auto da barca do inferno- resumo

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OFICINA LITERÁRIA 2009: “AO PÉ DA LETRA” Prof. Luci Rocha AUTO DA BARCA DO INFERNO – GIL VICENTE (1517) 1) ESCOLA LITERÁRIA: Humanismo (1418/1527) 2) CONTEXTO HISTÓRICO: O Humanismo corresponde a um período de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Daí o seu caráter bifrontal: por um lado apresenta postura moralista-cristã, por outro, um espírito crítico, questionador. Quanto ao contexto histórico, é uma época de grande efervescência social, cultural e política: As grandes navegações, o surgimento da burguesia, sistema absolutista, Mercantilismo, Mecenatismo Oficial, Dinastia de Avis, etc 3) MARCO INICIAL: O marco inicial do Humanismo em Portugal tem sido apontado por duas datas: 1418, quando D. Duarte nomeia Fernão Lopes a guarda-mor da Torre do Tombo e 1434, quando este é nomeado cronista-mor do Reino de Portugal. Três fatos importantes contribuíram para a Literatura do período humanista em Portugal: Historiografia de Fernão Lopes Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (A Poesia palaciana) Teatro de Gil Vicente 4) ANÁLISE DA OBRA 4.1) Introdução "Ridendo castigat mores": sempre preocupado em registrar as falhas humanas para fazer uma crítica construtiva, Gil Vicente adotou como lema de seu teatro a famosa frase latina "Rindo, corrigem-se os costumes." O riso fácil – resultado de trocadilhos, palavrões, situações embaraçosas - é um artifício do qual ele se valia para chegar à correção de costumes. 4.2) Estrutura e Linguagem Classificado como teatro alegórico, as personagens apresentam, através da fala, traços que denunciam sua classe social. Os trocadilhos, as rimas, o seu domínio sobre a poesia e sobre a Língua Portuguesa, transformaram a obra de Gil Vicente em um clássico atemporal. O texto é construído de quadros isolados, justapostos, que se interligam pela presença do Anjo e do Diabo que estabelecem os diálogos com os personagens. As cenas possuem seqüência linear e são estruturadas em versos redondilhos maiores, rimados, com tom coloquial e intenção marcadamente doutrinária (moralizante). A obra deixa clara, em algumas passagens, a fusão do latim com o espanhol. DIABO: /Vê/ nhais/ em/ bo/ ra en/ for/ ca/ do 1 2 3 4 5 6 7 / que/ diz/ lá/ Gar/ cia/ Mo/ niz? 1 2 3 4 5 6 7 ENFORCADO: Eu/ vos/ di/ rei o/ que e/ le/ diz Que/ fui/ bem/ a/ ven /tu/ ra/ do

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Page 1: Auto Da Barca Do Inferno- Resumo

OFICINA LITERÁRIA 2009: “AO PÉ DA LETRA”

Prof. Luci Rocha

AUTO DA BARCA DO INFERNO – GIL VICENTE (1517)

1) ESCOLA LITERÁRIA: Humanismo (1418/1527)

2) CONTEXTO HISTÓRICO: O Humanismo corresponde a um período de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Daí o seu caráter bifrontal: por um lado apresenta postura moralista-cristã, por outro, um espírito crítico, questionador. Quanto ao contexto histórico, é uma época de grande efervescência social, cultural e política: As grandes navegações, o surgimento da burguesia, sistema absolutista, Mercantilismo, Mecenatismo Oficial, Dinastia de Avis, etc

3) MARCO INICIAL: O marco inicial do Humanismo em Portugal tem sido apontado por duas datas: 1418, quando D. Duarte nomeia Fernão Lopes a guarda-mor da Torre do Tombo e 1434, quando este é nomeado cronista-mor do Reino de Portugal.

Três fatos importantes contribuíram para a Literatura do período humanista em Portugal: � Historiografia de Fernão Lopes � Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (A Poesia palaciana) � Teatro de Gil Vicente

4) ANÁLISE DA OBRA 4.1) Introdução "Ridendo castigat mores": sempre preocupado em registrar as falhas humanas para fazer uma crítica construtiva, Gil Vicente adotou como lema de seu teatro a famosa frase latina "Rindo, corrigem-se os costumes." O riso fácil – resultado de trocadilhos, palavrões, situações embaraçosas - é um artifício do qual ele se valia para chegar à correção de costumes. 4.2) Estrutura e Linguagem Classificado como teatro alegórico, as personagens apresentam, através da fala, traços que denunciam sua classe social. Os trocadilhos, as rimas, o seu domínio sobre a poesia e sobre a Língua Portuguesa, transformaram a obra de Gil Vicente em um clássico atemporal. O texto é construído de quadros isolados, justapostos, que se interligam pela presença do Anjo e do Diabo que estabelecem os diálogos com os personagens. As cenas possuem seqüência linear e são estruturadas em versos redondilhos maiores, rimados, com tom coloquial e intenção marcadamente doutrinária (moralizante). A obra deixa clara, em algumas passagens, a fusão do latim com o espanhol.

DIABO: /Vê/ nhais/ em/ bo/ ra en/ for/ ca/ do 1 2 3 4 5 6 7

/ que/ diz/ lá/ Gar/ cia/ Mo/ niz? 1 2 3 4 5 6 7

ENFORCADO: Eu/ vos/ di/ rei o/ que e/ le/ diz

Que/ fui/ bem/ a/ ven /tu/ ra/ do

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Que/ pe/ los/ fur/ tos/ que eu/ fiz 1 2 3 4 5 6 7

Sou/ san/ to/ ca/ no/ ni/ za/ do

As rimas obedecem, geralmente, ao esquema ABBAACCA, como se pode ver na fala do onzeneiro,

transcrita abaixo:

ONZENEIRO Houlá! Hou! Demo barqueiro! A Sabês vós no que me fundo? B Quero lá tornar ao mundo B e trazer o meu dinheiro. A que aqueloutro marinheiro, A porque me vê vir sem nada, C dá-me tanta borregada C

como arrais lá do Barreiro. A

4.3) Cenário Um ancoradouro, no qual estão atracadas duas barcas. Todos os mortos, necessariamente, têm de passar por esse local, sendo julgados, absolvidos ou condenados; em seguida, levados à barca da Glória ou à barca do Inferno. 4.4) Personagens

� O Diabo: Personagem inegavelmente especial na arte de persuadir, é ágil no ataque, zomba, retruca, argumenta e penetra nas consciências humanas. Irônico, sádico, sedutor, impiedoso, insinuante e entusiasmado, representa o melhor personagem do texto em questão. Ao Diabo cabe denunciar os vícios e as fraquezas humanas, fazendo essas personagens rever suas fraquezas e aceitar seus destinos. Alegoricamente é o símbolo do Mal.

� O Anjo: Embora, às vezes, irônico, o anjo é quase indiferente, distante, inflexível. Intervém poucas vezes no julgamento, desconsiderando a maioria das personagens. Embora, alegoricamente, expresse o Bem, o anjo é essencial para que se configure o seu oponente, o Mal.

� Fidalgo (D. Henrique): É uma alegoria da nobreza, aparece trajando uma roupa requintada, acompanhado por um pajem que lhe segura o rabo da casaca e carrega-lhe a “cadeira de espaldar”, elementos característicos de seu status social. Seus pecados resumem-se na arrogância, ambição, vaidade, orgulho e tirania contra os pobres. Confia que sua mulher tenha ficado rezando por ele, porém o diabo se encarrega de informá-lo de que ela já estava com “outro de menos preço”. Termina aceitando seu destino, pois ao confiar em seu status, não viu sua perdição.

� Onzeneiro: Pode representar os agiotas ou banqueiros ambiciosos de hoje, é condenado pela usura, pela ganância e pela avareza. Tenta convencer o Diabo a deixá-lo retornar à vida para buscar seu dinheiro, mas acaba cedendo uma vez que o capitão da barca é irredutível, não o libera. O anjo avisa-lhe que se depender dele, ali o onzeneiro não embarca, pois o “bolsão” que ele traz ocupa um grande espaço e mesmo que esteja vazio, o coração do onzeneiro está cheio de pecados.

� Parvo (Joane): Joane é um personagem ingênuo que acha ter morrido de diarréia (“samicas de caganeira”); um bobo cujos pecados eram fruto de sua inocência. Ao chegar à ribeira da morte, não constava na lista infernal, mesmo assim o Diabo tenta enredá-lo para a sua barca. Joane percebe a artimanha e exorciza o arrais do Inferno com inúmeros palavrões, em um estilo nonsense. Dirige-se à barca do Anjo e é bem recebido. O Parvo é convocado para ajudar o Anjo a receber os mortos que hão de chegar.

� Sapateiro: representante dos artesãos e comerciantes, chega à embarcação do Diabo carregando seus instrumentos de trabalho, o avental e as fôrmas. O Diabo o acusa de ser um mentiroso que falseou na ideologia religiosa durante 30 anos, pois ouvia missas e depois roubava ao aumentar o

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tamanho dos sapatos. Na barca do Anjo, e sapateiro é logo interceptado por causa da “carga” que justifica seus pecados em vida.

� Frade (Frei Babriel): O Frade é alegre, cantante, bom dançarino e namorador. Ele acredita que, por ser um representante da fé, seus pecados não seriam considerados. Acompanhado de sua amante (Florença), chega cantando, dançando e paramentado para a guerra (traz embaixo do hábito um elmo (“casco), um escudo (“broquel”) e uma espada (“trinchão”)). Dá uma lição de esgrima ao diabo para mostrar o seu valor, mas o arrais do Inferno dirige-se a ele de forma muito irônica e antipática. Quando tenta embarcar para o Céu, é recebido pelo Parvo que o acusa de ter roubado a espada. Volta ao barco do Inferno e embarca com Florença.

� Brísida Vaz: Misto de alcoviteira e feiticeira, Brísida chega do outro lado recusando-se a entrar no barco do Diabo. Este, entrando no jogo charmoso dela, não tem muita pressa em convencê-la. Ele procura saber o que ela traz de pecados e descobre: “seiscentos virgos postiços”, “três arcas de feitiço”, “três armários de mentir”, “cinco cofres de confusão”, “furtos alheios” e ilusão por meio de moças que ela vendia, inclusive para os padres da Sé. Dizendo ser uma mártir sofrida, tenta embarcar para o Paraíso. Diante da barca do Anjo, Brísida utiliza uma linguagem doce e argumenta que fez coisas “mui divinas” na terra. O Anjo aborrece-se e manda-a embarcar do outro lado.

� Judeu: Estranhamente, o Judeu já chega querendo entrar na barca do Inferno. Para isso, oferece dinheiro ao Diabo, acrescentando que poderia pagá-lo ainda mais “por via de Semifará”. Estranho também é o fato de o Diabo recusar-se a embarcá-lo, implicando com o bode que o acompanha. O Judeu é outro personagem que não chega a falar com o Anjo. O Parvo é quem se dirige a ele, chamando-o de cabrão (corno) e comentando que o judeu teria “mijado nos finados” e comido carne de panela em dia santo. No final, considerando que o judeu era uma má pessoa, o Diabo ordena que ele vá rebocado em sua barca, juntamente com o bode que simbolizava uma prática da religião judaica, condenada pela Igreja Católica.

� O Corregedor: Era um tipo de juiz a quem caberia corrigir os abusos das autoridades da época, chega carregando processos e provavelmente segurando seu distintivo, uma insígnia de autoridade maior (“vara”). Ao ser recebido pelo Diabo, avisa logo que a carga que traz não é de seu agrado, mas o arrais ironiza chamando-o de “santo descorregedor”. O Corregedor tenta ludibriar o Diabo por meio palavras em latim, mas é surpreendido com o demo expressando-se na mesma língua. O diabo o acusa de ter aceitado suborno, juntamente com sua esposa. Enquanto o Corregedor, em latim, chama o nome de Deus, tentando salvar-se, o demo reforça que o corregedor teria abusado dos trabalhadores e dos ignorantes, lucrando com sua profissão. Além disso, ele mesmo confessa que escondeu seus pecados na hora da confissão.

� O Procurador: O advogado vem carregado de livros e depara-se com o Corregedor. Fica logo sabendo que vai para o Inferno e acha que é piada, mas vê que não tem saída quando se dirige ao Anjo e este aponta-lhes a causa de perdição de ambos: “pragas de papel”. Para piorar a situação, Joane interfere, utilizando um latim “macarrônico”, e diz que o Procurador e o Corregedor haviam “mijado nos campanairos” (torre da igreja onde ficam os sinos). Ambos embarcam com o Diabo e encontrando Brísida já acomodada, conversam intimamente com ela.

� O Enforcado: Provavelmente chamado de Pero de Lisboa, o Enforcado era um ladrão estúpido que, manipulado pelos espertos (Garcia Moniz), fora iludido. Passou pela prisão do Limoeiro, em Lisboa, em seguida foi condenado à forca. Segundo Garcia Moniz, essas condenações já eram suficientes para livrá-lo do Inferno e comer “pão e mel com São Miguel”. Porém, o Diabo o desengana e avisa-lhe que não terá salvação.

� Cavaleiros Cruzados: Finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que lutaram pelo triunfo da fé cristã e morreram em poder dos mouros. Passam cantando hinos de louvor a Deus, com suas espadas e escudos. O diabo intercepta-os, pedindo satisfações de onde vão e eles respondem seguramente que morreram no Norte da África e não devem satisfações a ele. O diabo ainda provoca, convidando-os para entrar na barca, mas eles respondem prontamente que “quem morre por Jesus Cristo/ não vai em tal barca como essa”. O Anjo os recebe bem, reconhecendo o valor desses cavaleiros, por terem morrido lutando pela Santa Igreja.

Curso de Redação: Val

(19) 3462 1391