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E          D       U      C     A   Ç  Ã  O  PA   R   A      T     O       D        O          S               C       O    L E  Ç     Ã         O             Pensar o Ambiente: bases losócas  para a educação ambiental

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  • EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

    Pensar o

    Ambiente:bases filosficas para a educao

    ambiental

  • Lanada pelo Ministrio da Educao e pela UNESCO em 2004, a Coleo Educao para Todos um espao para divulgao de textos, documentos, relatrios de pesquisas e eventos, estudos de pesquisadores, acadmicos e educadores nacionais e internacionais, que tem por finalidade aprofundar o debate em torno da busca da educao para todos.

    A partir desse debate espera-se promover a interlocuo, a informao e a formao de gestores, educadores e demais pessoas interessadas no campo da educao continuada, assim como reafirmar o ideal de incluir socialmente um grande nmero de jovens e adultos, excludos dos processos de aprendizagem formal, no Brasil e no mundo.

    Para a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), rgo, no mbito do Ministrio da Educao, responsvel pela Coleo, a educao no pode separar-se, nos debates, de questes como desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentvel; direitos humanos; gnero e diversidade de orientao sexual; escola e proteo a crianas e adolescentes; sade e preveno; diversidade tnico-racial; polticas afirmativas para afrodescendentes e populaes indgenas; educao para as populaes do campo; educao de jovens e adultos; qualificao profissional e mundo do trabalho; democracia, tolerncia e paz mundial.

    Vigsimo sexto volume desta Coleo, esta obra se prope a ser um encontro agradvel de professores e professoras com a filosofia, permitindo diversas leituras e contribuindo para abrir um espao que fundamente a produo do conhecimento em Educao Ambiental.

  • Organizao:Isabel Cristina de Moura Carvalho, Mauro Grn e Rachel Trajber

    Pensar o Ambiente:

    bases filosficas

    para a Educao Ambiental

    EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

    Braslia, dezembro de 2006

    1a Edio

  • Edies MEC/Unesco

    SECAD Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeEsplanada dos Ministrios, Bl. L, sala 700Braslia, DF, CEP: 70097-900Tel: (55 61) 2104-8432Fax: (55 61) 2104-8476

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a CulturaRepresentao no BrasilSAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/Unesco, 9 andar Braslia, DF, CEP: 70070-914Tel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 3322-4261Site: www.unesco.org.brE-mail: [email protected]

  • Pensar o Ambiente:

    bases filosficas

    para a Educao Ambiental

    Organizao:Isabel Cristina de Moura Carvalho, Mauro Grn e Rachel Trajber

    EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

    Braslia, dezembro de 2006

    1a Edio

  • 2006. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad) e Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco)

    Conselho Editorial da Coleo Educao para TodosAdama OuaneAlberto MeloClio da CunhaDalila ShepardOsmar FveroRicardo Henriques

    Coordenao EditorialEneida M. Lipai

    Reviso: Adilson dos SantosReviso tcnica: Luciano ChagasProjeto Grfico: Carmem MachadoDiagramao: Satyro DesignTiragem: 5000 exemplares

    Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO e do Ministrio da Educao, nem comprometem a Organizao e o Ministrio. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO e do Ministrio da Educao a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitao de suas fronteiras ou limites.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Pensar o Ambiente: bases filosficas para a Educao Ambiental. / Organizao: Isabel Cristina Moura de Carvalho, Mauro Grn e Rachel Trajber. - Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, UNESCO, 2006.

    ISBN 978-85-98171-70-8

    242 p. - (Coleo Educao para Todos; v. 26)1. Educao Ambiental Brasil. 2. Filosofia. 3. Diversidade. 4. Polticas educacionais Brasil. I. UNESCO. II.

    Brasil. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade. III. Ttulo.

    CDU 37:577.4

  • Apresentao

    Este vigsimo sexto volume da Coleo Educao para Todos, publicado pela Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Minist-rio da Educao (Secad/MEC) em parceria com a UNESCO, marca uma maneira diferente de abordar a temtica da educao ambiental.

    Pensar o Ambiente oferece aos educadores possibilidades fecundas de lei-tura e reflexo a partir da contribuio terico-conceitual de diversos pensadores Aristteles, Santo Agostinho, So Toms de Aquino, Bacon, Descartes, Espino-sa, Rousseau, Kant, Marx, Freud, Heidegger, Arendt, Gadamer, Vygotsky e Paulo Freire e do momento histrico em que viveram, incluindo excertos de textos cls-sicos desses pensadores com a respectiva contextualizao social e histrica. Os autores apresentam referncias para que o leitor, mesmo no iniciado em filosofia, seja capaz de relacionar natureza/cultura/ambiente e compreender tal relaciona-mento de maneira contextualizada.

    Trata-se, pois, de uma leitura provocativa e til para professores, gestores, coordenadores pedaggicos, diretores de escola, educadores ambientais e outros educadores preocupados com a diversidade, a cidadania e a incluso educacional e social.

    Esperamos que os textos deste livro ganhem vida nas mos dos educadores e educadoras, que sua leitura provoque a reflexo e o debate em torno de idias que fortaleam as prticas pedaggicas e que eles possam contribuir para a com-preenso mais aprofundada das relaes dos seres humanos com o seu meio.

    Ricardo HenriquesSecretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do

    Ministrio da Educao

  • Sumrio

    Introduo ............................................................................................... 11

    Os pr-socrticos: os pensadores originrios e o brilho do serNancy Mangabeira Unger ..................................................................... 25

    Aristteles: tica, ser humano e naturezaDanilo Marcondes ................................................................................ 33

    Santo Agostinho e So Toms: a filosofia da natureza na Idade MdiaAlfredo Culleton ................................................................................... 43

    Bacon: a cincia como conhecimento e domnio da naturezaAntonio Joaquim Severino ................................................................... 49

    Descartes, historicidade e educao ambientalMauro Grn ......................................................................................... 51

    Espinosa: o precursor da tica e da educao ambiental com base nas paixes humanasBader Burihan Sawaia ......................................................................... 77

    Rousseau: o retorno naturezaNadja Hermann ................................................................................... 91

    Kant: o ser humano entre natureza e liberdadeValerio Rohden .................................................................................. 107

  • Karl Marx: histria, crtica e transformao social na unidade dialtica da naturezaFrederico Loureiro .............................................................................. 121Freud e Winnicott: a psicanlise e a percepo da natureza da dominao integraoCarlos Alberto Plastino ..................................................................... 135

    Heidegger: salvar deixar-serNancy Mangabeira Unger ................................................................... 153

    Vygotsky: um pensador que transitou pela filosofia, histria, psicologia, literatura e estticaSusana Ins Molon ........................................................................... 163

    A Outridade da Natureza na Educao AmbientalMauro Grn ...................................................................................... 177

    Hannah Arendt: natureza, histria e ao humanaIsabel C. M. Carvalho e Gabriela Sampaio ........................................ 189

    Paulo Freire: a educao e a transformao do mundoMarta Maria Pernambuco e Antonio Fernando Gouvea da Silva ....... 205

    PosfcioO pensamento contemporneo e o enfrentamento da criseambiental:uma anlise desde a psicologia socialEda Terezinha de Oliveira Tassara ................................................... 219

    Sobre Autores e Autoras...................................................................... 233

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    Introduo

    As primeiras idias sobre este livro foram surgindo na seqncia de vrias conversas entre Isabel Carvalho, psicloga, educadora ambiental, e Rachel Traj-ber, antroploga, responsvel pela coordenao de Educao Ambiental no MEC, no segundo semestre de 2005. O projeto do livro foi se delineando em torno do objetivo de apresentar alguns dos pontos importantes no pensamento ocidental moderno e suas relaes com os modos de pensar o ambiente. Na continuidade, pudemos contar com Mauro Grn, filsofo ambiental j conhecido dos leitores da EA desde a publicao do seu trabalho de mestrado tica e EA, uma conexo ne-cessria. Contamos com a inestimvel colaborao dos colegas articulistas desta coletnea que acolheram o projeto, aceitando o convite para escrever os artigos sobre os diversos pensadores e suas tradies filosficas, identificando sugestes de leitura e citaes selecionadas das obras originais dos pensadores seleciona-dos.

    Inicialmente pensamos num livro voltado exclusivamente para uma seleo de autores clssicos que seriam apresentados e comentados por filsofos con-temporneos especialistas naqueles autores. Depois estendemos esta idia inicial para incluir alguns pensadores de outros campos no restritos filosofia que con-sideramos muito significativos na formao de uma maneira ocidental de pensar o ambiente. Desta forma, inclumos um grupo menos numeroso de pensadores ligados psicologia e educao, que so Freud, Vygotsky e Paulo Freire. Do mesmo modo, incorporamos na categoria de posfcio um texto de Eda Tassara que, pensado desde a psicologia social, apresenta uma ampla discusso filos-fica e epistemolgica sobre os fundamentos do pensamento moderno e a crise ambiental.

    Este livro se prope a ser um encontro agradvel de professores e professo-ras com a filosofia, permitindo diversas leituras e contribuindo para abrir um espa-o que fundamente a produo do conhecimento em Educao Ambiental. Houve a opo de se trabalhar com uma linguagem menos tcnica por parte dos autores,

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    sem deixar de respeitar o discurso filosfico. Isso aparece de duas formas, uma na escrita de textos curtos e a outra, procurando deixar os filsofos falarem por si, no original. Na impossibilidade de utilizao de excertos na ntegra, foram utilizadas passagens representativas das teorias estudadas, bem como inseridas citaes mais longas e ilustrativas do estilo e do pensamento filosfico.

    O debate no qual este livro se insere segue sendo de natureza filosfica, mesmo quando aciona pensamentos de outros campos, pois com uma inda-gao filosfica que o fazemos. A questo que conecta este empreendimento ao vvido debate contemporneo, sobre as relaes entre filosofia e ambiente, diz respeito ao tema da possibilidade de tica ambiental, seus fundamentos e aplica-es no mundo contemporneo. Em 1972, o filsofo australiano Richard Routley escreveu um trabalho intitulado Is there a need for a new ethics, an Environmental Ethics? (Existe a necessidade de uma nova tica, uma tica Ambiental?), que viria a se tornar um clssico na literatura internacional sobre tica Ambiental, dando incio a uma disciplina ainda marginal chamada tica Ambiental. Em seu famo-so ensaio, Routley argumenta que as ticas ocidentais no esto bem equipadas para tratar da crise ambiental e que a nica sada seria criar uma tica totalmente nova, uma tica Ambiental. O livro Pensar o Ambiente: bases filosficas para a educao ambiental atesta basicamente uma discordncia com o argumento de Routley. Pensamos que o ocidente, desde os gregos, passando pelos medievais e modernos at os contemporneos, est repleto de poderosos insights para o de-senvolvimento da tica Ambiental e da Educao Ambiental. Assim, o novo, neste caso, no precisa necessariamente remeter a uma refundao do pensamento filosfico, mas, talvez a releitura dos autores ocidentais, luz do contexto em que vivemos, possa nos trazer novas luzes sobre nossos impasses atuais.

    Ainda no sc. IV a.C., Plato, em Crtias 102, lamenta a devastao das paisagens gregas. Assim, iniciamos nosso dilogo com a tradio atravs dos Pr-Socrticos. Em Os Pr-socrticos: os pensadores originrios e o brilho do ser, artigo escrito por Nancy Mangabeira Unger, somos transportados linguagem e ao pensamento dos primeiros filsofos gregos que inauguram um modo de pensar a totalidade do mundo. Este artigo nos brinda com parte deste universo originrio, onde os conceitos como physis, ethos, aletheia, entre outros, nos remetem a um saber e a uma experincia sem traduo no nosso mundo moderno. Para o edu-cador ambiental, por exemplo, aproximar-se da noo de physis, que diz respeito vida que pulsa em todos os seres, anterior e diferente de nossa viso de fsica ou

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    de natureza, conceitos j pertencentes a uma categorizao dualista da realidade que no faziam parte da linguagem e da experincia destes pensadores antigos. Do mesmo modo, a idia de ethos como morada nos d pistas desta outra experi-ncia do real e da convivncia, anterior s dicotomias que posteriormente vieram a constituir o modo moderno de pensar o mundo. Deste modo, os Pr-Socrticos, com seus fragmentos, nos permitem imaginar outros sentidos para habitar o mun-do como ambincia, uma noo que pode ser muito iluminadora para a educao ambiental.

    Em Aristteles: tica, ser humano e natureza, Danilo Marcondes demons-tra a atualidade do pensamento aristotlico para o sc. XXI. Aristteles, ex-dis-cpulo de Plato, construiu um grande sistema de saber que influenciou muito o desenvolvimento tanto da cincia grega, como medieval. Aristteles concebe o ser humano como parte da natureza e ambos so dotados de um telos (finalidade). A tica a Nicmaco o primeiro tratado versando sobre tica do Ocidente. Danilo Marcondes observa que essa integrao do ser humano com o mundo natural uma das maiores aspiraes do pensamento ecolgico contemporneo. A tica, em Aristteles, consiste justamente na busca do equilbrio. Alm disso, a tica si-tua o saber instrumental que tantos problemas ambientais nos traz hoje por sua prpria conta como dependente do saber prudencial. Assim, a ao tica deve evitar os extremos, ser prudente, caracterizando-se pelo equilbrio. A dificuldade em fazer o bem est em achar o meio termo, a justa medida. A polis (cidade) tam-bm faz parte das coisas naturais e o homem, por sua vez, um zoon politikn (animal poltico). A tica a Nicmaco, de Aristteles, pode ser muito til Educa-o Ambiental, pois trata-se de um saber prtico que nos permite tomar decises em relao ao meio ambiente, s polticas pblicas etc., evitando as solues f-ceis, mas comprometedoras do Technological Fix (solues meramente tcnicas, desvinculadas de um contexto tico).

    Em Santo Agostinho e So Toms: a filosofia da natureza na Idade M-dia, Alfredo Culleton nos fornece uma viso detalhada das possibilidades eco-lgicas do pensamento cristo medieval. Santo Agostinho considera a natureza como uma livre criao de Deus no tempo e, como todo ser criado do nada, essencialmente boa. Toda natureza sempre um bem. A natureza do esprito, no entanto, sempre superior natureza do corpo. Essa noo de natureza, embora nos parea estranha e distante ora, como pode um esprito ser natureza? , uma forma de ver o mundo de maneira unificada, ainda sem a distino entre

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    Natureza e Cultura, estabelecida por Descartes no sc. XVII e que est, segundo muitos pensadores sistmicos, na base do materialismo Ocidental. Com Toms de Aquino, a Idade Mdia vive um novo momento e os cristos ficam fascinados por Aristteles, influenciados pelos comentrios dos rabes Avicena e Avenrois e por Maimnides, chamado por Toms de Aquino de o sbio judeu. Para Toms de Aquino a idia central da filosofia da natureza a de que o Cu e a natureza dependem da razo e at mesmo Deus se rege por razes. Mas, no se trata de um racionalismo cego. Pelo contrrio, h um componente holstico em Toms de Aquino que pode interessar Educao Ambiental. Sua postura holstica diz que conhecer a ordem do todo conhecer a ordem da parte e conhecer a ordem da parte conhecer a ordem do todo. Esse tipo de holismo considerado elogivel por um nmero significativo de educadores/as ambientais. Toms de Aquino obser-va que h uma certa sabedoria na natureza, que a encaminha para um fim, como se fosse a operao de um sbio. O texto de Alfredo Culleton serve no para que copiemos padres culturais da Idade Mdia para o sc. XXI, mas, sobretudo, serve para compararmos as filosofias da natureza da Idade Mdia com a nossa sociedade contempornea. Isso talvez nos fizesse ver o quanto antiecolgicos ns temos sido.

    No artigo Bacon: a cincia como conhecimento e domnio da natureza, Antonio Severino nos introduz, de um modo claro e sensvel, a um momento muito particular da histria ocidental de transio da mentalidade medieval feudal para a inovadora perspectiva da modernidade mercantilista. Uma revoluo cultural que torna possvel o pensamento inovador deste filsofo, tantas vezes evocado pelo pensamento ambiental em sua crtica da cincia moderna e suas relaes com a natureza. Este artigo, contudo, permite a imprescindvel compreenso do contexto e das razes desta guinada do pensamento que ento se ope centralidade de Deus e desloca o modelo teocntrico medieval, preparando o caminho para centra-lidade do mundo e da Razo humana. O projeto epistemolgico que se expressa em Bacon est prenhe do esprito de seu tempo e encarna o ideal de alcanar um conhecimento racional autnomo. Este pensamento lana as bases do que viria a desenvolver-se no mtodo experimental-matemtico nas mos de Galileu, Newton, entre outros. Suas poderosas metforas sobre o combate aos dolos (dolos da tribo, da caverna, da praa pblica e do teatro) como falsas noes que iludem a mente humana que as toma como se fossem naturais e vlidas per si, em que pese toda a crtica posteriormente feita ao pensamento objetivista, parecem que ainda hoje so eloqentes e valem uma leitura atenta pelos educadores ambien-

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    tais. A profunda compreenso de Bacon e do esprito do tempo que ele representa fundamental para dar substncia ao dilogo crtico que esta educao pretende estabelecer com o projeto cientfico moderno.

    No texto Descartes, historicidade e educao ambiental, Mauro Grn ana-lisa a importncia da compreenso das conseqncias da filosofia cartesiana para a dominao da natureza. Como sabido de quase todos ns, Descartes consi-derado o grande vilo, por ser um dos responsveis pela dominao da natureza pela cincia e tcnica mecanicistas. tambm freqentemente lembrado pelo seu exacerbado antropocentrismo e pela clebre frase, muito citada na literatura de tica Ambiental, que diz que com a aplicao de sua filosofia prtica nos tor-naremos Senhores e Possuidores da natureza. Nesse texto, Mauro Grn foge dessas anlises tradicionalmente feitas na literatura sobre tica Ambiental. Ele nos diz: Meu objeto de estudo nesse texto diferente. Trata-se da influncia de Descartes na perda de memria ocorrida na modernidade. Meu argumento ser que Descartes nos deixou amnsicos com seu projeto de um entendimento puro, livre das influncias culturais (...). A tese que apresento a de que sem memria e historicidade no h conservao ambiental nem educao ambiental, pois os problemas ambientais esto sempre inscritos em uma perspectiva histrica que nos ultrapassa amplamente.

    Com o artigo Espinosa: o precursor da tica e da educao ambiental com base nas paixes humanas, somos apresentados por Bader Sawaia a este fil-sofo do sc. XVII, que desafiou as ortodoxias do seu tempo com um pensamento holista, preocupado sobretudo com a denncia da servido e a proposio de uma tica baseada na liberdade e na alegria, tomada como potncia do ser. Seu pensamento renovador o torna muito prximo dos problemas ecolgicos contem-porneos, contribuindo com pistas importantes para uma tica ambiental que seja tambm a libertao de todas as tiranias entre os humanos e na relao dos humanos e a natureza. Espinosa entende que o sujeito humano submete-se servido porque triste, o que o deixa vulnervel tirania do outro, em quem ele deposita a esperana de felicidade. Com essa convico, denuncia a utilizao poltica das paixes tristes pelos tiranos, especialmente a esperana, a humilha-o e o medo. Como afirma Sawaia: Pode-se concluir, ento, que se ele vivesse hoje denunciaria que o estado de servido imposto natureza pelos homens, o que est gerando a degradao de ambos, decorre de nossa prpria condio de passividade e de submisso (reino das paixes tristes), do qual ele precisa sair para promover bons encontros com o meio ambiente.

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    No artigo Rousseau, o retorno natureza, Nadja Hermann nos mostra como a natureza um conceito filosfico estruturante do pensamento rousseauniano, constituindo-se na base de sua proposta de reforma moral e intelectual da socie-dade e de seu projeto do sujeito virtuoso, em Emlio. Como nos aponta Hermann, a natureza para Rousseau no nem um conceito mstico, tampouco mecni-co, como na fsica contempornea, mas uma unidade pr-emprica que age au-tonomamente, uma unidade perfeita, anterior sociedade, que, projetada sobre a criana, torna possvel pensar a educao virtuosa. Em oposio ao pensamento iluminista de seu tempo, Rousseau questiona a relao entre cincia e virtude, opondo-se idia de progresso que domina seu sculo. Para Rousseau, seguindo as palavras de Hermann: o homem est junto com e na natureza e mantm para com ela um sentimento subjetivo, que lhe permite preserv-la, ao mesmo tempo em que faz um distanciamento para construir sua liberdade. Assim, Rousseau oferece muitos dos argumentos que sero revisitados pela educao ambiental e seu projeto de formao de um sujeito virtuoso que toma contemporaneamente a forma de um sujeito ecolgico.

    Valrio Rohden, em Kant: o ser humano entre natureza e liberdade, ana-lisa a contribuio de Kant para a Educao Ambiental. Kant o principal mentor do Iluminismo do sc. XVIII. Cunhou o famoso lema Ousa pensar, ou seja, faa o uso autnomo de teu entendimento, sem o auxlio de outrem. Kant escreveu trs grandes crticas: a Crtica da Razo Pura (1781), a Crtica da Razo Prtica (1788) e a Crtica do Juzo (1790). Esta terceira crtica, principalmente, tem pro-fundas implicaes para a tica Ambiental e a Educao Ambiental. Nela, Kant afirma que h duas espcies de juzos reflexivos: 1) os juzos de gosto; 2) os juzos teleolgicos voltados, principalmente, para organismos biolgicos. Os dois juzos de gosto e teleolgico so importantes para a Educao Ambiental, pois ambos so animados pelo sentimento de vida. Este sentimento responsvel pelos sentimentos do prazer ou desprazer. Toda a Crtica do Juzo est centrada no princpio de vida como idia articuladora de um organismo. A Crtica do Juzo fundamental para compreendermos como podemos chegar a uma apreciao esttica da natureza e justamente atravs do juzo do gosto, diz Valrio Rohden, que os seres humanos aprendem a amar a natureza e a vida e, portanto, a cuidar dela. Atravs do prazer esttico o ser humano sente-se bem no mundo e isso faz com que ele cuide da natureza. O texto de Valrio Rohden importante no con-texto da educao ambiental brasileira. Afinal, temos visto que o valor econmico do ambiente quase sempre se impe sobre outros valores, como, por exemplo, o

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    esttico. Uma apreciao esttica e moral da natureza descentra o eixo econmico como nico valor de apreciao da natureza.

    Com Frederico Loureiro no artigo Karl Marx: histria, crtica e transformao social na unidade dialtica da natureza, somos apresentados a Marx, um autor fundamental na formao do nosso pensamento social e poltico e que, juntamente com Freud e Nietzsche, foi considerado um dos mestres da suspeita por Paul Ri-couer. Isto quer dizer que Marx est entre os trs pensadores que abalaram mais profundamente as certezas da modernidade ocidental. Cabe a Marx o profundo questionamento da relao capital-trabalho e do modo de produo capitalista, a partir de uma concepo dialtica das relaes sociais e histricas que pe em evidncia as contradies que movem novas reordenaes da realidade, sempre pensada como sntese complexa de mltiplas determinaes. Loureiro mostra a importncia da compreenso de Marx para a educao ambiental ao apresentar, neste artigo, a concepo de natureza e do humano em Marx. Como nos mostra o autor, para Marx a natureza unidade complexa e dinmica, auto-organizada em seu prprio movimento contraditrio. Com isso, Marx se afasta das aborda-gens que definem a natureza como meramente um suporte material da cultura, tomando-a em sua dimenso relacional, sem reduzi-la ao universo biolgico. O ser humano parte desta relao eu-mundo, constitutiva das dimenses materiais e simblicas da vida em sociedade. As conseqncias de uma perspectiva marxiana so evidenciadas por Loureiro: em Educao Ambiental, segundo a perspecti-va marxiana, pensar em mudar comportamentos, atitudes, aspectos culturais e formas de organizao, significa pensar em transformar o conjunto das relaes sociais nas quais estamos inseridos, as quais constitumos e pelas quais somos constitudos, o que exige, dentre outros, ao poltica coletiva, intervindo na esfera pblica, e conhecimento das dinmicas social e ecolgica.

    No artigo Freud e Winnicott: a psicanlise e a percepo da natureza da dominao integrao, o psicanalista Carlos Alberto Plastino apresenta o pen-samento freudiano, bem como explora seus desdobramentos tambm na obra de um de seus importantes seguidores, o psicanalista ingls Donald Winnicott. Em ambos o autor explora as diferentes possibilidades de pensar a natureza, humana e no humana, e suas relaes com a sociedade e a cultura a partir do legado da psicanlise. Plastino nos mostra as tenses do pensamento freudiano, que se constitui inicialmente com base no paradigma mdico e fisicalista de seu tempo, tomando caminhos que, no entanto, vo afast-lo desta perspectiva com a teori-

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    zao sobre o inconsciente, a pulso de morte e a intersubjetividade como cons-titutiva do sujeito psquico. Contudo, ao mesmo tempo em franca dissenso, mas sem romper completamente com os pressupostos das cincias da poca com as quais Freud pensa os fenmenos clnicos que observa, o pensamento freudiano, para Plastino, no consegue superar completamente uma concepo de natureza em oposio ao frgil ser humano em suas tentativas de domesticar em si e no mundo esta fora imperiosa, mantendo uma idia de confronto e dominao com a natureza, em prejuzo da perspectiva de integrao com ela. Como adverte Plas-tino, na perspectiva freudiana, particularmente em seu texto clssico O Mal-Estar da Civilizao, o sofrimento resultaria da impossibilidade de dominar completa-mente a natureza, isto , de cumprir at o fim o projeto prometico da moderni-dade. J Winnicott, mantendo a inspirao freudiana, pode mover-se em direo a uma concepo vitalista de natureza, sustentando a idia de um dinamismo da natureza humana que, acolhida por um ambiente favorecedor, permite vivenciar o sentimento de que a vida vale a pena ser vivida e permite o desenvolvimento do sujeito humano. A perspectiva vitalista, cuja centralidade na dinmica auto-organi-zadora da vida permite pensar a natureza pensada como um ser vivo e complexo, foi excluda pela perspectiva hegemnica na modernidade. Assim, Plastino nos convida a pensar como Winnicott radicaliza, onde Freud no pde faz-lo, a virada em direo a uma concepo que no ope, mas integra natureza e cultura, per-mitindo uma prtica psicanaltica que opera com uma concepo da natureza que se afasta da metfora maqunica e do determinismo modernos.

    Em Heidegger: salvar deixar-ser, Nancy Mangabeira Unger traz o pen-samento de Martin Heidegger e seu profundo questionamento do que poderamos chamar de os desequilbrios do humanismo moderno, denunciado pelo filsofo par-ticularmente nos aspectos da orientao antropocntrica, da hegemonia do pensa-mento do clculo sobre outros modos de pensar e da objetificao e dominao do mundo pela imposio de sentidos redutores da complexidade do real. Assim, na contracorrente destas tendncias empobrecedoras da experincia, o filsofo sugere uma dimenso do pensar que supere esta racionalidade unidimensional, contribuio de particular importncia para o pensamento ecolgico e a educa-o ambiental. Num potico convite aventura de pensar, Nancy conduz o leitor s noes heideggerianas de habitar, em seu sentido tico, restituindo o sentido originrio do ethos grego como ambincia e modo como o ser humano realiza sua humanidade. Como destaca a autora, no pensamento de Heidegger, todo morar autntico est ligado a um preservar. Preservar no apenas no causar danos a

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    alguma coisa. O preservar genuno tem uma dimenso positiva, ativa, e acontece quando deixamos algo na paz de sua prpria natureza, de sua fora originria. Assim tambm, salvar no tem unicamente o sentido de resgatar uma coisa do perigo: salvar restituir, ou dar condies para que ela se revele naquilo que lhe mais prprio. Salvar realmente significa deixar-ser. Como nos alerta Nancy, a radicalidade da crise que vivemos nos pe diante da necessidade de questionar no somente os nossos conceitos e preconceitos, mas a prpria dimenso na qual pensamos. Para esta tarefa o pensamento de Martin Heidegger constitui, sem d-vida, uma das mais importantes referncias de nosso tempo.

    No artigo Hannah Arendt: natureza, histria e ao humana, Isabel Car-valho e Gabriela Sampaio abordam alguns conceitos desta pensadora que tem especial interesse para o pensamento ambiental. As autoras do destaque s contribuies de Arendt sobre as concepes de natureza e histria nos gregos antigos e na modernidade; introduzem um conceito fundamental no pensamento da autora, que o de ao poltica como condio humana de existncia e de convivncia democrtica. Trazem ainda as reflexes da autora sobre o conceito de revoluo, onde Arendt questiona a violncia como o silncio da poltica, e v nas revolues a possibilidade de novos comeos, de acordo com a perspectiva de indeterminao da histria humana. Arendt uma pensadora que, na tradio hei-deggeriana, de quem foi aluna e seguiu como interlocutora mesmo depois de seu exlio da Alemanha, valoriza o pensamento dos gregos antigos e parte deles para pensar alguns dos desdobramentos modernos. Particularmente quanto ao concei-to de natureza faz o contraponto entre a natureza no sentido romano-cristo, cuja traduo latina natura est na origem etimolgica e cultural do nosso conceito de natureza, e a noo grega de physis. Como nos mostram as autoras, para Arendt, a natura est submetida s leis que lhe impem uma regularidade desde o exte-rior, ou seja, s leis da natureza. Quem regula as leis da natureza uma ordem divina que est fora do mundo. O mundo natural no mais um grande organismo vivo, um ser, mas uma coordenao de organismos, impelidos e destinados para um fim determinado por um esprito inteligente que lhe exterior: o Deus Criador e Senhor da natureza. Os seres humanos, enquanto criados por Deus, passam a ser imortais, enquanto a natureza mortal. Inverte-se aqui o modelo grego, onde a physis era eterna e a vida do indivduo humano era mortal. Segundo Arendt, a idia de natureza romano-crist prepara, atravs dos sculos, o contexto cultural para a Revoluo Industrial e sua cosmogonia de um Deus como relojoeiro da natureza e de uma natureza marcada pela dvida cartesiana, o que vai gerar uma

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    profunda reviso das noes de objetividade, de neutralidade e de no interfern-cia que guiou a cincia natural clssica (aristotlica) e medieval.

    Em A outridade da natureza na educao ambiental, Mauro Grn apre-senta as possibilidades da hermenutica filosfica de Gadamer para a educao ambiental. O texto mostra como se d o processo de objetificao da natureza, ou seja, como a natureza tornada mero objeto disposio da razo humana pela cincia moderna. O texto nos permite compreender o papel que a cincia moder-na exerce nos desdobramentos da crise ecolgica e de que modo uma educao ambiental tica e poltica pode intervir nesse processo objetificador. A outridade do outro um dos temas centrais do debate entre Gadamer e Derrida. Gadamer acre-dita que para que ainda haja tempo de uma convivncia dos seres humanos com a natureza necessrio respeitar a natureza como um Outro. Em nossa relao tecnologias da aliana com esse Outro, deveramos aprender a respeitar no s a reciprocidade, mas tambm a diferena. Gadamer nos alerta ao final do texto que ns no podemos simplesmente explorar nossos meios de poder e possibili-dades efetivas, mas precisamos aprender a parar e respeitar o outro como outro, seja esse outro a Natureza ou as crescentes culturas dos povos e naes; e assim sermos capazes de aprender a experienciar o outro e os outros, como outros de ns mesmos, para participar um com o outro.

    Susana Molon, em seu artigo Vygotsky: um pensador que transitou pela filosofia, histria, psicologia, literatura e esttica, mostra desde o ttulo um pensa-mento plural e em constante mudana, que reflete no somente uma caracterstica do mundo e da sociedade, mas tambm da personalidade humana. A questo central para o pensador da linguagem : como os seres humanos, em sua curta trajetria de vida, avanam e se distanciam tanto de suas caractersticas biolgicas iniciais em to diversas direes? Para respond-la, pondera Molon, o ser huma-no no s se adapta natureza, mas a transforma e ao transform-la transforma a si mesmo: ele sente, pensa, age, imagina, deseja, planeja etc.. De acordo com Vygotsky, assimilamos a experincia da humanidade, pois seres humanos no se limitam herana gentica e se libertam devido ao pensamento e linguagem, diferente das demais espcies que se baseiam na percepo. Nascemos em um meio ambiente formado previamente pelo trabalho das geraes passadas, pelo uso de instrumentos, da linguagem e de outras prticas. A partir dessas idias, Molon mostra como o pensador russo oferece uma pluralidade de direes para educadores, pois seu pensamento fundamental para uma teoria da aprendiza-

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    gem que considera a psicologia humana mediada pela cultura. Nos processos de aprendizagem, a linguagem e o simbolismo so usados inicialmente pela criana como mediaes no contato com o meio ambiente e, somente em seguida, apa-recem em nosso contato interior. Esta pode ser a gnese de um sujeito ecolgico, ou socioambiental.

    Marta Pernambuco e Antonio Fernando Gouvea da Silva abrem o texto Paulo Freire: a educao e a transformao do mundo com uma citao da Pe-dagogia da Autonomia, que fala de reas da cidade descuidadas e incita os pro-fessores/as e alunos/as a uma discusso sobre polticas pblicas. Os autores nos fazem perceber que, para Paulo Freire, a educao ambiental no um modismo, mas uma preocupao que j estava presente em 1969, ano da publicao da Pedagogia do Oprimido, trs anos antes, portanto, da 1 Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo em 1972. Apresentam a histria de vida e intelectual deste educador, que esteve durante toda sua trajetria envolvido com aes educativas no Brasil, na Amrica Latina e nos seus ltimos anos com a poltica de educao no Estado de So Paulo. Tornou-se uma refern-cia internacional para a educao. Os autores destacam algumas das idias cen-trais de Paulo Freire, como os conceitos de dilogo e conscincia, e mostram sua atualidade para a educao ambiental, na medida em que incorporar uma orienta-o freireana significa buscar, eticamente, prticas de convivncia social em que as relaes socioculturais e econmicas no se do mais de forma hierarquiza-da, mas com o objetivo de possibilitar novas articulaes entre sujeitos histricos contextualizados, na construo de projetos coletivos de reao desigualdade e excluso social. Isto demanda a construo de novos conhecimentos e formas crticas de interveno na realidade. Neste sentido, uma ao dialgica implica na solidariedade entre pares que se reconhecem como humanos, com a capacidade potencial de serem sujeitos histricos e pronunciar o mundo. Envolve-nos em to-das as dimenses da nossa humanidade, tanto as cognitivas quanto as afetivas, criando utopias e esperanas. Como citam os autores, para Freire (2005) o dilogo verdadeiro implica o pensar tico, a ao politicamente comprometida com o ou-tro, em que no existe a dicotomia entre Homem e Mundo, mas a inquebrantvel solidariedade que, criticamente, analisa e intervm, captando o dever da realidade e superando o pensamento ingnuo.

    O artigo de Eda Tassara O pensamento contemporneo e o enfrentamen-to da crise ambiental: uma anlise desde a psicologia social foi includo na ca-

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    tegoria de posfcio, por tratar-se de um texto que sintetiza um profcuo dilogo entre diversas tradies e pensadores que fundamentam o pensamento cientfico ocidental moderno e os que fazem a crtica destes fundamentos. Tassara faz, as-sim, um amplo recorrido do pensamento contemporneo contemplando os campos aqui privilegiados filosofia, psicologia/psicanlise e educao , explorando suas conseqncias para pensar o ambiente no contexto contemporneo. Escrito no contexto de sua interlocuo com a psicologia, o artigo ultrapassa este mbito, problematizando a questo do mtodo cientfico, da interdisciplinaridade e de uma epistemologia para as prticas ambientais, desafios que so comuns tanto na psi-cologia ambiental como na educao ambiental. Tassara mostra como se constitui o projeto cientfico moderno sob a gide do naturalismo, com a fundao da fsica dinmica e sua matematizao. Deste projeto, comprometido com uma epistemo-logia objetivista e dualista, que supe a no interao entre o sujeito e o objeto do conhecimento, derivou uma metodologia experimentalista-empirista, isolando o conhecimento dela derivado dos valores e crenas do sujeito, e os eventos obser-vados, de fatores externos de interferncia sobre os mesmos. A autora nos mostra como com esta epistemologia nasce uma forma precisa de racionalidade que se refere a um objeto atemporal, a uma lgica atemporal e como esta racionalidade se relaciona com a crise ambiental. Como afirma Tassara: A crise ambiental , portanto, uma crise poltica da razo, que no encontra significaes dentro do esquema de representaes cientficas existentes para o reconhecimento da na-tureza social do mundo, que foi histrica, tcnica e civilizatoriamente produzida. Frente a isso, a autora pensa o papel de uma psicologia ambiental crtica ou Psico-logia Socioambiental, como ao poltica configurada na metodologia da pesquisa-ao. Como podemos ver, trata-se de uma reflexo epistemolgica e metodolgica que concerne tanto ao educador quanto ao psiclogo nas modalidades ambientais destas disciplinas, que lembremos, so fazeres profissionais, que sempre estive-ram profundamente articulados na interveno social.

    Neste sentido, o posfcio sugere no o final do livro mas, se quisermos pen-sar com as palavras de Hannah Arendt, a abertura para um novo comeo, para a aventura da Ao como condio humana, no sentido mais amplo deste conceito que no separa teoria e prtica, poltica e vida. Quisemos assim concluir o livro com um artigo que abre um caminho e nos provoca a prosseguir na reflexo sobre os muitos outros entrecruzamentos possveis entre os pensamentos abordados e suas conseqncias, em termos dos dilemas ambientais e pedaggicos que enfrentamos.

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    Como o posfcio, tambm este livro no esgota todas as tradies que constituem a nossa maneira ocidental moderna de pensar o ambiente. Alm dos autores que aqui contemplamos, h outros mais e o leitor/a j deve estar agora pensando em pensadores que tambm poderiam integrar este campo de dilogo que o livro pretendeu cobrir. Ns tambm, os organizadores, seramos capazes de pensar em autores que no esto aqui mas poderiam estar. Contudo, um projeto editorial tem que encontrar um ponto de negociao entre o inesgotvel mundo das idias e do conhecimento acumulado e a realidade dos espao-tempos e pginas onde um livro se produz. Como toda produo, socio-historicamente contextualizada, fruto da finitude de nossa condio humana, um livro uma obra sempre parcial, uma pista, um convite, sem que seja ele mesmo a realizao da promessa de satisfao deste infinito desejo de saber que o gerou.

    De todo modo, acreditamos que, neste volume, a seleo que fizemos re-sume algumas das principais bases filosficas dos discursos ambientais que atra-vessam nossa prtica como educadores. nosso desejo que este livro seja uma boa companhia para o educador que se lanar nesta aventura filosfica de pensar o ambiente.

    Isabel Cristina de Moura Carvalho Mauro Grn

    Rachel Trajber

  • Os chamados filsofos pr-socrticos viveram por volta do sc. VI a.C. Estes pensadores nos mostram uma dimenso de pensamento mais ori-ginria do que as dicotomias e dualismos que marcaram o desenvol-vimento da filosofia ocidental, com seus desdobramentos na cincia, na tcnica e no modo em que nos habituamos a ver o real e a ns mesmos. Efeti-vamente, podemos observar que, em sucessivas etapas, o Ocidente operou um corte que separou a unidade da diferena, o Um do Mltiplo, a luz da sombra, o corpo do esprito, o homem do cosmos. Esta de-ciso histrica vem sendo lentamente decli-nada, no sentido gramatical do termo, ao longo de 2.500 anos. Com ela, nega-se a necessria tenso entre o Um e o Mltiplo, a razo e o mistrio, a cincia e a poesia. A natureza dessacralizada deixa de ser sujeito para ser objeto: o dilogo e a troca se transformam em projeto de controle e dominao.

    A physis como experincia do realNeste momento de profunda crise de nossas respostas, paradigmas, conceitos

    e preconceitos, baseados em uma tradio milenar de dicotomias, os dizeres, ou fragmentos, destes pensadores nos remetem no somente a um momento histrico anterior a Scrates, de acordo com o nome pelo qual eles foram intitulados pela

    Daquilo que estes pensadores disseram e escreveram, chegaram at ns os chamados fragmentos: frases, sentenas, ou expresses, transmitidas principalmente por historiadores e discpulos de Plato e Aristte-les.

    Os pr-socrticos: os pensadores originrios e o

    brilho do ser

    Nancy Mangabeira Unger*

    * Filsofa, doutora em Filosofia da Educao, professora da Universidade Federal da Bahia.

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    histria da filosofia. Antes, e de modo mais essencial, Heidegger dir, eles so os pensadores originrios, de cuja origem brotaram diferentes expresses histricas e de pensamento. E, sobretudo, so pensadores originrios porque pensam a Origem de todas as coisas, o princpio, que, em grego, se diz arch. Esta palavra, por sua vez, designa no somente o incio de algo; arch a fonte inaudita de tudo que , e de onde tudo brota incessantemente; tambm o poder, a fora, o prncipe, isto , o princpio regente e constitutivo do que estes pensadores chamavam physis. A pergunta, o interesse fundamental dos pensadores originrios, ou pr-socrticos, era pensar a arch da physis. A palavra physis, por sua vez, diz mais do que aquilo que ns consideramos a fsica, ou o mundo fsico. Este mais diz respeito a um sentido de abrangncia, e tambm mostra uma experincia do real que s foi possvel por-que estes pensadores pensaram numa dimenso de pensamento diferente da dimenso na qual pensamos na modernidade.

    No sentido da abrangncia, pertence physis tudo que , em qualquer nvel de ser: uma pedra, uma planta, o ser humano, mas tambm um sentimento, um deus, tudo que uma expresso de physis. Mas embora designe a totalidade do real em qualquer nvel de ser, o sentido de physis no se traduz como a soma aritmtica de todas as coisas.

    Em outro nvel, a prpria palavra physis provm de um verbo, phuein. Este tem o sentido de jorrar, brotar, espocar, como uma fonte que jorra ou uma vege-tao que brota. O crescimento espontneo pelo qual algo vem a ser o que , no por imposio de um fator externo, mas por uma fora que lhe inerente. Nesta compreenso, cada ser (e a totalidade do que existe) experienciado como uma manifestao desta dinmica de surgimento. physis pertencem o cu e a terra, a pedra e a planta, o animal e o homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e os prprios deuses, como a expresso mais brilhante da physis, sua ontofania. E sobretudo, o que esta palavra evoca no somente a pedra e a planta, o deus e o homem, mas ao prprio surgir. Nos indica que a experincia do real vivida pelos gregos daquela poca a experincia da realizao, do constante vir-a-ser, que se presentifica incessantemente ao olhar admirado do ser humano. A procura da arch o princpio que acompanha e constitui a dinmica essencial deste mani-festar; o princpio, a lei unificadora, a fonte perene deste emergir. Neste sentido, physis e arch no so conceitos que podem ser separados como meros instrumentos de classificao: denominam dimenses de um mesmo movimento da realidade se manifestando em sempre novas realizaes, e falam ao mesmo tempo da unidade destas expresses singulares. Talvez se possa afirmar que a intuio essencial dos pensadores pr-socrticos a unidade profunda e dinmica de tudo que . E este

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    constitui o princpio unificador de uma totalidade aberta e multidimensional. Este processo de surgir e se manifestar, de perdurar por um tempo e se recolher, corresponde, na experincia do homem grego do sec.VI, ao prprio dinamismo do real em seu processo de realizao. Este processo mediante o qual os seres aparecem e perduram por um tempo no brilho de sua aparncia se revela, ou se d a conhecer, como Cosmos2.

    Em suas reflexes sobre o pensamento grego originrio, Heidegger mostra que physis e aletheia (palavra que os romanos traduziro mais tarde como veritas) mantm uma correspondncia. Aletheia o prprio desvelar-se da realidade, e esta realidade se diz physis, o movimento do vir--luz, do manifestar-se de todos os seres. Portanto, em sua acepo originria aletheia no uma caracterstica do conheci-mento humano e de seus enunciados. Menos ainda, um simples valor ou uma idia que o homem tem: aletheia o prprio movimento de desvelamento e ocultamento da physis. Que aletheia corresponde inicialmente physis significa ao mesmo tempo que a presena do verdadeiro, isto , do descoberto, no se manifesta primeira-mente a partir do homem, e que esta presena habitada por um retraimento, um velamento insupervel(Haar, p.9). Assim, na experincia grega, a tenso entre luz e mistrio um trao constitutivo da realidade. Neste sentido, o mistrio no aquilo que ainda no pode ser explicado. O mistrio aquilo que, mesmo sendo explicado, no pode ser esgotado, porque a fonte de todo processo de realizao, e por isso transcende a qualquer tentativa humana de controle, posse e deciso.

    Ethos, morada e ambincia no pensamento pr-socrticoOutro conceito importante para compreender o pensamento pr-socrtico

    ethos, de onde provm tica, e que significa originariamente morada. Esta morada se refere ambincia que prpria ao ser humano, ao modo em que este ser realiza sua humanidade. Nesta acepo, a tica no a conveno; uma fora de realizao, um modo de ser e de habitar. Como todo ser humano precisa realizar aquilo que lhe constitutivo. Neste empenho de realizao, ele estabelece uma tessitura de relaes nos mltiplos nveis de sua existncia: com o tempo, com a vida, com o movimento, com a morte, com a natureza, com os outros seres humanos, consigo mesmo.

    Por estas caractersticas, o esforo de dialogar com estes pensadores uma provocao e um convite para nos depararmos com nossos hbitos e automatismos

    A palavra Cosmos provm de cosmei, ornamento. Mas a experincia grega do brilhar e do ornar-se no uma experincia do sujeito: o brilho e a beleza da prpria realidade em sua manifestao como todo ordenado.

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    de pensamento, e com isso, quem sabe, abrir caminho para um pensamento mais livre e mais aberto para repensar a relao do homem contemporneo com o Uni-verso, e seu lugar neste todo.

    Mas por isso mesmo, entrar em contato com os pensadores pr-socrticos fazer a experincia do fracasso de toda tentativa de enquadr-los em nossos esque-mas e classificaes habituais; ter de se dispor a pens-los para alm de qualquer utilidade, mesmo que esta utilidade seja a de um engajamento numa causa militante das mais nobres. Para ouvir o que eles tm a nos dizer necessrio saber acolh-los em sua fala oracular, uma fala que, maneira da prpria physis, s se d a conhecer na medida em que se retrai, uma linguagem cujo dizer nos lembra perenemente que: A morada (ethos) do homem o extraordinrio (Herclito, fr.89).

    O dilogo com pensadores como Anaximandro, Herclito, Parmnides, Em-pdocles pode nos remeter a uma experincia (contida na origem de nossa trajetria ocidental), na qual a sabedoria no reside em ter muitas informaes, mas em man-ter-se em sintonia com a lei que d origem, anima e permeia a physis, a sabedoria de reconhecer na multiplicidade de manifestaes do real, a Unidade profunda de todas as coisas. Esta unidade , por sua vez, dinmica: no exclui, mas inclui, o mo-vimento, o mltiplo, o diverso; inclui o ser humano, que precisa aprender a pr-se a escuta do Cosmos e de seus sinais, encontrando o comum acorde que vibra na totali-dade do real. Para ns, habitantes de um mundo no qual tanto a natureza como um todo quanto o prprio ser humano foram reduzidos condio de objetos cujo ni-co valor est no lucro que podem produzir, o pensamento pr-socrtico convida a um repensar de nossa identidade enquanto humanos e de nosso lugar no universo.

    Na harmonia de tenses opostas (Herclito), no jogo csmico do Amor e da Discrdia (Empdocles), na tenso de Ser e Aparecer (Parmnides), h a possibi-lidade de um outro caminho para o Ocidente. Que este caminho no tenha sido tomado, um fato. Mas a prpria existncia, nas razes de nosso pensamento, deste outro possvel, coloca-nos algumas questes: que a histria de nossa civilizao a histria de uma busca, mas tambm a de um certo desvio? Que este caminho ainda possa ser trilhado? Que trazemos a fora destas origens e a mensagem que ela con-tm, inscritas de alguma maneira em ns mesmos?

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    Os pr-socrticos viveram aproximadamente entre os fins do sc. VII e os meados do sc. V a.C., nas colnias jnicas da sia Menor e do sul da Itlia. Este pensamento originrio nos chega na distncia cronolgica de 2.5OO anos atravs de fragmentos. Filsofos da Grcia Clssica, historiadores, escritores, comentadores, padres da Igreja, citam, em suas obras, passagens dos escritos dos primeiros pensadores. As pesquisas filolgicas e historiogrficas modernas fizeram o levantamento de todas as passagens e, como fragmentos, as reuniram em edies. Trata-se s vezes de perodos inteiros, outras, de algumas sentenas, ou at palavras isoladas. No comeo do sculo passado Hermann Diels elaborou e editou uma coleo completa de todos os fragmentos dos primeiros filsofos. Sua obra constitui a referncia fundamental para as demais edies. O que se segue, portanto, so os fragmentos de alguns destes pensadores originrios, assim como a doxografia, isto , o registro de sua apario em citao indireta pelos comentadores da antigidade. O critrio da escolha destes fragmentos procurou considerar a viabilidade de sua incluso sob esta forma de excerto.

    Tales de Mileto 5 - Tales e sua escola; o cosmos um. (Aet. II, ,2)9 - Tales de Mileto, o primeiro a indagar estes problemas, disse que a gua a origem de todas as coisas e que deus aquela inteligncia que tudo faz da gua. (Ccero, De Deorum Nat. I, 0, 25)Anaximandro de Mileto - Todas as coisas se dissipam onde tiveram a sua gnese, conforme a necessidade, pois pagam umas s outras castigo e expiao pela injustia, conforme a determinao do tempo. 2 - O ilimitado eterno.3 - O ilimitado imortal e indissolvel.Anaxmenes de MiletoFragmento - Como nossa alma, que ar, nos governa e sustm, assim tambm o sopro e o ar abraam todo o cosmos.

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    DoxografiaAnaxmenes de Mileto, filho de Euristrato, considerou o ar como princpio das

    coisas; todas as coisas dele provm e todas as coisas nele se dissipam. Como nossa alma, que ar, nos governa e sustm, assim tambm o sopro e o ar abraam todo o cosmos. (aet. I, 3, 4)7 - Quando o ar se rarefaz, torna-se fogo; e quando se condensa, vento; com maior con-densao, nuvem; se for mais forte, gua; se mais ainda, terra; e com sua extrema conden-sao, transforma-se o ar em pedra. (Hip. I, 7, 3)Doxografia sobre os antigos pitagricos3 - Os assim chamados pitagricos, tendo-se dedicado a matemticas, foram os primeiros a faz-la progredir. Dominando-as, chegaram convico de que o princpio das mate-mticas o princpio de todas as coisas. E, como os nmeros so, por natureza, os primei-ros entre estes princpios, julgando tambm encontrar nos nmeros muitas semelhanas com seres e fenmenos, mais do que no fogo, na terra e na gua, afirmavam a identidade de determinada propriedade numrica com a justia, uma outra com a alma e o esprito, outra ainda com a oportunidade, e assim todas as coisas estariam em relaes semelhan-tes; observando tambm as relaes e leis dos nmeros com as harmonias musicais, pa-recendo-lhes, por outro lado, toda a natureza modelada segundo os nmeros, sendo estes os princpios da natureza, supuseram que os elementos de todas as coisas e que todo o universo so harmonia e nmero. E recolheram e ordenaram todas as concordncias que encontravam nos nmeros e harmonias com as manifestaes e partes do universo, assim como a ordem total. (Arist., metaph. I,5, 985b.)

    Excertos extrados de BORBHEIN, G. Os Filsofos Pr-Socrticos. So Paulo: Cul-trix, 1977.

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    Herclito de feso 8 - O contrrio em tenso convergente; da divergncia dos contrrios nasce a mais bela harmonia.8 - Se no se espera, no se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso.30 - O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, e ser fogo, sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.43 - a presuno que deve ser apagada mais do que incndio.50 - Auscultando no a mim, mas ao Logos, sbio concordar que tudo um.5 - No compreendem, como concorda o que de si difere: harmonia de movimentos contrrios, como do arco e da lira.52 - O tempo uma criana, criando, jogando o jogo de pedras; vigncia de criana.54 - A harmonia invisvel mais forte do que a visvel.60 - Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo.67 - O mistrio dia-noite, inverno-vero, guerra-paz, saciedade-fome, cada vez que entre fumaa recebe um nome segundo o gosto de cada um, se apresenta diferente.7 - (Ter presente tambm) aquele para quem est ausente aonde conduz o caminho.88 - O mesmo vivo e morto, vivendo-morrendo, a viglia e o sono, tanto novo como velho: pois estes se alternando so aqueles e aqueles se modificando so estes.03 - Princpio e fim se renem na circunferncia do crculo.2 - Pensar a maior coragem, e a sabedoria, acolher a verdade e fazer com que se ausculte ao longo do vigor.4 - Para falar com recolhimento necessrio concentrar-se na reunio de tudo, como a cidade na lei, e, com maior concentrao ainda. Pois todas as leis dos homens se alimen-tam de uma lei, a divina; esta que impera o quanto se dispe, basta e excede a todas.9 - A morada do homem, o extraordinrio.

    Excerto extrado de CARNEIRO LEO, E. [editor e tradutor] Herclito. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1980.

  • Aps passar dezenove anos como discpulo de Plato na Academia, Aris-tteles rompeu com os ensinamentos de seu mestre depois da morte deste, elaborando o seu prprio sistema filosfico a partir de uma crtica ao pensamento de Plato, sobretudo Teoria das Idias. Na verdade, o desenvolvimento da tradio filosfica clssica tem em Plato e em Aristteles as suas duas vertentes principais, os seus dois grandes eixos, e principalmente na Idade Mdia, platonismo e aristotelismo inspiraram desenvolvimentos diferentes, e pode-se dizer mesmo rivais, no pensamento filosfico e teolgico.

    Aristteles nasceu em 384 a.C., em Estgira (hoje Strav), na Macednia, filho de um mdico da corte do rei Amintas II e ele prprio teve formao mdica, o que explica seu interesse pela pesquisa emprica e por questes biolgicas, sobre as quais escreveu vrios tratados. Transferindo-se aos dezoito anos para Atenas para estudar, tornou-se membro da Academia de Plato e seu discpulo mais brilhante. Aps a morte de Plato (c.348-7 a.C.), talvez em desacordo com os rumos que os ensinamentos da Academia tomaram sob a liderana de Espeusipo, que valorizava a matemtica, seguiu o seu prprio caminho. Foi durante algum tempo (c.343-340 a.C.) preceptor de Alexandre, filho do rei Filipe da Macednia e futuro conquista-dor de um grande imprio. De volta a Atenas em 335 a.C., fundou a sua escola, o Liceu. Aps a morte de Alexandre (323 a.C.), Aristteles deixou Atenas devido ao sentimento antimacednio ento dominante, vindo a falecer em Calchis, em 322 a.C.

    Aristteles: tica,

    ser humano e natureza

    Danilo Marcondes*

    *Filsofo, doutor em Filosofia, professor da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

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    O pensamento de Aristteles desenvolveu-se sobretudo a partir de uma cr-tica tanto filosofia dos pr-socrticos, quanto filosofia platnica, como podemos ver no livro I da Metafsica, talvez sua principal e mais influente obra filosfica, atravs de um esforo de elaborao de uma concepo filosfica prpria, que no se confundisse com a de seus antecessores e ao mesmo tempo superasse o que con-siderava suas principais falhas e limitaes. Temos assim, em Aristteles, uma re-definio da filosofia, de seu sentido e de seu projeto, e a construo de um grande sistema de saber, muito influente no desenvolvimento da cincia antiga.

    A obra de Aristteles, que conhecemos bem diferente da de Plato. Os tex-tos filosficos gregos, muitas vezes registros por alunos e discpulos dos ensinamen-tos dos mestres, ou obras ditadas pelos mestres a seus discpulos, dividiam-se geral-mente em textos esotricos ou acroamticos, de carter mais especializado e dirigido ao pblico interno da escola, a seus discpulos; e textos exotricos, de carter mais abrangente e de interesse mais amplo e dirigido ao grande pblico, aos interessados em geral. Os dilogos de Plato que chegaram at ns so textos exotricos, o que explica em grande parte seu estilo literrio e sua preocupao didtica. No temos textos esotricos da tradio platnica, e talvez estes textos no tenham existido, o que deu origem a especulaes sobre a assim chamada doutrina no-escrita de Plato. provvel que o ensino esotrico na Academia tenha sido estritamente oral. No caso de Aristteles, ao contrrio, os textos exotricos, dilogos principalmente, do Liceu, no sobreviveram, chegando at ns apenas os textos esotricos, notas de cursos, escritos re-elaborados por discpulos etc., o que pode explicar, em grande parte, o estilo mais rido destes textos, seu carter repetitivo e at mesmo algumas inconsistncias. Aps a morte de Aristteles sua escola desenvolveu-se principal-mente em trs grandes centros: Atenas, a ilha de Rodes e Alexandria. Os textos do filsofo, sua biblioteca inclusive, dispersaram-se por estes trs centros, sendo que muitos se perderam j na Antigidade. A edio do corpus aristotelicum, da obra de Aristteles, que chegou at ns, foi elaborada por volta de 50 a.C. por Andrnico de Rodes, que reviveu a escola aristotlica em Roma, portanto mais de dois sculos aps a morte do filsofo.

    Aristteles concebe a natureza como dotada de uma finalidade, um telos, con-siderando o ser humano como parte da natureza. Essa finalidade consiste em que cada coisa que pertence natureza deve realizar o seu potencial; por exemplo, uma semente se transforma em rvore, um ser humano busca realizar-se plenamente em sua vida e em suas atividades. O processo de realizao do prprio potencial, no caso dos objetos naturais, imanente a eles mesmos, est inscrito em sua prpria natureza e dadas as condies adequadas isso ocorrer. No caso do ser humano, isso

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    depender das decises corretas que este tomar, da, para Aristteles, a importncia da tica, enquanto racionalidade prtica que nos leva a tomar as decises corretas e a avaliar o que nos traz a felicidade, levando uma vida virtuosa. Essa vida virtuosa se define pela moderao ou equilbrio em nossa forma de agir, evitando os excessos ou as deficincias. nisso que consiste a doutrina aristotlica da justa medida, a mestes.

    A tica Nicomaquia, ou tica a Nicmaco, de Aristteles, foi o primeiro trata-do de tica da tradio filosfica ocidental, tendo sido o primeiro a utilizar o termo tica no sentido em que o empregamos at hoje de um estudo sistemtico sobre os valores e os princpios que regem a ao humana e com base nos quais esta ao avaliada em relao a seus fins. O texto ficou conhecido como tica a Nicmaco por ter sido dedicado a Nicmaco, o filho de Aristteles. Sua influncia foi imensa, tendo marcado profundamente a discusso sobre tica subseqente, definindo as grandes linhas de discusso filosfica nesta rea.

    Enquanto que nos dilogos de Plato todas as grandes questes filosficas se encontram fortemente relacionadas e passamos de uma discusso sobre a verdade e o conhecimento para questes de natureza tica, a filosofia de Aristteles de ca-rter mais sistemtico e analtico, dividindo a experincia humana em trs grandes reas: o saber terico, ou campo do conhecimento sobre o mundo natural; o saber prtico, ou campo da deciso e da ao; e o saber criativo ou produtivo, em que fazemos ou produzimos algo, desde uma escultura at um poema.

    No sistema de Aristteles, a tica, juntamente com a Poltica, pertence ao domnio do saber prtico, podendo ser contrastada com o saber terico. Enquanto que no domnio do saber terico, que inclui a metafsica, a matemtica e as cincias naturais, sobretudo a fsica, o objetivo o conhecimento da realidade em suas leis e princpios mais gerais, no domnio do saber prtico trata-se de estabelecer sob que condies podemos agir da melhor forma possvel, tendo em vista o nosso objetivo primordial, que a felicidade (eudaimonia), ou a realizao plena de nosso poten-cial. Esse saber prtico por vezes tambm denominado prudencial por ter como faculdade definidora a prudncia, como por vezes se traduz o termo grego phronesis, podendo ser traduzido tambm como razo prtica, ou capacidade de discernimen-to. No que consiste esta felicidade, e como possvel ao ser humano alcan-la, so as questes centrais da tica a Nicmaco. Para chegar a isso Aristteles examina a natureza humana e suas caractersticas definidoras do ponto de vista tico, as virtu-des. Grande parte da discusso do texto dedicada, portanto, ao conceito de virtude moral (aret), ou excelncia de carter.

  • 36

    Aristteles define seu objetivo como eminentemente prtico e critica (tica a Nicmaco, I, 6) a concepo platnica de forma, ou idia, do Bem pelo seu sentido genrico, excessivamente amplo e distante da experincia humana.

    Para Aristteles, a felicidade (eudaimonia) o objetivo visado por todo ser humano. O termo eudaimonia pode ser entendido como excelncia, principalmente como excelncia naquilo que se pretende realizar. Portanto, na concepo aristot-lica, a felicidade est relacionada realizao humana e ao sucesso naquilo que se pretende obter e que s se obtm na medida em que aquilo que se faz bem feito, ou seja, corresponde excelncia humana e depende de uma virtude (aret) ou qua-lidade de carter que torna possvel esta realizao. No Livro I, da tica a Nicmaco, a felicidade, ou bem-estar, apresentada como aquilo que todos buscamos e como objetivo da tica, em ltima anlise, como um fim em si mesmo. No ltimo livro, na concluso da obra, portanto, Aristteles retoma o conceito de felicidade, escla-recendo que no deve ser confundida com os prazeres, mas que a felicidade em seu sentido mais elevado deve ser entendida como a contemplao das verdades eternas, a atividade caracterstica do sbio ou do filsofo.

    A noo de felicidade central tica aristotlica que, por este motivo, caracterizada como tica eudaimnica, caracterizao esta que se estende s ticas influenciadas por Aristteles em geral e que atribuem igualmente a centralidade ao conceito de felicidade.

    Embora a filosofia grega no tenha se dedicado de modo especial questo do meio ambiente, a concepo grega de integrao do ser humano com o mundo natural considerada um dos pontos de partida do pensamento ecolgico contem-porneo. sobretudo o modo de pensar grego que, ao definir o ser humano como um microcosmo que parte do macrocosmo, abre caminho para a viso do equi-lbrio necessrio entre o ser humano e a natureza. Assim como as leis do Cosmo garantem o seu equilbrio e harmonia, a tica corresponderia, no mundo humano, busca de equilbrio e harmonia equivalentes.

    Aristteles compartilha dessa concepo e considera sempre o ser humano como parte da natureza desde a Metafsica (I,), quando discute o conhecimento como tendo seu ponto de partida no prazer que as sensaes nos causam at seus tratados de biologia, em que apresenta as caractersticas de um organismo equilibra-do, baseando-se na tradio mdica grega.

    H duas caractersticas do pensamento de Aristteles relevantes para a dis-cusso de uma tica do meio ambiente. Em primeiro lugar, sua concepo de que

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    o ser humano deve ser visto como integrado ao mundo natural, como parte da natureza. Em segundo lugar, sua concepo de que o saber tcnico (tchne) ou ins-trumental, por meio do qual o ser humano intervm na natureza, ou seja, no meio ambiente, deve ser subordinado deciso racional e ao saber prudencial (tica a Nicmaco, VI, 4 e 5).

    O primeiro texto da tica a Nicmaco que selecionamos ilustra a concepo aristotlica de virtude como resultado do hbito. Neste texto, contrariamente a Pla-to no Mnon, Aristteles afirma que a virtude (aret, aqui traduzida por exceln-cia) pode ser ensinada, sendo este ensinamento um dos objetivos centrais da filoso-fia. A virtude no inata, mas resulta do hbito (ethos, raiz do prprio termo tica, como lembra Aristteles) e do costume, ou seja, necessrio pratic-la, exerc-la efetivamente para nos tornarmos virtuosos. Selecionamos em seguida o captulo 7 do Livro I em que encontramos a caracterizao aristotlica de felicidade. O tercei-ro texto da tica a Nicmaco que apresentamos contm a doutrina do meio termo ou justa medida (mestes), um dos princpios fundamentais de sua tica. A ao correta de um ponto de vista tico deve evitar os extremos, tanto o excesso, quanto a falta, caracterizando-se assim pelo equilbrio, ou justa medida. A sabedoria prtica (phronesis) consiste na capacidade de discernir esta justa medida, cuja determinao poder variar dependendo das circunstncias e das situaes envolvidas. Nesse texto Aristteles apresenta um quadro das virtudes ou qualidades e dos vcios ou faltas, definindo a justa medida em cada caso. A moderao, ou temperana (sophrosyn), a caracterstica do indivduo equilibrado no sentido tico. importante notarmos como Aristteles se preocupa em dar conselhos prticos. Conclumos com um texto da Poltica, em que Aristteles enfatiza a especificidade da natureza humana e seu carter poltico.

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    A virtude pode ser encarada sob dois pontos de vista: enquanto resultado da intelign-cia, e enquanto produto dos costumes. No primeiro caso ela pode, na maior parte das vezes, ser ensinada, sendo, pode-se dizer, suscetvel de gerao e de crescimento; por esse motivo necessita de tempo e de experincia; mas, no segundo caso, nasce do ethos (cos-tume, hbito), da se deriva seu nome de tica. Isso nos permite perceber claramente que nenhuma virtude moral existe em ns enquanto produto imediato da natureza, porque nada que provm da natureza pode ser alterado pelos costumes. Assim, a pedra, cuja tendncia natural puxa sempre para baixo, nuca alterar esta direo, mesmo que nos es-forcemos para acostum-la a uma direo contrria, lanando-a no ar seguidamente. Em suma, no h qualquer meio de, atravs dos costumes, alterar as inclinaes e tendncias impressas pela natureza. Portanto, as virtudes nunca so em ns fruto da natureza, nem evidentemente contrrias natureza, mas a natureza simplesmente nos torna capazes de receb-las, cabendo a ns aperfeio-las atravs do hbito. Alm do mais, trazemos em ns logo ao nascer as faculdades especficas daquilo que existe em ns como produto da natureza, mas s seguidamente que vimos produzir os atos, tal como claramente ocorre com os sentidos. No foi por ver ou ouvir repetidamente que adquirimos esses sentidos, ao contrrio, j os tnhamos antes de us-los e no passamos a t-los por us-los. No caso das virtudes, contudo, ns as adquirimos por t-las praticado, tal como acontece com as artes. A prtica nosso principal meio de instruo no caso das coisas que s fazemos bem quando as sabemos fazer. Por exemplo, construindo que nos tornamos pedreiros, tocando lira que nos tornamos msicos; do mesmo modo, praticando a justia que nos tornamos justos, agindo moderadamente que nos tornamos moderados e corajosa-mente que nos tornamos corajosos. Aquilo que se passa na sociedade prova disso, pois os legisladores formam os bons cidados habituando-os a agir bem. [...] Se no fosse assim no seriam necessrios os mestres, pois todos os homens teriam nascido, bem ou mal, dotados para as suas profisses. Logo, acontece o mesmo com as vrias formas de excelncia moral, na prtica dos atos em que temos que nos engajar uns com os outros, tornamo-nos justos ou injustos; na prtica de atos em situaes perigosas e adquirindo o hbito de sentir receio ou confiana, tornamo-nos corajosos ou covardes. O mesmo se aplica aos desejos e ira; algumas pessoas se tornam moderadas e amveis, enquanto outras se tornam concupiscentes e irascveis, por se comportarem de maneiras diferentes nas mesmas circunstncias. Em outras palavras, nossas disposies morais correspondem s diferenas entre nossas atividades.tica a Nicmaco (II.)

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    em nossa relao com os outros que agimos de modo justo e demonstramos coragem e outras virtudes, respeitando o direito dos outros em todos os contratos e aes mtuas de todo tipo, assim como em nossos sentimentos, pois todas essas so experin-cias humanas. Algumas delas so mesmo consideradas como estando de vrios modos intimamente relacionadas com sentimentos. A prudncia est fortemente relacionada ao bem moral e o bem moral com a prudncia, uma vez que os princpios fundamentais da prudncia so dados pelas virtudes morais, e o padro correto para as virtudes estabe-lecido pela prudncia.A Felicidade (X. 8.)

    A virtude moral uma justa medida, um meio termo entre dois vcios, o excesso ou a falta, e consiste em encontrar o meio termo nos sentimentos e nas aes. Por esse motivo difcil fazer o bem, porque em cada caso particular difcil encontrar o meio termo.[...] bem fcil sentir raiva, isso pode acontecer com qualquer algum, ou gastar dinheiro, mas ter bons sentimentos e agir corretamente em relao a outras pessoas no momento certo, por boas razes e de maneira certa bastante raro, sendo um ato exce-lente e louvvel. [...] Uma vez que extremamente difcil conseguir o meio termo, de-vemos tentar o que for mais prximo, escolhendo o menor dos males e isso se consegue da maneira seguinte. Devemos prestar ateno aos erros em que temos mais tendncia a incorrer (porque cada um de ns tem diferentes tendncias e descobrimos isso pelo prazer ou a dor que algo nos causa), e devemos ento nos esforar para seguir a direo oposta, pois alcanaremos o meio termo forando-nos a evitar o fracasso, assim como algum que tentar endireitar um pedao torto de madeira. Em todas as circunstncias devemos estar especialmente atentos ao prazer e s coisas prazerosas, porque no somos juzes imparciais do prazer.[...] Resumindo, seguindo essas regras temos mais condies de alcanar o meio termo. Mas presume-se ser isso difcil, especialmente em casos par-ticulares, porque no fcil determinar quando justo sentir raiva e em relao a quem, ou durante quanto tempo. Com efeito, por vezes, louvamos aqueles que demonstram fraqueza e os chamamos de pacientes, e algumas vezes aqueles que demonstram fora e os chamamos de corajosos. Contudo, aquele que se desvia, mesmo que apenas um pouco, da medida certa, seja para mais ou para menos, no censurado, apenas aquele que se excede porque chama a ateno. Porm no fcil definir a regra segundo a qual at que ponto algum pode incorrer em erro sem ser censurado, assim como no fcil definir qualquer outro objeto de percepo.

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    Nota do autor: Para uma leitura em portugus do conjunto desta obra, recomendo os textos de Aristteles

    encontrados na edio da coleo Os pensadores (Ed. Abril/Nova Cultural, So Paulo, 2000), assim como a

    edio da tica a Nicmaco da Ed. Martin Claret, So Paulo, 2003, traduo de Pietro Nassetti.

    Est claro ento que em toda a nossa conduta o mais recomendvel sempre o meio termo. Mas devemos nos inclinar por vezes para o excesso, por vezes para a falta, pois dessa maneira, com mais facilidade, alcanamos a justa medida, ou seja, o procedi-mento correto.tica a Nicmaco (II. 9)

    evidente que a cidade (polis) faz parte das coisas naturais e que o homem por natureza um animal poltico (zoon politikn). E aquele que por natureza, e no simples-mente por acidente, se encontra fora da cidade ou um ser degradado ou um ser acima dos homens, segundo Homero (Ilada IX, 63) denuncia, tratando-se de algum sem li-nhagem, sem lei, sem lar.

    Aquele que naturalmente um marginal ama a guerra e pode ser comparado a uma pea fora do jogo. Da a evidncia que o homem um animal poltico, mais ainda que as abelhas ou que qualquer outro animal gregrio. Como dizemos freqentemente, a natureza no faz nada em vo; ora, o homem o nico dentre os animais a ter linguagem (logos). O simples som (phon) uma indicao do prazer e da dor, estando portanto presente em outros animais, pois a natureza destes consiste em sentir o prazer e a dor e em express-los. Mas a linguagem tem como objetivo a manifestao do vantajoso e do desvantajoso, e portanto do justo e do injusto. Trata-se de uma caracterstica do homem ser ele o nico que tem o senso do bom e do mau, do justo e do injusto, bem como de outras noes deste tipo. a associao dos que tm em comum essas noes que cons-titui a famlia e o estado.

    Poltica, I, 25a.

    As citaes de Aristteles aqui apresentadas so tradues feitas pelo autor com base na obra tica a Nicmaco, contemplando vrias edies existentes, em portugus, in-gls, francs e tambm no texto original grego.

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    Referncias

    BARNES, J. Aristteles. So Paulo: Loyola, 200.CAUQUELIN, A. Aristteles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 995.CRESSON, A. Aristteles. Lisboa: Edies 70, 98.MILCH, R. Aristteles: tica nicomaquia. [Apontamentos Europa-Amrica]. Sin-

    tra: Europa-Amrica, 99.MORRALL, J. Aristteles. Braslia: UnB, 985.PHILIPPE, Marie-Dominique. Introduo Filosofia de Aristteles. So Paulo: Pau-

    lus, 2002.SIQUEIRA, J.C. tica e meio ambiente. So Paulo: Loyola, 998.

  • Alfredo Culleton**

    Em filosofia, por natureza entende-se o conjunto de tudo o que existe, o mundo, o universo, mas igualmente o que singulariza algo existente, seu princpio ou sua essncia. O radical latino, assim como seu equivalen-te grego, remetem ao que nasce (nasci) e se desenvolve (fomai, brotar, crescer). A natureza est ento do lado do vivente, do que susceptvel de reprodu-o e de corrupo: o instvel. Ao mesmo tempo, a natureza o que se mantm, o permanente, o estvel, ao lado do ser e da ordem.

    Para os pr-socrticos, o pensamento tem como objetivo principal o que en-to se chamava fsis, isto , a produo do mundo material, e chamavam esta inves-tigao de histora per fseos, um inquirir sobre a natureza, uma fsica que, mesmo sendo uma atividade abstrata, tem como regra a observao. Esta histria natural, esta observao das coisas a busca de uma compreenso das estruturas que devem ser as mesmas nos homens, na organizao poltica e na tica. Para os gregos clssi-cos, a tica est ligada fsica, as diferentes concepes da histria natural determi-nam a relao entre a natureza e a lei, entre fsis e nmos. Uma relao entre o que e o que deve ser a partir da observao. a idia de correspondncia entre a ordem csmica e a ordem da cidade sob a soberania de uma mesma lei universal qual o homem deve se elevar para escapar do mundo da violncia e da desordem.

    * As citaes foram extradas de FERNANDEZ, Clemente SJ. Los Filsofos Medievales. Seleccin de Textos.

    Madrid: BAC, 1979. vols. I e II. A traduo (verso) para o portugus do autor do artigo.** Filsofo, doutor em filosofia, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

    Santo Agostinho e So Toms: a filosofia da

    natureza na Idade Mdia*

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    Veremos como este conceito se desenvolve durante a Idade Mdia. Devemos esclarecer que este perodo do pensamento difcil de delimitar porque se estende no tempo entre o sc. V at o XV, no espao desde o norte da frica at a Irlanda, e culturalmente abarca filsofos rabes, judeus e cristos como em nenhum outro momento da histria da filosofia; isto enriquece em diversidade e torna difcil en-quadrar uma nica posio a respeito da filosofia da natureza na Idade Mdia. De toda maneira, podemos destacar dois momentos importantes:

    a) Um primeiro momento mais teolgico, desenvolvido pelos padres da Igre-ja, entre os que inclumos Santo Agostinho, cujo conceito de natureza par-te do pressuposto de uma livre criao de Deus no tempo. Na origem de todo ser criado h, portanto, uma ao livre da vontade divina, que se no fosse assim, se no dependesse de um ato deliberado de Deus, todo o universo estaria lanado na contingncia, e onde a vontade divina pode mudar a seu bem entender e a qualquer momento o curso dos acontecimentos, as leis e propriedades dos seres criados, de maneira que nenhuma certeza possvel sobre a natureza ou causa de algo, dado que nada acontece fora da vontade de Deus ou de sua permisso. Por isso, todo ser criado por Deus do nada e , por isso, essencialmente bom.Vejamos algumas passagens de Agostinho no seu texto Da natureza do bem contra os maniqueus, captulo I:

    Deus o supremo e infinito bem, sobre o qual no h outro: o bem imutvel e, portanto, essencialmente eterno e imortal. Todos os bens da natureza tm nele a sua origem, mas no so da sua mesma natureza. O que da mesma natureza que ele no pode ser mais que ele mesmo. Todas as demais coisas, que tm sido feitas por ele, no so o que ele . E dado que s ele imutvel, tudo o que ele fez do nada est submetido mutabilidade e mudana. to onipotente, que do nada, isto , do que no tem ser, pode criar bens grandes e pequenos, celestiais e terrenos, espirituais e corporais. tambm extremamente justo. Por isso, o que tirou do nada no o igualou ao que produziu da sua prpria natureza. De onde se tira que os bens concretos particulares, tanto os grandes como os pequenos, qualquer que seja o seu grau na hierarquia dos seres, tm em Deus seu princpio ou causa eficiente.

    So os lderes cristos dos primeiros sculos que buscam pensar de maneira mais sistemtica a sua f e dar-lhe razes, possuindo grande influncia sobre a teologia desenvolvida posteriormente. Isto que chamo primeiro momento no deve ser entendido unicamente em sentido cronolgico, mas, anterior, hierarquica-mente, no s no cristianismo como nos outros monotesmos medievais, o judaico e o islmico.

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    Por outra parte, toda natureza, em si mesma considerada, sempre um bem: no pode provir mais do que do supremo e verdadeiro Deus, porque todos os bens, os que por sua excelncia se aproximam ao Sumo bem e os que por sua simplicidade se afastam dele, todos tm seu princpio no Bem supremo.Em conseqncia, todo esprito est sujeito mudana, e todo corpo provm de Deus, e esprito e matria se reduz toda a natureza criada. Portanto se segue necessariamente que toda a natureza esprito ou corpo. O esprito sujeito a mutao uma natureza criada, ainda quando superior ao corpo.

    Ainda que a influncia de Plato sobre Agostinho, e muitos dos padres da Igreja, tenha sido grande, vale a pena destacar alguns elementos distintivos a respeito do platonismo, como o de considerar o corpo e a matria como essencialmente bons mesmo que corruptveis. No mesmo texto diz a seguir, no captulo X:

    Todas as naturezas corruptveis so naturezas boas enquanto tm recebido de Deus o ser; mas no seriam corruptveis se tivessem sido formadas dele, porque ento seriam o que o mesmo Deus. Conseqentemente, qualquer seja o modo, a beleza e a ordem que as constitui, possuem ou encerram estes bens porque foram criadas por Deus, e se no so imutveis porque foram tiradas do nada.

    b) O segundo momento se desenvolve a partir da virada do segundo milnio, com a introduo dos textos de Aristteles pelos rabes na Europa e a fundao das universidades. Sobretudo nas faculdades de Artes e Medi-cina das universidades de Paris, Oxford e Bolonha comea a se difundir o estudo dos livros sobre a natureza de Aristteles. Apesar de Aristteles ser considerado um materialista que entendia que a matria era eterna, isto , no criada, e seu saber um saber pago, os cristos ficam fascinados pela sua clareza e mtodo analtico. A leitura que fazem dos textos de Aristteles mediada pelas leituras e comentrios j realizados pelos rabes Avicena e Averrois, e a sntese consagrada do rabino, nascido na pennsula Ibrica sob o domnio dos rabes, chamado por Toms de Aquino de O Sbio Judeu, Maimnides.

    De tal maneira foram se familiarizando com o pensamento greco-rabe que acabaram por aceit-lo, assum-lo e concili-lo com as premissas teolgicas daquele movimento. Os prprios telogos cristos ficam encantados pelo argumento filo-sfico e pela cincia da natureza, conseguindo equacionar o saber teolgico com o saber profano.

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    O grande paradigma deste segundo momento na filosofia da natureza na Idade Mdia regido pela idia de que h um princpio do qual dependem o Cu e a natureza, que o princpio da Razo, cincia das cincias, regra das coisas que nem Deus pode modificar. Deus se rege por razes, nem Deus escapa ao princpio de razo. Esse princpio a razo de ser de algo, a sua causa eficiente e final inteligente e inteligvel2, isto , com capacidade de ser entendido por um sujeito que racional. A criao no algo de contingente, mas com sentido, e esse sentido no um jogo ou capricho de um criador, mas uma ordem racional universalizvel no sentido de que pode ser compreendido por qualquer sujeito racional, uma causa eficiente eterna, natural, necessria e no livre. O prprio Deus age racionalmente e pode ser conhecido por esta via.

    Da eternidade e necessidade do pensamento divino deriva a eternidade e necessidade do mundo e de tudo o que existe sobre a terra. Por isso, conhecer a or-dem do todo conhecer a ordem da parte e conhecer a ordem da parte conhecer a ordem do todo, e sobretudo h conhecimento possvel independente de Deus, possvel a verdade fora da revelao. Tudo capaz de ser conhecido pelo homem, desde que tenha mtodo, porque tudo est formatado na mesma chave racional, tudo tem um sentido holstico, nada sobra e nada por acaso, assim como tudo tem uma finalidade predeterminada e no pode ser utilizada de qualquer maneira. Dir Toms de Aquino (225-274):

    Todo agente tem alguma inteno ou desejo de finalidade. E a todo desejo de finalidade precede algum conhecimento, que coloque diante de si a finalidade e dirija os meios ao fim. Assim como a flecha tende ao alvo pela direo que lhe imprime quem a lana, assim o caso de todos os seres que obram por ne-cessidade natural: sua operao est determinada pelo entendimento criador da natureza; por isso diz o filsofo (2 Phys. Text 75) que a obra da natureza uma obra da inteligncia. (Toms de Aquino, Comentrios s Sentenas de Pedro Lombardo. Distino XXXV Questo art .)Por isso Deus no pode fazer com que o que aconteceu no tenha sucedido; assim como no pode fazer nenhum daqueles extremos nos que o contrrio do predicado esteja includo na definio do sujeito, como, por exemplo, fazer que o homem no seja racional, ou que o tringulo no conste de trs lneas. Tambm se segue que no pode fazer que uns opostos se dem ao mesmo tempo no mesmo sujeito; na definio de um contrrio v includa a privao de um outro, e na definio de privao se inclui a negao. (Toms de Aqui-no, Comentrios s Sentenas de Pedro Lombardo. Distino XXXV Questo 2 art 2.)

    Inteligvel e inteligente vm do latim legere, ligere, e tanto pode ser entendido como lei ou como leitura, ou lei que pode ser lida por um ser inteligente, um ser que pode ler dentro, inte.

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    No pargrafo a seguir quero evidenciar a relao que Toms faz de Deus e a criao mediada pelo entendimento; a criao no gerao espontnea, mas razo e entendimento, premeditao divina. No final do pargrafo h um elemento im-portante, que o de que a natureza a razo e medida do homem.

    A mesma relao que tem o entendimento do artfice s obras executadas, tem o entendimento divino a todas as criaturas; ...por isso essa ordem est primeiro na cabea de Deus; depois, vm os dons de Deus, que se manifestam nas criaturas, consideradas tanto universal como particularmente; ...assim, o que anterior a razo do que posterior; e desaparecido o que posterior, perdura o que anterior, mas no ao contrrio. O entendimento divino a razo da natureza considerada absolutamente e nos singulares; e a natureza a razo do entendimento humano, e, de algum modo, a sua medida. (Toms de Aquino, Questo Quodlibetal VIII, art .)

    Enquanto que para Plato e a teologia neoplatnica os corpos naturais so considerados fontes de desvios e corrupo, para Toms os corpos naturais so vir-tuosos:

    Suposto isto, no difcil compreender como se movem e obram para o fim os corpos naturais, ainda que caream de conhecimento. Pois tendem ao fim como a flecha tende ao alvo dirigido pelo arqueiro. Porque assim como a flecha alcana a inclinao a um fim determinado pelo impulso do arqueiro, assim tambm os corpos naturais logram se dirigir aos seus prprios fins por seus motores naturais, dos quais recebem suas formas, virtudes e movimento.Isto demonstra tambm que qualquer obra da natureza efeito de uma subs-tncia intelectual, pois o efeito se atribui mais bem ao primeiro motor, que dirige ao fim, que aos instrumentos dirigidos por ele. Por isso vemos que as operaes da natureza se encaminham ordenadamente ao fim, como se fossem operaes de um sbio. (Toms de Aquino, Suma contra Gentiles. Livro I, Cap. XXIV.)

    Quero concluir esta pequena sntese comentando a seguinte expresso extra-da do cap. CXXIX da Suma contra gentiles, que diz assim: A uma coisa lhe convm naturalmente tudo com o que tende em direo ao seu bem natural, e o contrrio lhe naturalmente inconveniente. Poderamos, tranqilamente, substituir o termo natural por racional sem perigo de estar violentando o iderio de Toms de Aquino, Maimnides ou Averois. Para estes trs maiores expoentes do monotesmo ociden-tal, esse conceito de razo estava vinculado a uma pr-cincia que se desenvolve na histria, mas contemporaneamente podemos entender a razo como uma prepo-sio de verdade, argumentativa, dialgica e com pretenses de universalidade, e a frase continua vlida.

  • Antonio Joaquim Severino*

    Estamos em pleno sc. XVI quando nasce Francis Bacon em Londres, no dia 22 de janeiro de 56, de famlia poltica ligada corte real da Ingla-terra, no reinado da Rainha Elizabeth I. Em decorrncia dessa condio, recebeu educao voltada para a poltica e para a vida na corte. Mas se seu pai era assim envolvido com a poltica, sua me, Anna Cook, era uma mulher culta, de formao calvinista em teologia e de mentalidade puritana no campo mo-ral, e lhe deu formao austera, de fundo religioso. A Europa estava atravessando significativa etapa de sua formao histrico-cultural, em que vai se completar a transio da mentalidade medieval feudal para a inovadora perspectiva da moder-nidade mercantilista. No bojo de mudanas radicais no plano da infra-estrutura econmica e social, ocorria tambm uma autntica revoluo cultural em todas as dimenses da vida humana, capitaneada por uma revoluo epistemolgica, res-ponsvel pelo projeto iluminista da modernidade, que est ento se instaurando. Os pensadores da poca comeavam a praticar o conhecimento de forma autno-ma, dispensando a interferncia de foras transcendentais, to presentes e relevantes para os pensadores medievais. Mas ressaltar a autonomia da razo natural humana era, ao mesmo tempo, afirmar a prpria autonomia ontolgica do homem e do mundo. Esse naturalismo ontolgico sustentado pelo racionalismo epistemolgico leva a filosofia moderna a defender a centralidade do mundo, como natureza fsica, e do homem, no interior dessa natureza. Trata-se de uma posio de firme cosmocen-trismo e de antropocentrismo, tendncias que levam a um deslocamento de Deus do centro da realidade, questionando o teocentrismo medieval.* Filsofo, doutor em filosofia, professor da Universidade de So Paulo.

    Bacon: a cincia como

    conhecimento e domnio da

    natureza