aury lopes júnior

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    RIBEIRO PRETO (SO PAULO)

  • ISBN 978-85-02-16137-5

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Lopes Jr., AuryDireito processual penal / Aury Lopes Jr. 9. ed. rev. e atual. So Paulo : Saraiva, 2012.

    1. Processo penal Brasil I. Ttulo. II. Srie.

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Brasil : Processo penal : Direito penal 343.1(81)

    Diretor editorial Luiz Roberto CuriaGerente de produo editorial Lgia Alves

    Editora Thas de Camargo RodriguesAssistente editorial Aline Darcy Flr de Souza

    Produtora editorial Clarissa Boraschi MariaPreparao de originais, arte, diagramao e reviso Know-how Editorial

    Projeto grfico Mnica Landi

    Servios editoriais Elaine Cristina da Silva e Kelli Priscila PintoCapa Casa de Ideias / Daniel Rampazzo

    Produo grfica Marli RampimProduo eletrnica Know-how Editorial

    Data de fechamento da edio: 1-3-2012

    Dvidas?

    Acesse www.saraivajur.com.br

    Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prvia autorizao daEditora Saraiva. A violao dos direitos autorais crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do CdigoPenal.

  • Para o velho Aury, pelo exemplo de vida e de superao.

    Para minha me, simplesmente por tudo.

    Faltam palavras que deem conta da complexidade dos sentimentos que me unem a vocs.

    Agradeo a Deus, Ele sabe por qu...

  • Thaisa e Carmella...

    Por vocs conseguiria at ficar alegre

    Pintaria todo o cu de vermelho

    Eu teria mais herdeiros que um coelho

    Eu aceitaria a vida como ela

    Viajaria a prazo pro infernoEu tomaria banho gelado no inverno

    Eu mudaria at o meu nome

    Eu viveria em greve de fome

    Desejaria todo dia,A mesma mulher...

    (Por Voc/Baro Vermelho)

  • Mara....

    J me acostumei com a tua voz

    Com teu rosto e teu olhar

    Me partiram em dois

    E procuro agora o que minha metade

    Quando no ests aqui

    Sinto falta de mim mesmo

    E sinto falta do meu corpo junto ao teu(Sete Cidades/Legio Urbana)

  • Em homenagem a

    EDUARDO COUTURE E JAMES GOLDSCHMIDT, CUJAS LIES DE HUMANIDADE E ALTRUSMO DEVERIAM SERVIR DE INSPIRAO PARA ACONSTRUO DE UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA E TOLERANTE

    (...)En el mes de octubre de 1939 recib una carta del Profesor Goldschmidt, que fue Decano de la Facultad de

    Derecho de Berln, escrita desde Cardiff, en Inglaterra. Ya comenzada la guerra, en ella me deca lo siguiente:conozco sus libros y tengo referencias de Ud. Estoy en Inglaterra y mi permiso de residencia vence el 31 dediciembre de 1939. A Alemania no puedo volver por ser judo; a Francia tampoco porque soy alemn; a Espaamenos an. Debo salir de Inglaterra y no tengo visa consular para ir a ninguna parte del mundo.

    A un hombre ilustre, porque en el campo del pensamiento procesal, la rama del derecho en que yo trabajo, lafigura de Goldschmidt era algo as como una de las cumbres de nuestro tiempo, a un hombre de esta inslitajerarqua, en cierto instante de su vida y de la vida de la humanidad, como una acusacin para esa humanidad lefaltaba en el inmenso planeta, un pedazo de tierra para posar su planta fatigada. Le faltaba a Goldschmidt el mnimode derecho a tener un sitio en este mundo donde soar y morir. En ese instante de su vida a l le faltaba el derecho aestar en un lugar del espacio. No poda quedar donde estaba y no tena otro lado donde poder ir. Pocas semanasdespus Goldschmidt llegaba a Montevideo.

    Yo nunca olvidar aquel viaje hecho ya en pleno reinado devastador de los submarinos. Vino en un barco ingls,el Highland Princess, en un viaje de pesadilla donde a cada instante un submarino poda traer la muerte, con chalecosalvavidas siempre puesto, viajando a oscuras. Angustiado lo vi llegar una tarde de otoo llena de luz, serenidad ycalma a Montevideo.

    Recuerdo de ese instante una ancdota conmovedora. Me dijo Goldschmidt que l no deseaba un apartamentojunto al mar. Prefera algn lugar cerca del campo. Cuando vio el mar desde Pocitos adonde le habamos llevado, noquiso saber nada de l. Me respondi entonces: Yo ya s a dnde conduce.

    Eran un hombre y una civilizacin que se repelan, se odiaban recprocamente. El vena a ver en el mar el smbolodel odio; a un Continente que lo haba expulsado de su seno.

    Recuerdo tambin que esa misma tarde, pocos minutos despus de llegar, me dijo lo siguiente:

    Ud. tendr la bondad de acompaarme a la Polica.

    Y qu tiene Ud. que hacer con la Polica?le contest.

    Tengo que inscribirme como llegado al pas; dar cuenta a la Polica de que vivo aquf, fue su rplica.

    Pero Ud. no tiene obligacin de hacerlo, le dije.

    De manera que la Polica no sabe que yo estoy aqu, ni sabe dnde yo vivo?

    Se le llenaron los ojos de lgrimas y dijo:

    Esto es la libertad.

    (...)Pocos das ms tarde preparaba su tercera clase. Eran como las nueve de la maana. Goldschmidt tuvo la

  • Sumrio

    PrefcioProf. Dr. Jacinto Nelson de Miranda CoutinhoPrefcioProf. Dr. Geraldo PradoPrefcioProf. Dr. Cezar Roberto BitencourtNota do Autor Primeira Edio do Volume I

    Nota do Autor para esta Edio

    Captulo I

    UM PROCESSO PENAL PARA QU(M)? BUSCANDO O FUNDAMENTO DA SUA EXISTNCIA

    1. Breve Anlise da Histria da Pena de Priso e do Processo Penal

    1.1. Breve Histria da Pena de Priso

    1.2. Da Autotutela ao Processo Penal

    2. Constituindo o Processo Penal desde a Constituio. A Crise da Teoria das Fontes. A Constituio como Abertura do Processo Penal

    3. Superando o maniquesmo entre interesse pblico versus interesse individual. Inadequada Invocao do Princpio da Proporcionalidade

    4. A Influncia dos Movimentos Repressivistas. Tolerncia Zero para Qu(m)? Desvelando a Hipocrisia do Discurso

    5. Princpio da Necessidade do Processo Penal em Relao Pena

    6. Instrumentalidade Constitucional do Processo Penal

    7. Quando Cinderela ter suas Prprias Roupas? Respeitando as Categorias Jurdicas Prprias do Processo Penal (ou Abandonando a Teoria

    Geral do Processo)

    Captulo II

    TEORIAS ACERCA DA NATUREZA JURDICA DO PROCESSO (PENAL)

    1. Introduo: As Vrias Teorias

    2. Processo como Relao Jurdica: A Contribuio de Blow

    3. Processo como Situao Jurdica (ou a Superao de Blow por James Goldschmidt)

    4. Quando Calamandrei Deixa de Ser o Crtico e Rende Homenagens a Un Maestro di Liberalismo Processuale. O Risco Deve Ser Assumido: ALuta Pelas Regras do Jogo

    Captulo III

    SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS INQUISITRIO E ACUSATRIO: SUPERANDO O REDUCIONISMO ILUSRIO

    DO SISTEMA MISTO

    1. Sistema Acusatrio

    2. Sistema Inquisitrio

  • Prefcio

    PROF. DR. JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO

    Quanta iluso!... O cu mostra-se esquivoe surdo ao brado do universo inteiro...de dvidas cruis prisioneiro,tomba por terra o pensamento altivo.

    (Tobias Barreto Ignorabimus. In Livro dos Sonetos:1500-1900 (poetas portugueses e brasileiros). Org. de Sergio Faraco.

    Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 50.)

    Esse quarteto de rima entrelaada do soneto de Tobias Barreto (o gnio sergipano que Pernambuco deu ao mundo peloDireito) presta-se, como parfrase, a explicar as dificuldades que gente como o Professor Doutor Aury Lopes Jr. encontrapara mover o cu do senso comum terico dos juristas no Direito Processual Penal. So homens e mulheres assim, porm com esta postura , que mudam o mundo porque, sem ofender ningum (isso seria ingnuo e ato tpico de adolescente),ousam criar, ousam discordar, ousam transformar colocando em crise o status quo . Da crise de krsis (do grego),aparentada prxima de kritik (crtica) e kritrion (critrio), ou seja, aquilo que permite qui como princpio separar ojoio do trigo. Sem isso, contudo, no h evoluo democrtica, justo em razo de no se ter corte epistemolgico (comoqueria Bachelard), dado tudo permanecer como dantes, ou melhor, pior que antes, porque a vida no espera o Direito e fazseus estragos fomentada por ele quando, em si, traz a marca do caolho; embora a esteja a maior prova de que Marx smorreu como igreja (mutatis mutandis, como Nietzsche anunciou a morte de Deus), isto , a tentativa (de todo primria einfantil) de mantena do status quo pura ideologia, como fez, por exemplo, a Igreja Catlica infelizmente ao criar oSistema Inquisitrio Puro em 1199/1215.

    O soneto de Tobias Barreto (no seu todo), assim como Freud, Bertrand Russel e muitos outros (Marx inclusive), s mefez acreditar mais em Deus. Mas a j se perambula pela crena, ou seja, naquilo que est para alm da linguagem e,portanto, trata-se de a Verdade (com V maisculo) que no se discute respeita-se: cada um cr ou no no que quiser, embora, por princpio democrtico, deva-se respeitar, no s como lugar da diferena, tanto quanto aquele que suportaconviver com uma verdade (com v minsculo) e permite, passo a passo, progredir pela transformao . Ora, critica-separa transformar; a crtica pela crtica (acusao frequente contra a chamada Zettica, por exemplo) estril no porque sejamal-elaborada, mas em razo de no fazer questo (como conceito psicanaltico), ou seja, passa despercebida, dado nodizer com o Outro (lacaniano), no o comprometer, no fazer o vivente se questionar sobre as suas verdades e, portanto,no ter sequer a chance de mudar. Nessa marca, todavia, reside um dos grandes ns grdios do Direito, visto no seu devidolugar.

    O problema que o Direito (como, afinal, todos os campos, teorias ou cincias) o reino, por excelncia, das palavras,das imagens. Enfim, vale o argumento do mais hbil discursivamente (embora no se tenha mais a gora grega), pelaqualidade ou o que pior, por prevalecer pela quantidade. Aqui a ideologia marxiana um segundo momento; antes est

  • Prefcio

    PROF. DR. GERALDO PRADO

    A Constituio da Repblica de 1988 fruto de processo histrico de ruptura, em grau bastante significativo, com asbases autoritrias que sempre dominaram o Brasil e que, no campo do Direito, constituram os fundamentos para a formaodos profissionais da rea jurdica.

    Como alertei em Transao Penal (2 ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 83), fazendo coro com MRITI DESOUZA (e bem poderia ser tambm com Hegel!), as representaes construdas sobre a sociedade nacional (...) deveriamser encontradas de forma encarnada no corpus jurdico da nao e na Constituio.

    Assim, a nossa (de brasileiros) compreenso acerca do papel que, no mbito do Processo Penal concreto, exercitam osdiversos sujeitos que participam dele, do acusado ao Delegado de Polcia, passando pelo Ministrio Pblico, Defensor e juiz,haveria de ser extrada desse corpus, desse conjunto de leis que supostamente ditaram o modo como se administrava aJustia Criminal em nosso Pas.

    Com leis que desde a Independncia serviram de instrumento hegemonia do controle social via represso, buscando aprincpio assegurar o sucesso do empreendimento econmico fundado na explorao de escravos e, posteriormente, naigualmente efetiva explorao de mo de obra assalariada sem qualquer organizao social, o Direito e o Processo Penal dosbacharis brasileiros somente conseguiram ser bem-sucedidos porque o ensino jurdico havia se estruturado para dar contadessa tarefa!

    Estou convencido de que mais do que leis, que pegam ou no pegam na arena do ensino e do estudo do Direitoque so travadas as mais importantes batalhas entre a cidadania e o arbtrio, no que toca ao funcionamento das instituiesjurdicas.

    A dominao da concepo desse iluminismo luso-brasileiro, para ficar aqui com a expresso consagrada por GIZLENENEDER, somada alienao prpria de uma viso angustiantemente limitada do positivismo cientfico (a que no sem razoLUIGI FERRAJOLI chamar de paleopositivismo), uma e outra conduziram ao esquizofrnico estado de coisas em queuma determinada Constituio abolia penas cruis, ignorando, todavia, a dura realidade de sofrimento a que estavamcotidianamente condenados milhares de brasileiros.

    Esse divrcio entre realidade e teoria jurdica no constituiu privilgio da fase pr-republicana. Avanando pela RepblicaVelha, passando pelo Estado Novo, de Getlio Vargas, chegou at a ditadura iniciada em 1964 para comear a serquestionado a partir do fim da dcada de 70 do sculo XX.

    O Direito Processual Penal, porm, parece ter sido o ltimo dos ramos do Direito a experimentar o questionamentocrtico, o que apenas ocorrer em meados da dcada de 90 e dali em diante.

    Aury Lopes Jr. fala dessa aparente vocao de Gata Borralheira, a que o Direito Processual Penal supostamente foicondenado por outros saberes superiores do Direito. Assim, quando as teorias crticas surgiram para revelar a falcia sobrea qual foram erguidos os edifcios da comunidade cientfica do Direito, o Direito Processual Penal prosseguiu cauteloso,sendo aquele ramo menos diretamente afetado pelos novos ares!

    Temas de teoria geral do processo eram cultivados como o que de mais moderno o direito processual penal conquistara

  • Prefcio

    PROF. DR. CEZAR ROBERTO BITENCOURT

    De todos os elogios que se pode fazer a esta magnfica obra do Prof. Aury Lopes Jr. Direito Processual Penal talvez o mais significativo seja sobre a obstinao com que defende o acolhimento dos princpios fundamentais asseguradosna Constituio Federal, em uma luta heroica na tentativa de, finalmente, conseguir a constitucionalizao do DireitoProcessual Penal brasileiro. Na verdade, nunca demais lembrar que a consagrao desses princpios, como tivemosoportunidade de afirmar, tem a funo de orientar o legislador ordinrio para a adoo de um sistema de controle penalvoltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, um Direito Penal mnimo e garantista.

    inadmissvel que a soluo das dificuldades presentes seja buscada, como pretendem os governantes contemporneos,atravs da reproduo de formas neoabsolutistas de poder, carentes de limites e de controles, e governadas por fortes eocultos interesses, dentro de nossos ordenamentos; os quais ignoram que o Direito Penal no pode servir de meroinstrumento de realizao poltica, mantendo sempre a dignidade humana como limite de qualquer forma de incriminao. Noimporta o rtulo que se d a um novo ramo do Direito Penal, pois sempre que se tipificar condutas e que se impuseremsanes criminais, enfim, que se atingir o direito de liberdade do cidado, o princpio cunhado por Feuerbach de nullumcrimen nulla poena sine lege estabelecer o seu marco fundamental.

    A onipotncia jurdico-penal do Estado deve contar, necessariamente, com freios ou limites que resguardem os inviolveisdireitos fundamentais do cidado. Este seria o sinal que caracterizaria o Direito Penal de um Estado pluralista e democrtico.A pena, sob esse sistema estatal, teria reconhecido, como finalidade, a preveno geral e especial, devendo respeitar aqueleslimites, alm dos quais h a negao de um Estado de Direito Social e Democrtico. A formalizao do Direito Penal temlugar por meio da vinculao com as normas e objetiva limitar a interveno jurdico-penal do Estado em ateno aos direitosindividuais do cidado. O Estado no pode a no ser que se trate de um Estado totalitrio invadir a esfera dos direitosindividuais do cidado, ainda e quando haja praticado algum delito. Ao contrrio, os limites em que o Estado deve atuarpunitivamente devem ser uma realidade concreta. Esses limites referidos materializam-se atravs dos princpios da intervenomnima, da proporcionalidade, da ressocializao, da culpabilidade etc. Assim, o conceito de preveno geral positiva serlegtimo desde que compreenda que deve integrar todos esses limites harmonizando suas eventuais contradies recprocas:se se compreender que uma razovel afirmao do Direito Penal em um Estado Social e Democrtico de Direito exigerespeito s referidas limitaes.

    Nesse sentido, a exuberante obra de AURY LOPES JR., que um verdadeiro achado, vem a enriquecer a bibliografiabrasileira, com uma anlise densa e profunda de todos os institutos fundamentais do Direito Processual brasileiro,magistralmente trabalhados por esse extraordinrio processualista brasileiro, dos mais brilhantes da nova gerao, cujaformao deita razes na Pennsula Ibrica, com doutorado concludo com louvor na Universidade Complutense de Madri.

    Para a compreenso, a interpretao, o manejo e a aplicao da lei penal necessria uma sistematizao conceitual denormas, um conjunto de princpios ordenados e orgnicos aplicvel a todos os casos concretos. Garca-Pablos destacou noprefcio de seu magnfico Manual de Criminologia que um enfoque tcnico, todavia, no nos d diagnstico algum sobreo problema criminal nem est em condies de sugerir programas, estratgias ou meras diretrizes para intervir nele. No d

  • Nota do Autor

    PRIMEIRA EDIO DO VOLUME I

    Este um livro cujo discurso est sustentado por dois pilares bsicos: a busca constante pela conformidade constitucionaldo Direito Processual Penal e, ao mesmo tempo, o respeito s suas categorias jurdicas prprias, fazendo assim uma recusas transmisses de categorias do processo civil.

    A primeira preocupao conformidade constitucional decorre da difcil convivncia do Cdigo de Processo Penal de1941 com a nova ordem constitucional e democrtica. Significa buscar, na Constituio, a abertura democrtica quelegitima(r) o sistema processual penal contemporneo. De outro lado, no basta a luta pela conformidade constitucional: imprescindvel (re)pensar o processo penal desde suas categorias jurdicas prprias, fazendo uma recusa cientfica teoriageral do processo. Somente assim ser possvel corrigir graves distores que tm impedido o prprio desenvolvimento doprocesso penal. Trata-se de, sob inspirao de Carnelutti e James Goldschmidt, resgatar a metfora da Cinderela, que tobem retrata a situao do processo penal brasileiro.

    Noutra dimenso, este um livro de introduo ao estudo do Direito Processual Penal, pois assumidamente no temnenhuma pretenso de completude dogmtica. Todo o oposto. No espere, caro leitor, ter em mos uma obra completa, atporque ela estaria sempre por ser escrita...

    No abandonei a crtica cultura manualstica, que, potencializada pela velocidade e o fetiche da acelerao, conduz cadavez mais alienao (logo, (de)formando um profissional alienado, que ali--nada). Mas sublinhe-se: o problema no omanual, seno os professores e alunos que defendem e vivem a (ingnua) iluso de plenitude (e completude) do manual.

    Fao esse registro para advertir que esta uma obra escrita com muita seriedade cientfica, mas que pretende apenascontribuir para introduzir o leitor na perspectiva de uma leitura constitucional e crtica do processo penal. Nada alm disso.No contm a revelao da divina verdade jurdica.

    Este Volume I encerra nas Provas em Espcie, sendo o restante tratado no Volume II, que em breve pretendo finalizar.A opo por dois volumes foi para facilitar o acesso do leitor s temticas, inclusive sob o aspecto fsico, evitando aexcessiva condensao (Nota do autor: agora os dois volumes esto aglutinados nesta obra, de volume nico).

    Preocupei-me (no sei se o suficiente) com aquilo que Geraldo Prado 1 definiu como aliviar o peso da escrita maishermtica, to presente na academia (especialmente na ps-graduao), evitando assim a pseudoerudio e o esconder-seatrs da linguagem. Potencializei, seguindo ainda os conselhos de Cezar Bitencourt, a clareza da exposio em detrimento daesttica lingustica acadmica.

    Tambm devo isso aos muitos ensinamentos extrados da leitura e convvio com Pedro Aragoneses Alonso, na Espanha,cuja grandiosidade da obra e vida sempre estiveram pautadas por uma tica altrusta e uma constante preocupao em ajudaro leitor a apreender os mais complexos temas do processo penal.

    Em muitos momentos, preocupado em dar uma viso mais ampla, tomei o cuidado de explicar a posio do sensocomum (terico e/ou jurisprudencial) e, depois, fazer a minha crtica. A inteno era no sonegar do aluno as posies que,mesmo equivocadas na minha viso (que pode estar errada), ainda esto em voga. At porque a crtica tambm melhor

  • Nota do Autor

    PARA ESTA EDIO

    Essa obra foi inicialmente concebida para ter dois volumes e assim estava estruturada at a presente edio. Foi umanecessidade inicial, para elaborao do texto e que perdurou por alguns anos, para melhor atender os leitores que j haviamadquirido o volume 1, que foi disponibilizado bem antes do volume 2 estar concludo.

    Agora, posso oferecer-lhes os dois volumes condensados num texto nico, sem que nada precisasse ser retirado. Nocortei absolutamente nada, apenas reuni os textos e retirei o que estava duplicado (notas de apresentao, referncias etc.).

    O resultado final um curso completo a um preo mais acessvel. Novamente aqui o foco foi, exclusivamente, melhoratender meus leitores.

    No s agradeo a excelente receptividade, mas rogo-lhes que me auxiliem a melhorar o livro, enviando e-mail [email protected] ou pelo site www.aurylopes.com.br sempre que encontrarem erros, desatualizao ou problemas dequalquer natureza. Todos os e-mails que recebo so respondidos em at uma semana, sem falta, e so fundamentais para queo livro cumpra seu papel.

    Espero que gostem do novo formato.Abraos.

    Aury Lopes Jr.

  • Captulo I - UM PROCESSO PENAL PARA QU(M)? BUSCANDO O FUNDAMENTO DA SUA EXISTNCIA

    1. Breve Anlise da Histria da Pena de Priso e do Processo PenalPor que estudar a evoluo histrica da pena de priso em um livro de Direito Processual Penal? Eis um questionamento

    que pode surgir, at porque tem passado ao largo de muitos estudiosos do processo penal. Mais, no se trata de abordar aevoluo do Direito Penal, seno da pena de priso.

    Porque pensamos o processo penal a partir do princpio da necessidade, que, como ser explicado na continuao,considera que o processo penal um caminho necessrio para alcanar-se a pena e, principalmente, um caminho quecondiciona o exerccio do poder de penar (essncia do poder punitivo) estrita observncia de uma srie de regras quecompe o devido processo penal (ou, se preferirem, so as regras do jogo , se pensarmos no clebre trabalho Il processocome giuoco de CALAMANDREI).1

    Da por que imprescindvel uma rpida panormica da evoluo da pena de priso para chegar-se compreenso daprpria evoluo do processo penal. Feita essa ressalva, vamos ao tema.

    1.1. Breve Histria da Pena de Priso

    A histria das penas aparece, numa primeira considerao, como um captulo horrendo e infamante para a humanidade, emais repugnante que a prpria histria dos delitos. Isso porque o delito constitui-se, em regra, numa violncia ocasional eimpulsiva, enquanto a pena no: trata-se de um ato violento, premeditado e meticulosamente preparado. a violnciaorganizada por muitos contra um.

    A Antiguidade desconhecia a privao de liberdade como sano penal. O encarceramento existe desde muito tempo,

    mas no com a natureza de pena, seno para outros fins. At finais do sculo XVIII, 2 a priso servia somente com afinalidade de custdia, ou seja, conteno do acusado at a sentena e execuo da pena, at porque, nessa poca, noexistia uma verdadeira pena, pois as sanes se esgotavam com a morte e as penas corporais e infamantes. A priso tinha,

    inicialmente, a funo de lugar de custdia3 e tortura.Na poca pr-moderna (Idade Mdia), tampouco existia a pena privativa de liberdade como sano penal. A priso

    mantinha o carter de lugar de custdia, pois as penas eram brbaras, como a amputao de braos, pernas, olhos, lngua eoutras mutilaes.

    A priso cannica um importante antecedente da priso moderna, pois l que se encontram os princpios de umapena medicinal, com o objetivo de levar o pecador ao arrependimento e ideia de que a pena no deve servir para

    destruio do condenado, seno para seu melhoramento.4 Inclusive, na inquisio, a diferena do sistema vigorante at entoconheceu a pena privativa de liberdade, ao lado da priso de natureza processual ou preventiva.5

    At ento, sculos XVI e XVII, havia o uso generalizado da pena de morte, sendo que a forma de execuo maisfrequente era a forca. Ao lado dela, eram recorrentes os aoites, a deportao e os atos causadores de vergonha pblica.Mas a pena capital comea a ser questionada, pois no demonstrava ser um instrumento eficaz diante do aumento da

    criminalidade. quando comea a surgir a ideia da priso como pena privativa de liberdade.6

  • Captulo II - TEORIAS ACERCA DA NATUREZA JURDICA DO PROCESSO (PENAL)

    1. Introduo: As Vrias TeoriasQuesto muito relevante compreender a natureza jurdica do processo penal, o que ele representa e constitui. Trata-se

    de abordar a determinao dos vnculos que unem os sujeitos (juiz, acusador e ru), bem como a natureza jurdica de taisvnculos e da estrutura como um todo.

    Analisando a histria do processo, ARAGONESES ALONSO 1 divide as diferentes teorias em trs grande grupos, asaber:

    1. Teorias que utilizam categorias de outros ramos do direito1.1. Teorias de direito privado

    1.1.1. Processo como contrato1.1.2. Processo como quase contrato1.1.3. Processo como acordo

    1.2. Teorias de direito pblico

    1.2.1. Processo como relao jurdica (BLOW)

    1.2.2. Processo como servio pblico (JZE e DUGUIT)

    1.2.3. Processo como instituio (GUASP)

    2. Teorias que utilizam categorias jurdicas prprias

    2.1. Processo como estado de ligao (KISCH)

    2.2. Processo como situao jurdica (GOLDSCHMIDT)

    3. Teorias Mistas2

    3.1. Teoria da vontade vinculatria autrquica da lei (PODETTI)

    3.2. Processo como relao que se desenvolve em situaes (ALSINA)

    3.3. Processo como entidade jurdica complexa (FOSCHINI)

    As teorias de direito privado (contrato, quase contrato e acordo) foram sendo completamente abandonadas at o final dosculo XIX, quando o processo (civil e penal) deixa de ser considerado um mero apndice do direito privado para adquirirsua autonomia. Na esfera penal, influncia decisiva para o abandono das teorias privadas foi o fato de a pena passar aoestgio de pena pblica, como explicado anteriormente, exigindo que a Administrao da Justia fosse exercida pelo Estado,pois ele passou a deter o poder de punir com o abandono e a proibio da vingana privada.

    Dentre as teorias de direito pblico, foi a noo de processo como relao jurdica de Oskar von BLOW a que teve (etem) maior aceitao, at os dias de hoje. As demais, processo como servio pblico (JZE e DUGUIT) e processo como

  • Captulo III - SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS INQ UISITRIO E ACUSATRIO: SUPERANDO O REDUCIONISMO ILUSRIO DO SISTEMA MISTO

    Na histria do Direito se alternaram as mais duras opresses com as mais amplas liberdades. natural que nas pocasem que o Estado viu-se seriamente ameaado pela criminalidade o Direito Penal tenha estabelecido penas severas e o

    processo tivesse que ser tambm inflexvel. 1 Os sistemas processuais inquisitivo e acusatrio so reflexos da resposta doprocesso penal frente s exigncias do Direito Penal e do Estado da poca. Atualmente, o law and order mais uma ilusode reduzir a ameaa da criminalidade endurecendo o Direito Penal e o processo.

    Na lio de J. GOLDSCHMIDT, 2 los principios de la poltica procesal de una nacin no son otra cosa quesegmentos de su poltica estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nacin no essino el termmetro de los elementos corporativos o autoritarios de su Constitucin . Partiendo de esta experiencia, laciencia procesal ha desarrollado un nmero de principios opuestos constitutivos del proceso. (...) El predominio deuno u otro de estos principios opuestos en el derecho vigente, no es tampoco ms que un trnsito del derecho pasadoal derecho del futuro .

    Nessa linha, MAIER3 explica que no Direito Penal a influncia da ideologia vigente ou imposta pelo efetivo exerccio dopoder se percebe mais flor da pele que nos demais ramos jurdicos. E esse fenmeno ainda mais notrio no processopenal, na medida em que ele, e no o Direito Penal, que toca no homem real, de carne e osso. Como afirmamosanteriormente, o Direito Penal no tem realidade concreta fora do processo penal, sendo as regras do processo que realizamdiretamente o poder penal do Estado. Por isso, conclui MAIER, no Direito Processual Penal que as manipulaes do poderpoltico so mais frequentes e destacadas, at pela natureza da tenso existente (poder de penar versus direito de liberdade).

    No processo, o endurecimento manifesta-se no utilitarismo judicial, em atos dominados pelo segredo, forma escrita,aumento das penas processuais (prises cautelares, crimes inafianveis etc.), algumas absurdas inverses da cargaprobatria e, principalmente, mais poderes para os juzes investigarem.

    Pode-se constatar que predomina o sistema acusatrio nos pases que respeitam mais a liberdade individual e quepossuem uma slida base democrtica. Em sentido oposto, o sistema inquisitrio predomina historicamente em pases demaior represso, caracterizados pelo autoritarismo ou totalitarismo, em que se fortalece a hegemonia estatal em detrimentodos direitos individuais.

    Cronologicamente, em linhas gerais,4 o sistema acusatrio predominou at meados do sculo XII, sendo posteriormentesubstitudo, gradativamente, pelo modelo inquisitrio que prevaleceu com plenitude at o final sculo XVIII (em alguns pases,at parte do sculo XIX), momento em que os movimentos sociais e polticos levaram a uma nova mudana de rumos. Adoutrina brasileira, majoritariamente, aponta que o sistema brasileiro contemporneo misto (predomina o inquisitrio na fasepr-processual e o acusatrio, na processual).

    Ora, afirmar que o sistema misto absolutamente insuficiente, um reducionismo ilusrio, at porque no existemmais sistemas puros (so tipos histricos), todos so mistos. A questo , a partir do reconhecimento de que no existemmais sistemas puros, identificar o princpio informador de cada sistema, para ento classific-lo como inquisitrio ouacusatrio, pois essa classificao feita a partir do seu ncleo de extrema relevncia.

    Antes de analisar a situao do processo penal brasileiro contemporneo, vejamos sumariamente algumas das

  • Captulo IV - (RE)CONSTRUO DOGMTICA DO OBJETO DO PROCESSO PENAL: A PRETENSO ACUSATRIA (PARA ALM DO CONCEITOCARNELUTTIANO DE PRETENSO)

    1. Introduo (ou a Imprescindvel Pr-Compreenso)

    Partindo de GUASP1 entendemos que objeto do processo a matria sobre a qual recai o complexo de elementosque integram o processo e no se confunde com a causa ou princpio, nem com o seu fim . Por isso, no objeto doprocesso o fundamento a que deve sua existncia (instrumentalidade constitucional) nem a funo ou fim a que, ainda que deforma imediata, est chamado a realizar (a satisfao jurdica da pretenso ou resistncia). Tambm no se confunde com suanatureza jurdica situao processual.

    At as edies anteriores, tratamos dessa questo a ttulo de contedo, mas estamos revisando nossa posio pararegressar matriz terica de GOLDSCHMIDT, por entendermos mais adequado.

    Feito esse breve esclarecimento, continuemos.Como j explicamos anteriormente, o processo penal regido pelo princpio da necessidade, ou seja, um caminho

    necessrio para chegar a uma pena. Irrelevante, seno inadequada, a discusso em torno da existncia de uma lide noprocesso penal, at porque ela inexistente. Isso porque no pode haver uma pena sem sentena, pela simples e voluntriasubmisso do ru. O conceito de lide deve ser afastado do processo penal, pois o poder de penar somente se realiza noprocesso penal, por exigncia do princpio da necessidade.

    Inclusive, nosso legislador constituinte no acolheu a ideia de lide penal, 2 tanto que no art. 5, LV, da Constituio,consta que aos litigantes (litigantes = lide = processo civil) e aos acusados em geral (acusados = pretenso acusatria =processo penal) so assegurados o contraditrio e a ampla defesa. Do contrrio, no faria tal distino entre litigantes eacusados (em geral, destaque-se, para desde logo avisar que tambm incide na fase pr-processual).

    A discusso em torno do objeto (contedo para alguns) do processo nos parece fundamental, na medida em que desvelaum grave erro histrico derivado da concepo de KARL BINDING (a ideia de pretenso punitiva), e que continua sendorepetida sem uma sria reflexo. O principal erro, que ser abordado na continuao, est em transportar as categorias doprocesso civil para o processo penal, colocando o Ministrio Pblico como verdadeiro credor de uma pena, como se fosseum credor do processo civil postulando seu bem jurdico. Mas essa questo, para ser compreendida, precisa de umaabordagem mais ampla, como se far na continuao.

    1.1. Superando o Reducionismo da Crtica em Torno da Noo Carneluttiana de Pretenso. Pensando ParaAlm de Carnelutti

    O problema da construo de BINDING (e seguida majoritariamente at hoje) inicia pela identificao com o conceitocarneluttiano (diante da analogia com o processo civil), agravando a crise ao definir seu contedo como punitivo, o quesignificou colocar o Ministrio Pblico como credor de uma pena (um grave erro, como se explicar adiante).

    A crtica em relao ao contedo punitivo ser feita na continuao. Agora, precisamos esclarecer que o conceito depretenso pode perfeitamente ser utilizado, desde que no sentido desenhado por GUASP, GOLDSCHMIDT ou GMEZ

    ORBANEJA, nunca na acepo civilista 3 de CARNELUTTI. A essa pretenso, deve-se perquirir o contedo luz da

  • Captulo V - INTRODUO AO ESTUDO DOS PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL

    Como j foi exposto at aqui, pensamos ser imprescindvel que o processo penal passe por uma constitucionalizao,sofra uma profunda filtragem constitucional, estabelecendo-se um (inafastvel) sistema de garantias mnimas. Comodecorrncia, o fundamento legitimante da existncia do processo penal democrtico sua instrumentalidade constitucional,ou seja, o processo enquanto instrumento 1 a servio da mxima eficcia de um sistema de garantias mnimas. Ou ainda,pensamos o processo penal desde seu inegvel sofrimento, a partir de uma lgica de reduo de danos.

    Todo poder tende a ser autoritrio e precisa de limites, controle. Ento, as garantias processuais constitucionais so

    verdadeiros escudos protetores2 contra o (ab)uso do poder estatal.Lidamos com o processo penal desde um olhar constitucional, buscando efetivar a filtragem que o Cdigo de Processo

    Penal exige para ter aplicao conforme a Constituio. Nessa tarefa, existem princpios que fundam a instrumentalidadeconstitucional e conduzem a uma (re)leitura de todos os institutos do processo penal brasileiro. Significa dizer que no sepode mais, por exemplo, pensar a priso cautelar seno luz da presuno (constitucional) de inocncia; o princpio dajurisdio exige a observncia do (sub)princpio do juiz natural; o inqurito policial deve ser constitucionalizado para permitircerto nvel de contraditrio e direito de defesa; e assim por diante.

    Superado o tradicional conflito entre direito natural/direito positivo , tendo em vista a constitucionalizao dos direitosnaturais pela maioria das constituies modernas, o problema centra-se agora na divergncia entre o que o Direito e o quedeve ser, no interior de um mesmo ordenamento jurdico, ou ainda, na busca da mxima eficcia da Constituio.

    Na doutrina espanhola, ARAGONESES ALONSO 3 explica que a Constituio da Espanha de 1978 consagrou osprincpios contidos na Declarao Universal dos Direitos Humanos, que, por sua vez, vm a coincidir com os tambmrevelados pela doutrina pontifcia, como direito natural. Com isso, o problema foi transferido e no est mais no plano daexistncia jurdica, mas no da eficcia das garantias . A eficcia da proteo est em grande parte pendente da atividadejurisdicional, principal responsvel por dar ou negar a tutela dos direitos fundamentais. Como consequncia, o fundamento dalegitimidade da jurisdio e da independncia do Poder Judicirio est no reconhecimento da sua funo de garantidor dosdireitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituio. Nesse contexto, a funo do juiz atuar como garantidor dosdireitos do acusado no processo penal.

    Quando se lida com o processo penal, deve-se ter bem claro que, aqui, forma garantia. Por se tratar de um ritual de

    exerccio de poder e limitao da liberdade individual, a estrita observncia das regras do jogo4 (devido processo penal) ofator legitimante da atuao estatal. Nessa linha, os princpios constitucionais devem efetivamente constituir o processo penal.Esse sistema de garantias est sustentado a nosso juzo por cinco princpios bsicos que configuram, antes de mais nada,um esquema epistemolgico que conduz identificao dos desvios e (ab)usos de poder.

    Inclusive, entendemos que uma obra de processo penal deveria ter uma organizao diferenciada, estruturando-se a partirdos princpios constitucionais, para s ento desenvolver os diferentes institutos que compem o processo penal. Ensaiamosisso na nossa obra Introduo Crtica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional (ougarantista, dependendo da edio), em que se priorizou o estudo dos princpios constitucionais formadores.

    E, mais, o estudo dos princpios no pode ficar compartimentalizado: deve permear toda a obra e todo o discurso.

  • 1.4.8. A Primeira Condenao na Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Ximenes Lopes Versus Brasil

    Em 1 de outubro de 1999, o senhor DAMIO XIMENES LOPES, que j apresentava um histrico de doena mental,teve uma crise e foi internado na Casa de Repouso de Guararapes (municpio de Sobral, estado do Cear), que mantinhaleitos para atender pelo SUS. Em 3 de outubro, em surto de agressividade, teria entrado em um dos banheiros da clnica e del se recusado a sair, tendo os funcionrios da clnica o imobilizado e o retirado fora. A vtima foi espancada e sedada(com os medicamentos Haldol e Fenargan).

    No dia seguinte, 4 de outubro, s 9h, sua me foi visit-lo e o encontrou sangrando, com diversas leses e hematomas, aroupa rasgada, sujo de fezes e com as mos amarradas nas costas. Segundo seu depoimento, a vtima apresentavadificuldades para respirar e agonizava, pedindo que chamasse a polcia. Ela ento saiu para buscar ajuda, entre osenfermeiros e mdicos da clnica.

    s 11h30min daquele mesmo dia, Damio Ximenes Lopes estava morto.

    Segundo narra a sentena proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, os mdicos da clnica atestaram quehouve morte natural por parada cardiorrespiratria. A necropsia foi extremamente falha, tendo concludo que a causa damorte foi indeterminada. Detalhe interessante, como destaca a sentena, que o mesmo mdico da clnica tambm atuavano IML (Instituto Mdico Legal), onde foi feita a necropsia, ainda que firmada por outro mdico. Muito tempo depois, j noprocesso, foi realizada a exumao do cadver, mas pouco foi apurado.

    Nos dias posteriores ao ocorrido, a famlia especialmente a irm da vtima, Irene Ximenes Lopes Miranda ,inconformada com o ocorrido, fez notcia-crime junto autoridade policial, denncia na Secretaria da Sade e tambm naComisso de Direitos Humanos do Cear. O inqurito policial foi instaurado e, em 27 de maro de 2000, oferecida dennciapelo Ministrio Pblico. O processo foi extremamente tumultuado e censurada, pela Corte Interamericana, a forma como foiconduzido. A denncia foi incompleta, obrigando a que houvesse posterior aditamento para incluso de mais rus, gerandoinegvel tumulto processual, como apontou a Comisso.

    Incrivelmente, at o dia 04 de julho de 2006, quando o Brasil foi condenado na Corte Interamericana, no havia sequersentena de primeiro grau na esfera penal. No cvel, a ao de indenizao ajuizada pela famlia da vtima em 1999 tambmno havia sido sentenciada.

    Logo aps o fato, a irm da vtima, percebendo a ineficcia da justia brasileira, apresentou uma petio na Comisso

    Interamericana de Direitos Humanos 123 contra o Brasil, atravs de uma ONG ( Centro por la Justicia Global ). O feitotramitou na Comisso (etapa prvia ao processo na Corte) e foi solicitado ao Estado brasileiro que informasse se foramesgotados os recursos e as vias judicirias internas. O Brasil ignorou o pedido. Foram colocados instrumentos para soluoamistosa e o Brasil no se manifestou.

    Finalmente a Comisso entendeu, a partir dos documentos juntados pela peticionria, que haviam sido violados os arts. 4(direito vida), 5 (direito integridade fsica), 8 (direito s garantias judiciais) e 25 (direito proteo judicial) daConveno Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jos da Costa Rica).

    A Comisso124 recomendou ao Estado brasileiro uma srie de medidas para sanar essas violaes e fixou o prazo de 2meses para que o pas informasse as medidas tomadas. S ento o pas se manifestou, postulando prorrogao desse prazoe, aps, de forma absolutamente intempestiva, contestou.

    Diante das graves violaes praticadas e a inrcia do Pas, em 30 de setembro de 2004 a Comisso decidiu submeter ocaso Corte Interamericana e, no dia 04 de julho de 2006, o Pas foi condenado por violao do direito a vida, integridadefsica e negao de jurisdio pela demora (violao do direito de ser julgado no prazo razovel).

    Interessa-nos, neste tpico, destacar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tambm considerou que houve

    uma injustificada demora na prestao da tutela penal (e cvel). Para tanto, a Corte analisou trs elementos 125 em absolutasintonia com os critrios por ns apontados:

    complexidade do caso; atuao do Estado;

    atuao processual dos interessados.126

    Censurando a indevida dilao que o processo penal teve no caso em tela, a Corte proferiu a primeira sentenacondenatria por violao do disposto no art. 8.1 da Conveno e tambm consagrado no art. 5, LXXVIII, da Constituiobrasileira. Em que pese no se tratar de uma demanda por violao exclusiva desse direito e tampouco ter como reclamante oru (mas sim a famlia da vtima), a condenao um marco histrico na matria. Sinaliza, ainda, os critrios para aferir-se a

  • violao do direito ao processo penal no prazo razovel.

    Ao final, o Brasil foi condenado a pagar:127

    a) 125 mil dlares a ttulo de compensao financeira famlia;

    b) mais 10 mil dlares a ttulo de ressarcimento das despesas processuais;

    c) o Pas dever pagar esses valores no prazo mximo de 1 ano a contar da data da intimao da sentena;

    d) sobre esse valor no podem incidir impostos de qualquer natureza;

    e) em caso de atraso, incidem juros moratrios bancrios.

    Em at 1 ano, o Brasil dever informar os pagamentos e cumprimento das demais determinaes da sentena. 128 Ainda,no prazo de 6 meses, dever publicar no Dirio Oficial e em outro jornal de circulao nacional o captulo VII da sentena,relativo aos fatos provados da sentena e a parte dispositiva.

    Mesmo que o valor da indenizao seja baixo para quem recebe os familiares da vtima e irrisrio para o pascondenado, a sentena de um valor imensurvel em termos de conquista de eficcia dos direitos humanos (e fundamentaisconstitucionalmente previstos, como o direito de ser julgado no prazo razovel).

    1.4.9. Caso Marcos Mariano da Silva: o Inocente que Ficou 13 Anos Preso sem Sentena

    Contudo, ao mesmo tempo em que o Brasil era condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinha apblico outra absurda violao de direitos fundamentais: um inocente que ficou 13 anos preso sem sentena.

    Conforme noticiou o Superior Tribunal de Justia no dia 19/10/2006, no REsp 802435, o Estado brasileiro foicondenado em ltima instncia a pagar dois milhes de reais por danos morais e materiais ao cidado MARCOSMARIANO DA SILVA, de 58 anos, mantido preso ilegalmente por mais de 13 anos no presdio Anbal Bruno, em Recife-PE. Segundo a ata e o julgamento do Superior Tribunal de Justia (STJ), esse foi o mais grave atentado violao humana jvisto na sociedade brasileira.

    Conforme noticiou o STJ, por unanimidade, os ministros reconheceram a extrema crueldade a que foi submetido umcidado pelas instituies pblicas. Marcos Mariano foi preso sem inqurito, sem condenao alguma, e sem direito anenhuma espcie de defesa, sustentou o advogado. Foi simplesmente esquecido no crcere, onde ficou cego dos dois olhose submetido aos mais diversos tipos de constrangimento moral. Alm de ter contrado tuberculose na priso, o brasileiro foiacusado de participar de diversas rebelies, ficando inclusive mantido em um presdio de segurana mxima por mais de seismeses, sem direito a banho de sol. o caso mais grave que j vi, assinala a ministra Denise Arruda. Mostra simplesmenteuma falha generalizada do Poder Executivo, do Ministrio Pblico e do Poder Judicirio.

    Marcos foi preso em 27 de julho de 1985 e conseguiu o habeas corpus em 25 de agosto de 1998. No havia nada quejustificasse a priso, a no ser o encaminhamento de um simples ofcio.

    Esse homem morreu e assistiu sua morte no crcere, afirmou o ministro Teori Zavaschi. O pior que no teve perodode luto, prosseguiu consternado. Marcos viu, durante o perodo em que permaneceu na priso, a desagregao de toda afamlia. Ento, casado e com onze filhos, em meados de 87, hoje no lhe restaria nada.

    A Ministra Denise Arruda realou que Marcos Mariano da Silva perdeu a capacidade de se movimentar, de ser um serautnomo. Aqui no se trata de generosidade, disse. Aqui se trata de um brasileiro que vai sobreviver no se sabe como.A primeira instncia fixou o valor em R$ 356 mil. O Tribunal de Justia de So Paulo fixou o valor em dois milhes, o que foimantido pelo STJ. O ministro Luiz Fux, relator do processo, reviu o posicionamento de indenizao quanto ao caso. E, aofinal do julgamento, deu ganho de causa a Marcos Mariano, fazendo inclusive constar no relatrio e voto se tratar do maisgrave atentado violao humana j visto na sociedade brasileira, no que foi aceito unanimidade.

    Em suma, ainda h um longo caminho a ser percorrido nessa matria, mas, com certeza, essas decises constituemmarcos que no podem ser esquecidos, para que fatos similares sejam evitados.

    1.4.10. Em Busca de Solues: Compensatrias, Processuais e Sancionatrias

    Reconhecida a violao do direito a um processo sem dilaes indevidas, deve-se buscar uma das seguintes solues:129

    1. Solues Compensatrias: na esfera do Direito Internacional, pode-se cogitar de uma responsabilidade por ilcitolegislativo, pela omisso em dispor da questo quando j reconhecida a necessria atividade legislativa na CADH (queest incorporada ao sistema normativo interno). Noutra dimenso, a compensao poder ser de natureza civil oupenal. Na esfera civil, resolve-se com a indenizao dos danos materiais e/ou morais produzidos, devidos ainda que notenha ocorrido priso preventiva. Existe uma imensa e injustificada resistncia em reconhecer a ocorrncia de danos, e o

  • dever de indenizar, pela (mera) submisso a um processo penal (sem priso cautelar), e que deve ser superada.130 J acompensao penal poder ser atravs da atenuao da pena ao final aplicada (aplicao da atenuante inominada, art.66 do CP) ou mesmo concesso de perdo judicial, nos casos em que possvel (v.g., art. 121, 5, art. 129, 8, doCP). Nesse caso, a dilao excessiva do processo penal uma consequncia da infrao atingiu o prprio agente deforma to grave que a sano penal se tornou desnecessria. Havendo priso cautelar, a detrao (art. 42 do CP) uma forma de compensao, ainda que insuficiente.

    2. Solues Processuais: a melhor soluo a extino do feito,131 mas encontra ainda srias resistncias.132 Ao ladodele, alguns pases preveem o arquivamento (vedada nova acusao pelo mesmo fato) ou a declarao de nulidade dos

    atos praticados aps o marco de durao legtima. 133 Como afirmado no incio, a extino do feito a soluo maisadequada, em termos processuais, na medida em que, reconhecida a ilegitimidade do poder punitivo pela prpriadesdia do Estado, o processo deve findar. Sua continuao, alm do prazo razovel, no mais legtima e vulnera oPrincpio da Legalidade, fundante do Estado de Direito, que exige limites precisos, absolutos e categricos incluindo-se o limite temporal ao exerccio do poder penal estatal. Tambm existe uma grande resistncia em compreender quea instrumentalidade do processo toda voltada para impedir uma pena sem o devido processo, mas esse nvel deexigncia no existe quando se trata de no aplicar pena alguma. Logo, para no aplicar uma pena, o Estado podeprescindir completamente do instrumento, absolvendo desde logo o imputado, sem que o processo tenha que tramitarintegralmente. Finalizando, tambm so apontados como solues processuais: possibilidade de suspenso daexecuo ou dispensabilidade da pena, indulto e comutao.

    3. Solues Sancionatrias: punio do servidor (incluindo juzes, promotores etc.) responsvel pela dilao indevida.Isso exige, ainda, uma incurso pelo Direito Administrativo, Civil e Penal (se constituir um delito). A EmendaConstitucional n. 45, alm de recepcionar o direito de ser julgado em um prazo razovel, tambm previu apossibilidade de uma sano administrativa para o juiz que der causa demora. A nova redao do art. 93, II, e,determina que:

    e) no ser promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder alm do prazo legal, no podendo devolv-los aocartrio sem o devido despacho ou deciso;

    Cumpre agora esperar para ver se a sano ficar apenas nessa dimenso simblica ou se os tribunais efetivamenteaplicaro a sano.

    Na atual sistemtica brasileira, no vemos dificuldade na aplicao das solues compensatrias de natureza cvel(devidas ainda que no exista priso cautelar), bem como das sancionatrias. A valorao das consequncias da dilaoindevida pode ser considerada quando da quantificao da medida reparatria; contudo, importante destacar que aresponsabilidade estatal independe dos efeitos causados pela dilao.

    Em outras palavras, a reparao devida pelo atraso injustificado em si mesmo, independentemente da demonstrao dedanos s partes, at porque presumidos. Tambm haver, na prtica, dois srios inconvenientes: a dificuldade que os tribunaistm de reconhecer e assumir o funcionamento anormal da justia (resistncia corporativa), bem como a imensa timidez dosvalores fixados, sempre muito aqum do mnimo devido por uma violncia dessa natureza.

    Na esfera penal, no compreendemos a timidez em aplicar a atenuante genrica do art. 66 do CP. Assumido o carterpunitivo do tempo, no resta outra coisa ao juiz que (alm da elementar detrao em caso de priso cautelar) compensar ademora reduzindo a pena aplicada, pois parte da punio j foi efetivada pelo tempo. Para tanto, formalmente, dever lanarmo da atenuante genrica do art. 66 do Cdigo Penal. assumir o tempo do processo enquanto pena e que, portanto,dever ser compensado na pena de priso ao final aplicada.

    J em 1995, com inegvel pioneirismo, BADAR defendia que a durao irrazovel do processo, que por certoconstitui uma espcie de sano antecipada, pela incerteza que tal estado acarreta, bem como pelos danos morais,patrimoniais e jurdicos, deve ser considerada circunstncia relevante posterior ao crime, caracterizando-se comocircunstncia atenuante inominada nos termos do art. 66 do Cdigo Penal.

    Para alm dessa indiscutvel incidncia, somos partidrios de que a atenuante pode reduzir a pena alm do mnimo legal,

    estando completamente equivocada a linha discursiva norteada pela Smula n. 231 do STJ.134

    A aplicao da atenuante ter ainda, conforme o caso, carter decisivo para a ocorrncia da prescrio, tornando areduo um fator decisivo para fulminar a prpria pretenso punitiva (a soluo mais adequada em termos processuais).

    Ainda que o campo de incidncia seja limitado, no vislumbramos nenhum inconveniente na concesso do perdo judicial,nos casos em que possvel (v.g. art. 121, 5, art. 129, 8, do CP), pois a dilao excessiva do processo penal umaconsequncia da infrao que atinge o prprio agente de forma to grave que a sano penal se tornou desnecessria.

  • Mas, na esteira de PASTOR, 135 o fato de apontarmos solues compensatrias no significa que toleramospacificamente as violaes do Estado, seno que elas so um primeiro passo na direo da efetivao do direito de serjulgado num processo sem dilaes indevidas. A flecha do tempo irreversvel e o tempo que o Estado indevidamente seapropriou jamais ser suficientemente indenizado, pois no pode ser restitudo.

    As solues compensatrias so meramente paliativas, uma falsa compensao, no s por sua pouca eficcia (limites

    para atenuao), mas tambm porque representam um retoque cosmtico, como define PASTOR, 136 sobre uma penainvlida e ilegtima, eis que obtida atravs de um instrumento (processo) viciado. Ademais, a atenuao da pena completamente ineficiente quando o ru for absolvido ou a pena processual exceder o suplcio penal. Nesse caso, o mximoque se poder obter uma paliativa e, quase sempre, tmida indenizao.

    Em relao indenizao pela demora, evidencia-se o paradoxo de obrigar algum a cumprir uma pena consideradalegtima e conforme o Direito e, ao mesmo tempo, gerar uma indenizao pela demora do processo que imps essa pena processo esse, em consequncia, ilegtimo e ilegal.

    Quanto s solues processuais , o problema ainda mais grave. O sistema processual penal brasileiro estcompletamente engessado e inadequado para atender s diretrizes da CADH. No dispe de instrumentos necessrios paraefetivar a garantia do direito a um processo sem dilaes indevidas. Sequer possui um prazo mximo de durao das prisescautelares.

    O ideal seria uma boa dose de coragem legislativa para prever claramente o prazo mximo de durao do processo e dasprises cautelares, fixando condies resolutivas pelo descumprimento. Na fase de investigao preliminar, deve-se prever aimpossibilidade de exerccio da ao penal aps superado o limite temporal, ou, no mnimo, fixar a pena de inutilidade para osatos praticados aps o prazo razovel.

    Tambm preciso que se compreenda a instrumentalidade do processo penal, de modo que, para no aplicar uma pena,o Estado pode prescindir completamente do instrumento, absolvendo desde logo o imputado, sem que o processo tenha quetramitar integralmente. Isso permite que se exija, por exemplo, o pronto reconhecimento da prescrio pela provvel pena aser aplicada, como imediata extino do feito.

    Deve-se voltar os olhos para os sistemas europeus, mas tambm para o Cdigo de Processo Penal paraguaio, queacertadamente consagra um instrumento que efetivamente assegura a eficcia do direito fundamental de ser julgado num prazorazovel: resoluo ficta em favor do imputado.

    Se, diante de um recurso (contra decises definitivas ou mesmo interlocutrias) interposto pelo ru, o tribunal competenteno se manifestar no prazo legal (marco normativo do prazo razovel), entende-se automaticamente concedidos os direitospleiteados. bvio que o imputado, que j est sofrendo todo um feixe de penas processuais, no est obrigado a suportar osobrecusto da demora na prestao jurisdicional. Essa a verdadeira compreenso do que seja a (de)mora judicial. E no sediga, por favor, que isso justificar decises apressadas e sem a devida motivao, pois um direito fundamental (ser julgadono prazo razovel) no legitima o sacrifcio de outros, autnomos e igualmente imperativos para o Estado.

    O Brasil tem ainda um longo caminho a percorrer nesse terreno.Outra questo de suma relevncia brota da anlise do Caso Metzger, da lcida interpretao do TEDH, no sentido de

    que o reconhecimento da culpabilidade do acusado atravs da sentena condenatria no justifica a durao excessiva doprocesso. um importante alerta, frente equivocada tendncia de considerar que qualquer abuso ou excesso estjustificado pela sentena condenatria ao final proferida, como se o fim justificasse os arbitrrios meios empregados.Desnecessria qualquer argumentao em torno do grave erro desse tipo de premissa, mas perigosamente difundidaatualmente pelos movimentos repressivistas de lei e ordem, tolerncia zero etc.

    1.4.11. Concluindo: o Difcil Equilbrio entre a (De)Mora Jurisdicional e o Atropelo das Garantias Fundamentais

    At aqui nos ocupamos do direito de ser julgado num prazo razovel, seu fundamento, recepo pelo sistema jurdicobrasileiro, dificuldade no seu reconhecimento e os graves problemas gerados pela (de)mora jurisdicional.

    O processo nasceu para retardar e dilatar o prprio tempo da reao. Mas, ao lado dessa regra basilar, devemos(tambm) considerar que o processo que se prolonga indevidamente conduz a uma distoro de suas regras de

    funcionamento,137 e as restries processuais dos direitos do imputado, que sempre so precrias e provisrias, j noesto mais legitimadas, na medida em que adquirem contornos de sobrecusto inflacionrio da pena processual, algointolervel em um Estado Democrtico de Direito.

    Contudo, no se pode cair no outro extremo, no qual a durao do processo abreviada (acelerao antigarantista) no

  • para assegurar esses direitos, seno para viol-los, atropelando as garantias fundamentais.

    Como define PASTOR, 138 no existe nada mais demonstrativo da arbitrariedade de um procedimento que os juzossumrios ou sumarssimos em matria penal, pois eles impedem que o imputado possa exercer todas as faculdades prpriasde um processo penal adequado Constituio democrtica. Isso nos remete a um primeiro ponto de partida, que analisaro problema a partir da perspectiva dos direitos do imputado. O processo penal reclama tempo suficiente para satisfao, complenitude, de seus direitos e garantias processuais.

    Nesse sentido, a CADH prev no seu art. 8, 2, c, que:

    2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocncia enquanto no se comprove legalmente sua culpa.Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, s seguintes garantias mnimas:c) concesso ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparao de sua defesa; (grifo nosso).

    A CADH no se contentou em prever o direito aos meios adequados de defesa, seno que consagrou, de formacumulativa (conjuno aditiva e), a garantia de concesso ao acusado de tempo. Trata-se de garantir o tempo da defesa,na medida em que a eficcia dessa garantia est pendente de tempo para seu preparo. Tem-se assim uma clara orientao a

    ser seguida: em caso de dvida, o tempo est a favor do acusado. 139 Isso implica vedao ao atropelo das garantiasfundamentais (acelerao antigarantista) e, ao mesmo tempo, negao dilao indevida do processo penal.

    Devemos considerar, ainda, que existe uma clara relao entre o aumento do nmero de processos com a durao queeles acabaro tendo, de modo que a panpenalizao, gerada por movimentos como law and order e tolerncia zero,sobrecarrega a Justia Penal, muitas vezes com condutas que deveriam ser penalmente irrelevantes (eis que passveis deresoluo em outras esferas, como cvel e direito administrativo sancionador), entupindo juzes e tribunais com volumesabsurdos de trabalho e, em ltima anlise, aumentando a durao dos processos.

    De nada servir um simplrio (seno simblico) aumento de pessoal, pois o volume de processos criminais gerados pelamaximizao do Direito Penal inalcanvel, ainda mais para um Estado que tende, cada vez mais, a ser mnimo.

    interessante o infindvel ciclo que se estabelece: o Estado se afasta completamente da esfera social, explode a violnciaurbana. Para remediar, tratamento penal para a pobreza. Diante da banalizao do Direito Penal, maiores sero a ineficinciado aparelho repressor e a prpria demora judicial (em relao a todos os crimes, mas especialmente dos mais graves, quedemandam maior dose de tempo, diante de sua complexidade). Entulham-se as varas penais e evidencia-se a letargia daJustia Penal. Nada funciona. A violncia continua e sua percepo amplia-se, diante da impunidade que campeia. Que fazer?Subministrar doses ainda maiores de Direito Penal. E o ciclo se repete.

    consequncia natural da complexidade, onde os diversos elementos atuam em rede, numa permanente relao einterao, sendo invivel pensar em compartimentos estanques e hermticos, que permitam tratamentos isolados.

    Mas a situao pode ficar ainda mais grave, quando o tratamento vem acompanhado por doses de utilitarismo processual,pois tambm deve-se acelerar o processo, para torn-lo ainda mais eficiente. Comea ento o sacrifcio lento e paulatinodos direitos fundamentais. o bito do Estado Democrtico de Direito e o nascimento de um Estado Policial, autoritrio. Oresto da histria por todos conhecida.

    Vimos, assim, os dois extremos da questo tempo no processo penal: acelerao antigarantista e dilao indevida. Emambos, temos a negao da jurisdio, pois no basta qualquer juiz e qualquer julgamento, isto , a garantia da tutela

    jurisdicional exige qualidade e, nesse tema, ela est no equilbrio do direito a ser julgado num prazo razovel,140 enquantorecusa os dois extremos.

    A condenao do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Ximenes Lopes um marco emtermos de eficcia do sistema internacional de proteo aos direitos humanos, e, mesmo no tendo por objeto especfico adilao indevida, dela tratou e censura fez ao funcionamento da Justia nacional. Ao reconhecer a violao dos direitos vida, integridade e tambm ao processo no prazo razovel, condenando o Pas a indenizar os afetados, sinalizou a Corte queno tolerar o anormal funcionamento da Justia brasileira. Constitui assim um marco da maior relevncia.

    Dessarte, pensamos que:a) Deve haver um marco normativo interno de durao mxima do processo e da priso cautelar, construdo a partir das

    especificidades do sistema processual de cada pas, mas tendo como norte um prazo fixado pela Corte Americana deDireitos Humanos. Com isso, os tribunais internacionais deveriam abandonar a doutrina do no prazo, deixando delado os axiomas abertos, para buscar uma clara definio de prazo razovel, ainda que admitisse certo grau deflexibilidade atendendo s peculiaridades do caso. Inadmissvel a total abertura conceitual, que permite amplamanipulao dos critrios.

  • b) So insuficientes as solues compensatrias (reparao dos danos) e atenuao da pena (sequer aplicada pela imensamaioria de juzes e tribunais brasileiros), pois produz pouco ou nenhum efeito inibitrio da arbitrariedade estatal. necessrio que o reconhecimento da dilao indevida tambm produza a extino do feito, enquanto inafastvelconsequncia processual. O poder estatal de perseguir e punir deve ser estritamente limitado pela Legalidade, e issotambm inclui o respeito a certas condies temporais mximas. Entre as regras do jogo, tambm se inclui a limitaotemporal para exerccio legtimo do poder de perseguir e punir. To ilegtima como a admisso de uma prova ilcita,para fundamentar uma sentena condenatria, reconhecer que um processo viola o direito de ser julgado num prazorazovel e, ainda assim, permitir que ele prossiga e produza efeitos. como querer extrair efeitos legtimos de uminstrumento ilegtimo, voltando (absurda) mxima de que os fins justificam os meios.

    c) O processo penal deve ser agilizado . Insistimos na necessidade de acelerar o tempo do processo, mas desde aperspectiva de quem o sofre, enquanto forma de abreviar o tempo de durao da pena-processo. No se trata daacelerao utilitarista como tem sido feito, atravs da mera supresso de atos e atropelo de garantias processuais, oumesmo a completa supresso de uma jurisdio de qualidade, como ocorre na justia negociada, seno de aceleraratravs da diminuio da demora judicial com carter punitivo. diminuio de tempo burocrtico (verdadeirostempos mortos ) atravs da insero de tecnologia e otimizao de atos cartorrios e mesmo judiciais. Umareordenao racional do sistema recursal, dos diversos procedimentos que o CPP e leis esparsas absurdamentecontemplam e ainda, na esfera material, um (re)pensar os limites e os fins do prprio Direito Penal, absurdamentemaximizado e inchado. Trata-se de reler a acelerao no mais pela perspectiva utilitarista, mas sim pelo visgarantista, o que no constitui nenhum paradoxo.

    Atento questo, CARVALHO 141 leciona que a legislao seja aperfeioada no sentido do estabelecimento de prazosrazoveis s decises judiciais em sede executiva, mas apreendendo os valores nsitos ao Pacto de So Jos, sejam criadastcnicas judiciais idneas a uma clere deciso sobre os incidentes de execuo penal.

    Ainda que estivesse se ocupando da execuo penal (sem dvida um ponto sensvel da questo), sua acertada indicaoencontra plena ressonncia em todo o processo penal, especialmente a resoluo ficta, que SALO busca inspirao noCdigo de Processo Penal Paraguaio, no sentido da concesso automtica dos direitos pleiteados em caso de omisso dospoderes jurisdicionais.

    Em suma, um captulo a ser escrito no processo penal brasileiro o direito de ser julgado num prazo razovel, numprocesso sem dilaes indevidas, mas tambm sem atropelos. No estamos aqui buscando solues ou definies cartesianasem torno de to complexa temtica, seno dando um primeiro e importante passo em direo soluo de um graveproblema, e isso passa pelo necessrio reconhecimento desse jovem direito fundamental.

    2. Princpio Acusatrio: Separao de Funes e Iniciativa Probatria das Partes. A Imparcialidade do JulgadorPara compreenso dessa garantia, imprescindvel a leitura dos captulos anteriores, quando tratamos dos Sistemas

    Processuais Penais Inquisitrio e Acusatrio. Partindo dos conceitos l definidos, cumpre agora destacar alguns aspectos.

    Inicialmente, no prev nossa Constituio expressamente a garantia de um processo penal orientado pelo sistemaacusatrio. Contudo, nenhuma dvida temos da sua consagrao, que no decorre da lei, mas da interpretao sistemticada Constituio. Para tanto, basta considerar que o projeto democrtico constitucional impe uma valorizao do homem edo valor dignidade da pessoa humana, pressupostos bsicos do sistema acusatrio. Recorde-se que a transio do sistemainquisitrio para o acusatrio , antes de tudo, uma transio de um sistema poltico autoritrio para o modelo democrtico.Logo, democracia e sistema acusatrio compartilham uma mesma base epistemolgica. Para alm disso, possui ainda nossaConstituio uma srie de regras que desenha um modelo acusatrio, como por exemplo:

    titularidade exclusiva da ao penal pblica por parte do Ministrio Pblico (art. 129, I);

    contraditrio e ampla defesa (art. 5, LV); devido processo legal (art. 5, LIV);

    presuno de inocncia (art. 5, LVII); exigncia de publicidade e fundamentao das decises judiciais (art. 93, IX).

    Essas so algumas regras inerentes ao sistema acusatrio, praticamente inconciliveis com o inquisitrio, que do oscontornos do modelo (acusatrio) constitucional.

    Compreende-se assim que o modelo constitucional acusatrio, em contraste com o CPP, que nitidamente inquisitrio.O problema situa-se, agora, em verificar a falta de conformidade entre a sistemtica prevista no Cdigo de Processo

    Penal de 1941 e aquela da Constituio, levando a que afirmemos, desde j, que todos os dispositivos do CPP que sejam de

  • natureza inquisitria so substancialmente inconstitucionais e devem ser rechaados.

    Para tanto, recordemos que no apenas o Ministrio Pblico o agente exclusivo da acusao, garantindo aimparcialidade do juiz e submetendo sua atuao prvia invocao por meio da ao penal, mas, principalmente, que acarga probatria inteiramente do acusador e que o juiz no deve ter qualquer tipo de ativismo probatrio.

    A imparcialidade do julgador decorre no de uma virtude moral, mas de uma estrutura de atuao. 142 No umaqualidade pessoal do juiz, mas uma qualidade do sistema acusatrio. Por isso a importncia de mant-lo longe da iniciativaprobatria, pois quando o juiz atua de ofcio, funda uma estrutura inquisitria.

    A gesto da prova deve estar nas mos das partes (mais especificamente, a carga probatria est inteiramente nas mosdo acusador), assegurando-se que o juiz no ter iniciativa probatria , mantendo-se assim suprapartes e preservando suaimparcialidade.

    Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutrios (como o famigerado art. 156 do CPP) devem serexpurgados do ordenamento ou, ao menos, objeto de leitura restritiva e cautelosa, pois patente a quebra da igualdade, docontraditrio e da prpria estrutura dialtica do processo. Como decorrncia, fulminada est a principal garantia dajurisdio: a imparcialidade do julgador. O sistema acusatrio exige um juiz-espectador, e no um juiz-ator (tpico domodelo inquisitrio).

    Como ensina JACINTO COUTINHO, 143 se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstituio do crime,enquanto fato histrico, atravs da instruo probatria, a gesto da prova o princpio unificador que ir identificar se osistema inquisitrio ou acusatrio. Se a gesto da prova est nas mos do juiz, como ocorre no nosso sistema, luz do art.156 (entre outros), estamos diante de um sistema inquisitrio (juiz-ator). Contudo, quando a gesto da prova est confiada spartes, est presente o ncleo fundante de um sistema acusatrio (juiz-espectador).

    Assim, ao contrrio do afirmado por muitos, nosso sistema inquisitrio. JACINTO COUTINHO ensina que no existeum sistema misto porque (...) no h mais sistema processual puro, razo pela qual tem-se, todos, como sistemas mistos.No obstante, no preciso grande esforo para entender que no h e nem pode haver um princpio misto, o que, porevidente, desfigura o dito sistema. Assim, para entend-lo, faz-se mister observar o fato de que ser misto significa ser, naessncia, inquisitrio ou acusatrio, recebendo a referida adjetivao por conta dos elementos (todos secundrios), que deum sistema so emprestados ao outro.

    Logo, devem ser considerados substancialmente inconstitucionais todos os dispositivos do CPP, como os arts. 5, 127,156, 209, 234, 311, 383, 385 etc., que violem as regras do sistema acusatrio constitucional.

    3. Presuno de Inocncia (ou um Dever de Tratamento)A presuno de inocncia remonta ao Direito romano (escritos de Trajano), mas foi seriamente atacada e at invertida na

    inquisio da Idade Mdia. Basta recordar que na inquisio a dvida gerada pela insuficincia de provas equivalia a umasemiprova, que comportava um juzo de semiculpabilidade e semicondenao a uma pena leve. Era na verdade umapresuno de culpabilidade. No Directorium Inquisitorum , EYMERICH orientava que o suspeito que tem uma testemunhacontra ele torturado. Um boato e um depoimento constituem, juntos, uma semiprova e isso suficiente para umacondenao.

    A presuno de inocncia e o princpio de jurisdicionalidade foram, como explica FERRAJOLI, 144 finalmente,consagrados na Declarao dos Direitos do Homem de 1789. A despeito disso, no fim do sculo XIX e incio do sculo XX,a presuno de inocncia voltou a ser atacada pelo verbo totalitrio e pelo fascismo, a ponto de MANZINI cham-la deestranho e absurdo extrado do empirismo francs.

    Partindo de uma premissa absurda, MANZINI chegou a estabelecer uma equiparao entre os indcios que justificam aimputao e a prova da culpabilidade. O raciocnio era o seguinte: como a maior parte dos imputados resultavam serculpados ao final do processo, no h o que justifique a proteo e a presuno de inocncia. Com base na doutrina deManzini, o prprio Cdigo de Rocco de 1930 no consagrou a presuno de inocncia, pois era vista como um excesso deindividualismo e garantismo.

    No Brasil, a presuno de inocncia est expressamente consagrada no art. 5, LVII, da Constituio, sendo o princpioreitor do processo penal e, em ltima anlise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual atravs do seu nvel deobservncia (eficcia).

    Tal sua relevncia que AMILTON B. de CARVALHO 145 afirma que o Princpio da Presuno de Inocncia noprecisa estar positivado em lugar nenhum: pressuposto para seguir Eros , nesse momento histrico, da condio

  • humana.

    A presuno de inocncia , ainda, decorrncia do princpio da jurisdicionalidade, como explica FERRAJOLI, 146 pois,se a jurisdio a atividade necessria para obteno da prova147 de que algum cometeu um delito, at que essa prova nose produza, mediante um processo regular, nenhum delito pode considerar-se cometido e ningum pode ser consideradoculpado nem submetido a uma pena.

    Segue o autor 148 explicando que um princpio fundamental de civilidade, fruto de uma opo garantista a favor datutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso tenha-se que pagar o preo da impunidade de algum culpvel. Issoporque, ao corpo social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punidos, pois o maior interesse que todos osinocentes, sem exceo, estejam protegidos.

    Se verdade que os cidados esto ameaados pelos delitos, tambm o esto pelas penas arbitrrias, fazendo com que apresuno de inocncia no seja apenas uma garantia de liberdade e de verdade, seno tambm uma garantia de segurana

    (ou de defesa social),149 enquanto segurana oferecida pelo Estado de Direito e que se expressa na confiana dos cidadosna Justia. uma defesa que se oferece ao arbtrio punitivo. Destarte, segue FERRAJOLI, o medo que a Justia inspira noscidados signo inconfundvel de perda da legitimidade poltica da jurisdio e, ao mesmo tempo, de sua involuo irracionale autoritria.

    Assim, cada vez que un imputado tiene razn para temer a un juez, quiere decir que ste se halla fuera de lalgica del estado de derecho: el miedo, y tambin la sola desconfianza y la no seguridad del inocente, indican la

    quiebra de la funcin misma de la jurisdiccin penal y la ruptura de los valores polticos que la legitiman.150

    BECCARIA,151 a seu tempo, j chamava a ateno para o fato de que um homem no pode ser considerado culpadoantes da sentena do juiz; e a sociedade s lhe pode retirar a proteo pblica depois que seja decidido ter eleviolado as condies com as quais tal proteo lhe foi concedida.

    Sob a perspectiva do julgador, a presuno de inocncia deve(ria) ser um princpio da maior relevncia, principalmenteno tratamento processual que o juiz deve dar ao acusado. Isso obriga o juiz no s a manter uma posio negativa (no oconsiderando culpado), mas sim a ter uma postura positiva (tratando-o efetivamente como inocente).

    Podemos extrair da presuno de inocncia 152 que a formao do convencimento do juiz deve ser construdo emcontraditrio (Fazzalari), orientando-se o processo, portanto, pela estrutura acusatria que impe a estrutura dialtica emantm o juiz em estado de alheamento (rechao figura do juiz-inquisidor com poderes investigatrios/instrutrios econsagrao do juiz de garantias ou garantidor).

    Na mesma linha, VEGAS TORRES, 153 abordando o art. 24.2 da Constituio Espanhola, explica que tal garantiaestende sua eficcia alm do processo penal, incluindo os demais ramos da jurisdio e, mais alm inclusive, do campopropriamente jurisdicional, pois alcana at a atividade administrativa sancionadora.

    A partir da anlise constitucional e tambm do art. 9 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado,154 de 1789,VEGAS TORRES155 aponta para as trs principais manifestaes (no excludentes, mas sim integradoras) da presuno deinocncia:

    a) um princpio fundante, em torno do qual construdo todo o processo penal liberal, estabelecendo essencialmente

    garantias para o imputado156 frente atuao punitiva estatal.b) um postulado que est diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual

    haveria de partir-se da ideia de que ele inocente e, portanto, deve reduzir-se ao mximo as medidas que restrinjamseus direitos durante o processo (incluindo-se, claro, a fase pr-processual).

    c) Finalmente, a presuno de inocncia uma regra diretamente referida ao juzo do fato que a sentena penal faz. suaincidncia no mbito probatrio, vinculando exigncia de que a prova completa da culpabilidade do fato uma cargada acusao, impondo-se a absolvio do imputado se a culpabilidade no ficar suficientemente demonstrada.

    Por fim, numa anlise sistemtica, quando a Constituio ordena que todos sejam julgados pelo juiz natural(predeterminado por lei); que aos acusados em geral esto assegurados o contraditrio e a ampla defesa; que os atosprocessuais so pblicos; que ao imputado est assegurado o direito de silncio e o de no fazer prova contra si mesmo(nemo tenetur se detegere); a garantia da presuno de inocncia, enfim, ao assegurar todas as garantias inerentes ao devidoprocesso legal, no est dizendo outra coisa, segundo CARRARA,157 que:

  • Haced esto, porque el hombre de quien vosotros sospechis es inocente, y no podis negarle su inocencia mientras no hayisdemostrado su culpabilidad, y no podeis llegar a esa demostracin si no marchis por el camino que os sealo.

    Com acerto, ADAUTO SUANNES 158 chama a ateno para o fato de que, por aplicao elementar do princpioconstitucional da isonomia e do ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus , no existem pessoas maispresumidas inocentes e pessoas menos presumidas. Todos somos presumidamente inocentes, qualquer que seja o fato quenos atribudo.

    Em sendo assim e s pode ser assim, afirma categoricamente SUANNES 159 , nada justifica que algum,simplesmente pela hediondez do fato que se lhe imputa, deixe de merecer o tratamento que sua dignidade de pessoahumana exige. Nem mesmo sua condenao definitiva o excluir do rol dos seres humanos, ainda que em termosprticos isso nem sempre se mostre assim. Qualquer distino, portanto, que se pretenda fazer em razo da naturezado crime imputado a algum inocente contraria o princpio da isonomia, pois a Constituio Federal no distingueentre mais-inocente e menos-inocente. O que deve contar no o interesse da sociedade, que tem na ConstituioFederal, que prioriza o ser humano, o devido tratamento, mas o respeito dignidade do ser humano, qualquer seja ocrime que lhe imputado.

    Por tudo isso, a presuno de inocncia, enquanto princpio reitor do processo penal, deve ser maximizada em todas suasnuances, mas especialmente no que se refere carga da prova ( regla del juicio ) e s regras de tratamento do imputado(limites publicidade abusiva [estigmatizao do imputado] e limitao do (ab)uso das prises cautelares).

    A presuno de inocncia afeta, diretamente, a carga da prova (inteiramente do acusador, diante da imposio do indubio pro reo ); a limitao publicidade abusiva (para reduo dos danos decorrentes da estigmatizao prematura dosujeito passivo); e, principalmente, a vedao ao uso abusivo das prises cautelares . Voltaremos a essas questes quandotratarmos desses institutos.

    Em suma: a presuno de inocncia impe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o ru sejatratado como inocente), que atua em duas dimenses: interna ao processo e exterior a ele.

    Na dimenso interna, um dever de tratamento imposto primeiramente ao juiz, determinando que a carga da provaseja inteiramente do acusador (pois, se o ru inocente, no precisa provar nada) e que a dvida conduza inexoravelmente absolvio; ainda na dimenso interna, implica severas restries ao (ab)uso das prises cautelares (como prender algumque no foi definitivamente condenado?).

    Externamente ao processo, a presuno de inocncia exige uma proteo contra a publicidade abusiva e a estigmatizao(precoce) do ru. Significa dizer que a presuno de inocncia (e tambm as garantias constitucionais da imagem, dignidade eprivacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democrticos abusiva explorao miditica em torno do fatocriminoso e do prprio processo judicial. O bizarro espetculo montado pelo julgamento miditico deve ser coibido pelaeficcia da presuno de inocncia.

    4. Contraditrio e Ampla Defesa

    4.1. Direito ao Contraditrio

    O contraditrio pode ser inicialmente tratado como um mtodo de confrontao da prova e comprovao da verdade,fundando-se no mais sobre um juzo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: aacusao (expresso do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expresso do interesse do acusado [e da sociedade] emficar livre de acusaes infundadas e imune a penas arbitrrias e desproporcionadas). imprescindvel para a prpriaexistncia da estrutura dialtica do processo.

    O ato de contradizer160 a suposta verdade afirmada na acusao (enquanto declarao petitria) ato imprescindvelpara um mnimo de configurao acusatria do processo. O contraditrio conduz ao direito de audincia e s alegaesmtuas das partes na forma dialtica.

    Por isso, est intimamente relacionado com o princpio do audiatur et altera pars , pois obriga que a reconstruo dapequena histria do delito seja feita com base na verso da acusao (vtima), mas tambm com base no alegado pelosujeito passivo. O adgio est atrelado ao direito de audincia, no qual o juiz deve conferir a ambas as partes, sobre pena de

    parcialidade. Para W. GOLDSCHMIDT, 161 tambm serve para justificar a face igualitria da justia, pois quien prestaaudiencia a una parte, igual favor debe a la otra.

    O juiz deve dar ouvida a ambas as partes, sob pena de parcialidade, na medida em que conheceu apenas metade doque deveria ter conhecido. Considerando o que dissemos acerca do processo como jogo, das chances e estratgias que as

  • partes podem lanar mo (legitimamente) no processo, o sistema exige apenas que seja dada a oportunidade de fala. Ouseja, o contraditrio observado quando se criam as condies ideais de fala e oitiva da outra parte, ainda que ela no queira

    utilizar-se de tal faculdade, at porque pode lanar mo do nemo tenetur se detegere.162

    O contraditrio uma nota caracterstica do processo, uma exigncia poltica, e mais do que isso, se confunde com a

    prpria essncia do processo. Como define RANGEL DINAMARCO 163 claramente inspirado em Elio Fazzalari , oconceito moderno de processo necessariamente deve envolver o procedimento e o contraditrio, sem o que no existeprocesso.

    A interposio de alegaes contrrias frente ao rgo jurisdicional, a prpria discusso, explica GUASP, 164 no s um eficaz instrumento tcnico que utiliza o direito para obter a descoberta dos fatos relevantes para o processo, seno que setrata de verdadeira exigncia de justia que nenhum sistema de Administrao de Justia pode omitir . autnticaprescrio do direito natural, dotada de inevitvel contedo imperativo. Talvez seja o princpio de direito natural maiscaracterstico, entre todos os que fazem referncia Administrao da Justia.

    No podemos esquecer que Ministrio Pblico e Defesa esto feitos para contraditarem-se, a ponto de

    CARNELUTTI165 afirmar que la loro contraddizione necessria al giudice come lossigeno nellaria che respira. Ildubbio un passaggio obbligato sulla via della verit; guai al giudice che non dubita! (...) Non tanto la possibilitaquanto la effettivit del contraddittorio sono una garanzia imprescindibile della istruzione. Tanto pi vale codestagaranzia quanto pi siano equilibrate le forze dei due lottatori.

    Numa viso moderna, o contraditrio engloba o direito das partes de debater frente ao juiz, mas no suficiente quetenham a faculdade de ampla participao no processo; necessrio tambm que o juiz participe intensamente (no confundircom juiz-inquisidor ou com a atribuio de poderes instrutrios ao juiz), respondendo adequadamente s peties erequerimentos das partes, fundamentando suas decises (inclusive as interlocutrias), evitando atuaes de ofcio e as

    surpresas. Ao sentenciar, crucial que observe a correlao acusao-defesa-sentena. 166

    Contudo, contraditrio e direito de defesa so distintos, pelo menos no plano terico. PELLEGRINI GRINOVER 167explica que defesa e contraditrio esto indissoluvelmente ligados, porquanto do contraditrio (visto em seu primeiromomento, da informao) que brota o exerccio da defesa; mas esta como poder correlato ao de ao que garante ocontraditrio. A defesa, assim, garante o contraditrio, mas tambm por este se manifesta e garantida. Eis a ntima relao einterao da defesa e do contraditrio.

    No mesmo sentido, LEONE168 faz a distino e afirma que no se pode identificar contraditrio e direito de defesa, poiso ltimo pode ser exercido sem que seja instaurado o contraditrio. Para o autor, o contraditrio consiste na participaocontempornea e contraposta de todas as partes no processo. Ademais, destaca que o contraditrio da essncia daestrutura dialtica sobre a qual deve estruturar-se o processo penal.

    Assim, o contraditrio deve ser visto basicamente como o direito de participar, de manter uma contraposio em relao acusao e de estar informado de todos os atos desenvolvidos no iter procedimental.

    A relevncia da distino reside na possibilidade de violar um deles sem a violao simultnea do outro, com reflexos nosistema de nulidades dos atos processuais. possvel cercear o direito de defesa pela limitao no uso de instrumentosprocessuais, sem que necessariamente tambm ocorra violao do contraditrio. A situao inversa , teoricamente, possvel,mas pouco comum, pois em geral a ausncia de comunicao gera a impossibilidade de defesa.

    Destacamos que na teoria facilmente apontvel a distino entre contraditrio e direito de defesa. Sem embargo,ningum pode omitir que o limite que separa ambos tnue e, na prtica, s vezes quase imperceptvel. Desse modo,entendemos que no constitui pecado mortal afirmar que em muitos momentos processuais o contraditrio e o direito dedefesa se fundem, e a distino terica fica isolada diante da realidade do processo. Nessa linha, parte da doutrina no faz

    uma distino clara entre ambos, e MANZINI169 chega inclusive a afirmar que a defesa um elemento do contraditrio.No mesmo sentido, RANGEL DINAMARCO explica que os dois polos da garantia do contraditrio so: informao e

    reao. A efetividade do contraditrio no Estado Democrtico de Direito est amparada no direito de informao eparticipao dos indivduos na Administrao de Justia. Para participar, imprescindvel ter a informao. A participao no

    processo se realiza por meio da reao, vista como resistncia pretenso jurdica (acusatria e no punitiva) 170 articulada,e isso expressa a dificuldade prtica, em certos casos, de distinguir entre a reao e o direito de defesa.

    Assim o contraditrio , essencialmente, o direito de ser informado e de participar no processo. o conhecimento

  • completo da acusao, o direito de saber o que est ocorrendo no processo, de ser comunicado de todos os atosprocessuais. Como regra, no pode haver segredo (anttese) para a defesa, sob pena de violao ao contraditrio.

    Trata-se (contraditrio e direito de defesa) de direitos constitucionalmente assegurados no art. 5, LV, da CB:

    Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral so assegurados o contraditrio e ampla defesa,com os meios e recursos a ela inerentes.

    A partir desse postulado, vejamos agora algumas questes em torno do direito de defesa (tcnica e pessoal [positiva enegativa]) e, aps, a incidncia, juntamente com o contraditrio, nas fases pr-processual, processual e de execuo penal.

    4.2. Direito de Defesa: Tcnica e Pessoal

    4.2.1. Defesa Tcnica

    A defesa tcnica supe a assistncia de uma pessoa com conhecimentos171 tericos do Direito, um profissional, que sertratado como advogado de defesa, defensor ou simplesmente advogado. Explica FENECH 172 que a defesa tcnica levada a cabo por pessoas peritas em Direito, que tm por profisso o exerccio dessa funo tcnico-jurdica de defesa daspartes que atuam no processo penal, para pr de relevo seus direitos.

    A justificao da defesa tcnica decorre de uma esigenza di equilibrio funzionale173 entre defesa e acusao e tambmde uma acertada presuno de hipossuficincia do sujeito passivo, de que ele no tem conhecimentos necessrios esuficientes para resistir pretenso estatal, em igualdade de condies tcnicas com o acusador. Essa hipossuficincia leva oimputado a uma situao de inferioridade ante o poder da autoridade estatal encarnada pelo promotor, policial ou mesmojuiz. Pode existir uma dificuldade de compreender o resultado da atividade desenvolvida na investigao preliminar, gerandouma absoluta intranquilidade e descontrole. Ade