as revelaÇÕes da dinÂmica da sensualidade e do desejo em missa do galo e uns braÇos

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AS (RE)VELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS Tatiana Cíntia da SILVA (UFS / PPGL / CAPES)¹ Diego Menezes de ARAUJO (UFS / PPGL)² Fábio Wesley Santos PAIXÃO (UFS)³ RESUMO: No presente trabalho faremos um diálogo entre Literatura e Psicanálise. Partindo desse viés, voltar-nos-emos aos sistemas pré-consciente/consciente e inconsciente. Tal leitura será aplicada aos contos Missa do Galo e Uns Braços, do escritor do canônico Machado de Assis. Iremos ainda, analisar questões inerentes à necessidade, recalcamento, demanda e desejo, sentimento de culpa e relação entre sexualidade e civilização, partindo das noções do princípio de prazer” e do princípio de realidade”, que são dois pressupostos freudianos do funcionamento mental; assim como observaremos o princípio do desempenhoe os elementos de mais-repressãodestacados por Marcuse. Traremos também, para tanto, um colóquio com teóricos da literatura que volvem e volveram seus olhares para o estilo machadiano de escrever, como Gledson e Schwarz. Palavras-chave: Literatura e Psicanálise; Sensualidade; Desejo; Castração. ¹ Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Sergipe e Especialista em Linguística pela Faculdade Amadeus. Atualmente desenvolvendo paralelamente quatro pesquisas: I. Estudo e análise de obras machadianas; II. O diálogo entre o medievo e o sertão na lírica de Elomar Figueira Mello; III. A representação feminina e subalterna em A Hora da Estrela; IV. Análise literocinematográfica do oprimido mulher/trabalhador em São Bernardo. (E-mail: [email protected]) ² Graduado em Letras Português pela Universidade Federal de Sergipe, Aluno especial do Mestrado em Letras Literatura pela mesma instituição. Atualmente desenvolvendo paralelamente três pesquisas: I. A representação feminina e subalterna em A Hora da Estrela; II. Análise literocinematográfica do oprimido mulher/trabalhador em São Bernardo; III. Estudo e análise de obras machadianas. (E-mail: [email protected]) ³ Graduado em Letras Português Francês pela Universidade Federal de Sergipe. Atualmente desenvolvendo paralelamente três pesquisas: I. Análise literocinematográfica do oprimido mulher/trabalhador em São Bernardo. II. A representação feminina e subalterna em A Hora da Estrela; III. Estudo e análise de obras machadianas. (E-mail: [email protected])

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Page 1: AS REVELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS

AS (RE)VELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E

DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS

Tatiana Cíntia da SILVA (UFS / PPGL / CAPES)¹

Diego Menezes de ARAUJO (UFS / PPGL)²

Fábio Wesley Santos PAIXÃO (UFS)³

RESUMO:

No presente trabalho faremos um diálogo entre Literatura e Psicanálise. Partindo

desse viés, voltar-nos-emos aos sistemas pré-consciente/consciente e inconsciente.

Tal leitura será aplicada aos contos Missa do Galo e Uns Braços, do escritor do

canônico Machado de Assis. Iremos ainda, analisar questões inerentes à

necessidade, recalcamento, demanda e desejo, sentimento de culpa e relação entre

sexualidade e civilização, partindo das noções do “princípio de prazer” e do

“princípio de realidade”, que são dois pressupostos freudianos do funcionamento

mental; assim como observaremos o “princípio do desempenho” e os elementos

de “mais-repressão” destacados por Marcuse. Traremos também, para tanto, um

colóquio com teóricos da literatura que volvem e volveram seus olhares para o

estilo machadiano de escrever, como Gledson e Schwarz.

Palavras-chave: Literatura e Psicanálise; Sensualidade; Desejo; Castração.

¹ Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Sergipe e Especialista em Linguística pela

Faculdade Amadeus. Atualmente desenvolvendo paralelamente quatro pesquisas: I. Estudo e

análise de obras machadianas; II. O diálogo entre o medievo e o sertão na lírica de Elomar

Figueira Mello; III. A representação feminina e subalterna em A Hora da Estrela; IV. Análise

literocinematográfica do oprimido mulher/trabalhador em São Bernardo. (E-mail:

[email protected])

² Graduado em Letras Português pela Universidade Federal de Sergipe, Aluno especial do

Mestrado em Letras Literatura pela mesma instituição. Atualmente desenvolvendo paralelamente

três pesquisas: I. A representação feminina e subalterna em A Hora da Estrela; II. Análise

literocinematográfica do oprimido mulher/trabalhador em São Bernardo; III. Estudo e análise de

obras machadianas. (E-mail: [email protected])

³ Graduado em Letras Português Francês pela Universidade Federal de Sergipe. Atualmente

desenvolvendo paralelamente três pesquisas: I. Análise literocinematográfica do oprimido

mulher/trabalhador em São Bernardo. II. A representação feminina e subalterna em A Hora da

Estrela; III. Estudo e análise de obras machadianas. (E-mail: [email protected])

Page 2: AS REVELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS

Os braços: símbolo de sensualidade e sedução

Em se tratando de dois textos literários, procuraremos observar como

eles (re)velam o mundo do inconsciente e o mundo do prazer, pois os textos não

apenas dizem sobre a dinâmica da sensualidade e da energia libidinal, mas

também velam o que os autores preferem sugerir consciente ou

inconscientemente.

É sabido que existe um sentido manifesto e outro latente nos

significantes que emergem do texto literário e que o espaço do não-dito, o caráter

ambíguo e até o equívoco fornecem significações imprescindíveis à compreensão

psicanalítica. A obra literária, por sua vez, fruto de subjetividade do autor assim

como materialização sublimatória da pulsão deste, torna-se um precioso elemento

para análise das manifestações do inconsciente e também das construções que

fundamentam a sociedade. No caso das obras estudadas, tal ponto se evidencia

ainda mais, já que uma das características de Machado de Assis é a análise

psicológica para caracterizar a sociedade de seu tempo.

A priori, podemos justificar nosso estudo estabelecendo um diálogo

entre Literatura e Psicanálise partindo do pressuposto de que Freud percebeu

desde sempre o quanto a Literatura antecipou descobertas da clínica psicanalítica,

pesquisando obras e as interpretando a partir da psicanálise. Em Escritores

Criativos e devaneios (1976), Freud constrói sua teoria dizendo que o poeta assim

como a criança, cria um mundo de fantasia. Desta maneira, a criação é uma forma

de brincar quando deixamos de ser criança, pois o adulto se envergonha de suas

fantasias e as esconde; já o artista, expressa suas fantasias pela arte. Assim, com o

fazer poético, o escritor ou o poeta constrói o seu “brinquedo”, que se torna

prazeroso e, entrelaça-se à estética. Essa condição faz com que haja uma boa

recepção de sua fantasia e até um efeito catártico no leitor. É mesmo Freud quem

diz:

Page 3: AS REVELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS

A verdadeira ars poética está na técnica de superar esse nosso

sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam

cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos

empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus

devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces e nos suborna

com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na

apresentação de suas fantasias. (1976, p. 158).

Em Missa do Galo e Uns Braços esse disfarce fica evidente. A

simbologia estética do texto, o ar de mistério e de dúvida do narrador, deixa-nos à

mercê do enredo, inebriados com as personagens, com os fatos e ações que vão

sendo delineados. Não sentimos repulsa ou aversão às personagens que envolvem

uma traição ou prenúncio de uma possível traição, já que o diálogo entre

Conceição e Nogueira (Missa do Galo), assim como os olhares de Inácio para

Severina (Uns Braços) e até o beijo desta no rapaz que dormira provocam no

leitor uma reação sinestésica, a ponto de seduzi-lo e não impactá-lo com a

possibilidade de um relacionamento entre o jovem e a mulher madura, afinal as

ações e os fatos foram suavizados/maquiados pelo valor artístico e o que seria

considerado um absurdo na época do Segundo Reinado, não é recebido com

ojeriza.

Os braços femininos despertam a livre associação de desejo, fruto da

subjetividade e sublimação dos impulsos nas personagens masculinas, além de

instigar o imaginário do leitor. Outrossim, percebemos nos dois contos que a

mulher aparece, pela fala do narrador, como a “grande culpada” pelas sensações

que não poderiam ter sido despertadas nem exteriorizadas.

Lembremo-nos que para Lacan a mulher é o objeto que desperta o

desejo no homem. A fantasia de possível completude provoca a atração do sujeito;

porém, como a mulher é não-toda, um ser barrado, o desejo nunca será satisfeito e

a busca pela mulher desejada, ou melhor, pelo objeto lógico, será como a

realização de manutenção do próprio desejo, apenas.

Nos contos analisados, Machado de Assis utiliza-se da condensação e

do deslocamento para reportar-se à beleza feminina, partindo dos braços desnudos

Page 4: AS REVELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS

perante o olhar desejante. Sendo assim, podemos dizer que o escritor sabendo que

a literatura é um exercício de (re)velação, toma como remate nos dois contos um

campo simbólico em comum, ou seja, o objeto desejante em ambos os contos são

os braços de Conceição e Severina, mulheres mais velhas e que vivem casamentos

perfeitos aos olhos da sociedade; porém, na realidade eram casamentos

desgastados e possivelmente já sem amor .

O arrebatamento dos jovens pelas imagens dos braços femininos é um

desejo comum na sociedade oitocentista. O arquétipo feminino nos dois contos,

como já fora mencionado, é o mesmo. Em Missa do Galo temos Conceição,

mulher de trinta anos, que consciente ou inconscientemente seduz, com os seus

braços à mostra, o jovem rapaz Nogueira, estudante de dezessete anos e que se

hospedara na casa de seu marido Meneses, que a traía, e ela, embora soubesse,

nada fazia, por isso chamada pelo narrador-personagem de “santa”. Em Uns

Braços, Inácio de “quinze anos feitos e bem feitos”, enamora-se pelos braços nus

de Severina à mesa, mulher de ações contraditórias com “vinte e sete anos floridos

e sólidos”.

Tanto em Missa do Galo como em Uns Braços se instala uma

ambiguidade de gestos/movimentos e ações lacunares, pois o enredo é apenas

esboçado, não sendo claro ao leitor em muitos pontos o que realmente aconteceu

ou se tudo não passou de fantasia; aliás, fantasia e realidade são imbricadas

constantemente.

O primeiro conto é iniciado pelas falas de Nogueira declarando que

nunca pôde compreender a conversa que tivera com Conceição enquanto esperava

o horário para a Missa do Galo. O diálogo entre as personagens é envolto mais

pelo implícito e sugerido que pelo discurso realizado de fato, em um jogo de

linguagem possivelmente cercado de devaneios e fantasias, além de uma libido

pouco evidente. Pulsões recalcadas e sensações reprimidas são facilmente

observadas através de gestos e pausas no diálogo entre Nogueira e Conceição.

Page 5: AS REVELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS

O fato de ser um conto em que se predomina o tempo psicológico, já

faz com que haja certa elasticidade no tempo durante as horas da noite de Natal e

exalte o deleitar hipnótico e sensual das personagens. Vejamos alguns fragmentos

do conto, destacando as vestes da senhora e algumas características referentes a

ela e exaltadas por Nogueira:

Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra,

tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de

aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava

defronte de mim, perto do canapé. [...] Conceição ouvia-me com a

cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras

meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a

língua pelos beiços, para umedecê-los. Em seguida, vi-a endireitar a

cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os

cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes

olhos espertos. [...] Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os

cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos

espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente,

e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que

se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não

fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi

grande. [...] A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o

livro. [...] (ASSIS, 2001, p. 100)

A mulher que no início do conto era descrita pelo mesmo Nogueira

como nem sendo bonita nem feia, apenas simpática e de rosto mediano, passa

como por encanto da noite a ser um objeto de desejo do rapaz e “em certa ocasião,

ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima.” ( ASSIS, 2001, p.

102) ao ponto de fazê-lo perder a hora da missa e mesmo quando lá, tendo em sua

mente apenas aquela senhora com quem passara a melhor noite de sua vida.

Durante a conversa e mesmo depois, a única coisa que Nogueira sabia fazer era

admirar a beleza da mulher, observando seus mais simples gestos de sedução,

associando a Conceição à imagem romantizada de mulher como as dos romances

que costumava ler.

Page 6: AS REVELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS

Sendo uma obra machadiana, temos um evidente questionamento: será

que o sentimento de amor e traição foi mesmo só fantasia do rapaz? No início da

conversa Conceição sentara-se defronte a Nogueira; porém aos poucos, cada vez

mais vai se aproximando e se sentando ao lado dele, ora em conversa eufórica, ora

calma, ora com lacunas de silêncio, em alguns instantes chega a passar até a mão

no ombro deste e no dia seguinte nada lembrava nela a mulher da noite anterior.

Será mais uma ambiguidade feminina? Será que ela apenas não se fechara para

seus desejos recalcados por causa de uma realidade castradora? O fato é que

Nogueira retorna à sua cidade natal e em março do ano seguinte ao voltar ao Rio,

ele depara-se com a nova realidade: o marido de Conceição havia morrido e ela

agora morava com o antigo escrevente do falecido. E ele, Nogueira, ficara sem

entender coisa alguma.

No segundo conto estudado, aparece-nos Inácio, que se hospedara na

casa de Borges a mando do pai e lá se apaixona por dona Severina, mulher de

Borges. Já no início do conto encontramos Inácio distraído, misturando papeis e é

claro, devaneando com a imagem de Severina ou ainda se demorando ao máximo

no café da manhã para apreciar a beleza da amada. Por conta disto, Inácio

demorou o café o mais que pôde. “Entre um e outro gole alisava a toalha,

arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários [...] Via só os braços de D.

Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com

eles impressos na memória.” (ASSIS, 2001, p. 71)

Nada fizera com que o rapaz tirasse D. Severina da mente, nem a

diferença de idade, nem o fato de ela ser casada, apenas tinha em seu pensamento

os braços dela nus à mesa. Tudo em sua mente era vago e confuso, ela o

provocava com seus braços à mostra; porém, não nos esqueçamos de que todas as

características e ações a ela atribuídas vêm de um olhar masculinizado de um

narrador-personagem totalmente envolvido com o que narra.

Page 7: AS REVELAÇÕES DA DINÂMICA DA SENSUALIDADE E DO DESEJO EM MISSA DO GALO E UNS BRAÇOS

Em Gledson (2005) há uma afirmativa que dialoga com a proposta

deste trabalho, pois situando as obras de Machado de Assis da fase realista, o

teórico diz que as personagens são representantes autênticas da sociedade

burguesa vigente no início do século XX. Desta maneira as narrações são sempre

conduzidas por protagonistas masculinos, o que nos leva a crer que a mulher é

sempre mostrada a partir de um ângulo que revela a visão do homem a respeito da

condição feminina, atribuindo às mulheres atos que seduzem o outro.

Ideologicamente falando e em uma sociedade marcada pelo

patriarcalismo, a condição da figura feminina estava sempre submissa ao homem,

o que de certo modo também ocorre nas narrativas, já que geralmente a existência

ficcional se baseia exclusivamente na visão masculina acerca do universo

feminino.

Esse universo feminino por sua vez, acaba roubando as atenções nos

contos analisados, pois como vimos, tanto em um como no outro há uma forte

sensualidade real ou fantasiosa que se estabelece durante o enredo. Conceição e

Severina acabam, com seus braços nus e sensuais, contribuindo para os olhares de

desejo de Nogueira e Inácio, respectivamente; que ao contar suas lembranças de

noites ao lado destas evidenciam a sucessão de castração para a própria

preservação e para manter os liames sociais.

Desejo, castração e preservação

Em Eros e Civilização (1956), Herbert Marcuse usa a expressão

unidimensional para se referir à falta de valores da sociedade para a sua

autoconservação. Utilizando-se de conceitos psicanalíticos e pensando na questão

da repressão sexual, o autor diz que em uma sociedade de objetos de consumo

tudo vira mercadoria.

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Referindo-se ainda à sociedade “administrada”, evidencia que não há

liberdade total de expressão, pois tudo é controlado via Super-Repressão, tendo

como fim a preservação da dita integridade, levando-nos a pensar que embora

Marcuse dialogue com Freud a respeito das restrições e imposições, assim como o

recalque e a contenção do princípio do prazer pelo da realidade, o escritor de Eros

e Civilização com o seu princípio de desempenho vai mais além que o pai da

psicanálise, já que para este a articulação de seus pressupostos se valem para a

sobrevivência do indivíduo; já para Marcuse, o princípio de desempenho equivale

à preservação não só do indivíduo como de toda a sociedade.

Nos dois contos em estudo há o Princípio de Desempenho, já que as

personagens femininas tentam a todo custo preservar as estruturas familiares

estabelecidas pelo casamento em detrimento das energias libidinais, que se

configuram sutilmente nas duas obras. Lembremo-nos ainda de uma importante

relação existente entre as duas obras com o leitor e o efeito diferenciador que

possui o texto literário.

Wolfgang Iser (1983) um dos críticos mais importantes para a teoria

da recepção, teoria do efeito e retratação do leitor real e ideal, pode aqui ser

mencionado para pensarmos no fato de como a obra literária suaviza o que seria

“feio” aos olhos da sociedade, pois o leitor também constrói o objeto estético.

Assim, contraditoriamente ao pensamento rígido da sociedade oitocentista, de

suas relações severas e supervalorização moral e social, ao menos aparentemente,

o leitor desprende-se desses conceitos via percepção imagética e faz do processo

da recepção textual um elemento diferenciado da realidade.

Assim, o leitor ideal não cobra das personagens o que o leitor real

cobraria da sua sociedade como o padrão de costumes rígidos, contrariamente a

isso, cria-se um clima de curiosidade para que realmente haja a traição entre as

personagens, desarticulando, às vezes, os ditames dos bons costumes.

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As ações ambíguas tanto em Conceição como em Severina mostram-

nos tanto o desejo quanto a castração. E embora na primeira isso não fique tão

evidente, observamos certa repressão ou até mesmo as restrições às quais

Conceição se coloca, já que no dia seguinte à missa do galo esta volta a ser a

natural e benigna mulher, possivelmente mantida pela dominação social que a

enquadra como dona de casa, que em certo relevo é o que Marcuse chama de

mais-repressão, movida pelo desenrolar da noite anterior e pelo atual sentimento

de culpa.

Ainda durante a noite, entre os gestos interrogativos e conversas entre

Conceição e o rapaz, ela o advertia “– mais baixo! Mamãe pode acordar.” (ASSIS,

2001, p. 101) Um leitor desavisado pode imaginar que tal pedido de silêncio fora

apenas para não incomodar a senhora que dormira, mas será que era apenas isso

de fato? Ou para ela aquela conversa seria proibida, sinônimo de algo moralmente

errado e que seria reprimida pela mãe, imagem de controle/autoridade?

Tanto a ambiguidade como a castração se acentuam ainda mais na

figura de D. Severina, pois ao perceber que o jovem Inácio estava apaixonado por

ela tenta desacreditar da ideia por ele ser uma criança como ela mesma o diz. No

entanto, posteriormente passa até a gostar da ideia por perceber que ainda pode

despertar prazer em um rapaz e se sente até menos submissa. Vejamos a passagem

conflituosa da personagem:

D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela

primeira vez, desconfiou de alguma coisa. Rejeitou a ideia logo, uma

criança! [...] Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o

nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que

admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia

não foi rejeitada, antes afagada e beijada. (ASSIS, 2001, p. 73)

Depois desta percepção e até encanto por ser desejada, Severina passa

a observar melhor o rapaz e chega à conclusão de que realmente é um amor

adolescente “retido pelos liames sociais” (ASSIS, 2001, p. 74) e passou a tratá-lo

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com indiferença se deixando persuadir pelo fato de ser ele uma criança e ela uma

mulher casada. Tal rompimento das fantasias por parte dela e até por parte dele

quando diz querer ir embora, nada mais é que o bloqueio do princípio de prazer

pelo de realidade. Ela chega ao ponto de, às vezes, tomar as vias de mãe e amiga,

dando-lhe conselhos.

O sentido de culpa, que na verdade se dá pelo da autoridade e faz com

que em primeira instância Severina renuncie às satisfações instintivas,

posteriormente se dá pelo superego, autoridade interna, que se configura como

elemento castrador, pois o desejo continua vivo e a culpa persiste principalmente

porque no final do conto as imagens do consciente/pré-consciente e inconsciente,

do dito e não-dito são ainda mais metamorfoseadas, em uma fusão entre sonho e

realidade.

Enquanto Inácio dorme na rede e sonha com Severina beijando-o, ela

realmente aparece em seu quarto, observa-o e tem uma “tentação diabólica”:

beijá-lo. Então, o sonho coincidi com a realidade e os lábios se unem na

imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, já a Severina real

afasta-se, talvez, por medo ou por ter ficado inibida pelo gesto.

O fato de Severina sair correndo mostra seu possível arrependimento,

pois como forma de punição, passa a cobrir os braços para reprimir a ela mesma e

ao rapaz, que de início nem percebe a mudança, ainda embevecido pelo beijo que

achara ter sido só um sonho. Quando percebe os braços cobertos, Inácio observa

também que voltara a ser um estranho naquela casa, pois como no princípio, os

proprietários ficaram sérios e ríspidos até o dia em que Borges o manda embora e

o rapaz nem consegue se despedir da amada, que mandara pelo marido a

justificativa de estar no quarto com dor de cabeça.

O rapaz nada compreende, já que não percebera tê-la irritado com

algum gesto ou olhar que seja, porém nada mais o importava, a não ser o “sabor

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do sonho” que na verdade não assim o fora, mas sempre se indagaria mesmo em

outros amores: “E foi um sonho! um simples sonho!” (ASSIS, 2001, p. 75).

A repressão de Severina leva-nos a dialogar ainda mais com Marcuse

(1956) quando este diz que na dialética do princípio do prazer pelo da realidade,

Freud teria deixado lacunas, já que o sentimento de culpa adicionado à repressão

imposta pela civilização faz com que o indivíduo acabe se punindo e reprimindo

suas pulsões para responder às ditas necessidades sociais. Por isso, Marcuse

ressignifica o princípio de realidade denominando-o Princípio de Desempenho,

uma vez que para este é o princípio do desempenho que impõe as restrições aos

instintos para a preservação da sociedade e não o princípio de realidade.

Considerações finais

Em Missa do Galo e Uns Braços percebemos que a mulher aparece

como a insígnia desejante do corpo, já que o homem a observa como um

significante fálico, causando neste sujeito o desejo de possuí-la. Isso perpassa nos

contos de forma sintomática, além da demonstração da barreira de castração da

mulher, como já foram mencionados.

Nos dois contos a dinâmica da sensualidade e do desejo é ora castrada

ora exaltada, já que não se recalca realmente o afeto que furtivamente as

personagens sentiam uma pela outra, pois no inconsciente se estabelecem as

repressões, não os afetos. O desejo persiste, pois é a falta que mantém as

personagens.

No emaranhado dos símbolos adjacentes às figuras femininas temos

de fato imagens do desejo, da sensualidade e da sedução, assim como a castração

e a preservação. Poder-se-á dizer, então, que as personagens machadianas

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observadas neste trabalho se apresentam “dormindo” sob a égide do mistério e das

(re)velações dos braços, das ações, dos olhares e das lacunas.

REFERÊNCIAS

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São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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______. Que horas são? São Paulo: Schwarz LTDA, 2006.