asbahr flavia - por que aprender isso professora
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOINSTITUTO DE PSICOLOGIA
FLVIA DA SILVA FERREIRA ASBAHR
Por que aprender isso, professora?Sentido pessoal e atividade de estudo
na Psicologia Histrico-Cultural
So Paulo2011
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FLVIA DA SILVA FERREIRA ASBAHR
Por que aprender isso, professora?Sentido pessoal e atividade de estudo
na Psicologia Histrico-Cultural
Tese apresentada no Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulo
para obteno do ttulo de Doutor emPsicologia.
rea de concentrao: Psicologia Escolare do Desenvolvimento Humano
Orientador: Profa. Dra. Marilene ProenaRebello de Souza
So Paulo
2011
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTETRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogao na publicaoBiblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo
Asbahr, Flvia da Silva Ferreira.Por que aprender isso, professora? Sentido pessoal e atividade de
estudo na Psicologia Histrico-Cultural / Flvia da Silva FerreiraAsbahr; orientadora Marilene Proena Rebello de Souza. -- So Paulo,2011.
220 f.Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Psicologia.
rea de Concentrao: Psicologia Escolar e do DesenvolvimentoHumano) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.
1. Atividade escolar 2. Ensino fundamental 3. PsicologiaHistrico-Cultural 4. Psicologia escolar 5. Ensino fundamental 6.Desenvolvimento humano 7. Vygotsky, Lev Semenovich, 1896-1934I. Ttulo.
LB1051
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FOLHA DE APROVAO
Por que aprender isso, professora? - Sentido pessoal e atividade de estudo naPsicologia Histrico-Cultural
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia daUniversidade de So Paulo para obteno dottulo de Doutora. rea de Concentrao:Psicologia Escolar e do DesenvolvimentoHumano
Aprovado em ______/______/______
Banca examinadora:
_________________________Presidente
_________________________
Membro titular
_________________________Membro titular
_________________________
Membro titular
_________________________
Membro titular
Tese defendida e aprovada em: __/__/__
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Esperana
L bem no alto do dcimo segundo andar do AnoVive uma louca chamada EsperanaE ela pensa que quando todas as sirenasTodas as buzinasTodos os reco-recos tocaremAtira-seE- delicioso vo!-Ela ser encontrada miraculosamente inclume na calada,
Outra vez criana...E em torno dela indagar o povo:- Como teu nome, meninazinha de olhos verdes?E ela lhes dir( preciso dizer-lhes tudo de novo!)Ela lhes dir bem devagarinho, para que no esqueam:- O meu nome ES-PE-RAN-A
Mario Quintana,emNova Antologia Potica
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Agradecimentos
Marilene Proena Rebello de Souza, querida orientadora, com quem aprendodiariamente que cincia e poltica, teoria e prtica, podem e devem caminhar juntas, em
um lindo exerccio de coerncia.
Elenita de Rcio Tanamachi, que, com a insistente pergunta qual a tese?, me fezver mais um monto de outras perguntas e respostas, em um intenso aprendizado sobrea importncia do rigor terico e sobre o valor do companheirismo e da amizade.
Ao Manoel Oriosvaldo de Moura, querido Ori, por me ensinar que simplicidade,honestidade e paixo pelo conhecimento so ingredientes indispensveis queles que seaventuram no s pela academia, mas pela vida.
professora Solange, que to generosamente permitiu que eu acompanhasse seutrabalho e com quem muito aprendi sobre o ensinar.
Aos profissionais da escola onde realizei esta pesquisa, especialmente equipepedaggica, que sempre me acolheram com carinho e respeito.
Ao professor Guillermo Arias Beatn, pelas valiosas contribuies no exame dequalificao e pela amizade construda.
Ao professor Pablo Del Rio, pela carinhosa acolhida durante o estgio de doutoradosanduche na Universidad Carlos III de Madrid. Agradeo tambm professora Amlia
Alvarez e aos demais integrantes do LIC (Laboratrio de Investigacin Cultural).Aos integrantes do grupo de estudo do LIEPPE (Laboratrio Interinstitucional deEstudos e Pesquisas em Psicologia Escolar), com quem compartilho conhecimento e odesejo de um mundo justo.
Aos colegas do GEPAPE (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a AtividadePedaggica), pela grande parceria nesta busca pela construo de uma educaohistrico-cultural.
Aos colegas de orientao, Deborah, Roseli, Jane, Zaira, Ana Karina, Gisele, Vnia,
Crita, Ana Carolina, Lygia, Anabela e Marcelo, com quem muito aprendo sobrepesquisa e sobre Psicologia Escolar em uma perspectiva crtica.
Aos amigos do grupo de ORIentandos, Carol, Malu, Flvio, Flvia, Samanta, Amanda,Joo e Algacir, pela acolhida fraterna e por me recolocarem no movimento de atividadede pesquisa.
Ao grupo da pesquisa Formao continuada de professores e a mediao detecnologias de ensino: limites e possibilidades, pelos aprendizados sobre formaodocente. Agradecimentos especiais Professora Denise Trento Rebello de Souza, cujaseriedade, profundidade e coerncia so verdadeiras inspiraes, no apenas
profissionais, mas principalmente humanas.
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Carol Picchetti Nascimento, pelas atentas leituras de meus textos, pelas conversasalentadoras e pela amizade construda.
Ju (Juliana da Silva Lopes), grande amiga dos planos de conquistar o mundo, que,
com sua delicadeza, sempre me faz questionar o bvio.
Syl (Sylvia Silveira Nunes), amiga de muitos almoos na USP e de muitas conversassobre a Espanha e sobre os planos de vida.
Eliza (Maria Eliza Mattosinho Bernardes), pelo companheirismo na produo deconhecimento, pelo constante incentivo profissional.
Bel (Maria Isabel Batista Serro), por me ensinar que seriedade e alegria so umatima combinao.
Ao Vanderlei Elias Nery e Edna Martins, companheiros de trabalho, amigos da vida.
Daniele Kohmoto Amaral, pelo indispensvel auxlio na pesquisa de campo.
Aos meus pais, Gilda e Pricles, pelo constante apoio e incentivo na vida pessoal eprofissional, e por fazerem que o conhecimento, a tica e a paixo pelo estudo fossem asbases de meu desenvolvimento desde a infncia.
minha irm Renata, companheira do dia a dia, das viagens, dos almoos, dassobremesas e das muitas reflexes sobre o que ser professor. Algo que, alis, ela fazmuito bem. Agradeo tambm pelas correes gramaticais do trabalho.
minha irm Paula, que h pouco tempo era uma menina e que, no processo de tornar-se mulher, ensina-me sobre a busca dos sonhos.
Ao meu cunhado Ma, que, sem perceber, me faz questionar minhas convices,mostrando-me a complexidade do mundo, sempre com bom humor.
Aos funcionrios do Instituto de Psicologia, pelo apoio necessrio.
Aos funcionrios da Biblioteca do IPUSP, pelo grande trabalho que tem sido feito no
sentido de documentar, organizar e garantir o acesso ao conhecimento em Psicologia. FAPESP, pelo apoio financeiro to necessrio ao desenvolvimento de uma pesquisacomo esta e realizao de estgio na Universidad Carlos III de Madrid.
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ASBAHR, Flvia da Silva Ferreira. Why do I need lo learn this, teacher? Personalsense and study activity in Historic-Cultural Psychology.Thesis (PhD) Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.
ABSTRACTThis research aims to investigate the process of personal sense attribution to the studyactivity of students in Elementary School. It has been considered as a theoreticalreference the Historic-Cultural Psychology that comprises the human development asfrom the periodization of leading activities undertaken through life. The focus of theresearch is the study activity, leading activity of children at school age. The work iscomposed by a conceptual bibliographical research, which products are theoreticalsyntheses on the investigated object and an empirical research, made in a municipal
public school from the city of Sao Paulo, with students from the 4th grade. Theempirical research is divided in four steps: 1st) Accompanying and observation of aclassroom day-by-day; 2nd) Learning oriented situations, that consist in help to the
students in their tasks; 3rd) Focal groups with students to understand the motives of theirstudy activity; 4th) Individual interviews with the teacher and some children. For dataanalysis it was used the following procedures: 1) Empirical description, built from themost frequent thematic in the data records, 2) Theoretical description, made from linesof analysis that disclose the movement of the study activity; 3) Establishment of theanalysis unit of the object of this research: the relation between the study activitymotives and the objectives of study actions; 4) Return to the concrete, mediated by theanalysis unit. Finally, it is aimed to reconstruct the real and explain the process of
personal sense attribution to the study activity. It is analyzed, therefore, the limits of theformation of this activity in the current organization of teaching and the scholarcontradictions that show, on the other hand, possibilities of study activity formation andof constitution of a personal sense that is consistent with the maximum possibilities ofhumanization existent in the activity in focus. In this perspective, it is analyzed how therelation between the motives of the study activityand the actions of study may engender
purposeless actions, which do not allow the formation of this activity. They may, on theother hand, produce actions that generate reasons of learning, in which the knowledge isno longer merely a school content and becomes content experiences by the student. Inthe first case, that we name of existing personal sense, it is noticed the rupture betweenthe motives and actions of study. In the second case, it is pointed out the contradictionsin the organization of the pedagogical activity that indicate possibilities of overcomingthis fragmentation between motives and actions and between social meanings and
personal sense of the study activity, and that indicate the process of the attribution ofpossible personal senses, in the direction of the appropriation of the specific humanknowledge of the pedagogical activity. It is emphasized the role of the teacher in this
process. As a result, it is defended the thesis that for the scholar learning to happen, thestudy actions of the students must have a personal sense correspondent to the motivesand to the social meanings of the study activity, towards the human development
promotion. It is proposed, as a synthesis, an explanatory set of theoretical elements ofthe process of attribution of personal sense to the study activity in general, explainingwhat is needed to comprehend to situate the activity of the teacher as a humanizingactivity, in a way that his or her mediation leads to the study activity of the student bymeans of the personal sense attribution.
Keywords: School activity; School education; School Psychology; fundamentaleducation; Historic-Cultural Psychology; human development; Vygotsky, LevSemenovich, 1896-1934.
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Lista de quadros e figuras
Quadro 1: Contedo dos grupos focais.........................................................................111
Quadro 02: Sntese dos procedimentos metodolgicos de apreenso dos dados..........112
Figura 01: Eixos de anlise da descrio terica..........................................................115
Figura 02: Movimento de anlise dos dados.................................................................119
Figura 03: Foto da rvore da convivncia.....................................................................169
Figura 04: Foto do trabalho coletivo.............................................................................170
Figura 05: Relao singular-particular-universal no processo de atribuio de sentido
pessoal atividade de estudo.........................................................................................186
Figura 06: Modelo explicativo do processo de atribuio de sentido pessoal atividadede estudo........................................................................................................................189
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SUMRIO
RESUMO......................................................................................................................... 8
ABSTRACT.....................................................................................................................9
INTRODUO.............................................................................................................15
Meus motivos e o objetivo de pesquisa...............................................................15 O caminho percorrido e a tese defendida ...........................................................18
CAPTULO I A Psicologia Histrico-Cultural: uma concepo de homem e de
cincia ............................................................................................................................22
1.1.Princpios tericos da Psicologia Histrico-Cultural...........................................241.2.Uma breve incurso sobre uma polmica no interior da Psicologia Histrico-Cultural.......................................................................................................................34
CAPTULO II - A criana em desenvolvimento: a relao entre desenvolvimento e
aprendizagem na Psicologia Histrico-Cultural........................................................ 37
2.1. A concepo histrico-cultural sobre desenvolvimento e aprendizagem......... 382.2. O problema da periodizao do desenvolvimento psicolgico na infncia..... 44
CAPTULO III - A atividade de estudo e a formao do pensamento terico ...... 60
3.1. Contedo e estrutura da atividade de estudo ................................................... 63
3.2. A formao do pensamento terico e a organizao do ensino ....................... 69
3.3. A atividade orientadora de ensino como unidade dialtica entre atividade de
estudo e atividade de ensino ............................................................................................. 77
CAPTULO IV - Sentido pessoal, significado social e a constituio da conscincia
humana ......................................................................................................................... 82
4.1. A relao entre sentido e significado na constituio da conscincia humana:
leituras de Vigotski e Leontiev................................................................................ 84
4.2. O sentido pessoal e a atividade de estudo........................................................ 94
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CAPTULO V - O mtodo em movimento.............................................................. 101
5.1. Concepo metodolgica da Psicologia Histrico-Cultural...............................101
5.2. Procedimentos metodolgicos para a apreenso dos dados de pesquisa:
conhecendo o concreto catico ..............................................................................106
5.3. Procedimentos analticos.................................................................................113
5.4. Caracterizao inicial de uma singularidade: o referente
emprico..................................................................................................................120
CAPTULO VI Anlise dos dados: o processo de atribuio de sentido pessoal
atividade de estudo......................................................................................................125
6.1. O contexto da atividade de estudo ..................................................................1266.2. Desenvolvimento da atividade de estudo........................................................142
6.3. Resultados da atividade de estudo...................................................................170
SNTESES: A relao singular-particular-universal no processo de atribuio de
sentido pessoal atividade de estudo ........................................................................184
REFERNCIAS .........................................................................................................195
ANEXOS......................................................................................................................211
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INTRODUO
Meus motivos e o objetivo de pesquisa
Professor, por que eu tenho que aprender isso?, Para que vou usar isso que
estou aprendendo na minha vida?, Por que eu preciso ir escola?. Frases como
essas, ditas por estudantes de escolas em que trabalhei, por colegas de classe e por mim
durante minha vida escolar e, mais recentemente, como professora universitria, pelos
meus prprios alunos, produzem em mim grandes angstias e inquietaes.
Em uma das escolas pblicas em que atuei como psicloga escolar, ao
entrevistar estudantes sobre seu processo de escolarizao, seus depoimentos
chamavam-me a ateno. Quando perguntava a eles porque frequentavam a escola e por
que precisavam estudar, a resposta sempre se referia a algo externo a eles: Pra poder
pegar um servio bom, ser um cara esperto; Pra trabalhar e dar sade pros filhos;
Pra, quando eu crescer, no ficar desempregado; Porque, pra trabalhar, voc tem
que saber ler. At pra catar lixo.A palavra aprendizagemraramente aparecia como
finalidade de suas aes na escola.
Em experincias mais recentes, como professora universitria da disciplinaPsicologia da Educao, no curso de Pedagogia, costumo iniciar minhas aulas pedindo
aos estudantes que relembrem sua vida escolar, destacando os fatos mais marcantes. Em
todas as turmas, os enfoques predominantes das memrias so situaes de humilhao,
vergonha, medo e castigo. Alguns alunos relatam episdios dramticos que, em suas
anlises, produziram grandes dificuldades ou, at mesmo, a desistncia de aprender.
Ao elaborar o projeto de pesquisa que deu origem a esta tese, deparei-me com
uma reportagem publicada no jornal O Estado de So Paulo com o seguinte ttulo:As crianas j esto na escola; agora s falta elas aprenderem1. Nessa matria,
estudantes de escolas pblicas municipais e estaduais, de Ensino Fundamental e Mdio,
do municpio de So Paulo, relatavam o que estavam aprendendo nas escolas: Ns s
copia as coisas l (aluno de 6 ano); Fiz a prova na segunda e j esqueci (o que
estudei para a prova)(aluno de 6 ano); Estou aprendendo continhas.Quantos so
1SANTANNA, Lourival. As crianas j esto na escola; agora s falta elas aprenderem. O Estado de SoPaulo, So Paulo, 9 jul. 2006. Caderno A, p. 26-27.
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seis vezes seis?, pergunta o reprter. No me lembro. (aluno da 4 ano). Muitos
estudantes no conseguiam dizer com clareza o que estavam aprendendo na escola.
As situaes relatadas, alm das inquietaes produzidas, levam-me a formular
algumas questes, que foram ponto de partida para as perguntas de pesquisa que
orientam esta tese: Por que a aprendizagem no aparece como finalidade da escola nas
respostas dos alunos? Qual o espao da aprendizagem em situaes em que prevalece
o medo e o castigo? Como foi o processo de aprendizagem em histrias de vida
marcadas pelo fracasso e pela humilhao? O que faz os estudantes terem pouca clareza
do que esto aprendendo na escola? Como vem sendo organizado esse ensino em que os
estudantes no tm controle sobre seu prprio processo de aprendizagem?
Como sabemos, a escola pblica brasileira sofre graves problemas no que dizrespeito aos processos de escolarizao, ensino e aprendizagem. Pesquisas indicam que,
a partir dcada de 1990, o acesso escola foi, em grande medida, universalizado e, em
muitas regies do Brasil, 96 % das crianas e adolescentes em idade escolar frequentam
a escola (FERRARO, 1999). Assim, por um lado, podemos dizer que as crianas em
idade escolar esto, em sua maioria, matriculadas na escola. Mas, por outro, as
condies de permanncia e aprendizagem no esto consolidadas. Ainda nos
deparamos com o grave problema da reprovao em muitos Estados e municpiosbrasileiros, j fortemente denunciado por Patto (1999), Paro (2001a) e outros autores.
Tambm nos deparamos com as consequncias desastrosas de polticas que visam
eliminar a reprovao sem eliminar suas causas2, produzindo alunos semialfabetizados
em todos os nveis do Ensino Bsico.
Diante desse cenrio, pesquisadores brasileiros tm investigado as polticas
pblicas em educao3, a formao de professores4, a produo do fracasso escolar5e a
gesto escolar
6
, entre outras temticas, buscando compreender as repercusses desseselementos no cotidiano da escola e na aprendizagem discente. Mas h outros temas
2 Como exemplo, a poltica de progresso continuada no Estado de So Paulo, analisada por Vigas(2006, 2007).3Como vemos em Arelaro (2005).4So referncias os trabalhos produzidos pelo GEPEFE - FEUSP (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre aFormao do Educador), elencados em http://www2.fe.usp.br/~gepefe/ (acesso em 12/02/2010). Ressalto,tambm, o texto de Bueno et.al. (2006) acerca dos mtodos autobiogrficos como estratgias de formaodocente.5Patto (1999) uma das principais referncias sobre a produo do fracasso escolar. Em Angelucci et al.(2004) podemos ver um panorama do estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar na rede pblicade ensino fundamental, em uma retrospectiva histrica acerca do tema.6Por exemplo, Paro (2006, 2010).
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ainda a serem abordados, como, por exemplo, compreender como os estudantes avaliam
seu prprio processo de escolarizao, ou seja, entender a escola a partir da anlise dos
estudantes.
Nessa perspectiva, a Psicologia Escolar e Educacional pode fornecer importantes
contribuies na medida em que tem se dedicado a investigar como os prprios sujeitos
que estudam e trabalham nas escolas explicam o processo de escolarizao e,
especialmente, como as crianas entendem e vivenciam sua histria escolar7.
Quando menciono as contribuies da Psicologia Escolar, tomo como referncia
uma compreenso crtica de Psicologia e Educao, que supere a histrica
culpabilizao dos alunos em relao aos problemas escolares e busque compreender o
processo de escolarizao em suas mltiplas determinaes. Nesse sentido, o objeto deanlise e interveno da Psicologia Escolar em uma perspectiva crtica o encontro
entre o sujeito humano e a educao (MEIRA, 2000, p. 58).
Tal concepo de psicologia compreende a escola como instituio que est
inserida em uma sociedade de classes, o que requer, para que se possa analisar o
encontro entre os sujeitos e a educao, um exame do papel da escola nesta sociedade
(SAVIANI, 2008).
Dentre as vrias abordagens tericas da Psicologia que buscam compreender osfenmenos escolares de forma crtica, a referncia adotada por mim a Psicologia
Histrico-Cultural, cujos principais representantes so Vigotski, Leontiev, Luria,
Elkonin, Galperin e Davidov, entre outros. Tal concepo terica tem, como origem
filosfica e epistemolgica, o mtodo materialista histrico dialtico de Marx e, como
projeto de Psicologia, o estudodos fenmenos verdadeiramente humanos, na direo da
elaborao de uma psicologia concreta do homem (VIGOTSKI, 2000a). Para esta
teoria, os fenmenos psicolgicos devem ser entendidos em sua constituio histrico-cultural.
Um dos conceitos fundamentais da Psicologia Histrico-Cultural o de sentido
pessoal, que deve ser compreendido a partir da unidade dialtica entre a atividade
humana e a conscincia. O sentido pessoal expressa a relao subjetiva que o sujeito
estabelece com os significados sociais e com as atividades humanas. este o conceito-
chave da presente tese justamente porque permite compreender como a relao que as
7Um exemplo dessa abordagem acerca dos fenmenos escolares o livro organizado por Souza (2010), oqual rene diversas pesquisas que tm como ponto de partida a compreenso das crianas sobre a escola.
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crianas estabelecem com a escola e com o estudo, ou seja, possibilita entender a escola
a partir da anlise dos estudantes.
Chego, assim, ao objetivo desta tese: investigar o processo de atribuio de
sentido pessoal atividade de estudo de estudantes do Ensino Fundamental.
Algumas perguntas de pesquisa so necessrias para que o objetivo seja
alcanado: Qual o sentido pessoal que os estudantes atribuem a sua vida escolar? Mais
especificamente, qual o sentido pessoal atribudo a sua atividade de estudo? Como o
processo de atribuio de sentido pessoal a essa atividade? Quais so os determinantes
objetivos e subjetivos desse processo? Quais so os motivos da atividade de estudo de
estudantes da escola pblica?
Ressalto que o objetivo e as perguntas de pesquisa tm uma dupla origem: asinquietaes geradas no decorrer de minha vida profissional e a reconfigurao dessas
questes a partir do estudo da Psicologia Histrico-Cultural e da Psicologia Escolar em
uma perspectiva crtica. Ou seja, as reflexes produzidas por esta tese tm como ponto
de partida as questes surgidas em minha prtica profissional como psicloga escolar e
professora universitria, mas s podem ser produzidas porque partem de uma
determinada concepo terica que sustenta a investigao e orienta a tese desde a
definio das perguntas e do objeto a ser estudado at o caminho terico e metodolgicopercorrido.
Destaco, tambm, que, desde o mestrado, preocupo-me com a questo do
sentido pessoal atribudo pelos indivduos a sua atividade principal. Em minha
dissertao, investiguei o processo de atribuio de sentido pessoal de professores a sua
atividade pedaggica (ASBAHR, 2005a)8. Na atual pesquisa, meu foco ser o estudante.
O caminho percorrido e a tese defendida
Tendo como referncia o objetivo e as perguntas de pesquisa, iniciaram-se as
investigaes tericas e bibliogrficas da tese, bem como o desenho da investigao
emprica. A tese composta por uma investigao bibliogrfica conceitual (captulos I,
II, III e IV), em que apresento as snteses tericas produzidas a partir do estudo das
obras de diferentes autores que me ajudaram a compreender o objeto estudado, o
8A pesquisa de mestrado tambm foi orientada pela Professora Dra. Marilene Proena Rebello de Souza.Contou com financiamento da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP).
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sentido pessoal atribudo atividade de estudo, e tambm a conceber a outra parte da
tese, a investigao emprica (captulos V e VI), realizada em uma escola pblica
municipal da cidade de So Paulo, com estudantes de 4asrie.
Inicio a apresentao dos resultados da investigao bibliogrfica conceitual
explicitando os princpios terico-metodolgicos da Psicologia Histrico-Cultural, a
concepo de homem presente na teoria marxiana e seus desdobramentos Psicologia
Histrico-Cultural (captulo I).
Da concepo geral de homem e de Psicologia, destaco, no captulo II, a
compreenso de desenvolvimento e aprendizagem advinda da Psicologia Histrico-
Cultural, tendo como fonte as obras de Vigotski, Leontiev e Davidov. Explicito, assim,
conceitos centrais na obra dos autores dessa escola, tais como Zona deDesenvolvimento Proximal, as crises do desenvolvimento, a situao social de
desenvolvimento e a periodizao do desenvolvimento infantil baseada no conceito de
atividade principal.
Como desdobramento, o captulo III aprofunda a anlise de uma das atividades
principais, a atividade de estudo, tpica das crianas em idade escolar. Exponho, na
primeira parte do captulo, o contedo e a estrutura da atividade de estudo. Na segunda,
analiso como se constitui a principal neoformao psicolgica da atividade de estudo, opensamento terico, em sua relao com a organizao do ensino. Por ltimo, discuto o
conceito de atividade orientadora de ensino como unidade dialtica entre a atividade de
ensino do professor e de estudo dos alunos.
No captulo IV, fao uma reviso bibliogrfica sobre pesquisas que utilizam os
conceitos de significado social, sentido pessoal e atividade de estudo, bem como sobre
os aportes da Psicologia Histrico-Cultural acerca desses conceitos. Na primeira parte
do captulo, discuto a relao entre sentido e significado na constituio da conscinciahumana, tendo como referncia obras de Vigotski e Leontiev. Na segunda parte, analiso
a relao entre sentido pessoal e atividade de estudo a partir de levantamento
bibliogrfico acerca do tema.
Estes captulos, I a IV, produtos da investigao bibliogrfica conceitual, trazem os
elementos tericos necessrios que compuseram o planejamento da segunda parte da tese, a
pesquisa emprica, a organizao e a anlise dos dados, presentes nos captulos V e VI.
No captulo V, alguns pressupostos do mtodo materialista histrico dialtico
que orientaram esta pesquisa so explicados. Exponho, ainda, como foi organizada a
pesquisa em termos de procedimentos metodolgicos de apreenso dos dados e quais
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foram os procedimentos analticos utilizados, isto , o movimento de anlise dos dados.
neste captulo que apresento o referente emprico de pesquisa, uma classe de 4 srie
do Ensino Fundamental de uma escola pblica municipal de So Paulo. A classe em
foco era uma turma de PIC (Programa Intensivo de Ciclo), projeto educacional descrito,
brevemente, no referido captulo.
Ainda neste captulo, ao explicaro movimento de anlise dos dados, explicito a
unidade de anlise do processo de atribuio de sentido pessoal, a relao entre os
motivos da atividade de estudo e os fins das aes de estudo. Essa relao a parte
indecomponvel do processo de atribuio de sentido pessoal atividade de estudo, que
revela sua constituio, e ferramenta conceitual para desvelar como tal fenmeno
ocorre.No captulo VI, apresento a anlise dos dados de pesquisa a partir de trs eixos:
o contexto da atividade de estudo, o desenvolvimento da atividade de estudo e os
resultados da atividade de estudo. neste momento que explico como se d o processo
de atribuio de sentido pessoal atividade de estudo dos estudantes de Educao
Bsica, tendo como mediao a unidade de anlise elencada, a relao entre os motivos
da atividade de estudo e os fins das aes de estudo.
No percurso de produo deste trabalho, das investigaes realizadas para aescrita dos captulos tericos anlise dos dados frutos da investigao emprica, foi
configurando-se uma tese a ser defendida, que procurei expressar em cada etapa do
trabalho. A tese , portanto, produto da anlise empreendida tanto das obras tericas
estudadas como dos dados advindos da pesquisa de campo, articulando a investigao
bibliogrfica conceitual e a investigao emprica.
Torna-se necessrio explicitar a tese desde a introduo porque ela deve orientar
a leitura do trabalho e permite que o leitor acompanhe as snteses que realizei, avaliandosua coerncia e seu percurso de desenvolvimento. Vamos a ela.
Defendo a tese de que, para que a aprendizagem escolar ocorra, as aes de
estudo dos estudantes devem ter um sentido pessoal correspondente aos motivos e aos
significados sociais da atividade de estudo, no sentido da promoo do desenvolvimento
humano. Dessa forma, no conjunto do trabalho, explico como ocorre o processo de
atribuio de sentido pessoal atividade de estudo e os limites de formao desta
atividade na atual organizao do ensino. Aponto, por outro lado, as contradies
escolares que indicam possibilidades, ainda que incipientes, de formao desta
atividade.
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Nessa perspectiva, como sntese do trabalho, no captulo Snteses: a relao
singular-particular-universal no processo de atribuio de sentido pessoal atividade de
estudo, proponho um conjunto de elementos tericos explicativo do processo de
atribuio de sentido pessoal atividade de estudo em geral. Tal conjunto explicita
aquilo que preciso compreender para situar a atividade do professor como atividade
humanizadora, de modo que sua mediao conduza atividade de estudo do estudante
por meio da atribuio de sentido pessoal.
Considero, assim, que a tese desvela alguns elementos presentes na atividade de
estudo que indicam a possibilidade de educao da conscincia e apropriao das
elaboraes do gnero humano, a despeito da hegemonia das condies alienantes em
que se encontra a atividade humana. Postulo que a compreenso desses elementos necessria ao professor preocupado com uma organizao do ensino promotora do
desenvolvimento de seus estudantes no sentido da formao do pensamento terico.
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CAPTULO I
A PSICOLOGIA HISTRICO-CULTURAL:
Uma concepo de homem e de cincia
La accin humana, segn surge en el procesohistrico-cultural del comportamiento, es unaaccin libre, esto es, independiente de lasnecesidades directas y de la situacin inmediata
percibida, es una accin orientada al futuro.(VIGOTSKI & LURIA, em El instrumento y elsigno en el desarrollo del nio, p. 80)
Neste captulo, apresento a concepo terica que orienta esta tese. Explicito osprincpios terico-metodolgicos da Psicologia Histrico-Cultural, enfocando a
concepo de homem presente na teoria marxiana e seus desdobramentos a essa
abordagem da Psicologia.
Ressalto que, quando me refiro Psicologia Histrico-Cultural, parto do
entendimento de que esta uma escola iniciada por Lev Sememovich Vigotski9(1896-
1934) e constituda inicialmente pelo grupo que se conhece por Troika, composto por
Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e Alexei Nikolaievich Leontiev(1903-1979). Luria (1988) analisa o encontro dos trs pesquisadores e sua proposta de
elaborao de uma nova Psicologia:
Reconhecendo as habilidades pouco comuns de Vigotskii, Leontiev e euficamos encantados quando se tornou possvel inclu-lo em nosso grupode trabalho, que chamvamos de troika. Com Vigotskii como lderreconhecido, empreendemos uma reviso crtica da histria e da situaoda psicologia na Rssia e no resto do mundo. Nosso propsito,superambicioso como tudo na poca, era criar um novo modo, mais
abrangente de estudar os processos psicolgicos humanos. (p.22)
Alm da troika, desde seu princpio, o projeto de construir uma Psicologia
Histrico-Cultural agregou outros pesquisadores que estudavam diferentes temticas e
que, ao longo dos anos, distriburam-se em vrias universidades da ex-URSS. So
integrantes dessa escola, entre outros, Daniil Borisovich Elkonin (1904-1984), Piotr
Iakovlevich Galperin (1902-1988), Bluma Vulfovna Zeigarnik (1900-1988), Alexander
9Em portugus, aparecem vrias grafias para Vigotski: Vygotski, Vygotsky, Vigotskii, entre outras. Nocorpo do texto, optei por usar Vigotski, mas, nas referncias, consta a grafia original usada em cadaobra.
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Vladimirovich Zaporozhets (1905-1981), Rosa Evgenevna Levina (1909-1989), Nataliia
Grigorievna Morozova (1906-1989), Lidia Ilinichna Bozhovich (1908-1981), Lia
Solomonovna Slavina (1906-1986), Vasili Vaslievich Davidov (1930-1998), BorisFedorovich Lomov (1927-1989), Piotr Ivanovich Zinchenko (1903-1969) e Sergey
Leonidovich Rubinstein (1899-1960). Esses pesquisadores podem ser divididos em
geraes, em uma periodizao cronolgica e/ou temtica da Psicologia Histrico-
Cultural10.
No caso desta tese, as principais referncias tericas so as obras de Vigotski,
Leontiev, Davidov e Bozhovich, autores que se dedicaram ao estudo da atividade
humana como unidade central da vida do sujeito concreto.
Ainda como parte da introduo deste captulo, gostaria de mencionar que seuobjetivo no fazer um compndio da obra de Vigotski, mas apenas levantar os
elementos que orientam este trabalho, bem como as pesquisas e estudos dos grupos aos
quais me vinculo, o grupo de estudo do LIEPPE (Laboratrio Interinstitucional de
Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar)11 e o GEPAPE (Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre a Atividade Pedaggica)12.
Como sabemos, h muitas obras, nacionais e internacionais, que apresentam um
panorama da constituio histrica e terica da Psicologia Histrico-Cultural ou dabiografia de seus autores, a partir de diferentes enfoques interpretativos. H, tambm,
muitos trabalhos que explicam as principais proposies de Vigotski e de seus
continuadores. Dentre essas snteses, destaco algumas: Beatn (2005); Daniels (1996);
Freitas (2007); Oliveira (2010); Ratner (1995); Rego (1995); Riviere (1994); Shuare
(1990); Van der Veer & Valsiner (2001) e Wertsch (1988).
Dessa forma, tendo em vista os inmeros esforos de sintetizar e sistematizar a
teoria histrico-cultural, j conhecidos pelos pesquisadores do tema, o objetivo docaptulo modesto: apresentar brevemente os principais aportes da Psicologia
Histrico-Cultural que orientam esta pesquisa.
10Como trabalhos que buscaram realizar essas aes, cito Beatn (2005), que faz uma periodizao daobra de Vigotski, destacando quais foram os principais enfoques do autor no decorrer de sua produo, eAlmeida (2008), que, tendo como objeto o estudo da memria, faz uma anlise histrica dos perodos dedesenvolvimento da teoria histrico-cultural.11O Laboratrio est sediado no Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo e coordenado
pela Prof Dr Marilene Proena Rebello de Souza (IPUSP), minha orientadora, e pela Prof Dr Elenita de
Rcio Tanamachi (Psicologia/UNESP/Bauru). Sou membro desde 2003.12Sediado na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo (USP) e coordenado pelo Prof Dr.Manuel Oriosvaldo de Moura. Sou membro do grupo desde 2002.
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Nessa perspectiva, considero que o ponto de partida para compreender a
Psicologia Histrico-Cultural entender o mtodo materialista histrico dialtico no
qual est fundada sua concepo de homem e de cincia. De acordo com Duarte (2001,
p. 78), para se compreender o pensamento de Vigotski e sua escola indispensvel o
estudo dos fundamentos filosficos marxistas dessa escola psicolgica.
Entender Vigotski a partir do mtodo materialista histrico dialtico tem sido a
proposta do grupo de estudo do LIEPPE, como anuncia a tese a seguir:
[...] a tese que orienta e organiza o trabalho do grupo prope que omtodo materialismo histrico dialtico o diferencial da teoriahistrico-cultural porque permite explicar a realidade e as
possibilidades concretamente existentes para a sua transformao,desde que a finalidade seja a superao daquelas condies oucircunstncias particulares de objetivao/apropriao alienada nosentido da humanizao, ou seja, no sentido da constituio dasocialidade dos indivduos. (TANAMACHI, ASBAHR &BERNARDES, 2011, no prelo)
Feita esta introduo, vamos aos princpios tericos centrais da Psicologia
Histrico-Cultural.
1.1.Princpios tericos da Psicologia Histrico-Cultural
A Psicologia Histrico-Cultural, desde suas primeiras tentativas de formular
uma nova concepo de psiquismo e cincia psicolgica, buscou na Filosofia,
especificamente no materialismo histrico dialtico, os marcos metodolgicos para
desenvolver a investigao cientfica.
Vigotski (1999), como um grande estudioso da Psicologia e das Cincias
Humanas de sua poca e impactado com as mudanas sociais produzidas no bojo da
Revoluo Russa de 1917, analisa as teorias psicolgicas existentes naquele momento.
No texto O significado histrico da crise da Psicologia uma investigao psicolgica,
escrito em 1927, o autor investiga as diversas teorias acerca dos fenmenos
psicolgicos, como a Reflexologia, a Gestalt, a Psicanlise e o Personalismo. Constata
que essas abordagens tericas no do conta de formular uma teoria geral de Psicologia
uma Psicologia Geral e tampouco de explicar o psiquismo humano. Defende a tese
de que a Psicologia est em crise, uma crise metodolgica que s pode ser superada por
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meio de uma metodologia com embasamento na histria. Prope, assim, a construo de
uma Psicologia de base marxista.
Mas Vigotski tinha clareza de que a apropriao direta dos conceitos marxistas
pela cincia psicolgica, sobrepondo conceitos sociolgicos e econmicos aos
fenmenos psquicos, resultaria em uma compreenso mecnica e reducionista de
Psicologia. Assim, um de seus mritos foi a apropriao do materialismo histrico
dialtico como mediao para a formulao da Psicologia Histrico-Cultural e no
como uma colagem das citaes de Marx na Psicologia. Faz isso de maneira criadora,
levantando elementos para elaborar uma teoria que permita conhecer o psiquismo
humano a partir do mtodo marxiano.
Como decorrncia do materialismo histrico dialtico, Vigotski apropria-se deuma lgica de conhecimento, a lgica dialtica; uma concepo de homem, baseada na
historicidade e na materialidade; e uma concepo de cincia, preocupada no em
descrever a realidade, mas em explic-la e transform-la.
Na teoria de Vigotski, h vrios conceitos-chave, muitos dos quais sero
expostos no decorrer desta tese. No entrelaamento desses conceitos, o autor constri
um edifcio harmnico de cincia psicolgica13. Nesse conjunto terico, o eixo que
organiza e gera os demais conceitos o historicismo (SHUARE, 1990).
Vigotski introduz o tempo na Psicologia ou, melhor dizendo, aocontrrio, introduz o psiquismo no tempo. Mas, para ele, o tempo no um devir externo que se soma como durao ao curso dosfenmenos por natureza atemporais; o vetor que define a essncia dopsiquismo humano.14(SHUARE, 1990, p. 59, traduo minha, grifosda autora)
A compreenso do carter histrico do psiquismo pode ser entendida como a
revoluo fundamental que Vigotski fez na Psicologia. Na investigao do psiquismo
humano, o ponto de partida a histria social, a histria dos meios pelos quais a
sociedade desenvolve-se e, nesse processo, desenvolvem-se os homens singulares. A
proposta vigotskiana , portanto, compreender os fenmenos psicolgicos enquanto
mediaes entre a histria social e a vida concreta dos indivduos.
13 Expresso usada por Marta Shuare em palestra proferida na Faculdade de Educao da USP, em
novembro de 2010.14Original: Vigotski introduce em tiempo en la psicologa o, mejor dicho, al revs, introce la psiquis en eltiempo. Pero para l, el tiempo no es el devenir externo que se adosa como duracin al curso de losfenmenos por naturaleza intemporales; es el vetor que define la esencia de la psiquis humana.
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Da historicidade do psiquismo humano desdobram-se outros conceitos
necessrios construo da psicologia do homem concreto, como denominaVigotski
(2000). Shuare (1990) aponta alguns deles: o carter material do psiquismo humano, o
papel da atividade na constituio psquica e o carter mediatizado do psiquismo.
Vamos a eles.
Sobre o carter material do psiquismo humano, tal compreenso advm do
materialismo histrico segundo o qual os modos de produo da vida material
determinam o conjunto da vida social, poltica e espiritual. Nessa perspectiva, as
relaes de produo so a base das relaes sociais e determinam a forma e o contedo
da relao entre os homens. Marx analisa, nesse sentido, a relao entre os modos de
produo e o processo de constituio da vida humana e afirma que: No aconscincia dos homens que determina o seu ser; ao contrrio, o seu ser social que
determina a sua conscincia (MARX, 1989c, p. 233).
Da mesma maneira, para Vigotski, as relaes materiais, sociais e histricas entre
os homens esto na base da formao do psiquismo humano. Shuare (1990) sintetiza
essa ideia:
[...] os fenmenos psquicos, o psiquismo humano, sendo sociais emsua origem, no so algo dado de uma vez para sempre; existe umdesenvolvimento histrico de tais fenmenos, uma relao dedependncia essencial dos mesmos com respeito vida e atividadesocial. O social no condiciona o psquico no sentido de agregar-lhemais uma determinao, superposta ao propriamente psquico (ou aofisiolgico, se considerarmos que o psquico um epifenmeno), masconstitui sua essncia: a histria do psiquismo humano a historiasocial de sua constituio.15(p.61, grifos da autora, traduo minha)
Ao compreender o carter social e material dos fenmenos psquicos, uma das
teses defendidas pela Psicologia Histrico-Cultural refere-se ideia de que as
caractersticas tipicamente humanas no esto presentes desde o nascimento, no so
biolgicas16 ou inatas. So produto do desenvolvimento cultural do comportamento.
15Original: [...] los fenmenos psquicos, la psiquis humana, siendo sociales por su origen, no son algodado de una vez para siempre; existe un desarrollo histrico de dichos fenmenos, una relacin dedependencia esencial de los mismos con respecto a la vida y la actividad social. Lo social no condicionalo psquico en el sentido de agregarle una determinacin ms, superpuesta a lo propiamente psquico (o alo fisiolgico, si se considera que lo psquico es un epifenmeno), sino que constituye su esencia: la
historia de la psiquis humana es la historia social de su constituicin. 16Vigotski e demais autores de sua escola entendem que o crebro a base biolgica do funcionamento
psquico. O crebro entendido como um rgo de grande plasticidade, como um sistema aberto,constitudo na relao do homem com a cultura, sendo, portanto, um rgo culturalmente moldado.
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Essas preocupaes levaram Vigotski a pesquisar as formas superiores de
comportamento, as funes psicolgicas superiores, e entend-las a partir das relaes
sociais que o indivduo estabelece com o mundo. Nas palavras do prprio autor (1995):
[...] a cultura origina formas especiais de conduta, modifica aatividade das funes psicolgicas, edifica novos nveis no sistema docomportamento humano em desenvolvimento. [...] No processo dedesenvolvimento histrico, o homem social modifica os modos e
procedimentos de sua conduta, transforma suas inclinaes naturais efuncionais, elabora e cria novas formas de comportamentoespecificamente culturais17. (p. 34, traduo minha)
A apropriao do mundo material pelos homens e sua transformao em rgos
de sua individualidade, na expresso de Marx e Engels, ocorre por meio da atividade
humana sobre este mundo. A categoria de atividade humana, vinculada ao conceito
marxiano de trabalho, categoria central da fundamentao da Psicologia Histrico-
Cultural. Segundo Leontiev (1978), a passagem vida em sociedade d-se por meio do
trabalho, que modifica a prpria natureza humana.
O trabalho entendido, segundo Marx (1983a), como atividade adequada a um
fim, o que fundamentalmente nos faz humanos. o primado ontolgico para a
compreenso da humanizao do homem, ou, em outras palavras, a condio universal
para que o homem torne-se humano. Recorrendo a Marx:
[...] o trabalho um processo entre o homem e a Natureza, umprocesso em que o homem, por sua prpria ao, media [sic], regula econtrola seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defrontacom a matria natural como uma fora natural. Ele pe em movimentoas foras naturais pertencentes sua corporalidade, braos e pernas,cabea e mo, a fim de apropriar-se da matria natural numa forma
til para sua vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre aNatureza externa a ele e ao modific-la, ele modifica, ao mesmotempo sua prpria natureza. (MARX, 1983a, p. 149)
A categoria marxiana de trabalho assumida pela Psicologia Histrico-Cultural
como categoria explicativa do psiquismo humano e ampliada para o conceito de
atividade. Desde as primeiras proposies de Vigotski, a atividade aparece como
17Original: [...] la cultura origina formas especiales de conducta, modifica la actividad de las funciones
psquicas, edifica nuevos niveles en el sistema del comportamiento humano en desarrollo. [...] En elproceso del desarrollo histrico, el hombre social modifica los modos y procedimientos de su conducta,transforma sus inclinaciones naturales y funciones, elabora y crea nuevas formas de comportamientoespecficamente culturales.
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princpio explicativo da conscincia e das funes psicolgicas superiores.
A origem deste conceito pode ser encontrada nos primeiros escritos de
Lev Vygotsky (1896-1934), que sugeriu que a atividade (Ttigkeit)socialmente significativa pode servir como princpio explanatrio emrelao conscincia humana e ser considerado como um gerador deconscincia humana. (KOZULIN, 1996, p. 111)
Leontiev, posteriormente, ir aprofundar a explicao da relao entre atividade
e conscincia, postulando que formam uma unidade dialtica do psiquismo humano.
Leontiev (1988) sintetiza o conceito de atividade:
No chamamos todos os processos de atividade. Por esse termodesignamos apenas aqueles processos que, realizando as relaes dohomem com o mundo, satisfazem uma necessidade especialcorrespondente a ele. [...] Por atividade, designamos os processos
psicologicamente caracterizados por aquilo a que o processo, como umtodo, se dirige (seu objeto), coincidindo sempre com o objetivo queestimula o sujeito a executar esta atividade, isto , o motivo. (p.68)
Ao considerar a atividade como princpio explicativo do psiquismo, importante
estar atento a duas dimenses: a atividade como condio universal de humanizao e a
atividade desenvolvida em nossa sociedade capitalista, ou seja, como uma
particularidade. Na sociedade de classes, caracterizada pela propriedade privada dos
meios de produo e pela separao entre trabalho intelectual e manual, a atividade
humana no necessariamente humanizadora. Ao contrrio, o trabalho deixa de ser a
atividade mediadora que forma a essncia do humano no homem e passa a ser uma
atividade que esvazia o ser do homem (OLIVEIRA, 2006, p.13).
Marx (1989a), nos Manuscritos econmico-filosficos, analisa a alienao do
trabalho, apontando trs dimenses desse processo: a) a relao do trabalhador com osprodutos de seu trabalho, que no lhe pertencem; b) a relao com o prprio processo de
trabalho, que no dirigido ou controlado pelo trabalhador e, portanto, torna-se alheio a
ele; c) a relao do homem com o gnero humano, em que no se apropria (ou se
apropria limitadamente) dos instrumentos culturais produzidos ao longo da histria do
gnero humano.
No entanto, essencial considerar que a alienao no um trao ontolgico do
ser do homem, como a sociedade burguesa faz crer, e, portanto, no um processoineliminvel da constituio do homem. A alienao constitutiva de um momento
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desprendem-se, em primeiro lugar, distintas especiais atividadessegundo o motivo que as impele; depois se desprendem as aes
processos subordinados a objetivos conscientes; e, finalmente, asoperaes que dependem diretamente das condies para o sucesso do
objetivo concreto dado.
20
(LEONTIEV, 1983, p.89, traduo minha)
Como vimos, a apropriao do mundo social pelos indivduos ocorre por meio da
atividade. Mas esta relao do homem com o mundo no uma relao direta, como a
relao dos animais com a natureza. A atividade humana, social por natureza, sempre
atividade mediada pelos objetos criados pelos homens. Daqui se depreende outra
concepo central da Psicologia Histrico-Cultural: o carter mediatizado do psiquismo
humano.
Diferentemente da relao entre os animais e a natureza, que , via de regra, uma
relao imediata entre estmulos e respostas ou produzida por reaes instintivas, a
atividade humana supera definitivamente o carter imediato do psiquismo, pois
mediada por instrumentos psicolgicos.
Vigotski (1995), inclusive, faz severas crticas s abordagens psicolgicas de seu
tempo que estudavam o psiquismo humano da mesma forma que o comportamento
animal, reduzindo-o a funes elementares, biolgicas. Segundo o autor, esse tipo de
Psicologia no consegue explicar as diferenas entre os processos orgnicos e culturaisdo desenvolvimento humano. Para que a Psicologia possa sair do campo biolgico de
estudos, deve investigar aquilo que especificamente humano, ou seja, as funes
psicolgicas superiores, que so aquelas funes mediatizadas, produzidas na relao
histrica do homem com a cultura. As funes psicolgicas superiores so, assim,
objeto de estudo da Psicologia Histrico-Cultural. Vigotski (1995) explica o que so
essas funes:
O conceito de desenvolvimento das funes psquicas superiores e oobjeto de nosso estudo abarcam dois grupos de fenmenos que,
primeira vista, parecem completamente heterogneos, mas que, defato, so dois braos fundamentais, duas causas de desenvolvimentodas formas superiores de conduta, que jamais se fundem entre si,ainda que estejam indissoluvelmente unidas. Trata-se, em primeirolugar, de processos de domnio dos meios externos do
20Original: [...] del flujo general de la actividad que forma la vida humana en sus manifestaciones superiores
mediadas por el reflejo psquico, se desprenden en primer trmino, distintas especiales actividades segn elmotivo que las impela; despus se desprenden las acciones procesos suborninados a objetivos conscientes;y finalmente, las operaciones que dependen directamente de las condiciones para el logro del objetivo concretodado.
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desenvolvimento cultural e do pensamento: a linguagem, a escrita, oclculo, o desenho; e, num segundo momento, dos processos dedesenvolvimento das funes psquicas superiores especiais, nolimitadas nem determinadas com exatido, que, na psicologiatradicional, denominam-se ateno voluntria, memria lgica,formao de conceitos etc. Tanto uns como outros, tomados emconjunto, formam o que qualificamos convencionalmente como
processos de desenvolvimento das formas superiores de conduta dacriana.21(p. 29, traduo minha)
Os principais elementos mediadores da atividade so os instrumentos e os
signos. O instrumento o meio que o homem utiliza para transformar o mundo externo.
Condensa materialmente e culturalmente as operaes sobre a natureza, visando
aprimorar e otimizar o trabalho humano. O homem, mediado pelo uso do instrumento,
transforma o objeto da atividade: "(...) ele (o instrumento) orientado externamente;
deve necessariamente levar a mudanas nos objetos. Constitui um meio pelo qual a
atividade humana externa dirigida para o controle e domnio da natureza"
(VIGOTSKI, 1988b, p.62).
Os signos, embora anlogos aos instrumentos, so um tipo de mediao especial,
pois no modificam o objeto da operao psicolgica, pois so orientados internamente.
Sua funo essencial dirigir, controlar a atividade interna do homem, sendo, portanto,
um meio da atividade interna dirigido para o controle do prprio indivduo. Vigotski
resume a funo do signo:
Chamamos signos os estmulos-meios artificiais introduzidos pelohomem na situao psicolgica que cumprem a funo deautoestimulao; outorgando a este termo um sentido mais amplo e,ao mesmo tempo, mais exato do que se d habitualmente a essa
palavra. De acordo com nossa definio, todo estmulo condicionalcriado pelo homem artificialmente e que se utiliza como meio para
dominar a conduta prpria ou alheia um signo. Dois momentos,
21 Original: El concepto de desarrollo de las funciones psquicas superiores y el objeto de nuestroestudio abarcan dos grupos de fenmenos que a primera vista parecen completamente heterogneos peroque de hecho son dos ramas fundamentales, dos cauces de desarrollo de las formas superiores deconducta que jams se funden entre s aunque estn indisolublemente unidas. Se trata, en primer lugar, de
procesos de dominio de los medios externos del desarrollo cultural y del pensamiento: el lenguaje, laescritura, el clculo, el dibujo; y, en segundo, de los procesos de desarrollo de las funciones psquicas
superiores especiales, no limitadas ni determinadas con exactitud, que en la psicologa tradicional sedenominan atencin voluntaria, memoria lgica, formacin de conceptos, etc. Tanto unos como otros,tomados en conjunto, forman lo que calificamos convencionalmente como procesos de desarrollo de lasformas superiores de conducta del nio.
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portanto, so essenciais para o conceito de signo: sua origem efuno.22(VIGOTSKI, 1995, p.83, traduo minha).
Shuare (1990) sintetiza as semelhanas e diferenas entre instrumentos e signos:
A diferena fundamental que o instrumento est dirigido a provocaruma ou outra modificao no objeto da atividade, o meio daatividade externa do homem destinada a conquistar a natureza. Osigno no modifica nada no objeto da ao psicolgica; o meio daao psicolgica sobre o comportamento, est dirigido internamente.Por ltimo, ambos esto unidos na filo - e na ontognese. O domnioda natureza e o domnio de si mesmo esto mutuamente unidos,enquanto a transformao da natureza modifica a prpria natureza dohomem. Assim como o emprego de instrumentos marca o incio do
gnero humano, na ontognese, o primeiro signo assinala que o sujeitosaiu dos limites do sistema orgnico da atividade.23 (p.64, traduominha)
A constituio das funes psicolgicas superiores caracteriza-se por ser
mediatizada pelo signo. A linguagem tem um papel primordial na formao dessas
funes na medida em que o sistema de signos mediatizador por excelncia, pois
atravs dela que os indivduos organizam, transmitem e apropriam-se das experincias
individuais e coletivas.
Por meio da atividade mediada, os seres humanos apropriam-se das formas de
comportamento e dos conhecimentos historicamente acumulados. Vigotski ir
investigar, assim, como se d a passagem das aes realizadas no plano social para as
aes realizadas no plano psquico. Chama a esse processo de internalizao, que a lei
geral de formao das funes psicolgicas superiores.
Segundo Vigotski & Luria (2007), todas as atividades simblicas da criana
foram, anteriormente, formas sociais de cooperao, pois a criana no se relaciona
22 Original: Llamamos signos a los estmulos-medios artificiales introducidos por el hombre en lasituacin psicolgica, que cumplen la funcin de autoestimulacin; adjudicando a este trmino un sentidoms amplio y, al mismo tiempo, ms exacto del que se da habitualmente a esa palabra. De acuerdo connuestra definicin, todo estmulo condicional creado por el hombre artificialmente y que se utiliza comomedio para dominar la conducta propia o ajena es un signo. Dos momentos, por lo tanto, sonesenciales para el concepto de signo: su origen y funcin.23 Original: La diferencia fundamental es que el instrumento est dirigido a provocar unas u otrasmodificaciones en el objecto de la actividad, es el medio de la actividad externa del hombre destinada aconquistar la naturaleza. El signo no cambia nada en el objecto de la accin psicolgica; es el medio de laaccin psicolgica sobre el comportamiento, est dirigido hacia adentro. Por ltimo, ambos estn unidos
en la filo - y en la ontognesis. El dominio de la naturaleza y el dominio de s mismo estn mutuamenteenlazados, por cuanto la transformacin de la naturaleza cambia la propia naturaleza del hombre. Ascomo el empleo de instrumentos marca el inicio del gnero humano, el la ontognesis el primer uso delsigno senla que el sujeto ha salido de los lmites del sistema orgnico de la actividad.
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diretamente com o mundo social seno atravs de outra pessoa. Ou seja, toda funo
psicolgica superior , primeiramente, resultado da relao entre as pessoas para depois
ser interiorizada, como resultado da ao do prprio indivduo, transformando-se em um
instrumento regulador do comportamento.
Todas as funes psicointelectuais superiores aparecem duas vezes nodecurso do desenvolvimento da criana: a primeira vez, nas atividadescoletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funes interpsquicas;a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do
pensamento da criana, ou seja, como funes intrapsquicas.(VIGOTSKI, 1988a, p.114)
O processo de internalizao no consiste na simples passagem do mundo
externo para o mundo interno, mas implica na transformao estrutural da relao do
homem com o mundo, implica na constituio das funes psicolgicas superiores, o
salto qualitativo que o psiquismo do homem d em relao psicologia do animal.
Dessa forma, as funes psicolgicas superiores surgem como neoformaes
especficas ligadas internamente ao desenvolvimento da atividade simblica na criana.
Com a definio das funes psicolgicas superiores como objeto de estudo da
Psicologia e com a explicao da lei geral de sua formao, Vigotski expressa, de forma
contundente, o carter histrico e material do psiquismo e demonstra a coerncia de sua
construo terica. Temos aqui a proposio de uma Psicologia que estuda os
fenmenos verdadeiramente humanos, umapsicologia concreta do homem.
So os fundamentos apresentados no presente captulo que orientam esta tese.
Tais fundamentos, nos prximos captulos, sero explicitados nos temas especficos
desta investigao: a relao desenvolvimento e aprendizagem e a periodizao do
desenvolvimento infantil; a atividade de estudo como atividade principal da criana em
idade escolar; a relao significado social e sentido pessoal na constituio daconscincia humana, especialmente na formao da atividade de estudo; o mtodo
materialista histrico dialtico e seu movimento de apropriao e exposio no que diz
respeito a esta tese; finalmente, a anlise do processo de atribuio de sentido pessoal
atividade de estudo.
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1.2. Uma breve incurso sobre uma polmica no interior da Psicologia Histrico-
Cultural
Como mencionei anteriormente, as principais referncias tericas desta tese so as
obras de Vigotski, Leontiev, Davidov e Bozhovich, autores que se dedicaram ao estudo
da atividade humana como unidade central da vida do sujeito concreto. Em minha
anlise, esses autores, embora apresentem diferenas tericas, fazem parte da mesma
escola de Psicologia.
A despeito da defesa que fao em relao existncia de uma escola
denominada Psicologia Histrico-Cultural abarcando os autores acima citados, no
posso deixar de mencionar a existncia de uma polmica em seu interior referente continuidade ou no entre as proposies de Vigotski e Leontiev, ou, mais
especificamente, entre a Psicologia Histrico-Cultural e a teoria da atividade24. Ainda
que no seja objetivo desta tese discutir essa polmica, entendo ser necessrio
posicionar-me para que o leitor oriente-se quanto ao modo de utilizao das obras
desses autores como minhas referncias.
Entre os atuais intrpretes da Psicologia Histrico-Cultural, h aqueles que
entendem existir uma descontinuidade ou ruptura entre os dois autores. Na avaliaodesses pesquisadores, a teoria da atividade no a continuidade mais leal aos
pressupostos vigotskianos (BLANK, 2003; PEREDA, 2010; TOOMELA, 2000; e
outros).
Outros pesquisadores contemporneos que estudam a Psicologia Histrico-
Cultural avaliam que as proposies de Leontiev so uma continuidade da obra de
Vigotski (DUARTE, 2003; GOLDER, 2004; ZINCKENKO, 2006; entre outros). Para
eles, h formulaes na obra de Leontiev que aperfeioam a de Vigotski, como, porexemplo, a anlise da relao dialtica entre a estrutura da atividade e da conscincia e
o fenmeno da alienao. Duarte (2003) defende, inclusive, que as tentativas de separar
os autores fazem parte da estratgia ideolgica de distanciamento da teoria vigotskiana
do marxismo. Segundo Duarte, as proposies de Leontiev so herdeiras das
concepes vigotskianas e podem ser consideradas um desdobramento do projeto de
24Blank (2003) postula que no h trabalhos conjuntos de Vigotski e Leontiev. Afirma, tambm, que
Leontiev distanciou-se teoricamente de Vigotski no perodo stalinista. Em Duarte (2003) e Tunes &Prestes (2009), h uma anlise dessa polmica. No primeiro artigo, Duarte examina as interpretaesatuais da teoria da atividade e, no segundo, Tunes & Prestes resgatam documentos pessoais, como cartasentre Leontiev e Vigotski, que ilustram a problemtica.
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construo de uma Psicologia Histrico-Cultural, fundamentada na filosofia marxista.
Duarte (2003) destaca a relao entre a estrutura objetiva da atividade e a estrutura
subjetiva da conscincia como questo central da obra leontieviana e aponta alguns dos
avanos que a anlise dessa relao produziu:
Entre as vrias e decisivas implicaes da anlise que Leontiev fazdessa relao, destaco duas: em primeiro lugar, o avano no campo dateoria marxista no que se refere s complexas relaes entre indivduoe sociedade; em segundo lugar, mas com igual grau de importncia, oenriquecimento dos instrumentos metodolgicos de anlise dos
processos de alienao produzidos pelas atividades que do o sentido(ou o sem-sentido) da vida dos seres humanos na sociedadecapitalista. (p.284)
Em minha anlise terica das obras de Vigotski e Leontiev, avalio que h
continuidade entre suas proposies e esta a posio terica assumida na tese. Entendo
que h diferenas entre os autores e que, em Vigotski, o mtodo de Marx apropriado
com criatividade desde a escolha das questes de pesquisa at a sua forma de escrita.
Em Leontiev, qui pelo momento histrico vivido25, o mtodo aparece de forma mais
dogmtica em termos de linguagem. Por outro lado, o autor aprofunda questes que
foram apenas anunciadas por Vigotski, como a conscincia e a alienao.Dessa forma, o que me faz afirmar a existncia de uma continuidade entre eles,
sem negar as diferenas mencionadas, o fato de que ambos partem da mesma
concepo de homem e de cincia e especificamente de Psicologia orientando suas
pesquisas fundamentados no materialismo histrico dialtico como referncia
ontolgica e epistemolgica.
Quanto s diferenas entre os autores, Zinckenko aponta:
A principal diferena consiste em que, para a primeira (a PsicologiaHistrico-Cultural), o problema central era e continua sendo amediao do psiquismo e a conscincia, enquanto que, para a teoria daatividade, o importante a orientao ao objeto, tanto na atividade
psicolgica interna como na externa. Sem dvida, na teoria daatividade, tambm aparece o tema da mediao, mas enquanto que,
para Vygotski, a conscincia estava mediada pela cultura, paraLeontiev, o psiquismo e a conscincia estavam mediados pelos
25Refiro-me ao perodo stalinista. Almeida (2008) faz uma anlise do impacto do stalinismo PsicologiaHistrico-Cultural. Em Golder (2004), h um texto intitulado Crtica a Leontiev: em prol de uma firmeadeso ao bolchevismo em questes de psicologia, escrito na poca, em que se classifica o trabalho deLeontiev como contrarrevolucionrio.
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instrumentos e objetos.26 (ZINCKENKO, 2006, p. 38, traduominha)
Embora existam distines tericas, Zinckenko (2006) esclarece que no
podemos falar de duas escolas psicolgicas, mas apenas de duas tendncias
investigativas:
[...] chegou o momento de tomar conscincia de que atualmente nosenfrentamos com dois paradigmas cientficos: a Psicologia Histrico-Cultural e a teoria psicolgica da atividade. tambm o momento detomar conscincia de que estamos falando de duas tendncias deinvestigao, e no de duas escolas.[...] Os paradigmas existem, masconsiderar a existncia de duas escolas separadas hoje em dia pode ser
inadequadamente otimista.27(p. 37, grifos meus)
No cabe a este trabalho fazer uma anlise aprofundada desta polmica, o que
requer estudos histricos, biogrficos e tericos sobre o tema. Minha inteno com esta
pequena reflexo foi apresentar meu posicionamento, explicitando a relao que
estabeleo entre esses dois autores ao longo da tese.
26 Original: La principal diferencia estriba en que para la primera (la psicologia histrico-cultural) elproblema central era y contina siendo la mediacin de la psique y la conciencia, mientras que para lateoria de la actividad lo importante es la orientacin al objeto, tanto en la actividad psicolgica internacomo en la externa. Por supuesto, en la teoria de la actividad tambin aparece el tema de la mediacin,
pero mientras que para Vygotski la conciencia estaba mediada por la cultura, para Leontiev la psique y laconciencia estaba mediada por instrumentos y objetos.27Original: [...] ha llegado el momento de tomar conciencia de que actualmente nos enfrentamos a dos
paradigmas cientficos: la Psicologia Histrico-Cultural y la teoria psicolgica de la actividad. Es tambinel momento de tomar conciencia que estamos hablando de dos tendencias de investigacin, y no de dosescuelas. [...] Los paradigmas existen, pero considerar la existencia de escuelas separadas hoy en dia
puede resultar inadecuadamente optimista.
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CAPTULO II
A CRIANA EM DESENVOLVIMENTO:
A RELAO ENTRE DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEMNA PSICOLOGIA HISTRICO-CULTURAL
Relembro a ingenuidade que h muitos anos mefez sonhar em ser bilogo, essa vontade de levar omundo ao colo ante um cenrio em chamas. Hoje a
pergunta com que nos confrontamos simples:estamos ns realmente salvando o mundo? No me
parece que a resposta possa ser aquela quegostaramos. O mundo s pode ser outro, se esse
mundo nascer em ns e nos fizer nascer nele. (MiaCouto, emPensatempos)
Muitas so as teorias que explicam (ou buscam explicar) o desenvolvimento
humano, especialmente o desenvolvimento infantil. Inclusive professores em formao
inicial, nos cursos de Pedagogia e nas diversas licenciaturas, normalmente tm em suas
grades curriculares a disciplina Psicologia do Desenvolvimento ou Psicologia da
Educao, cujo objetivo apresentar, em linhas gerais, as principais teorias psicolgicas
do desenvolvimento. A finalidade dessas disciplinas seria instrumentalizar o futuroprofessor quanto constituio do desenvolvimento humano nas suas dimenses
cognitivas e afetivas mediadas por processos pedaggicos. Entende-se que, ao conhecer
o processo de desenvolvimento, o professor poderia adequar melhor suas propostas de
contedo e metodologias de aula.
O grande problema dessas disciplinas que, de forma geral, o estudo das
diversas teorias atm-se anlise de um indivduo abstrato, distante da realidade
encontrada por nossos professores. Mas a questo no simplesmente a organizaodessas disciplinas, mas sim, principalmente, a natureza do conhecimento sobre o
desenvolvimento humano presente nessas teorias. Ou seja, pautam-se em concepes
maturacionistas ou ambientalistas, que no s no auxiliam na compreenso do
desenvolvimento infantil como ainda atrapalham o professor na compreenso da
produo do fracasso escolar e dos resultados educacionais. comum, por exemplo,
escutarmos professores dizendo que determinado aluno no aprende porque no tem
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maturidade, atribuindo-lhe expresses como: idade mental inferior cronolgica;
limtrofe; infantil; imaturo; "bobinho28.
Tais explicaes expressam uma profunda biologizao da sociedade e da
educao, que reduz ao aparato biolgico do indivduo a explicao de problemas
advindos da situao social e educacional, culpabilizando a vtima pelo seu prprio
fracasso. Ao dizer que determinado aluno infantil ou imaturo, o professor remete a
teorias do desenvolvimento infantil estudadas durante seu curso de formao que
retratam o desenvolvimento humano como algo maturacional, linear, determinstico. E
mesmo sem ter estudado profundamente tais teorias, so estas que embasam o trabalho
docente. Sendo assim, apenas cabe ao professor esperar que seu aluno amadurea ou
que seja estimulado adequadamente pela famlia.No objetivo deste captulo analisar profundamente essas teorias do
desenvolvimento humano, mas sim buscar uma compreenso que supere tais
concepes biologizantes. Vigotski e seus continuadores buscaram justamente
compreender o desenvolvimento humano em sua constituio histrica, cultural e
social, ou seja, buscaram analisar o desenvolvimento da criana em sua concretude.
Nesse percurso, o autor no s analisou tais teorias, como tambm as criticou,
principalmente no que se refere s suas implicaes pedaggicas. Alm disso, props,em suas obras, outra compreenso da relao entre desenvolvimento e aprendizagem
que redimensiona o papel da escola na promoo do desenvolvimento infantil.
2.1. A concepo histrico-cultural sobre desenvolvimento e aprendizagem
Vigotski (1988a) divide as teorias que explicam a relao entre desenvolvimento
e aprendizagem em trs categorias fundamentais.A primeira categoria parte do pressuposto da independncia entre os processos
de aprendizagem e desenvolvimento. Segundo tal concepo, a aprendizagem utiliza
os resultados do desenvolvimento, em vez de se adiantar ao seu curso e de mudar sua
direo (p.103). Vigotski chama a ateno para o quanto as investigaes conduzidas
por pesquisadores desse grupo terico, do qual Piaget o principal representante,
desconsideram a escola como local privilegiado de desenvolvimento infantil, pois
partem do pressuposto de que o processo de desenvolvimento independente do que a
28Frases extradas de ASBAHR & LOPES (2006).
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criana aprende na escola. Dessa forma, busca-se compreender o desenvolvimento
infantil de forma pura, independente dos conhecimentos, da experincia e da cultura da
criana.
Segundo tais teorias, a escola s pode fazer seu trabalho depois que a criana
atingir determinado nvel de maturao:
O desenvolvimento deve atingir uma determinada etapa, com aconsequente maturao de determinadas funes, antes de a escolafazer a criana adquirir determinados conhecimentos e hbitos. Ocurso do desenvolvimento precede sempre o da aprendizagem. Aaprendizagem segue o desenvolvimento. Semelhante concepo no
permite sequer colocar o problema do papel que podem desempenhar,
no desenvolvimento, a aprendizagem e a maturao das funesativadas no curso da aprendizagem. O desenvolvimento e a maturaodestas funes representam um pressuposto e no um resultado daaprendizagem. (VIGOTSKI, 1988a, p. 104, grifos meus)
O segundo grupo terico afirma, por outro lado, que aprendizagem
desenvolvimento. Segundo Vigotski, esse grupo parece ser, num primeiro momento,
mais avanado que o primeiro, ao qual faz oposio. Mas uma anlise mais profunda
deste grupo terico demonstra que as duas concepes tm muito em comum. Para tal
concepo, da qual James um dos representantes, o indivduo compreendidosimplesmente como um conjunto vivo de hbitos e o desenvolvimento reduzido a
uma simples acumulao de reaes (p.105). Um dos pressupostos centrais desse
grupo terico considerar as leis do desenvolvimento como leis naturais que o ensino
deve dar conta (p.105) e nesse aspecto que se assemelha ao primeiro grupo.
Diferencia-se por partir de uma total identificao do processo de desenvolvimento e
aprendizagem, no os distinguindo. Tal concepo pode ser identificada como
ambientalista e autores como Watson e Skinner posteriormente iro aprofund-la.Sobre a compreenso ambientalista, Vigotski (1996) destaca as solues
equivocadas que vm sendo dadas questo do papel do meio no processo de
desenvolvimento. Segundo o autor, de forma geral, o meio considerado como algo
externo criana, como uma circunstncia do desenvolvimento que influencia o
desenvolvimento infantil. Dessa forma, ele compreendido apenas em sua dimenso
biolgica: No se pode aplicar teoria do desenvolvimento infantil a mesma
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concepo de meio que se formou na biologia no que diz respeito evoluo das
espcies animais29(p.264, traduo minha).
O terceiro grupo terico busca conciliar as concepes apresentadas
anteriormente, fazendo com que coexistam. Trata-se de uma concepo dualista de
desenvolvimento, que considera a existncia, por um lado, do processo de maturao
que depende do desenvolvimento neurolgico e, por outro, da aprendizagem
considerada em si mesma como processo de desenvolvimento. Koffka um dos
representantes desse grupo. Vigotski (1988a) resume as novidades dessa teoria em trs
pontos: conciliam-se dois pontos de vista antes considerados contraditrios; considera-
se a questo da interdependncia de dois processos fundamentais; amplia-se o papel da
aprendizagem no desenvolvimento infantil. Porm, para Koffka, o desenvolvimentocontinua expressando um mbito mais amplo do que a aprendizagem:
A relao entre ambos os processos pode representar-seesquematicamente por meio de dois crculos concntricos; o pequenorepresenta o processo de aprendizagem e o maior, o dodesenvolvimento, que se estende para alm da aprendizagem.(VIGOTSKI, 1988a, p.109)
Vigotski procura uma nova soluo para o problema da relao desenvolvimentoe aprendizagem que supere as concepes maturacionistas e ambientalistas presentes
nas teorias analisadas.
O primeiro aspecto a ser realado da concepo de desenvolvimento da
Psicologia Histrico-Cultural a compreenso de que a criana no um adulto em
miniatura30. H uma constituio infantil especfica, tanto fsica como psicolgica, que
diferencia adultos e crianas no apenas quantitativamente, mas principalmente
qualitativamente. Alm disso, o desenvolvimento infantil no linear, causado poracumulaes sucessivas. H metamorfoses, revolues radicais no processo de
desenvolvimento pelas quais passa a criana, que iro garantir sua passagem de ser
biolgico para ser cultural. Essas metamorfoses no so produzidas biologicamente pelo
curso natural do desenvolvimento, mas sim pela insero da criana no mundo
histrico-cultural:
29Original: No se puede aplicar a la teoria del desarrollo infantil la misma concepcin del mdio que se
ha formado en la biologia respecto a la evolucin de las especies animales.30Deve-se ressaltar que a compreenso de que a criana no um adulto em miniatura no est presenteapenas em Vigotski e no foi uma criao sua. Tal concepo est presente em teorias dodesenvolvimento anteriores Psicologia Histrico-Cultural.
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Uma vez integrada num ambiente adequado, a criana sofre rpidastransformaes e alteraes: esse um processo surpreendentementerpido, porque o ambiente sociocultural pr-existente estimula na
criana as formas necessrias de adaptao, h muito tempo criadasnos adultos que a rodeiam. (VIGOTSKI & LURIA, 1993, p.180)
Quando dizemos que a criana no est madura, realizamos uma comparaocom
o adulto e tomamos o desenvolvimento deste como parmetro, esquecendo-nos das
diferenas qualitativas entre o desenvolvimento infantil e adulto, e focando-nos apenas
nas diferenas quantitativas.
Vigotski, em sua obra, utiliza vrias vezes o termo maturao do
desenvolvimento, mas, para ele, o desenvolvimento cultural sobrepe-se aos processos
de crescimento e de maturao orgnica.
Ao estudar o desenvolvimento cultural do homem, o autor no nega a
permanncia e importncia das funes naturais (ou elementares) no desenvolvimento
humano, mas afirma que no so essas funes que explicam a complexidade das
funes especificamente humanas.
A tese fundamental, que conseguimos estabelecer ao analisar asfunes psquicas superiores, o reconhecimento da base natural dasformas culturais de comportamento. A cultura no cria nada, apenasmodifica as atitudes naturais em concordncia com os objetivos dohomem. (1995, p. 152, traduo minha)31
Para esta perspectiva terica, a Psicologia enquanto cincia precisa sair do
cativeiro da biologia e passar ao terreno da Psicologia histrica humana (VIGOTSKI,
1995, p.132). Portanto, a maturao, compreendida como maturao biolgica, no nos
ajuda a compreender e a explicar o desenvolvimento humano. Para o autor, a gnese dasfunes psicolgicas superiores o que interessa Psicologia humana.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que o desenvolvimento das funes psicolgicas
superiores ocorre a partir de mediaes culturais. No caso das discusses sobre a
produo do fracasso escolar, tal compreenso desloca o foco das dificuldades da
31 Original: La tesis fundamental, que conseguimos establecer al analizar las funciones psquicassuperiores, es el reconecimento de la base natural de las formas culturales del comportamiento. La culturano crea nada, tan slo modifica las aptitudes naturales en concordancia con los objetivos del hombre.(2001, p. 152)
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aprendizagem do nvel individual para o social e coloca o problema da qualidade das
mediaes culturais presentes na vida da criana (FACCI, EIDT & TULESKI, 2006).
Verifica-se que as causas do atraso mental no podem ser explicadassomente a partir de anamneses, entrevistas e testagens psicomtricas,ou seja, com instrumentos que buscam as causas do no aprender nacriana e em sua famlia, mas essa anlise deve ser ampliada para aatividade de ensino e de aprendizagem, especialmente no que se refere qualidade do contedo ministrado, relao professor-aluno, metodologia de ensino, adequao de currculo, ao sistema deavaliao adotado, em suma, ao acesso da criana ao mundo dosinstrumentos e signos culturais. (p. 111)
Nessa perspectiva, a escola tem papel central no desenvolvimento de seus
estudantes, na medida em que cria condies para que se apropriem dos conhecimentosacumulados pela humanidade atravs de mediaes culturais planejadas e intencionais.
Cabe educao escolar ampliar o desenvolvimento do estudante, ou seja, a escola, a
partir da organizao adequada do ensino, pode produzir desenvolvimento. Segundo
Vigotski, "o nico bom ensino o que se adianta ao desenvolvimento" (1988a, p.
114, grifos meus).
Assim, os contedos escolares devem ser organizados de maneira a formar na
criana aquilo que ainda no est formado, elevando-a a nveis superiores dedesenvolvimento. Cabe ao ensino orientado produzir na criana neoformaes
psquicas, isto , produzir novas necessidades e motivos que iro paulatinamente
modificando a atividade principal dos alunos e reestruturando os processos psquicos
particulares (DAVIDOV, 1988).
Tal concepo de desenvolvimento reconfigura o papel da maturao no
processo de aprendizagem e d educao escolar um papel central no
desenvolvimento das funes psicolgicas superiores. Num sentido oposto ao que
vemos nas teorias analisadas por Vigotski, no cabe escola esperar que a criana
amadurea. Ao contrrio, seu dever criar condies para que a maturao efetive-se.
Nessa perspectiva, tem fundamental importncia o conceito de Zona de
Desenvolvimento Prximo32. Vigotski divide o desenvolvimento humano em dois
nveis: o Nvel de Desenvolvimento Real33e a Zona de Desenvolvimento Prximo. O
primeiro nvel refere-se ao desenvolvimento das funes psicolgicas da criana que j
se realizou, ou seja, s capacidades intelectuais consolidadas pela criana. Nesse nvel,
32Zona de Desenvolvimento Proximal ou Zona de Desenvolvimento Potencial em algumas tradues.33Ou Nvel de Desenvolvimento Efetivo.
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esto as tarefas e problemas que a criana consegue realizar sozinha, sem a ajuda de
outras pessoas.
Se ingenuamente perguntarmos o que nvel de desenvolvimento real,ou, formulando de forma mais simples, o que revela a soluo de
problemas pela criana de forma mais independente, a resposta maiscomum seria que o nvel de desenvolvimento real de uma crianadefine funes que j amadureceram, ou seja, os produtos finais dodesenvolvimento. (VIGOTSKI, 1988b, p.97)
Mas esse nvel no suficiente para compreender a dinmica do
desenvolvimento. Vigotski demonstra que, em pesquisas com crianas de mesmo Nvel
de Desenvolvimento Real, varia enormemente o nvel de desenvolvimento quando a
criana orientada ou ajudada por um adulto ou criana mais experiente, ou ainda
quando imita colegas mais velhos. Essa diferena de desempenho na mesma tarefa, sem
e com ajuda, Vigotski nomeou de Zona de Desenvolvimento Prximo. Esse nvel de
desenvolvimento refere-se s funes psicolgicas que esto em processo de
desenvolvimento. a distncia entre aquilo que a criana faz sozinha e o que ela
capaz de fazer com a interveno de um adulto. Nesse sentido, expressa a
potencialidade para aprender, pois caracteriza o desenvolvimento mental
prospectivamente.
A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funes queainda no amadureceram, mas que esto em processo de maturao,funes que amadurecero, mas que esto presentes em estadoembrionrio. (...) Assim, a zona de desenvolvimento proximal