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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
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AS REPRESENTAÇÕES DE THEOPHILO BRAGA SOBRE AS ANOTAÇÕES ESTUDANTIS DE SALA DE AULA (SEBENTAS ACADÊMICAS) NA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA (SÉCULO XIX)
Marcia Terezinha J. O. Cruz1
Anotar: uma prática milenar
Segundo Cruz e Felgueiras (2017), desde os tempos mais distantes o homem realizou
anotações relativas ao seu cotidiano. Registros que situaram e deram significado à vida do
homem no mundo.
O ato de descrever a realidade por meio do desenho signos, seres, paisagens e objetos, faz parte da vida humana desde os mais remotos tempos. As pinturas rupestres realizadas por nossos ancestrais registravam suas vivências sociais: a plantação, a colheita, o pastoreio, os rituais festivos, os de iniciação, dentre outros. As anotações, em diferentes temporalidades, espaços e suportes, têm acompanhado a trajetória histórica do homem: registros de cunho religioso, de viagens marítimas, de aristocratas, de cientistas, entre outros. (CRUZ; FELGUEIRAS, 2017, s.n.t)
A prática de anotar tem sido estudada por diversas áreas do conhecimento. Da História
à Ciência da Computação. Relacionadas à Educação, têm sido objeto de investigação por
parte da Psicologia e da Psicologia da Educação, assim como, da Linguística, da Tecnologia
da Informação, dentre outros.
Neste texto discorremos acerca de anotações estudantis de sala de aula relativas ao
ensino superior-universitário.Nossa perspectiva toma como base os pressupostos teóricos-
metodológicos da História Cultural (Burke, 1992; Chartier, 2002). Como modo de conhecê-
las lançamos nosso olhar sobre a Universidade de Coimbra e, nela, na Faculdade de Direito,
lócus onde tal prática se fez presente desde longa data.
Para a escolha do marco temporal, finais do Século XIX, levamos em conta ser este um
período de grande efervescência política e estudantil, quando as denominadas ‘sebentas’
foram alvo de diversas críticas na imprensa portuguesa.
1 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, com estudos de Pós-Doutoramento na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisa em História da Educação: Memórias, sujeitos, saberes e práticas educativas (GEPHED), da Universidade Federal de Sergipe. E-Mail: <[email protected]>.
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Objetivando investigar referidas anotações e o percurso da prática no interior da
Universidade de Coimbra, buscamos as representações de Theophilo Braga, ex-aluno da
Faculdade de Direito que, após o advento da República, chegou a ocupar o cargo de
Presidente interino de Portugal, sendo também autor de obra em 4 volumes que discorreu,
no final do Século XIX, acerca da História da Universidade de Coimbra.
As representações podem ser entendidas como “esquemas intelectuais incorporados, a
partir dos quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser
decifrado” (CHARTIER, 2002, p. 17). Também podem identificar “o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada
a ler” (CHARTIER, 2002, p. 17).
Em outras palavras, podem ser compreendidas, segundo Chartier (2002), como
práticas que encarnam o social.Portanto, não são construtos neutros, mas, modos de estar no
mundo, impor uma autoridade à custa de outras e justificar para os indivíduos as suas
escolhas.
Apreendemos as representações de Theophilo Braga a partir de dois escritos específicos
(Braga,1898; 1899), que trataram dessa questão. Também utilizamos exemplares de Sebentas
Académicas disponíveis na Universidade de Coimbrae iconografia, por meio de imagem. A
utilização dessas fontes buscou responder às questões:Qual o percurso histórico da prática
das anotações estudantis no interior da Universidade de Coimbra? Qual o sentido da prática
para os agentes?
Os resultados a seguir apresentados constituem-se tão somente em um dos possíveis
olhares acerca dessa prática que, sob novos suportes, permanece no ensino superior
universitário até o Século XXI.
Theophilo Braga: um intelectual controvertido
Joaquim Theophilo Fernandes Braga, nasceu na Ilha de São Miguel, em Açores, no ano
de 1843. Desde a mais tenra infância enfrentou muitas dificuldades, a primeira delas, aos 3
anos de idade, quando se tornou órfão de mãe. Era filho Joaquim Manuel Fernandes Braga,
um ex-militar e professor do Liceu de Ponta Delgada. Ainda muito cedo demonstrou aptidão
para a escrita literária e grande determinação para alcançar o seu sonho de ser “doutor”.
Em 1861 mudou-se para Portugal continental, tendo se matriculado na Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra. Com poucos meios de subsistência, Braga não teve a
mesma vida boemia de tantos outros estudantes. Ao contrário, “A preocupação de encontrar
alojamentos mais baratos foi uma constante na vida académica de Teófilo, atendendo à
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exiguidade dos seus recursos”. (HOMEM, 2010, p. 211). Os períodos mais reclusos
propiciaram que Braga enveredasse pelo caminho da literatura e do jornalismo, o que já
havia sido vivenciado em sua adolescência, em São Miguel.
A dedicação aos estudos logo projetou Braga junto ao corpo docente “Os professores
notavam o seu bom desempenho académico, conhecendo igualmente o seu talento literário.
Conquistara também o respeito dos colegas, que o encaravam como uma comprovada
inteligência e como um laboriosa vontade, antevendo-lhe largos voos”. (HOMEM, 2010, p.
218).
Theophilo Braga integrou a chamada “geração de 1870”, um grupo de estudantes
universitários coimbrãos formado, dentre outros, por Antero de Quental, Eça de Queirós e
Ramalho Ortigão que, por volta de 1865, insurgiu-se contra o Romantismo e fez trazer, na
literatura, as ideias do Realismo. Esse impacto cultural reverberou no plano político e trouxe
contribuições para o movimento que levou à Proclamação da República, em Portugal, em
1910.
Após tornar-se Bacharel em Direito, em 1866, seguiu os estudos por mais um ano,
obtendo o título de Doutor, o que o habilitava à docência. Realizou alguns exames para
ascender ao magistério superior. Todavia, viu sua pretensão naufragar em diversas
oportunidades, como destaca Homem (2010):
Antes do doutoramento, candidatou-se à cadeira de Direito Comercial da Academia Politécnica do Porto, mas ficou excluído por unanimidade [Segundo entrevista concedida por Theophilo Braga à Revista Illustração Portuguesa, em 1906, o vencedor era cunhado de um dos membros da banca] [...] Depois dele, aguardou longamente que fossem abertas vagas de lentes substitutos na Faculdade de Direito em Coimbra para poder disputar uma delas. [...] em Fevereiro de 1871 viu-se preterido por outros candidatos, que considerava inferiores a si, no concurso que finalmente abrira para o provimento de lentes substitutos da Faculdade de Direito. Um dos admitidos foi Luís Jardim, a quem escrevera, em 1866, parte da dissertação inaugural [...] Teófilo Braga se apresentou, em Maio de 1872, ao concurso oficial para provimento da terceira cadeira (Literatura Moderna da Europa, especialmente a portuguesa) do Curso Superior de Letras.
Além do estudo do Direito, Theophilo Braga se dedicou às lides políticas, onde se filiou
à matriz republicana e veio a ocupar o cargo de Deputado e, posteriormente de Presidente
interino da República de Portugal. Foi poeta, ensaísta e folclorista e, de sua pena foram
publicadas aproximadamente trinta obras, um volume considerável de escritos. Todavia,
severas críticas recaíram sobre a produção intelectual de Braga, assim como, sobre sua pouco
cuidada apresentação pessoal (Homem, 2010). Apreciações e julgamentos, em grande parte,
realizados por outros literatos.
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A respeito das críticas sofridas por Theophilo Braga lembramos, como ensinado por
Bourdieu (2004), que o “campo” é um lugar de permanente disputa e que, portanto, está
eivado constantemente por tensões, ou seja, “Todo campo, o campo científico por exemplo, é
um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de força
[...]” (BOURDIEU, 2004 p. 24)
Ainda no tocante ao campo científico, Bourdieu prescreve que este é:
[...] o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem e difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. A noção de campo está a designar aí esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de leis próprias” (BOURDIEU, 2004, p. 20)
As críticas realizadas a Theophilo Braga, em seu tempo,parecem indicar ‘uma crise de
reconhecimento’de seu papel e produção intelectual e, não só. A ele eram atribuídas infrações
à propriedade intelectual que vieram a público em forma de publicações como ‘Um Plágio do
Professor Teófilo Braga’, de Ricardo Jorge, e ‘Uma Esperteza. Os Cantos e Contos populares
do Brazil e o sr. Theophilo Braga. Protesto’, por Sílvio Romero.
A respeito da natureza do campo e da aceitação de um agente em seu interior, Bourdieu
(2004), assim se posiciona,quanto ao campo científico:
[...] uma espécie particular do capital simbólico (o qual se sabe, é sempre fundado sobre atos de conhecimento e reconhecimento) que consiste no reconhecimento (ou no crédito) atribuído pelo conjunto de pares-concorrentes no interior do campo científico [...] levando em conta os sinais de reconhecimento e de consagração [...] (BOURDIEU, 2004, p. 26).
Quanto à Theophilo Braga, cuja imagem é a seguir apresentada, contrariando a
opiniãodos detratores e, a partir de uma perspectiva atual, Homem (2010)considera que o
pensamento e a ação do açoriano:
[...] marcaram alguns dos mais decisivos momentos intelectuais e políticos que foram vividos em Portugal nos séculos XIX e XX. No plano literário, contribuiu, com Antero de Quental, para a renovação dos respectivos cânones estéticos, travando a polémica da “Questão Coimbrã”. No plano filosófico, foi o introdutor do positivismo em Portugal. No plano político, chefiou a ala federalista do republicanismo português
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Imagem 1 – Teófilo Braga - últimos tempos. Os Deputados Repúblicanos eleitos pelo Circulo Occidental de Lisboa.
Postal ilustrado. Archivo Republicano, ca 1910 Biblioteca Nacional de Portugal. PI. 2662 P.
Por ser um intelectual ligado ao Direito, Literatura, Folclore e Política, consideramos
importante para o estudo do tema‘sebenta’ conhecer o olhar de Theophilo Braga, exatamente
por ter sido ele um estudante com pouco recursos, que deve ter adotado estratégias diversas
para auferir recursos que lhe possibilitassem arcar com os custos do estudo na Faculdade de
Direito, em um tempo em que comprar livros requeria elevados recursos financeiros. Quais
suas representações acerca de se produzir e utilizar uma sebenta?
A Universidade como parteira: nasce a Sebenta Académica em Coimbra
Ao situar historicamente a prática das anotações estudantis no ensino superior
europeu, verificamos que esta surgiu juntamente com a fundação das universidades,
assumindo diferentes denominações a cada localidade do continente: ‘apostille’ na França,
‘appunti’ na Itália e ‘apunte’ na Espanha,dentre outros epítetos (Cruz; Felgueiras, 2016).Esse
surgimento ocorreu inicialmente no estudo do Direito e da Medicina, sendo que sua inserção
como prática cotidiana foi resultado da conjugação de diversos fatores ligados à constituição
de cada universidade (Castelli, 1991).
Especificamente quanto ao Direito, cujas faculdades eram denominadas no período
medieval de Leis, Cânones, Decretais ou Jurisprudência, os principais métodos de ensino
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eram as lecciones, que ocorriam mediante a leitura e comentário metódico de livros
específicos, objetivando a retirada do sentido real. As quaestione disputatae consistiam em
um mecanismo dialético argumentativo de disputa (Pimenta, 2009).
Nesse tempo, como ainda não ocorrera o advento da imprensa, o estudo se fazia com
base nos códices que ficavam sob responsabilidade da Universidade. Os professores
comentavam este códices e os alunos anotavam, inicialmente, em pequenas tábuas de
madeira, considerando o elevado custo do papel (Castelli, 1991).
Em uma análise do percurso luso, verificamosque a universidadeportuguesa foi
fundada em 1290, em Lisboa, sob a forma de Studivm General. A instituição passou a
funcionar definitivamente em Coimbra, em 1570, por ato de D. Dinis, sendo que a introdução
das anotaçõesde sala de aula por parte dos estudantes, foi atribuída a eclesiásticos que,
provindo da Universidade de Paris, trouxeram a Coimbra a prática de elaboração de
‘apostilles’ (Cruz; Felgueiras, 2016).
Ao longo do tempo, referidas ‘apostilles’ começaram a ser denominadas de ‘sebentas’,
segundo alguns, pelo fato de adquirirem uma aparência de sujidade em face de passarem de
mão em mão, por muitos anos seguidos (Cruz, 2014), como é o caso do exemplar apresentado
na imagem a seguir, sebenta doada ao Museu Académico pela república estudantil dos
Kaágados. Referido exemplar, escrito em Latim, permaneceu nessa república por pelo menos
dois séculos. Nele, é possível notar que as bordas das páginas estão encardidas pelo constante
manuseio.
Imagem 2 – Sebenta de Direito Eclesiástico. Diferentes aspectos. Século XVII. Acervo: Museu Académico da Universidade de Coimbra.
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A partir da imagem, é razoável inferir que as lições eram as mesmas por longa data.
Também é possível conhecer as características materiais do artefato. Cruz e Felgueiras
(2017), definem uma sebenta como:
[...] a anotação ipsis literis das lições proferidas por um professor em sala de aula. Pode ser feita em folhas soltas, caderneta, caderno, ser impressa. Quase sempre, até o século XX, eram tomadas à mão e, depois, reproduzidas. Uma sebenta não se trata de um resumo. Também não é manual ou livro de exercícios. Pode conter comentários pessoais do anotador, desenhos e ilustrações. Como qualquer outro escrito, pode trazer em si marcas de leitura. (CRUZ; FELGUEIRAS, 2017, s.n.t)
Todavia, é necessário lembrar que a Universidade de Coimbra, ao longo de sua história,
vivenciou diferentes modos de organização pedagógica, a exemplo do proposto por ocasião
da Reforma Pombalina na Universidade. Também torna-se importante asseverar que a
prática da utilização de sebentas, na maioria das vezes repletas de erros e incorreções,
sempre foi criticada, entretanto, nunca abandonada.
Quanto à Reforma Pombalina e seus efeitos no ensino ministrado na Faculdade de
Direito, Cruz (2014) assim relatou:
Assim, o final do século XVIII foi marcado na UC pelo estabelecimento de prescrições pedagógicas decorrentes da reforma pombalina, que instituíram para os estudantes a frequência mínima obrigatória, as lições sabatinas, os exames anuais, para os quais os estudantes inventaram rituais específicos de resistência (McLaren, 1992) [...] (CRUZ, 2014, p. 72)
O que se pode depreender é que novos dispositivos pedagógicos decorreram da
Reforma Pombalina, inclusive, a pretensão de substituição das sebentas, por meio da
obrigatoriedade da edição de compêndios pelos professores (Cruz, 2014; Cruzeiro, 1979) e,
depois da compra pelos estudantes, como condição de matrícula.
Também é possível notar que a produção e a utilização de sebentas acadêmicas sempre
esteve relacionada pelos agentes produtores e consumidores, ao modo como o ensino ocorria
na Universidade de Coimbra, ao modo de ensinar de seus “lentes”, sendo as sebentas
consideradas uma decorrência de um tipo específico de ensino.
As representações estudantis dão conta de aulas estritamente orais, sem possibilidade
de intervenção do aluno, da ausência de livros traduzidos da língua estrangeira para o
português, dentre outras características (Prata, 2002; Cruz, 2014).
Por outro lado, não há de modo evidente, nas diversas memórias estudantis, qualquer
reflexão ou registro acerca de outro tipo de prática de estudo por parte dos estudantes que
não passassem pelas sebentas. Ao contrário, a investigação de Eduarda Cruzeiro (1979)
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apresentou a adoção de novas estratégias objetivando que os estudantes se furtassem ao
cumprimento de seu ofício: estudar.
Daí surgiram os truques de jogar de porta, isto é, entrar na aula durante a chamada para não apanhar falta e depois sair disfarçadamente, atrás do bedel, e o meter farpa, isto é pedir dispensa da lição ao lente com um bilhete alegando doença ou outro motivo aceitável. A cólica apertava quando a lição não estava preparada, até à altura da chamada à lição, se se ficava livre ou se durante ela o azar o fizesse ser o escolhido. Era então um estanderete certo. Andavam à corda aqueles que o professor tardava a chamar e que assim arrastavam em aulas sucessivas a angústia de ver chegar a sua vez (CRUZEIRO, 1979, p. 829, grifo da autora).
Em outra direção, a constituição de um dado habitus docente reproduzia as relações
entre os lentes e estudantes, mesmo por aqueles que criticavam os métodos de ensino. Nesse
sentido, a postura de Theophilo Braga como lente é um bom exemplo do modo como ocorria
a maioria das aulas no ensino superior português. Esse estado de coisas perdurou até pelo
menos o fim da década de 1960 do século XX, conforme estudo realizado por Cruz (2014).
Homem (2010) nos faz conhecer o Theophilo Braga professor:
Os depoimentos que chegaram até nós sublinham a sua “voz baixinha, em ritmo invariável, fluindo numa exposição improvisada, sem atractivo que não fosse um ou outro imprevisto encontro do termo pitoresco da linguagem do povo com o termo solene da tecnologia científica”50. Ninguém lhe poderia contestar a erudição, mas muitos se queixaram da “monótona frieza” do seu discurso pedagógico.Talvez por isso, as suas aulas foram invariavelmente pouco frequentadas, uma vez que as prelecções se tornavam enfadonhas e difíceis de acompanhar. Foi também um professor dotado de uma indulgência quase sem limites: segundo consta, só uma vez reprovou um aluno, na presidência de um júri onde lhe coube o voto de desempate52. É muito provável que no seu cérebro ecoasse o raciocínio que alguns discípulos imaginaram vislumbrar-lhe: “Reprovar? Não. Reprovado fui eu três vezes consecutivas, comentava ele, e eu era Teófilo Braga. Nada, nada, não quero tirar o pão a ninguém. Aquele primeiro comentário não o aduzia ele mas admitíamo-lo nós” (HOMEM, 2010, p. 223-224. Grifos nossos)
Todavia, se este foi o comportamento adotado por Theophilo Braga para ministrar suas
aulas, quais seriam suas representações sobre as Sebentas?
Theophilo Braga e as Sebentas Académicas
As representações de Theophilo Braga acerca das sebentas provém, majoritariamente,
de sua condição de estudante na Faculdade de Direito em Coimbra. Nesse sentido, optamos
por realizar a análise e seus escritosa partir da ordem cronológica de publicação, tendo por
objetivo evidenciar mudanças e continuidades na prática das anotações e nas representações
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do intelectual.A História da Universidade de Coimbra foi a obra a ser publicada. Nela, o
tratamento das sebentas é realizado no quarto volume, parte final.
As anotações de sala de aula são citadas quando Braga procura mostrar as razões pelas
quais, em sua opinião, há decadência no ensino na Universidade. O autor situa o advento da
universidade como “a forma pedagógica comum a civilização europeia do fim da Edade
media”(BRAGA, 1898, p. 497) e que subsistiuaté o século XIX graças à manutenção de certas
tradições(hábitos clericais, cerimônias ostentosas, dentre outras). Em seu entendimento, o
modo mais evidente de compreender como este “estado mental” constituiu a universidade era
a “Sebenta”.
TheophiloBraga afirmou, “Basta examinar uma coisa tão pitoresca a que na gíria das
scholas se chama Sebenta. É symbolo da fórma docente na Universidade e recebendo vários
nomes e fórmas em ephocas diversas, conservou sempre o seu intuito primitivo: coadjuvar a
apathia ou a preguiça cerebral” (BRAGA, 1898, p. 498)
Braga justifica, a exemplodo que afirmamos anteriormente, que o surgimento da
Postilla ou Apostilla, ocorreu na fase inicial das universidades, pela ausência da imprensa e
de livros, o que levou à necessidade de anotações por parte dos estudantes. Todavia, ressaltou
que:
Muitas vezes os lentes tomavam gosto á divagação e apostillavam indefinidamente á custa do texto; por isso nos Estatutos e regulamentos dos Conselhos universitários se marcavam os titules e paragraphos que em um dado tempo deviam ser lidos, sob pena de serem os lentes multados nos seus salário». O estudante é que escrevia a Postilla, chegando em algumas Universidades os bedéis a alugarem cadernos manuscriptos das lições apostilladas.(BRAGA, 1898, p. 498)
À sebenta e à inculcação de sua prática, Theophilo Braga atribui a letargia seja dos
professores, seja dos estudantes:
Como a frequência das aulas era descurada, apezar das três matriculas incertas, ou chamadas de surpreza dos estudantes, e as liçoes se condensavam exclusivamente no acto final, todos 03 pontos que constituíam o objecto d'esse exame formavam Apostillas, que se transmittiam de mão em mão, de geração em geração, e que mesmo alguns lentes que mercadejavam em habilitar áultima hora para exame possuíam e alugavam.Comprehende-se como esses cadernos besuntados, mas preciosos para vencer a dífficuldade formalista do exame, andavam entre as mãos que nervosamente os folheavam. Essas Apostillas eram cebentas; d'aquí a substituição pittoresca da qualidade pela cousa, por uma natural figura de rhetorica. Como os livros se multiplicavam pela grande actividadescientifica do século XVIE, para conservar a apathia cerebral ligava-se mais importância áApostilla do lente, e ó por esse documento que se procurou conhecer o estado de aproveitamento do
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estudante, e por elle fazer a prova dos cursos. [...](BRAGA, 1898, p. 498, grifos nossos)
Abaixo podemos visualizar fascículos de uma Sebenta de Direito Civil datadas do final
do Século XIX. Nesse tempo eram produzidos pelos estudantes da Faculdade de Direito
diariamente ou a cada dois ou três dias e, impressas por meio da litografia. Aqueles que se
dedicavam a produzi-las eram chamados de ‘sebenteiros’, normalmente estudantes de poucas
posses que auferiam algum rendimento com esse trabalho. As sebentas eram vendidas sob
forma de assinaturae enfeixadas no formato livro ao final doano letivo. A periodicidade
reflete o tempo em que as lições eram tomadas (Cruz; Felgueiras, 2017).
Imagem 3 – Sebenta Académica: Fascículos Lições de Direito Civil – Século XIX. Acervo: Museu Académico da Universidade de Coimbra.
Se de um lado Theophilo Braga criticou as sebentas, de outro, desaprovou as medidas
adotadas no século anterior para substituí-las, como é possível notar no excerto a seguir.
A Universidade de Coimbra decahiu até quasiá insensatez, quando em 1772 o marquez de Pombal a reformou de cima a baixo [...] a preoccupaçâo dos reformadores que cooperaram com o grande ministro foi dar ás lições dos Lentes um livro de texto, um Compendio. Nada mais rasoavel, na apparencia; mas pelo rigor dos Estatutos pombalinos o Compendio approvado tornou-se um dogma imposto ao Lente, um pezadello, um fetiche, de que se não podia omittir uma virgula. Diante do Compendio o Lente ficou um ente inferior, um serventuário do
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oráculo, sem doutrina e sem respeito do estudante que o ouvia; mastigava, diluía o texto do Compendio, ficando sempre abaixo da letra, e exigindo dos alumnos apenas exercícios de memoria, sob o ri- gor do lápis dos apontamentos e do J? no fim do anno. O Lente tornava-se ou odiado ou ridículo, e d'ahi as anecdotas, os epigrammas em verso com que alguns ficaram immortalísados; o Lente era um inimigo commum, e para o subjugar era necessário illudil-o. O estudante poz de parte o Compendio,' a cuja compra foi forçado por imposição [...] (BRAGA, 1898, p. 500. Grifo nosso)
Em a ‘A Sebenta’, opúsculo publicado em 1899, por ocasião do ‘Centenário da Sebenta’2,
Theophilo Braga compartilha a crítica às anotações estudantis com outros intelectuais. O
texto foi dividido em Prólogo, assinado por Teixeira de Freitas; Genealogia da Sebenta, a
cargo de Theophilo Braga; A Sebenta, por conta de Eduardo Alves de Sá; Finis Sebentae,
escrito por Manuel Duarte e, Psychologia da Sebenta, exposição de Fernando Martins de
Carvalho.
Theophilo Braga nada acrescenta ao que já houvera escrito sobre a ‘Sebenta’ na
História da Universidade de Coimbra. A genealogia da sebenta é uma transcrição do que já
houvera dito em seu livro. Destacamos aqui um excerto comum às duas obras que enfatiza
como a prática das anotações se enraizou na Universidadede Coimbra entre os séculos XVIII
e XIX. Nele, Braga apresenta um edital do reitor-reformador D. Francisco Raphael de Castro,
datado de 1786, que busca erradicar a prática das sebentas de tão perniciosa que é
considerada. Dentre as disposições havia o seguinte:
‘[...] E sendo também informado de quea fatal aluvião de cadernos manuscriptos, cheios de erros grosseiros e misérias, que trazem sempre entre mãos, tem desterrado de entre os mesmos estudantes o uso familiar dos livros impressos, e o habito de os lêr e manusear; de tal maneira que ha muitos que nem os mesmos Compêndios das aulas que são obrigados a frequentar já compram, e fazem todo o seu estudo pelos referidos cadernos, que, além de serem prejudiciaes pela multidão de erros de ortographia, de linguagem, de methodo, e até de doutrina, em que todos elles abundam, são também injuriosos aos auctores a que a ignorância ou a malevolencialitteraria os attribue; «E para uma vez pôr termo ao progresso de um tão intolerável abuso; mando: que de agora e para sempre se desterre e proscreva d'esta Universidade o pernicioso costume de escrever nas aulas, e que os mestras mais não consintam que os discípulos debaixo de qualquer pretexto que seja o continuem a praticar.[...] (BRAGA, 1899, p. 505)
2 Festejo burlesco estudantil capitaneado pelos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, levado a cabo por ocasião da comemoração governamental de diversos centenários (descobrimentos, reforma pombalina, dentre outros) no fim do Século XIX, que ocupo lugar de destaque na imprensa de Coimbra e de Lisboa. O Centenário da Sebenta teve como pretensão criticar o ensino na Universidade de Coimbra, todavia, sua finalidade última foi atacar o regime monárquico, representado pela manutenção de tradições que já não deveriam estar presentes em um pais que aspirasse à modernidade. (Cf. Prata, 2002)
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Para os autores do opúsculo ‘A Sebenta’, erradicar as anotações seria o mesmo que
erradicar a ideia que constituía a universidade, posto que seriam aquelas a essência desta.
Ambas, representariam um dado ‘estado mental’ mantido por tradições que remontariam,
ainda, aos jesuítas. O texto critica a prática, a universidade, a Faculdade de Direito, o
aviltamento aos direitos de autor.
Também acentua o comércio gerado a partir da reprodução das sebentas, chegando a
enfatizar que os próprios professores lucrariam pecuniariamente com a prática. Quanto aos
estudantes, os autores chamam atenção para a utilização da elaboração de sebentas como
estratégia de aproximação dos 'lentes', e postulação ao cargo de lente assistente. Nesse
sentido, elaborar sebentas seria um modo específico de constituir capital simbólico
(Bourdieu, 2003) junto aos professores e à Congregação da Faculdade de Direito. Enfim, o
escrito a nada nem ninguém poupava.
Todavia, é importante refletir acerca da veemência das críticas de Theophilo Braga,
considerando que anos antes não houvera sido aprovado em concurso destinado ao cargo de
lente na congregação que tanto criticava.
Do mesmo modo que o Centenário da Sebenta, também criticado pelos autores do
opúsculo por considerá-lo apenas mais uma oportunidade de boemia estudantil, ‘A Sebenta’
reafirma a crítica as tradições relacionadas ao regime monárquico.
Considerações Finais
Por meio do percurso deste texto buscamos discutir e refletir acerca de práticas de
estudo no interior do ensino superior-universitário. Elegemos a Universidade de Coimbra
para problematizar a prática das anotações estudantis de sala de aula, cuja origem data da
Idade Média, prática que circulou por todas as universidades criadas nesse período histórico
na Europa.
Verificamos, de um lado, que a elaboração, uso e circulação das anotações na
Universidade de Coimbra, ali denominadas de 'sebentas', foram uma constante, de modo
especial, em sua Faculdade de Direito. Além de alimentarem o comércio local, mediante a
participação de diversos agentes ligados à universidade, também serviram de capital
simbólico para os 'sebenteiros' postulantes ao cargo de lente assistente.
Criticadas por Theophilo Braga e outros intelectuais por conterem excessos de erros e
incompletudes e, supostamente atrofiarem a mente dos estudantes e pouco exigirem dos
professores, as 'sebentas', consideradas uma tradição dentro da Universidade, foram
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associadas à Monarquia e se tornaram, no final do Século XIX, uma forma de criticar o
governo de então, principalmente, por parte dos republicanos.
Pudemos observar que as críticas à sebenta a relacionam a um modo específico de
ensino, de matriz memorialista e conteudista. Todavia, as críticas nunca buscaram refletir
acerca do papel do estudante e de seu ofício de estudar.
Buscamos conhecer a ‘pedagogia’ utilizada por um dos críticos da sebenta (Theophilo
Braga) e, por meio de representações estudantis, pudemos evidenciar que mesmo ele, não
ministrava aulas (lições) diferentes daquelas que criticava e que considerava acabavam por
dar origem à utilização de Sebentas.
Estas são reflexões iniciais de um tema que exige novas incursões no processo histórico
relacionado ao ensino, estudo e aprendizagem, para que possamos aprender novos modos de
conceber essa relação.
Referências
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