadã no âmbito educacional e social. Isso se torna

necessário, por considerar que, muitas vezes, a comunidade escolar se mostra

alheia ao seu papel como cidadã. Isso ocorre, talvez, por carência de conhecimento

sobre o real objetivo da escola na formação cidadã dos jovens e das crianças.

As discussões serão feitas com o objetivo de possibilitar aos alunos do curso

de Química-integrado do Colégio Estadual José Luiz Gori, melhores condições de

viver e proclamar a cidadania na escola e em sua comunidade.

Para aquisição destas competências foram realizados encontros de

orientação com o professor Dr. Sidnei José Munhoz, orientador da IES, revisão

bibliográfica, estudo e sistematização dos referenciais teóricos, produção didático-

pedagógica, execução do projeto, sistematização das experiências na organização

do trabalho com os discentes, e a elaboração deste artigo científico.

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