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AS TRAJETÓRIAS GUERRILHEIRAS DO MOVIMIENTO DE
LIBERACIÓN NACIONAL – TUPAMAROS E DA AÇÃO LIBERTADORA
NACIONAL: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS. (1965 – 1974).
AUTOR: CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO
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*Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de São Paulo. Mestrando.
CNPq/Capes.
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Este texto tem como objetivo mapear alguns aspectos das trajetórias das
organizações de luta armada Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros, e da
Ação Libertadora Nacional, a ALN. Ao reconstituir brevemente suas experiências,
procurar-se-á pontuar momentos de aproximação e de distanciamento entre os mesmos,
no intuito de discutir como aspectos de uma cultura política própria de cada região
impactaram e foram influenciadoras das estratégias, táticas e formas dos grupos agir.
Ambos os grupos surgiram no contexto de renovação das esquerdas latino-
americanas, processo esse que deu origem ao que se convencionou chamar de nova
esquerda. Essa transformação das esquerdas teve origem na revolução cubana de 1959,
que foi responsável por desenvolver uma experiência distinta de todos os processos
revolucionários que haviam existido até então, inserindo a luta armada como ferramenta
para alcançar a revolução social. No que diz respeito as inovações advindas do
movimento cubano, destaca-se as táticas do foco revolucionário e uma concepção de
que a população que vivia no campo seria o sujeito social fundamental para a revolução.
Por outro lado, a experiência cubana permite romper com a ideia da necessidade do
aparato partidário na condução das massas para a revolução. Essas perspectivas
dialogavam diretamente com as conjunturas dos países da América Latina, pois estavam
intrinsecamente ligadas as condições materiais de suas sociedades, e nesse sentido, suas
ideias foram apreciadas como fundamentais para implantar a revolução no continente.
Todavia, há certas questões que dizem respeito aos as conjunturas de Uruguai e
Brasil, especificidades essas que só podem ser compreendidas repassando de maneira
geral os contextos nacionais de cada país no momento de formação de ambos os grupos,
para que seja possível compreender de maneira mais clara tais temas.
O surgimento do MLN-Tupamaros no contexto de crise do modelo batllista.
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O MLN – Tupamaros foi uma organização de luta armada fundada em 1965, por
militantes que vieram do partido socialista uruguaio, por trabalhadores agrários e por
outros militantes de grupos menores da esquerda daquele país. Sua origem está
intrinsecamente relacionada a profunda mudança na tradição política daquele país, pois
historicamente o Uruguai foi visto como sendo um país irretocavelmente democrático,
que possuía dessa forma uma tradição eleitoral bastante consolidada e que respeitava as
diversas instâncias desse jogo político construído pela democracia. Segundo André
Lopes Ferreira, “a história política uruguaia foi, pelo menos na maior parte do tempo, a
história da atuação de seus partidos”. (FERREIRA, 2011: 31) Essa atuação protagonista
dos partidos Blanco e Colorado foram responsáveis por forjar uma tradição democrática
no Uruguai, marcada por elementos de continuísmo, estabilidade e conciliação.
Em termos de sociedade, o Uruguai se caracterizou pela pujança econômica,
somada a certas garantias oferecidas pelo Estado no campo do consumo, além de um
nível cultural bastante elevado. Esses fatores consolidaram uma desigualdade social
bastante baixa, que foi engendrada na chamada política batllista. O batllismo foi uma
espécie de ideologia política fundamentada por uma ala do partido colorado uruguaio,
na figura do presidente José Batlle y Ordóñez, que governo o país de 1903 a 1907,
voltando para um segundo mandato entre 1911 e 1915. (NAHUM, 1995: 47 – 48)
De modo geral, essa política se constituiu em um modelo capitalista exportador,
mas fortemente intervencionista, com o Estado atuando em diversos setores
fundamentais da economia, para garantir principalmente que os serviços públicos
essenciais acontecessem. Também se preocupou em criar um modelo político bastante
modernizante à época, com a adoção de voto secreto e direto, visando garantir assim
pilares para a prática democrática. Esse conjunto de ações tomadas pelo governo de José
Batlle y Ordóñez foi responsável por reforçar as bases da democracia uruguaia. Por
outro lado, esse projeto acabou se estruturando por meio de um jogo político de
acomodação de classes, evitando sempre o conflito entre elas. Isso também se refletia
no próprio sistema político partidário, em que coparticipavam no poder dois únicos
partidos: o Partido Blancoe o Partido Colorado.
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O desmonte do modelo Batllista no Uruguai se iniciou na década de 1950, por
uma confluência de fatores: a conjuntura internacional bastante severa que provocou
graves problemas econômicos no país, levando-o a uma crise sem precedentes, somado
as contradições do sistema político estabelecido. Tal situação de crise econômica no
país colocou em cheque o modelo de Estado de bem-estar social que fora construído, e a
sociedade passou a vivenciar diversos conflitos, principalmente nos setores industriais e
no funcionalismo público. A crescente situação de recessão foi responsável por diversas
paralisações e movimentos de greve nos setores assalariados do Uruguai. Segundo
Panizza, essas primeiras mobilizações podem ser vistas como o começo da ruptura da
estabilidade social que o país possuía, principalmente porque esses grupos usavam
ferramentas de reivindicação distintas do que acontecia até então (PANIZZA, 1990: 109
– 110.)
Nesse contexto, a esquerda uruguaia teve um momento de transformação, se
fragmentando e dando origem a diversos pequenos grupos políticos. Nasceram a
Federación Anarquista Uruguaya, a FAU, o Movimiento de Izquierda Revolucionaria,
o MIR, o Movimiento Revolucionario Oriental, MRO e o Movimiento de Apoyo al
Campesinado, o MAC, reunidos em torno da liderança de Raúl Sendic. Tais
organizações começaram uma articulação conjunta no sentido de se organizarem
militarmente, para criar um grupo de ação armada. Foi nesse momento que nasceu
formalmente o grupo cujo propósito era dirigir os distintos militantes envolvidos e
conduzir as ações radicalizadas: o El coordinador.(TRISTÁN, 2006: 97 – 98).
As principais ações realizadas pelo Coordinador aconteceram junto aos
trabalhadores da cana-de-acúcar, no meio rural uruguaio e influenciaram fortemente o
debate sobre a questão da luta armada. Ao empreender tais ações, os militantes do
Coordinador passaram a elaborar fundamentos sobre organização e clandestinidade,
criando, inclusive, grupos de treinamento. Com o crescimento político do grupo,
também surgiram divergências sobre o modo como a organização atuaria a partir de
então. O debate central nesse momento era a proposta de romper totalmente com a
atuação pelas vias democráticas, partindo para ações exclusivamente de cunho armado.
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Essas tensões chegaram ao seu ápice em fins de 1964, quando houve uma ruptura no
Coordinador, levando a desintegração da organização.
Os militantes remanescentes estabeleceram como condições para formar o novo
grupo unir todo os recursos, tanto materiais como humanos em uma única organização e
a de ter uma meta única: promover a revolução social. O grupo passou a se chamar de
Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros, e começou a realizar diversas ações
armadas de expropriação de dinheiros e armas para estruturar a guerrilha.
O surgimento da Ação Libertadora Nacional no fim da hegemonia pecebista
dentro da esquerda brasileira.
A Ação Libertadora Nacional foi uma organização de luta armada formada no
ano de 1967 de uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro e criada por Carlos
Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, dentre outros integrantes do PCB. Seu processo
de formação está diretamente relacionado ao esgotamento do Partido Comunista
Brasileiro, o PCB, como corrente hegemônica da esquerda no país.
O Partido Comunista Brasileiro, criado em 1922, se consolidou como
hegemônico dentro da esquerda brasileira, sendo responsável por articular as principais
lutas sociais até meados do século XX. No entanto, o PCB passou por severas
transformações após as divulgações do relatório Kruschev, que tornou público, em
1956, os crimes cometidos por Stálin. (CHILCOTE, 1982, pp. 54 – 55). Em decorrência
dos debates internos gerados pela divulgação de tais crimes, o partidão adotou o
princípio da coexistência pacífica, em acordo com o posicionamento do Partido
Comunista da União Soviética. O princípio de coexistência pacífica delineava certos
pontos que condenavam o conflito direto na revolução e apontavam uma transição
pacífica para implantar o comunismo. (DE OLIVEIRA, 2016, p. 164) Aqui se percebe a
tendência interna do Partido Comunista Brasileiro de seguir as orientações elaboradas
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pelo Partido Comunista da União Soviético, fazendo sua leitura da realidade brasileira a
partir do pensamento do partido central.
Setores internos do PCB não compartilhavam desse pensamento e começaram a
realizar a crítica a esse posicionamento. Segundo Jean Sales, com o Golpe de 1964, essa
crítica aumentou severamente, principalmente porque o partido foi visto como
responsável pela derrota que levou à Ditadura, uma vez que fez uma política de
conciliação de classes durante o governo de João Goulart e optou por não resistir a
tomada de poder pelos militares em abril de 1964. No entanto, a tendência da direção do
Partido optou pela via da luta democrática, criticando práticas políticas que não fossem
consideradas massivas. (SALES, 2000: 70)
A partir de então, já é possível localizar um grupo expoente de militantes do
PCB que começaram a aderir ao projeto de luta armada para conquistar a libertação
nacional. E aqui, surgia Carlos Marighella como principal articulador desses
questionamentos. O rompimento formal de Marighella aconteceu com a divulgação da
Carta ao comitê Central, enviada de Cuba para o Partido Comunista Brasileiro, em que
ele afirmou a decisão de promover a luta armada no Brasil ao mesmo tempo em que
criticava o imobilismo do Partido.
Essas trajetórias de formação de ambos os grupos aqui estudados revelam que
apesar de estarem ligados a um mesmo movimento de transformação na esquerda latino-
americana, e terem sido diretamente impactadas pela revolução cubana, os grupos
possuem especificidades significativas. Isso não significa dizer que os grupos foram
resultados de influência externa ou interna, mas sim que eles são resultados de uma
relação dialética e que tomaram corpo em um lugar específico. O fundamental é
compreender como certas tradições políticas foram importantes ao se conjecturarem em
elementos estratégicos e táticos em cada organização. Comparando as principais
características dos mesmos, essas peculiaridades ficam ainda mais evidentes. Nesse
sentido, serão apresentados alguns temas centrais das organizações para que se
problematize suas especificidades.
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Os palcos da revolução social: entre a luta armada rural e urbana.
A característica central do projeto revolucionário do MLN-Tupamaros era o
empreendimento da luta armada no meio urbano. O primeiro documento que
sistematizou o conjunto de debates que pautaram a constituição do grupo revela de
maneira concreta o papel fundamental do meio urbano para o projeto revolucionário.
La lucha armada será, en el Uruguay, predominantemente urbana. La lucha
en el medio rural cumplirá tareas auxiliares. Por lo tanto es necesario crear
las bases para desarrollar la guerra en los dos terrenos. (DOCUMENTO 1.
1967: Sem paginação.)
Através desse trecho do Documento 1, que foi uma espécie de elaboração teórica
sobre as diretrizes da organização, evidencia-se que na visão da organização, o meio
urbano cumpriria o papel fundamental para desencadear a revolução por meio da luta
armada. Essa concepção se distingue frontalmente das propostas sistematizadas por
Regis Debray sobre o método foquista. Para Debray, a guerrilha deveria se instalar nos
meios rurais, onde haveria mais condições materiais para que ela obtivesse sucesso,
além de contar com a população rural, vista por essa corrente revolucionária como
sendo os principais agentes que promoveriam a revolução na América Latina. Hector
Luís Saint-Pierre afirma que para o próprio “Che”, a guerrilha deveria ter como foco o
meio rural, “pois forneceria o espaço necessário para a formação do exército
revolucionário”. (SAINT-PIERRE, 2000: 200).
Para o caso da ALN, isso se apresentou de modo bastante distinto. Apesar do
grupo ser caracterizado como de guerrilha urbana, analisando os debates internos do foi
possível perceber como os mesmos nunca romperam com o projeto de implementação
da guerrilha no campo.
O primeiro documento a ser analisado é o texto intitulado Pronunciamento do
agrupamento comunista em São Paulo. Ele foi publicado em 1968, e circulou
internamente nos órgãos de discussão do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nota-se
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que no momento de fundação do grupo, estabeleceu-se o operário e o camponês como
sendo os principais agentes da revolução, ainda que cada um guardasse sua
especificidade. E assim como o operário e o camponês têm lugares distintos no projeto
revolucionário, a cidade e o campo também se destacam e se distinguem.
É dito que:
“(...)há uma importância decisiva no trabalho da área urbana, dado que é
impossível a vitória da guerrilha brasileira sem o apoio da cidade. Por sua
vez, o camponês é o fiel da balança da revolução brasileira, e a guerrilha não
conseguirá implantar-se se não houver trabalho entre os camponeses ou se ela
não estiver intrinsecamente vinculada a eles e não contar com seu apoio”.
(Pronunciamento do agrupamento comunista, 1968: Sem paginação.)
Compreende-se que o princípio norteador do movimento guerrilheiro é o de
organizar e radicalizar a luta no meio rural contando com o apoio da cidade. Nessa
relação entre cidade e campo, a primeira cumpriria a função tática de angariar meios
materiais para implementar a guerrilha e a segunda se apresentaria como fase estratégica
mais importante, constituindo de fato o processo revolucionário, e se tornou uma das
mais importantes fundamentações ideológicas da ALN.
Nesse sentido, o grupo possuiu uma visão bastante consolidada sobre a
estratégia revolucionária. A fase chamada de estratégica, decisiva para a revolução
acontecer, seria realizada nos meios rurais do Brasil. A luta guerrilheira na cidade
deveria garantir a estruturação tática da organização, servindo para obtenção de armas,
dinheiro, etc. Em suma, a atuação no meio urbano teria como objetivo criar condições
materiais para a atuação no campo, lugar em que aconteceria a revolução.
E uma vez que se verifica essa dissonância entre as organizações no que diz
respeito aos lugares em que a luta teria palco, também é possível observar como os
sujeitos vislumbrados como agentes revolucionários também se distinguem.
Sujeitos sociais vislumbrados como protagonistas da revolução.
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Ao se analisar o projeto político dos dois grupos aqui estudados, percebe-se
claramente que os mesmos possuíam visões bem definidas quanto aos grupos sociais
que foram vislumbrados como agentes revolucionários. Pode-se visualizar essas
definições analisando os materiais internos de discussão das duas organizações.
No caso da ALN, analisando os documentos de debate interno e mesmo naqueles
de divulgação dos ideais do grupo, percebe-se com clareza que o camponês foi
projetado como sujeito da revolução.
Analisando o texto intitulado Pronunciamento do agrupamento comunista em
São Paulo, publicado em 1968, observa-se a seguinte citação:
“o camponês é o fiel da balança da revolução brasileira, e a guerrilha não
conseguirá implantar-se se não houver trabalho entre os camponeses ou se
ela não estiver intrinsecamente vinculada a eles e não contar com seu
apoio”. (Pronunciamento do agrupamento comunista, 1968: Sem paginação.)
Portanto, o principio que vai nortear a ação do movimento guerrilheiro é o de
organizar e radicalizar a luta no meio rural, contando com o apoio das populações que lá
vivem, os camponeses, decisivos na luta revolucionária.
Mas também se destacava a importância da classe operária, como no trecho da
Carta ao comitê central, escrito por Marighella em 1967:
“Quem pensa em fazer a revolução tem que se apoiar nas empresas e na
classe operária. No Brasil, tem que se apoiar em São Paulo, a concentração
operária fundamental e decisiva no país”(MARIGHELLA, 1967: Sem
paginação)
Portanto, por mais que a fase decisiva da guerrilha era vislumbrada para
acontecer nos meios rurais, tendo como atuantes as populações que lá viviam, o
operariado como classe revolucionária também teve destaque no imaginário de
revolução comungado pela ALN. Nesse sentido, é possível perceber que se projetava no
operário e no camponês os setores que deveriam atuar na ação guerrilheira. Em vários
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momentos se utilizou o termo “núcleo armado operário-camponês”2. A utilização desse
termo é extremamente significativa, pois fazia parte das tradições políticas do PCB,
visto como sendo a aliança capaz de promover a revolução brasileira. Marcos Del Roy
argumentou em favor dessa nova conformação em um período bastante específico da
trajetória do PCB, que aconteceu durante a ascensão do nazi-fascismo europeu e no
acirramento nacional durante o governo Vargas. Del Roy aponta para esses primeiros
anos da década de 1930 como sendo o momento em que se conformou o “bloco
operário-camponês”, que depois teria evoluído para uma “política de união nacional”.
(DEL ROY, 2002: 56)
Reconhecendo que a composição da cultura política comunista no Brasil se
realizou de maneira própria, sendo hegemonizada pelo PCB, observa-se como o
partidão foi responsável por criar um imaginário de sujeitos revolucionários distinto
daquele propagado pelos partidos comunistas ao redor do mundo, que pensavam o
operário como sendo o único sujeito revolucionário e sua classe a única capaz de
realizar a revolução. Houve certa particularidade na constituição desse imaginário no
caso brasileiro, e o camponês também se constituiu como um sujeito de importância
para o projeto revolucionário comunista.
Da mesma forma, ao estudar as representações sobre o camponês no imaginário
político do PCB, Paula Elise Ferreira Soares mostrou indícios dessa relação estreita ao
afirmar que pelo fato de entre 1922 e 1964 os operários “serem poucos e, portanto,
incapazes de sozinhos conduzirem a revolução” o partidão buscou “nos trabalhadores
rurais um aliado fiel, tendo o partido, inclusive, se tornado a primeira organização
política a se voltar para as lutas do campo brasileiro”. (SOARES, 2013: 39 – 40).
Concordando com as análises, nota-se que pelas características próprias do caso
brasileiro, o partido comunista se voltou de maneira bastante concreta para as
populações camponesas, buscando inclusive produzir conhecimento acerca desse grupo
para entender quais seria o papel deles na revolução socialista.
2 Presente já na “Carta ao comitê central” e no texto “Algumas questões sobre a guerrilha no Brasil”.
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Nesse sentido, o uso desse termo por parte da ALN não deve ser visto como
aleatória uma vez que ele já estava presente no imaginário comunista brasileiro. O
termo aparece em trecho do jornal “O Guerrilheiro”, de abril de 1968. Na sua primeira
coluna, no tópico intitulado “o núcleo armado-operário camponês”, o jornal diz que:
“No que diz respeito a transformar a guerrilha em embrião do exército revolucionário de
libertação, não conseguiremos isso se não contarmos desde o início com o núcleo
armado de operários e camponeses”. (O Guerrilheiro, 1968: p. 1)
Essa reincidência do uso do termo e a projeção feita a união das duas classes
como as propagadoras da revolução no Brasil indica como algumas facetas da cultura
política comunista - hegemonizada no Brasil pelo PCB – incidiram diretamente nas
estratégias revolucionárias da ALN, uma dissidência do partido. Isso explica o uso
desses termos e, mais do que isso, do componente operário no projeto revolucionário da
ALN, pois como foi visto na obra de Guevara, esses sujeitos não estavam inseridos em
seu pensamento e deveriam ser guiados pelos trabalhadores rurais. Como foi observado
no caso da guerrilha brasileira, o bloco operário teria tamanha importância tanto quanto
os camponeses. Com isso, já é possível perceber como as tradições políticas enraizadas
nos contextos nacionais incidiram diretamente nas organizações das guerrilhas
revolucionárias.
A experiência dos Tupamaros é bastante peculiar nesse sentido, pois eles
conjecturaram uma ideia bastante alargada de agentes revolucionários, rompendo com
categorias de classe social. Analisando os documentos de discussão interna do MLN se
percebe com clareza tais questões. Um dos mais sintomáticos aparece no documento nº
4, de 1969, outra elaboração teórica que teria como função orientar a ação do grupo.
Nesse documento percebe-se como atuar junto ao povo tomava dimensões decisivas
para o êxito na luta da organização.
“Si no contamos con el pueblo deberemos enfrentar los aparatos represivos
solos, mano a mano, como ellos. Ese pleito lo perdemos. Si contamos con el
pueblo entonces ellos no tendrán que derrotar al MLN: tendrán que derrotar
al pueblo.” (DOCUMENTO 4, 1969: Sem paginação)
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No trecho destacado do documento, o grupo revelava sua vontade de contar com
o apoio da população uruguaia de maneira geral, não definindo nenhum setor social em
específico. Para o grupo, seria fundamental contar com o apoio amplo dos diversos
setores da sociedade uruguaia para que isso desse respaldo e suporte para a luta
revolucionária e contra a repressão que se colocava. Nesse sentido o MLN definiu como
sujeitos políticos de seu projeto revolucionário o povo uruguaio.
Trabalhar com essa categoria é bastante complexo, uma vez que ela é
extremamente ampla. Porém, na experiência do grupo uruguaio, povo é bastante
específico, inserido em uma lógica nacionalista que impactou o grupo decisivamente.
Algumas características do MLN revelam como o nacionalismo uruguaio foi decisivo
na construção de seu projeto guerrilheiro.
Esse nacionalismo se fez presente na própria escolha do nome da organização:
Tupamaros. A referência a esse nome foi a dos remanescentes dos camponeses que
lutaram ao lado de José Artigas durante as guerras de independência do começo do
século XIX. (TRISTÁN, 2006: 166)
Segundo Fernández Huidobro, a inspiração para o nome veio através da canção
de Osíris Rodriguez Castillo, chamada Cielo de los tupamaros, que havia sido composta
em 1959, expressão da música folclórica uruguaia. Portanto, foi justamente esse
pertencimento àquela manifestação artística ligada ao nacional que motivou a escolha
do nome da organização. Outra questão referente ao nome que diz muito sobre a cultura
política da organização é que sua escolha tinha também como foco fugir das referências
tradicionais das organizações de esquerda. Havia o objetivo de se afastar daquilo que a
esquerda oferecia como tradicional, e por isso escolher o nome de Tupamaros
representava uma experiência nova para a esquerda uruguaia, ao mesmo tempo que
retomava elementos nacionais bastante solidificados na cultura do país.
(CAMPODÓNICO, 2000: 85)
E fundamentalmente, o nome retomou fortemente a figura de Artigas, um
elemento destacado na cultura política expressada pelo MLN. Segundo o historiador
Rey Tristán, os Tupamaros se declaravam herdeiros daqueles que lutaram junto de
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Artigas pela independência uruguaia e contra o colonialismo. Por esse prisma, a ideia de
povo para o Tupamaros não se restringe a elementos de classe social ou setores
definidos da sociedade. Trabalhando com a ideia de povo relacionada com a nação
uruguaia, a organização insere qualquer setor do país dentro do seu projeto político.
Essa seleção não parece ter sido aleatória, e está diretamente relacionada ao objetivo de
conquistar o apoio da população uruguaia, pois essa seria a única forma de conquistar a
vitória e alcançar os objetivos de revolução social. (TRISTÁN, 2006: 165)
Os Tupamaros também se esforçaram em reforçar aspectos constituintes da
nacionalidade uruguaia. No Documento 1, citado anteriormente, o grupo expressava
essa vontade: “La nación és el pueblo: asumir el nacionalismo es asumir las tareas
históricas de este pueblo”. (DOCUMENTO 4, 1969: Sem Paginação). Portanto, para o
grupo a luta revolucionária deveria ser empreendida em nome de todos aqueles tidos
como uruguaios, uma ideia bastante alargada de povo.
Por esse prisma, os sujeitos revolucionários não se restringiram a elementos de
classe social ou setores definidos da sociedade e que a teoria marxista-leninista
consagrou como sendo os agentes da revolução, como por exemplo, o operário.
Também não se percebe uma substituição do operário pelo camponês, como foi
comumente feito pelas guerrilhas na América Latina depois da revolução cubana. Com
isso, a organização inseriu qualquer setor do país dentro do seu projeto político. Essa
escolha não parece ter sido aleatória, e está diretamente relacionada a uma cultura
política própria da sociedade uruguaia, que enraizou uma forte democracia liberal
calcada no nacionalismo.
A incidência dessa cultura política liberal e democrática do Uruguai também foi
responsável por consolidar um viés democrático, reverberando na própria atuação da
organização guerrilheira. Clara Aldrighi afirma que:
“No sólo el cálculo político guiaba las acciones del MLN sino que también
influían consideraciones y preocupaciones de carácter moral. Pero se
trataba de una moral que tenía numerosos punto de desencuentro con la
moral de la paz que naturalmente regulaba la vida social uruguaya”
(ALDRIGHI, 2001: 154).
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Essa preocupação em atuar dentro de uma determinada moral foi uma
característica muito peculiar da guerrilha tupamara, sendo estruturante para a elaboração
de todas as suas ações, fazendo com que alguns autores afirmem que o grupo apresentou
um nível inferior de violência quando comparado com outras organizações de luta
armada. Rey Tristán afirma que
El MLN-T no fue una organización especialmente sanguinaria. Tuvieron muy
presente la tradición uruguaya respecto a la violencia y a los ataques
personales, especialmente contra la vida. (TRISTÁN, 2006: 178)
Portanto, os Tupamaros estavam inseridos na cultura liberal que se fazia
presente no Uruguai desde os primórdios do século XX, e essa cultura política pautada
pelo liberalismo democrático incidiu decisivamente sobre o grupo, como é possível
perceber, dentre outras formas, a partir da composição do projeto político do grupo
ligado diretamente a figura de José Artigas. A tradição liberal, fortemente enraizada
naquele país, fez com que os seqüestros – e mesmo outras ações de cunho violento -
seguissem um padrão distinto, ainda que mantendo objetivos similares com as dos
demais atos realizados por outros movimentos guerrilheiros. Dentro dessa foi criado o
Cárcel del Pueblo, instituição prisional do MLN-T que seguia essa orientação inserida
em um viés democrático. Eram nessas prisões que as figuras públicas que eram alvos de
seqüestro ficaram alojados.
A existência do Cárcel del Pueblo faz com que seja possível aferir elementos
muito específicos da guerrilha tupamara, que demonstram a forte incidência dessa
tradição liberal uruguaia na organização. Em primeiro lugar, a própria preocupação em
criar uma espécie de instituição regulamentada por certas normas e aspectos morais já é
notório do quanto o grupo pretendia se respaldar em certa legalidade para realizar os
atos de violência revolucionária. E o próprio uso do termo Pueblo para nomear a prisão
já indica a forma pela qual os tupas mobilizam a moral para o seu projeto político. Eles
apresentam as normas existentes no Estado uruguaio como sendo dos inimigos –
imperialistas e burgueses na visão do grupo – e justamente por isso que haveria a
necessidade de criar uma nova justiça, apresentada por eles próprios e que seria a justiça
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do povo; cria-se assim uma dualidade entre os inimigos – os burgueses e imperialistas –
e o povo, que era representado e defendido pelo MLN.
Portanto, a experiência do MLN-Tupamaros se caracterizou por ser uma
guerrilha preocupada com certos aspectos morais e por mediar o uso da violência,
pautando a mesma na esfera de uma determinada legalidade. Isso se verificou na criação
do Cárcel del Pueblo e na tentativa do grupo de imprimir certa lógica humanitarista no
uso da violência com um sentido racional. A essa violência racional, Cardozo atribui o
termo de violência humanizada (PRIETO, 2009: 7). Diversas ações dos Tupamaros
apresentaram características que estão diretamente relacionadas a essa ideia de atuação
dentro de uma determinada moral, evitando confrontos armados quando possível e
justificando publicamente quando alguma ação resultava em morte de agentes públicos
de segurança. Para isso, o grupo fez uso de seus boletins, espécie de periódico
informativo criado para estabelecer um diálogo para justificar tais ações violentas. No
Boletim número 1, de 1969, os Tupamaros anunciaram: “Los Tupamaros somos
responsables de nuestras acciones. Fue un comando del MLN el que hizo fuego contra
el agente Germán Garay. Nuestro objetivo era su arma. Y no su vida”. (BOLETIM Nº 1,
1969: Sem Paginação).
Essa particularidade do caso tupamaro em buscar o distanciamento de ações
violentas revela como a cultura política liberal democrática do Uruguai incidiu sobre a
organização guerrilheira, não apenas no modo como o grupo forjou sua compreensão de
sujeitos revolucionários, mas também moldando suas ações guerrilheiras de um modo
que seguisse certos aspectos morais e evitasse um alto nível de violência.
Conclusão.
Analisando de maneira comparada algumas características das organizações de
luta armada aqui estudadas, foi possível observar como certos aspectos das culturas
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políticas locais de cada contexto nacional incidiram sobre as experiências guerrilheiras,
moldando as mesmas com características muito próprias.
A tentativa de uma atuação mais humanizada por parte dos Tupamaros,
procurando inserir uma lógica no uso da violência que respeitava uma determinada
moral, assim como a ideia alargada de compreensão dos sujeitos revolucionários
revelam como a democracia liberal, uma característica muito presente na sociedade
uruguaia e que se enraizou na experiência política do batllismo, incidiu sobre as táticas
revolucionárias mobilizadas pelo MLN.
Do mesmo modo, para a ALN a concepção de que os agentes revolucionários se
constituiriam a partir do núcleo revolucionário operário-camponês também responde
diretamente a cultura política comunista, forjada durante o período em que o PCB foi
hegemônico na esquerda do país.
Essa análise mostrou como as culturas políticas que compuseram tradições tão
fortes em seus contextos nacionais foram responsáveis por conformar as próprias
estratégias e modos de atuar de cada organização guerrilheira. Nesse sentido, mesmo se
tratando de experiências políticas completamente distintas daquelas tradicionalmente
utilizadas pelas esquerdas nacionais, elas não romperam de maneira definitiva com
algumas características profundamente arraigadas nas culturas políticas de cada
contexto em específico. Isso demonstra claramente como tais tradições são fortes e que
mesmo novas estratégias acabaram por incorporá-las em suas novas experiências.
Entender tais permanências é extremamente importante para observar as
trajetórias guerrilheiras nas suas especificidades, rompendo com a tendência de inseri-
las como resultado da revolução cubana e como militantes que procuraram aplicar as
fórmulas do guevarismo nos seus casos nacionais. Evidentemente que a revolução de
1959 foi emblemática nas transformações da esquerda naquele período e que seus
ensinamentos foram importantes para a atuação das guerrilhas que se propagaram a
partir de então. Mas não foram resultados diretos dela. Portanto, as guerrilhas na
América Latina devem ser concebidas como sínteses de uma relação dialética entre o
impacto da revolução cubana e os desdobramentos e transformações internas da mesma.
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Por isso elas precisam ser compreendidas nas suas especificidades e ao estudá-las, além
de compreender melhor suas questões internas, também é possível entender muita coisa
a respeito das próprias tradições políticas de cada ambiente em que as mesmas se
desenvolveram.
Referências:
Documentos:
Documento 1. 1967. Textos de Documentos. Arquivio David Campora.
Documento 4. 1969. Textos de Documentos. Arquivio David Campora.
Boletim Nº 1. 1969. Textos de Documentos. Arquivio David Campora.
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