avaliação africanas v - solange dours

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Literaturas africanas em língua portuguesa V – avaliação. Aluno: Solange Dours. Nº USP: 8193564 1) O Signo do fogo não faz da luta pela independência angolana na cidade de Luanda só o seu tema, e muito menos o mero pano de fundo para sua histórica. Muito pelo contrario, o Boaventura Cardosa pega essa luta e a sublima; e constrói por médio do enlace de planos diferentes um tecido denso que se resolve num momento de criação paradigmático. O seja, o relato adopta um cariz mítico. Na leitura, somos expostos à violência do regime colonial dum jeito sutil e eloquente, da mão do desenvolver da cotidianidade das personagens. Assim, essa violência não corporiza só sob a materialidade duma arma, mas se transforma num ambiente, um estado de coisas naturalizado, uma atmosfera espessa a traves da qual ela se faz sentir. E aí radica o realismo que nos permite sermos envoltos e sentirmos apelados. A atitude dos colegas da imprensa, as imprecações; o encarceramento; a figura do inspetor Renato, as posturas do pai do Quintas; as políticas, as decisões, os operativos sobre os musseques; constituem alguns entre muitos outros pontos, acontecimentos e modos em que o mundo colonial vai se desenrolando. E eles não são só sua manifestação, mas contribuem mesmo a cria-lo. Eis que “o mundo colonizado é um mundo cindido em dois”, maniqueísta. Isso é o que nos fala Fanon e é assim também que esse mundo parece querer ser administrado, no romance. As tensões se voltam mais ou menos manifestas, a latência vira confronto cru e explicito. Os bairros pobres

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Trabajo final de la materia Literaturas Africanas V

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Page 1: Avaliação Africanas v - Solange Dours

Literaturas africanas em língua portuguesa V – avaliação. Aluno: Solange Dours. Nº USP: 8193564

1) O Signo do fogo não faz da luta pela independência angolana na cidade de

Luanda só o seu tema, e muito menos o mero pano de fundo para sua histórica. Muito pelo

contrario, o Boaventura Cardosa pega essa luta e a sublima; e constrói por médio do enlace

de planos diferentes um tecido denso que se resolve num momento de criação

paradigmático. O seja, o relato adopta um cariz mítico.

Na leitura, somos expostos à violência do regime colonial dum jeito sutil e

eloquente, da mão do desenvolver da cotidianidade das personagens. Assim, essa violência

não corporiza só sob a materialidade duma arma, mas se transforma num ambiente, um

estado de coisas naturalizado, uma atmosfera espessa a traves da qual ela se faz sentir. E aí

radica o realismo que nos permite sermos envoltos e sentirmos apelados. A atitude dos

colegas da imprensa, as imprecações; o encarceramento; a figura do inspetor Renato, as

posturas do pai do Quintas; as políticas, as decisões, os operativos sobre os musseques;

constituem alguns entre muitos outros pontos, acontecimentos e modos em que o mundo

colonial vai se desenrolando. E eles não são só sua manifestação, mas contribuem mesmo a

cria-lo.

Eis que “o mundo colonizado é um mundo cindido em dois”, maniqueísta. Isso é o

que nos fala Fanon e é assim também que esse mundo parece querer ser administrado, no

romance. As tensões se voltam mais ou menos manifestas, a latência vira confronto cru e

explicito. Os bairros pobres são arrasados, a linha divisória ressalta clara no fundo

vermelho-sangue: “Entre a Baixa e os Musseques tinha uma linha de fogo latente a

separar, assim. Eram como que dois anticorpos a disputar a primazia do espaço em que

pretendiam se estabelecer.” Entre esses dois contrapartes cindidas existem relações de

subordinação reproduzidas pelo uso efetivo, cotidiano, descarnado e evidente da violência.

É por isso que não tem como conseguir uma apertura amistosa; é por isso que o povo dos

musseques toma as armas e acende fogo na terra. Fogo purificador, fogo cujas cinzas

fertilizam o caminho dum novo mundo.

Por isso, as equivalências entre o roteiro do romance e a analise do Fanon não só

não precisa ser forçado, se não até inclusive aparece natural. Pode-se perceber claramente a

presencia do diálogo entre os dois, pois o romance se aplica a desdobrar contradições para

fazê-las se resolver no avance violento dos de embaixo sobre os da cima: “Destruir o

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mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no

solo ou expulsá-la do território.”

De fato, o fogo da violência do colonizado, cria nele um novo homem. Fanon

acrescenta noutro fragmento: “A descolonização jamais passa despercebida porque atinge

o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de

inessecialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela roda-vida

da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma nova

linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é, em verdade, criação de homens

novos.”.

Assim também o signo –tal vez o índice- do fogo será a mudança profunda da

humanidade. Vejamos então o paralelo: “E o fogo seminal seria vermelho rubro,

transformaria tudo em vermelho, as coisas, os homens e a natureza. Os homens ficariam

vermelhos por dentro e por fora, e falariam uma linguagem vermelha e teriam nervos

vermelhos, de aço, e músculos forjados no vermelho e pés vermelhos da cor do sangue,

ignípedes, para caminhar todos os caminhos e todos os carreiros e todas as veredas.”.

Ora, o romance está longe de limitar-se a uma mera epopeia de violência redentora.

A discussão se volta mais interessante enquanto se considerar o desenvolvimento pessoal

das personagens e suas inter-relações. Um conjunto importante dessas subjetividades

interatua particularmente à mercê da participação na ‘associação’. Mas a associação está

longe de ser uma entidade perfeitamente coesa, e sim é uma organização em formação

cheia de tensões -como a mesma Angola. Então, é nesse marco que o relato se faz

complexo e se enriquece.

A ênfase da narrativa se coloca justamente sobre as desconfianças que atentam o

tempo tudo contra a estabilidade dessa organização. Quais são essas linhas de tensão, essas

fissuras que definem o ponto débil do conjunto? Eu considero que, se no Mayombe a

pertinência étnica ou tribal se codificava como núcleo conflitivo ao interior desse coletivo

diverso da futura e possível Angola – diversa como a selva-, no Signo do fogo, é a raça que

define os choques nas relações interpessoais. E isso significa colocar no centro da discussão

o mesmo critério para traçar a linha que cinde o mundo colonial em dois, pois: “Quando se

observa em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é

antes de mais nada o fato de pertenecer ou não a tal espécie, a tal raça.”.

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Nesse sentido, a associação presenta um panorama complexo: tem o branco que

renega dos seus; tem quem procura companhias nessa esfera mas é preto; quem percebe o

risco de seguir a mesma logica categorial dos dominadores e tenta se afastar; quem

considera um certo radicalismo ser fingido; e o radical mesmo, ainda sendo mulato. Nosso

resume é simples demais, mas permite observar como, além do que o autor põe na boca das

suas personagens, se ocupa de mostrar na diversidade prática, a inviabilidade duma divisão

tão contundente, assim. As personagens são de ‘raças’ diversas, e divergem no jeito de

pensar como considerar a relação entre raça e dominação, e daí, os métodos precisos para

acabar com essa dominação.

Esse radical que nomeamos, é o Beto da Vila. Ele é um maniqueísta à inversa, um

partidário de, poder-se-ia dizer, uma “discriminação positiva”, do negros-com-negros e

brancos-com-brancos, e mandar eles embora. O Boaventura nos presenta muito dele nesse

fragmento: “O quadro mental que lhe expressava melhor a ideia da mudança pelo fogo era

o de dois boxeadores em pleno ringue. De preferencia um combate entre um negro e um

branco. O negro a descarregar toda a fúria no branco. Beto da Vila se via sempre refletido

num Cassius Clay a bater duro num Boutiero. O negro tinha de ganhar sempre, tinha de se

vingar, assim. O adversário tinha de ser vencido pela força bruta.”. O Beto não é o único

que desconfia do Quintas e do Daskilas, mas é o mais enfático. E suas posições marcaram

varias discussões com o Guima. Mas é ele também quem tem a iniciativa de aprovisionar as

armas com as que o povo dos musseques ascende a terra. Ele precipita mesmo o desenlace

da narrativa no sentido do avance violento.

Afinal, as fugazes passagens míticas que iam estavam lá salpicadas e a narrativa

parecem fundir-se: a população vira herói. Mas onde é que ficam então as tensões que

foram exploradas, noutro nível, ao longo da narrativa toda? Será que é tão fácil quanto um

mundo ocupar cabalmente o lugar do outro, enterrando-o nas profundidades do desterro e a

repulsão? Qual mundo, definido segundo que critério? Vão os contrastes raciais, as

desigualdades econômicas acabar junto com o colonialismo? Como lidarmos com a

desconfiança e a diferencia? Não dá para saber, e é assim que o romance parece fechar

abrindo o espaço à utopia.