barbosa, antunha & mura, fabio [2011]. cconstruindo e reconstruindo territorios guarani dinamica...

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Journal de la société des américanistes 97-2 (2011) tome 97, n° 2 ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Pablo Antunha Barbosa et Fabio Mura Construindo e reconstruindo territórios Guarani: dinâmica territorial na fronteira entre Brasil e Paraguai (séc. XIX-XX) ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Avertissement Le contenu de ce site relève de la législation française sur la propriété intellectuelle et est la propriété exclusive de l'éditeur. Les œuvres figurant sur ce site peuvent être consultées et reproduites sur un support papier ou numérique sous réserve qu'elles soient strictement réservées à un usage soit personnel, soit scientifique ou pédagogique excluant toute exploitation commerciale. La reproduction devra obligatoirement mentionner l'éditeur, le nom de la revue, l'auteur et la référence du document. Toute autre reproduction est interdite sauf accord préalable de l'éditeur, en dehors des cas prévus par la législation en vigueur en France. Revues.org est un portail de revues en sciences humaines et sociales développé par le Cléo, Centre pour l'édition électronique ouverte (CNRS, EHESS, UP, UAPV). ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Référence électronique Pablo Antunha Barbosa et Fabio Mura, « Construindo e reconstruindo territórios Guarani: dinâmica territorial na fronteira entre Brasil e Paraguai (séc. XIX-XX) », Journal de la société des américanistes [En ligne], 97-2 | 2011, mis en ligne le 10 décembre 2014, consulté le 01 juin 2015. URL : http://jsa.revues.org/11963 Éditeur : Société des américanistes http://jsa.revues.org http://www.revues.org Document accessible en ligne sur : http://jsa.revues.org/11963 Document généré automatiquement le 01 juin 2015. La pagination ne correspond pas à la pagination de l'édition papier. © Société des Américanistes

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BARBOSA, Antunha & MURA, Fabio [2011]. Cconstruindo e Reconstruindo Territorios Guarani Dinamica Territorial Na Fronteira Entre Brasil e Paraguai

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  • Journal de la socit desamricanistes97-2 (2011)tome 97, n 2

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    Pablo Antunha Barbosa et Fabio Mura

    Construindo e reconstruindo territriosGuarani: dinmica territorial nafronteira entre Brasil e Paraguai(sc.XIX-XX)................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    AvertissementLe contenu de ce site relve de la lgislation franaise sur la proprit intellectuelle et est la proprit exclusive del'diteur.Les uvres figurant sur ce site peuvent tre consultes et reproduites sur un support papier ou numrique sousrserve qu'elles soient strictement rserves un usage soit personnel, soit scientifique ou pdagogique excluanttoute exploitation commerciale. La reproduction devra obligatoirement mentionner l'diteur, le nom de la revue,l'auteur et la rfrence du document.Toute autre reproduction est interdite sauf accord pralable de l'diteur, en dehors des cas prvus par la lgislationen vigueur en France.

    Revues.org est un portail de revues en sciences humaines et sociales dvelopp par le Clo, Centre pour l'ditionlectronique ouverte (CNRS, EHESS, UP, UAPV).

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    Rfrence lectroniquePablo Antunha Barbosa et Fabio Mura, Construindo e reconstruindo territrios Guarani: dinmica territorial nafronteira entre Brasil e Paraguai (sc.XIX-XX), Journal de la socit des amricanistes [En ligne], 97-2|2011, misen ligne le 10 dcembre 2014, consult le 01 juin 2015. URL: http://jsa.revues.org/11963

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    Journal de la socit des amricanistes, 97-2 | 2011

    Pablo Antunha Barbosa et Fabio Mura

    Construindo e reconstruindo territriosGuarani: dinmica territorial na fronteiraentre Brasil e Paraguai (sc.XIX-XX)Pagination de ldition papier : p. 287-318

    1 Os estudos sobre a organizao territorial guarani deram lugar a uma bibliografia muitoimportante, no entanto, a maioria das reflexes orbita hoje principalmente em torno dacategoria nativa de tekoha. Assim a definiu Meli e os cnjuges Grnberg em importante obrasobre os Pa-Tavyter:

    El tekoha es el lugar en que vivimos segn nuestra costumbre. [] Su tamao puede variar ensuperficie [], pero estructura y funcin se mantienen igual: tienen liderazgo religioso propio(tekoaruvixa) y poltico (mburuvixa, yvyraija) y fuerte cohesin social. Al tekoha correspondenlas grandes fiestas religiosas (avatikyry y mit pepy) y las decisiones a nivel poltico y formalen las reuniones generales (aty guasu). El tekoha tiene un rea bien delimitada generalmentepor cerros, arroyos o ros y es propiedad comunal exclusiva (tekohakuaaha); es decir que no sepermite la incorporacin o la presencia de extraos. El tekoha es una institucin divina (tekohae pyru jeguangypy) creada por ande Ru. (Meli et al. 1976, p.208)

    2 Temos que observar, contudo, que antes desse primeiro registro etnogrfico datado da segundametade da dcada de 1970, no parece constar na literatura especfica nenhuma referncia aesta categoria, exceo feita a importante obra do jesuta Montoya (1876), Tesoro de la lenguaguarani, publicada pela primeira vez em 1639. Neste dicionrio, muito usado posteriormentepor diversos autores, Montoya apresenta quatro verbetes que de algum modo indicariam aidia de coletividade e espao: tei, gura, amund e tekoha. O primeiro verbete, tei,se refere a uma categoria de ordem social e de formao coletiva baseada nas relaes deparentesco1. No segundo caso, gura, estabelece a relao entre parcialidades e espaosgeogrficos2. Por sua vez, amund, faz meno forma de distribuio das habitaes3. Porfim, tekoha, indicaria um espao domstico e/ou divino4. de se observar, no entanto, quepara nenhuma destas categorias territoriais Montoya descreve em detalhes a organizao sociala elas associadas. A noo de tekoha, com todas suas variaes ortogrficas, assemelha-se,assim, mais as categorias de tapui e tendpe que indicam justamente lugares de morada ede espao residencial, mas que no apresentam em momento algum as caractersticas de umterritrio estruturado. Apesar das fontes histricas serem escassas em descries que trazemdados sobre a organizao territorial dos ndios, Meli projeta, no entanto, uma continuidadehistrica entre a definio da categoria de tekoha apresentada em 1639 at os dias de hoje.

    [] El tipo de poblados que describen las fuentes jesuticas presentan notables coincidenciascon los tekoha, tal como se conocen a travs de la etnografa moderna; de ah que sea permitidoinducir supuestas analogas incluso para aquellos aspectos que la documentacin histrica noseal. (Meli 1986, p.104)

    3 Nota-se que este mesmo procedimento metodolgico no incomum em diversos outrosestudos que tratam da territorialidade guarani. Susnik, por exemplo, descreveu a organizaoespacial dos guarani pr-coloniais e histricos a partir das noes de tei e gura, tal comoelas foram definidas por Montoya em seu Tesoro No obstante, ao refletir sobre um possvelprocesso de hierarquizao poltica pelo qual esses ndios passavam s vsperas da conquista,Susnik (1979-1980), ao invs de usar uma noo contempornea ao processo analisado, prefereusar a categoria de tekoha tal como ela foi apresentada por Meli e os Grnberg sculos maistarde. O arquelogo Noelli, por sua vez, para argumentar tal continuidade, chegou ao pontode afirmar que sem tekoha no h teko5 e que:

    [] desde que adquiriram sua identidade tnica a partir da Proto-Famlia Lingstica Tupi-Guarani, os Guarani atravessaram mais de trs mil anos at os primeiros contatos com os invasores

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    vindos da Europa, reproduzindo fielmente sua cultura material e as tcnicas de sua confecoe uso, sua subsistncia. Concomitantemente, a linguagem definidora destes objetos, tcnicas ecomportamentos. (Noelli 1993, p.9)

    4 Estas perspectivas construram uma imagem trans-histrica, essencializada e contnua de umanica territorialidade guarani sem que fossem levadas em considerao as relaes intertnicase os dispositivos de dominao que de certa forma a determinaram. Observa-se, assim, queesses processos ao invs de serem analisados como coisas estticas poderiam como sugereBensa serem pensados justamente como situaes atravs da qual a cultura se torna umfenmeno historizado (Bensa 1998, pp.57-58). Nesse sentido, justamente no contexto deluta pela terra que a categoria de tekoha, definida hoje como um espao fisicamente delimitado,passa a ganhar um valor semntico especfico, os ndios atribuindo a ela grande relevncia,como veremos ao longo do texto.

    5 Portanto, de um ponto de vista metodolgico e seguindo as advertncias de Oliveira(1987, p. 89) tentaremos reconduzir os dados histricos a um eixo espao-temporal bemdelimitado que no nos permita reunir informaes procedentes de diferentes tribos ediferentes momentos num monstro mecnico e artificial que resultaria na construo deuma sociedade Guarani ideal e homognea. Para tanto, geograficamente nos focaremos naregio oriental do Paraguai e no cone sul do atual estado do Mato Grosso do Sul; espaofronteirio ocupado pelos kaiowa (pa-tavyter) e guarani-andva (ava-guarani) (Figura1).Cronologicamente, trabalharemos um perodo que abrange quase duzentos anos, desde aprimeira metade do sculoXIX at os dias de hoje. Tentaremos, assim, restituir a concatenaode acontecimentos histricos e polticas de Estado que foram dirigidas para a gesto eadministrao desses territrios e de suas populaes e que favoreceram a produo derelaes de dominao, processos de aldeamento e, conseqentemente, reaes indgenasacompanhadas de reajustamentos sociais e culturais bem especficos. Alm de trabalharcom informaes de campo provenientes, sobretudo, do lado brasileiro da fronteira, faremostambm uma leitura paralela das fontes histricas e das etnografias contemporneas. Amemria dos ndios, suas histrias e experincias de vida nos permitem pensar sobre as formasde territorialidade e assim recuar at as primeiras dcadas do sculoXX podendo, portanto,apreender boa parte do eixo espao-temporal aqui escolhido.

    6 Por fim, vale destacar que optamos por sistematizar as informaes apresentadas em quatrodiferentes situaes histricas (Oliveira 1988, p. 57) com o objetivo de construir umaperiodicidade com finalidades analticas que nos permita restituir as rupturas e ascontinuidades de cada perodo abordado, buscando entender desta forma quais foram osmecanismos e as lgicas que levaram os guarani contemporneos a valorizar em certoscontextos certas categorias territoriais como, por exemplo, as noes de tekoha e de tekohaguasu. Em outras palavras buscaremos refletir a partir do contexto da Guerra da TrpliceAliana, do Ciclo da Erva, da instituio das primeiras reservas e colnias indgenas no Brasil eno Paraguai e do perodo mais recente de organizao poltica de recuperao territorial quaisforam os reajustamentos histricos e culturais que ao longo das dcadas levaram os guarani aconceituarem amplas reas de ocupao em espaos de uso cada vez mais exclusivos, cujoslimites territoriais marcariam de forma indita a necessidade de separar fisicamente espaossociais e tnicos.

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    FIG.1Localizao dos grupos kaiowa e andva no oriente paraguajo e sul de Mao Grosso do Sul.

    A expanso das fronteiras nacionais e a Guerra da TrpliceAliana

    7 A iminncia da Guerra da Trplice Aliana (1864-1870) acelerou um processo j emandamento de consolidao e construo nacional, tanto no Paraguai como no Brasil6. Seuspreparativos imprimiram um movimento de colonizao do espao e de redefinio territorialque se embrenhou de forma definitiva nos territrios indgenas que at ento estavamlocalizados nas periferias dos estados envolvidos no conflito (Paraguai, Argentina, Uruguaie Brasil). Esse duplo processo de consolidao nacional e de expanso colonial instauroupor um lado um novo registro institucional e ideolgico demarcando um novo papel para osndios nas naes: elaborou, pensou e organizou um novo discurso sobre a raa, a identidadenacional, a miscigenao, a soberania e o territrio nacional (Susnik 1982; Gonzlez Rissottoe Rodriguez Varese de Gonzlez 1990; Schwarcz 1993). Por outro lado, na prtica, instalouum novo dispositivo de dominao, gesto e administrao sobre as populaes e os territriosindgenas ainda autnomos da regio (Carneiro da Cunha 1992; Areces 2007).

    8 Entre 1840 e 1889, durante todo o Segundo Reinado, distintos aldeamentos indgenas foramcriados em todo o Imprio brasileiro. O maior esforo do governo se concentrou nasfronteiras meridionais do pas (Amoroso 1998, p.45). Nas provncias de So Paulo, Parane Mato Grosso, e mais precisamente, nos vales ocidentais e orientais do rio Paran, foramestabelecidos diversos aldeamentos indgenas de tamanhos e durao variadas, sobretudo,com famlias Kaiowa (Cayu), andva (Guarany) e Kaingang (Coroados). Vale ressaltarainda que alm da populao indgena, os aldeamentos estavam tambm constitudos porafricanos livres, militares e colonos: um claro projeto de se fazer das colnias indgenas umlaboratrio-da-mistura capaz de criar o substrato de um novo campesinato nacional. Essesestabelecimentos foram dirigidos, na sua grande maioria e como em muitos outros espaos do

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    Imprio, por missionrios capuchinhos italianos que atuavam como funcionrios do governo.Alm de funcionarem apenas como misses religiosas esses espaos estiveram muitas vezesintegrados a um sistema mais amplo e associados a colnias militares operaram como pontosavanados da fronteira, isso tudo, vale lembrar, apenas uns vinte anos antes do incio da Guerrada Trplice Aliana (Amoroso 1998, p.42). Diante das dificuldades encontradas em relaoao estabelecimento de um comum acordo sobre a livre-navegao do rio Paraguai (Viana1948; Doratioto 2002) o governo brasileiro decidiu empreender a construo de uma via decomunicao que ligasse, via o interior, o Atlntico bacia do rio Paraguai, criando assim umnovo caminho para escoar a produo do Mato Grosso em direo ao Atlntico, sem passardeste modo pelos rios da Prata e Paraguai7. A administrao desse empreendimento ficou nasmos do baro de Antonina8 que para melhor realizar a construo desse caminho mandaempreender uma srie de expedies de reconhecimento que ficaram conhecidas na literaturacomo as Jornadas Meridionais.

    9 Joaquim Francisco Lopes9, por decreto de 21/05/1850, ficou encarregado da conduo dasexploraes. O norte-americano Joo Henrique Elliott10 o acompanharia como cartgrafo.Guiados principalmente por lnguas11 guarani reconhecidos como exmios canoeiros, Lopes eElliott explorariam por mais de dcada os afluentes ocidentais e orientais do rio Paran (rioTibagi, Paranapanema, Iva, Paran, Iguatemi, Ivinheima, Dourados, Brilhante) registrando,em diferentes relatrios, mapas e aquarelas o dia-a-dia dos contatos estabelecidos com osalojamentos indgenas encontrados no caminho, como tambm o progresso da colonizao deuma regio ainda desconhecida12. Alm de registrar a cronologia das expedies e da fundaodos aldeamentos indgenas no Paran, So Paulo e Mato Grosso, os relatrios de Lopes eElliott descrevem com preciosos detalhes etnogrficos como estavam estruturados os gruposdomsticos guarani antes do primeiro processo de aldeamento praticado pelo governo aps apromulgao do decreto imperial n426 de 1845 sobre a catequese e civilizao dos ndios.A organizao territorial guarani foi descrita a partir de ncleos familiares relativamenteautnomos e dispersos ao longo das bacias fluviais. interessante notar que Lopes rompecom a idia clssica de aldeia que fundamentaria a posterior construo dos aldeamentos ecaracteriza um espao de ocupao em alojamentos que se achavam disseminadas ecomo por bairros (Lopes 1850, p.230). Maiores detalhes sobre a territorialidade guarani naprimeira metade do sculoXIX aparecem em A Emigrao dos Cayuz (Elliot 1898) ondeso apresentados elementos ainda mais claros sobre as alianas existentes entre os distintosalojamentos dirigidos cada um deles por chefes de famlias. Elliott descreve neste textoa importncia que esses chefes familiares desempenharam num primeiro momento comoos principais e nicos mediadores capazes de articular as relaes entre os agentes do governoe os diferentes grupos locais que estavam espalhados pelas matas. Narrando a implicao docacique Liguaruj, que devido ao auxlio dado ao governo passar a ser conhecido mais tardecomo Capito Libnio (Cavaso 1981), Elliot descreve uma rede social ampla e uma estruturaterritorial subdividida capaz de reunir a partir da articulao dos chefes familiares umaquantidade significativa de pessoas dispostas a migrarem recm-criada colnia militar deJata. Para cada chefe de famlias estaria associado um grupo familiar de aproximadamente70pessoas13.

    Liguaruj no se demorou em mandar emissrios aos caciques que habitam as matas do Iguatemi,Inhaducarai, Tajai, Curupan e outros lugares, os quais foram prontos em anuir ao convite paraa emigrao; e ao voltar Sanches das suas exploraes achou no alojamento de Liguaruj setechefes de famlia e mais de quinhentos ndios de ambos os sexos e de toda a idade dispostos paraacompanh-lo. (Elliot 1898, p.437)

    10 A empresa relativamente bem sucedida de aldeamentos de ndios nas provncias do Parane So Paulo levou o governo imperial a decretar uma lei complementar em abril de 1857com o objetivo de criar os mesmos estabelecimentos ao sul da provncia do Mato Grosso.No artigo 1 da lei de 1857 fica estipulado que as colnias indgenas fundadas, ou quese houver de fundar nos sertes, entre as provncias do Paran e Mato Grosso teriam porfuno desenvolver a catequese promovida pelo baro de Antonina, alm de facilitar a

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    navegao fluvial entre as mesmas provncias (Lei de 25/04/1857 Regulamento acerca dasColnias Indgenas, Ano de 1857Provncias do Paran e Mato Grosso, ver Carneiro daCunha 1992). Assim, no artigo 2previa-se inicialmente a formao de oito colnias, sendoquatro na Provncia do Paran e as outras quatro na Provncia do Mato Grosso (ibid.). Noentanto, e ao que tudo indica, o nico estabelecimento erguido na provncia do Mato Grossocom ndios guarani estava localizado, segundo o 8 do 3artigo, margem esquerda dosrios Ivinheima, e Santa Maria, na confluncia destes (ibid.). Erguido em 1863 pelo freicapuchinho ngelo de Caramonico esse aldeamento esteve associado, como em muitos outroscasos, colnia Militar de Dourados iada, por sua vez, na dcada de 1860 nas cabeceirasdo rio de mesmo nome. Para atrair famlias guarani ao aldeamento projetado frei ngelousou de tcnicas relativamente comuns, realizando exploraes aos sertes com o objetivode estabelecer as alianas necessrias com os chefes locais. Consta que Frei ngelo depoisde uma excurso de alguns meses pelos bosques e rios daquele distrito regressou a capital,Cuiab, e apresentou ao ento presidente da provncia de Mato Grosso um cacique Cayue outro Guarany que vinham comunicar pessoalmente a vontade que tinham eles e todosseus subordinados de se aldearem regularmente a descrio do Governo (Albino de Carvalho1863, p. 88). No entanto, devido aos confrontos durante a guerra, esse aldeamento, assimcomo a Colnia Militar de Dourados, teve uma vida muito curta, tendo sido destruda no finaldo ano de 1864 pelas tropas de Solano Lpez. Consta que frei ngelo de Caramonico foimorto pouco depois de cair prisioneiro (Pereira 1998, pp.79-80). Com a destruio da ColniaMilitar de Dourados novamente os ndios guarani entranharam-se nas matas da margem doRio Paran (Vietta 2007, p.43) e buscaram se aproximar dos j constitudos aldeamentossituados no rio Paranapanema que, por sua vez, estavam localizados fora do teatro principalde batalha.

    11 J no atual oriente paraguaio observa-se uma situao relativamente diferente para o perodoanterior a Guerra. Aps a independncia do pas em 1811 desenvolve-se no Paraguai umprograma de integrao territorial que visava reequilibrar demograficamente a regio orientaldo pas atravs da criao de novos ncleos populacionais baseados no alargamento daagricultura familiar (Souchaud 2007, p. 59). Assim, para evitar conflitos entre grandes epequenos proprietrios e promover o desenvolvimento da micro-agricultura do pas, o Dr.Francia que governou o Paraguai entre 1814-1840 procedeu durante o seu governo a umanacionalizao das terras. A partir da promulgao de decretos datados ainda da dcada de1820, Francia confiscou quase que a totalidade das propriedades privadas e em 1825 uma leideterminava que os interessados teriam apenas alguns meses para regularizar seus ttulos depropriedade. Devido ao curto prazo metade da regio Oriental se converteu rapidamenteem terras fiscais (ibid., p.62)14. Esse processo de integrao territorial da regio orientalparaguaia ser mantido durante os governos de Antonio Carlos Lpez (1840-1862) e seu filhoFrancisco Solano Lpez (1862-1870). Desta forma, no final da dcada de 1850, o Estadopossua aproximadamente 95% do territrio oriental.

    12 Uma das primeiras tentativas de colonizao da regio ocorreu ainda no final do sculoXVIIIquando os diferentes governos tentaram controlar fisicamente a vasta regio de Concepcinque se limitava ao sul pela cidade homnima criada em 1773 na margem esquerda do rioParaguai. O rio Apa, que posteriormente Guerra da Trplice Aliana seria anexado aoterritrio brasileiro, delimitava sua fronteira norte15. Vale lembrar que se at o final da guerra,em 1870, a regio ainda no havia sido totalmente colonizada, isso se dava pela falta deinfraestrutura e pela presena de diversos grupos indgenas (o sistema mbay-guan-cayu)que ocupavam a regio de forma autnoma e que mantinham muitas vezes uma relao hostilentre elas e com as frentes de colonizao (Areces 2007, pp.180-190). Os confrontos armadosforam recorrentes e as alianas entre indgenas e no indgenas variaram no tempo, visto quese negociavam tratados para se formarem alianas militares e de paz (Souchaud 2007, p.63).

    13 Paralelamente ao processo de nacionalizao das terras delineou-se aps a expulso dosjesutas em 1767 e, sobretudo, aps a independncia em 1811, uma poltica de secularizaodas antigas redues inacianas que visava acelerar um processo de mestiagem e de formaode uma populao de base camponesa e crist. Em setembro de 1824, por exemplo, todos

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    os bens da igreja seriam confiscados pelo Dr. Francia e passariam s mos do Estado (ibid.,p.62). Delineia-se assim, sobretudo na regio central e sul do pas, que abrigou de formamais duradoura as redues jesuticas, um acelerado processo de incorporao dos ndios,reatualizando uma antiga distino entre ndios cristos e infiis (Wilde 2009). Naregio oriental, zona que mais nos interessa nesse trabalho, um processo muito parecido podeser observado se nos detemos nas descries feitas pelo mdico suo Rengger (2010 [1835])em sua Viaje al Paraguay en los aos de 1818 a 1826. O que fica claro a partir do relato deRengger que a distino entre ndios conversos e selvagens tambm foi operante paraa regio oriental que desde a primeira metade do sculoXVII no contava mais com a presenade redues jesuticas.

    14 Rengger, em outubro de 1820, conheceu pela primeira vez uma famlia de ndios tarums selvagens . Contrariamente ao que poderamos imaginar, o mdico descreve que aoregressarem para seus alojamentos localizados nas matas do distrito de San Joaquin, osndios selvagens, muitas vezes, tentavam levar com eles alguns ndios do povoado,feito que conseguiam com bastante frequncia se no se vigiava com ateno todos seusmovimentos (ibid., p.104). bastante natural que os ndios conversos, sobretudo quelesde um povoado to ilhado como San Joaquin, prefiram buscar sua subsistncia na selva,mais do que trabalhar continuadamente para os outros sem receber melhor trato que os ndiosselvagens (ibid.).

    15 Como Rengger no pde conhecer mais detalhadamente os costumes desses tarums selvagens por haverem passado muito rapidamente pelo povoado de San Joaquin, eledecidiu empreender um ano mais tarde uma segunda viagem, desta vez, em direo ao orienteentre a atual cidade de Concepcin e a Serra de Amambai mais ao leste. Em novembro de 1821em companhia de um ervateiro concepcionero que alm de servir de intrprete conhecia muitobem alguns ndios que trabalhavam na erva, Rengger visitou o acampamento Caaygu(kaiowa) de Serro Pyt localizado na Serra de Amambai nas proximidades da cabeceira dorio homnimo. No faremos aqui uma descrio completa desta viagem. Gostaramos apenasde trazer alguns dados relativos a regio e sobre a fluidez entre os ndios conversos eselvagens. Nesse sentido, vale destacar o primeiro dilogo mantido por Rengger com trskaiowa que se aproximaram da expedio ainda antes da chegada ao alojamento de SerroPyt, objetivo principal da expedio. O mdico logo percebeu que nenhum dos trs ndiosque se aproximaram tinha o lbio inferior perfurado. Surpreendido, Rengger no foi capazde dissimular sua decepo e perguntou a razo da falta de tal ornamento que seguramente,segundo sua concepo, materializaria a condio de selvagem desse Outro a sua frente.Aresposta dada pelos jovens kaiowa alm de ser de grande atualidade muito sugestiva doponto de vista analtico, j que em coro eles afirmam que os jovens j no seguem essecostume. A continuao do dilogo ainda mais interessante e por isso merece ser transcrita.

    Um deles levava no pescoo o extremo de um rosrio e me disse que era cristo, o que tentouprovar recitando em espanhol o bendito. Ele era rfo e havia sido levado muito jovem peloservateiros de Villa Real, onde viveu at a idade de 18anos como criado. Mas ento, me dissecom um profundo sentimento perceptvel no olhar, se despertaram em mim as lembranas daselva e da independncia que eu gozava por l, e eu fugi levando comigo a faca e o faco queme haviam dado. Eu lhe-propus que voltasse comigo, mas ele recusou sem me dar, entretanto,nenhuma razo. (ibid., pp.105-106)

    16 Nestes termos, as observaes feitas por Rengger so muito interessantes uma vez que elaspermitem matizar uma viso geralmente apresentada pela historiografia missioneira segundoa qual os ndios conversos e infiis se mantiveram em espaos diferentes e fechados(Wilde 2009, p.148). O que se observa na realidade que mesmo se houve uma tentativa deregulamentao das relaes com os ndios infiis essa afinidade sempre foi uma constantee se processou a partir de intencionalidades individuais e agenciamentos familiares e polticos16

    (ibid., p.147).17 Para concluir, nota-se que mesmo se nenhum dos relatos disponveis apresenta uma categoria

    nativa que descreva a organizao social guarani, possvel dizer que o espao estava

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    estruturado a partir de grupos domsticos relativamente autnomos dirigidos por chefesfamiliares.

    O ciclo da erva mate18 Mesmo se o perodo anterior a guerra marcou uma primeira etapa de expanso nacional

    brasileira e paraguaia na regio de fronteira, sobrepondo-se assim a boa parte dos territrioskaiowa e andva, pode-se dizer que justamente com o fim desta, em 1870, que se define umnovo movimento caracterizado desta vez por uma ocupao muito mais efetiva e sistemticada regio.

    19 Se a iminncia da Guerra da Trplice Aliana acelerou um processo de construo nacional,o seu fim, por sua vez, trouxe mudanas significativas na dinmica territorial e populacionalda regio em foco. Com o fim da guerra em 1870, e a redefinio das fronteiras nacionaisem 1872, tanto o Brasil como o Paraguai implantaram novos dispositivos para a exploraoda regio, caracterizada ecologicamente pela existncia de vastos ervais naturais e bosquesvirgens, valorizando a instalao de grandes empresas de capital privado atravs da vendaou da concesso de terras pblicas. Antes de abrir os espaos para o capital privado, oprimeiro perodo constitucional paraguaio (1870-1883), baseado na primeira Constituio dops-guerra, tentou ainda reconhecer o acesso terra aos pequenos produtores (Pastore 1972,p. 207). Esse perodo, no entanto, no teve flego e muito rapidamente novas leis foramsancionadas fazendo com que um novo ordenamento fundirio se instaurasse.

    Os agricultores nativos ficariam sem terras, os pequenos produtores de gado sem pastos, osmunicpios sem bosques e campos coletivos, e quase todas as terras, matas e ervais do Paraguaipassariam a formar parte do patrimnio de pessoas ou de sociedades mercantis []. (Pastore1972, p.211)

    20 Foi justamente nesse contexto de privatizao da terra, ocorrido tanto no Paraguai como noBrasil, que grandes companhias passaram a explorar boa parte dos ervais da regio fronteiria.

    21 A Industrial Paraguaya S.A. foi fundada na dcada 1880 por iniciativa do ento presidentedo Paraguai, Bernardino Caballero (1880-1886), logo aps a promulgao de uma lei quesancionou a venda das terras e dos ervais. Rapidamente, a grande maioria dos ervais fiscaispassou para o domnio privado, ficando sob controle do Estado paraguaio apenas aqueles queestavam mal localizados ou que ainda no haviam sido descobertos para compra (Pastore1972, p.254). A Industrial ParaguayaS.A., muito rapidamente, comprou nada menos do que855000 hectares de ervais e 2600000hectares de terras. Em 1910 as terras da empresa jcobriam mais de 1100lguas quadradas de superfcie com 460lguas quadradas de ervais e640lguas quadradas de bosques e pastos onde posteriormente seriam organizadas fazendasde explorao de madeira e de criao de gado (Pastore 1972, p.255). Por sua vez, no Brasil,a Companhia Matte Larangeira foi criada em 1882 e passou a controlar rapidamente e duranteum longo perodo a explorao, produo e comercializao dos ervais sul mato grossenses(Arruda1986). A partir de 1894 a Cia. associou seu capital ao do recm-criado Banco RioMato-Grosso tornando-se uma sociedade annima e passando a controlar aps ser concedidauma grande concesso nada menos do que 5milhes de hectares no cone sul do estado.

    22 Pode-se dizer que o Ciclo da Erva inaugura, nesse sentido, um novo momento nasrelaes com os grupos indgenas da regio que passam a trabalhar esporadicamente e aorbitar massivamente em torno das zonas de extrao da erva. Visto que a historiografiaregional nunca distinguiu a mo-de-obra paraguaia da mo-de-obra indgena, sobretudo,devido a critrios lingsticos, fica ainda difcil determinar com exatido a quantidadede indgenas engajados no trabalho da erva. No entanto, diferentemente do engajamentodos trabalhadores regionais (brasileiros, paraguaios e correntinos), baseado principalmenteno sistema do barraco gerar dependncia atravs do adiantamento de dinheiro emercadoria o trabalho indgena nos ervais parece ter sido muito mais heterogneo e instvel,variando de intensidade segundo a localidade dos diferentes assentamentos indgenas (Brand1997; Ferreira 2007). Isso fica relativamente claro se recorrermos s memrias indgenas quenarram perodos espordicos e relativamente curtos de trabalho. Embora tenham trabalhadolongamente e que episdios violentos tenham ocorrido, os ndios descrevem o trabalho nos

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    ervais com bastante herosmo, destacando suas empresas individuais no corte e no transporteda erva ou ainda como uma poca de muita fartura por terem tido acesso a uma quantidademuito maior de objetos manufaturados, como pedaos de ferro, fumo, roupas, acar(Barbosa da Silva 2007, pp. 137-140). O funcionrio do SPI, Gensio Pimentel Barboza,num relatrio de 1927, que exploraremos com mais detalhes no prximo item, traz dadossobre a localizao de acampamentos guarani assim como informaes esclarecedoras sobrea quantidade de mo-de-obra indgena na explorao da erva. Para a regio do Iguatemi,por exemplo, ele chega a afirmar que a proporo de ndios caius empregados naelaborao da erva, sobre o operrio, , em mdia, de 75% (Barboza 1927, p.139). Maisao oeste, nas aldeias da fronteira , Barboza verificou que em vrios estabelecimentoservateiros a quantidade de ndios que neles trabalham sempre superior ao trabalhadorparaguaio. Notadamente, no servio de elaborao do Sr. Ricardo Isnardi, no lugar chamadoMangahy , h uma populao indgena superior a duzentos ndios, distribudos pelosranchos Potrerito, Pirajuy, Jih e Administrao (ibid.). Fica claro, assim, que em certasregies a mo-de-obra indgena era superior mo-de-obra no indgena, contrariando umaidia muito comum apresentada pela historiografia local17.

    23 No entanto, no de se negligenciar a importncia que os trabalhadores de origem paraguaiaexerceram no trato com os grupos guarani que muitas vezes no admitiam que as empresasexplorassem os ervais localizados dentro de suas reas de ocupao e uso. O papel dearticulao e intermediao exercido pelos paraguaios emerge de forma exemplar na entrevistafeita por Brand (1997) ao velho kaiowa Joo Aquino.

    [] cacique no deixava entrar ali, na erva. No deixa cortar. Cuidava, antigamente []. Entoprecisa procurar jeito como que vai entrar []. Ento tem paraguaio, s paraguaio que entravana aldeia porque paraguaio entende a lngua do Kaiow. (Brand 1997, p.65)

    24 No Paraguai, na ltima dcada do sculo XIX, De Bourgoing acompanhou agrimensoresparaguaios para medir alguns ervais da Industrial ParaguayaS.A. na regio de Concepcin eregistrou uma situao muito parecida com a que foi relatada pelo velho Aquino. Segundo DeBourgoing o kaiowa Ivir-Iy18 manifestou seus direitos sobre as terras que estavam sendomensuradas pelo fato de ter ele nascido nela e ter habitado com os seus toda sua vida,e mesmo seus antepassados desde tempo imemorial (De Bourgoing 1894, p.138, in Areces2007, p.173). Contudo, alm do papel de intrprete exercido pelos paraguaios era, sobretudo,o acesso aos objetos-brancos que jogava um papel primordial na resoluo de potenciaisconflitos. Se num primeiro momento nenhum acordo parecia possvel, os funcionrios dasempresas ervateiras logo perceberam o valor que os ndios davam aos objetos industrializados.Segundo o j citado Joo Aquino, diante de um impasse os funcionrios da Cia. traziam maisroupas, machetes e machados at conseguir autorizao para extrair a erva (Brand 1997,p.66). Do lado paraguaio o processo parece no ter sido muito diferente e o mesmo ndiocom quem De Bourgoing se entrevistou se opunha a abertura de picadas e mensura de seusdomnios amenos que lhe retribussem de maneira satisfatria. Essa retribuio, comoparece sugerir De Bourgoing, era feita, sobretudo, em roupas e gneros, nunca em dinheiro, amenos que esse fosse em peas metlicas (ibid., p.129).

    25 As grandes concesses de terras tiveram, no sul de Mato Grosso, uma vida til deaproximadamente seis dcadas (1880-1940). Foi somente a partir da dcada de 1910 que seobservou o incio de um movimento de oposio renovao dos contratos de arrendamentoda Cia. A lei n 725 de 24 de setembro de 1915 ia nessa direo e previa no seu artigo31 a venda de at dois lotes de 3 600 ha a terceiros, abolindo teoricamente o monoplioda empresa. No entanto, a mesma lei renovou o contrato de arrendamento de uma rea de1440000ha (Ferreira 2007, p.32). O efetivo rompimento do monoplio da Cia. s se deuem 1943 aps a criao do Territrio de Ponta Por por Getlio Vargas. A criao de PontaPor acompanhou-se da multiplicao de venda de ttulos a terceiros (ibid.). justamente apartir do rompimento do monoplio e do crescente loteamento da regio que se observarum aumento da presso territorial sobre os espaos de habitao guarani. Na regio de PortoLindo, por exemplo, antes mesmo da criao da Reserva Indgena em 1928 onde muitos

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    ndios esto localizados atualmente o Sr. Ataliba Viriato Baptista, ex-funcionrio da Cia.,j vinha explorando pessoalmente os ervais da margem direita do rio Iguatemi. No sentido dedefender seus interesses pessoais sobre a explorao desses ervais consta que ele arquitetouconjuntamente aos funcionrios do Servio de Proteo aos ndios (SPI) um modo para quea rea indgena fosse delimitada a cinco quilmetros de distncia do rio, fazendo com que osndios perdessem seu acesso direto (Mura 2006, p.76).

    26 O Ciclo da Erva delineia assim dois movimentos sobre os espaos ocupados pelos ndios naregio em estudo. Por um lado, um primeiro momento marcado por uma ao mais instvel queno chegou a exercer uma forte presso sobre os territrios indgenas e que permitiu, inclusive,uma relativa reestruturao territorial aps o final da guerra. Por outro lado, uma segunda etapaque progressivamente imprime uma poltica de loteamento rompendo o monoplio da Cia.Alm de aumentar a presso territorial sobre as fronteiras indgenas essa ao diversificou aproduo da regio, introduzindo, por exemplo, novas fazendas de gado (Ferreira 2007). Noque concerne o Brasil, essa nova poltica fundiria de redistribuio de terras nos interessaconsideravelmente por se sobrepor ao incio de uma nova situao de aldeamento implantadadesta vez pelo recm-criado Servio de Proteo aos ndios19 (SPI). Instituem-se entre 1910 e1930 as primeiras reservas indgenas com ndios guarani no sul do Mato Grosso.

    No tempo das reservas indgenas27 Com a perda dos direitos exclusivos sobre os ervais abriu-se uma nova etapa de colonizao

    na faixa fronteiria. Foram, sobretudo, os ex-funcionrios da Cia. que passaram a requererdo governo estadual lotes particulares. Atravs da atuao conjunta de funcionrios do SPIe dos requerentes de ttulos de propriedade, os ndios foram levados progressivamente aresidir em espaos cada vez mais reduzidos. Entre 1915 e 1928 o SPI institui oito ReservasIndgenas delimitadas cada uma delas com uma superfcie padro de 3600ha: o resto dasterras ficando merc dos colonos (Thomaz de Almeida 1991; Brand 1997; Mura 2006;Barbosa da Silva 2007). A primeira reserva Amambai foi criada em 1915 e emboradevesse ter sido demarcada com 3600ha, apenas 2429ha foram mantidos como rea de usoexclusivo dos indgenas, isso devido a negociaes realizadas entre certos funcionrios do SPIe posseiros locais. Somente as reservas de Dourados e Caarap, criadas respectivamente em1917 e 1924, mantiveram sua superfcie original20. Uma vez demarcadas estas trs reas, todaselas localizadas em territrios kaiowa, ao norte do rio Iguatemi, o SPI deu como solucionada aquesto das terras indgena no sul de Mato Grosso, no prevendo reservar novos espaos. Noentanto, aps uma denncia feita por Pimentel Barboza 5aInspetoria do SPI, se postulou anecessidade de serem encontradas novas terras para os ndios em questo, devido ao inchaopopulacional dentro das reservas (Barboza 1927). Em 1927, por encomenda do inspetorregional do SPI, Vianna Estigarribia, o mesmo Pimentel Barboza iniciou uma viagem pelocone sul do estado com o objetivo especfico de localizar novos espaos a serem reservados.Em relatrio j citado, o funcionrio descreveu, no muito diferente do que dizia Lopes, Elliotte Rengger ainda no sculo XIX, uma situao onde os ndios se organizavam em ncleosfamiliares dispersos pelas matas, no estando reunidos em aldeias. Segundo a interpretaodesse funcionrio as famlias guarani residiam nas cabeceiras dos crregos, muito distantesuma das outras, pela presso que os ervateiros exerciam sobre eles, empurrando-os cada vezmais para o fundo das matas.

    Escolhi, tambm, na regio de Ipehum, outra rea de terras destinadas aos ndios, que em nmerosuperior a quinhentos, vivem nas margens dos rios Pirajuy, Taquapery, Aguar e outros. Essesndios esto em servios de erva de Marcellino Lima e no tm aldeias propriamente dita. Formampequenos ncleos, espalhados, que reunidos em uma s propriedade formaro um nmero elevadotalvez a mais de mil, se reunidos forem todos []. As terras acima constam de mata de cultura eerval, e devem ter a extenso de 3600hectares. (Barboza 1927, p.149)

    28 Barboza identificou finalmente outras cinco reas e todas elas foram reservadas no ano de1928. Alm de liberar vastos espaos para os colonos, esse novo processo de aldeamentovisava igualmente controlar os ndios submetendo-os s lgicas de desenvolvimento eintegrao norteada pela poltica republicana e positivista do rgo indigenista. Pensava-

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    se que o modo de vida dos ndios, nmade , arcaico e improdutivo , estavadestinado a desaparecer, sendo, portanto, necessrio integr-los na estrutura produtiva doEstado na qualidade de trabalhadores nacionais (Souza Lima 1995). Assim, as ReservasIndgenas, entendidas como espaos nucleados, com formas burocrticas e hierarquizadas deadministrao e representao poltica, deveriam ser transformadas no lcus privilegiado parase levar os ndios a uma vida civilizada, integrada, produtiva e disciplinada.

    29 Nesse mesmo contexto surgiram algumas misses religiosas que a partir de 1928 se instalaramnas vizinhanas das reservas com o claro propsito de evangelizar os ndios, subtraindo-os dasuposta selvageria. A Misso Evanglica Caiu (MEC), a mais antiga da regio, iniciou suaatuao unindo esforos das congregaes protestantes, presbiteriana e metodista. Algumasdcadas mais tarde, j nos anos 1960, a misso alem Deutsche Indianer Pionier Mission(DIPM) passou a atuar na regio estabelecendo-se na proximidade da reserva andeva dePirajuy (Thomaz de Almeida 2000). Para terem mais eficcia essas misses no se limitavamapenas em divulgar ou traduzir o evangelho. Implantavam, paralelamente, aes na rea desade e educao com o escopo de atrair famlias indgenas e fix-las nas reservas do SPI,contribuindo, assim, para uma gesto integrada entre o Estado e a Igreja (Mura 2006).

    30 Ecologicamente, a maior parte do territrio do sul de Mato Grosso era dominada por densasflorestas tropicais, estando a grande maioria dos ndios nelas embrenhados. A ttulo ilustrativovale ressaltar os dados disponveis sobre o ento distrito de Iguatemi fundado na dcada de1940. Ocorre que os moradores das reservas da regio Porto Lindo e Sassor eram umaminoria se comparados totalidade dos ndios que viviam esparramados nas fazendas destemesmo distrito. No relatrio do funcionrio do SPI, Joaquim Fausto Prado, datado de 1948,consta que numerosas famlias indgenas viviam fora dos Postos Indgenas, estando muitasdelas assentadas em fazendas oficiais e particulares e em terras tidas como devolutas, terrasestas que rapidamente estavam sendo ocupadas, os ndios, por sua vez, sendo expulsos pelosinvasores (Fausto Prado 1948). Nesse mesmo documento, Fausto Prado apresenta um quadrocom a estimativa da populao indgena do sul do Mato Grosso que vivia fora das reservas,em terras fiscais ou em fazendas particulares. Tanto para a reserva de Porto Lindo quanto paraa de Sassor, o funcionrio contabilizou uma populao composta de apenas 250 indgenas.Por sua vez, na totalidade do distrito de Iguatemi a estimativa chegava a 1500ndios vivendofora das reservas (ibid.).

    31 J na dcada de 1950, junto com a ampliao da pecuria, nota-se um aumento significativo daderrubada das matas. Esse processo se acompanhou de um aumento dos conflitos com os ndiosque se encontravam nos fundos das fazendas e que aos poucos deixaram seus locais dehabitao. A memria guarani sobre esse perodo, alm de descrever o abandono obrigatriode suas casas, roas e animais, sugere que a intensificao do desmatamento e a instalaodas fazendas de gados obrigou muitas famlias a se transferirem compulsoriamente para asreferidas reservas21. Na regio especfica de Grande Dourados, que representa o espaomais densamente povoado pelos kaiowa, foi criada, em 1941, a Colnia Agrcola Nacionalde Dourados (CAND). A CAND foi pensada por Getlio Vargas, durante o Estado Novo,como mais um dispositivo de colonizao da regio de fronteira (Brand 1997, p.97). Estanova iniciativa gerou um amplo processo de loteamento da zona, transferindo muitas famliasindgenas reserva de Dourados. Vizinha a CAND, essa reserva conheceu desde muito cedoum grande inchao demogrfico.

    32 Posteriormente, as dcadas de 1960 e 1970 marcaram uma ocupao definitiva do cone suldo estado, alcanando nveis altssimos de desmatamento. O Milagre Brasileiro, perodode modernizao e mecanizao da agricultura introduzida pela ditadura militar (1964-1985),chegou a arrasar mais de 50% da cobertura vegetal da regio em apenas duas dcadas. Nesseprocesso os ndios passaram a trabalhar como mo-de-obra na derrubada das prprias matasonde viviam e uma vez acabada a tarefa foram conduzidos violentamente s oito reservasexistentes. Na dcada de 1970 a Fundao Nacional do ndio (FUNAI), que substituiu o SPI em1967, registra um aumento considervel da densidade demogrfica nas reservas que chegou aduplicar de um ano para outro ou at mesmo a triplicar num perodo de apenas uma dcada(Thomaz de Almeida1991).

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    33 No Paraguai h que se considerar que diferentemente do Brasil, ao longo das primeirasseis dcadas do sculoXX, o mesmo perodo se caracterizou por polticas de Estado menosvoltadas para os povos indgenas; a ao indigenista estando, sobretudo, controlada pelaao missionria, seja ela catlica ou evanglica. As atividades da Industrial ParaguayaS.A.,bem como de outros ervateiros independentes, se estenderam at a dcada de 1960. Reedaponta que a prpria Industrial ParaguayaS.A. viu seu declnio acelerado pela ascenso daditadura de Stroessner que penalizou as relaes com a Argentina para onde era escoada a ervae redirecionou os acordos internacionais favorecendo uma cooperao com o Brasil (Reed1995). Essa nova cooperao desenvolveu, sobretudo, as atividades de explorao de madeiraacompanhadas da formao sistemtica de novos latifndios, muitas vezes, controlados porcapitais brasileiros que passaram a expandir sua produo e sua influncia para o outro ladoda fronteira. Em fim, a consolidao das atividades agropecurias tanto no Brasil como noParaguai oriental criou, na dcada de 1970, um clima de forte tenso para os grupos kaiowae andva dos dois pases. Foi justamente nesse contexto especfico que os ndios passarama reivindicar pequenos espaos de uso exclusivo, dando vida a um processo de organizaopoltica de recuperao de reas, que como veremos, vem crescendo e se complexificando atos dias de hoje.

    Das colnias indgenas do Paraguai s terrasindgenas do Brasil

    34 Nos anos 1970 os guarani do Paraguai encontraram na atuao de duas ONGs a possibilidadede realizar importantes alianas voltadas para apresentar aos olhos dos brancos mbarykarai suas demandas territoriais. O Projeto Pa-Tavyter (PPT) e o Projeto Guarani centraramsuas atenes respectivamente nos pa-tavyter (kaiowa) e nos ava-guarani (andva). Ambasas organizaes voltaram suas aes para atividades de etno-desenvolvimento reforando,sobretudo, prticas econmicas de subsistncia. Frente ao avano do agronegcio entendia-seque as atividades ligadas agricultura de coivara estavam em constante ameaa. Neste sentido,conseguir espaos territoriais exclusivos para o uso dos ndios era uma condio sine qua nonpara o prprio funcionamento das organizaes. Ocorre, porm, que o processo de constituiodas colnias indgenas no era simples e na maioria dos casos apenas diminutos espaos forammensurados (demarcados). Alm da imaginada oposio dos latifundirios, a dificuldadede se garantir direitos especficos aos ndios dava-se tambm por motivos institucionais.Por um lado, o indigenismo de estado no Paraguai em oposio a uma ao missionriainstitucionalizada passa a se estabilizar somente na dcada de 1970, consolidando-se em1975 com a criao do Instituto Nacional del Indgena (INDI). Por outro lado, foi somenteem 1981 que se institui o Estatuto de las Comunidades Indgenas que consagraria o direitoindgena terra como propriedade coletiva.

    35 Os dados apresentados pelo PPT em 1978 relatam claramente qual era a situao fundiria dospa-tavyter do oriente paraguaio. Das 24reas demarcadas at 1975, apenas uma superavaos 11000ha; uma segunda tinha pouco mais de 5800ha. Superior a 2000ha havia somenteduas outras, sendo que seis mais oscilavam entre 1000 e 2000ha. As 14reas restantes foramdemarcadas como uma superfcie que variava entre 52 e 846ha. A exigidade das reas ficaclara no caso dos pa-tavyter se observarmos como se deu o processo de demarcao dascolnias que antes constituam o complexo de Mboryvopegua entre 1970 e 1980. Entre osdiferentes espaos que formavam parte desse sistema mais amplo Panamby, Pirity, Ndyvaatodos eles foram demarcados em pequenas ilhas com menos de 600ha.

    36 Entre os ava-guarani localizados ao sul do territrio pa-tavyter a situao, por sua vez, no sedemonstrou muito diferente. Da mesma forma, as atividades empresariais ligadas extraoda erva mate e pecuria restringiram significativamente os espaos disponveis. Reed, porexemplo, descreve como a colnia de Itanarmi, localizada no departamento de Canindeju,foi constituda justamente a partir da aglomerao de diversas famlias da regio obrigadasa abandonar seus ncleos familiares de habitaes em decorrncia das presses exercidas aolongo do tempo (Reed 1995).

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    37 Se do lado paraguaio da fronteira a atuao das ONGs teve sua relevncia, do lado brasileiroos fatos no ocorreram de forma to diferente. Com efeito, em 1976, o Projeto Kaiowa-andeva (PK), inspirado pelo PPT, foi fundado, passando a atuar no cone sul do atualestado de Mato Grosso do Sul. As atividades do PK, tambm voltadas a favorecer o etno-desenvolvimento foram fundamentais para que os ndios passassem a se organizar emfruns supra-locais. Esses fruns de discusso regional organizados pela ONG para debatera implantao dos projetos agrcolas logo evoluram e se transformaram em assembliaspolticas destinadas a denunciar e discutir a situao fundiria em que se encontravam,derivando rapidamente num movimento mais amplo de reivindicao de novas terras (Thomazde Almeida 2000). Em 1978 o PK se associou ao Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) associao da igreja catlica e os ndios passaram a contar com outro importantealiado para mediar as relaes com os rgos estatais, principalmente a FUNAI. As grandesassemblias supra-locais aty guasu passaram a ser organizadas com mais regularidade,confederando grupos familiares que antes discutiam em esferas mais locais e, sobretudo, maisreduzidas. Nessas assemblias locais, tambm conhecidas como aty guasu, prevalece a buscado consenso, existindo uma autonomia nas decises das diferentes famlias envolvidas. Nocaso dos aty guasu supra-locais necessrio constatar que o principal objetivo sempre foio de veicular reivindicaes conjuntas referentes a uma situao assimtrica frente aos nondios. Dessa forma, aliados ao PK e ao CIMI, os kaiowa e andva passaram a promover,sobretudo, pedidos de manuteno de posse ou de retorno para suas terras de origem de ondehaviam sido expulsos ao longo das dcadas, como explicitamos no item anterior (Thomaz deAlmeida 2000; Mura 2006).

    38 A partir de 1978, data da realizao do primeiro aty guasu regional, nota-se um primeiromomento de articulao e de recuperao de terras. A FUNAI, aps dura presso realizadapelos ndios de duas comunidades kaiowa, demarcou duas parcelas de terra cada uma delascom aproximadamente 750 ha. Anos mais tarde, entre 1984 e 1985, na esteira do queocorreu no Paraguai, novos estudos foram realizados e fundamentaram-se pela primeira emtrabalhos antropolgicos centrados essencialmente na categoria territorial nativa de tekoha.Aps a realizao desses estudos trs novos espaos foram delimitados, no entanto, com umasuperfcie ainda diminuta que no ultrapassava os 2600ha, nos mesmos moldes que as reservasinstitudas pelo SPI e as colnias do Paraguai.

    39 Vale lembrar que mesmo muito reduzidos, os ndios no conseguiram tomar posse imediatados espaos conquistados. Isto s ocorreu em um segundo momento que correspondeu apromulgao da Constituio Federal de 1988. Em seu artigo 231 a nova Constituioreconheceu aos povos indgenas seus direitos originrios sobre as terras tradicionalmenteocupadas, definidas, no1 desse mesmo artigo, como as terras por eles habitados em carterpermanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindveis preservaodos recursos ambientais necessrios ao seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsicae cultural, segundo seus usos, costumes e tradies. A redefinio do papel do MinistrioPblico Federal (MPF), atribuindo-lhe no seu artigo232 a funo de intervir em defesa dedireitos e interesses indgenas foi outro fator importante introduzido pela Constituio de1988. No caso dos guarani do Mato Grosso do Sul, pelo menos, essa redefinio institucionalvem sendo fundamental por gerar mudanas mais rpidas e interferir nas estruturas de poderque foram histrica e localmente construdas a partir de uma ao tutelar e clientelista demais de meio sculo. A redefinio do papel do MPF minou os pontos nevrlgicos dasalianas locais e favoreceu para que uma multiplicidade de lideranas tradicionais, comoos anderu22, por exemplo, voltassem a se manifestar nas instncias pblicas, contrapondo-se assim quelas lideranas intermedirias, como os capites, capites de campanha ecaciques, que alimentavam a ponta das redes de clientelismo e que eram vistos pelos rgosdo Estado como os nicos representantes legais e legtimos das comunidades guarani (Mura2006). Os anos que seguiram a reforma constitucional foram, portanto, essenciais para areelaborao de novas estratgias de reivindicao fundiria, visto que entre as sete TerrasIndgenas demarcadas entre 1992 e 1994, uma dela se destacou enormemente por ter sidoidentificada com uma superfcie de mais de 8000ha. Esse caso, ao invs de constituir uma

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    exceo, tornou-se referncia para as novas reivindicaes dos ndios. Assim, desde 1995 atos dias de hoje, das nove terras recuperadas, seis delas tm uma superfcie que oscila entre6000 e 11000ha. Nesse sentido, desenha-se aqui uma descontinuidade muito interessanteem relao s demarcaes que foram realizadas em ilhas at o incio da dcada de 1990e as atuais demandas de territrios que articulam espaos geogrficos muito mais amplose redes sociais muito mais vastas. Essa nova estratgia de reivindicao elaborada pelosndios23 se fundamenta atualmente em torno da categoria territorial de tekoha guasu que, comoveremos, reatualiza redes operantes de alianas delimitadas, muitas vezes, por micro-baciashidrogrficas (Lehner 2002; Mura 2006). Os tekoha guasu contemporneos, em oposio aostekoha, so pensados como amplos territrios em rede e no apenas como pequenas ilhas deterra etnicamente exclusivas ao uso dos ndios.

    Dinmica territorial e construo de territrio: as categoriasde tekoha e tekoha guasu

    40 A sucesso de situaes histricas aqui apresentadas coloca em evidncia uma progressivatransformao das condies em que os ndios desenvolveram suas atividades cotidianase passaram a conceituar seus territrios. A crescente presena de no indgenas na regioem pauta, somada a sedimentao de diversas polticas de Estado voltadas exploraoe ocupao dos espaos geogrficos fronteirios, teve como efeito mudanas significativasno que concerne o meio ambiente, as modalidades de acesso a espaos e recursos e aterritorialidade guarani. Entre essas diversas polticas de Estado destacam-se, sobretudo, osdiferentes processos de territorializao implantados a partir do final do sculoXIX e ao longode todo sculoXX voltados a controlar espaos e administrar populaes. No Mato Grossodo Sul poderamos falar, como sugere Brand, da existncia de um progressivo processo deconfinamento ritmado por uma paulatina poltica de expropriao de terras (Brand 1997).Uma abordagem em termos de processo de territorializao, definido por Oliveira como ainterveno da esfera poltica que associa (de forma prescritiva e insofismvel) um territriobem determinado a um conjunto de indivduos e grupos sociais (Oliveira 1988, p. 56)permitiria compreender os efeitos decorrentes destas polticas sobre a morfologia social, ospapeis polticos, as tradies culturais e a construo de identidades dos grupos indgenasafetados (Oliveira 2006, p.132). No entanto, ressalva o autor, a interveno estatal no deveser pensada como um fator determinante e exclusivo que levaria os ndios a se submeteremcegamente ao modelo planejado por tais polticas e executados por seus respectivos gestores.Tais aes, ao contrrio, geram recursivamente iniciativas indgenas que no se limitamapenas a reinterpretaes e reordenamentos , mas tambm a criaes e inovaes (ibid.). Neste sentido, o estabelecimento de papis formais de mediao com o Estado, areelaborao da memria, a redefinio das relaes com o meio-ambiente, assim como aresignificao do prprio contedo cultural so alguns aspectos que deveriam necessariamenteser levados em considerao para se pensar a histria recente dos diversos grupos indgenasalvo de processos de gesto territorial (Oliveira 1998). As mudanas da materialidade dosespaos geogrficos, assim como as polticas de territorializao so elementos essenciaispara se compreender como os ndios passam a construir e reconstruir seus territrios e,conseqentemente, a territorialidade a eles associada. Contudo, como veremos a seguir,essas mudanas so processadas progressivamente, acarretando transformaes gradativas nasmodalidades de organizao domstica e territorial.

    41 Na primeira situao analisada, por exemplo, marcada pela iminncia da guerra do Paraguai,observa-se uma distribuio territorial ampla onde os grupos guarani viviam em espaosrelativamente autnomos, em grandes malocas que hospedavam diversas famlias nuclearesrelacionadas entre elas, formando, assim, famlias extensas que se constituam em unidadespolticas locais. Cada maloca estava localizada nas proximidades dos cursos fluviais,preferindo, quando possvel, assentarem-se nas cabeceiras de rios e crregos. difcilestabelecer para esse perodo as dimenses exatas alcanadas por tais habitaes, bem como onmero de indivduos que nelas residiam. No entanto, temos que considerar que durante esseperodo persistiu uma contnua reduo demogrfica causada tanto pelas baixas em guerras24,

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    realizadas com os mbaya-guaycuru ao norte e com os kaingang ao leste, como pelas epidemiasque avanaram paralelamente ao processo de ocupao dos sertes meridionais do Imprio.Portanto, muito improvvel que durante a segunda metade do sculo XIX essas malocasfossem habitadas por centenas de pessoas como indicam certas fontes coloniais.

    42 As atividades tcnicas e econmicas, por sua vez, eram realizadas a partir de distinesde gnero e idade. A agricultura de coivara representava a atividade mais relevante, sendorealizada nas imediaes dos diferentes assentamentos, enquanto que a caa e a pesca exigiamuma maior mobilidade territorial, levando, s vezes, os indivduos a percorrem dezenas dequilmetros (Mura 2006). Para a fabricao de utenslios como armas, adornos e vestimentaseram usados, na maioria das vezes, materiais vegetais e animais. Pode-se dizer ento, comexceo feita a certas regies marcadas por relaes assimtricas de guerra ou trabalho, que osguarani podiam construir e reconstruir seus espaos com relativa autonomia. Os aldeamentosda poca imperial, mesmo se introduziram algo novo e anteciparam certos aspectos da polticaindigenista republicana do SPI, no conseguiram, no entanto, reduzir o grosso da populao.Emerge, assim, para essa primeira situao, diferentes formas de territorialidade que seestruturaram a partir da articulao entre ndios aldeados, agregados e livres dosistema de aldeamento (Amoroso 1998, pp.92-102).

    43 O Ciclo da Erva , no entanto, constitui uma segunda situao marcada, sobretudo,pelas diversas transformaes na realidade material e na organizao das redes sociaisintroduzidas pelas novas relaes de trabalho. Em ambos os lados da fronteira as grandescompanhias ervateiras investiram em infraestrutura, construindo estradas, ferrovias e portos,permitindo a ampliao da circulao de mercadorias. A partir de pontos comerciais avanadosa regio foi invadida por uma quantidade indita de objetos-brancos fazendo com querapidamente os guarani se engajassem no trabalho da erva para obter tais produtos. Muitasvezes, como j mencionamos, os ndios preferiam que o pagamento fosse feito em objetosmetlicos, tecidos ou recipientes25. No entanto, do ponto de vista espacial, as malocasno se deslocavam necessariamente para os locais de explorao e trabalho; tampoucoparticipavam das atividades todos os homens adultos ao mesmo tempo. Formavam-se, de fato,acampamentos mais ou menos numerosos no entorno dos locais de explorao, construindo-se assim barracos destinados a hospedar famlias ou indivduos durante o perododas empreitadas que geralmente duravam algumas semanas. Observa-se, efetivamente, umprocesso de flexibilizao da forma de organizar-se socialmente, onde as famlias passama deslocar parte de seu efetivo para espaos mais afastados. Este processo de flexibilizaocontribuiu para que os ndios abandonassem progressivamente as grandes malocas preferindohabitaes e casas destinadas a hospedar famlias nucleares. Contudo, diferentemente doque argumenta Schaden (1974), essa transformao no deu origem a um processo deindividualizao com conseqente ruptura das relaes e obrigaes prescritas no interior dosgrupos domsticos. De fato, como prope Wilk, a co-residncia no a nica prerogativapara definir uma unidade domstica, esta podendo ser formada por agregados de habitaesque abrigam indivduos entre eles relacionados por laos bem especficos de parentesco ecooperao econmica, formando assim o que ele chamou de household clusters (Wilk1997). Se por um lado a Matte Larangeira e a Industrial ParaguayaS.A. construram ao longode dcadas importantes imprios, engajando milhares de trabalhadores, por outro, h que seconsiderar o fato de que suas atividades estavam motivadas, maiormente, pela extrao da ervanativa dispersa num imenso espao, no tendo como finalidade ltima a ocupao definitiva e aconseqente subdiviso dos espaos geogrficos habitados pelos ndios (Meli 1986; Thomazde Almeida 2000; Barbosa da Silva 2007). Foi possvel, dessa forma, engajar-se no trabalhoda erva sem perder, no entanto, a relativa autonomia na organizao e construo de seusterritrios.

    44 Sem dvida nenhuma o momento de maior transformao na forma de organizao territorialguarani contempornea se deu com o declnio dessas empresas e com o posterior processode loteamento da regio. Frente ao avano dos pequenos e mdios produtores, os gruposfamiliares, dispersos e sem-terra foram submetidos a uma violenta poltica dealdeamento e fixados progressivamente em reservas e colnias extremamente pequenas,

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    incompatveis com as modalidades de uso e ocupao que vinham praticando. Essa forma degesto populacional e territorial associou-se com o trabalho das misses protestantes que seinstalaram nas vizinhanas das reservas e que funcionaram atravs das atividades mdicas eeducativas como plos de atrao para que as famlias se instalassem dentro das reservas. Jna dcada de 1970 a regio estava praticamente toda ocupada por fazendas de gado e a maioriados grupos familiares, que at ento ocupavam vastos espaos, se viram amontoados dentrodas reservas ou cercados nos fundos das fazendas. Essa situao muito rapidamente se tornaextremamente delicada e conflituosa, entre outros motivos, por aproximar grupos domsticose unidades polticas inimigas, que historicamente estiveram distantes uma das outras.

    45 Frente a essa nova configurao, delineia-se uma situao marcada por um crescente processode organizao, reivindicao e recuperao de espaos territoriais de uso exclusivo observadonos dois lados da fronteira. Observa-se que justamente a partir dessa situao de crise,ou de desequilbrio, segundo a interpretao de alguns lderes religiosos, que se produzum mecanismo onde os conhecimentos sobre o modo de viver e de ser teko tmespao para ser processado conforme as exigncias do presente. Neste sentido, o conhecimentoacumulado por quase um sculo sobre o karai reko modo de ser e de viver dos brancosbem como as experincias muitas vezes negativizadas da expanso colonial, levaram osguarani a reivindicarem espaos exclusivos fundamentados na exaltao da categoria nativatekoha. Isto , os lugares onde as famlias poderiam viver o ava reko em oposio aokarai reko. Abria-se ento a necessidade de defender os pequenos espaos ocupados erecuperar queles que antigamente haviam sido habitados. Esse processo reavivou um fortetrabalho sobre a memria dos antigos espaos ocupados e seus antigos moradores. Nessesentido, parece ter sido o longo perodo de vida em reservas e as novas demandas por terraque fizeram com que os ndios passassem a dar tanta relevncia ao espao entendido comouma superfcie fisicamente delimitada. Nota-se, no entanto, que para referir-se a esses lugarese s pessoas que ali haviam residido, no era necessrio uma reflexo rgida sobre as fronteirasque compunham o lugar de uma famlia extensa. Em outras palavras, os assentamentos noeram pensados unicamente por limites fsicos, mas, sobretudo, por onde se podia viver o avareko. justamente em decorrncia dessa longa experincia que a reflexo e o discurso sobreo espao passa a ser operado atravs do conceito tekoha. O recurso dos ndios s fronteirasfsicas para delimitar seus tekoha26 no deixa de ser o resultado de negociaes realizadas emsituaes bem definidas, as reivindicaes territoriais indgenas estando sujeitas a mudar dedireo dependendo das condies e das alianas polticas. De fato, um tekoha no uma fotoautntica e predefinida de um espao de referncia de uma determinada comunidade local. Otekoha, na verdade, se constri a partir da soma de espaos sob jurisdio dos integrantesde determinadas famlias extensas, onde sero estabelecidas relaes polticas comunitriase a partir dos quais esses sujeitos podero determinar laos de parentesco inter-comunitriosnuma regio mais ampliada (Mura 2006, pp.122-123). As comunidades polticas locais seconfiguram no presente, a partir da articulao de um conjunto de famlias aliadas entre elas,cuja memria as reconduz a lugares vizinhos quando se deu o processo de desapropriao ealdeamento. Porm, de se considerar que ao se compor no presente a configurao de alianasentre famlias tambm transformar o desenho dos tekoha reivindicados.

    46 Estudos mais recentes demonstram que na poca qual os ndios se referem para datar umadeterminada configurao territorial, as famlias mantinham uma mobilidade espacial muitomais ampla do que a que se pratica nos atuais tekoha. Esses espaos amplos so atualmentedefinidos pelos ndios atravs da categoria de tekoha guasu (Lehner 2002; Mura 2006) outekoha pav (Pereira 2005) e colocam em evidncia a formao de redes de parentesco queimpulsionam circuitos rituais, polticos, matrimoniais e festivos que do vida as relaesinter-comunitrias (Mura 2006; Mura e Thomaz de Almeida 2002; Barbosa da Silva 2008). justamente nas condies mais favorveis destes territrios que possvel configurar ereconfigurar comunidades locais a partir de dinmicas polticas e de parentesco. Nestes termos,todas as microrregies existentes no interior de um tekoha guasu so potenciais tekoha, umavez que eles j foram e podem voltar a ser ocupados. Como afirmou o reputado xam kaiowa

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    Atancio Teixeira, durante a realizao de um aty guasu, tudo que estava entre o rio Paraguaiat o rio Paran era tekoha.

    47 Neste sentido e j enveredando para uma possvel concluso, poderamos apreender duasdinmicas diferentes no processo contemporneo de construo territorial guarani na regioaqui em pauta. Por um lado, delineia-se uma tendncia a construir espaos delimitados e emcerta medida fixos (tekoha) como uma resposta a um processo de territorializao determinadopor violentas aes tutelares perpetradas pelos Estados brasileiros e paraguaios. Por outro lado,existe uma tendncia oposta que busca ir alm dessas fronteiras para consolidar a formao decomunidades polticas locais que resultam da segmentao de unidades polticas anteriores,estabelecendo distncias espaciais consideradas adequadas para garantir a autonomia de cadacomunidade local (Pereira 1999; Mura 2006). Esta segunda tendncia parece atender asexigncias analticas de Pereira que apreende o tekoha como uma relao e no como unidadesocial radicada no territrio (Pereira 2005, p.121). Desta forma, seria equivocado pensar queo territrio indgena se configura apenas pelos limites que foram reconhecidos pelo Estado. Seassim o fosse os tekoha seriam vistos como espaos estticos, com fronteiras bem definidas,sobrepostos aos limites das unidades administrativas constitudas pelas categorias jurdicasformais de Terras Indgenas no Brasil e Colnias Indgenas no Paraguai. Ao contrario, ostekoha so espaos que esto num permanente processo de atualizao e reconfigurao27.

    48 Alm das duas tendncias que acabam de ser analisadas outros fatores deveriam sermencionados para se compreender a complexidade atual da construo territorial guarani. Se,como vimos, durante o perodo ervateiro os grupos domsticos indgenas enveredaram parauma flexibilizao de suas atividades, dando vida a uma mobilidade espacial especfica epontual, nas ltimas quatro dcadas as estratgias voltadas captao de recursos materiais eimateriais tambm se diversificaram e se flexibilizaram de forma crescente. O desmatamentoem ambos os lados da fronteira e as restries territoriais de uso exclusivo ocasionaramuma diminuio significativa de alimentos procedentes da agricultura, caa, pesca e coleta.Assim, o dinheiro passou a representar um fator fundamental nas transaes indgenas,aumentando a busca por trabalhos espordicos em fazendas a changa , nas usinas delcool e em cargos assalariados, como professores, agentes de sade, merendeiras, etc. Asaposentadorias, por exemplo, constituem uma verba constante e representam um recursoessencial em torno do qual famlias de trs geraes organizam todo o grupo domstico econsolidam o papel dos tami (av) e das jari (av) como suportes jekoha dos gruposfamiliares. de se destacar ainda os recursos de tipo burocrtico-assistencial procedentes deprogramas de governo ou de projetos de ONGs que fomentam a agricultura familiar, a criaode animais ou que atribuem cestas bsicas e ajudas sociais de diversas espcies, como a bolsa-famlia, a ajuda-maternidade, etc. As relaes com comerciantes locais, fazendeiros, usineiros,missionrios, ONGs e, principalmente, com os rgos do Estado (agencias indigenistas,prefeituras, governos estaduais e federais) tornaram-se no s obrigatrias, mas, sobretudo,estratgicas no cabendo dvida que este novo panorama tem grande relevncia na novaeconomia territorial indgena. As famlias ao visitarem seus parentes em lugares distantesdentro dos tekoha guasu dirigem sua ateno aos recursos especficos que cada lugardispe. neste processo de diversificao dos recursos almejados que os diferentes tiposde fronteiras administrativas, nacionais e tnicas passam a ter um papel determinante.Morar ou no dentro de uma Terra Indgena ou de uma Colnia no Brasil ou no Paraguaiimplica consequentemente ter acesso ou no a certos benefcios associados: as fronteirasinternacionais, administrativas e tnicas operam diretamente sobre os benefcios que podemser acessados, a quantidade e a qualidade destes, bem como sobre as modalidades parasua obteno. Nos tekoha guasu entrecortados pela fronteira internacional, famlias guaranibuscam do lado brasileiro recursos burocrtico-assistenciais que costumam ser mais opulentosem relao aos que podem ser encontrados no Paraguai. Por outro lado, essas mesmasfamlias dirigem-se ao lado paraguaio da fronteira quando buscam melhores condiespara plantio, caa e coleta. Temos, portanto, um movimento constante e uma rede bemconstituda que d pleno sentido aos extensos espaos que so permanentemente percorridose explorados, constituindo e atualizando a territorialidade guarani contempornea28. Como

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    pudemos perceber a complexidade da organizao territorial contempornea guarani no nospermite elaborar tipologias rgidas. Nestes termos, podemos afirmar que para compreenderas caractersticas da territorialidade indgena temos que voltar nosso olhar no apenas para osistema de idias do grupo e suas formas de conceituar o espao e o mundo, mas tambm paraas condies histricas que de certa forma participaram da constante elaborao de categoriasnativas, sejam elas territoriais, polticas ou culturais. Assim, a noo de tekoha longe de seruma noo imanente e invarivel, tal como ela foi reiteradamente apresentada pela literaturaantropolgica moderna, adquire a partir de uma anlise de profundidade histrica diferentessignificados que variam conforme os contextos nos quais ela passa a ser enunciada.

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    2 Gura: Ponen el nombre del rio de que beuen, o lo de q toma la denominacion. Paragaigara, losque fon del rio Paraguay. Paran igara, los del Parana. [] Chertambigara, los de mi pueblo. []Oyou amo rehegara, los de fu parcialidad dellos, o de aquella region (Montoya 1876, p.129).3 Amund: Pueblo, la vezindad de pueblos pequeos. [] Oroo amund, acercamonos vnos a otroscon las cafas, viuienda (Montoya 1876, p.34).4 Tequba: Tequba, morada. Teco hba. Cherequba, mi eftada. Tequba ap reym, manfi eterna(Montoya 1876, p.366). Tambm encontramos na obra de Montoya (1876) o conceito de tekoha como sentido de espacialidade nas seguintes grafias: a)Tekoava: morada (T.383); b)Tekuva, tekohva:morada (T.366).5 Teko: modo de ser e viver.6 Vale ressaltar que para a maioria dos estudos sobre a colonizao do atual estado do Mato Grossodo Sul o fim da Guerra da Trplice Aliana funciona como o ponto zero das relaes entre ndiose no ndios. A historiografia tradicional construiu um vazio entre o perodo jesutico e o perodo ps-guerra. No entanto, nota-se que durante a primeira metade do sculoXIX os vnculos estabelecidos entrendios e no ndios anteciparam em muitos aspectos as polticas que posteriormente seriam institudaspelo Servio de Proteo aos ndios (SPI) a partir de 1910. Nesse sentido, esse item tem o objetivo decontribuir para um campo de investigao ainda incipiente.7 Para estudos mais especficos sobre o processo de colonizao do sul do Mato Grosso no sculoXIX verentre outros os trabalhos de Sodr (1941), Almeida (1951), Wissenbach (1995), Mota (2007) e Chamorro(2009).8 Joo da Silva Machado, o baro de Antonina, iniciou suas atividades como tropeiro, transportando gadodesde o sul do pas para as provncias de So Paulo e Paran. Estabeleceu-se ainda jovem no Paran, ondepassou a exercer, depois da autonomia da Provncia em 1853, importantes cargos polticos e pblicos.Alm de exercer cargos na ento provncia de So Paulo (representante da Corte de Lisboa, Suplente doConselho Geral da Provncia, representante da Assemblia Legislativa), ele foi eleito o primeiro senadorda Provncia do Paran de 1854 a 1875, data da sua morte. Como um dos maiores proprietrios de terrasdo perodo, nas provncias de So Paulo, Paran e Mato Grosso, o baro estabeleceu, por ordem dogoverno imperial, diversos ncleos de catequese, povoaes, colnias militares e colnias agrcolas.9 Joaquim Francisco Lopes foi um importante sertanista do Mato Grosso, Paran e So Paulo, ondepassou a trabalhar para Joo da Silva Machado mais conhecido a partir da dcada de 1840 como barode Antonina. Explorou entre 1840 e 1860 os vales do rio Verde, Itarar, Paranapanema, Paran, Iva,Tibagi, Iguatemi, Dourados, Brilhante, Apa, entre outros, participando da fundao de povoaes comoNioac e Jata e de aldeamentos indgenas como So Jernimo e So Pedro de Alcntara.10 Joo Henrique Elliott era norte-americano e chegou ao Brasil entre 1825 e 1826 a bordo de umaembarcao comandada por seu tio Jesse Duncan Elliott. Aps um perodo como tenente da ArmadaImperial numa ao contra a Independncia da regio Cisplatina, Elliott voltou ao Rio de Janeiroonde conheceu o baro de Antonina. Devido as suas qualidades de cartgrafo e gegrafo realizouconjuntamente a Joaquim Francisco Lopes expedies de explorao nos sertes meridionais do Impriocujo objetivo era construir uma via de comunicao via o interior entre o Atlntico e a bacia do rioParaguai. Conjuntamente a Joaquim Francisco Lopes, Elliott tambm ajudou na fundao das colniasindgenas de So Pedro de Alcntara e So Jernimo. Elliott deixou igualmente importantes aquarelassobre os indgenas do Paran que esto conservadas no Arquivo Histrico do Itamaraty no Rio de Janeiro.11 Nome que se dava aos intrpretes indgenas nas expedies de colonizao. Usava-se tambm otermo de linguars.12 interessante lembrar que o baro de Antonina foi scio efetivo do Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro (IHGB) e se preocupou em publicar os relatrios das diversas expedies exploratrias.Publicando esses relatrios o baro legitimava suas aes tanto nas esferas intelectuais como polticasda corte (Mota 2007).13 O Dr. Rengger (2010, p.113), como se ver mais adiante, ao chegar aldeia Caaygu (Kaiowa) deSerro Pyt, no oriente paraguaio, tambm descreve uma organizao familiar e territorial muito similarafirmando que quando todos voltaram notei que esta tribo estava composta por somente 16homens,17mulheres e 13crianas, entre elas 6meninos e 7meninas. Ou seja, em torno do grupo familiar docacique concentravam-se aproximadamente 50pessoas.14 Todas as referncias em lngua estrangeira traduzidas so de responsabilidade dos autores.15 Para estudos complementares sobre as disputas territoriais entre o Brasil e o Paraguai antes e depois daGuerra da Trplice Aliana ver, por exemplo, Viana (1948), Almeida (1951) e Pereira e Oliveira (2009).16 A existncia de identidades individuais mltiplas sugeridas por Rengger deveria ser tema de estudosmais aprofundados.17 Ver por exemplo a coletnea O ciclo da erva-mate em Mato Grosso do Sul, 1883-1947, InstitutoEuvaldo Lodi, Campo Grande, 1986.

  • Construindo e reconstruindo territrios Guarani: dinmica territorial na fronteira entre (...) 22

    Journal de la socit des amricanistes, 97-2 | 2011

    18 Vale ressaltar que Ivir-Iy [sic] seguramente no era o nome do comandante kaiowa encontrado porDe Bourgoing. O termo yvyraija significa, sobretudo, mas do que o nome de uma pessoa, uma categoriaassociada a algum tipo de liderana poltica e religiosa (Meli et al. 1976, p.218; Mura 2006, p.314).19 rgo indigenista oficial do Estado brasileiro institudo em 1910. Em um primeiro momento, at1917, a sigla completa deste rgo era SPILTN, isto , Servio de Proteo aos ndios e Localizao deTrabalhadores Nacionais, sediado no Ministrio da Agricultura. Eis a claramente expressa as intenesda poltica indigenista brasileira da poca: acompanhar um processo de construo de reservas e umplano articulado de desenvolvimento rural nas faixas de fronteira tidas como lugares privilegiados paraa execuo de tais prticas (Souza Lima 1995).20 A anlise da documentao do SPI, arquivada no Museu do ndio, no Rio de Janeiro, mostra que talprocesso foi comum em todas as reservas guarani do Mato Grosso do Sul. Na Reserva de Sassor, porexemplo, consta que a zona mais frtil, includa no lote inicial a ser demarcado, foi requerida e compradapor particulares.21 Muitos relatos foram coletados nesse sentido durante realizao de pesquisa de campo entre 2008 e2010 para a elaborao do Relatrio de Identificao e Delimitao da Terra Indgena Iguatemipegua,MS, FUNAI. Esses trabalhos, que buscam determinar os antigos espaos de ocupao kaiowa sobre amargem esquerda do rio Iguatemi, foram coordenados pela Antroploga Alexandra Barbosa da Silva eauxiliados pelos antroplogos Pablo Antunha Barbosa e Krine Guirau.22 Rezadores ou xams.23 Em 2008 o Governo Federal, atravs do Ministrio da Justia Federal e da FUNAI, assinou seisportarias instituindo a cria