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Aspectos da História Trágico-Marítima.
O reverso da medalha ou... “A Face Oxidada do DoiradoMedalhão da Descoberta e Conquista”.
Por Carlos Jaca
«Diário do Minho» - 25 de Junho e 2 de Julho de 2003
A opção por este tema explico-a por duas motivações: uma que
poderei chamar remota e outra, próxima.
Num dos primeiros anos do liceu (4º ano) a disciplina de Português
incluía com carácter obrigatório a leitura e comentário das passagens
mais significativas de resumos da História Trágico-Marítima, cujos
episódios nos causavam grande impressão e admiração, despertando
desde aí e dessa época o meu interesse.
Outra razão, prende-se com a circunstância de muito
recentemente, no “Diário do Minho”, ter sido recordada a face dourada
da Descoberta e Conquista.
Assim, por isso, e também pelo facto de uma obra singular da
Literatura Portuguesa, e até Universal, ser desconhecida da grande
maioria das pessoas resolvi aqui dar-lhe alguma divulgação.
De certo modo, a História Trágico-Marítima corresponde à face
escura da glória dos descobrimentos, a tragédia que fez dizer a
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Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / são lágrimas de
Portugal!”.
Pode considerar-se a História Trágico-Marítima como obra “sui
generis”. De facto, em nenhuma literatura haverá talvez uma soma tão
impressionante de relações de naufrágios como na nossa.
Tão grande foi a voga desses escritos e tantos foram eles, que
chegaram a constituir uma espécie de género literário.
A História Trágico-Marítima não é original, mas sim constituída por
várias descrições (conhecidas vulgarmente por “relações”) de naufrágios
ocorridos ao longo de meio século (de 1552 a 1602).
Na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Ajuda, na Torre do Tombo,
nas bibliotecas de Évora, Vila Viçosa, Coimbra e em algumas colecções
privadas encontram-se, manuscritos ou impressos, vários exemplares de
uns vinte relatos de naufrágios que foram escritos entre a segunda
metade do século XVI e o fim do século XVII por diversos autores
desconhecidos e outros ainda anónimos. Os relatos de naufrágios viriam
a tornar-se, na verdade, quase um (sub)género literário, de algum
sucesso em Portugal no período entre meados dos séculos XVI e XVII,
atraindo periodicamente as atenções de editores, compiladores e
leitores, em especial a partir da cristalização nos dois volumes da
“História Trágico-Marítima” de Bernardo Gomes de Brito, publicada em
1735-1736 e mais tarde apocrifamente acrescentada por um terceiro.
Produto do labor de sobreviventes ou testemunhas próximas dos
desastres ocorridos com embarcações da “Carreira da Índia”, este tipo
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de relatos revela-se fundamental não apenas para o conhecimento das
circunstâncias da perda de uma a duas dezenas de naus, mas também
para o das próprias armadas em que
se integravam.
Desde já convém dizer que se
trata de uma breve abordagem à
História Trágico-Marítima, uma
obra de alto valor da nossa
literatura, focando-a,
essencialmente, em três aspectos:
sob o ponto de vista literário, como
documento histórico e como documento humano.
O estilo
Sob o ponto de vista literário o seu valor é muito desigual, o que
perfeitamente se compreende, pois tais “relações” foram escritas por
diversos autores. Quase todas elas saíram do punho de sobreviventes,
muitos dos quais não possuíam capacidades para dar brilho à sua prosa,
que se apresenta, frequentemente, bastante confusa, originando
problemas de interpretação o que de certa maneira tenha sido, talvez um
bem: algumas dessas “relações” apesar de escritas apressadamente e
sem cuidados de estilo (porventura ainda sob a emoção causada pela
proximidade da catástrofe, dado terem sido publicadas na maioria, pouco
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tempo depois), adquirem, talvez por isso mesmo, um tom de verdade e de
sinceridade que transmitem ao relato uma forte carga dramática, que é
possível viesse a ser atenuada se fossem mais trabalhadas... A narração
atinge o seu maior vigor na hora patética do naufrágio e no subsequente
caminhar dos desditosos náufragos, meses sem fim, por terras
desconhecidas e cheias de perigos, tantas vezes habitadas por gente
estranha que os hostilizava. Daí que talvez não seja exagero o que nos
diz P. Blanco Suarez, tradutor espanhol de algumas “relações”.
“Sólo quiero decir que, más de una vez, al hacer mi trabajo de
tradutor, he tenido que interrumpirlo, porque la emocion honda y
angustiosa producida por la tragedia me impedia continuar, estaba ante
la tragedia historica, la más real de todas por haber sido vivida; talvez,
por este mismo, la única tragedia verdadera”.
De facto, literariamente, ninguém poderia apontar estes relatos
como primores da nossa língua, pois, como alguns dos seus autores
salientam, interessava aqui preservar a verdade e conhecimento dos
factos, sendo secundária a perfeição literária, tanto mais que muitos dos
que os escreveram eram marinheiros e outras pessoas sem pretensões
intelectuais.
Sob o ponto de vista do estilo podemos considerar duas espécies de
“relações”: as que foram escritas pelos próprios que escaparam à
tragédia, e as escritas por estranhos, que tomaram conhecimento dos
factos através do testemunho oral dos sobreviventes. Obviamente,
entende-se que as primeiras tenham em geral maior vivacidade, mais
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poder comunicativo, por representarem a própria experiência, embora
um autor ilustre como Diogo do Couto, pertencente ao segundo grupo,
consiga, por via do seu talento, “representar-nos belissimamente um
naufrágio que não padeceu”. Ainda
incluída na primeira referência poder-
se-á distinguir as “relações” escritas
por padres, normalmente mais
literárias, com um estilo mais erudito e
entremeado de citações latinas.
Exemplo significativo deste género é a
“relação” da viagem da nau “S.
Francisco”, em 1596, escrita pelo
jesuíta Gaspar Afonso. Já as narrações
de autores seculares, nomeadamente
os do primeiro período clássico,
apresentam muito melhor estilo, salientando-se entre estes, Manuel de
Mesquita Perestrelo, que descreveu o naufrágio da nau “S. Bento”, e o
boticário Henrique Dias, autor da “relação” da perda da nau “S. Paulo”.
Tanto um como outro manifestam o propósito de contar as coisas
na sua generalidade e não se preocupar com o pormenor fastidioso.
Cingiam-se assim aos cânones da arte clássica, que procura evitar o
excesso das particularidades, a fim de privilegiar os aspectos gerais.
Isto era o preceito, mas nem sempre foi a prática. As próprias
exigências do tema se encarregavam de mostrar a cada passo o
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incumprimento desta determinação, pela incapacidade de relatar
satisfatoriamente um naufrágio ou as aventuras por terra, sem descer a
certas minúcias que mais possam impressionar os leitores.
Estas narrações que hoje encaramos como documentos históricos
fizeram na época, a paixão de quantos as liam, pois o público, então como
agora, não conseguia fugir ao fascínio pelas emoções fortes.
Compreende-se como o público de outros tempos na rotina da vida
quotidiana, devia de apreciar essas impressionantes narrativas, o
espectáculo das naus destroçadas pela tormenta, a confusão e o alarido
das gentes, o engenho dos homens buscando meios de salvação, e a triste
e aventurosa caminhada pelo sertão africano.
Cerca de um quinto da população portuguesa da época (dois milhões
e meio) andou em viagens marítimas, todas as famílias tinham pelo menos
um ou dois elementos embarcados; a repercussão de tais relatos no
imaginário nacional tornou-se, assim, irrecusável apaixonando todos
durante gerações sucessivas – os que iam e os que ficavam, os que
sofriam e os que fantasiavam.
Os episódios sucediam-se, um mais desgraçado do que o outro,
numa série (precursora do “folhetim” e da “telenovela”) de horrores,
suplícios e fatalismos intermináveis.
Como hoje se comenta o crime sensacional, descrito pelas gazetas
diárias, assim outrora se falaria do último naufrágio, cujos episódios
eram referidos pela “relação” acabada de sair.
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Autênticos “best-sellers”, desconhece-se, em geral, qual seria a
tiragem dessas “relações”, mas sabe-se que muitas delas eram impressas
várias vezes, havendo casos em que a primeira edição se esgotava em
breve lapso de tempo, uma vez que há conhecimento da existência de
uma segunda edição publicada no mesmo ano.
Refere Giulia Lanciani e reportando-se ao naufrágio de Jorge de
Albuquerque Coelho, depreender-se do texto que tanto da primeira como
da segunda edição se tiraram mil exemplares de cada uma, enquanto os
estudiosos consideraram que na segunda metade do século XVI a
tiragem média de um livro na Europa dificilmente superava os trezentos
exemplares.
O Documento Histórico
Como documento histórico é extremamente valioso o testemunho
da História Trágico-Marítima.
O tema dos naufrágios e outras perdas de naus da Índia foi, desde
as últimas décadas do século XVI, em Portugal, uma das questões que
mais análises suscitou, e que, em conjunto com as circunstâncias e
consequências da perda da independência em 1580, mais estreitamente
esteve ligada ao desenvolvimento das visões decadentistas da realidade
nacional. Mesmo quando, séculos mais tarde, o tema da decadência
nacional aflora através da análise de outros sintomas, as razões das suas
origens e a fundamentação histórica de tal situação recua sempre até à
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segunda metade do séc. XVI, de quando se datam o declínio do trato das
drogas e especiarias do Oriente e o início das tragédias marítimas que
teriam então ensombrado a antes gloriosa “Carreira da Índia”.
O fenómeno dos naufrágios na rota do Cabo não deixou de
despertar, porém, sentimentos de carácter contraditório nos seus
analistas, muitas vezes divididos e hesitantes entre cederem ao ímpeto
de uma exaltação nacionalista do heroísmo dos Portugueses de então,
que bravamente lutaram contra as adversidades, ou enveredarem por um
espírito fatalista de rendição perante os factos que indiciavam,
claramente, quando Portugal começara a perder as pretensões a afirmar-
se como uma potência internacional de primeira grandeza e passara a
uma situação de dependência e sombra perante as novas potências em
ascensão.
Foi o discurso pessimista, contudo, que predominou, desde finais da
Centúria de Quinhentos, nas leituras da evolução da “Carreira da Índia”
e do impacto das suas perdas.
A História Trágico-Marítima passaria, a breve prazo, a ilustrar e
simbolizar a própria História nacional, tomando um lugar central na
mentalidade colectiva de um povo que, quando se sentiu afastado de um
papel nuclear e activo nos negócios das nações, para isso necessitou
prementemente de uma justificação e explicação histórica onde se
refugiar.
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A rota do Cabo, aberta em 1497-1498 por Vasco da Gama e
institucionalizada como “Carreira” no seu ritmo anual de armadas com a
viagem de Pedro Álvares Cabral, foi a primeira grande rota interoceânica
dos Tempos Modernos. Na própria época, houve mesmo quem chegasse a
afirmar que uma viagem na Carreira da Índia era então “sem qualquer
dúvida a maior e mais árdua de todas as que se conhecem no mundo”
(Padre Alexandre Valignano, citado em Boxer).
Empreendimento épico e desmesurado para a dimensão da nação
que o sustentava, a rota do Cabo e a Carreira da Índia viveram as
naturais dificuldades inerentes à escassez de recursos humanos,
materiais e técnicos com que Portugal sempre se debateu. O resultado
foi um misto de grandeza e declínio que sempre deixou testemunhas,
suas contemporâneas, ou observadores distanciados algo indecisos
quanto à posição a tomar, devido à atracção exercida pelas visões
extremas do fenómeno em causa – optar pela exaltação da gesta heróica
ou sublinhar os traços mais ou menos trágicos que traduziram o seu
declínio ?
Em boa verdade, as características e a história da Carreira da
Índia contiveram em si um pouco de tudo. À magnitude e ambição da
vontade concretizada, juntou-se muitas vezes a mesquinhez dos actos
humanos e das condições em que os mesmos decorreram.
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A Carreira da Índia exigia sobretudo acomodação perfeita ao
condicionalismo físico dos oceanos, isto é, ao regime variável dos ventos
e correntes no Atlântico e no Índico.
As naus deviam largar ou regressar em meses certos e nunca fora
do tempo, navegar de conserva, fugir à zona das calmas e das
tempestades, bem como buscar atempadamente as aguadas.
Atendendo às condições de navegação no Atlântico e Índico que era
necessário conciliar, e certamente também por questões de natureza
organizativa, foi necessário estabelecer um calendário minimamente
rigoroso para as partidas e etapas das viagens das naus da Índia,
interligado de forma muito íntima com o trajecto a seguir.
De acordo com o modelo rapidamente estabelecido após as
primeiras viagens, as naus da Índia saíam em conserva do Tejo nas
últimas semanas do Inverno ou nos começos da Primavera, ou seja, entre
o início de Março e a primeira quinzena de Abril. Desta forma, ser-lhes-
ia possível aproveitar um regime favorável de ventos no Atlântico, na
primeira fase da viagem, e atingir o Índico a tempo de beneficiarem da
monção de sudoeste para rumarem à costa ocidental da península
indostânica.
A permanência no Índico para as naus que completassem a viagem
de ida no calendário normal, e que estivessem destinadas a regressar
com carregamento de especiaria, era de apenas três ou quatro meses,
até ao início do ano seguinte. A partida do Índico realizava-se, por regra,
em finais de Dezembro ou nos primeiros dias de Janeiro, de maneira a
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ser possível à armada aproveitar a monção do norte e dirigir-se
rapidamente até ao Cabo pelo canal de Moçambique ou pelo Índico
Central. Passado o Cabo
em finais de Fevereiro,
seria possível
aproveitar ventos
favoráveis no Atlântico
Sul e alcançar Lisboa
em Julho ou Agosto,
após a chamada “volta
pelo largo” até à altura dos Açores.
Desta maneira, uma “viagem redonda” da Carreira durava, em
termos ideais, entre o início de Março de um ano e finais de Julho do ano
seguinte, o que equivale a mais de dezasseis meses de viagem, dos quais
doze eram de navegação efectiva.
O recrutamento de pessoas necessário ao provimento das armadas
da Índia foi um problema que cedo se levantou na história da Carreira.
As questões colocaram-se quer no plano da quantidade quer no da
qualificação dos tripulantes disponíveis, encontrando-se muitas vezes
entrecruzadas ambas as circunstâncias.
A situação a ultrapassar, em primeiro lugar, com frequência, era a
da falta de homens qualificados para servirem de tripulação a todas as
naus que anualmente saíam de Lisboa para o Oriente.
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Apesar da atracção exercida pelas hipóteses, mais ou menos reais,
de lucros fáceis e imensos, os riscos envolvidos nas viagens eram muitos
e cedo se foi descobrindo a alta mortalidade provocada por doenças e
acidentes vários nas tripulações embarcadas.
Mas o problema de recrutamento não se colocava apenas ao nível da
“arraia-miúda”, da marinhagem responsável pelas tarefas mais duras da
navegação. Também quanto aos capitães, pilotos, contramestres e outros
cargos de maior responsabilidade a bordo existiam questões de difícil
resolução, só que de natureza geralmente diversa.
Ao capitão era indispensável a ciência da manobra, a visão de
pormenor e de conjunto, a serenidade no perigo e a firmeza no comando.
O cargo de capitão-mor das armadas, assim como a capitania de
todas as embarcações, foi desde cedo um duradouro monopólio da
nobreza, mesmo sem qualquer experiência náutica prévia, por nomeação
da Coroa, funcionando como uma espécie de prebenda, quase um título
honorífico ou recompensa por serviços prestados. Ambicionado por
muitos, o cargo de capitão de uma nau da Índia chegava a ser
arduamente disputado, mas isso em raras ocasiões significava uma
melhoria dos conhecimentos náuticos dos escolhidos. O mais comum era
que estes pouco mais água tivessem visto que a do Tejo, como afirma
Boxer citando o Padre António Vieira, dado que a grande maioria não
tinha qualquer experiência de navegação ou mesmo as mais vagas noções
teóricas da manobra de uma nau em alto mar. Os “fidalgos-marinheiros”
eram raros e uma excepção à regra longamente dominante. Só nas naus
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dos armadores particulares era mais frequente encontrar-se um capitão
de origem vilã e, nesse caso, eventualmente, com maiores conhecimentos
da arte de bem navegar.
Perante esta situação, a figura central na tripulação de uma destas
embarcações era o piloto, o verdadeiro responsável pelo (in)sucesso da
viagem. Ao piloto exigia-se uma observação atenta ao voo das aves que
anunciavam terra próxima, aos fundos do mar onde se escondiam baixios
e recifes, e do curso das estrelas que lhe traçavam a “derrota”.
Apesar dos cuidados postos na sua selecção e formação, são vários
os testemunhos mais ou menos directos que indiciam a sua escassez, em
particular à medida que as décadas iam passando.
A transferência de muitas dezenas dos melhores pilotos, atraídos a
países estrangeiros por avultados salários e vantagens, esvaziavam os
quadros. Muitos, contagiados pela vida fácil e pouco escrupulosa do
Oriente, por lá ficavam, desertavam do ofício perigoso e arriscado,
aumentando o êxodo. A fim de substituir os mestres que haviam feito
uma preparação atenta e científica na escola da experiência,
improvisavam-se pilotos de gabinete que saíam directamente da aula de
cosmografia para as naus.
Diogo do Couto refere-se à “jactanciosa suficiência desses pilotos
novos, munidos apenas de saber livresco, mas tão precário, quando
comparado com as ciências dos antigos, adquirida no demorado
transcurso das viagens e em contacto diuturno com o mar”. No Índico,
tornou-se comum o recurso a pilotos árabes ou hindus como estratégia
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útil para ultrapassar o desconhecimento e as dificuldades de navegação
na região. Por outro lado, à partida de Lisboa não era também caso raro
encontrarem-se pilotos castelhanos, maiorquinos ou de outras origens
mediterrânicas nas naus portuguesas.
As tentativas para fechar a profissão de piloto a uma estreita
elite, limitando a difusão dos seus conhecimentos e ocultando os seus
segredos com a concorrência estrangeira, tinha consequências difíceis
de conciliar com a necessidade de dispor de um corpo de pilotos em
quantidade suficiente para o provimento das armadas. Também a
consciência da sua importância e do valor dos seus conhecimentos, para
além das próprias recomendações régias no sentido do seu secretismo,
nem sempre tornavam os pilotos figuras particularmente simpáticas ou
afáveis para os mais curiosos.
Apesar dos testemunhos que nos restam sobre as condições das
viagens da Carreira existirem em quantidade e variedade suficientes
para tornar possível traçar um quadro com a diversidade das
experiências possíveis durante o seu longo trajecto, limitar-me-ei,
apenas a breves referências.
Em média , entre tripulantes, passageiros e militares, os navios da
Carreira da Índia transportavam 400 a 500 pessoas (apesar de haver
casos em que a barreira do milhar foi ultrapassada), pertencentes aos
diversos estratos sociais: nobres que partiam para o Oriente para ocupar
cargos administrativos e militares, membros do clero, em particular
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missionários, gente do terceiro Estado em busca de melhores condições
de vida e bons negócios.
Um dos maiores problemas que se colocava ao longo da viagem era o
da alimentação de todas estas pessoas. O biscoito (feito com farinha de
trigo) era o principal recurso alimentar, seguido de alimentos secos e
fumados.
Mantimentos frescos eram quase inexistentes: apenas podiam ser
embarcados os que se iriam consumir nos primeiros dias de viagem, pois
caso contrário, acabariam por se estragar. Por vezes optava-se pelo
embarque de animais vivos (coelhos, galinhas...), que iriam sendo mortos
no decurso da travessia oceânica. E, sempre que era possível, pescava-se.
Tão ou mais importantes que os géneros alimentícios era a água,
embarcada em grandes quantidades. Também o vinho, o azeite e o
vinagre faziam parte da carga das naus.
Se os mantimentos eram embarcados tendo em atenção o número
de viajantes e a duração previsível da viagem, vários eram os imprevistos
que estragavam os cálculos. Em primeiro lugar, a existência de
clandestinos, que aumentavam o número de bocas a alimentar; em
segundo lugar, a falta de qualidade de muitos dos alimentos. Também o
desvio de verbas, que leva ao embarque de poucos géneros alimentícios,
põe em perigo a vida dos que partem: “encolhem os Provedores as mãos
para encher as unhas, e dão provimento para três semanas: eis que na
segunda semana já falta a água, e na terceira já não há pão”.
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As más condições de higiene e o mau acondicionamento dos
mantimentos provoca a sua deterioração: o porão, onde iam armazenados,
era frequentemente utilizado para urinar, e a água que aí se acumulava
apodrecia muitos géneros, enquanto a existência de ratos e baratas, em
número considerável, acelerava a degradação.
Na região equatorial, o calor tornava a situação ainda mais
dramática. O Padre Dionísio, em 1563, refere que, nos dez dias de
calmaria a que a nau esteve sujeita “se danno la mayor parte de las cosas
de comer, porque o aceyte, la manteca, la marmelada, y la miel herviam;
el agua se corrompia; las pasas, los higos e outras muchas cosas, com
grande calma, se deñaram”. Beber urina, água do mar, comer couro, ratos
ou mesmo cartas náuticas, tornaram-se assim expedientes relativamente
frequentes.
Se as condições alimentares não eram, muitas vezes, as melhores,
as condições de higiene mostravam-se também bastante deficientes: À
acumulação de centenas de pessoas num espaço tão pequeno, convivendo
muitas vezes com animais (lembremo-nos que, por vezes, na torna
viagem, vinham embarcados elefantes e outros bichos exóticos), e sem
água doce que pudesse ser usada para a lavagem de roupas ou do corpo
provocava problemas. Em 1597, é encontrada a meio da viagem uma
criança morta na nau “São Martinho”. O seu corpo estava totalmente
coberto de piolhos.
Com este panorama, era habitual o desencadear de surtos
epidémicos. Por vezes, o número de pessoas com problemas de saúde
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atingia tais proporções que se tornava difícil encontrar quem
desempenhasse as tarefas ligadas à
navegação. Na já referida nau “São
Martinho”, o piloto queixa-se que, a
determinada altura, apenas existiam oito
marinheiros e quatro ou cinco grumetes
em boas condições de saúde. Todos os
outros, ou tinham falecido, ou estavam acamados.
Uma das mais graves doenças que atingia muitos dos embarcados
era o escorbuto, provocado pela alimentação carente em vitaminas.
Camões, no canto V de “Os Lusíadas” afirma, referindo-se à doença e aos
seus efeitos:
“ [...]
Quem haverá que sem o ver creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne e juntamente apodrecia?”
Viajar nas naus da Carreira da Índia era assim aventura que
implicava vários riscos. Chegar são e salvo ao local de destino,
apresentava-se como um objectivo nem sempre fácil de cumprir. E
mesmo que se escapasse a todas essas peripécias, era necessário lutar
pela sobrevivência num espaço onde a acumulação de centenas de
pessoas, durante vários meses, propiciava situações de conflitos. Como
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afirmou Belchior Barreto, em 1551, “quase todos se pelejam ora huns ora
outros”. Os motivos não faltavam: conseguir aquecer os alimentos,
roubar os bens de alguém mais afortunado, vingar insultos provocados
pelo jogo, ou simplesmente extravasar as tensões provocadas por uma
travessia tão difícil e desgastante.
E agora julgo ser oportuno pôr a questão: quais as causas de todos
esses naufrágios?
Por simples critério metodológico parece correcto proceder a uma
classificação que englobasse as causas que, de uma forma mais activa,
contribuíram em cada naufrágio registado para a perda da respectiva
embarcação. Seguindo este princípio, a generalidade das perdas
identificadas podem enquadrar-se no seguinte conjunto de categorias:
1º O naufrágio clássico, na acepção mais tradicional do termo,
provocado por uma tempestade cujos efeitos conduziam à
destruição, afundamento e/ou encalhe da embarcação, tornando
esta irrecuperável para a navegação.
2º A perda causada por um erro de navegação que levava o navio
a encalhar em baixios, desfazer-se contra rochedos ou ainda a
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falhar as manobras de entrada na barra de um determinado porto
de escala ou de destino.
3º A perda provocada por uma acção inimiga de carácter militar
(pirataria, corso ou acto declarado de guerra), com vários
desfechos possíveis: afundamento na sequência da agressão,
naufrágio na fuga ou afundamento voluntário pela tripulação, para
não cair em mãos inimigas.
Segundo autores britânicos, como o professor E. Taylor, foi
nestas naus da Carreira da Índia então apresadas, que os Ingleses
se apoderaram das cartas de marear, dos roteiros e relações
comerciais, que lhes revelaram os segredos náuticos e mercantis
dos Portugueses sobre as rotas e o tráfico do Oriente.
4º Os desastres ocorridos em determinado momento da viagem,
cuja responsabilidade se pode atribuir a um excessivo
carregamento da nau, o que impedia a existência de boas
condições de manobra e implicava uma maior vulnerabilidade aos
efeitos de qualquer temporal ou outro imprevisto;
De facto, a ambição e a cobiça dos mercadores (gente
fidalga), carregando desmedidamente os navios, numa ânsia de
lucro e de rápido enriquecimento de qualquer maneira, mesmo
pondo em risco a sua vida e a dos demais passageiros e tripulantes,
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é apontada por todos os autores como causa suprema dos desastres
marítimos.
Carregar as naus, ajoujando-as ao peso das mercadorias e
riquezas pessoais, quando do regresso à metrópole, foi uma das
maiores e mais desastrosas preocupações de todos aqueles que
eram dominados pela ânsia de se locupletarem a curto prazo; “os
cofres flutuantes não resistiam à fúria dos elementos e abriam-se
em pleno mar para os afundar nos abismos, com as riquezas, os
possuidores, e com os culpados, os inocentes”.
Um bom exemplo, significativo da sobrecarga dos navios, é
bem patente na perda do galeão “Santiago”, apresado pelos
Holandeses em 1602.
Atente-se. Após terem alijado inúmeras mercadorias
suficientes para carregarem uma grande nau, os corsários estavam
espantados de o verem ainda tão cheio de fazenda, não deixando de
exclamar increpando: “Dizei, gente portuguesa, que nação haverá no
mundo tão bárbara e cobiçosa, que cometa passar o Cabo da Boa
Esperança na forma que todos passais, metidos no profundo do mar
com carga, pondo as vidas a tão provável risco de as perder, só por
cobiça; e por isso não é maravilha que percais tantas naus e tantas
vidas”.
Os estivadores carregavam conforme mais lhes convinha, ao
sabor das espórtulas de cada interessado, “atulhando o galeão de
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fardaria em barda, que subia no convés até à altura dos castelos,
que transpunha o costado,” autêntica feira flutuante.
5º As perdas na sequência do mau estado de conservação das
embarcações que, em algumas situações, tornava necessário o seu
abandono em alguma escala intermédia do percurso ou conduzia ao
seu próprio naufrágio em pleno oceano;
O mau estado de conservação das naus agravava-se,
sobretudo, devido ao processo de reparação por empreitada. A fim
de pouparem tempo, o trabalho fazia-se negligentemente e as naus
ficavam com muitas deficiências. Expressivamente, refere João
Batista Lavanha: “enfeitam o dano de maneira que pareça bem
consertado, e debaixo dele fica a perdição escondida e certa.
Cortam-se também as madeiras fora do seu tempo e sazão, pelo que
são pesadas verdes e dessazonadas; e como tais encolhem, e
fendem, e desencaixam-se do seu lugar; e com a humidade da água
de fora e grande quentura da pimenta, e drogas de dentro, logo se
apodrecem e corrompem na primeira viagem”. Tal deveria ser o
caso do naufrágio da nau “Santo Alberto”: a madeira da quilha
estava tão podre que, quando deu à costa, Nuno Velho Pereira a
desfez em pedaços com uma cana.
6º Finalmente, temos ainda uma situação, que não corresponde
propriamente a uma causa de naufrágio, mas antes ao
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desconhecimento sobre o seu destino, testemunhado pela
globalidade das fontes
documentais
consultadas. Este é o
caso das naus que
desapareceram em
determinada fase da
viagem sem que
tenham restado
quaisquer testemunhas
ou sobreviventes
conhecidos para relatar
o ocorrido, e das quais nem sequer foi encontrado qualquer tipo de
vestígio material que ajude a elucidar--nos, ou aos contemporâneos,
sobre o que então se passou.
O maior número de naufrágios não deixou rasto que pudesse
assinalar o lugar e a causa do desastre. O mar “comia as naus” na
expressão do tempo.
Não deve, contudo, esquecer-se que em várias situações os
naufrágios podiam ser motivados, não por uma causa eficaz isolada,
mas antes por uma conjugação de vários factores articulados entre
si. Era muito provável, por exemplo, que a sobrecarga ou o mau
estado de conservação de uma nau diminuíssem substancialmente as
suas possibilidades de sobrevivência perante um temporal ou um
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ataque pirata. Em algumas situações não é muito correcto
apontarmos um único factor como responsável pela perda, sendo
mais aconselhável considerar a combinação das condições
desfavoráveis.
Igualmente útil, revela-se também a articulação das
informações sobre as diversas causas de perda das naus com a fase
da viagem ou a área geográfica em que aquelas se verificam com
maior intensidade.
As razões que contribuíam para o desaparecimento de
embarcações eram diferentes conforme isso acontecia no percurso
de ida, de volta ou em trânsito no Índico, assim como se o facto
ocorria no início ou no final da viagem.
Resta, fundamentalmente, a confirmação da percepção
empírica que nos leva a pensar que, seja na sequência de
tempestades, em virtude do excesso de carga ou devido a acção
inimiga, os navios são sempre mais vulneráveis a acidentes com
consequências graves quando se encontram no final da sua viagem,
com as tripulações cansadas e o material bem mais debilitado do
que pouco depois da partida.
O documento humano
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Referidas as causas das tragédias, vejamos seguidamente, qual o
comportamento humano na aflição e na subsequente caminhada por terra.
Com efeito na História Trágico-Marítima encontram-se os mais
extraordinários relatos das horas dramáticas do naufrágio e da dolorosa
peregrinação dos escapados à morte, percorrendo léguas e léguas
através de terras do interior, atravessando serras altíssimas e de difícil
acesso, utilizando jangadas para a travessia dos rios mais caudalosos,
transpondo pântanos e regiões lodosas, padecendo fomes e sedes,
fazendo frente a traições e ataques dos indígenas, tragados pelas feras,
roubados, escarnecidos, maltratados e sujeitos a mil vexames.
Dolorosa é a descrição do comportamento destes desgraçados
náufragos e das suas reacções à iminência da morte, numa luta feroz
pela sobrevivência, em arrepiantes lances de barbaridade e egoísmo. É o
homem no seu primitivismo, sem disfarces, extravasando quanto a alma
tem de negativo. De facto, é quando o ser humano tomba no abismo da
desgraça e da miséria, despojados de todos os seus bens e
inexoravelmente posto frente a frente da morte, que ele se mostra a nu
e se revela em plena grandeza e baixeza de alma. Cada um gritava a sua
verdade mais profunda. E em quase todos o instinto elementar do apego
à vida sobrepunha-se e obscurecia os demais sentimentos.
Na hora alucinante de abandonar a nau, prestes a afundar-se, os
homens acorriam em tumulto ao batel, esperança derradeira de
salvamento; e aqueles mesmos, que de manhã se tratavam de amigos, à
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noite disputavam-se às cutiladas os lugares, ferindo e matando sem
piedade.
Declarada a perda fatal do
navio, era um alarido angustioso
por todo ele. Os navegantes
precipitavam-se
desordenadamente sobre os
religiosos para serem ouvidos de
confissão: ”toda a gente, não
tratando já mais que da
salvação das almas por quão
desenganada se viu da dos
corpos, pediam todos confissão
aos religiosos, com muitas lágrimas e gemidos, com tão pouco tino e
ordem que todos se queriam confessar juntamente e em voz tão alta que
todos se ouviam uns aos outros. Um homem, não podendo esperar,
começou a gritar a um dos religiosos e, sem mais aguardar, dizia suas
culpas em voz alta, tão graves e enormes, que foi necessário ir-lhe o
religioso com a mão à boca, gritando-lhe que se calasse”.
Preparava-se afanosamente o batel de salvação, mas nele só iam
grandes e a parentela e próximos dos graúdos escolhidos,
arbitrariamente, dum modo revoltantemente pessoal. Na nau a afundar-
se ficava a chusma dos escravos, a gente menor e uma ou outra pessoa
de condição que não estivesse nas boas graças dos chefes. Por isso se
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compreende aquele episódio da ama que não quis largar a filha de D.
Joana de Mendonça, descrito por Diogo do Couto na perda da nau “S.
Tomé”. No dizer de Rodrigues Lapa, tem toda a força essa imagem da
pobre mulher que, não podendo ser salva, quer levar para o fundo do mar
a menina que criara ao seu colo.
Procedimento atroz era o frequente lançamento ao mar das
pessoas excedentes no batel, após o naufrágio. Era a condenação à morte
feita calculadamente a frio.
Refiram-se algumas passagens que documentam tão desumano
procedimento:
“E tornando ao batel: tanto que cometeu sua viagem acharam-no os
oficiais tão pejado, por ir muito carregado, com todo o grosso debaixo
de água, que fizeram grandes requerimentos que se lançassem algumas
pessoas ao mar para poderem salvar as outras, o que aqueles fidalgos
consentiram, deixando a eleição delas aos oficiais, que logo lançaram ao
mar seis pessoas que foram tomadas nos ares, lançadas nele, onde
ficariam submergidas das cruéis ondas, sem mais aparecerem”.
E, ainda, “aconteceu aqui que querendo botar ao mar o tanoeiro de
sobressalente, o qual tinha trabalhado muito bem no conserto do batel, e
vendo o pobre homem que não tinha nenhum remédio, pediu uma talhada
de marmelada; deram-lha e sobre ela bebeu uma vez de vinho, e assim se
deixou lançar ao mar, indo-se a pique ao fundo, sem mais aparecer”.
Durante o naufrágio desta nau que, em 1585, se rompeu nos baixos
da Judia, deu-se entre os sobreviventes o lance costumado. Como todos
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corriam risco com o peso excessivo começaram a lançar a carga humana,
até que o batel desafogado pudesse tomar o rumo. Alguns, que sabiam
nadar, vieram com o pavor da noite enclavinhar-se à borda do batel. De
dentro, implacavelmente, decepavam-lhes as mãos à espada.
Mas paralelamente, há lances que contrastando com tais
crueldades, reconfortam e comovem pelo altruísmo e solidariedade
manifestados, pela generosidade e amor aos companheiros de
sofrimento, desde o simples conforto e amparo à maior abnegação e
sacrifício.
Sucedia muitas vezes que a nau dava à costa. Então todos ou quase
todos se salvavam. Carregando o mais que podiam dos destroços da nau,
“a triste caravana seguia por terra em direcção a Sofala, com um
crucifixo arvorado numa lança”.
Nestas caminhadas com muita gente, onde se incluíam velhos,
mulheres e crianças, o ritmo de andamento não era, naturalmente, muito
forte, o que fazia desesperar os mais impacientes, geralmente membros
da tripulação, que chegavam a planear abandonar os companheiros de
caminhada para poderem avançar mais depressa.
Durante a caminhada, os náufragos encontravam aldeias, onde
procuravam comprar mantimentos e obter ajuda, como por exemplo,
conseguir que algum indígena os acompanhasse e lhes pudesse servir de
guia. Porém, grande parte dos guias disponíveis apenas os sabia conduzir
nas redondezas da sua aldeia, pois, como nos diz o narrador da relação
do naufrágio da nau “São Bento”, a propósito de um guia que acompanhou
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os caminhantes, “como a gente daquela terra não se afaste muito dos
limites onde nasce [...], e ao redor daquelas choupanas se crie e morra,
quando veio o terceiro dia tinha o cafre tanta necessidade de quem o
guiasse como nós”. Por esse motivo, e vendo a insatisfação dos
Portugueses face ao seu trabalho de orientação, muitos deles acabavam
por fugir, o que contribuía para aumentar o desalento dos náufragos.
Por vezes, eram encontrados, entre os cafres, sobreviventes de
naufrágios anteriores. Tal situação era motivo de grande alegria para os
caminhantes, pois reforçava a esperança da salvação de todos. O “língua”
(designação que se dava ao homem que aprendeu a língua da terra) não só
facilitava a comunicação e permitia melhorar o relacionamento com os
autóctones, como também podia servir de guia na caminhada, já que a
confiança posta nestes ex-náufragos era bem maior que a que suscitam
qualquer cafre.
Mas os três grandes inimigos dos náufragos, segundo o autor da
relação da perda da nau “Santiago”, eram a fome, a sede e o frio.
Durante a caminhada, chegavam a passar-se vários dias em que não se
encontrava nada para comer, levando a que muitos caíssem doentes ou
morressem. A fome chegava a ser tanta que não havia qualquer
preconceito sobre o tipo de alimento a ingerir. Lado a lado com os côcos,
a carne de elefante, a carne de macaco, que se dizia ser “nojenta e ruim
carne”, comiam-se também sapatos, procuravam – se com sofreguidão
ossos, espinhas, ervas, pequenos bichos, engoliam-se favas do mato,
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muitas vezes peçonhentas, provocando grande sofrimento, matavam-se e
ingeriam-se ratos, cobras e lagartos.
Menor não era, de modo algum, o drama da sede. Era frequente
caminhar-se cinco e seis dias sem beber, o que provocava grande
sofrimento e desespero.
A situação chegou a ser de tal modo grave que “houve pessoas que
bebiam mijo”, tendo quatro delas morrido por causa disso, e outras por
ingerir água salgada.
Para além da fome e da sede, o frio era outro dos grandes
problemas que os caminhantes enfrentavam, principalmente durante a
noite. Conta Manuel Godinho Cardoso que “por ser ainda Inverno nesta
terra o frio era grande”, e que, apesar da muita lenha que nela havia,
todos “se sentiam enregelados”, queixando-se de “quão errados vão os
que dizem na Zona Tórrida não há frio”.
A estes “inimigos” dos náufragos, poderíamos juntar outros, como o
calor em demasia em muitos momentos do dia, os ataques dos animais ou
as tempestades de areia.
Também durante as caminhadas, os sobreviventes eram
frequentemente perseguidos por indígenas, que os pretendiam roubar e,
por vezes, mesmo, matar. Boa parte das vezes, não ousavam meter-se
directamente com os portugueses por causa das armas de fogo que estes
possuíam, esperando que alguns fossem ficando para trás, os quais
imediatamente eram despidos e despojados de tudo o que
transportavam.
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Todas estas dificuldades causavam, obviamente, inúmeras mortes,
algumas bem dramáticas, como a de D. Leonor Sepúlveda, que vendo-se
despida por acção dos cafres, “lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda
com os seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na
areia, onde se meteu até à cintura, sem mais se erguer dali”, vindo a
falecer algum tempo depois. O marido, Manuel de Sousa Sepúlveda,
depois de enterrar a mulher e um filho, que com ela morrera, meteu-se
pelo mato, e nunca mais o viram.
Muitos outros casos poderiam ser citados de mortes bem duras que
ocorreram com tripulantes e passageiros de naus da Carreira da Índia
que naufragaram em pontos da costa africana ou em ilhas algures no
Índico.
Após uma década de conquista e instalação do monopólio português
da rota do Cabo, seguem-se 75 anos de relativa estabilidade na sua
exploração, após o que se segue um longo e doloroso declínio que Camões,
talvez de forma premonitória, prognosticaria:
“Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança;
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança,
Antes em vossas naus vereis cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda a sorte,
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Que o menor mal de todos seja a morte”.
Concluindo: Pode considerar-se a História Trágico-Marítima uma
bela e importante obra que constitui como que o reverso do heroísmo
cantado n’”Os Lusíadas”; o que em “Os Lusíadas” é “glória que guinda os
heróis às alturas do Olimpo é aqui drama que os afunda nos abismos do
sofrimento e da miséria humana.
São milhares os Portugueses, desde o grumete de Alfama ao
fidalgo de avós godos, que morrem aos gritos nestas páginas; são
milhares os escravos que igualmente morrem, mas em silêncio, porque
deles não ficou nem o nome nem a voz”.
A leitura desta obra permite-nos tomar consciência de que “os
feitos gloriosos se pagam por um preço muito elevado em morte,
sofrimento, dinheiro, desespero e dor”.
Efectivamente, é a factura com que os Portugueses pagaram o
esforço, a audácia, a coragem, o risco e o espírito de aventura na missão
que assumiram no desbravar de mares “nunca dantes navegados”, e de
descobrir para o mundo as terras até então desconhecidas.
Bibliografia consultada
ALBUQUERQUE, Luis de – “Escalas da Carreira da Índia”. Junta de Investigações
Científicas do Ultramar. Lisboa, 1978.
BOXER, C. R. – O Império Marítimo Português: 1415 - 1825
32
BRITO, Bernardo Gomes de – “História Trágico-Marítima” – 2 vols. Fixação do texto,
introdução e notas de Neves Águas. Publicações Europa – América.
BRITO, Bernardo Gomes de – “História Trágico – Marítima” – 2 vols. Fixação do
texto, glossário e notas de Neves Águas. Comentários de Fernando Luso
Soares, José Saramago e Maria Lúcia Lepecki. Edições Afrodite. Lisboa, 1971-
1972.
FERREIRA, João Palma – “Naufrágios, Viagens, Fantasias e Batalhas”. Imprensa
Nacional- Casa da Moeda. Lisboa, 1980.
GUINOTE, Paulo, Eduardo Frutuoso e António Lopes – “Naufrágios e outras perdas
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da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa,
1988.
LANCIANI, Giulia – “Uma História Trágico-Marítima”, in Lisboa e os
Descobrimentos” (1415-1580). Terramar. Lisboa, 1992.
LAPA, Manuel Rodrigues – “Prefácio”, in “Quadros da História Trágico-Marítima”.
Lisboa, 1951.
MENEZES, José de Vasconcelos e, - “Armadas Portuguesas de meados do séc. XIV.
Alimentação e Abastecimentos”. Editorial Resistência. Lisboa, 1981.
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SÉRGIO, António – “Em torno da História Trágico – Marítima”, in “Ensaios”, vol.
XVIII. Lisboa, 1974.