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ROSANE DA SILVA GOMES
ENTRE GUIMARÃES ROSA , MANOEL DE BARROS E BARTOLOMEU
CAMPOS QUEIRÓS:
A CRIAÇÃO DE UMA INFÂNCIA DA ESCRITA
Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras
Belo Horizonte 2011
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ROSANE DA SILVA GOMES
ENTRE GUIMARÃES ROSA , MANOEL DE BARROS E BARTOLOMEU
CAMPOS QUEIRÓS:
A CRIAÇÃO DE UMA INFÂNCIA DA ESCRITA
TESE apresentada ao Programa de Pós–Graduação da Faculdade de Letras da UFMG como requisito parcial para a obtenção do Título de Doutor em Letras: Literatura Brasileira. Área de concentração: Literatura Brasileira Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade Orientadora: Profª. Drª. Marli de Oliveira Fantini Scarpelli
Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras
Belo Horizonte 2011
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Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Gomes, Rosane da Silva. R788J.Yg-e Entre Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Bartolomeu
Campos Queirós [manuscrito] : a criação de uma infância da escrita / Rosane da Silva Gomes. – 2011.
165 f., enc.
Orientadora : Marli de Oliveira Fantini Scarpelli.
Área de Concentração : Literatura Brasileira
Linha de Pesquisa : Poéticas da Modernidade.
Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia : f. 157-165.
1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967. – Jardins e riachinhos – Crítica e interpretação – Teses. 2. Barros, Manoel de, 1916- – Crítica e interpretação – Teses. 3. Queirós, Bartolomeu Campos – Crítica e interpretação – Teses. 4. Benjamin, Walter, 1892-1940 – Crítica e interpretação – Teses. 5. Agamben, Giorgio, 1942- – Crítica e interpretação – Teses. 6. Deleuze, Gilles, 1925-1995 – Crítica e interpretação – Teses. 7. Infância – Teses. 8. Memória na literatura – Teses. 9. Tempo na literatura – Teses. 10. Criação literária – Teses. 11. Escrita na literatura – Teses. I. Fantini, Marli. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título. CDD: B869.33
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AGRADECIMENTOS Aos meus pais, pela vida. Aos meus amigos, pelo incentivo e a força constantes, durante todo o percurso de escrita da tese. À Professora Doutora Marli de Oliveira Fantini Scarpelli, pela orientação da presente tese. Às Professoras Selma Moura, Claudia Ricci, Dília Maria Andrade Glória e Luciana Silva, responsáveis pela direção do Centro Pedagógico da UFMG nos anos de 2007 e 2008, pelo acolhimento na instituição. A Deus, que me ajudou a vencer as muitas dificuldades surgidas no decorrer do curso.
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Desexplicação
Língua de criança é a imagem Da língua primitiva Nas crianças fala o índio, a árvore, o vento Na criança fala o passarinho O riacho por cima das pedras soletra os meninos. Na criança os musgos desfalam, desfazem-se. Os nomes são desnomes. Os sapos andam na rua de chapéu. Os homens se vestem de folhas no mato. A língua das crianças contam a infância Em tatibitati e gestos.
Manoel de Barros
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RESUMO
A proposta desta tese é refletir sobre a infância, tendo em vista a problematização de
conceitos paradigmáticos sobre o tema, via de regra, impregnados dos sentidos de falta,
carência e incompletude. A abordagem cristalizada da infância como um estado precário,
provisório e lacunar é equacionada neste trabalho cujo desafio é lançar outras propostas de
leitura para o tema, dentre as quais o tratamento da infância como acontecimento, ligado à
esfera do novo e da criação. Para tal discussão, este trabalho ancorou-se especialmente nos
textos teóricos de autores como Walter Benjamin, Giorgio Agamben e Gilles Deleuze, com o
propósito de pensar sobre as possíveis relações entre a literatura e a infância. Tais relações se
pautaram nos contos “Jardins e Riachinhos”, de Guimarães Rosa. Para explorar este modo de
ver a infância buscamos convergências de narrativas rosianas aqui exploradas com textos de
Manoel de Barros e Bartolomeu Campos Queirós. A partir de imagens literárias desses
escritores foi-nos possível identificar uma poética da infância ou infância da escrita. Trata-se
de escritas tecidas pelo viés de criação e desvelamento, a partir de um contínuo brincar com as
palavras. O infantil na literatura foi explorado não somente como um tema, mas
principalmente como uma estrutura, ou seja, uma maneira de se escrever e dar a ver a infância
em seu contínuo e criativo devir, subvertendo-se, assim, a ideia de que a infância se reduz a
um tempo da carência, lacunaridade e insuficiência.
Palavras-chave: Guimarães Rosa, Bartolomeu Campos de Queirós, Manoel de Barros
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ABSTRACT
The purpose of this thesis is to produce a reflexion about childhood through questioning some
paradigmatic concepts on the subject that are, as a rule, instilled with the sense of failure, lack
and incompleteness. The crystallized approach of childhood as a precarious, provisional and
incomplete state is equated on this work, that has the challenge to project others reading
proposals for the theme, among which include the treatment of childhood as an event linked
to the sphere of “the new” and “the creation”. For this discussion, this work was based
especially on the theoretical writings of authors such as Walter Benjamin, Giorgio Agamben
and Gilles Deleuze, in order to think about possible relationships between literature and
childhood. These relations were based on Guimarães Rosa"s tales "Jardins e Riachinhos". His
view of childhood is explored through the convergence of texts about the theme writen by
Manoel de Barros and Bartolomeu Campos Queirós. From literature images of these writers
was possible to us to identify a poetry of childhood or a childhood writing. that´s all about
writing commented with relations of creation and discovery from the playing with the
words. The childish on the literature was explored not just as a theme, but mainly like a
manner to write and figure out the childhood on it´s on going and creative duty overturning
at this way the idea on which the childhood gets decrease to a time of necessity, gaping and
scanty.
Keywords: Guimarães Rosa, Bartolomeu Campos de Queirós, Manoel de Barros
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 9
CAPÍTULO I: OS CONCEITOS DA INFÂNCIA NA MODERNIDADE :
UMA ANÁLISE SÓCIO-HISTORIOGRÁFICA ................. ............................................ 21
1.1 – A contribuição de Philippe Ariès .............................................................................. 22
1.2 -Visões de pensadores sobre a infância: a contraposição à Ariès ............................ 25
1.3 - Locke e Rousseau : a necessidade da formação da criança .................................... 29
1.4 - Henry Jenkins e a construção do conceito de infância:
a preservação da inocência ......................................................................................... 33
1.5 – Neil Postman e o desaparecimento da infância ....................................................... 35
1.6 – A infância idealizada da Modernidade e os questionamentos deste conceito na
contemporaneidade ............................................................................................................. 38
1.7- Outras infâncias: a experiência do infantil nos contos de Guimarães Rosa .......... 41
1.7.1 - Às margens da vida, nas margens da alegria .............................................. 42
1.7.2 - A absoluta leveza nos Cimos ...................................................................... 47
CAPÍTULO II – ITINERÁRIOS NA LITERATURA:
DAS LINGUAGENS SOBRE UMA INFÂNCIA À INFÂNCIA DA LIN GUAGEM 53
2.1 – Visões da infância na literatura: uma breve história ............................................ 54
2.1.1 - A infância na literatura brasileira – o papel da memória na reconstituição da infância ................................................................................................................... 58
2.1.2 – O tempo infantil: outras formas de rememoração da infância em Bartolomeu Campos Queirós ............................................................................................................ 65
2.2 – A redescoberta da infância pela linguagem: apontamentos de Walter Benjamin e Giorgio Agamben .............................................................................................................. 70
2.2.1- Benjamin e a concepção da infância instaurada pela/na linguagem ........... 71
2.2.2 - Agamben e a infância como condição da história ....................................... 75
2.3 – “Jardim Fechado” e a descoberta da infância na escrita de Guimarães Rosa ..... 81
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CAPÍTULO III - O RIACHINHO SIRIMIM: TRAVESSIAS DA I NFÂNCIA
3.1- O conceito de devir-criança de Deleuze e Guattari .................................................. 87
3.2 - Literatura menor e uma escrita da infância ............................................................. 95
3.3 - Uma literatura menor: o poder da infância na escrita ......................................... 100
3.4 - Um riachinho, o Sirimim .......................................................................................... 101
3.4.1 – A minoridade em Sirimim .......................................................................... 103
3.4.2- Travessias de Sirimim ................................................................................ 106
3.4.3 - O acontecimento e o tempo aiônico em Sirimim ..................................... 107
CAPÍTULO IV - ENTRE BARROS, BARTOLOMEU E ROSA: CAMI NHOS DA INFÂNCIA DA ESCRITA
4.1 - A Infância da Palavra em Manoel de Barros .......................................................... 114
4.1.1. Memórias inventadas: sendas para os achadouros da infância ................... 119
4.1.1.1 - Senda primeira: Comunhão ........................................................... 120
4.1.1.2 - Segunda senda: Canto inaugural ................................................... 126
4.1.1.3 - Terceira senda: Brincar de palavras ............................................. 130
4.1.1.4 - Quarta senda: Agramaticalidade das palavras ............................. 132
4.1.1.5 - Quinta senda: Movimento ........................................................... 135
4.2 - Em voo: os sentidos de expansão e da morte na infância da escrita
4.2.1 - Voos de Bartolomeu Campos de Queirós:
uma trajetória em direção à infância ........................................................ 137
4.2.2 - A morte como ausência criadora ............................................................... 141
4.2.3 - As Garças: a morte e a preservação do fluxo da infância na escrita rosiana 146
CONCLUSÃO .................................................................................................................. 151
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 157
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INTRODUÇÃO
Não obstante, e ao mesmo tempo, a infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Pensar da infância como um outro é, justamente, pensar essa inquietação, esse questionamento e esse vazio ...
(LARROSA, 2006, p. 184)
Infância: um termo que pode ter um sentido comum, mas também singular. Como
etapa da vida humana, a infância mostra-se banal, presente na constituição do humano, fase
diferenciada de outros estágios do desenvolvimento biológico, social e psíquico. As
características físicas distinguem os indivíduos, mas também os padronizam em faixas etárias,
em classificações tipológicas, e em categorias estigmatizadas. A origem biológica do
desenvolvimento humano tem sido determinante na forma como o tema da infância vem
sendo há séculos investigado. O entendimento que daí decorre tem sido decisivo e coercitivo
no trato com a infância.
Ao pensar sobre a infância, muitas questões podem ser levantadas, aprofundadas e
revistas, com o objetivo de se investigar perspectivas diferenciadas do que é o infantil. Por
esta razão, me propus neste trabalho a fazer uma reflexão que desloque os sentidos usuais
relativos à infância, de modo a encontrar, no texto literário, uma escrita que se revela infantil.
A proposta é estabelecer um diálogo a partir dos estudos filosóficos e da literatura, buscando,
neste exercício, outras perspectivas, traçando novas linhas de abordagem sobre uma infância
no texto literário. Assim sendo, procuro sempre lançar inúmeros fios que se entreteçam no
sentido de se lançarem novos olhares sobre a infância.
Durante esse processo, surgiu a necessidade de definir melhor aquilo que se tornou
meu campo de pesquisa: o que significa a infância? O que marca a adjetivação infantil?
Podemos pensar numa literatura cujos recursos de linguagem guardem correspondência com a
inventividade e o caráter inaugural da fala infantil, sem que, contudo, se caia nos estereótipos
ou na desqualificação? Embora já muitas vezes se tenha discutido sobre o espaço que a
infância ocupa na literatura, parece-me que é importante reacender tal discussão, sobretudo
quando se compreende que o infantil pode ser abordado em dimensões diferenciadas das já
amplamente abordadas.
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Da mesma forma, há um aspecto relacionado à “menoridade” da literatura infantil que
me inquieta há muito tempo, uma preocupação que se agudizou durante o meu percurso de 24
anos como professora do ensino fundamental (1º ao 5º anos). Esta noção implica fortemente
uma desqualificação da produção literária endereçada às crianças.
Ao ingressar do curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras
da UFMG, constatei, com um certo espanto, o espaço reduzido que os títulos relacionados à
literatura infantil ocupavam na biblioteca dessa faculdade. Fiquei a pensar sobre a quase
inexistência dos livros de literatura infantil em uma instituição que empreende pesquisas na
área de literatura... Ficariam estes títulos catalogados na Faculdade de Educação? Essas
aparentemente simples indagações parecem-nos apontar para uma situação bem incomôda: o
papel da literatura identificada com o infantil relacionada diretamente com a função
pedagogizante da infância.
O que sempre me aproximou da discussão sobre o infantil e a literatura, desde o
mestrado (em que escrevi com o objetivo de enfocar a literatura como caminho para uma
educação estética, numa lógica invertida, em que propus uma “literalização da pedagogia”)
foi a constatação de uma minoração da literatura infantil. Nesse percurso de leitura e pesquisa
sobre o assunto, percebi que tal desvalorização relaciona-se diretamente com a visão
construída sobre a infância, assim como a desqualificação do adjetivo “infantil”.
Isto aparece nas falas dos escritores infantis: “às vezes escrever para crianças é
considerado uma arte menor, um artesanato. Ou menos do que isto” (VIGIL, 1995. p.46); “há
quem diga que fazer literatura é uma coisa e escrever para criança é outra” (ALONSO, 1995.
p. 44). Penso, no entanto, que a literatura infantil não pode estar delimitada em um projeto
pedagógico, de maneira utilitária. O que ocorre, seguindo a lógica de que é necessário educar
a criança para transformá-la rapidamente em um ser adulto, é que não só há descaso com a
livre inventividade da infância, como também com a dimensão estética da literatura infantil.
Como diz Alonso: “escrever para crianças é duas vezes literatura. Detesto a ‘pseudoliteratura’
que quer transformar a criança em um animal adestrado: ‘Faça isso, não faça aquilo... ’”
(1995. p. 44);
Alguns autores chegam a preferir não utilizar a adjetivação infantil para a literatura:
“eu apenas escrevo. E, quando escrevo, não estou pensando para quem eu escrevo. Eu me
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concentro no que eu quero contar e isso já é bastante. Eu escrevo, e pronto. Faço literatura”
(NUNES, 1995. p.44). E numa das falas de Bartolomeu Campos Queirós, a respeito de sua
produção escrita:
Hoje procuro escrever um texto que permita também a leitura dos mais jovens, mas sem esgotar a infância que também persiste nos adultos. Daí acreditar no poder da metáfora para realizar a minha proposição. Não busco uma literatura só para a infância (QUEIRÓS, s/p).
Estas ideias fizeram com que me aproximasse de algo que ativa o pensamento,
instigando-o à reflexão e à criação. O que surgiu nesta formulação de um pensamento novo
foi um encontro com a narrativa de João Guimarães Rosa, um autor consagrado e que jamais
foi considerado como um escritor de literatura infantil. Rosa, com sua maneira de escrever
sempre criativa e criadora, tornou-se um intercessor desta reflexão, como alguém que produz
diferença. Tê-lo como intercessor significou falseá-lo, já que “essas potências do falso é que
vão produzir o verdadeiro” (DELEUZE, 1992. p. 157). Desta forma, não tenho a intenção de
formular uma pretensa verdade em relação à temática proposta, mas sim buscar na escrita de
Rosa algumas pistas que me levassem a resolver as questões sobre uma escrita da infância.
Também não se trata de enumerar diferentes questões teóricas para somente aproximar
ideias sobre os conceitos de infância, mas de dialogar, interrogar, problematizar essas
questões a fim de mostrar como ocorre uma possível formulação da “infância da escrita”.
Quando me aproximo de Rosa não diferentemente de quando me debruço nas reflexões de
pensadores como Deleuze, Benjamin e Agamben, busco-os no que propõem de inventividade,
ludismo e criação, pois, como afirma Schöpke, toda interpretação já é uma criação pessoal, na
qual nos misturamos, nos colocamos, tomamos parte. Para a autora, utilizar um teórico,
embora com o cuidado de não desfigurá-lo, sempre significa fazê-lo falar mais do que ele
próprio disse – não com o intuito “de colocar palavras em sua boca, mas de fazer com que
cada palavra se desdobre e diga em que sentido ou sentidos devemos tomá-la” (2004, p.13).
A leitura crítica que empreendo neste trabalho não se relaciona com a ideia de infância
em si, o que talvez leve à procura de uma subjetividade infantil a ser resgatada, descoberta ou
preservada. Relaciona-se antes aos discursos construídos sobre o infantil, a partir de
determinadas categorizações, medidas e comparações. Procuro, portanto, entender os
mecanismos que vão conformando esse infantil, a partir das sobreposições e contraposições
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dos diferentes textos que, em um processo constante, vão produzindo novos discursos sobre a
infância.
De acordo com Corazza, escolher um percurso significa “uma prática de pesquisa que
nos ‘toma’, no sentido de ser para nós significativa” (2002, p. 123). Neste sentido, segui à
procura de pontos de partida e trajetórias na tentativa de encontrar sentidos a partir não apenas
de conceitos, mas também de experiências vividas. Assim, componho uma narrativa como
também alguém que conta sobre suas experiências, numa espécie de pesquisadora/viajante.
Para Walter Benjamin (1996), o narrador é aquele que possui experiências a transmitir, seja na
figura sedentária do camponês que nasceu e sempre viveu em sua terra e que, como ninguém,
conhece as histórias e as tradições de sua cultura, seja no marinheiro comerciante, conhecedor
de outras terras. A viagem que empreendi, nesta perspectiva, possibilitou muitas travessias... E
atravessamentos. Desta forma, voltando a Benjamin, escrevi atravessada pelo sentido da
experiência – Erfahrung.
A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar (LARROSA, s/p).
O que se intenta neste trabalho investigativo é uma relação entre a infância e aquilo
que existe de resistência. Tenta-se romper com os esquemas interpretativos que julgam ter
conhecimento pleno sobre a infância e com as maneiras de dominá-la. Por outro lado, são
oferecidas outras possibilidades de ler, dizer e escutar a infância, por meio da literatura. Uma
infância que se nos apresenta atravessada pela escrita literária.
A infância foi sendo inventada através de diferentes conceitos desenvolvidos no
decorrer de séculos, o que se fundamenta nos estudos historiográficos que investigam o tema.
Nos dois primeiros capítulos desta pesquisa, tentamos mostrar como a infância foi vista no
decorrer da história e como é possível pensá-la, como já foi tradicionalmente feito, fora da
abordagem cronológica linear e progressiva. Em vez de tentar tão somente apreendê-la por
meio das significações atribuídas aos diversos discursos que tentam defini-la histórica ou
genealogicamente, intentamos abordá-la preferencialmente enquanto forma de criação, de
alternativa outra que não a do ser tutelado pelo adulto. A par dessa mudança de perspectiva,
constatamos que as narrativas acerca da infância a descrevem como uma fase reconstituída
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por adultos que a organizam e dimensionam. No processo de construção narrativa assim
concebido os modos de dizer-se criança ou perceber-se infantil geram campos semânticos
muito contraditórios. Daí resulta o interesse em focar a linguagem literária que se ocupa da
face criativa da infância e de seu devir. Nossa premissa é a de que se trata de um tipo de
linguagem que permite o trânsito de sentidos e da multiplicidade de possibilidades
interpretativas da infância para além do âmbito da linearidade histórica e temporal.
Há uma tradição de estudos sobre a história da infância iniciada com Philippe Ariès
em sua conhecida obra História Social da Criança e da Família, publicada originalmente em
1960. Referência paradigmática para as investigações de historiadores e analistas culturais, as
proposições de Ariès marcam o início do questionamento da infância como fenômeno natural
e universal. A infância passa doravante a ser compreendida como realidade social constituída
historicamente. Ariès configura seus estudos em duas teses nas quais tenta, primeiro,
interpretar as sociedades tradicionais e, depois, mostrar o novo lugar assumido pela criança e
pela família nas sociedades industriais.
O lugar marcante dos seus estudos foi reforçado pelas críticas e polêmicas
desdobradas em obras posteriores de autores como Pollock (1983), De Mause (1995), Jenkins
(1998), Postman (1999), Youf (2002), dentre outros. Entre os estudos de investigadores de
língua portuguesa, ressaltam os trabalhos de Jobim & Souza (1994), Kramer (1996, 2000),
Del Priore (2000) e Sarmento (2004). Todas essas referências foram apoiadas na pesquisa de
Sandra Mara Corazza, nos livros Infância & Educação: Era uma vez... quer que conte outra
vez? (2002) e História da infância sem fim (2004).
Em contraposição a este conceito de infância formulado histórica e socialmente, no
presente estudo apresentamos, no segundo capítulo, uma imagem conceitual da infância que
permitisse pensá-la para além da cronologia, seguindo a lógica da experiência e do
acontecimento, a partir das ideias de Walter Benjamin e Giorgio Agamben; a seguir,
buscaram-se imagens literárias da infância que, ao enfocá-la sem as amarras da linearidade
temporal, valorizando sua experiência e seu vir-a-ser enquanto acontecimento, viriam a
reconhecê-la como força de criação.
Benjamin, desde o texto Experiência, revelou a sua preocupação com os estudos sobre
a criança. Criticava duramente o moralismo dos livros infantis e a forma infantilista do adulto
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se relacionar com a criança. Para o filósofo, “nada é mais ocioso que a tentativa febril de
produzir objetos supostamente apropriados às crianças” (BENJAMIN, 1993, p. 237). Alertava
que os pedagogos não percebiam como a terra estava repleta de “substâncias puras e
infalsificáveis capazes de despertar a atenção infantil” (idem, p.240). Se observarmos uma
criança, notaremos como ela se sente atraída pelos detritos: ao visitarem oficinas de costura,
carpintaria, atividades de jardinagem elas não raramente vão vasculhar os restos, as sobras, os
trapos... A partir dos detritos que recolhem, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os
restos e resíduos em uma relação nova e original. A criança cria suas brincadeiras e seus
prazeres a partir do “lixo da história”. Se a nossa modernidade já não nos permite mais
compartilhar conselhos e experiências, as crianças, de alguma forma, ainda mantêm laços com
a tradição, com o povo, com a história.
Ao aceitar a investigação inspirada em Benjamin sobre a destruição da experiência,
Giorgio Agamben nos propõe um instigante estudo sobre a diferença entre língua e fala e um
entendimento da infância como experiência de linguagem. Seu estudo fundamenta nossa
investigação a respeito da infância como experiência.
Agamben ressalta a relação entre experiência e infância em sua obra intitulada
Infância e História. Nela, ao retomar a ideia da pobreza de experiência do mundo
contemporâneo explorada por Walter Benjamim, retrata o acúmulo de situações pelas quais
temos passado rápida e superficialmente na cotidianidade de nossas vidas em contraposição
ao vazio de experiências, já que em nada nos detemos, nada se transforma em relato, nada
passa pela palavra, ou seja, nada nos passa. A própria rotina urbana é coberta de elementos, de
signos aos quais não dedicamos nossa atenção, sobre os quais não direcionamos nosso pensar
e pelos quais passamos indiferentes.
É como se o homem contemporâneo tivesse sido privado de sua biografia, como se a
ele fosse negada a possibilidade de sua própria experiência. O autor acentua ainda o caráter
ordinário da destruição da experiência e demonstra não ser preciso mais que um dia de rotina
numa grande cidade qualquer para que se perceba o quanto os afazeres comuns são
desprovidos dos sentidos da experiência.
Contudo, Agamben sugere que, em vez de lamentar esta realidade, a consideremos a
fim de buscar, nela mesma, alguma possibilidade de encontrarmos a “semente em hibernação
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de uma experiência futura” (AGAMBEN, 2005, p. 10). Para tanto ele recorre à herança
benjaminiana “da filosofia do devir” e propõe a preparação de um lugar lógico onde esta
semente possa alcançar sua maturação.
É, nesse sentido, que a literatura de Guimarães Rosa, sobretudo nos contos finais de
Ave Palavra enfoca a infância enquanto criação, e sua linguagem a despontar-se inventiva,
icônica, primordial.
A partir do terceiro capítulo, traçaremos uma discussão de algumas noções
relacionadas ao conceito de infância, pensadas a partir de reflexões do filósofo Gilles
Deleuze, sobretudo acerca de “literatura menor” e “devir-criança”. Deleuze, juntamente com
Guattari, analisa o conceito de literatura menor não como uma literatura de valor menor, mas
como a linguagem literária de uma minoria (colonizados, diaspóricos, a empregar a língua do
colonizador ou de uma nova cultura) diante de uma língua, via de regra, hegemônica.
No livro Kafka, por uma literatura menor, Deleuze e Guattari invertem o sentido da
palavra menor, demonstrando que, em uma literatura menor, tudo é político e relaciona-se
com aqueles que utilizam línguas de um “outro”: trata-se, assim, de tornar-se um estrangeiro
em sua própria língua e encontrar nessa restrição um uso criador. Pensar o menor como o
proposto significa compreendê-lo como aquele que está abaixo da palavra de ordem e que se
localiza de forma excludente e, ao mesmo tempo, dessacralizador em relação às imagens
impostas pelo poder hegemônico. Além disto, os fundamentos propostos pelos dois
pensadores em questão não se fundamentam, como já vimos, em uma categoria de valor, ou
seja, uma distinção entre língua menor em oposição a uma língua maior, pois, na concepção
de Deleuze e Guattari, a língua menor se realiza sempre dentro da língua maior, tornando-se
um mecanismo que gera tensão e desconstrução na língua da maioria.
Pensar o menor como proposto por Deleuze e Guattari significa, portanto,
compreendê-lo como aquele que está fora das imagens determinadas pela maioria e desafiar a
formação de uma norma fechada e única, de uma verdade. Trata-se de traçar linhas de fuga
para a linguagem e possibilitar a invenção de novas forças.
(...) uma literatura menor ou revolucionária começa por enunciar e só vê e só concebe depois... (...) A expressão deve despedaçar a forma, marcar as rupturas e as ramificações novas. Estando despedaçada uma forma, reconstruir o conteúdo que estará necessariamente em ruptura com a ordem das coisas. Antecipar, adiantar a matéria (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p.43).
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A literatura que tem a força e a criação da infância da escrita torna-se, do mesmo
modo, um exercício de alteridade, uma literatura que faz a língua vibrar, preservando o novo e
renovando formas de viver e pensar o mundo.
Além do conceito de “literatura menor” ainda enfocaremos neste capítulo o conceito
de “devir-criança”, ambos em Deleuze. Ao se pensar a infância como devir, há uma força
semântica no termo que intensifica as formas do fluxo, do tornar-se, do ‘vir a ser’, ou seja, do
modo processual de alteração de um estado.
Em linhas gerais, Deleuze e Guattari explicitam o conceito de devir como um
processo, mas sem chegar a um estado predefinido, a uma terminalidade fechada:
(...) um devir não é uma correspondência de relações. Tampouco ele é uma semelhança, uma imitação, em última instância, uma identificação. (...) Devir não é progredir nem regredir segundo uma série (...) Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem "equivaler", nem "produzir" (...) Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos (DELEUZE, GUATTARI, 2007, p.18-19 e 64).
Discutiremos ainda, no presente capítulo, uma outra temporalidade, que não se
relaciona com a do tempo contínuo e sucessivo. Neste sentido, o conceito de “devir-criança”
se coloca na possibilidade de criação de outros espaços e tempos, em que a infância possa ser
vista como uma força de recriação. Uma literatura que versa sobre a infância é, considerado
esse sentido, uma literatura que aguarda sempre pela novidade, recriando formas de viver e
pensar o mundo. Trata-se, enfim, de um “devir-criança” que busque resistir às formatações
que conduzem os modos de se pensar o infantil.
Em segundo lugar, a partir dos dois conceitos deleuzianos supracitados, enfocaremos
neste capítulo os contos finais de Ave Palavra, refletindo sobre o processo de criação da
escrita rosiana, buscando identificá-la não somente como uma narrativa sobre infâncias, mas
também ressaltando-se a possibilidade de Guimarães Rosa ter inaugurado uma infância da
escrita.
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Por fim, no último capítulo, estabeleceremos um diálogo entre as abordagens dos
capítulos 2 e 3, para reconhecer a possibilidade de se pensar uma infância da escrita nas
narrativas que abordam a infância do ponto de vista temático e/ou estrutural. Para tanto,
traçaremos um paralelo entre os pressupostos analisados no decorrer da tese e algumas obras
literárias que, tendo a infância como tema, também são narrativas que revelam uma infância
da escrita.
Dentre outros autores, destacaremos Manoel de Barros e Bartolomeu Campos de
Queirós que demonstram, em sua maneira de escrever uma infância numa outra temporalidade
que não a cronológica ou que privilegia o tempo como uma cadeia progressiva e sucessiva de
fatos. Em nosso entendimento, e é o que pretendemos demonstrar, eles vão ao encontro de
outras formas de menoridade, com uma potência diferenciadora. Pela memória da infância
que pode ser inventada e recriada, Barros e Queirós abrem, a exemplo de Rosa, um espaço de
transformação, em que o passado e o presente não se isolam, mostrando-se associados por
fluxos de experiências que se intercambiam e, portanto, se correspondem.
Em muitos de seus poemas que tematizam a infância, Manoel de Barros representa
poeticamente a forma como a criança descobre o mundo sem bloqueios. Trata-se de uma
gramática da escrita ancorada na liberdade investigatória e formal, que se ressalta na
estrofe/poema abaixo.
O menino caiu dentro do rio, tibum,
Ficou todo molhado de peixe...
A água dava rasinha de meu pé.
(...)
Você viu um passarinho abrido naquela casa
que ele veio comer na minha mão?
Minha boca estava seca igual do que
uma pedra em cima do rio (BARROS, 2000, s/p).
Na linguagem poética de Manoel de Barros somos surpreendidos por uma infância que
traz juntos a experiência, a história, o pensamento e o mundo para um encontro em que, o
tempo “povoado de agoras” (BENJAMIN, 1996, p.229-230) irrompe como gerador de pistas
para as construções da linguagem. O fazer poético de Manoel de Barros joga com os sentidos
18
do tempo que passou, tensionado com o presente, contextualizando, dessa forma, os objetos
da natureza e fazendo que deles se irradiem novos significados.
Nos textos de Bartolomeu Campos Queirós encontramos uma escrita sempre repleta
de suspeitas e não certezas, uma composição que se inspira por cuidados. As indagações e os
suspenses são, da mesma forma, modos de construção dessas narrativas. Sendo histórias
tecidas pela poesia, estas portam lacunas, estabelecem vias de diálogo com o leitor, que é
afetado pelo lirismo das palavras dispostas com desvelo. Tais sentidos lacunares propiciam
um olhar mais detido, aguçado, só possível em um tempo mais demorado de se deixar levar.
Não é um tempo utilitário, tão característico da lógica adulta que se pauta pela máxima Tempo
é dinheiro. É uma reinvenção do tempo, que se desvencilha do ordenamento do cronos para
experimentar outras formas de se viver o momento.
Neste sentido, o conhecimento é visto como criação, não como acumulação de
informações. O conhecer que não é norteado pela conservação e acúmulo, sendo, antes,
marcado pela perda. Esquece-se, no tempo certo, o que é para se esquecer, mas num outro
momento, retoma-se e recorda-se o que é preciso, ou seja, o caminho por-fazer.
O grande segredo é não ter a infância como lugar já perdido. É preciso saber reencontrá-la, reinventá-la. Mesmo sabendo que jamais poderei estar novamente na infância posso revivê-la pela força da fantasia. Depois, não basta tentar se infantilizar para conversar com as crianças. É preciso continuar reinventando, e sempre, o cotidiano (QUEIRÓS, s/p).
Instaura-se uma outra concepção de tempo, neste caminho do conhecimento
atravessado pela experiência. Não é o tempo marcado pela aceleração de compromissos,
valorizado pela quantidade de tarefas que se colocam para serem cumpridas. É um tempo de
saber como inventividade e sabor, experimentado com curiosidade, numa atitude própria da
experimentação infantil.
O conhecimento se relaciona com a vida de forma não utilitária, quer dizer, não é um
mero facilitador de satisfação das necessidades e exigências do mundo moderno. É um saber
que revela e encobre, põe luz, mas também sombras nos caminhos iluminados das verdades
objetivas. Trata-se de um conhecimento que revela ao ser suas dúvidas, seus anseios, seus
medos - o sentido e o não sentido da sua existência, de sua própria finitude. Um estilo de se
viver, demonstrado no modo de se colocar no mundo, num modo de ser infantil.
19
Desta forma, optar por um conhecimento que alie a infância à literatura é estabelecer o
diálogo entre o imaginário e o sensível, a realidade e sua tradução poética. As artes, entre elas
a arte literária, são, neste sentido, a melhor expressão de um pensar poético. Um modo de
pensar capaz de conciliar cognição e sensibilidade. Um meio de se dar sentido à existência em
bases intelectivas, estéticas e emotivas.
Autores como Guimarães Rosa provocam esta forma de pensar, que interpela os
sentidos, propicia maiores e mais intensas experiências de aprendizagem do humano. Não
necessariamente querem transmitir conhecimentos, embora provoquem aprendizados. É que,
ao criar, eles nos impelem a fazer o mesmo. Portanto, assim como escritores como os que
sabem da arte de escrever, podemos assumir a perspectiva infantil sem necessariamente
retornarmos à infância. Ou seja, podemos nos ancorar no fluxo do devir-infância da escrita
como os que se deixam guiar pela inventividade das palavras literárias.
Não pretendemos negar as reflexões já produzidas a respeito da infância, mas manejar
o foco de sorte a podermos apreciá-la em sua dimensão poética. Nosso objetivo, nesse
sentido, é perceber a infância na singularidade das experiências apresentadas por Guimarães
Rosa, Manoel de Barros e Bartolomeu Campos de Queirós em seus escritos literários. Desta
forma, partimos em busca de novas concepções de infância cuja força expressiva estaria
ancorada em textos literários como os que balizaram este trabalho.
Não há dúvida de que, em sua função poética ou literária, a linguagem intensifica e
multiplica o sentido das palavras mais do que em outras funções em que é empregada. A força
semântica e musical da palavra literária, sua capacidade de livrar-se e de depreender-se dos
limites referenciais assemelha-se ao ato infantil de inaugurar sentidos. Esta força da palavra
literária que não se deixa aprisionar no âmbito do discurso pragmático é a mesma que faz com
que se desterritorialize de seu estado de dicionário e flua em busca de outros sentidos Com a
escrita literária, a infância se expressa como algo que não sabemos, que escapa a nossas
verdades, que se reveste de novos sentidos a cada vez que é pronunciada. Sua polissemia, suas
múltiplas possibilidades interpretativas fazem com que a infância seja, a uma só vez,
multifacetada e única para quem a experiencia. Trata-se, portanto, de uma vivência singular e
íntima, própria de cada um. “Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a
experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de
antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem
‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’” (LARROSA, 2001, p. 28).
20
CAPÍTULO 1: OS CONCEITOS DA INFÂNCIA NA MODERNIDADE : UMA
ANÁLISE SÓCIO-HISTORIOGRÁFICA
A concepção atual de infância precisa necessariamente ser pensada numa perspectiva
histórica e sociológica, tendo como marco inicial o próprio significado da palavra infância.
Etimologicamente, o infante é aquele que não tem voz, nele se mostram faltas no pensamento
e na ação. O que Ariès chama de Enfant significa o não falante, ou seja, o que não pode falar
pela falta dos dentes e, por isso, é constantemente repudiado quando tenta se expressar (2006,
p.36).
Entendida nesse sentido, como a idade permeada por uma falta, a infância foi alvo de
uma concepção estereotipada, marcada por crenças e mitos que fizeram com que as crianças e
adolescentes ocupassem um patamar jurídico e político inferior ao dos adultos. Em
decorrência desse entendimento, criou-se um estigma de constante falta à condição infante, e
ao adulto ficaria destinada a função de corrigir e preencher falhas ou carências.
Das raízes etimológicas da palavra infância, um longo processo ocorreu para que se
consolidasse o conceito moderno do que é o infantil. A definição da infância ou a necessidade
de explicar o que é tipicamente infantil, atribuindo-se às crianças certas características, como
sujeitos de interesses e tendências naturais que se manifestam dadas as condições propícias ao
seu aparecimento, é um dos inventos da modernidade, consolidando-se, dessa forma, a
moderna pedagogia (o que será reforçado posteriormente pelo saber psicológico ou o
cognicista).
Também a produção de uma racionalidade moderna e natural foi um objetivo central
do Iluminismo. Ao conceber assim a criança, a semente da Humanidade – não uma dádiva de
Deus, mas um resultado do processo evolutivo – se estava fazendo frente a um processo de
distanciamento das explicações religiosas ou míticas da realidade. A religião é substituída pela
ciência, vista como instrumento de libertação. As forças do progresso estão, neste caso, ao
lado da ciência e da “natureza”. A criança, dessa maneira, poderia ser encarada também como
um agente de progresso, e a fase em que vive seria propícia ao desenvolvimento, natural ao
processo de evolução das espécies.
A partir da construção histórica do conceito ora abordado, este capítulo vai examinar
como a constituição da infância na modernidade esteve e está associada à continuada
elaboração de um discurso sobre o que significa “ser criança”.
21
1.1 – A contribuição de Philippe Ariès
Autores ligados à historiografia procuram identificar, desde seus primórdios, as várias
concepções de infância na história ocidental, para melhor compreender os conceitos sobre
esse campo, tais quais chegaram à atualidade. O objetivo desses autores em retomar os
estudos históricos sobre a infância é estimular a discussão em torno das conveniências da
desconsideração e/ou negligência para com a infância e adolescência, cristalizadas no tempo.
Um dos primeiros autores a fazer uma investigação mais detida sobre a infância em
bases teóricas foi Philippe Ariès. Sua tese pontuou pela primeira vez a temática da infância
como um conceito criado na modernidade. O tema da infância, levantado por ele, centra-se na
necessidade de ressignificar o sentimento de infância surgido em determinada época, atribuir-
lhe a importância devida e questionar se este sentimento sempre existiu ou se, por
circunstâncias culturais e sociais, deixou de ser desconsiderado.
Em sua obra História Social da Criança e da Família, publicada em 1960, o
pesquisador francês, aponta que o conceito ou a ideia que se tem da infância foi
historicamente construído e que a criança, por muito tempo, não foi vista como um ser em
desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim como um adulto em
miniatura. Nesse sentido, a história da infância desencadeou muitas reflexões sobre a forma
como a infância vem sendo entendida e que ideias foram cristalizadas a respeito da criança.
A discussão sobre o tema da infância, sua importância e a forma como ela é abordada
em pesquisas no campo da História, Sociologia, Filosofia, Psicologia, Biologia, Antropologia,
Arqueologia, entre outras, torna possível o entrelaçamento de diferentes olhares e autores
nesse amplo campo. Justifica-se, portanto, considerá-la como essencial para o entendimento
da Modernidade e das instituições de regulação criadas a partir de uma outra configuração da
família na sociedade burguesa.
Ariès é considerado o precursor da história da infância, pois, através de estudos que
ele desenvolveu com base em variadas fontes, como a iconografia religiosa e leiga, diários de
família, dossiês familiares, cartas, registros de batismo e inscrições em túmulos, surgem os
primeiros trabalhos na área de história, apontando para o lugar e a representação da criança na
sociedade dos séculos XII ao XVII. Baseando-se na história das mentalidades, Ariès (2006, p.
26) afirma:
22
(...) é sempre, quer ou não, uma história comparativa e regressiva. Partimos necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje, como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado, com a condição de, a seguir, considerar o modelo novo, construído com o auxílio dos dados do passado, como uma segunda origem, e descer novamente até o presente, modificando a imagem ingênua que tínhamos no início.
Do século XII ao XVII, período eleito por Ariès para focar suas pesquisas, ocorreram
grandes transformações históricas, dentre as quais as que decorrerão de uma nova mirada
sobre a infância que irá assumir diferentes conotações dentro do imaginário de então, seja nos
aspectos sociais, culturais, políticos ou até nos econômicos, conforme cada período histórico.
A criança era um ser de valor substituível, alguém que tinha uma função utilitária para a
sociedade, pois a partir dos sete anos de idade era inserida na vida adulta e sua utilidade era
medida quando realizava tarefas, imitando seus pais e suas mães, acompanhado-os em seus
ofícios, cumprindo um papel perante a coletividade.
Com relação às etapas da vida humana, a pesquisa de Ariès mostra que a forma de
representar sua cronologia passou por várias mudanças. Estas representações eram construídas
principalmente a partir das observações dos elementos da natureza, do estudo dos astros, dos
aspectos das crenças populares, fenômenos naturais e sobrenaturais, os quais faziam parte de
um contexto governado pelas leis da teologia, enfatizado por uma visão mística. Assim, as
representações da idade humana eram calcadas em argumentos desprovidos de uma maior
objetividade. Além disso, a morte prematura das crianças era bastante comum e elas não
chegavam a percorrer todos os ciclos da vida. A partir de relatos e textos dos século XII ao
XVIII, o autor demonstra como as pessoas definiam a infância:
a primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade começa quando nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não falante, pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras (ARIÈS, 2006, p. 36).
Nessa perspectiva, o infante tinha comportamentos esperados, considerados
manifestações irracionais. Por esta concepção, a infância se contrapõe à vida adulta, pois os
comportamentos considerados racionais, ou providos da razão, seriam encontrados apenas no
indivíduo adulto, identificando-se, assim, o adulto como o homem que pensa, raciocina e age,
com capacidade para alterar o mundo que o cerca; tal capacidade não seria possível às
crianças. Observa-se que a passagem da vida infantil para a vida adulta seria uma condição a
23
ser superada: ”a passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito
insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade”
(ARIÈS, 2006, p. 10).
A infância nesse contexto seria comparada à velhice, pois se, de um lado, temos a
infância constituída pela falta de razão, por outro, teríamos a velhice marcada pela senilidade,
já que “as pessoas velhas já não têm os sentidos tão bons como já tiveram, e caducam em sua
velhice (...) o velho está sempre tossindo, escarrando e sujando” (ARIÈS, 2006, p. 37). As
demais idades, no caso, a juventude e a vida adulta, caracterizar-se-iam pela sua força,
vitalidade e principalmente pelas funções produtivas dentro da vida social e coletiva.
Considerando essa questão, percebe-se que, na sociedade atual, tal situação é recorrente, à
medida que há uma ênfase na valorização do indivíduo produtivo, excluindo-se crianças e
idosos de diversos setores e espaços sociais.
Assim, a história da infância pesquisada por Ariès ressalta que as crianças foram
tratadas como adultos em miniatura, na sua maneira de vestir-se, na participação ativa em
reuniões, festas e danças. Os adultos se relacionavam com as crianças sem um cuidado maior,
pois falavam vulgaridades, realizavam brincadeiras grosseiras e todos os tipos de assuntos
eram discutidos na frente delas, inclusive a participação em jogos sexuais. Isto ocorria porque
não acreditavam na possibilidade da existência de uma inocência pueril, ou na diferença de
características entre adultos e crianças: “no mundo das fórmulas românticas, e até o fim do
século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens
de tamanho reduzido” (ARIÈS, 2006, p. 51).
O autor destaca, ainda, que foram séculos de altos índices de mortalidade infantil
assim como de práticas de infanticídio. As crianças eram descartadas e substituídas por outras,
na intenção de se conseguir um espécime melhor, mais saudável, mais forte que
correspondesse às expectativas dos pais e de uma sociedade que estava organizada em torno
dessa perspectiva utilitária da infância. O sentimento de amor materno não existia, segundo o
autor, como uma referência à afetividade. A família era social e não sentimental: “uma
vizinha, mulher de um relator, tranquiliza, assim, uma mulher inquieta, mãe de cinco pestes e
que acabara de dar à luz. Antes que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a
metade, e quem sabe todos” (ARIÈS, 2006, p. 56). Assim, as crianças sadias eram mantidas
por questões de necessidade, mas a mortalidade também era algo aceito com bastante
naturalidade.
24
Outra atitude muito comum da época era entregar a criança para que outra família a
educasse. O retorno para casa se dava aos sete anos, se aquela continuasse viva. Considera-se
que, nesta idade, a criança estaria apta para ser inserida na vida da família e no trabalho.
Nesse contexto, as mudanças com relação ao cuidado com a criança só vêm ocorrer mais
tarde, no século XVII, com a interferência dos poderes públicos e com a preocupação da
Igreja em não aceitar passivamente o infanticídio, antes tacitamente tolerado. Preservar e
cuidar das crianças seria um trabalho realizado exclusivamente pelas mulheres, no caso, as
amas e parteiras, que agiriam como protetoras dos bebês, criando uma nova concepção sobre
a manutenção da vida infantil, “como se a consciência comum só então descobrisse que a
alma da criança também era imortal. É certo que essa importância dada à personalidade da
criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos costumes” (ARIÈS, 2006, p. 61).
Dessa forma, surgiram medidas para salvar as crianças. Para tanto, as condições de
higiene foram melhoradas e a preocupação com a saúde das crianças fez com que os pais não
aceitassem perdê-las com naturalidade. No século XIV, devido ao grande movimento da
religiosidade cristã, surge a criança mística ou criança angelical. A representação da criança
mística, aos poucos, vai se transformando, assim como as relações familiares. A mudança
cultural, influenciada por todas as transformações sociais, políticas e econômicas que a
sociedade vem sofrendo, aponta para mudanças no interior da família e das relações
estabelecidas entre pais e filhos. A criança passa a ser educada pela própria família, o que fez
com que se despertasse um novo sentimento por ela. Ariès caracteriza esse momento como o
surgimento do “sentimento de infância”, que será constituído por dois momentos, um deles
chamado de paparicação.
A paparicação seria uma nova forma de cuidar decorrente do sentimento familiar
despertado pela beleza, ingenuidade e graciosidade da criança. Esta foi uma mudança que
propiciou uma aproximação cada vez maior dos pais com os filhos. Assim, os gracejos das
crianças eram mostrados a outros adultos, fazendo da criança uma espécie de distração,
bichinhos de estimação, como o sugere Ariès (2006, p. 68):
(...) ela fala de um modo engraçado: titota, tetita y totata (...) eu a amo muito (...) ela faz cem pequenas coisinhas: faz carinhos, bate, faz o sinal da cruz, pede desculpas, faz reverência, beija a mão, sacode os ombros, dança, agrada, segura o queixo: enfim, ela é bonita em tudo o que faz. Distraio-me com ela horas a fio.
25
Por uma nova necessidade de manter viva a criança, surgem medidas para garantir sua
sobrevivência. As condições de higiene melhoraram, e a preocupação com a saúde das
crianças fez com os pais não aceitassem perder seus filhos com naturalidade e os que perdiam
aceitavam como sendo a vontade de Deus, segundo a orientação religiosa da época.
Este sentimento, despertado primeiramente nas mulheres, não era compartilhado por
todas as pessoas; algumas ficavam irritadas com a nova forma de se tratar as crianças. Ariès
cita, em suas referências, a hostilidade de Montaigne com o novo comportamento adotado:
(...) não posso conceber essa paixão que faz com as pessoas beijem as crianças recém-nascidas, que não têm ainda movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis, e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente (MONTAIGNE, apud ARIÈS, 2006, p. 159).
O sentimento de apego surge a partir do século XVII, como uma manifestação da
sociedade contra a paparicação da criança, e propõe separá-la do adulto para educá-la nos
costumes e na disciplina, dentro de uma visão mais racional. Assim, foi dentro desse contexto
moral que a educação das crianças se inspirou, através do posicionamento de moralistas e
educadores e, principalmente, com o surgimento da família nuclear gerada dentro dos padrões
da cúria: o modelo de família conservadora, símbolo da continuidade parental e patriarcal que
marca a relação pai, mãe e criança. A preocupação da família com a educação da criança
desencadeou mudanças que levam os pais a cuidar com maior zelo de seus filhos.
Consequentemente, houve a necessidade de impor regras e normas na nova educação,
do que decorrem formações visando à doutrinação da criança, o que atende aos anseios da
sociedade que então emergia. Essa nova concepção de sociedade faz com que a criança seja
alvo do controle familiar ou do grupo social em que ela está inserida.
Com o surgimento de um novo homem, aparecem também as primeiras instituições
educacionais, das quais emerge a concepção de que os adultos “compreenderam a
particularidade da infância e a importância tanto moral como social e metódica das crianças
em instituições especiais, adaptadas a essas finalidades” (ARIÈS, 2006, p. 193).
Com a evolução nas relações sociais que se estabelecem na Idade Moderna, a criança
passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A nova percepção,
bem como a nova organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e
26
filhos fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser vista como
indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com sua saúde e
sua educação.
Ariès observa que não existia então o conceito de infância antes do século XVII,
período em que havia um evidente descaso com relação à fase inicial da vida, pois não se
dispensava um tratamento diferenciado às crianças. Somente a partir do século XVIII, surgem
os dois sentimentos de infância apontados pelo autor: o de paparicação e o de controle moral,
que irão constituir a base para o conceito moderno da infância. Para Ariès, quando a criança é
colocada num patamar de significância, surge também a necessidade de controlá-la e educá-la
mais formalmente.
É dessa maneira que no século XVII tem início a produção de literatura moral e
pedagógica direcionada para a infância, deixando claro desta forma o surgimento do conceito
de inocência infantil. O sentimento de um estado particular da vida humana começa a se
moldar a partir do surgimento da escola.
A criança passa, a partir de então, a ser objeto de atenção da família, merecedora dos
cuidados daqueles que deveriam ser os responsáveis não só por colocá-los no mundo, mas
também enviá-los à escola. Essa atitude resultou na aproximação das pessoas em torno de um
núcleo familiar com a consequente retração da sociabilidade.
Assim, a infância, como ideia recorrente até a contemporaneidade, é fruto das
mudanças sociais operadas no limiar da Idade Moderna, a partir não apenas da reestruturação
das relações familiares, mas também da importância que a escola passou a assumir na
educação dos meninos e meninas. A estabilização dessa postura, por volta do século XVII , é
influenciada pelos seguintes fatores: 1) emergência de um sistema de educação; 2) mudanças
na estrutura familiar; 3) desenvolvimento do capitalismo; 4) surgimento de um espírito de
benevolência; 4) aumento da maturidade emocional dos pais.
O conceito de infância torna-se mais elaborado durante os séculos XVIII e XIX,
quando a criança é considerada um componente essencial da família e da sociedade, passando
seus direitos a ser protegidos pelo Estado (CORAZZA, 2004, p.89).
27
1.2 – Visões de pensadores sobre a infância: a contraposição à Ariès
Os estudos de Ariès sobre a formação do conceito de infância foram resultado de uma
pesquisa documental e iconográfica, cujo objetivo era mostrar que a sociedade ocidental passa
a ser “uma sociedade que se fecha em núcleos familiares, e que privatiza a infância e a
segrega, através de vários sistemas educativos, implicando-a em regimes autoritários e em
restrições disciplinares” (CORAZZA, 2004, p.86).
Autores que discordam de Ariès desenvolvem seus pressupostos principalmente a
partir de três constatações a respeito do método utilizado por ele para comprovar sua tese.
Primeiramente, os mecanismos teórico-metodológicos usados pelo autor, que se baseou
principalmente nos documentos iconográficos da época. Em segundo lugar, o estudo da
criança, realizado de maneira isolada e voltado para as classes mais abastadas. Por último,
uma certa indiferença quanto às particularidades de cada país, já que Ariès ignorou as
especificidades das práticas relativas à infância tais quais esta se consolidou em diversas
sociedades europeias.
DeMause vai opor-se à tese de que não havia um conceito ou uma consciência da
natureza particular de infância antes do século XVII. Este crítico afirma que as sociedades do
passado reconheciam a infância como um estado distinto da fase adulta, ou seja, um estado
com particularidades específicas. No seu livro História da Infância, DeMause se opõe ao
pensamento de Ariès de que a infância pré-moderna era mais feliz, pois gozava de uma
liberdade maior que se perdeu com o advento da modernidade, a partir do surgimento de
mecanismos que, ao diferenciar o infantil do adulto, procuravam adestrá-la para que pudesse
atingir à maioridade de maneira apropriada (CORAZZA, 2004, p.96).
DeMause cria, com o auxílio de dez outros historiadores, a “teoria psicogenética da
história”. Para ele, a mudança histórica não ocorre pela economia ou pela tecnologia, mas
“pelas mudanças psicogenéticas da personalidade, resultantes das interações entre pais e
filhos em gerações sucessivas” (DEMAUSE Apud CORAZZA, 2004, p.97).
Juntamente com Archard, DeMause formula ainda a ideia do "tratamento cruel".
Segundo estes autores, a crueldade era uma prática recorrente na relação familiar até o início
do século XIX. Questões como o abuso sexual, negligência, maltratos e mesmo o infanticídio
eram praticados nos vários períodos da consolidação da Modernidade. Quanto a esta questão,
28
Ariès vai negá-la quanto a sua existência na sociedade medieval, mas vai reafirmá-la como
uma realidade na sociedade moderna, descrevendo esse tipo de tratamento como muito mais
frequente nas escolas do que nas famílias, embora ocorressem nas escolas com o
consentimento das famílias, ou mesmo a pedido destas.
Por essa negação do tratamento cruel no período medieval, Ariès vai ser criticado por
DeMause. Para ele, na idade medieval as crianças viviam uma situação de “grave abandono
afetivo” e, com a chegada da idade moderna, houve um movimento de sua aceitação social,
desenvolvendo-se para elas um tratamento mais humanizado (CORAZZA, 2004, p.100).
Utilizando-se, em suas pesquisas, da perspectiva psicogenética e progressiva da
formação do conceito de infância, DeMause, no intuito de se contrapor às pesquisas de Áries,
lança mão de abordagens historiográficas para tentar comprovar seu pressuposto segundo o
qual a criança e a infância devem ser concebidas enquanto “entidades históricas” (Apud
CORAZZA, 2004, p.103). Contudo, ao defender a evolução do conceito da infância aliado a
uma melhoria do tratamento destinado à criança, DeMause não consegue se desvencilhar da
explicação histórica de uma genealogia do infantil.
Pollock opõe-se também à tese de Ariès, criticando a generalização feita por este a
partir de um estudo não representativo de uma única experiência, com foco na classe alta,
pertencente à elite francesa. Nesse sentido, Ariès teria ignorado por completo as distinções
sociais e culturais existentes entre a criança estudada e a verdadeira representação da infância,
que naturalmente não pertencia à realeza, nem à classe alta francesa.
A historiadora elabora uma teoria sociobiológica para observar os cuidados entre pais
e filhos, utilizando-se de autobiografias e escritos dos séculos anteriores à Modernidade para
comprovar que havia um sentimento de infância anterior ao século XVI e que “as práticas de
afeto e solicitude nas relações pais/filhos são invariantes que atravessam a cultura humana”
(CORAZZA, 2004, p.110). Desta maneira, quaisquer que fossem as distinções com relação ao
trato com as crianças, elas poderiam ser interpretadas por Ariès como ausência do sentimento
moderno de infância, o que significa olhar para o passado e querer ajuizá-lo a partir dos
valores socioculturais da modernidade.
Outra crítica realizada por Pollock refere-se ao caminho tomado por Ariès em seu
estudo sobre a infância. Segundo a autora, havia um interesse explícito em investigar o
29
conceito aliando-o ao advento da educação moderna, e, por este motivo, Ariès preferiu supor
que as crianças pequenas simplesmente não eram levadas em conta, ou seja, eram olhadas
com total indiferença, deixando-se de lado a busca por informações que trouxessem
evidências substanciais de como as crianças pertencentes a esta faixa etária eram tratadas pela
sociedade. A autora admite que a partir do século XVI houve pequenas mudanças no
tratamento destinado às crianças, referente a uma nova “natureza de infância” (p. 111).
Havia já uma preocupação em educar corretamente os filhos, com métodos de
disciplina nem sempre ligados às punições físicas. Mesmo admitindo que existiam muitas
variáveis no tratamento destinado às crianças, a tese de Pollock era de que o sentimento de
infância já ocorria antes da Modernidade porque se sabia que a criança era um ser dependente
dos adultos, e os pais eram responsáveis por sua proteção e socialização (Idem).
1.3- Locke e Rousseau : a necessidade da formação da criança
John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) muito influenciaram a
construção da concepção ocidental sobre a infância enquanto estágio distinto da idade adulta.
Os dois são autores respectivamente de Some Thoughts Concerning Education (1693) e Emile
(1762), os primeiros manifestos sobre a educação centrada na criança.
No século XVIII, o clima intelectual desencadeado pelo Iluminismo permitiu uma
disseminação da concepção de infância. O Iluminismo proporcionou uma transposição de
fronteiras, alcançando, através de seus precursores, diferentes paradigmas. Pode-se que
afirmar que as contribuições de Locke e Rousseau, produzidas nessa época, difundiram-se e
reafirmaram-se nos dois séculos seguintes.
Considerado um dos mais importantes filósofos do empirismo inglês, Locke percebia
as crianças como recipientes de uma educação ideal, como folhas brancas a serem
preenchidas pela experiência tutelada pelos adultos. A partir da sua teoria da tabula rasa,
(GHIGGI, OLIVEIRA, 1995, p.41) afirma que a formação dos pequenos deve torná-los
cidadãos virtuosos capazes de um autocontrole racional. Locke vê as crianças como
imperfeitas, versões incompletas dos adultos. Os pais devem ter poder sobre os seus filhos
pequenos, já que estes não possuem razão e por isso não podem ter os direitos de cidadãos
adultos.
Em Locke encontra-se uma conexão entre a infância e o material impresso, na medida
30
em que a folha em branco da criança é preenchida quando se encaminha à maturidade. Nessa
concepção, não há nada biológico; tudo se constitui num processo de desenvolvimento
permeado pela sequencia, segmentação e linguagem.
A visão de Locke sobre as crianças pode ser conceituada como utilitarista, resumida
na ideia muito determinante da filosofia do protestantismo, da importância da proteção e
formação dos menores, para que se tornem cidadãos produtivos e civilizados, alfabetizados e
racionais. Locke é um porta-voz da burguesia, classe emergente na Inglaterra, que, para
ganhar espaço nas disputas econômicas, precisa basear seus ideais em uma visão mais
pragmática do mundo e da sociedade da época (Idem, p.47).
Youf (2002) afirma que a concepção de Locke formou-se sobre uma ideia negativa da
infância. Para o autor, esta visão influenciou fortemente a concepção moderna de menoridade.
Desprovidas de razão, as crianças são vistas como próximas aos animais, por isso a
necessidade de que os pais lhes imponham uma disciplina rígida. “A liberdade e a
complacência não podem ser boas para as crianças. Como elas não possuem discernimento,
precisam de direção e disciplina. As crianças com pouca idade devem ter seus pais como seus
senhores, como seus mestres absolutos e que nesta qualidade sejam temidos e por outro lado,
em uma idade mais avançada, tenham neles os seus melhores amigos” (LOCKE Apud YOUF,
2002 p.19).
Por outro lado, a imposição da disciplina parece ter uma vertente mais abrandada em
Locke. O filósofo inglês afirma que as crianças possuem necessidades e interesses próprios e
que devem ser chamadas à razão e não simplesmente coagidas ou castigadas. Neste sentido, o
modelo de educação proposto pelo autor valoriza a capacidade de apreensão de informação e
a sensibilidade da criança. A partir de um processo educativo organizado de forma científica,
controlada e racional, a criança seria treinada para se libertar dos seus modos infantis. O
modelo teria influenciado o papel do professor como a voz suprema na sala de aula, e os
alunos como repetidores de respostas em coro e padronizadas.
O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau tinha uma outra concepção de infância cuja
principal crítica residia no desconhecimento das crianças pelos adultos. “Procura-se sempre o
homem em miniatura e não as crianças, não se percebem as diferenças do mundo da criança”,
afirmou no prefácio de Emílio. Para o autor, a infância é um tempo positivo sem o qual o
adulto não seria humano, ou seja, é uma condição da humanidade. Neste sentido, como
explica Youf (2002, p.22), a infância não é um fracasso, ou um mal necessário, mas um
31
período extremamente positivo. A criança é considerada por Rousseau não idêntica, mas
semelhante ao adulto. Suas maneiras próprias de ver, de pensar e de sentir a diferenciam. O
filósofo defende que as crianças têm capacidade de raciocínio sobre as coisas que conhecem e
que se referem a seus interesses.
Para ele, faz-se necessário pensar seriamente no significado da infância que começa
com o nascimento da criança que, por sua vez, deve ser também educada a partir daí. Ou seja:
a educação deverá começar a partir do momento em que a criança vem ao mundo. Assim deve
acontecer por se tratar da necessidade de formamos o homem, antes que este possa se inserir
na sociedade como cidadão.
A necessidade da formação da criança fica evidente no Emílio, quando diz o autor que
"tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem"
(ROUSSEAU, 2004, p.9). Considerando esta degeneração do homem, que acontece na
sociedade, é que se pode pensar no desenvolvimento humano que se deve dar a partir do
nascimento do homem. Assim, a infância passa a ser considerada por Rousseau o lugar, ou
momento do desenvolvimento humano, em que se pode identificar o ser humano no seu modo
de ser mais natural. Pensar, então, a infância deste ser é, na verdade, pensar no momento em
que ele pode se formar enquanto homem natural. É este homem natural, identificado na
infância, que se estende dos primeiros momentos da vida até os quinze anos, quando se inicia
a adolescência, que antecede o cidadão. Este somente poderá ser identificado no homem,
quando ele atinge a sua fase adulta.
Ao considerar a necessidade de se pensar na formação deste homem natural, que é
próprio da infância, Rousseau passa a se perguntar pelo que seria do homem se não lhe fosse
dada uma educação conforme a natureza. Ora, tal educação deixa de existir quando o homem
passa a se formar de acordo com as determinações do meio social em que está inserido.
Todavia, se por acaso para o homem fosse destinada uma formação natural, desvinculada das
imposições sociais, ele ficaria desconfigurado. Tal afirmativa é comprovada por Rousseau,
quando ele chama a atenção para o seguinte:
No estado em que se encontram as coisas, um homem abandonado a si mesmo, desde o nascimento, entre os demais, seria o mais desfigurado de todos. Os preconceitos, a autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as instituições sociais em que nos achamos submersos abafariam nele a natureza e nada poriam no lugar dela. Ela seria como um arbusto que o acaso fez nascer no meio do caminho e que os passantes logo farão morrer, nele atendo de
32
todos os lados e dobrando-o em todos os sentidos (Idem, p.9).
A teoria de Rousseau parte do respeito à infância para defender uma educação de
acordo com a dinâmica própria de cada idade, que não imponha as respostas corretas, mas que
auxilie as crianças a resolverem os seus próprios problemas. Para Rousseau, as crianças são
inocentes e puras e a educação deveria ter a função de preservar ao máximo estas
características. Era uma oposição à sociedade industrializada que surgia na Modernidade, a
criança representava a proximidade com a natureza em seu estado mais puro e distante da
civilização.
Esta visão romântica concebia a criança como importante em si mesma, creditando-a
como um cidadão em potencial. Sua natureza sincera, curiosa e espontânea não deveria ser
castrada pela educação calcada no autocontrole e vergonha. Os românticos baseavam-se numa
ideia do homem próximo ao "estado de natureza", havendo um desprezo total pelos "valores
civilizados".
A contribuição ideológica de Rousseau foi marcante para a concepção da criança
inocente que perdura até hoje. O filósofo discorre em sua obra sobre as fases etárias da
infância e sobre o que seria apropriado para cada uma. É possível afirmar que este é o
primeiro ensaio surgido em direção à elaboração dos estágios de desenvolvimento progressivo
para a idade adulta, que, por sua vez, influenciou a Psicologia nos séculos seguintes,
principalmente as teorias cognitivistas de Piaget.
Como já dito anteriormente, Locke e Rousseau possuem concepções diferentes sobre a
infância. O primeiro ressalta o que falta à criança para esta deixar de ser vulnerável física e
intelectualmente, enquanto o segundo prefere enfatizar sua natureza essencialmente pura e sua
capacidade de pensar e de querer diferentemente dos adultos. Entretanto, os dois filósofos
aproximam-se em um aspecto: expressam o reconhecimento da infância numa perspectiva
nova para a época. Esta característica em comum explicita o reconhecimento do caráter
imprescindível da proteção e da intervenção dos adultos no processo de formação das
crianças. Para Rousseau, esta influência deveria dar-se no sentido de preservar as
características naturais das crianças, enquanto, segundo Locke, a educação deveria orientar-se
no sentido de levar a criança a preparar-se para gradativamente tornar-se um adulto.
33
1.4 – Henry Jenkins e a construção do conceito de infância: a preservação da inocência
Os Estudos Culturais, especialmente em sua vertente voltada para as análises textuais,
propiciam a compreensão do caráter inerentemente precário dos significados, da absoluta falta
de correspondência entre palavras e coisas e das lutas de poder pelo controle destes mesmos
significados. Esta visão preocupa-se com os significados que estão sendo constantemente
negociados e que estão conectados a políticas de verdade em ação na sociedade. O
desenvolvimento dos Estudos Culturais está ligado ao desenvolvimento curricular e
institucional das instituições acadêmicas porque se lhes tornou necessário estabelecer uma
relação de interdisciplinaridade mais do que institucional com as ciências sociais e com as
“humanidades”.
Autores desse campo metodológico também têm-se dedicado à temática da infância,
enfatizando a pouca atenção destinada aos sujeitos infantis analisados pelo viés sociológico.
Henry Jenkins, em seu livro The children’s culture reader aponta para uma delimitação da
infância na pesquisa acadêmica, sugerindo que, enquanto as culturas juvenis têm sido objeto
de pesquisa sociológica, a infância tem sido considerada objeto adequado apenas para a
Psicologia do Desenvolvimento.
O autor afirma que historiadores e, em geral, todos os que pensam historicamente,
constroem suas histórias no presente, de acordo com suas teorias ideológicas e seus interesses.
O passado ‘histórico’ construído não está relacionado com o passado ‘real’, mas é um passado
reformulado em historiografia, como uma construção do presente, como uma referência
textual não sobre o quê, mas sobre o que é.
A criança é vista numa perspectiva que a diferencia do adulto — um ser em falta,
imaturo, que depende das decisões alheias — alguém que precisa adquirir o conhecimento
que foi legitimado por outros mais velhos e experientes, por pessoas cujas atitudes podem ser
afirmadas através de racionalizações. As crianças passam a ser uma preocupação social:
objetos de interesse e temais principais de discursos. São construtos históricos produzidos por
condições sociais concretas.
Dessa forma, o sujeito infantil é produzido pelos discursos que se enunciam sobre ele:
discursos médicos, biológicos, antropológicos, psicológicos, pedagógicos. Tais discursos
constroem para as crianças uma posição de sujeito ideal, um sujeito universal, sem cor, sem
sexo, sem filiação, sem amarras temporais ou espaciais.
34
A ênfase na infância como um fato biológico — uma preocupação marcadamente pós-
darwiniana — baseada na ideia de evolução e de progresso, teve influência sobre todas as
explicações a respeito desta fase da vida: da sexualidade à progressão ou desenvolvimento
cognitivo, marcando profundamente a compreensão da infância e dos fenômenos a ela
associados e, por consequência, na constituição das identidades infantis.
Henry Jenkins enfatiza que a concepção moderna de 'criança inocente' é comumente
entendida como universal, ou seja, natural à criança, independente do momento histórico e da
cultura a que ela pertença. Entendendo a criança como destituída de desejo sexual,
desconsideram-se as outras diferenciações, além das de gênero, como as étnicas ou de classe
entre as múltiplas crianças no mundo. É como se a noção do infantil existisse apartada do
contexto, exercendo, entretanto, um papel importante na regulação de hierarquias culturais, ao
separar, por exemplo, a influência negativa da cultura popular sobre as crianças do poder
educativo conferido à chamada alta cultura. O autor enfatiza que a concepção moderna de
'criança inocente' se alicerça em uma história, por sua vez elaborada por ideias de diferentes
contextos históricos. E, assim sendo, acaba por resultar em sentidos contraditórios (JENKINS,
1998, p.15).
Jenkins ainda ressalta que, embora nem todas as afirmações de Ariès estejam corretas,
a sua principal contribuição foi ter fundado as bases para o estudo da construção social da
noção de infância e, particularmente, das ideias de inocência e pureza comumente associadas
a ela. Segundo Ariès, essa concepção moderna resultou em dois tipos principais de
comportamento em relação à criança: em primeiro lugar, justificou a atitude de proteção
contra as mazelas do mundo adulto e, em especial, contra a sexualidade; e, em segundo lugar,
estimulou a ideia de educar a criança, desenvolvendo-lhe o caráter e a razão (ARIÈS, 2006,
p.56). Essas duas atitudes anunciam uma concepção já descrita anteriormente em relação à
infância: ao mesmo tempo em que se quer proteger as crianças do mundo adulto, procura-se
prepará-las para assumi-lo, através da educação.
Assim, pode-se afirmar que a ideia de criança natural tem dois desdobramentos que
estão ainda hoje muito presentes nas nossas representações do sujeito infantil: o da criança
racionalizada — ou sujeito cognitivo — e o da criança inocente. Ao primeiro se ligam aquelas
interpretações que colocam a criança como um sujeito que aprende, com uma tendência
natural à curiosidade, à investigação, à experimentação, do que se espera uma progressão na
capacidade de raciocínio, ficando suposto que, quanto menos interferência, melhor. O
35
segundo está associado à ideia de infância ameaçada, sempre a ponto de desaparecer e que,
nesse sentido, precisa ser defendida das dificuldades do mundo adulto.
Segundo Ariès (2006), o pressuposto da inocência infantil leva a dois tipos de atitude e
comportamento em relação à criança: protegê-la dos problemas e da sexualidade do mundo
adulto e fortalecer o seu caráter pelo uso da razão, numa ação que parece ser contraditória:
para preservá-la é preciso ao mesmo tempo fazê-la amadurecer (JENKINS, 1998). Na
perspectiva apresentada por Ariès estão fortemente imbricadas as duas condições: a da
inocência e a da cognição. As crianças, portanto, são vistas como criaturas inocentes que
necessitam ser guiadas pelos adultos. Assim, torna-se responsabilidade destes tanto definir os
valores morais para os mais jovens quanto impor a eles os limites do que pode ser conhecido.
Embora esta ideia de proteção à infância apareça naturalmente, o modo como isso
acontece depende de condições materiais particulares, de preocupações ideológicas e de lutas
por poder social e político. A infância historicamente tem-se revelado como uma categoria
instável, que tem que ser controlada e disciplinada, portanto, seus significados e imagens só
podem existir pela ação de um poder que opera para regular o conhecimento.
Assim sendo, ver a criança como natural, pura, inocente, curiosa, “descobridora”, não
corresponde senão a “mitos” que criamos a respeito delas. “A criança inocente nada quer,
nada deseja, nada exige exceto, talvez, sua própria inocência” (JENKINS, 1998, p.1).
Tais ideias modernas, ao serem tomadas como universais e descontextualizadas
historicamente, encobrem diferenças entre os vários modos de ser do infantil e servem não só
para justificar uma maneira de se aplicar coercitivamente o conhecimento à criança, como
acabam por legitimar “a ampliação do papel social da classe educada para policiar a cultura
dos mais jovens” (JENKINS, 1998, p.15).
1.5 – Neil Postman e o desaparecimento da infância
Neil Postman é professor de comunicação da Universidade de Nova York. Com mais
de 20 livros publicados, a maior parte trata das conexões entre educação e mídia. O tema é
bastante discutido nas áreas de educação e comunicação desde 1963 quando Hellmut Becker
fez várias entrevistas radiofônicas com Theodor W. Adorno, nas quais alerta para o papel
36
negativo da televisão ao ideal de formação humano, resgatado pelos ideais iluministas. No
Brasil, as posições de Postman sobre as conexões entre educação e mídia podem ser
verificadas nos livros como O Desaparecimento da Infância (1982) e o O Fim da Educação
(1995).
Em O Desaparecimento da Infância, Postman parte do pressuposto de que o modo
como entendemos a infância nos últimos cinco séculos está ligado à invenção da prensa
tipográfica. Uma concepção de infância, preocupada com a formação dos menores, não existia
na Idade Média. Todos compartilhavam o mesmo mundo; não havia segredos entre os maiores
e os menores. Mas quando a prensa tipográfica foi criada, as relações entre os maiores e os
menores se modificaram. A concepção de infância foi a grande invenção da Renascença,
talvez a concepção mais humanista na época em que surgiu.
No mundo medieval, a criança como concebemos hoje era invisível. Antes do século
XVI não havia livros sobre pediatria, criação de filhos, nenhuma literatura infantil. Isso só
passou a existir depois da prensa tipográfica, menos de um século depois. Desta forma
concomitantemente à prensa tipográfica, surgem as concepções de fase infantil e fase adulta.
Com o aparecimento da prensa tipográfica, o homem letrado - novo adulto – ganha expressão;
e, assim sendo, coloca-se a fase da infância em um patamar inferior. Nascia então, uma ideia
de infância alijada ao universo adulto. Os jovens, para entrar no mundo da prensa tipográfica,
precisavam aprender a ler e escrever e para isso precisavam de educação.
(...) a questão é que o domínio sobre o alfabeto e depois o domínio sobre todas as habilidades e o conhecimento que foram organizados para as etapas seguintes constituíam não só um currículo, mas também uma definição do desenvolvimento infantil. “Ao criarem o conceito de uma hierarquia de conhecimento e habilidades, os adultos inventaram a estrutura do desenvolvimento infantil” (POSTMAN, 1999, p.60).
A explicação de Postman para o surgimento da infância articula, assim, o surgimento
da imprensa, o nascimento de uma cultura letrada e a necessidade de educar as crianças nesta
nova exigência de aquisição da leitura e da escrita. E para isso, era preciso entender o
mecanismo de alfabetização, e de como se estruturava o desenvolvimento da habilidade de ler
e escrever.
A segunda parte do livro de Postman trata do desaparecimento da infância. Para o
autor, a infância começa a desaparecer com o surgimento de outra tecnologia de
37
comunicação: o telégrafo. Seguindo a sua tese, o autor aponta que o telégrafo elétrico foi o
primeiro meio de comunicação que permitiu que a velocidade da mensagem ultrapassasse a
velocidade de deslocamento das pessoas. Facilitando a simultaneidade e a instantaneidade, a
velocidade elétrica reservou um espaço menor para a expressão da individualidade humana.
O telégrafo promoveu a distribuição de notícias, criando o caráter informativo das
relações - antes um bem pessoal, agora transformada em mercadoria de valor mundial, sempre
fragmentada. A partir das transformações ocorridas devido ao surgimento do telégrafo, as
crianças passaram a ter acesso a praticamente qualquer tipo de informação, sem exigências
quanto à quantidade e à qualidade, bem como quanto ao momento em que deveriam
acontecer. Assim, a família e a escola perderam o controle sobre as informações que poderiam
ou não estar chegando ao conhecimento das crianças.
Desde a invenção do telégrafo, toda uma série de máquinas de comunicação tem
surgido em consequência disso, culminando, nos últimos 50 anos, na invenção da televisão e
do computador. No decorrer de sua explanação, Postman ressalta que a televisão é uma das
evidências mais marcantes de que a linha divisória entre a infância e a maturidade tem tomado
uma outra configuração. Segundo o autor, esta linha vem sendo diluída por esse meio de
comunicação, devido a três motivos ligados à acessibilidade indiferenciada entre a população
e a televisão.
(...) primeiro, porque não requer treinamento para aprender sua forma; segundo porque não faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento; e terceiro porque não segrega seu público com a ajuda de outros meios de comunicação não impressos, a televisão recria as condições de comunicação que existiam nos séculos XIV e XV” (idem, p.94).
Assim sendo, ver televisão não requer elaborações, apenas percepções daquilo que é
visto pelas imagens. O espectador, independente da idade e nível cultural, fica detido às
imagens, que são de enorme variedade e rapidez, sem a necessidade de uma leitura crítica
daquilo que está sendo visto (são poucas as pessoas que acabam se detendo em alguma
reflexão). Percebe-se, então, que sem a exigência de um preparo anterior para se entender a
linguagem televisiva, que não prevê a formulação de pensamentos e comportamentos
complexos, a mídia acaba por homogeneizar seu público, não diferenciando os adultos das
crianças.
38
Postman também explicita um outro motivo pelo qual a infância torna-se ameaçada
perante este contexto: os segredos são inexistentes. Para ele, o segredo é um pré-requisito para
que exista a infância. Na Idade Média não havia meio de contar com a informação exclusiva
para os adultos; portanto não havia diferenciação no nível de conhecimento e,
consequentemente, não havia infância. Contudo, na "Era de Gutenberg", surge este meio,
enquanto na "Era da Televisão", ele se dissolve. Tanto a TV quanto o PC são apresentados às
crianças em tenra idade, para que elas desvendem o significado das imagens abertas por esses
dois aparelhos comunicativos, não se exige o esforço de conquista como na aprendizagem da
leitura para desvendar segredos que estão escondidos em um livro.
Isso exposto, infere-se que tanto a autoridade do adulto quanto a curiosidade da
criança perderam o espaço, pois é nos segredos que as "boas maneiras", os valores e o pudor
estão implícitos. O autor sugere que estamos à frente das mesmas condições presentes no
século XIV, quando nenhuma palavra era considerada imprópria para a percepção audível de
um jovem. “(...) Por definição a idade adulta significa mistérios desvendados e segredos
descobertos. Se desde o começo as crianças conhecerem os mistérios e os segredos, como as
distinguiremos de outro grupo?” (p.102).
Em seus livros, Postman se afirma como um teórico que se coloca contra as condições
responsáveis pelo gradativo fim da infância. Com isso, ele faz uma defesa de um mundo
culturalmente mais saudável e feliz. Seu discurso carrega muitas tendências de caráter
nostálgico, como a defesa de uma infância perdida em razão de imperativos da utilidade
econômica, do consumo e da moral tecnológica. Ainda que se possa dizer que Postman não é
um moralista, não se pode dizer, na mesma medida, que ele não seja um idealista, pois sua
defesa da infância só pode ser suficientemente defendida ao considerar que há uma concepção
da infância ideal, que é justamente aquela constituída na Idade Moderna.
1.6 – A infância idealizada da Modernidade e os questionamentos deste conceito na contemporaneidade
Pode-se afirmar que a infância – revestida desta aura de pureza, inocência e
ingenuidade - consiste numa invenção moderna, que estaria fadada a desaparecer. Alguns
pensadores (como Postman) localizam o surgimento e a crise deste conceito em dois marcos
39
históricos específicos: em 1850 e 1950, respectivamente. Em 1850, o trabalho infantil foi
abolido das fábricas inglesas, no auge da Revolução Industrial - movimento crucial para a
concretização dos interesses sociais burgueses. E o ano de 1950 simboliza a criação e difusão
da televisão. Na Pós-Modernidade, a televisão é capaz de simular um ambiente informacional
semelhante ao medieval, onde a cultura oral era predominante. Não havia a distinção (surgida
pela difusão da escrita) entre o mundo adulto e letrado e o infantil. E para assistir à TV, basta
ver e ouvir, adultos e crianças podem fazê-lo sem o desenvolvimento de maiores habilidades
sistematizadas, conforme acima comentado.
O processo de leitura exige um esforço de aprendizagem que costuma durar anos, e
está longe de ser instintivo. Para se aprender a ler, deve-se desenvolver um autocontrole
corporal que permita um exercício introspectivo de atenção e concentração. Além disso,
memorizar as letras, seus respectivos sons, e depois compreender a estrutura das sílabas, das
palavras, das frases também exige uma atitude de reclusão; um comportamento mais solitário.
Até atingir uma fase em que o jovem possa entender criticamente o que lê, há um processo
longo de aquisição de habilidades específicas. Portanto, a divisão das crianças por idade, nas
séries escolares, acaba por ser uma necessidade imposta pela concepção moderna de
educação.
Como foi levantado por Ariès e retomado por Postman, com o surgimento da infância
e a importância dada à educação sistemática, a repressão do comportamento natural da
criança, mais disposto à mobilidade e expansão, foi fundamental para a disciplinarização de
seus corpos e de suas mentes. Na modernidade, “professores e pais começaram a impor uma
disciplina bastante rigorosa às crianças” (POSTMAN,1999, p.60-61).
A pedagogia ocidental só fez aumentar a distância que separa a vida de criança da vida
de adulto, “não lhe permitido liquidar o passado e assimilá-lo ao conteúdo atual da
experiência; ao mesmo tempo em que fortalecia a ideia de que conhecer o infantil o libertava
deste modo de ser” (CORAZZA. 2004, p.25). Dessa maneira, criar uma concepção idealizada
e carregada de tons nostálgicos, também reforça o sentido de distanciamento da infância, que
se perde quando se atinge a maturidade.
Para Corazza, a constituição desse Outro, o outro-infantil, serviu para diminuir “uma
perigosa alteridade” e assim poder regulá-lo. Neste processo, cria-se um diferente de quem se
procurará estar sempre próximo e simultaneamente distante, em um movimento ambíguo de
atração e repulsão (p.23). Precisa-se conhecer este outro-infantil para nunca mais se ser como
40
ele. Foi assim que psicologia e pedagogia modernas conceberam e estabeleceram o
desenvolvimento da criança, como processual e cumulativo. Dessa forma, reforçou-se a
ideologia da carência na infância, considerada enquanto uma fase que precisa ser superada e
preenchida através de disciplina e conhecimentos sistemáticos.
A infantilidade e o processo de infantilização fundam a verdade de um conhecimento, a possibilidade de uma prática do infantil e um tipo de poder que se exerce sobre quem, produzido por essas mesmas forças, passa a ser visível, enunciável e, acima de tudo, educável (Idem, p.24).
Foucault reconhece que os modelos do conhecimento moderno descreverão “a infância
como vida original, semente, célula mater, passado anunciando o presente e sentenciando o
futuro” (Idem, p.23).
Em Vigiar e punir, Foucault descreveu os diversos processos de disciplinarização dos
corpos em diferentes instituições, como colégios, fábricas, oficinas, conventos e quartéis,
demonstrando que a principal característica de tais instituições é a disciplina corporal. A
disciplina é um modo de exercer o poder, uma tecnologia de poder que nasce e se desenvolve
na modernidade O objetivo da disciplina é a produção do sujeito sujeitado com a formação
dos corpos dóceis (FOUCAULT, 2002, p. 117-120).
Foi esse tipo de poder que Foucault chamou de “disciplina” ou “poder disciplinar”. É importante notar nem é um aparelho, nem uma instituição: ela funciona como uma rede que os atravessa, sem se limitar a suas fronteiras; é uma técnica, um dispositivo, um mecanismos, um instrumento de poder; são “... métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade...”; é o diagrama de um poder que não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula sues elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e a manutenção da sociedade industrial capitalista (MACHADO, 1982, p.194).
O poder disciplinar tem caráter controlador, isto é, ele apresenta possíveis ações em
um determinado espaço a partir de uma norma que distingue o permitido e o proibido, o
correto e o incorreto, o são e o insano. Para o controle da infância, haveria a necessidade de
uma prática que normatizasse a vida da criança na família e na escola. O cerceamento do
corpo infantil torna-se ponto fundamental para a formação de um sujeito dócil e útil para as
instituições modernas.
Entre a ideia de infância e os saberes e poderes produzidos ao seu redor há uma relação de mútua imbricação. Se, por um lado, a invenção desta infância é a condição para o surgimento desses saberes e poderes subjetivantes e objetivantes das crianças, o que seja uma criança irá se definindo na encruzilhada desses saberes disciplinares e poderes pastorais (KOHAN, 2003,
41
p. 94-95).
Com o fim dos sujeitos disciplinados na contemporaneidade, ou seja, com o fim da
infância e com a morte da adolescência, surge a preocupação com as práticas e os discursos
que constituíram estes sujeitos nos ambientes dos processos da escolarização disciplinadora
da modernidade que entraram em crise. O modelo disciplinador já não serve, porém não
existem alternativas que controlem a infância no contexto pós-moderno.
Entretanto, convém levantar o seguinte questionamento: estaríamos diante do fim da
infância ou de novas formas de ser criança? O que parece surgir no cenário contemporâneo é
que o modelo conhecido de infância, composto na modernidade e formatado na disciplina dos
corpos está se diluindo por causa das novas exigências da sociedade e da cultura pós-
moderna. Instituições que tentam preservar os valores humanistas e universais estão,
atualmente, em constante conflito com esta nova configuração do ser criança, mas sem saber
que outro modelo colocar no posto.
1.7- Outras infâncias: a experiência do infantil nos contos de Guimarães Rosa
O objeto de discussão neste capítulo é fazer uma breve análise da construção de
conceitos da infância no decorrer do tempo, contudo já apontando para uma perspectiva mais
relevante que perpassa toda a pesquisa e que é a experiência da infância, a infância como
figura do novo, como resistência ao que já está estabelecido. Objetiva-se em tal estudo
elaborar uma imagem conceitual da infância que permita pensá-la para além da cronologia,
partindo da ideia da experiência e do acontecimento; e paralelamente a isso, pretende-se
buscar imagens literárias da infância que a abordem como experiência, que lhe imprimam
valor por meio do acontecimento.
Trata-se de buscar imagens produzidas através da experiência, o infantil como um
lugar de passagem, de travessia e de percurso. Como diz Larrosa, “algo como uma superfície
de sensibilidade na qual aquilo que passa afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve
algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (2004, p. 160). Desta forma, importa
criar sendas para que se possa continuamente descobrir a infância, não somente como uma
etapa de vida, mas considerando-se um modo de ser infantil.
É neste sentido que se pensa a infância por meio da literatura, especialmente a escrita
42
de Guimarães Rosa. Parte-se do pressuposto de que a linguagem literária de Rosa, dada sua
característica polissêmica, apresenta-se de forma mais aberta, envolvente e inventiva, em
consonância com esse tipo de entendimento da infância. Afinal, não há mais a necessidade de
acrescentar subsídios às informações já produzidas a respeito da infância, mas localizá-la em
sua dimensão poética e, quem sabe, provocar a emersão de novos sentidos para a escrita
literária.
A infância se expressa, então, como algo de que não se sabe muito, que escapa às
verdades, que se reveste de novos sentidos a cada vez que é pronunciada. A escrita rosiana na
sua riqueza polissêmica, em suas múltiplas possibilidades interpretativas, faz com que a
infância seja, a uma só vez, multifacetada e única para quem a experiencia. Trata-se, portanto,
de uma vivência singular e íntima. Nesse sentido, é possível descobrir a infância na
linguagem rosiana, por meio da qual ela se apresenta como uma experiência a ser atravessada.
Para melhor explicitar esta experiência de atravessamento da literatura pelo viés da
infância, passa-se à análise de dois contos de Guimarães Rosa no livro Primeiras Estórias:
“As margens da alegria” e “Os cimos”.
1.7.1 - Às margens da vida, nas margens da alegria
O conto inicial de Primeiras Estórias fala de uma viagem inventada, de um Menino
que vai em direção a um desconhecido, uma cidade que está em construção. A referência “esta
é a estória” reforça esta característica de invenção, de sonho. A narrativa de “As margens da
alegria” tem uma imbricada relação com o conto último do livro, “Os cimos”. As personagens
são as mesmas, o protagonista é o Menino que em ambas estórias tem que realizar uma
viagem, para uma cidade em construção.
No primeiro conto, toda a atmosfera criada pela viagem do Menino é de êxtase, de
perspectivas felizes de um passeio que também será iniciado pelo leitor, através da narrativa.
O Menino embarca com os Tios no avião, que os levará para um destino desconhecido para a
criança. Apesar de viajar rumo ao desconhecido, o ambiente é de transbordamento: cria-se
uma expectativa de sonho e aventura para o Menino.
O próprio avião em que embarca o Menino é brinquedo a ser descoberto, as pessoas
que lá estão (aeromoças, piloto) ajudam a reforçar o clima de encantamento que envolve o
43
universo infantil do garoto. A esperança do garoto é do “não sabido”, daquilo que viria a ser o
melhor da viagem – a própria expectativa do desconhecido. É a experiência que atravessa a
vida da criança, aberta à novidade.
O lugar da infância do menino é um lugar não fixado, movediço. Rosa reforça essa
ideia ao deslocar para o mundo a mobilidade. O mundo visto pela criança, da janelinha do
avião, movimenta-se. E é esse o lugar de onde o menino vê o mundo: “Seu lugar era o da
janelinha para o móvel mundo” (ROSA, 1994, p. 389). De lá, do alto, o menino traça
percursos em seus pensamentos.
O Menino é, então, lançado para o espaço em branco, em que cada instante (como o da
respiração) precisa ser vivido com toda a intensidade. A mobilidade invade o ambiente inicial
do conto, muitas sensações para serem experimentadas de uma vez só. E não há espaço para a
falta, o provimento surge antes mesmo da necessidade se manifestar. “Ainda nem notara que,
de fato, teria vontade de comer, quando a Tia lhe já lhe oferecia sanduíches” (idem).
Por antecipação, o Menino já possuía tudo – as brincadeiras e os passeios – prometidos
pelo Tio. Mas também um nada, por não poder caber em sua mente tantas novidades. Ao final
da primeira parte do conto já se antecipa uma nuvem na luz que invade a vida do menino
naquele momento. E uma outra margem da narrativa já vai sendo delineada, ainda numa visão
ofuscada por tantos excessos. Aponta-se para uma futura nesga na expectativa feliz do
Menino.
Na segunda parte da estória, o Menino já se encontra na cidade que está sendo
formada como uma alegoria de um lugar/infância. É um espaço que está sendo desbravado
ante as perspectivas de expansão da cidade. O desconhecido é invadido pelas máquinas dos
homens, a natureza vai cedendo para o ímpeto humano de civilização.
O passeio de jipe quando “o menino repetia-se em íntimo o nome de cada coisa”
apresenta a relação de intimidade e afeto entre o menino e seus brinquedos: “A poeira,
alvisseira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde,
atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios.
As pitangas e seu pingar” (ROSA, 1994, p. 390).
Do interior de um local distante surge a cidade. E por dentro da infância do menino
surge uma experiência nova de vida. Ao demonstrar a viagem para esses interiores, Rosa usa
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recursos que colocam a estrutura linguística apoiando o enredo. Através das brincadeiras
sintáticas, é possível perceber contentamentos e decepções, encontros e desencontros,
margens indeléveis das experiências infantis.
Tinha fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O Tio, a Tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo. Ele abria leque, impante, explodido, se enfunava... Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever. Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E – onde? Só umas penas, restos no chão- “Ué, se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?” Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podia? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru-aquele. O peru-seu desaparece o espaço. Só no grão nulo de um minuto, O Menino recebia em si um miligrama de morte. Já o buscavam: - “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago” (idem).
Rosa brinca com a linha tênue e arbitrária que distingue as coisas. Com uma
linguagem desconcertante, reescreve a própria língua e empresta voz ao que não fala – não
apenas a criança, mas qualquer ser sem voz, com a natureza e as coisas todas da vida que não
são ouvidas por não serem valorizadas. É assim que conta, detalhadamente, as peripécias da
viagem: “O menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais
vívido – as novas tantas coisas – o que para os seus olhos se pronunciava” (idem, p. 390).
São muitas as paisagens que o Menino vê, inúmeras as novidades. Há tantas
experiências a serem descortinadas naquele ambiente que também é desbravado por sua
mente infantil. Mas existe um componente nesta mobilidade de sensações que se mantém
imóvel, guardado na lembrança emotiva da criança: é o peru que foi descoberto no terreiro da
casa do Tio. É o único elemento que carrega uma perenidade – “o peru para sempre” (idem).
A descoberta do peru é a única sensação que o Menino quer fazer persistir. “Pensava no peru,
quando voltavam, só um pouco, para não gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do
mais importante, que estava guardado para ele no terreirinho das árvores bravas” (idem, p. 390-
391).
Neste ponto, há uma indicação importante a ser ressaltada: o conto “As Margens da
Alegria” desenvolve-se em um ritmo de expansão. Do início para a metade da estória observa-
se uma profusão de vivências que estão sendo experimentadas pelo Menino. São tão variadas
as sensações, que o garoto consegue absorver todas elas. Os acontecimentos se sucedem, sem
qualquer contenção. O ritmo se rege pelo excesso, muitas imagens na mente infantil, que
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povoam sua imaginação em expansão.
Porém, figura nesta profusão de descobertas o peru que o Menino quer reter para si. É
a imagem da eternidade que quer se resguardada pelo Menino. Mas ao se revelar a perda do
objeto de desejo maior da criança, toda a atmosfera do conto muda completamente: a
expansão desmedida da alegria sem limites é margeada pelo fato que nada é para sempre.
“Tudo perdia a eternidade” (idem, p. 391).
O tempo e espaço se confundem, o que não vigora, também se perde na
territorialidade: “O peru – seu desaparecer no espaço” (idem). E nesta descoberta fatal, o
instante que pode ser de infinda felicidade também pode revelar a face da terrível tristeza. “Só
no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama da morte” (idem).
A partir deste momento (que se inicia ao final da terceira parte e segue até quase o
final da narrativa), o espaço que anteriormente era tão agradável ao Menino se transforma em
hostil. A paisagem que ele agora vê do passeio de Jeep muda totalmente. Ele olha pela lente
da tristeza e assim tudo se torna de tonalidade acinzentada.
Entre a felicidade e a desilusão, o Menino pressente que a vida vai pender sempre mais
para tristeza. Delimitada sempre será a alegria, margeada pelos momentos de perda e de dor.
Conforme o fim do conto vai se anunciando, mais se agudiza a tristeza do Menino. No
sentido primordial da existência, o pensamento do Menino ainda não consegue entender bem
as emoções experimentadas.
O anoitecer aprofunda mais a tristeza. Mas existe algo no coração do Menino que o faz
crescer em alma. O mundo, não se pode conter, como também a permanência do peru. Todas
as coisas se esvaem, se perdem na dimensão do tempo. Chega-se também ao final do conto
com a sensação de fugacidade, de efemeridade da vida.
Esta sensação fica fortemente marcada na figura do vaga-lume. O instante é que
importa para ser vivido, não há como guardar todas as experiências e se viver somente pela
vivência delas. E também dificilmente se poderá rastrear o futuro, para descobrir indicações
do que acontecerá. Passado e futuro perdem o sentido, o tempo para na existência fugaz de
um Menino que olha o piscar verde de um vaga-lume.
É somente no tempo da infância que se pode aproveitar em totalidade a preciosidade
do instante, deliciar-se com o efêmero. A eternidade, então, se circunscreve no breve instante
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do agora.
E a narrativa se abre para dar a possibilidade de tocar novamente na margem da
alegria. “Era, outra vez em quando, a Alegria” (idem, p. 392). O conto inicial das Primeiras
Estórias também descortina vivências possíveis de serem aproveitadas a cada linha da
narrativa. É a experiência da infância em sua expressão maior. A alegoria do vaga-lume sobre
as trevas pode também representar o livro que ainda é uma incógnita, mas que pode se deixar
conduzir pela mão das indagações infantis a respeito da realidade, sem muitas amarras ou
ideias pré-estabelecidas. O conto funciona, então, como preparação para este leitor que irá
caminhar pelas demais narrativas do livro. O espírito deve ser como o de uma criança em
viagem para um lugar desconhecido, repleta por uma curiosidade acerbada.
A narrativa termina, mas não se completa. Existem muitos lances a serem jogados,
possibilidades inúmeras de se desvelar o sentido da estória, o sentido da vida. A alegria está
próxima, na margem dos acontecimentos, mas a todo momento ela pode se esvair. A sensação
é que somente se pode tocar nas margens da alegria, enquanto se viaja no rio da existência.
Ou como nas palavras de Heráclito: “O tempo da vida é uma criança, criando, jogando o jogo
de pedras; vigência da criança” (HERÁCLITO, 2000, p. 83).
No jogo da narrativa de “As Margens da Alegria”, Rosa brinca com as circunstâncias
da história que é delineada temporalmente, transpondo para o real um jogo que também pode
ser brincado na possibilidade do instante. É como o momento da brincadeira infantil, efêmero
e intenso, vivido no prazer da constante descoberta.
Guimarães Rosa cria uma expressão verbal profunda na qual a palavra assume um
feixe de significações. Buscando traduzir a perspectiva infantil, vê despontar um mundo novo
e desconhecido, faz associações raras, emprega metáforas lúdicas, cria palavras e expressões
surpreendentes. Inaugura processos de invenção fundamentados nos processos da língua por
meio de recursos linguísticos parassintáticos e aglutinadores, entre outros.
Rosa modifica o sentido usual das palavras e deixa de atrelar, ao repentino, os modos
abruptos que geralmente lhe são atribuídos. Uma mansidão doce vem repentinamente. O fluxo
do desejo não precisa se opor à vida. Revela-se, então, uma linha de fuga criadora que traz
consigo toda a poesia, toda a leveza da infância da palavra. No fluxo da vida, o menino
experimentava infantil e intensamente o instante: “E as coisas vinham docemente de repente,
seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da
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consciência das necessidades” (idem, p. 389).
1.7.2- A absoluta leveza nos Cimos
“Outra era a vez” (ROSA, 1994, p. 509). Assim se inicia o conto “Os Cimos”, o
derradeiro de Primeiras Estórias. Desde seu começo, anuncia uma relação com a estória
primeira na sucessão dos contos do livro. É uma vez que se anuncia, mas que não se mostra
circunstancialmente igual, apesar da aparente similitude com o conto “As Margens da
Alegria”.
O conto é um prelúdio da ausência e do temor. O Menino segue com o Tio para a
mesma cidade em construção, mas desta vez por motivos bastante adversos. A sombra da
doença da Mãe perpassa as preocupações infantis. A ansiedade que move a narrativa é
diferenciada da que aparece na “Margens”: enquanto esta é gerada pela excitação frente ao
novo, pela “espantosa felicidade”, em “Os Cimos” são o medo e “derradeira tristeza” que
geram a ansiedade.
Um índice importante neste conto, que guiará as circunstâncias da narrativa, é o
bonequinho-macaquinho que acompanha a viagem do Menino. Um brinquedo que representa
a presença da vida deixada para trás, como referência maior de aconchego, enquanto o
Menino estiver solitário nesta viagem para o desconhecido. Neste sentido, o que se
desconhece é a conclusão do mal que o aflige, que pode ser resolvido satisfatoriamente ou
não.
Assim como o brinquedo que acompanha o Menino, existem vários elementos que
reforçam a ideia de contenção que estrutura esta estória. Tudo é guardado, a começar pela
lembrança da Mãe até o pequeno macaco que ele leva no bolso, materialização desta
recordação doce de quem se ama muito. “E o menino estava muito dentro dele mesmo, em
algum cantinho de si” (idem). Necessário se faz conter a mãe no tempo e no espaço, para que
ela não se vá. Este movimento se assemelha muito com a atitude do Menino frente ao peru da
primeira estória.
O tempo, que estava em movimento em “As Margens da Alegria”, se configura
parado, imóvel, lento em “Os Cimos”. Tudo se demorava na tristeza do garoto. E a contenção
mais uma vez ocorre, desta vez com relação ao tempo: precisa ser detido para que nada de
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ruim possa vir a acontecer. A mobilidade de ambiente no avião do conto primeiro paralisa as
ações de afastamento do lugar referência, onde está o objeto do desejo do Menino. “O avião
não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava o voo – que parecia estar parado... O
menino sofria sofreado. O avião então estivesse parado voando – e voltando para trás, mais, e
ele junto com a Mãe, do modo que nem soubera, antes, que o assim era possível” (idem).
A narrativa pesa, na circunstância da dor da criança, que quer que tudo fique
resguardado, que as situações não fujam de seu domínio. Este clima se diferencia totalmente
do clima inicial de “As Margens da Alegria”. Diferentemente daquele, neste conto as
experiências se expandem, os fatos se sucedem num ritmo colorido de felicidade. O Menino
não quer guardar nada para si, as vivências são experimentadas em profusão.
No caso do conto “Os cimos”, que fecha as Primeiras Estórias, há uma força que o
Menino imprime às situações, para agarrar-se a elas. Nem o brinquedo é permitido, já que
nessa distração as coisas ruins poderiam já estar se armando. O universo infantil fica contido e
todos os seus esforços se resumem na retenção do tempo e de seus sentimentos. “O calado, o
escuro, a casa, a noite- tudo caminhava devagar, para o outro dia. Ainda que a gente quisesse,
nada podia parar, nem voltar para trás, para que a gente já sabia, e de que gostava” (idem, p.
510).
A narrativa se constrói em direção a uma terminalidade, uma finalização. Como na
vida, a estória também caminha inexoravelmente para a morte. Por isso a lentidão do tempo
narrativo, que não quer passar, representado no desejo do Menino de fazer que os fatos
fiquem contidos, numa suspensão temporal. Sabe-se, porém, que o final é inevitável,
conforme as páginas vão passando, o livro segue a seu termo derradeiro.
O conflito se desdobra no micro-espaço da experiência do menino que vivencia o
contato com a possível perda. É a travessia, exigida pela experiência, que gera a coexistência
da alegria e da tristeza daqueles instantes. A alegria que sentira o menino por ter atravessado
uma experiência de novidade, reveste-se, agora, de uma intensa tristeza por saber que a
experiência não pode ser repetida da mesma maneira.
O que resta ao Menino nesta dura experiência de falta é o amadurecimento, já
pressentido no primeiro conto, na circunstância da perda do peru. Só que desta vez, o motivo
toma dimensões muito maiores: a dor pela possível perda da Mãe transforma a visão de
mundo do Menino, que observa e reproduz as experiências de gente grande, ganhando uma
“claridade de juízo” (idem). Neste ponto, começa a se delinear uma leveza que foi
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anteriormente só sutilmente apontada, como na figura da pluma do chapéu do bonequinho-
macaquinho.
O raiar de um novo dia, prenuncia uma positividade estranha até esta parte da estória.
O Menino vai descobrir o gosto daquilo que ainda não tinha experimentado, uma expectativa
pelo não esperado. “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de
encontro nem vias de acesso” (HERÁCLITO, 2000, p. 57)
O fragmento de Heráclito demonstra uma lógica que parece ser contraditória, mas que
resguarda um sentido próprio da esperança no espírito infantil, um sentido novo e inaugural.
O inesperado para o Menino de “Os Cimos” é algo que não pode ser esperado, pois o que está
inscrito na superfície do conto é o desenrolar para um final infeliz para o garoto. Mas esta
configuração se move na superficialidade dos fatos narrados, pois existem índices que
assomam da história mais profunda da narrativa que remetem a um laivo de esperança (como
a gravata verde do Tio, no início do conto). Desta maneira, abre-se espaço para uma visão
diferenciada do conto, que vai se afirmando cada vez mais, a partir do episódio de encontro
com o tucano, ao alvorecer.
O episódio que se repetirá para o Menino, até a sua partida, consolará sua rotina
entristecida. Toda manhã ele irá rever o tucano, ave que se alimenta de frutinhas nos cimos
das árvores denominadas “tucaneiras”. É um momento mágico, que devolve as cores ao
conto que até este momento pintava-se de tons escurecidos. E assim o Menino conseguia
esquecer, por instantes, o sentimento que o aprisionava.
Mas o tucano, sem falta, tinha sua soência de sobrevir, todos ali o conheciam, no pintar da aurora. Fazia mais de um mês que isso principiara. Primeiro, aparecera por lá uma bandada de uns trinta deles vozeantes, mas sendo de-dia, entre dez e onze horas. Só aquele ficara, porém para cada amanhecer. Com os olhos tardos tontos de sono, o bonequinho macaquinho em bolso, o Menino apressuradamente se levantava e descia ao alpendre, animoso de amar (ROSA, 512, 1994).
Este instante retoma o sentido de fugacidade gerada pela aparição do vaga-lume, no
primeiro conto do livro. Um átimo de tempo que necessita ser apreciado. “E, de olhos
arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante, só nos silêncios
de um-dois-três” (ROSA, 1994, p. 513).
Nos cimos das tucaneiras, o Menino pode se libertar das limitações que vêm se
impondo, desde a partida que o separou da Mãe. Há um movimento de descentramento, em
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que ele se volta para o outro, liberando a carga de tristeza que carrega até este momento.
Encontra uma arma contra a dor, contra o peso da vida que marcha para um triste desenlace.
A libertação ocorre pela possibilidade do lúdico, da vivência de uma situação que se
repete todos os dias e que não revela qualquer utilidade. Os instantes contemplando o voo
leve do tucano fazem que o Menino possa voltar ao prazer de se sentir existindo. O desapego
às circunstâncias negativas é possível, o momento ante o espetáculo do amanhecer,
prenunciando a aurora de um tempo, se move contra a fixidez, contra os fatos já
estabelecidos.
Não se pode regular o tempo, impedir que situações adversas possam ocorrer. Para
todos, como para o fio da narrativa, há um destino de que não se pode fugir. A morte
inevitável pode, porém, ser encarada sob outro prisma, como o da renovação. No ciclo da vida
é necessário que algo feneça para que outros possam nascer. Na estória de Guimarães Rosa, o
final da narrativa anuncia muitas outras estórias que podem ser escritas na memória do leitor.
Da penúltima para a última parte do conto, a sensação de liberdade fica cada vez mais
forte. Mesmo sem saber o que acontecerá à mãe, o Menino pode saborear os instantes de
leveza no espetáculo do amanhecer. O pássaro representa o dia, a esperança da alegria, que
começa a ser tocada, novamente.
A contenção é abandonada gradativamente, até que é completamente descartada,
quando o Menino perde o seu bonequinho-macaquinho. O coração dele pode transbordar
novamente, voltando o sentimento de expansão do conto “As Margens da Alegria”. O Menino
pode novamente viver diferenciadas sensações simultâneas, ao recordar as boas lembranças,
as únicas que ficam daquela viagem que iniciara tão tristonha.
Só na dimensão infantil, então, na dimensão” marginal” da meninice (e da velhice, e da loucura...) em que vige apenas uma lógica (do) eventual, é possível encontrar o sentido momentâneo da existência, entender a sua precariedade em que a morte está de casa: é por isso que a primeira e a última estória nos colocam diante de uma criança aprendendo a viver através da morte, identificando-se e crescendo através do sofrimento e da perda” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 65)
Desta forma termina a narrativa, e também o livro das Primeiras Estórias. Mas a vida
continua. “A vida mesmo, nunca parava” (idem). Descortina-se a possibilidade de outro “era
uma vez”, abrindo-se para o espaço do não contido, peculiar característica das obras de
Guimarães Rosa. Pistas novas são dadas para revelar o caminho que pode ser traçado pelo
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leitor, assim como no caminho da vida. É por esta razão que o espírito infantil de curiosidade
e de disponibilidade para o novo é referenciado nestes dois contos de Primeiras Estórias.
Pode-se também imprimir na narrativa ficcional este sentido de novidade, de renovação,
muito próprio do infantil.
Assim, a passagem do tempo que não quer se esvair em “Os Cimos” não é uma
retenção, mas uma possibilidade de renovação, de retorno ao início. Os significados dançam
nas palavras das duas estórias, revelando a mobilidade de sentidos de um conto ao outro.
Perde-se a noção dos limites: o livro que começa com as “margens”, termina com os “cimos”,
um voo para o infinito. Então, o conto que se constrói na ideia de expansão é paradoxalmente
intitulado por margens; já a estória que funciona na contenção pode se abrir para as alturas
dos cimos.
Dessa forma, Guimarães Rosa incita no leitor o desejo da criação, do voo existencial e
literário. Sua escrita não se limita à significação do que está impresso nas linhas narrativas. É
uma atitude de uma percepção maior, quase uma recriação. No entrecruzar das linhas escritas,
encontram-se as possibilidades de novos caminhos. Ao ler as estórias de Rosa, faz-se a
travessia da língua e do microcosmo da linguagem, língua e cosmo que se intercruzam,
sobretudo, nos detalhes – desde a aposição de um prefixo ou a colocação indevida de um
acento até a sonoridade de uma nova palavra. A escrita rosiana instala nos detalhes
aparentemente sem importância efeitos surpreendentes. Rosa inventa uma nova língua mais
expressiva, em que as palavras readquiram significados encobertos pelo uso.
O lugar da infância do menino é um espaço não cristalizado, é móvel. O menino
parece aqui estar num espaço do conhecimento que não se coloca enquadrado no âmbito das
representações, que se afasta da dimensão adulta de um saber construído para explicar,
posteriormente, algo já dito. É o espaço da experiência infantil, da criança que sente os
instantes com toda a intensidade possível. Nada que possa ser informado atrairá mais o
menino do aquilo que ele pode experimentar. Guimarães Rosa, ao inventar o menino, inventa
também, sob pressão do não representável, expressões novas, tentativas linguísticas de dizer
um saber ainda não convencionalizado.
É a infância que é representada por esse menino. Uma infância sem nome, sem
individualidade, mas com voz e presença. Uma infância ligada às sensações simples do
cotidiano. É que Rosa também representa o tempo de maneira infantil, em sua efemeridade,
traduzindo-se no voo do vaga-lume. Um inseto que, na sua brincadeira de luzir, alterna luz e
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sombra. Entre a alternância de claro e escuro demonstra a alegria e a tristeza de uma infância
que atravessa um menino e também o seu leitor.
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CAPÍTULO II – ITINERÁRIOS NA LITERATURA: DAS LINGUA GENS SOBRE UMA INFÂNCIA À INFÂNCIA DA LINGUAGEM
A forma de perceber e pensar a infância influi nas atitudes que os adultos adotam em
sua relação com as crianças. Assim, o que se escreve sobre a criança, a partir das concepções
criadas da infância, também acaba incidindo sobre a produção literária para as crianças. Nessa
perspectiva, a literatura sobre a infância, por vezes destinada às crianças, valoriza um
conteúdo permeado pela exemplaridade e referência da visão do adulto. A criança delineada
nas narrativas está prisioneira de um projeto futuro, negada em um presente narrativo e suas
ações orientadas pela censura e pelos fatos passados. Na história da literatura sobre/para
crianças criou-se um estereótipo que cristaliza este sentido programático voltado para a
infância.
A relação do adulto com sua própria infância ou com a de outrem, mas que de alguma
forma está distanciada de seu observador, carrega uma configuração ambígua, e isso se
expressa quando se tenta materializar uma imagem cristalizada da criança/infância na escrita
literária.
Este encontra nela uma antiga forma do seu eu, da qual frequentemente se sente saudoso. A criança representa um estado original onde todas as possibilidades estavam abertas. Retornar a sua infância é uma tentativa de escapar ao desenrolar do tempo, ao aprisionamento dos papéis sociais, é sonhar com um re-nascimento. A criança é também o único ser que podemos criar, que gostaríamos de logo modelar para nos prolongar e compensar aquilo que nos faltou. Mas irresistivelmente, ela assume sua autonomia e nos repele em direção a gerações desaparecidas (LAUWE, 1991, p. 2).
A memória do tempo da infância funciona, então, como uma tentativa de conciliar o
passado com o futuro, produção mediada pelo presente de quem escreve/lê. Nesta forma de
representar a infância, tenta se ocultar a tensão dos dois extremos temporais. Porém, esta
aproximação de fato jamais poderá acontecer, já que esta representação da criança assume
uma forma idealizada, às vezes pincelada por tons dóceis e ingênuos, por outras carregada de
cores negativas, sobretudo quando se trata da criança inquieta e insubmissa.
Ao estabelecer a relação entre infância e literatura, reconhece-se de que modo se
costuma realizar a inserção da criança no tecido social. Nesse sentido, a literatura assume o
papel de veículo criador e socializador da linguagem e dos valores que identificam e
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distinguem a pessoa. Uma das formas de entendimento do caráter humano é a afirmação de
uma origem, de uma infância. Assim, quando a ideia de infância surge no cenário ocidental,
juntamente com os conceitos modernos de família e de escola, a criança ganha um papel
importante na representação literária. Falar sobre e para a infância é reafirmar sua existência,
assim como criar mecanismos para sua disciplinarização.
O primeiro passo para que essa compreensão se estabeleça é traçar alguns elementos
históricos da trajetória da literatura para a infância – onde se delineiam os condicionantes
sociais que se desdobram na emancipação da modalidade de um discurso que, ao incorporar a
criança, cria também a percepção do que é a infância.
2.1 – Visões da infância na literatura: uma breve história
Para desenvolver o tema infância na literatura e seus fundamentos históricos, é
importante considerar o conceito de criança por meio da produção literária para esse leitor.
Assim, a relação entre história e literatura torna-se relevante à medida que, enquanto a
reflexão histórica vai analisando a convivência social da criança em diferentes épocas, a
produção literária se afirma como um dos discursos que assume a preocupação com a infância
e a partir daí constrói um conceito ou imagem da criança. A literatura constrói diferentes
representações da criança que circulam em várias sociedades.
Como já foi visto no primeiro capítulo, a infância surge como categoria, a partir do
século XVIII. Até então, não se encontra um corpus de conhecimentos, nem tampouco uma
área específica de conhecimento que seja capaz de conceituar esse período de
desenvolvimento humano. Não havendo conhecimento especializado, nem procedimentos
específicos visando a educação, afeto e proteção das crianças, estas participavam da vida da
sociedade sem que houvesse cuidados especiais às suas necessidades.
Neste mesmo percurso, a literatura pouco se interessou em tematizar a infância, até o
final do século XVIII.
A infância aparece afastada da existência humana ou, quando ela é descrita, o é negativamente. Alguns textos excepcionais dão imagens positivas, mas somente como objeto de divertimento, de jogo. Os escritores experimentam
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então o prazer manifestado pela criança que se diverte (LAUWE, 1991, p. 7).
Na pesquisa de Lauwe, há uma investigação das representações da sociedade francesa
sobre a criança, nos séculos XIX e XX, a partir da imagem da infância nas produções
literárias e cinematográficas. No primeiro capítulo de seu livro Um outro mundo: a infância,
Lauwe demonstra o percurso das concepções sobre a infância em alguns importantes
pensadores do mundo ocidental, desde a Antiguidade. Para Aristóteles, a infância é “uma
desgraça ao longo da existência”. O filósofo afirma que a infância remete às emoções
irracionais, ao âmbito do desejo. No século V, Agostinho, ao discorrer sobre o “peso do
pecado original no início da vida”, enfatiza o caráter de imperfeição da infância. Em
Descartes, a “infância é um erro” (p.8).
Esta concepção muda bastante, como já visto, com o advento da burguesia e a
propagação dos ideais iluministas, principalmente em Rousseau. Por volta de 1850, a
personagem infantil aparece de maneira decisiva na literatura. “Os homens descobrem que
não existe apenas uma maneira de ser humano, o adulto perde seu prestígio de modelo único”
(p.9). Nesta época, os contos populares medievais ganharam versões direcionadas ao público
infantil, sendo expoentes nessa época os irmãos Grimm com suas histórias de contos de fadas.
Paralelamente, muitos autores escrevem sobre sua infância, reconstruindo uma imagem que
desejavam, ou “queixavam-se daquilo que sua infância não foi ou o que ela deveria ter sido,
em referência a um momento ideal implícito ou explícito” (LAUWE, 1991, p.10).
As primeiras obras destinadas ao público infantil foram publicadas no início do século
XVIII; porém, antes disto, durante o classicismo francês, no século XVII, foram escritas
algumas obras que viriam a ser incorporadas também como literatura infantil, das quais se
pode citar: Fábulas, de La Fontaine (1668-1694), As aventuras de Telêmaco, de Fénelon
(lançadas, postumamente, em 1717) e Contos da Mamãe Gansa, de Charles Perrault (1697)
(LAJOLO & ZILBERMAN, 1999).
Deste modo, pode-se afirmar que o surgimento da literatura infantil está relacionado à
constituição de uma nova mentalidade a respeito das crianças, que surge no conceito de
infância que se consolidou a partir do século XVII.
Charles Perrault, considerado uma pessoa importante nos meios intelectuais franceses,
não quis a assinar a primeira edição de Contos da Mamãe Gansa, dando a autoria a seu filho
mais moço. Todavia, o livro é dedicado ao delfim da França – país que, por ter um rei ainda
56
criança, é governado por um príncipe regente. Essas situações explicitam como a literatura
destinada às crianças tinha uma caráter ambivalente desde o início, pois o gênero denominado
“infantil” sempre encontrou dificuldades de legitimação, apesar de muito veiculado na época.
Perrault não é somente o responsável pela propagação da literatura infantil, também reuniu as
obras de La Fontaine e Fénelon. Seu livro, a partir da publicação de uma produção até então
de natureza popular e circulação oral, populariza os contos de fadas como uma literatura
identificada com as leituras infantis (LAJOLO & ZILBERMAN, 1999).
O surgimento da indústria de literatura infantil fez parte do processo que Ariès
denominou a invenção da infância, ou seja, a definição da infância como uma etapa distinta da
vida, com determinadas especificidades. Seguindo a linha do cuidado e da moralização
decorrentes do surgimento da ideia de infância, no início do século XIX os interesses do leitor
infantil eram reconhecidos somente com o objetivo de imposição de regras e hábitos, gerando
uma literatura infantil marcadamente pedagógica. A transposição dos contos de fadas da
tradição oral para a literatura infantil demonstra como os contos de Perrault foram
reformulados para destacar a moral vigente, pois queriam atender às exigências da sociedade
do século XVII (LYONS, 2002, p.167). Esse processo de transformação dos textos seguiu
sendo adotado pelas casas editoras, sempre com uma preocupação em retirar histórias que
mostrassem uma conduta inadequada, violência ou sexualidade explícita.
Segundo Lyons, a classe média emergente do século XIX identificavam na leitura uma
possibilidade de ascensão social. A leitura passou a ser “ponto central no ethos do progresso
pessoal” (2002, p. 170). Assim, a educação através da literatura assumiu um papel de destaque
nas práticas de formação do indivíduo, ganhando importância na educação das crianças. Tais
representações estavam relacionadas a uma visão utilitarista da leitura que se fortalecia na
época.
A literatura infantil e a escola estão ligadas desde o começo, já que a aprendizagem
depende da capacidade de leitura das crianças, colocando-se em um patamar submisso às
práticas educativas (LAJOLO & ZILBERMAN, 1999). Assim sendo, a literatura infantil é
marcada, em sua história, por determinadas convenções e práticas que se remetem às
representações que os adultos, de um determinado contexto sócio-histórico, entendem como
adequadas para as crianças.
Em suas pesquisas no campo da infância, Ana Maria Clark Peres não deixa de
salientar a inadequação e a imposição de “valores” a que se veem submetidas as crianças, sem
57
que sejam oferecidas prerrogativas às suas necessidades, impulsos ou desejos: “Com base nas
pesquisas da área, o autor e o crítico-educador encontram, frequentemente, bases sólidas para
a transmissão de normas. Instituem-se saberes, criam-se dogmas: muitas certezas e
praticamente nenhuma dúvida quando se trata de afirmar o que é melhor para a infância”
(PERES, 1999, p. 170-171).
Os irmãos Grimm se empenharam em dar uma caráter mais dócil e menos cruel aos
contos populares recolhidos por Perrault. Dessa forma, suavizaram o conflito entre pais e
filhos: na versão de João e Maria, não é o casal de pais que os expulsa, mas há a introdução de
um pai compreensivo e, na 4ª edição, a figura da madrasta substitui a mãe. Também suprimem
as histórias que insinuam que o crime compensa - como no caso do Gato de Botas – e
utilizam vários componentes que se repetem, como a presença das lindas princesas, dos
caçadores simpáticos, das fadas, entre outros, assim como intensificação dos castigos para os
personagens maus.
Entende-se, a partir desses exemplos, que, desde os seus primórdios, a literatura
voltada para as crianças surge como uma forma literária menor. Tal concepção está
intrinsecamente relacionada à ideia do infantil como menor, como aquele que necessita de um
desenvolvimento para ser completo. O literário, assim, é somente um caminho para atingir
uma finalidade educativa extrínseca ao texto propriamente dito, reafirmando um conceito, já
do século XVIII, de A.C. Baumgartner de que ‘a literatura infantil é primeiramente um
problema pedagógico, e não literário’” (p. 7). Desta maneira, em sua maior parte, o texto
literário infantil visa, sobretudo, que a criança possa se desenvolver na leitura, tutelada pela
ação do adulto. A infância trata-se de uma instância menor, anterior à desejada e definidora
adultez. O crescimento, este sim, apresenta-se repleto de possibilidades e expectativas de
êxito rumo ao posterior plano da maioridade buscada.
O adjetivo infantil, dessa maneira, origina uma diminuição do valor artístico da obra,
como se, por sua destinação, essa se constituísse uma produção cultural inferior. Chartier, ao
analisar os textos ‘populares’, demonstra algumas das estratégias para a transformação dos
textos: encurtamento de sentenças e parágrafos, simplificações da linguagem, eliminação de
capítulos, fragmentação de capítulos, censura ao que era considerado inadequado, acréscimo
de notas, resumos ou títulos, entre outras (2001, p. 210). Assim, recriava-se uma obra para um
leitor que, segundo a concepção da época, precisava de uma facilitação do que estava escrito
na narrativa. Em outro sentido, para este leitor, não era valorizado o cuidado na elaboração da
58
obra, sendo possível o aparecimento de erros de impressão, clichês e trocas de palavras. O
leitor dos livros populares lia de um jeito descontínuo, fragmentado, que, aparentemente, se
acomodava às incoerências e lacunas do texto. Outra estratégia utilizada era o uso de
ilustrações, as quais, muitas vezes, não tinham relação nenhuma com o texto ou com as
intenções do autor, assim como a utilização de repetições de temas. Tudo isto era utilizado
para produzir uma compreensão do que se lia, mesmo que esta compreensão estivesse longe
do pretendido pelo autor ou editor do livro.
Este aspecto relacionado a uma menoridade da literatura infantil é um ponto
fundamental pois esta noção implica uma desqualificação da produção literária destinada às
crianças.
2.1.1 - A infância na literatura brasileira – o papel da memória na reconstituição da infância
Nos últimos cem anos, a Literatura Brasileira tem acumulado um grande acervo de
literatura infantil, muitas vezes de cunho memorialista. Há desde obras de escrita
autobiográfica até narrativas que envolvem crítica ou que se utilizam da ironia para realizar
esta crítica (como as obras de Monteiro Lobato que tratam de memórias).
No primeiro caso, as escritas sobre a infância têm dado uma contribuição no sentido
de se conhecer a história das mentalidades no Brasil, como também para se analisarem as
transformações que ocorreram na escrita sobre a infância no decorrer dos tempos. Já no
segundo caso, o que se tenta é uma reformulação da literatura escrita para as crianças,
tentando subverter o discurso mais tradicional e de caráter pedagógico. Mas isso nem sempre
ocorre.
De início, as histórias que envolviam a infância, abordadas a partir da visão
memorialística de um adulto, insistiam na veracidade das memórias, valendo-se do texto
como um depositário de lembranças referenciais e objetivas. A tradução de Cuore do autor
italiano De Amicis foi bastante divulgada no fim do século XIX e constituiu o primeiro
exemplo de literatura infantil memorialística, de caráter instrutivo. Narrada em primeira
pessoa, sob a forma de diário, tal narrativa apresenta uma sucessão de episódios que
transcorrem em ambiente doméstico e escolar. Neste relato que se propõe como de uma
59
verdade passada na vida de um menino, verifica-se a pretensão de ensinar o respeito e amor
aos mais velhos e à pátria, sendo a questão da nacionalidade bastante valorizada (LAJOLO,
ZILBERMAN, 1988, p. 33).
Podemos constatar, a partir desta época, que os textos que falam sobre as
reminiscências de uma infância também apontam para pedagogização da leitura, assim como
para a valorização do cenário onde os protagonistas passaram sua infância, relevando-lhes a
origem e exaltando-lhes a identidade nacional e/ou regional.
A presença de uma personagem infantil é um dos procedimentos mais comuns da
literatura infantil. A imagem da criança em tais textos é formatada conforme a lição que se
quer passar na narrativa. E mais o contundente é essa adequação da personalidade da
personagem quando o texto é de caráter autobiográfico com a utilização de um
personagem/narrador:
A presença de um protagonista criança é um dos procedimentos mais comuns da literatura infantil. Via de regra, a imagem da criança presente em textos dessa época é estereotipada, quer como virtuosa e de comportamento exemplar, quer como negligente e cruel. Além de estereotipada, essa imagem é anacrônica em relação ao que a psicologia da época afirmava a respeito da criança (LAJOLO, ZILBERMAN, 1988, p. 34).
Em textos cuja produção não estivesse necessariamente voltada para a recepção
infantil, podemos também detectar uma escrita sobre a infância preocupada com a orientação
por interesses que controlam a escrita da memória. Como exemplo observamos o livro
Memórias de Taunay, em que o narrador relata em sua história pessoal fatos que ocorreram na
política e na sociedade da época. Nesta forma de contextualização da infância em um universo
histórico, ressalta a intenção de se objetivar o texto passado, impregnando a escrita da
infância de elementos referenciais.
As Memórias representam uma infância descrita como um tempo de felicidade, e, ao
mesmo tempo, de formação cultural daquele que cresce e se identifica com os valores do
Império. Os privilégios concedidos pelo convívio com a família imperial são decisivos para a
formação do narrador protagonista, num tempo em que os sinais de mudança política
assinalavam uma nova ordem.
Taunay relata alguns conflitos quando criança, quase sempre resolvidos pelo pai e/ou
o Imperador. Todavia, o menino considerava-se, na maioria desses episódios de conflito ou
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tensão, superior aos que lhe contrapunham as opiniões. Os pais, além de privilegiarem a
harmonia doméstica, são responsáveis por uma educação rígida centrada nos estudos e na
disciplina do corpo, treinando o menino para o trabalho intelectual. A educação é um dos
pontos mais importantes dessa parte das Memórias, sendo decisiva para que se possa
compreender a dimensão de um certo tipo de violência paterna, que o obrigaria a estudar
horas e horas, até alcançar o máximo de rendimento.
Nesse tempo de Jurujuba, já estava eu às voltas com os estudos, começando o do latim na História Sagrada, de Lhommd. O tal Epítome, apesar de toda a simplicidade mais que elementar, dava-me trabalho enorme, provocando da parte de meu pai contínuas recriminações, no meio de exclamações de cólera e indignação - “Tu n’es qu’un imbécile!” era afirmação que voltava a cada instante. Às vezes a lição interrompia-se com as minhas lágrimas, e minha Mãe vinha, com toda a solicitude, procurar ajudar-me (TAUNAY, 2005, p. 12).
Como já dito anteriormente, Rousseau apontou para a compreensão e difusão da “ideia
da infância como felicidade”, considerada uma novidade na Europa, em fins do século XVIII.
Taunay, de uma forma bastante peculiar, vale-se de estratégias textuais para que a infância,
recordada como felicidade plena, esteja vinculada à construção de um sujeito completo e feliz.
E essa condição é obtida pelo esforço nos estudos e na procura por uma índole saudável e
disciplinada.
Paralelamente a esta preocupação de se escrever literariamente uma infância
pretensamente realista, a Literatura Brasileira está povoada de vários exemplos de uma
perspectiva nostálgica do tempo passado, reafirmando uma visão idealizada da criança,
tendência esta verificável inclusive na atualidade. Como exemplo máximo desta tendência,
podemos destacar o poema “Meus Oito Anos”, de Casimiro de Abreu. O idealismo que
permeia a produção literária dessa época vê na fuga para a infância um modo de representação
do espírito romântico do século XIX. A infância assim representada revela um espaço distante
e até estranho ao adulto que precisou abandonar a vida de “cores” e “amores”. É a fase da
vida idílica, aquela a que todos querem retornar, mas que, infelizmente, não é mais possível.
Oh ! Que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras, À sombra das bananeiras,
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Debaixo dos laranjais! (ABREU, s.d., p. 19)
Durante o romantismo, esse mito da infância assoma como nacional, ultrapassando o
plano individual e revela a força da imagem primitiva, pela qual, mais uma vez, a criança e o
povo vão ser positivamente assimilados, por um momento. A linguagem que a expressa
corresponde à exposição de desejo numa sociedade de contornos rígidos e estreitos, de
normas que a constrangem e impedem a emergência do espontâneo, do natural (LAJOLO,
ZILBERMAN, 1988, p. 43-44).
Uma escrita memorialista que oferece versões diversas de uma mesma vida,
procurando integrar os fragmentos passados, alternando os pontos de vista de um mesmo eu-
narrador é o romance Menino de Engenho, de José Lins do Rego.
A infância de Carlinhos, protagonista desse romance, estava "dividida" entre o "bem e
o mal", ou seja, na companhia de sua tia seu comportamento era mais terno, já quando
convivia com os primos era extrovertido e libertino.
Com a morte de Lili, tia Maria ficou toda em cuidados comigo. Proibiu-me da liberdade que eu andava gozando como um libertino. Passava o dia a me ensinar as letras. Os meus primos, esses, ninguém podia com eles (REGO, 2001, p. 46).
Nessas memórias infantis, a visão tende para uma idealização em tons de saudade,
melancolia e dores. Muitas outras narrativas seguiram este modelo de idealização, que por um
lado demonstrava o ser criança como a fase mais desditosa da vida e por outro revelava as
agressões que o infante sofria, por estar numa situação de submissão e, portanto, em
desvantagem com relação ao poder adulto. Neste último caso a valorização ocorria justamente
na contraposição de forças, que revelava a criança como o lado mais frágil e que, por isso,
deveria estar alheia aos sofrimentos que lhe impigem.
Há um estado nostálgico, melancólico nesse livro de um menino abandonado. José Aderaldo Castello sublinhou lucidamente esse aspecto, de uma tristeza difusa, de uma profunda saudade. A evocação da infância termina com a ida para o colégio (VILLAÇA, 2001, p. 25).
Em outros autores que escreveram sobre a infância em forma de recordação podemos
encontrar um narrador, mesmo que adulto, contando suas experiências infantis com a voz e o
olhar voltados para o menino que participa das ações. A linguagem então toma outro fio
narrativo, e o léxico contribui para uma discussão mais profunda em torno das memórias
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infantis. Graciliano Ramos soube relatar suas recordações de maneira dramática, do ponto de
vista do menino que ele foi e que aparece ficcionalmente representado em seu romance
Infância.
Nesse romance, o narrador produz o seu discurso sob o influxo da traumática
experiência da criança que é tão vítima das interdições paternas quanto das interdições e
despreparo da escola. O foco se desloca e traduz a perspectiva do menino. A adoção da
perspectiva infantil, possibilita ao narrador diminuir a distância entre o menino que foi e o
adulto que relata suas reminiscências. No livro há uma exposição das impressões do menino
em sua formação. O narrador procede como um mediador, cuja principal qualidade é a de
construir a narrativa de forma nebulosa e fragmentada em correspondência com o caráter
impreciso e lacunar da memória.
Trata-se, então, de um personagem-narrador rememorando experiência vivida no
passado a um leitor no presente, e essa narrativa é possibilitada pela sua inclusão numa
relação tensa entre passado/presente e delimitada em um pacto de credibilidade para com o
leitor.
Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou. Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esvoaçando no universo vazio
(RAMOS, 1975, p. 12).
Os acontecimentos que compõem a narrativa ocorrem em um contexto onde, à criança,
não é permitido sequer tomar parte das conversas dos adultos e muito pouco é revelado pelas
palavras. As lembranças, quase sempre dolorosas, correm fundo nos silêncios do menino,
produzidos na linguagem lacônica, lacunar, com elipses que parecem propositalmente
construídas, para desafiar a participação crítica do leitor.
A notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. Já haviam falado nisso, mas nunca me convencera de que realizassem a ameaça. A escola, segundo informações dignas de crédito, era um lugar para onde enviavam as crianças rebeldes. Eu me comportava direito: encolhido, morno, deslizava como sombra. As minhas brincadeiras eram silenciosas. E nem me afoitava a
incomodar as pessoas grandes com perguntas (Idem, p. 111).
Há o entendimento, então, de que a memória do escritor não recuperou os fatos
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exatamente como aconteceram, pois não seria isso possível, dada a distância temporal entre o
momento em que os fatos ocorreram e o momento em que estão sendo rememorados por meio
da escritura. Mesmo que, no trabalho de rememoração, haja lapsos e omissões, não deixa de
ser possível a retomada de alguns fatos, ainda que o mais plausível seja a recriação sobre o
vivido.
Não há a necessidade de uma similitude total entre o escritor que rememora os fatos e
o personagem da narração que os viveu no período da infância ou da adolescência. Contudo,
há várias semelhanças que merecem e podem ser consideradas. É o pensamento também do
narrador de Infância ao iniciar o relato dos primeiros acontecimentos da vida evocados pela
lembrança:
A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real (Idem, p.7).
De acordo com o que se vê no trecho acima, o narrador não parece se importar muito
em apresentar argumentos que confiram credibilidade ao seu relato. Até coloca em dúvida a
própria verdade dos fatos narrados. Isso indica que o pacto ficcional entre o leitor e o
conteúdo narrado precisará ser elaborado por outros meios: a verossimilhança interna dos
elementos da narrativa, a construção do conjunto de acontecimentos, que vão sendo
introduzidos de maneira articulada, o conjunto de ideias bem construídas e, conforme tem
apontado a crítica, uma espécie de impessoalidade analítica por parte do narrador-
personagem.
Então o menino constrói a sua história por aquilo que vê e sente, e nesse aspecto não
se verifica a presença da infância idealizada como espaço idílico que já se foi. Da mesma
forma, não há uma vitimização da criança que sofre na crueza de sua vida, pois não se
demonstra o julgamento do narrador, criticando as ações dos adultos que cercavam esta
criança.
Dessa forma, o escritor traz para o tempo da narrativa o exame de marcas da
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experiência vivida no tempo de menino, que parecem conformar a maneira de se ver e de
perceber a realidade:
Ia refugiar-me, zonzo, na companhia das moças. (...). Essas moças tinha o vezo de afirmar o contrário do que desejavam. Notei a singularidade quando principiaram a elogiar o meu paletó cor de macaco. Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feitio admirável. Envaideci-me: nunca havia reparado em tais vantagens. Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei. Longe disso: julguei curiosa aquela maneira de falar pelo avesso, diferente das grosserias a que me habituara. Em geral me diziam com franqueza que a roupa não me assentava no corpo, sobrava nos sovacos. Os defeitos eram evidentes, e eu considerava estupidez virem indicá-los. Dissimulavam-se agora num jogo de palavras que encerrava malícia e bondade. Essa mistura de sentimentos incompatíveis assomorava-me e pela primeira vez ri de mim mesmo (...). Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pespontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco (idem, p.185).
Esta mudança de perspectiva sobre a infância marca um desvio da trajetória literária
do regionalismo produzido até então no Brasil. Permite que, mesmo mantida a orientação do
falar adulto sobre o passado infantil, a força do foco na visão da criança pese para que se
estabeleça uma escrita diferenciada. Desta forma, o discurso memorialista empregado por
Graciliano em Infância cede ao narrador a perspectiva infantil que tenta compreender-se
como personagem infantil, com os sentimentos e percepções que esta óptica consegue
elaborar.
De acordo com Antonio Candido, que analisou as obras de Graciliano Ramos, o
oscilar entre a ficção e a confissão foi um desdobramento necessário na arte deste autor.
Cândido denomina as obras de Graciliano Ramos como livros pessoais, pois abordam a
experiência do autor, mesmo que por um viés ficcional (CÂNDIDO, 1992, p. 42). No caso do
livro Infância, não só são verificadas as características pessoais do autor, como também seu
estilo literário é melhor compreendido: a obra lança pistas a respeito da vocação literária que
desde cedo brotou no menino, assim como a persistência de um sentimento de “humilhação e
machucamento” (Idem, p. 51) em muitos de seus livros.
Para Cândido, aquele menino, personagem principal de Infância, é o embrião de vários
outros personagens surgidos nos romances de Graciliano Ramos (Idem, p. 52). O que importa
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é a experiência pessoal para haver a possibilidade de uma escrita. Por isso, as obras de
Graciliano Ramos são tocantes, pois aliam a trama ficcional com o testemunho, conferindo
uma ficcionalidade às experiências de infância do autor. “Assim, ficção e confissão
constituem na obra de Graciliano Ramos polos que ligou por uma ponte, tornando-os
contínuos e solidários” (Idem, p. 68, 69).
Mesmo assim, na obra de Graciliano Ramos se evoca o caráter da realidade para a
composição de suas memórias. As instituições sociais como a família e a escola são
culpabilizadas pela infelicidade, pela impossibilidade de uma infância feliz porque limitada
pela ação destas instituições. Assim, não há a realização plena da escrita literária da infância,
pois, na narrativa memorialista de Graciliano, ainda se invoca a infância guiada pela força dos
que se impuseram ao protagonista em sua infância, ou seja, uma experiência pessoal ainda se
interpõe fortemente na ficção.
Naquele tempo a escuridão se ia dissipando, vagarosa. Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo incoerente. Às vezes, as peças se deslocavam – e surgiam estranhas mudanças. Os objetos se tornavam irreconhecíveis, e a humanidade, feita de indivíduos que me atormentavam, perdia os característicos (RAMOS, 1974, p. 13).
2.1.2 – O tempo infantil: outras formas de rememoração da infância em Bartolomeu Campos Queirós
A infância hoje vive uma série de paradoxos, difíceis de serem equacionados, pois
estão presentes nas concepções sobre a infância e nas formas de agir com a criança. Um
desses paradoxos relaciona-se diretamente ao tempo da criança, do limite da infância, a fase
circunscrita em que se considera o ser como infante e em processo de desenvolvimento.
Os conhecimentos advindos das pesquisas históricas e os pressupostos fundados pela
psicologia moderna têm contribuído para delimitar a infância em uma certa temporalidade,
seja ela de longa ou de curta duração. Torna-se fundamental, quando se define um tipo de
infância, também localizá-la num determinado contexto, em uma temporalidade cronológica.
Instala-se uma ruptura com o modo dominante de pensar a infância, e da mesma
maneira em que se concebem as relações temporais . Geralmente associa-se a infância à
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primeira idade, pois está implícito que os indivíduos passam por estágios, etapas, fases em seu
desenvolvimento. Este desenvolvimento está impregnado da noção de progresso.
No momento em que se pretende pensar outros modos de infância, passa-se também a
construir outros modos de conceber o tempo. Os antigos gregos usavam variados termos para
conceituar o tempo. Um desses termos é chrónos, a continuidade de um tempo sucessivo. A
raiz das palavras cronologia, crônico e outras que remetem na língua portuguesa a Cronos; em
inglês passam a chronology e chronic, como em Chronos. Vale lembrar que o radical crono-,
em português, deriva do grego. khrónos = ‘tempo’ (HOUAISS, 2005).
Ora, Cronos, o tempo de Cronos, é o presente, só o presente existe. Um presente extensivo, no qual o passado e o futuro fazem parte de um presente mais vasto, o presente de deus, queremos dizer, o que para nós é passado ou futuro é sempre presente para deus, em deus. O nosso tempo crónico é uma sequência de presentes limitados num presente maior, infinito. E este presente é corporal, é o tempo das misturas, da acção e das paixões (o passado e o futuro serão, assim, o resto de uma paixão no corpo) (SILVA, 2010, p. 28).
Há um mundo em movimento, o mundo que se quantifica e que se denomina chrónos.
Aristóteles, preocupado apenas com “este” mundo, define chrónos, sem modelo, como “o
número do movimento segundo o antes e o depois” (Física IV, 220a). Cronos, então, é o
tempo do número, do quantificável, que se dá nos limites. O ser em cronos é fixo,
mensurável, definido em fases. Desse modo, identifica-se com a ideia de infância como
primeira fase, aquela desprovida de experiência.
Ser fixos é enredarmo-nos no presente, vivendo presentes entrelaçados, ser em Cronos, o que realmente parece ser o nosso estado natural, “tal sujeito tem tal grandeza, tal pequenez em tal momento” (DELEUZE, 1974, p.1).
Existe também o tempo Kairós, que significa ‘medida’, ‘proporção’. É um tempo
existencial, da oportunidade. Kairós é um tempo mais pessoal e tem a ver com valores e
qualidades em seu uso (LIDDELL, SCOTT, 1966, p. 859).
Um outro termo relacionado a tempo é Aión, que designa a intensidade do tempo da
vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva,
intensiva (LIDDELL, SCOTT, 1966, p. 45). É o tempo da duração, diferente do cronos que é
o tempo da limitação.
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Mas sobre este tempo outro tempo insiste, sobre o presente crônico insistem um passado e um futuro. O Aion é, pois, do instante que subdivide o presente; e é bem assim, nesta perversão do presente, que o Aion se diz dos acontecimentos incorporais que preenchem o presente (SILVA, 2010, p. 30).
Tempo aión, tempo do infantil, alternando entre passado e futuro, sempre se
esquivando do presente, eternamente o que acaba de passar e o que quase vai passar, está por
vir que remete ao passado e ao futuro simultaneamente e que se contrapõe ao cronos, que
representa o tempo em relação ao presente.
O tempo infantil pode ser representado na narrativa literária. Verifica-se o aion, em um
tempo brincante, quando se entra em contato com as histórias de Bartolomeu Campos
Queirós.
Heráclito diz que “aión é uma criança que brinca, seu reino é o de uma criança,
infantil”. E a contagem do tempo no livro Antes do Depois (2006) demonstra de forma
divertida a passagem dos anos, numa rememoração totalmente diferenciada de uma infância.
Assim, pode-se pensar que existem duas infâncias, uma da continuidade cronológica,
das etapas do desenvolvimento, a infância em que, desde Platão, se educa segundo um modelo
e que segue o tempo da progressão sequencial: seremos primeiro bebês, depois crianças,
adolescentes, jovens, adultos e velhos. E a infância que habita outra temporalidade, a infância
como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como resistência e como
criação. Pensar o que pode ser a infância como potência e possibilidade real.
Para Benjamin, para que algo não se perca no achatamento de um puro presente, de
um agora unidimensional, o tempo precisa inflar-se de muitos “agoras”, precisa ser um
presente inchado, “grávido”, de outros tempos, de todos os tempos. Precisa ser salvo na
medida em que é reconhecido pelo historiador (que é o do materialismo histórico) como “um
tempo saturado de agoras”. Para isso, Benjamin pensa num tempo que interrompe o contínuo
da história, instituindo uma história intensiva, que ele denomina Jetztzeit, o “tempo-de-agora”.
Para Benjamin (1994, p. 229) “a história é o objeto de uma construção cujo lugar não é
o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras”. Nessa concepção de tempo
benjaminiana, o passado contém o presente, o Jetztzeit – “Tempo de agora” ou “Tempo atual”.
Em uma das variantes da tese XIV, o Jetztzeit é definido como sendo um “material explosivo”
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que associado ao materialismo histórico constitui o estopim, no sentido de fazer explodir o
continuum da história com o auxílio de uma concepção do tempo histórico que o percebe
como pleno, cheio, carregado de momentos explosivos “atuais”, com alto teor subversivo.
Nesta Tese XIV, pode-se perceber que o tema do idêntico no novo, do velho no novo, e
do novo no velho é fundamental para a concepção de Benjamin sobre a história.
Nessa mesma vertente de Benjamin, Gagnebin diz: “Cada história é ensejo de uma
nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc; essa dinâmica ilimitada da
memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos.
Mas também um segundo movimento, que, se está inscrito na narração, aponta para mais além
do texto, para a atividade da leitura e da interpretação” (GAGNEBIN, 1996, p. 13). Assim,
vemos como a escritura da história está enraizada na arte (no prazer) de contar. E esse prazer
de relatar os fatos que ocorreram no passado, pode estar saturado de agoras, não seguidor de
uma lógica linear ou de uma força progressiva. Essa forma de narração pode ser verificada na
escrita de Queirós:
Nasci com 57 anos. Hoje, tenho 118. Foi em agosto, dizem, mês de vento e desgosto. Dia do Soldado. (...) Cheguei com 57 invernos. 34 pais + 23 mães = 57 filhos. Peguei o trem na última estação. A primavera, primeira estação, começa em setembro. E só quem nasce na primavera pode colher primaveras (QUEIRÓS, 2006, p. 9,14).
Este trecho parece indicar, entre muitas coisas, que o tempo da vida não é apenas
questão de movimento numerado e que esse outro modo de ser temporal pode ser pensado
como um modo de ser infantil, de criança. Se uma lógica temporal – a de chrónos – que segue
uma ordenação, surge outra – a de aión – que brinca com os números e infantiliza o
movimento.
A narrativa do livro Antes do Depois é ordenada pela rememoração de um tempo
afetivo. Não segue qualquer lógica temporal – os fatos são contados de acordo com os temas
mais relevantes para o narrador. Inicia-se com o nascimento aos 57 anos, numeral que
representa a soma das idades do pai e da mãe quando o personagem-narrador surgiu no
mundo. A matemática surge como um suporte a sugerir que o tempo que passa é um
amálgama de somas e subtrações.
Paralelamente a esta noção de perda e ganho, há fortemente pontuadas as sensações de
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permanência e fugacidade. A ideia de permanência está relacionada com o duplo sentido da
gravidade, o peso do tenente Josué e as obrigações civis com a Pátria, um “precioso
patrimônio” (Idem, p. 9). O narrador também sente o peso dessas obrigações, de uma carga
que carrega e que o impede de subir as escadas, para não perder o fôlego (idem, p. 10).
Em outras passagens, a fugacidade é demonstrada pelas imagens de leveza. A
existência é leve ou pesada, como diz o narrador: “Tem instantes que nem existo, sou algodão
doce. Em outros, existo demais, sou chumbo. Não conheço borracha para apagar a memória”
(ibidem).
A memória vigia e transborda (idem, p.10). E a enumeração dos fatos lembrados de
uma infância são capturados num fluxo da capacidade criativa. Para nosso autor, a história
não pode ser aquela que aprisiona os acontecimentos num encadeamento linear, que lhe dá
definitivamente um antes e um depois, uma causa e seu efeito. Os fatos devem ser
compreendidos como pontos, livres para serem conectados e desconectados de contextos
possíveis, potenciais.
A partir da página 11, a narrativa se orienta pelo dia do batizado do menino. No
decorrer da narrativa, porém, muitas observações se intercalam, sempre retornando o tal
acontecimento. E dentre essas observações, sempre são usadas as figuras de permanência e
fluidez na história. Pai e mãe são associados ao sal e o açúcar, ambos suscetíveis ao
desmanche pela água. “No meio daquela conversa eu me vi dividido em dois: um do sol e
outro da lua, um doce e outro azedo. Um do meu pai e outro da minha mãe. Um feito de
açúcar e outro de sal. E a água derretia os dois” (Idem, p. 17).
O narrador se sente, ao mesmo tempo cindido e duplo – “sou mesmo um dois” (idem,
p. 21) - buscando por meio da memória uma forma de não ficar “tão aflito diante do tempo”
(idem, p. 17). Contudo, a memória não resgata as impressões da infância de maneira ordenada
e lógica. Os fatos se precipitam no descontínuo das emoções: o que permaneceu se imprime
de forma fluida, não fixada na narrativa de Queirós. O autor reorganiza o tempo para além da
continuidade. O tempo da narrativa queirosiana entra em convergência com o de Walter
Benjamin: não é mais o da necessidade, mas o das “possibilidades”, do que pode ser criado
(LÖWY, 2001, p. 120).
Ficar na memória significa conservar. Mas o que angustia o narrador são justamente
estes fatos guardados a pesar na existência. Ao narrar suas reminiscências infantis e brincar
70
com elas, o narrador reverte o sentido fixo e contínuo, fazendo com que as lembranças fiquem
mais leves. O que está guardado na memória é tanto o que se deseja, o que se quer esquecer,
ou o que se quer lembrar: “Memória não deixa nada acabar” (idem, p. 43). A seleção dos fatos
a serem narrados não obedece a uma temporalidade definida. E assim o narrador o faz,
imaginando seu passado. “Sempre gostei de imaginar o dentro das coisas. O dentro é um lugar
que a gente só chega imaginando” (QUEIRÓS, 2006, p. 20).
Imaginar aquilo que se passou só é possível por meio da linguagem literária. Queirós
instaura um tempo infantil em sua escrita, totalmente brincante e travesso. O fio da narrativa
se compõe pelo jogo de palavras e pela associação das ideias que elas trazem em seus duplos
sentidos. O narrador expressa seu sentimento de cisão e duplicidade também quando escolhe
as palavras para exprimir o que aconteceu em sua infância.
Foi um pesadelo. Deve ser por causa do peso de Josué. (...) Tudo que existia já tinha nome. Eu não podia dar nome a nada, nem a mim mesmo. Passava o tempo procurando o que ninguém conhecia para inaugurar com uma palavra nova. Mas era em vão. Até na minha casa tinha um vão. (...) Muitos dizem que menino é uma meia pessoa. As bonecas de meia eram inteiras (idem, p.23, 27, 31).
Ao contar as experiências de uma infância imaginada, Queirós segue as proposições
de Benjamin, pois não interessa aos autores “contar sua infância ou resguardar lembranças
felizes” (GANEGBIN, 1997, p.181). O que interessa é estabelecer uma certa experiência com
a infância: “A experiência da infância é a experiência daquilo que poderia ter sido diferente”
(Ibidem). Uma recordação que se permite imaginada, recriada, ao ser narrada.
Na certidão estão registrados os nomes do meu pai, da minha mãe, dos meus quatro avós, dos meus padrinhos. Todos já partiram sem deixar endereço. A data do meu batizado continua errada. Nasci com 57 anos. Sou a soma de 34 com 23. Quando olho o papel, amarelado pelo tempo, eu cismo em nascer de novo. Então brinco de faz-de-conta e escrevo (QUEIRÓS, 2006, p. 46).
2.2 – A redescoberta da infância pela linguagem: apontamentos de Walter Benjamin e
Giorgio Agamben
2.2.1- Benjamin e a concepção da infância instaurada pela/na linguagem
71
Em seus escritos sobre a infância, Walter Benjamin revela a visão da criança e sua
sensibilidade perante o mundo. O autor escreve com comoção e imaginação criadora, ao
mesmo tempo em que promove uma discussão sobre os pressupostos educacionais que
orientaram a educação de crianças e jovens no processo de constituição da sociedade
burguesa. As advertências a respeito da educação alemã ocorrem na época em que a educação
dos jovens se tornava objeto do interesse do regime fascista que se instaurava na Alemanha.
Nesse contexto, os escritos benjaminianos assumem um sentido político revolucionário, no
tocante sobretudo à valorização da vida infantil vinculada claramente a uma nova leitura da
história, que objetiva retomar a tradição e a memória do que foi reprimido no processo de
constituição da modernidade. Ao procurar compreender a experiência infantil, Benjamin
questiona as formas de educação modernas para tentar uma reformulação teórica condizente
com uma nova prática política revolucionária.
Como já discutido no decorrer deste trabalho, por causa de discursos construídos a
respeito do que é o infantil, o papel da infância na sociedade é relegado a um plano menor, de
pouca importância, por considerar-se, então, a criança um ser incompleto, em formação.
Contudo, refletindo sobre a obra de Benjamin, pode-se construir um pensamento diferenciado
sobre a infância, ressignificando as qualidades que a ela são atribuídas.
Ao abordar o conceito de infância em Benjamin, a autora Jeanne Marie Gagnebin
explica que para o autor a criança não é inocente, mas tem uma certa inabilidade para lidar
com o mundo adultificado. A fraqueza infantil aponta para uma realidade “que mostra a
experiência preciosa e essencial ao homem, de seu desajustamento ao mundo, a sua
insegurança primeira, enfim, da sua não soberania” (GAGNEBIN, 1994, p. 98). Desta forma,
a não soberania da criança é que lhe possibilita reinventar o mundo, ressignificar a linguagem,
redescobrir nos detritos a singularidades fundamentais do ser. As crianças se sentem “atraídas
por detritos, onde quer que eles surjam – na construção de casa, na jardinagem, na
carpintaria”. Por detritos, entende-se qualquer detalhe ou fragmento que possam ser utilizados
pelas crianças para a construção de “seu mundo de coisas” e de ideias (BENJAMIN, 2005,
104).
Por não estar presa às verdades do mundo adulto, a criança brinca com o que a cerca,
sejam as coisas, sejam as palavras. Gagnebin mostra, a partir do pensamento de Benjamin,
uma outra configuração para o prefixo negativo ”in” na palavra infância: é o espaço que
possibilita o “desnudamento e a miséria, no limiar na existência e da fala” (GAGNEBIN,
72
1994, p.98). Assim, o ”in” não significaria negação, mas uma incompletude, lacuna que abre
espaço a criações.
A criança, que ainda não se submeteu às contingências do mundo adulto, está aberta à
recepção das semelhanças sensíveis, e sua formação como indivíduo se traduz como
aprendizado na recriação do mundo. Dessa maneira, a experiência infantil da brincadeira, da
expressão mimética e lúdica, se constitui como a semente do novo que se opõe à experiência
do adulto, adaptado às condições do mundo regido pela forma moderna de produção e de
representação.
A faculdade mimética na infância vai além da simples imitação, pois estabelece, a
partir dos jogos infantis, uma relação nova e original com as coisas no processo de
conhecimento do mundo. As crianças são sensíveis às afinidades, apreendem a multiplicidade
de formas e redefinem os sentidos retirando as coisas do contexto do adulto para dar-lhes uma
nova significação. Nessa relação, as crianças se sentem atraídas fortemente com os restos,
onde quer que eles estejam, nas construções, jardins, oficinas. “Nesses detritos, elas
reconhecem o rosto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas. Com tais
detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e resíduos em uma relação
nova e original”. (BENJAMIN, 2005, p. 104). Dessa maneira, elas constroem e formam seu
próprio mundo, em uma produção de semelhanças e diferenças que podem ser reconhecidas
nas brincadeiras, porque a criança estabelece outra relação com o tempo (e com o espaço). É
neste processo de formação/produção que ela vivencia o seu tempo, o preciso momento da
criação de um brinquedo. A mimesis é, assim, o processo pelo qual a criança aprende a lidar
com uma ordem temporal.
Ao dissertar sobre a alegoria na obra “A origem do drama barroco alemão”, Benjamin
revela que é, no “choque entre o desejo e a consciência aguda da precariedade do mundo”,
que se pode extrair a inspiração alegórica. “A alegoria se instala na intimidade entre o
efêmero e o eterno” (BENJAMIN apud SOUZA, 2009, p. 196).
Os fragmentos que compõem a obra “Infância em Berlim” são um bom exemplo de
uma escrita de onde se extrai uma inspiração alegórica. E dessa inspiração pode surgir uma
experiência singular de infância, que é dada na e com a linguagem (SOUZA, 2009, p. 197).
Mas, diferentemente dos exemplos citados neste capítulo, em que os autores tentavam falar de
uma infância particular, por meio da rememoração, Benjamin não se dispõe tão somente a
73
falar de sua vida de quando era criança. Não é “sua propriedade subjetiva”, que estaria
encerrada nela mesma e “incapaz de transcender a esfera daquele mesmo que lembra”
(ANDRADE, 2009, p. 284). Para ele, todo escritor de verdade, antes de escrever para si
próprio ou para outrem, escreve para a própria linguagem.
Para Benjamin, nem mesmo escrever sobre sua infância escaparia disso. Sua escrita não tem este ou aquele alvo, ela não está a serviço de nada que não a própria linguagem. Falar da infância é, neste sentido, buscar, no interior da própria linguagem, o contato com uma experiência da linguagem diferente da que usualmente temos – e com a qual, diga-se de passagem, dificilmente fazemos qualquer experiência real. Nos momentos em que fala de sua infância, portanto, Benjamin busca aproximar-se de uma experiência da linguagem que, embora já esteja perdida no passado, pode voltar a ser encontrada, ainda que não exatamente como foi, dentro da própria linguagem como experiência atua (ANDRADE, 2009, p.284).
Há na criança um tipo diferenciado de experiência que está sempre desajustada em
relação ao mundo, ou seja, uma experiência de um saber que se sabe em constante recriação.
A característica que a criança tem de não compreender o que certas palavras significam e de
manusear os objetos dando-lhes usos e significações ainda não fixados pela cultura mostra
que tanto os objetos como as palavras estão no mundo para serem constantemente
ressignificados por meio das ações. Palavras e objetos, como criações humanas, não são fixos,
nem imutáveis. A infância, portanto, pode ser vista alegoricamente como elemento capaz de
redescobrir o que pode ser ainda construído, o que não deixa de representar uma crítica ao
progresso e à razão utilitária da modernidade. Não diferentemente, a infância da linguagem
surge como um elemento também móvel, passível de uma constante criação.
Benjamin rememora um jogo popular alemão, em que o jogador recebia um grupo de
palavras e precisava organizá-las em um texto “de tal modo que a sua ordem não fosse
alterada. Quanto mais curto o texto, quanto menos elementos mediadores contivesse, tanto
mais notável seria a solução”. O autor sugere que uma criança organizaria um texto ligando as
palavras - rosquinha, pena, pausa, queixa, futilidade da seguinte maneira: “O tempo se lança
através da natureza feito uma rosquinha. A pena cobre a paisagem e se forma uma pausa que é
preenchida pela chuva. Não se ouve nenhuma queixa, pois não há nenhuma futilidade”
(BENJAMIN, 1995, p.271-272). O nexo que se instaura entre as palavras é da ordem da
essência espiritual e não de uma coerência lógica, destinada somente à comunicação. Esse
texto criado pela criança teria, segundo ele, mais afinidade com os textos sagrados.
74
Por isso, quando se reflete sobre a literatura que tenta retratar a infância, pelo viés da
leitura benjaminiana, pode-se questionar os textos que somente falam de uma personagem
infantil ou de alguém que rememora a infância. O que estes textos mostram, como já
exemplificado na primeira parte do capítulo, é um tipo de infância que foi cristalizado como
ideia na modernidade. O próprio Benjamin toca diretamente neste assunto quando critica o
uso de que se faz das fábulas para uma doutrinação moral. Segundo ele, “as crianças se
divertem muito mais com os animais que falam e agem como homens do que com os textos
ricos em ideias” (BENJAMIN, 2005, p.58). E, nem por isso, elas deixam de construir seu
próprio mundo.
A partir desses conceitos, a infância não se apresenta mais como uma etapa inicial de
encadeamento cronológico e linear, mas como uma categoria social, histórica e cultural, que
recria a experiência vivida. Ao sentido de falta e incompletude do infantil para compreender a
realidade, Walter Benjamin contrapõe a tese de que a criança reconstrói o mundo a partir de
seu olhar infantil. Também a história poderia ser assim reconstruída, a partir de uma infância
da linguagem, como também o postula Claudia Maria de Castro, a partir de Benjamin:
A radicalidade de sua ideia de infância, como vimos, provoca uma tripla destruição: uma destruição do espaço como lugar vazio em que encontramos as figuras já dadas pela percepção consciente; uma ruptura do tempo em sua linearidade cronológica, homogênea e vazia; e um esfacelamento das significações habituais da linguagem, uma “des-semantizacão das coisas e das relações”. Este incêndio simultâneo do espaço, do tempo e da linguagem é, em Benjamin, a forma autêntica da revelação onde uma nova subjetividade, mais livre, pode ser construída. E a infância, enquanto encarnação da própria filosofia, faz desta última uma arte de caçar borboletas (CASTRO, 2009, p.215-216).
Da mesma maneira que Benjamin demonstra alegoricamente as rupturas feitas às
convenções estabelecidas sobre tempo, espaço e linguagem, a partir de uma ideia radical de
infância, Guimarães Rosa exemplifica na literatura como ocorre esta nova subjetividade, que
em sua obra pode ser construída. Pois, muito além de se ocupar de uma fala sobre a infância,
ou com a utilização das personagens infantis, Rosa faz uma redescoberta desta linguagem
infantil, “compondo uma língua onde espaço e tempo se imbricam” (CASTRO, 2009, p. 214).
75
2.2.2- Agamben e a infância como condição da história
Giorgio Agamben, inspirado nas ideias de Benjamin, formula uma série de questões
relacionando infância, linguagem e experiência. Em Infância e história discorre sobre o
fracasso da experiência na vida moderna. Contudo, pondera que não há destruição da
experiência para haver a não-experiência, e sim outro tipo de experiência, mais no âmbito da
experiência com a linguagem.
O filósofo italiano vai ao encontro de algo próximo a uma “infância da experiência”,
tentando relacioná-la com a linguagem. A infância se instaura na linguagem, na cisão entre
língua e discurso, entre o semiótico e o semântico, entre o sistema de signos e o discurso. O
sujeito da linguagem é o fundamento da experiência e do conhecimento, e a origem
transcendental da linguagem se localiza, portanto, na infância do homem, a pura língua do
discurso humano. “A infância se constitui num experimentum linguae desse gênero (...) ela é
entendida como possibilidade de pura expressão” (SOUZA, 2009, p. 192).
Na visão de Agamben, infância e linguagem estão intimamente ligadas, uma se remete
à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da
infância. Nesta linha de pensamento, a infância não representa apenas um período da
existência humana, mas coexiste originalmente com a linguagem, “constitui-se, aliás, ela
mesma na expropriação que a linguagem dele efetua, produzindo a cada vez o homem como
sujeito” (AGAMBEM, 2005, p. 59). A infância seria o inefável, a transcendência, o que surge
nessa passagem do signo ao discurso.
O humano se constitui na e pela linguagem, e isso não ocorreria se não fosse uma
condição infantil. A espécie humana não nasce sabendo falar: aprende a falar. Há, portanto,
um determinado momento em que ela é não-falante, é infante, aquela que não fala. Para
Agamben, a “pura língua é, em si, anistórica” (2005, p. 64), isto é, natureza, que não necessita
de uma história. Se as pessoas nascessem falantes, seriam já natureza, não haveria algo do
qual devessem se apropriar. Seriam um ser sem infância, não necessitando descobrir ou
construir suas experiências, ou seja, um ser sem história. Eis aqui o fundamento da
historicidade do ser humano. Ao discorrer sobre a concepção benjaminiana de infância,
Solange Jobim Souza, defende que,
Sendo um momento na história do homem, que se repete eternamente, manifesta, nesse eterno retorno, aquilo que essencialmente permanece como
76
fato humano. É nesse sentido que tal concepção de infância não é algo que pode ser compreendido antes da linguagem ou independente dela, pois é na linguagem e pela linguagem que o homem constitui a cultura e a si próprio (SOUZA, 2009, p. 192).
Existe a história porque os homens foram não-falantes e se constituíram como
falantes. Assim, abre-se a possibilidade de pensar que os falantes podem permanecer infantes
na medida em que, aprendendo a falar e a serem falados, a historicidade do ser humano se
constitui numa contínua construção. Para Agamben, este movimento é o da experiência.
Assim, os humanos são essencialmente experiência, ou seja, se constroem na proporção em
que estão disponíveis a deixarem de ser não-falantes para se tornarem falantes. A infância
pressupõe, portanto, a condição de inacabamento dos seres em permanente processo de
constituição do “si mesmo”. Conscientes dos limites, os adultos podem se reconhecer como
infantes, ao se assumirem como inacabados. Assim, infante é todo aquele que está aprendendo
a falar, que está se constituindo como sujeito da linguagem ao dizer “eu”, permitindo-se a
experiência (AGAMBEN, 2005).
Dessa maneira, a infância não significa apenas uma etapa cronológica da existência
humana, e sim a própria condição para que se possa continuar na vida como agente
transformador do cotidiano, da não-fala em língua e discurso capaz de colocar-se numa
atitude de criação.
A infância pode-se tornar uma condição, destinada não somente às crianças, mas
também aos adultos que procuram conservar a própria condição infantil. A condição infantil
permite assumir uma perspectiva de inacabamento de seres sempre prontos a aprender a dizer
o mundo, a enfrentar positivamente o desafio de recriar e refazer as respostas que, na cultura e
por causa do desenvolvimento da vida, é elaborado no cotidiano da história. Entretanto, não se
trata de reconstruir as vivências apenas a partir das atitudes controladoras da condução
progressiva da história, mas também de refazê-las a partir das experiências, do sonho, do
desejo, da imaginação, dos sentimentos sobre os quais não há um total controle, mas com os
quais se constrói uma relação com os fatos da vida comum.
Nesse sentido, a linguagem é constituída mais por uma atitude de experimentação do
que por uma ação corretiva, já que o processo em que ela é adquirida na infância ocorre tanto
para o seu uso como para a exploração de novos sentidos e outros sons. É o que diz Agamben:
77
A infância age, com efeito, primeiramente sobre a linguagem, constituindo-a e condicionando-a de modo essencial. Pois o próprio fato de que exista uma tal infância, de que exista, portanto, a experiência como limite transcendental da linguagem, exclui que a linguagem possa ela mesma apresentar-se como totalidade e verdade. Se não houvesse a experiência, se não houvesse uma infância do homem, certamente a língua seria um jogo, cuja verdade coincidiria com o seu uso correto segundo as regras lógico-gramaticais (AGAMBEN, 2005, p. 62).
Giorgio Agamben observa na infância uma imagem de algo que surge. Em sua
reflexão sobre a linguagem, o autor aponta que ela desempenha a mediação deste processo,
entre o (ainda) não-falante e a potencialidade que ele traz em si e que poderia transformá-lo
em um falante.
Uma experiência originária, longe de ser algo de subjetivo, não poderia ser senão aquilo que, no homem, está antes do sujeito, ou seja, antes da linguagem: uma experiência "muda" no sentido literal do termo, uma in-fância do homem, de que a linguagem deveria, precisamente, indicar o limite (Idem, p. 62).
Por meio da escrita rosiana podemos detectar esta aproximação entre linguagem e
infância, já que as palavras usadas são o tempo todo desafiadas a novos sentidos, uma
experimentação de outras sonoridades, em outras experimentações.
Tendo em vista que nunca se tem o domínio total de uma linguagem, ressalta-se o fato
de que os seres humanos mostram-se serem sempre aptos a aprender palavras novas. A
experiência da infância acontece na linguagem e permanece na existência humana, sem
correlação imediata com uma etapa cronológica. O contato com a linguagem se faz em
constante experimentação, podendo, desta maneira, enfraquecer a ideia de progressão
evolutiva para a aquisição de uma língua pronta e acabada. É um percurso que não se extingue
jamais, e que se pode abrir a novos caminhos.
Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché. Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em viagem (AGAMBEN, 2005, p. 65).
Importante ressaltar a interessante distinção benjaminiana entre experiência e vivência,
que aqui é referenciada por Agamben. Nas palavras de Walter Benjamin, Erfahrung é a
experiência (real ou acumulada), sem a intervenção da consciência. É o conhecimento obtido
78
através de uma experiência que se acumula. Etimologicamente, o termo experiência, no
sentido de Erfahrung, vem do latim ex-periri, que quer dizer provar, experimentar. A raiz
indo-europeia é per, “à qual se liga a ideia de travessia e, secundariamente, esta de prova”, diz
Philippe Lacoue-Labarthe (1997, p. 30). Trata-se de uma travessia arriscada. Também no
alemão, Er-fahrung, que contém os semas de travessia (fahren) e de perigo (gefahr). Não
devemos confundir o conceito de Erfahrung com o de Erlebnis (traduzido por vivência), que
não tem consequências poéticas, nem “resto”. Na vivência, encontramos somente uma
experiência vivida, evento que é assistido pela consciência. O sentido de Erfahrung pressupõe
uma experiência quando o escritor experimenta esta travessia.
Na história humana, igualmente não há progresso linear e contínuo, como pressupôs,
sobretudo no século XIX, o historicismo de linhagem positivista. Se há uma experiência e
uma infância, esta não pode ser encarada como linear e contínua. A infância escapa à
temporalidade e mesmo a uma sequencialidade diacrônicas. Nesse sentido, é preciso aceitar o
risco do envolvimento com o desconhecido, com o não presumível, pois não se consegue
delimitar ou contornar todos os possíveis caminhos. Assim, a infância deixa de ser um
momento, uma etapa da vida e passa a ser uma condição de possibilidade da existência
humana. O que não significa uma desconexão total com relação com este estágio da vida
humana, mas sim com a ampliação deste sentido (KOHAN, 2003, p.244).
Ao relacionar a escrita de Guimarães Rosa com a infância, pode-se verificar a
ampliação do sentido de infância. A linguagem de Rosa também escapa, não se mostra
vinculada a nenhuma forma delimitadora, não segue uma linearidade contínua. Da mesma
forma, a infância se situa na sua escrita como um modo de rompimento daquilo que já está
fechado, um tempo cristalizado em suas sucessões de etapas progressivas. Na passagem
abaixo, Kohan descreve a infância enquanto um estado que pode ser reconhecido no modo
como Rosa o representa em suas ficções.
Ela [a infância] deixa de estar associada à debilidade, à precariedade, à inferioridade. Ela não é mais medida pela categoria do progresso, numa temporalidade contínua; ela é descontinuidade, irrupção do pensamento, do possível, do porvir. Assim, o conceito de infância proposto por Agamben tem duplo impacto na forma dominante de pensar a infância. Por um lado, ela deixa de estar necessariamente associada a crianças, e a sua visão concomitante como seres humanos pequenos, frágeis, tímidos. Por outro lado, ela passa a ser condição de rupturas, experiências de transformações e sentido das metamorfoses de qualquer ser humano, sem importar sua idade (KOHAN, 2003, p. 246).
79
O infante é aquele que não tem voz e está aprendendo a falar. Nesta visão diferenciada
da relação entre infância e linguagem, apontada por Agamben, a incapacidade da fala pode
transformar-se em habilidade. O infante então é aquele que não consegue falar tudo, por isso
possui a habilidade de não saber tudo, possibilitando a atitude de uma constante
experimentação da fala, do mundo. Abre-se um caminho para aquilo que ainda não foi
pensado ou falado, como se cada vez fosse a primeira vez. A história não se fecha, há a
possível reconstrução da vida, em suas reapresentações.
A infância se manifesta na escrita rosiana como esse instante da criação, abertura para
uma experiência diferenciadora da linguagem, uma ação tecida no desejo de vir a ser como
um jogo, uma brincadeira. A narrativa nunca se encontra acabada, limitada, pois não se diz
tudo na linguagem de Rosa, há sempre outros sentidos a serem descobertos. A criação não se
fixa nem se modela, está sempre em processo.
Desta maneira, a escrita se instaura em uma outra temporalidade, em que “o sistema
binário não se mantém mais na oposição da sincronia e da diacronia” (AGAMBEN, 2005, p.
101), ponto de coincidência que se estabelece nos momentos de passagem, como o
nascimento e a morte. Ao discorrer sobre a história e os mecanismos de fixação do tempo e da
destruição do calendário, através das máquinas do rito e do jogo, Agamben se debruça
novamente sobre a fase infantil do humano para mostrar como a “oposição significante entre
diacronia e sincronia é rompida” (p. 102). As crianças representam a descontinuidade e a
diferença entre o mundo dos vivos e dos mortos. Elas são significantes instáveis que não
pertencem nem à diacronia nem a sincronia, mas que estabelecem o tempo humano e a
história (p. 104).
Assim sendo, a infância se realiza numa passagem, em um movimento que se destina a
construir a história, ligando os tempos sincrônicos e diacrônicos. A continuidade histórica se
estabelece ao aceitar os movimentos de descontinuidade, jogando com eles e assumindo-os,
de forma a restituí-los ao passado e transmiti-los ao futuro (Idem, p. 106).
Por isso, ao se escrever a história, ao voltar-se ou tornar-se outra coisa num tempo
sucessivo, não se segue um modelo. No momento em que se coloca a infância como a
potencializadora desta passagem, não é para ser uma criança, nem sequer retroceder à própria
infância cronológica por intermediação da memória. É possibilitar um encontro com a
infância de forma intensiva, em uma escrita sem passado, presente ou futuro; um sentido que
80
una sincronia e diacronia, em uma outra perspectiva temporal (KOHAN). 1
No espaço de escrita de Guimarães Rosa, há recriação das relações entre os tempos na
narrativa, uma reelaboração do fluxo temporal, que se liga ao cotidiano pelo viés da
experiência. Para viver esta nova cotidianidade do tempo que não é puro crónos, faz-se uma
ineludível necessidade de reatualizar sua gramática. Neste aspecto, a escrita rosiana se mostra
diferenciadora, uma referência para se analisar esta infância da escrita.
2.3 – “Jardim Fechado” e a descoberta da infância na escrita de Guimarães Rosa
O conto “Jardim Fechado” faz parte do livro Ave Palavra, uma publicação póstuma da
editora José Olympio, de 1962. O próprio Rosa classificou este livro como “miscelânea”
(RONÁI, 1962 s/n). Trata-se de textos de variados gêneros, como “notas de viagem, diários,
poesias, contos flagrantes, reportagens poéticas e meditações” (Idem), fruto de seu trabalho
durante duas décadas em jornais brasileiros.
“Jardins e Riachinhos”, segundo o comentário de Rónai na nota introdutória, são cinco
crônicas que fariam parte de um indez de um livrinho. Estas histórias acabaram por ser
adicionadas ao final do livro Ave Palavra.
Para adentrar no jardim fechado, é necessária a atitude similar à do menino que
investiga um local abandonado: vai por pura descoberta, uma investigação que desvela
mistérios e que o faz adentrar outros enigmas com os quais jamais se tinha confrontado
anteriormente.
Esta passagem do conto rosiano não se restringe a um espaço e um tempo delimitados,
apesar da ideia, contida no título, de um lugar fechado. O uso deste adjetivo para o jardim de
fato evoca no leitor o desejo de investigar lugares ainda não explorados. Por esta razão, a
narrativa é encaminhada por meio de uma troca viva entre o interior e o exterior, o de dentro e
o de fora, o envolvido e o envolvente, entre se deixar ser afetado e a expressão.
A referência de que só um jardim fechado permite a exploração de um local
desconhecido pode levar à reflexão sobre o modo como a escrita rosiana se estabelece no
1 http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0184.html, acesso em 2/04/2010.
81
conto. Sabe-se que uma língua traz em si um sistema que se caracteriza tanto pela necessidade
de um hermetismo para a sua permanência, quanto às possibilidades de
recriação desta mesma língua. No conto rosiano, a escrita se revela a princípio fechada,
embasada em regras gramaticais. Mas à medida que a história se desenrola, percebe-se como
o autor se utiliza de mecanismos para dar uma abertura a outras formas de formalizar a
narrativa, criando vocábulos novos e tornando inabitual a estruturação da linguagem.
O jardim, atrás da grade. O encoberto pela vegetação que se aninha espessamente traz
um aspecto de mistério e ao mesmo tempo suscita o desejo de se vasculhar este impenetrável.
O interior convida a adentrar o universo verde, de minúsculos seres que ainda não são vistos.
Pelas palavras, chega-se até este espaço. A primeira presença materializada pela linguagem é a
dos cheiros, o olfato surgindo como sentido primeiro. Depois, o que se impregna na memória
é a mistura dos odores das várias flores que habitam o jardim (ROSA, 1994, p. 1167).
Até este momento, não se sabe quem adentra o jardim. Os leitores é que são os
primeiros intrusos em um ambiente povoado de verdor. Outras intromissões acontecem neste
lugar onde pulula a vida: “bruscas espécies” vêm pelo ar, sementes que se dissipam e se
instalam no jardim “ a daninha formosa, a meiga praga, a rastejante viçosíssima, os capins que
entrementes pululam” (idem). Envolvidos por esta atmosfera, há a impressão que esta
intromissão não é tão brusca.
Neste instante (2º parágrafo), o texto se colore de muitas expressões, que demonstram
a vida brotando debaixo da aparente tranquilidade. A linguagem se enche de tons brincantes,
ao discorrer sobre os pequenos animais que ali vivem. Tudo é movimento, sob uma falsa
calma: o jogo das palavras se estabelece para apontar as ações de cada pequeno animal. O
local está repleto de entes que passeiam: “tatuzinho que se embola”, “abelha faz e passa”,
“passarinho principiava”, “borboleta ia passando manteiga no ar”. Os animais brincam num
jogo próprio do jardim, bem caracterizado pelos vocábulos aliterantes: “Antes a vida, ávida. A
vida – o verde. Verdeja e vive até o ar, que o colibri chamusca” (ROSA, 1995, p.127).
O espaço não é restrito, pois os seres que passeiam pelo jardim dão a força da
amplitude do lugar. Do ponto de vista do ser vivente no jardim, tudo é imenso, vasto ambiente
de verde vida. Desta maneira, o jardim pode ser considerado um oceano, pois cada animal
ínfimo é destacado na paisagem, aumentando a sensação de um espaço muito maior do que o
normal, como demonstra a passagem abaixo:
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Tudo fogoso e ruiniforme: do que nas ruínas é repouso, mas sem seu selo de alguma morte. Antes a vida, ávida. A vida – o verde. Verdeja e vive até o ar, que o colibri chamusca. O mais é mágica tranquilação, mansão de mistério. Estância de doçura e de desordem. (...) O jardim – quase um oceano. A verdidão arregalava olhos e aves. As outras árvores no enorme crescer: o inconscienciocioso. (ROSA, 1995, p.1167).
O tempo também não se restringe. De fato, parece que a força vital é percebida como
algo atemporal, o mesmo instante que dura do tempo aiônico. O mundo é sempre e só este, do
momento agora. A cada instante ele está recomeçando, é um outro mundo, eternamente
refazendo-se, autogeração contínua, permanente gestação que a cada vez projeta-se para fora
de si mesma.
Diz o fragmento 52 de Heráclito que “o tempo é uma criança que brinca, joga o jogo
de oposições, o reino de uma criança” (HERÁCLITO, 2000, p. 35). O ser é uma totalidade
fragmentada em movimento, uma totalidade no tempo e este mostra-se como o brinquedo da
criança que constrói e destrói constantemente. Então, o menino surge no jardim para compor
o cenário, resignificando este tempo/espaço, como um agente que reforça a importância dos
seres minúsculos, assim como de cada instante do tempo.
“Esse tempo em que a criança reina em Heráclito mostra uma nova possibilidade do
espírito; tira a criança do tempo cronológico, que ocupa um lugar de debilidade e a situa em
outro tempo, em que ocupa o espaço máximo de poder e é soberana” (KOHAN, 2007, p.114).
No jardim, o menino é soberano entre os seres, mas sem agir de forma autoritária, sua
autoridade se delineia pela exploração sem reservas do mundo natural. É a força da
experiência infantil em relação ao tempo, desconectada da lógica sucessiva do tempo
cronológico, “mas como uma afirmação intensiva de um outro tipo de existência”(idem).
O menino em seu reino, brincando no jardim, cujo cenário está montado. Neste ponto
o diálogo com o texto acontece por meio do protagonista, pois a partir de sua chegada, as
impressões serão advindas de suas experimentações e sua perspectiva.
O menino se escondia lá, fugido da escola. Subia a uma árvore: no alto, os pensamentos passavam como o vento. Aprendia a durar quieto, ia ficando sonâmbulo (ROSA, 1995, p. 1167).
Veio acompanhando aquilo e, no fim, deu com o argolão, ao pé das bocas-de-lobo. Depois, a vez em que ia pondo mão em galho, quando, em cima de lá, se pulou um clarãozinho, alumiado com estalo, de aviso, feito o se acender de um isqueiro (Idem, p. 1168).
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Provavelmente, o jardim só estava à espera do menino imprevisto, que surge, fugindo
da escola. Interessante apontar que ele é uma criança que foge do tempo e espaço limitantes
de uma sala de aula. E no jardim, tudo aparece em um tempo suspenso no ar, como uma vida
que, embora em aparente repouso, pulula e se metamorfoseia o tempo todo. Isto é ao mesmo
tempo episódico, instantâneo, como igualmente duradouro. Pois este momento se percebe no
agora, porém, no momento seguinte, já não mais é passível de captura. A sensação é de que
aquele jardim existia desde sempre, envolto na calma. Em verdade, a sensação jamais pode
ser efetivamente apreendida: qualquer captura, apreensão, percepção da coisa faria escapar
esta força da experimentação de quem adentra um jardim em viva desordem pela primeira
vez, como se pode ler nesta passagem:
Sem gente, virara-se em matagalzinho, sílvula, pequena brenha. À expansa, nos canteiros, surgiam bruscas espécies, viajadas no ar: a daninha formosa, a meiga praga, a rastejante viçosíssima, os capins que entrementes pululam. As próprias nobres plantas, de antes, desdormiam e deslavavam-se , ameaçadas em sua fresca debilidade (ROSA, 1995, p. 1167).
Esta é uma perspectiva que se mostra com força no conto: de que o jardim está sendo
desvelado aos poucos e a narrativa toda é construída neste sentido. É por meio do contato
experimental com a narrativa que os leitores se tornam exploradores do texto/jardim. Mas esta
experiência ocorre na perspectiva da linguagem infantil – compreendendo que esta significa
uma atitude da criança frente à experiência. A linguagem infantil não é apenas uma
característica da etapa inicial da vida, “mas a condição da própria experiência” (KOHAN,
2007, p. 113).
Alguns vocábulos no conto são empregados de maneira a intensificar a ideia da
experiência na condição infantil. Como já foi salientado antes, o movimento de descoberta é
constante na trama do texto, como na composição de alguns vocábulos. Mas esta descoberta é
uma exploração de quem não tem pretensões classificatórias ou de caráter científico. É, antes,
uma atitude de quem investiga por divertimento, sem compromissos, um jogo de perder e
achar, encobrir e revelar. O uso de várias palavras com o prefixo -dês (desdormiam,
deslavavam-se, desordem, desquis, desmoitado) demonstra esta flexibilização do termo, pois
em um momento pode representar um determinado estado e, logo depois, passar para um
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estado diferente. Pode-se explorar diferentes formas de se ler o texto, assim como desvelar
muitas sensações ante o ambiente/escrita de pura descoberta.
Em um fragmento de Heráclito esta força da descoberta do texto pela experiência
infantil pode ser melhor explicitada. Ele diz: “Se não espera o inesperável, não encontrá-lo-á,
dado que é inencontrável e sem caminho”(HERÁCLITO, 2000, p. 62). Esperar o inesperável
parece uma contradição simples, clara, própria de alguém que não compreende a existência
das coisas no mundo. De fato, o fragmento é um jogo de contrastes e negações – quem
poderia esperar o que o que não se pode esperar? Talvez uma criança, que fora do tempo
linear, não sabe que não se pode esperar o que aparentemente não se pode esperar. Ou seja, à
criança é dada a possibilidade de, se não podendo crer que não se pode esperar aquilo que
todos dizem, não se pode esperar. Abre-se espaço na lógica monolítica com a qual as coisas
são apresentadas como são (KOHAN, 2003, p.148-149). Um comportamento atento para a
recriação de sentidos vários numa narrativa que brinca com as palavras, estabelecendo com
elas esta atitude de se esperar aquilo que não se pode esperar... “Não havia o quem que fosse,
mas havia o por se achar ” (ROSA, 1995, p. 1169) é o que diz o conto, no momento em que o
menino sai à procura deste inesperado no jardim. Esperar o inesperado é, desta maneira, estar
aberto a diferenciadas formas de se conhecer o mundo e de se expressar nele.
Também existe a ideia de que nada é concebido de forma definitiva na narrativa, há
um trânsito de concepções, sentidos e outras histórias com os sentidos tramados no conto.
Muitas são as expressões de que as coisas se presenciam (ou se escondem) pelo ar, em um
movimento de voo: “surgiam bruscas espécies, viajadas no ar” (...) “um pássaro, vindo de
voos” (...) [o cheiro dos] “guaimbés, apenas de tardinha saído a evolar-se” (...) “os
pensamentos passavam com o vento” (p. 1167). Verifica-se que se realça a passagem das
coisas pelo ar, inclusive a presença de um fio de “cabelo de uma menininha muito loira” (p.
1168). Este trânsito aéreo, de algo que pode se dissipar a qualquer momento pode nos remeter
à possibilidade de diálogos com outro mundos, outros espaços – e quem sabe outras histórias
em outros textos... “e [em] todos os jardins [que] se falam” (p.1169).
O menino é levado a uma exploração mais atenta do jardim, quando ouve uma voz –
firme e velha – e não sabe de onde vem. E é deste lugar da narrativa que ele se lembra do
ponto em que se perdeu em sua memória: foi o gato quem tinha o levado pela primeira vez ao
jardim. É uma espécie de epifania, daí por diante o menino começa a se recordar, e fatos que
antes pareciam não ter relação nenhuma passam a ser conectados na memória. Os mistérios
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teriam alguma outra explicação?
As lembranças todas juntas se ordenam por meio da rememoração e a dimensão
diacrônica e a sincrônica se unem também neste ponto da escrita. É um nó narrativo, que une
as pontas do conto e apresenta uma nova fase na trama da história.
O menino procura por sete vezes de onde vem a voz misteriosa e nada encontra! Era
como se o jardim estivesse encoberto para ele “se encapuzava” (p. 1169). E ninguém sabia de
nada, “só a soledade”... (p. 1169). Interessante aqui destacar esta palavra que se desdobra em
várias, como um jogo de significantes a mais da narrativa rosiana. Não é saudade, não é
solidão, é soledade, palavra que se remete à origem na forma arcaica de "soedade, soidade e
suidade" (Do lat. solitáte, «solidão», CUNHA, 1986, p. 708; 728). Usada neste contexto,
intensifica ao mesmo tempo em que desmente tanto a solidão como a saudade. E antes da
palavra soledade vem o só, que também pode ser o somente como uma intensificação da
solidão.
O menino está sozinho nesta busca, um solitário a procura do ponto em que suas
rememorações iriam chegar. Saudades daquilo que já foi, ou de algum fato que ainda não veio
a acontecer?
Porém um bem-te-vi denuncia o ser mágico que fala, diminuto homem, em larga
idade. Inicia-se um diálogo entre o menino e este pequeno ser, o Pequeno-Mindinho:
- “Tulipas! Este pássaro delator...” – curvando-se, petulou, saudava. O gato, nem passo. O menino disse: - “Como você chama?” – gago. – “Te disse: não me dê nome...” – retrucou o fantamasgo. – “ Ou então, dê-me muitos nomes: Mirlygus, Mestrim, Mistryl, Mirilygus. Sou teu amigo.”(ROSA, 1995, p. 1169).
Na passagem acima colocada, pode-se perceber a potencialidade que um nome pode
ter, em suas variações. O tom inventivo, de criação de vocábulos tão característico do estilo
rosiano, aqui se mostra bem claro nas inúmeras opções para a denominação do ser fantástico.
E esta também é uma característica do pensar infante, que está sempre numa constante
brincadeira de criar nomes para as coisas que acaba de descobrir. Neste sentido, a linguagem
infantil se aproxima da linguagem poética.
A criança, quando começa, experimenta esta luta incessante que é transformar afetos em sons compreensíveis para o outro cúmplice de suas demandas. Para o poeta, transformar a palavra esquecida e ao mesmo tempo almejada em palavra escrita, é experimentar o vazio que antecede a criação, ou seja, em passo atrás nem direção à pura expressão (SOUZA, 2009, p. 192).
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Todas as interferências do menino são perguntas, questões ao homenzinho. O menino
quer descobrir, mas sem a intenção de entender tudo o que estava se passando, ou nem mesmo
acreditar naquilo que estava sendo dito. A atividade de pensar de um infante tem esta
característica de buscar sobre os mistérios, mas sem a preocupação com uma lógica que tudo
explique. O que fica “no ar” amplia as questões do menino, podendo ter na resposta de
Mirilygus várias outras abordagens.
Muitos aspectos poderiam ser destacados deste diálogo entre o menino e Mirilygus,
mas nesta abordagem o destaque é para o sentido de potência que a infância tem, desde
sempre. Quando o menino questiona ao mago se ele era velho, a resposta revela algo que
podemos pensar como a presença da infância em todos os momentos de vida do humano.
Vista desta maneira, a infância não somente se restringe aos primeiros anos de vida, todavia é
uma atitude que perdura no tempo, como aquele instante vital, de potência. Pois se já é o que
vai ser no número de anos, o infantil já guarda em si o que homem será, mas também o
homem do porvir tem em si a condição infante da experiência.
Há mundo novo, nova criação, transformação mesmo nas coisas antigas e
aparentemente cristalizadas porque há infância, porque é possível frutificar o acontecimento
que leva consigo cada nascimento. A infância é o modo de se pensar o mundo “como se”, em
“faz-de-conta”, dos questionamentos que não necessitam ter uma resposta coerente, só
necessitam ser formulados.
Neste aspecto, existe na escrita de Guimarães Rosa, exemplificado no conto “Jardim
Fechado”, uma condição para o infantil, na medida em que sua narrativa é igualmente cheia
de questionamentos sem possíveis respostas, mas que não deixa de se perguntar, de se
investigar, de criar, no uso de palavras recriadas e na colocação de expressões que se remetem
a outras histórias, a outros mundos.
De alguma maneira, a infância na escrita de Rosa não é objeto, mas sujeito, já não é
uma forma de se refletir sobre, mas a própria reflexão. E por esta abordagem, a literatura pode
ser pensada e reinterpretada pela infância, e não tão simplesmente a infância representar um
conteúdo relevante para a literatura.
Os sentidos e os significados na narrativa são menos arbitrários, porque existe uma
possível criação a todo instante. Desta maneira, recupera-se o dom epifânico da palavra, sua
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força ambígua de desvelamento e ocultação. Retorna-se a infância, sem os olhares
nostálgicos, mas pelo “sem-sentido das coisas infantis” (LEAL, 2004, p.24).
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CAPÍTULO III - O RIACHINHO SIRIMIM: TRAVESSIAS DA I NFÂNCIA
3.1- O conceito de devir-criança de Deleuze e Guattari
Deleuze e Guattari reconhecem o tempo como virtual, uma junção heterogênea de
durações. Diferentemente, o tempo que caracteriza a historiografia positivista tende a ser
concebido como um tempo cronológico, linear e sucessivo na linha diacrônica de passado,
presente e futuro.
Por sua vez, o “devir” é uma construção do presente, não correspondendo, assim, a
uma transformação temporal que se materializasse ao longo do tempo histórico. Não se define
como passagem de uma forma a outra, mas como movimento que tensiona as formas. Deleuze
e Guattari distinguem o devir de outras noções com as quais poderia ter alguma
correspondência, como identificação, imitação, metamorfose, desenvolvimento ou produção.
(...) um devir não é uma correspondência de relações. Tampouco ele é uma semelhança, uma imitação, em última instância, uma identificação. (...) Devir não é progredir nem regredir segundo uma série (...) Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem "equivaler", nem "produzir" (...) Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos (DELEUZE, GUATTARI, 2007, p. 18).
Em Deleuze e Guattari verifica-se que o conceito de devir possui uma carga semântica
maior que outros termos tais como “mudança” ou “movimento”, por destacar os modos do
acontecer. E, mais do que isso, o devir é pensado no sentido em que o emprega Deleuze – não
como uma correspondência de relações – o que poderia relacionar a ideia de devir a uma certa
previsibilidade ou vinculação antecipável de ocorrências – mas como uma variação
imprevisível de elementos.
O sentido de “devir” não é unívoco. É usado às vezes como sinônimo de “tornar-se”;
às vezes é considerado o equivalente de ‘vir a ser’; outras vezes é empregado para designar de
um modo geral o mudar ou o mover-se (que, além disso, costumam ser expressos por meio
do uso dos substantivos correspondentes: ‘mudança’ e ‘movimento’). Nessa multiplicidade de
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significações parece haver, contudo, um núcleo significativo invariável no vocábulo ‘devir’: é
o que destaca o processo do ser, ou o ser como processo.
O enfoque cronológico mediante o qual a infância foi historicizada ignorou seu devir.
Nessa perspectiva, as crianças foram deslocadas para o mundo adulto, onde permanecer
infantil, sem assumir responsabilidades, passa a ser tido como uma característica de
incapacidade e de menor valor.
Devir criança, então, não é ter com a criança uma relação de semelhança, nem passa
pela esfera da imitação. Trata-se muito menos de regredir a uma etapa anterior do
desenvolvimento. O devir não corresponde a uma ordem classificatória ou de filiação. O devir
não é uma forma, um modo de identificação, imitação, mas produz uma zona de vizinhança,
ou de indiferenciação, de tal maneira que se torna difícil distinguir outros devires. O devir está
sempre "entre" ou "no meio". Os devires potencializam conexões com múltiplas formas e
modos de aprendizagem, que estão se desenvolvendo e que buscam cruzamentos com outras
referências, trocas de experiências, inter-relações sociais e individuais. “Enfim, devir não é
uma evolução, ao menos uma evolução por dependência ou filiação. O devir nada produz por
filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da
filiação. Ele é da ordem da aliança” (DELEUZE, GUATTARI, 2007, p. 19).
O devir não se faz por evoluções verticais, mas através de alianças, desterritorialização
e fuga das formas, fazendo com que outros territórios possam ser constituídos. O conceito de
“devir-criança” carrega uma ideia de criança que persiste no adulto como virtualidade.
Assim se mostra a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari: o que importa não é
partir nem tampouco chegar, mas colocar-se no meio, num ambiente do devir propriamente
dito. O devir não é visto como consequência de uma transformação, de uma passagem de uma
forma, de um estado ou de um lugar a outro. Ele é o próprio processo, um caminho. Quando
Deleuze e Guattari falam em devir não querem estabelecer uma linha de evolução, de
progresso ou de desenvolvimento, mas, em outro sentido, buscam os signos de uma
involução. Mas não se trata de regressão a antigas formas. O que define o devir é uma
atividade no meio molecular, denso e invisível, que subsiste entre as formas visíveis: “o devir
é involutivo, a involução é criadora (...) involuir é formar um bloco que corre seguindo sua
própria linha, entre os termos postos em jogo, e sob relações assinaláveis” (DELEUZE,
GUATTARI, 2007, p.19).
90
O conceito de devir não visa a explicar as formas. Para Deleuze e Guattari, o devir
surge, diferentemente, como uma espécie de involução, pois ele é justamente um movimento
de dissolução das formas criadas. “Preferimos então chamar de involução essa forma de
evolução que se faz entre heterogêneos, sobretudo com a condição que não se confunda
involução com regressão” (DELEUZE, GUATTARI, 2007, p.19).
A partir dos trabalhos de Deleuze e Guattari, identifica-se algo que é próprio ao devir-
criança, ou seja, algo que dá conta de sua especificidade em relação aos demais devires, como
o devir-animal e o devir-mulher, que também fazem parte do repertório desses autores. A
criança não pode ser colocada fora da realidade ou alienada, uma vez que ela realiza
experiências de pensamento com o corpo todo e não busca estados de equilíbrio solidamente
estáveis. Seus movimentos são constantes e ela está sempre aberta às novidades, às aventuras.
A criança é o que se liga nas possibilidades de trajeto e traça cartografias de expedição.
Inventa línguas para o que vê, sente e faz. Não se compõe com “permanências”, arrasta suas
viagens para outras terras. A criança se diferencia do adulto na medida em que este prefere
mapas que indicam os percursos a seguir, localizando o território onde se encontra. Por seu
turno, a criança mapeia sua viagem, prefere o viajar. Ela descobre novos lugares em sua
própria cartografia assinalando seus conhecimentos e se movendo pelo produto de encontros e
acasos, produzindo a si mesma.
No texto “O que as crianças dizem?”, Deleuze afirma: “a criança não para de dizer o
que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa
correspondente” (1997, p.73). Ora, a criança cartógrafa acessa um meio que transborda o
mundo dos objetos. Este é feito de qualidades, substâncias, potências e acontecimentos, que
configuram uma multiplicidade movente, instável, sempre longe do equilíbrio, uma espécie de
matéria fluida. O mapa que a criança traça, e que configura seu método ou programa de ação,
confunde-se então com este meio em movimento que ela explora. O mapa do movimento é por
isto mapa em movimento. Suas regras são locais e temporárias e seu meio de ação composto
de variações materiais invisíveis, imprevisíveis e inapreensíveis pelas estruturas históricas e
pela representação. Estão no meio do mundo, constituindo o fluxo que corre entre as formas,
que transborda dos objetos e das formas conhecidas.
Futuro e passado não têm muito sentido; o que conta é o devir-presente: a geografia e não a história, o meio e não o começo nem o fim, a grama que está no meio e que brota pelo meio, e não as árvores que têm um cume e raízes. Sempre a grama entre as pedras do calçamento (DELEUZE, PARNET, 1998, p 33).
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O conceito de devir deve ser pensado como o espaço do “entre”. Quem “devém” não
está à procura de um fim definido, pretendido, prefixado, ou seja, não está buscando algo,
nem sabe que “devém”, nem sabe onde vai dar. O “homem se apresenta como uma forma de
expressão dominante que pretende impor-se a toda matéria, ao passo que mulher, animal ou
molécula têm sempre um componente de fuga que se furta à sua própria formalização”
(DELEUZE, 1997, p.11).
O devir-criança se atualiza nos vários momentos e situações que povoam a vida; o
devir disponibiliza a possibilidade de deslizar, de inventar, de explorar meios e formas de
relações consigo mesmo e com os outros. A constituição da subjetividade é processual, é
fluxo, é devir; assim, os devires são múltiplos, eles se encadeiam, misturam-se uns aos outros
compondo linhas de reflexão, de invenção, bem como facilitam novos acoplamentos,
aprendizagens e subjetivações.
A criança, de acordo com Deleuze e Guattari, é um modo de potências em devir (1996,
p.26, 27, 44). A marca da criança é sua expressão por intensidades e sua aprendizagem pela
experimentação e pelo jogo. A criança realiza o encontro entre real e imaginário. O imaginário
infantil, com o qual ela se compõe o tempo todo, pode estar em diferentes sintonias, realizar
diferentes interações com outros elementos de sua vida. O que as teorias e os adultos tentam
fazer é diminuir essa potencialidade da criança, fazendo dela um projeto de adulto,
devolvendo-a sempre às compreensões únicas e verdadeiras, interpretando suas atitudes e
condutas, de acordo com referenciais determinantes de comportamento.
Um devir-criança é uma atividade cartográfica, produto das potências capazes de
desafetar e ser afetado. O devir não é imitar. Um homem não se torna criança, mas se
estabelece uma relação de afetação mútua entre ele e a criança, em que um se alimenta do
outro, proporcionando o que Deleuze denomina de evolução a-paralela: “os dois formando um
único devir, um único bloco, uma evolução a-paralela, de modo algum uma troca, mas ‘uma
confidência sem interlocutor possível’” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 11). Este encontro
não é uma troca, mas uma mescla, uma vizinhança. Não existem negociações, mas uma
conspiração, uma confidência, um segredo, uma revolução silenciosa.
A infância é estado decorrente de um nascimento, evento que desestabiliza o
cotidiano, irrompendo a ordem que regula a vida. No acontecimento da infância, as pessoas se
sentem envolvidas pelo movimento de sua passagem. Assim, a infância não está ordenada em
uma linha cronológica, até porque “infante é todo aquele que não fala tudo, não pensa tudo,
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não sabe tudo” (KOHAN, 2005, p.246) independente de sua idade. Não pensar o que todos
pensam, não falar o que todos falam, viver a infância como descontinuidade, como
descontinuidade, como devir. Ou seja, a infância vista como acontecimento.
Dessa forma, a infância pode ser pensada como início, não implicando,
necessariamente, em concebê-la como etapa inicial de um processo de crescimento rumo ao
ser adulto. O início que a infância inaugura pode ser pensado como o princípio de algo
surpreendente, algo novo, ainda não realizado. Este iniciar faz perceber que o nascimento não
é um fato único na vida de cada um, mas recorrências possíveis na vida humana. Assim
também é possível pensar em múltiplos nascimentos. Neste ponto, encontram-se natalidade e
devir. É uma imagem do devir que não representa um devir adulto, paradigmático, modelar. É,
no entanto, um sentido simbólico de um devir que não se sabe, que ainda está por vir. Uma
representação de natalidade, o nascimento para um mundo que não é conhecido. De certa
forma uma estranheza diante das coisas. Uma posição dupla de estranhar as coisas e suas
denominações.
O devir-criança surge e faz antecipar estas formas velhas, pois tem capacidade de
pular, de saltar sobre algumas histórias desagradáveis da condição humana. Vai traçando
atalhos, abrindo picadas, de forma que, neste sentido de devir, as crianças mostram os
caminhos possíveis.
Há um sentido de pura novidade na criança. Ela irrompe nos lugares ordinários,
ultrapassa o que lá estava: “instante da absoluta descontinuidade, da possibilidade enigmática
de que algo que não sabemos e que não nos pertence inaugure um novo início (...) aquilo que
irrompe toda a cronologia” (LARROSA, 1998b, p. 234). Certas características de um devir-
criança podem ser então elaboradas na medida em que, pensando nas qualidades até então
vistas, proporciona-se uma espécie de composição, um entremeado frágil e perene, mas que
pode deixar pistas importantes para seguir e perseguir.
Deleuze e Guattari dizem que as crianças vivem intensamente. Para viver
intensamente, a condição de infância indicaria que se deveria esquecer os guias; deixar de
lado os caminhos já conhecidos e percorridos. Uma criança talvez mostre que um itinerário
jamais é passível de ser percorrido uma segunda vez, por que a cada vez é um novo trajeto
que se dá. Uma criança tem a capacidade de ser levada, alavancada pelas coisas que lhe
chegam; está sempre naquilo que lhe sucede, não se afasta, não se separa, não se destaca e
distancia. Ela vai sendo conduzida por um ritmo inesperado, mas sempre compassado por
93
eventos, e ela nem se precipita, pois é a mestra da passagem, a sua medida é a própria
passagem. E é esta sua passagem feita de intensidades que constitui um mapa, composição
inusitada das velocidades dos afectos que o percorrem, composição efêmera dos afectos que o
sustentam.
O devir não se faz por subidas verticais, mas por alianças, desterritorialização e fuga
das formas, fazendo com que outros regimes e outros territórios possam vir a ser constituídos.
Mas é preciso ter cuidado em não definir o devir por aquilo que ele pode vir a criar. Devir não
pode ser confundido com metamorfose. Não é passagem de uma forma a outra, pois o que o
caracteriza não são pontos de parada ou de desaceleração, nem um termo final qualquer.
Os devires são geografia, são orientações, direções, entradas e saídas. Há um devir-mulher que não se confunde com as mulheres, com seu passado e seu futuro, e é preciso que as mulheres entrem nesse devir para sair de seu passado e de seu futuro, de sua história. Há um devir-revolucionário que não é a mesma coisa que o futuro da revolução, e que não passa inevitavelmente pelos militantes. Há um devir-filósofo que não tem nada a ver com a história da filosofia e passa, antes, por aqueles que a história da filosofia não consegue classificar. Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão "o que você está se tornando?" é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos. As núpcias são sempre contra natureza. As núpcias são o contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-feminino, homem-animal etc (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 10 e 11)
Deleuze faz uma distinção entre o devir e a memória:
O devir é uma anti-memória. Sem dúvida há uma memória molecular, mas como fator de integração a um sistema molar ou majoritário. A lembrança tem sempre uma função de reterritorialização. (...) Opõe-se desse ponto de vista um bloco de infância, ou um devir-criança, à lembrança de infância: ‘uma criança’ molecular é produzida... ‘uma’ criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos – contrariamente à criança que fomos, da qual nos lembramos ou que fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é o futuro (DELEUZE, GUATTARI, 2007, p.92).
O devir é o movimento, a linha que se opõe ao ponto da memória. Ele constitui uma
“zona de vizinhança e de indiscernibilidade” (idem, p.91). Ao citarem Virgínia Woolf, os
autores dão força ao sentido de uma infância, que não é específica, porque não opera na
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presença majoritária da memória: é um bloco de infância, formando devires entre as coisas.
A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre, intermezzo, é não
parando de devir. Novamente, em referência à escrita de Virgínia Woolf, Deleuze e Guattari
demonstram como a literatura pode traçar linhas abstratas para se opor aos pontos
cristalizados em polos dicotômicos como homem/mulher, adulto/criança. “A única maneira de
sair dos dualismos, estar entre, passar entre, intermezzo, é o que Virgínia Woolf viveu com
todas suas forças, em toda sua obra, não parando de devir” (idem, p. 69).
Ao pensar em uma vida de pura imanência, em que só há entre-tempos, entre-
momentos e “a imensidão do tempo vazio no qual vemos o acontecimento ainda por vir e já
ocorrido” (DELEUZE, 2002, p. 14), não há como delimitar as fases da vida, demarcando a
criança e o adulto. E, ainda que tais sejam consideradas como partes de uma vida, não há
contradição nessas afirmações. Mesmo Deleuze e Guattari, afirmam que “somos
segmentarizados por todos os lados e em todas as direções” (DELEUZE, GUATTARI, 1996,
p. 83). Contudo, eles ressaltam um modo mais flexível de ver e de tratar as segmentações,
demonstrando que os elementos de um segmento passam por outros segmentos, se misturam e
se combinam de diversas formas. Assim, algo se passa de um segmento a outro. Algo se passa
entre a infância e a adultez que não está nem em uma nem na outra.
Assim sendo, as fases da vida, como a infância e a maturidade, são, ao mesmo tempo,
acontecimentos passados e futuros, que segmentam o presente ao infinito, rejuvenescem e
envelhecem a um só tempo, se inventam, se reinventam e escapam ao estado de coisas.
Deslizam pela história reordenando-a, propiciam desterritorializações para seguir percursos,
em velocidades e direções variadas, que levam uma para a vizinhança da outra e as dispõem
sempre no meio de multiplicidades sinuosas, permeáveis e casuais.
Logo, nem infância nem adultez estabelecem acordos com as “noções estáticas de
essência e de ‘ser’ já–e-para-sempre constituído” (SILVA, 2003, p.5), não são “formas que se
organizam em função de uma estrutura” ou “que se desenvolvem em função de uma gênese”
(DELEUZE, PARNET, 1998, p.140), não são qualidades ou propriedades físicas que ocupam
um corpo, e não são, a bem dizer, senão forças e devires que passam por um corpo e
compõem “singularidades soltas, de nomes, sobrenomes, unhas, animais, pequenos
acontecimentos: o contrário de uma vedete” (DELEUZE, 1992, p.15).
A fim de alcançar a forma de expressão e de conteúdo da pura matéria intensa de tais
95
acontecimentos, é preciso “abrir as palavras, as frases e as proposições, abrir as qualidades, as
coisas e os objetos” (DELEUZE, 1988, p. 62), é preciso extrair da língua enunciados, é
necessário dirimir o que é evidente. Pode-se ainda dizer que infância e adultez são
constituídas tanto “por conteúdos e expressões formalizados em graus diversos, assim como
por matérias não formadas” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p.13) possibilitando que elas
escapem em várias direções.
Diante disso, quando se trata de expressar multiplicidades, os verbos no infinitivo
possuem mais valor do que os substantivos ou os adjetivos, pois não indicam substâncias,
mas ações; não demonstram identidades, mas singularidades. Assim, em vez do uso dos
substantivos infância e adultez, que remetem à interioridade dos corpos e estão subordinados
ao verbo ser, utilizam-se os verbos infanciar e adultizar, que enfatizam o que se faz e o que
perpassa na superfície, indicam devires e processos. O verbo ser fica oscilante, quando, ao
invés de dizer que alguém é adulto, usa-se o verbo adultizar... Esta maneira de se expressar
indica um “devir em si mesmo que está sempre, a um só tempo, nos esperando e nos
precedendo como uma terceira pessoa do infinitivo, uma quarta pessoa do singular”
(DELEUZE, PARNET, 1998, p. 78).
Pode-se compreender, aqui, que dizer a infância e a adultez, compará-las ou explicá-
las, não é possível, por que não há idade, identidade ou essência que abarquem suas
multiplicidades. Elas não se configuram como identidades fixas, capturáveis ou pré-
determinadas, mas fluem como novidade no mundo, se constroem, se diferenciam sempre de
si mesmas e transcendem qualquer finalidade. Nessa perspectiva, fica impossibilitada
qualquer tentativa de prever a infância e a adultez, ainda que se tenham investigado os
contextos e as condições em que tais estados são produzidos. Ser criança ou adulto se delineia
em função de uma geografia e não de uma história, ou seja, não se constitui segundo uma
forma ou uma função que a anteceda ou a dite. Qualquer forma ou função que venham a
assumir só será definida pelas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão
estabelecidas entre suas partículas e não o inverso.
Nas proposições de uma vida imanente, o que importa é o devir, o meio e não o
começo ou o fim. Então, de novo as imagens-lembrança, as lembranças de infância e as
referências às histórias de família estão sob um outro plano que não o plano do tempo crônico
que dita as verdades. Porque, nessas situações, o real implícito é confirmado por sua
continuidade e as relações temporais são localizáveis, passando por processos de sucessão
96
contínua. Referem-se, portanto, a um tempo cronológico, no qual não há lugar para rupturas
em proveito de outras relações ou potências.
As lembranças remetem ao subjetivo e ao objetivo. Diferenciam-se nesse ponto, mais
uma vez, da imagem-tempo ligada ao devir, que dissolve qualquer subjetivismo ou
objetivismo, e se situa sempre numa zona de indiscernibilidade e indeterminabilidade, onde
não se distingue mais real de imaginário, nem se sabe mais quem “devém” quem.
A infância, por sua vez, está para o tempo crônico, desde que ela se faz sempre mais
ou menos que o real, nunca igual, tornando o verdadeiro e o real não passíveis de serem
capturados e constituindo uma “imagem-cristal” que “nunca para de (ao mesmo tempo)
absorver e criar seu próprio objeto” (DELEUZE, 1990, p. 88). Desta maneira, replica a
história e sempre captura algum fragmento do passado puro, a dar-lhe visibilidade sem
conduzi-lo ao presente que ele foi e sem submetê-lo ao presente imediato para o qual ele é
passado.
É essa diagramação que dá conta de entrelaçar o visível e o enunciável da infância,
abordar uma infância universal, do mundo, da vida, de ninguém em particular, gozar uma
infância que contagia e transita livremente e, por fim, mapear as partículas infantis que se
ramificam, se esparramam por todos lados e traçam linhas variáveis e provisórias.
3.2 - Literatura menor e uma escrita da infância
A noção de literatura menor formou-se a partir das contribuições de Deleuze e
Guattari, que ampliaram o sentido de menor para além da condição de inferioridade e
desvalorização. No texto ‘Kafka: por uma literatura menor’ (1977), estes autores realizam
uma inversão do conceito “menor‟, entendendo uma literatura menor não como uma literatura
que tenha um valor diminuído, mas como uma língua de uma minoria diante de uma língua
maior, sendo que uma de suas características é um forte componente de desterritorialização.
Nesta perspectiva, em uma literatura menor, tudo é político e relaciona-se com o povo: trata-
se, assim, de tornar-se um estrangeiro em sua própria língua e encontrar na pobreza da língua
um uso criador. Uma literatura menor, portanto, está associada a um devir-minoritário,
traçando linhas de fuga para a linguagem e possibilitando a invenção de novas forças. Pensar
97
o menor como proposto aqui significa compreendê-lo como aquele que está abaixo da palavra
de ordem e que se localiza fora das imagens impostas pela maioria. Além disto, salienta-se
que não se trata de uma ideia fundamentada em um binarismo entre língua menor x língua
maior, pois, em uma concepção deleuziana, a língua menor se realiza sempre dentro da língua
maior, constituindo-se como uma estratégia geradora de tensão na língua da maioria.
Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização (idem, p. 25).
Os autores também destacam que, nas literaturas menores, tudo é político e sempre
adquire um valor coletivo: a literatura está relacionada com o povo. É escrever em uma língua
que não é a sua, ser um estrangeiro, encontrando na pobreza da língua um uso criador,
escrevendo “como um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua toca” (idem, p. 28).
Desta forma, as línguas são composições atravessadas por variações, que acontecem
de maneira rizomática e não arborescente. Elas não se caracterizam por ramificações
arrumadas hierarquicamente, elas reproduzem-se, sem um maior controle, atravessando e
sendo atravessadas por inúmeras varáveis, criando novas possibilidades. É próximo ao que
acontece às composições musicais: existe o tema e suas variações e, muitas vezes, o tema vira
a própria variação. É o que Deleuze e Guattari chamam de um cromatismo generalizado da
língua: “são línguas cromáticas, próximas a uma notação musical” (1995, p. 41).
Uma variação contínua da língua é denominada de estilo. Os diferentes estilos de uma
mesma língua são propagações rizomáticas, que vão surgindo através de várias conexões (e as
conexões são sempre acontecimentos que não podem ser previstos). O estilo não é uma
simples invenção. O estilo surge por meio de agenciamentos coletivos de enunciação por isso
não se conforma como uma simples criação individual. Eles usam Kafka e Beckett como
exemplos de autores que estiveram sempre na fronteira das línguas que usaram e que muitas
vezes eram bilíngues, sendo seu estilo resultado desta mistura linguística. A questão discutível
na abordagem linguística é a opção por atuar em um modo maior, desvalendo o cromatismo
das línguas. Como dizem Deleuze e Guattari:
A linguística ainda não abandonou uma espécie de modo maior, um tipo de escala diatônica, um estranho gosto pelas dominantes, constantes e universais. Durante este período, todas as línguas estão em variação contínua imanente:
98
nem sincronia nem diacronia, mas assincronia, cromatismo como estado variável e contínuo da língua. Por uma linguística cromática, que dê ao pragmatismo suas intensidades e valores (1995, p. 41).
Ao contrário dessa perspectiva da linguística, Deleuze e Guattari pensam na
possibilidade de um uso menor da língua, um uso de resistência e revolucionário, que faça a
língua falar de outra maneira. Fazer a língua gaguejar é produzir variações infinitas, que
fazem com que ela escape do modo maior que a aprisiona. Esta ideia fica ainda mais clara em
um ensaio de Deleuze (Gaguejou...), escrito tempos depois e publicado em Crítica e Clínica:
Não se trata de uma situação de bilinguismo ou multilinguismo. Pode-se conceber que duas línguas se misturem, com passagens incessantes de uma a outra; cada uma continua sendo um sistema homogêneo em equilíbrio, e a mistura se faz em falas. Mas não é desse modo que os grandes escritores procedem, embora Kafka seja um tcheco escrevendo em alemão e Beckett um irlandês escrevendo (com frequência) em francês, etc. eles não misturam duas línguas, nem sequer uma língua menor e uma língua maior, embora muitos deles sejam ligados a minorias como ao signo de sua vocação. O que fazem é antes inventar um uso menor da língua maior na qual se expressam inteiramente; eles minoram essa língua, como em música, onde o modo menor designa combinações dinâmicas em perpétuo desequilíbrio. São grandes à força de minorar: eles fazem a língua fugir, fazem-na deslizar numa linha de feitiçaria e não param de desequilibrá-la, de fazê-la bifurcar e variar em cada um de seus termos, segundo uma incessante modulação [...] É um estrangeiro em sua própria língua: não mistura outra língua à sua, e sim talha na sua língua uma língua estrangeira que não preexiste. (DELEUZE, 1997, p. 124-125).
Este trecho traz a imagem diferenciada da gagueira: trata-se de ser gago não na sua
fala, mas da própria linguagem, constituindo-se como um estrangeiro em sua própria língua,
traçando para a linguagem uma espécie de linha de fuga. Para ele, “devemos ser bilíngues
mesmo em uma única língua, devemos ter uma língua menor no interior de nossa língua,
devemos fazer de nossa própria língua um uso menor” (DELEUZE, 1998, p.12). Defende,
assim, um devir-minoritário, que possibilite a invenção de novas forças ou novas armas no
uso literário que autores como Kafka e Beckett fazem da língua “maior”.
A forma de pensar o menor como dizem Deleuze e Guattari implica em compreendê-lo
“como aquele que está abaixo da palavra de ordem, o que escapa à Lei, ao Significante, ao
Édipo” (TADEU, CORAZZA, ZORDAN, 2004, p. 85). Assim são menores as linhas de fuga,
que fogem das representações homogêneas, operando desterritorializações e abrindo
passagem para devires. Considerar que “o menor está do lado de fora não significa que o
99
mesmo esteja excluído, mas que se localiza fora das imagens formadas pelas maiorias,
desafiando a imposição de um só dogma, de uma imagem de verdade” (idem, p. 86). Assim, o
sentido de menor amplia-se, passa a funcionar de outros modos: se, por um lado, coloca-se
como condição de inferioridade e desvalorização, por outro, mostra-se como potência,
criação, algo que está no limiar do impossível, que se constitui como algo que está sempre
disposto a se fazer.
Quando uma língua opera em modo menor (ao minorar o uso de uma língua
estabelecida) ocorre um uso político da língua. De maneira geral, as minorações são
agenciamentos coletivos de enunciação, mesmo que sejam produtos do trabalho de um
determinado escritor, como os exemplos de Kafka e Beckett. Mas se verifica também
minorações da língua em usos coletivos feitos por determinados grupos sociais, que fazem
gaguejar a própria língua, fazendo funcionar novas possibilidades.
Ao fazer proliferar as minoridades linguísticas, transfigura-se um ato de poder. É um
jogo de poder constante, com afirmações e resistências, refluxos e contra-fluxos, O que só faz
propagar os usos da língua. Assim, os autores que o fazem reafirmam que não se trata de dois
tipos de línguas, as maiores e as menores, mas sim de dois tratamentos possíveis, de dois usos
ou de duas funções para uma mesma língua. Uso maior e uso menor da língua se opõem e, às
vezes, entram em conflito, no jogo político; mas não são excludentes. Uma língua só pode ser
maior quando está formatada em regras, mas o faz justamente para regular e tentar impedir
seus usos menores. Assim, um devir-menor da língua só é possível frente ao exercício de sua
maioridade: elas não são mutuamente excludentes.
Uma minoração da língua mostra-se por uma dupla tendência: por um lado, fazer
acontecer como um “empobrecimento” da língua, um esgotamento da forma, uma
simplificação da sintaxe; mas, por outro lado, este mesmo “empobrecimento” potencializa as
variações, as mudanças, fazendo uma distensão ao máximo destas possibilidades.
Subtrair e colocar em variação, diminuir e colocar em variação, é uma só e mesma operação. Não existe uma pobreza e uma sobrecarga que caracterizariam as línguas menores em relação a uma língua maior ou padrão; há uma sobriedade e uma variação que são como um tratamento menor da língua padrão, um devir-menor da língua maior. O problema não é o da distinção entre língua maior e língua menor, mas o de um devir. A questão não é a de reterritorializar em um dialeto ou em um patuá, mas de desterritorializar a língua maior. Os negros americanos não opõem o black ao inglês, fazem com o americano, que é sua própria língua, um black-english. (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 51).
100
Ao instaurar línguas menores, devires minoritários da língua, estratégias de resistência
e contra-poderes dentro da língua maior, que é um instrumento do poder e da dominação, faz-
se surgir o sentido do estrangeiro em sua própria língua. Segundo Deleuze e Guattari (1995),
podemos distinguir a língua maior, as línguas menores e os devires minoritários da língua
maior.
As línguas menores não existem em si: existindo apenas em relação a uma língua maior, são igualmente investimentos dessa língua para que ela se torne, ela mesma, menor. Cada um deve encontrar a língua menor, dialeto ou antes idioleto, a partir da qual tornará menor sua própria língua maior [...] É em sua própria língua que se é bilíngue ou multilíngue. Conquistar a língua maior para nela traçar línguas menores ainda desconhecidas. Servir-se da língua menor para por em fuga a língua maior. O autor menor é um estrangeiro em sua própria língua. Se é bastardo, se vive como bastardo, não é por um caráter misto ou mistura de línguas, mas antes por subtração e variação da sua, por muito ter entesado tensores em sua própria língua. (DELEUZE, GUATTARI 1995, p. 51).
Uma língua maior luta para ser modelo e para manter-se modelo. Como estado de
poder e de dominação, ela se afirma por meio da sistematização e do esquematismo. Porém,
no espaço da língua menor a situação é diferente. O devir minoritário é a potência de criação,
que se contrapõe a um estabelecido que já não pode criar. É por isso que a língua menor
precisa de línguas menores: mesmo para manter-se enquanto tal, para estar viva, ela precisa
ser atravessada pelos devires minoritários, pelos potenciais criativos. É também por esta razão
que não se pode falar em um “devir-maior”: se o majoritário é o sistema homogêneo, então
ele já o é de antemão, não pode vir a ser. Ao contrário, o minoritário por justamente não ser o
sistema homogêneo, o estabelecido, pode devir, pode vir a ser, pode criar e recriar. O devir
minoritário é, segundo Deleuze e Guattari (1995), a autonomia:
Há uma figura universal da consciência minoritária, como devir de todo o mundo, e é esse devir que é criação. Não é adquirindo a maioria que se o alcança. Essa figura é precisamente a variação contínua, como uma amplitude não cessa de transpor, por excesso e por falta, o limiar representativo do padrão majoritário. Erigindo a figura de uma consciência universal minoritária, dirigimo-nos a potências de devir que pertencem a um outro domínio, que não o do Poder e da Dominação. É a variação contínua que constitui o devir minoritário de todo o mundo, por oposição ao fato majoritário de Ninguém. O devir minoritário como figura universal da consciência é denominado autonomia. Sem dúvida não é utilizando uma língua menor como dialeto, produzindo regionalismo ou gueto que nos tornamos revolucionários; é utilizando muitos dos elementos de minoria, conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir específico autônomo, imprevisto (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 53).
101
Assim é possível “infectar” uma língua maior para fazê-la gaguejar, produzindo
devires menores da língua, línguas menores. Nesta luta de poderes, há o Poder Maiúsculo que
luta para manter-se, assim como poderes minúsculos que fogem o tempo todo, proliferando
outras possibilidades. A língua é instrumento de poder. Língua maior homogênea que opera
por palavras de ordem; línguas menores heterogêneas que gaguejam, que fazem gaguejar a
língua maior.
3.3 - Uma literatura menor: o poder da infância na escrita
Uma língua pode ser desdobrada numa literatura multiplicada, que pode tornar-se
infantil, explorando a linguagem, capturando da própria língua uma literatura menor,
salientando as tensões interiores de uma linguagem adulta. Uma literatura identificada com a
infância tem como desafio movimentar o imaginário em sua maior potência, ao mesmo tempo
em que precisa lidar com o limite do discurso.
Essa literatura menor está sempre atravessada por variações, significando a
possibilidade de invenção de novos mundos, experimentando o que ainda não foi dito. Deste
modo, uma literatura menor não segue uma linha reta que vai do conteúdo à expressão, mas
começa por enunciar e só consegue ver e conceber mais tarde – a palavra não é da ordem de
algo que se vê, mas que se inventa, que antecipa a matéria (DELEUZE, GUATTARI, 1977). A
literatura menor possibilita agarrar o mundo, não para acariciá-lo ou expulsá-lo, mas para
fazê-lo fugir (DELEUZE, GUATTARI, 1977). As coisas aparecem e desaparecem, fazendo,
para usar as palavras de Deleuze e Parnet (1998), “um sistema vazar como se fura um cano”
(p. 50).
A análise volta-se, assim, não para uma ideia de infância em pessoalidade, o que
remeteria a uma essência infantil que deva ser resgatada, descoberta ou preservada, mas para
como a literatura exprime o infantil. Por esta razão, escolheu-se um percurso que possibilita
uma visão para o que está entre a literatura e o infantil, sem construir uma relação de
hierarquia ou subordinação. Como afirma Corazza, escolher um percurso significa “uma
prática de pesquisa que nos ‘toma’, no sentido de ser para nós significativa” (CORAZZA,
2002, p. 123).
102
Ao indagar sobre o que acontece entre a literatura e o infantil, considera-se,
acompanhando Deleuze e Guattari (2007), que uma linha de devir não se define pelos pontos
que ela liga ou pelos pontos que a compõem, mas só tem um meio, sendo que o meio não é a
média, mas aceleração, velocidade absoluta. Como afirmam Tadeu, Corazza e Zordan (2004),
não há pontos, mas justo uma linha que percorre um mesmo continuum: um passo para um
lado e iremos para um ponto, um passo para o outro lado e iremos para o outro; entretanto
nunca estamos parados em um ponto. Deste modo, entre a literatura e o infantil, produz-se
uma criança molecular, salientando-se que, para Deleuze e Guattari (2007), os devires são
sempre moleculares; enquanto os organismos são formas molares e estratificadas, moleculares
são as linhas de fuga, as quais escapam às imagens homogêneas. Entre a literatura e o infantil,
dois termos que expressam um aparente dualismo, há uma comunicabilidade e
inseparabilidade, deslizamento constante de uma mesma multiplicidade.
A partir disto, como o afirmam Corazza e Tadeu (2003), do infantil só se pode afirmar
sua existência. “Ser infantil não é significar nada nem ser suscetível de descrição. O sentido
da infância se dá no ato de o infantil existir: ser infantil é saber-lhe o sentido, que é existir” (p.
119).
Na análise até agora traçada, a partir da filosofia de Deleuze e Guattari, falou-se muito
em trajetos e pontos de partida na tentativa de encontrar um fio para ir ao encontro de uma
narrativa da infância, buscando-se, assim, atravessá-la. É importante considerar que viajar e
narrar são ações entrelaçadas, a partir das quais afirma-se como fomos subjetivados e
produzimos sentidos sobre as experiências vividas. Assim, nesta narrativa, busca-se organizar
o percurso da tese, como um alargamento do olhar, em tentativas constantes de ver o Outro/o
Infante sem transformá-lo. Para tanto, enfocamos na escrita rosiana estes sentidos da infância.
Alguns caminhos alternativos surgiram no percurso da elaboração de ideias pela força das
palavras. É neste sentido que ocorreu uma aproximação entre a concepção de travessia, tema
subjacente da obra de Rosa, e o conceito de infância.
3.4 - Um riachinho, o Sirimim
O “Riachinho Sirimim”, segundo conto do adendo “Jardins e Riachinhos”, ao final do
livro póstumo Ave Palavra, de João Guimarães Rosa, é uma história singular de um pequeno
103
rio com pequenas singularidades. Sirimim aparece como personagem e linha da narração,
descrito ao mesmo tempo em que suas experiências são narradas. Em Sirimim surge
fortemente o sentido de uma generalidade em uma individualidade.
Para tal, pode-se dizer que a escrita rosiana deste conto faz uma crítica à imagem
convencional da subjetividade. O pensamento de Deleuze, em convergência com a poética de
Rosa, apresenta-se como um caminho, como uma saída, que permitem pensar a
“subjetividade” não mais como idealização ou como cristalização. Diferentemente, ela torna-
se produção ativa do ser, composição de forças, nomadismo, construção.
A escrita de Rosa é uma escrita nômade. Ele escreve como alguém que se encontra
num plano móvel, necessário aos seus projetos de fuga. Desta forma, essa é uma escrita que se
afasta de uma subjetividade criada em uma lógica racionalista. Ao percorrer o curso de
Sirimim, o narrador reformula poeticamente uma ideia de infância constituída histórica e
culturalmente, advinda de uma subjetividade infantil, como uma invenção do mundo da
criança.
De fato, o riacho surge como uma linha de fuga, uma narrativa-rio que busca
suplementar com novas palavras o esvaziamento do eu lírico, da prepotente subjetividade, até
alcançar o esfacelamento da identidade humana em contínuo devir juntamente com a
paisagem.
O rio, ao mesmo tempo em que é movente, não sai do lugar. Na sua imobilidade, se
faz nômade. Contudo, é este modo particular, este jeito próprio de ser um rio, que faz com
que, em vez de contê-lo numa forma comum de riacho, o projeta de modo nômade e
anárquico por diferentes tempos e lugares. Intenso e fugaz, ele é representado em toda a
narrativa como um personagem em movimento.
“Ele é só ali, de mais ninguém” (ROSA, 1994, 1171). No início do texto já se vê o
sentido de não pertencimento a um espaço específico, o Sirimim é um riacho e um lugar sem
maiores especificações. É uma representação revestida de forte impessoalidade, ao mesmo
tempo em que dota a escrita de sua singularidade.
Deleuze cria conceitos que entram em homologia com esta escrita rosiana. Com o
filósofo, vê-se uma alternativa às modalidades dominantes de pensar e representar a
subjetividade. Conceitos como hecceidade, impessoalidade, devir, território, rizoma, dobra,
104
linhas moleculares, linhas de fuga servem para combater o primado da fixidez, da
essencialidade, do ser.
Da mesma forma, pode-se pensar na desconstrução do sujeito criança, aquele que se
assujeitou aos moldes criados na modernidade, a fim de ser educado e formado. Esta ideia da
criança abstrata e universal tem o seu declínio, no pensamento contemporâneo, quase
definitivo e não reversível. A crítica a uma subjetividade essencialista e a uma interioridade
absoluta indica que o sujeito é despossuído de seu “eu”, isto é, do seu lugar, como centro da
identidade, estável e inabalável.
É essa ideia de infância centrada por meio da identidade e da semelhança que se
coloca em questão. A filosofia do sujeito detém os devires, regula o movimento e impõe
estabilidade através de identidades molares, pois estas “propagam as ondas do mesmo até à
extinção daquilo que não se deixa identificar” (DELEUZE, GUATTARI, 1996, p. 45-46).
(...) A vida do indivíduo é substituída por uma vida impessoal, embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece. “Homo Tantum” por quem todo mundo se compadece e que atinge a uma certa beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação, mas sim de singularização: vida de pura imanência, neutra, além do bem e do mal, já que só o sujeito que o encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em benefício da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora não se confunda com nenhum outro. Essência, singular, uma vida... (DELEUZE, 1997, p.17-18).
É importante ressaltar nesta análise o caráter de singularidade do riachinho Sirimim,
que não carrega uma caracterização pessoal, sendo, portanto, livre de uma individuação, mas
repleto de uma “vida de pura imanência”. Em Sirimim pode-se verificar, assim, uma
característica muito própria da obra rosiana: dos eventos que geram a universalidade da obra,
ao mesmo tempo em que vislumbram a singularidade de experiências comuns.
3.4.1 – A minoridade em Sirimim
O riachinho Sirimim aparece logo após o conto “Jardim Fechado”, na seleção de
textos que formam o final de Ave Palavra, chamado de “Jardins e Riachinhos”. A palavra
riacho significa um rio pequeno, um pouco mais volumoso que um regato (FERREIRA,1986,
105
p. 1508). Este sentido do menor é realçado quando o autor chama o Sirimim de riachinho, no
diminutivo.
Sirimim também é um vocábulo que naturalmente poderia estar no diminutivo.
Observa-se em várias obras de Guimarães Rosa a preferência pelo sufixo im, inclusive nos
nomes de personagens famosos como Miguilim e Diadorim. Este morfema diminutivo
coloquial é inúmeras vezes encontrado ao longo do conto “O Riachinho Sirimim”, fazendo
inclusive parte de um refrão que é repetido na narrativa.
A primeira ocorrência do refrão que reforça o caráter poético da narrativa, brincando
com este sentido do diminutivo, aparece do quarto parágrafo: “... e inavegável a um meio-
amendoim, de amor um mississipinho, tão sem fim. Ele já é o Sirimim” (ROSA, 1994, p.
1171). Ao longo da narrativa que conta/descreve o Sirimim da nascente à foz, estas inserções
quase musicais surgem como elementos que reforçam a singularidade do riachinho.
Os refrões repetidos no conto exercem a função do coro nas tragédias clássicas, como
se fossem um ator que comenta regularmente a história representada, exprimindo o caráter
poético do conto. O autor explora recursos próprios da poesia, como aliterações, ecos,
sonoridades e rimas. Em Guimarães Rosa, "a lírica e a narrativa fundem-se e confundem-se,
abolindo intencionalmente os limites existentes entre os gêneros" (BRAIT, 1990, p.140).
A seguir, mais alguns exemplos deste refrão cantado no decorrer do conto. No sétimo
parágrafo: “Sonso, o leito todo dele é um berço – é sempre assim – o Sirimim” (Idem); no
décimo parágrafo: “O próprio, primitivo Sirimim, batizado num jardim” (Idem, p.1172); no
décimo sétimo parágrafo: “o lugar onde se planta o amendoim – que vem quase à margem,
fim. Separa-se para outra horta, a da dona do encanto. Sirimim...” (Idem, p.1173); no último
parágrafo: “... toda a vida, todas as vidas, sim” (Idem). Tais inserções surgem sempre no final
dos parágrafos, em tom brincante. Repetem o sufixo “im”, fazendo eco constante ao Sirimim.
A narrativa de “O riachinho Sirimim” apresenta uma linguagem que utiliza recursos
morfológicos, sintáticos e semânticos que reproduzem bem a expressividade da linguagem
infantil. A poesia no conto tem um caráter lúdico, com inúmeras palavras no diminutivo. Nos
parágrafos encontram-se inúmeros vocábulos em tom menor, das mais diversas classes
gramaticais: grotinhas, pouquinho, lapinha, matinha, mississipinho, pocinho, biquinha,
cabritinhas, Bolinha, pequenininha, barrigudinhos, olhinho-d’água, essezinho, partezinha,
rosinha, reguinhos, açudinhos, praguinha, repolhinhos, estradinha, abandonadinha,
fundozinho, bezerrinha, Sirimimzinho. Algumas dessas palavras têm a forma diminutiva
106
reforçada, tanto morfológica quanto semanticamente. São vocábulos que já significam algo
menor, como pouco/pouquinho, pequena/pequenininha, parte/partezinha, rego/reguinho, e o
próprio Sirimimzinho, o riachinho.
Tudo parece remeter à minoridade de Sirimim, mas o tom menor, como numa música,
não tem um caráter de coisa de menor importância ou pouco qualificada. O riachinho Sirimim
ganha uma força justamente em sua minoridade, naquilo que valoriza por ser pequeno.
Ao preferir o uso das palavras no diminutivo, Rosa escreve de forma desviante, como um
modo de inscrever-se no mundo no diapasão de uma literatura menor. As condições
revolucionárias da literatura rosiana em meio ao que se considera a grande literatura ou
literatura estabelecida é o que a faz menor. Rosa, escritor erudito, poliglota e profundo
conhecedor da língua portuguesa, escreve de forma balbuciante, como um infante que está
experimentando a palavra.
Sua literatura, uma literatura menor, como diria Deleuze, não é por estar fora ou alijada,
mas por estar dentro e, de dentro, atuar diferentemente. A literatura de Rosa se faz única em
seu estilo, na maneira inventada de utilizar sua própria língua.
Em “O Riachinho Sirimim” verifica-se esta literatura menor, que é também
balbuciante. Uma literatura que se aproxima da fala infantil, cheia de indecisões, rupturas e de
novos usos para a língua. Uma literatura que procura um processo criador de várias
possibilidades, em uma realidade marcada por um pensamento dicotômico. Uma literatura que
não se afirma na essência, mas que busca tornar o múltiplo substantivo, pois pensar no
múltiplo como adjetivo é subordiná-lo “ao Um que se divide ou ao Ser que o engloba”
(DELEUZE, PARNET, 1998, p. 71).
A narrativa de Rosa então se constrói neste espaço do entre, no lugar de constante
mobilidade entre literatura e infância. O entre é o espaço da fronteira, um ponto onde não se é
nem uma coisa nem outra, mas se está entre os dois. Pensar a literatura e a infância a partir
disto significa problematizá-las justamente no que se refere a este encontro entre a estética e o
ser infantil, acompanhando seus movimentos, buscando entradas e saídas múltiplas.
3.4.2- Travessias de Sirimim
107
O conto é todo movimento, o rio que flui em seu caminho até a foz. Não existem
elementos fixos, sedentários na narrativa. Há uma mescla de descrição e narração neste
movimento que acompanha o curso do riacho, ressaltando os elementos naturais que se
confundem aos fatos do cotidiano de personagens comuns como Pedro, Joaquim, Inácio e
Maninho.
É importante destacar que esses personagens não são mostrados com um grau de
importância maior que os animais, plantas, águas e pedras no conto. Todos compõem um
mosaico que de fato quer realçar o riacho Sirimim.
No início da narrativa, o Sirimim é só um “molhado na pedra”, “fiapos
d´`água”(ROSA, 1994, 1171). Ele nasce pequeno, mas doce, pois há uma colmeia de abelhas
oropa instalada em sua nascente. É bastante forte a sensação de docilidade, assim como o uso
de palavras que reforçam a impressão de umidade deste ponto onde surge o Sirimim. O
ambiente revela um lugar propício para o surgimento de Sirimim, simples, pequeno e doce:
“O mel também mereja, daquela pedra, junto do lugar que nasce a água”; “Simples, sem-par”
(Idem).
Ao ler o conto sobre o Sirimim, não se veem unicamente as palavras, também se nota
uma pintura multissensorial, cheia de cores, sons e movimento, desenhando cuidadosamente
imagens nas quais o riachinho mesmo brinca, devagarinho, contando os bichos, as árvores, as
gentes. As gentes, nesse conto, fazem parte do universo de Sirimim. Personagens que se
confundem com o percurso do riacho, integradas ao curso das águas.
As pessoas surgem ao longo da narrativa da mesma forma que aparecem os elementos
da natureza, não havendo uma referência ou explicação mais detalhada sobre elas. No terceiro
parágrafo, Pedro surge porque é na lapinha onde nasce o Sirimim que ele caçou o tatu;
Maninho foi picado pela abelha naquele lugar onde há o enxame de abelhas e onde Inácia
coou o mel (ROSA, 1994, 1171). Os personagens não narram sua própria vida, antes se
destacam como componentes desta paisagem por onde passa o Sirimim.
Mais adiante, Pedro aparece novamente porque se especializou em plantar inhames
cujas folhas lhe servem de base para beber a água do Sirimim (quinto parágrafo). Dessa
forma, o ato de plantar inhames não visa à alimentação, mas antes se presta à alternativa de
108
substituir o “copo” como instrumento para pegar a água do riachinho.
Assim sendo, Sirimim é o protagonista, para o qual convergem todas as ações, sempre
em movimento, do conto. É no processo de travessia de Sirimim que se produz a narrativa.
A travessia de Sirimim no sentido figural, além do sentido geográfico de deslocamento
de um lugar para outro, demonstra a imagem da situação extrema de deslocamento: o local
onde o ser poético é colocado à prova, lugar de passagem, onde o mais importante não é o
início nem a chegada, mas a travessia mesma, o lugar/espaço de intervalo em que a própria
língua é uma trama que se desdobra. É nessa movência que se difundem e se compartilham as
cintilações do sentido.
O riachinho de Rosa mostra a infância no sentido simbólico da inventividade, da
radicalidade do novo. A infância que se apresenta não como fase vivida por uma criança, mas
como um desafio a ser transposto: a travessia do riacho que a recebe e que a relaciona às
experiências da linguagem. É uma travessia verbal, da infância das coisas e dos modos de
dizê-las. A ânsia infantil de apreensão e controle do sentido último da realidade – o que
resulta, paradoxalmente, no impossível humano e no reconhecimento dos limites do
conhecimento – implica a travessia.
3.4.3 - O acontecimento e o tempo aiónico em Sirimim
Guimarães Rosa preferia as narrativas curtas, optando pela terminologia “estória” para
denominar os seus escritos. Para definir este gênero, há a citação do próprio autor, na
introdução-epígrafe do livro Tutaméia, Terceiras estórias: “ A ESTÓRIA não quer ser história.
A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida
à anedota” (1994, p.519). Observa-se um tipo de narrativa curta que não quer vincular-se a
uma realidade de fundo histórico, factual. A estória faz um corte no contínuo temporal,
preservando somente os elementos essenciais à narrativa.
Paulo Rónai, no prefácio à 10ª edição de Primeiras estórias (1977, p. xxvi), afirma
que as estórias rosianas têm como núcleo um acontecimento, porém não com sentido geral de
ocorrência. As narrativas de Rosa geralmente capturam os momentos únicos, instantes de
percepção da existência na sua totalidade. Rónai entende que o autor descreve um
109
acontecimento que reflete um tempo singular em um espaço definido no cotidiano dos
personagens. " A quarta solução, adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e
processos da linguagem popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua elaborada
embeber a linguagem dos figurantes" (Idem, p.xli). Assim é composta a narrativa do conto “O
Riachinho Sirimim”.
Para melhor abordar tal conto, tomamos de empréstimo expressão de Deleuze,
segundo o qual o “acontecimento é o próprio sentido” (Deleuze, 1969, p. 34). o conceito de
acontecimento é assim abordado por Deleuze em Lógica do sentido:
O acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente porque está livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral nem particular, eventum tantum...; ou antes que não tem outro presente senão o do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado-futuro, formando o que convém chamar de contra-efetuação. Em um dos casos, é minha vida que me parece frágil demais para mim, que escapa num ponto tornado presente numa relação determinável comigo. No outro caso, sou eu que sou fraco demais para a vida, a vida é grande demais para mim, lançando por toda a parte suas singularidades, sem relação comigo nem com um momento determinável como presente, salvo com o instante impessoal que se desdobra em ainda-futuro e já-passado (Idem,177-178).
Pode-se afirmar que nas obras de Rosa o acontecimento é o ponto primordial de sua
escrita poética. A escrita rosiana está sempre em busca do Acontecimento, daquilo que não se
trata de fatos e dados dispostos em uma corrente linear. É algo que não se esgota, por ser
imaterial, incorporal e virtual. Desta forma, verifica-se que não há “um sentido fixado numa
direção única, mas um sentido que sobrevoa os acontecimentos na espera de sua efetuação”
(SILVA, p. 5).
O Sirimim é mais que uma localização, existe por si só, tudo acontece em função do
riozinho. A história se desenvolve no mesmo compasso que o Sirimim percorre seu curso,
desde a nascente até a foz. Ele se configura como um espaço que é criado narrativamente com
a força de uma impessoalidade, mas levando em si, em seu curso, variadas singularidades que
se desdobram no decorrer da narrativa. Em correspondência ao que já dito acima, na citação
de Deleuze, o Sirimim é o espaço “que não tem outro presente senão o do instante móvel que
110
o representa, sempre desdobrado em passado-futuro”. As singularidades, caracterizando-se
como anti-generalidades excluem toda relação a uma forma individual e pessoal.
“Ele é só ali, de mais ninguém”. Pode-se notar, desde o início do conto, o sentido
conferido ao Sirimim é criado numa generalidade, mas conservando uma forte relação de
identificação com o leitor. Este riacho surgido de uma porção de grotinhas, no alto de uma
pedreira, é um riacho igual a milhares, uma “singularidade anônima, nômade impessoal, pré-
individual” (DELEUZE, 1969, p. 125).
Assim, o acontecimento torna possível à linguagem dotar-se de uma poética em
constante devir, com suas cargas apreendidas, com seu potencial de fazer enunciar, com a
sedução que vai conduzindo o desejo e transmutando-o em palavra, conceito e poeticidade.
Ao percorrer o fluxo do Sirimim, os leitores navegam também no fluxo da narrativa
rosiana, devolvendo a leitura à sua correnteza, ao fluxo que faz emergir na poesia. Eis um
momento de fulguração em que o movimento poético paralisa o tempo e sua transmutação em
dobras da existência. Ao se frear o tempo, imprime-se um vigor à linguagem, capaz assim de
modular muitos outros encontros que vão surgindo sob o influxo do acaso. Desta maneira,
nasce uma linguagem por meio da qual se é capaz de tensionar tudo que está implicado no
redemoinho do acontecimento.
Trata-se de fazer renascer o riacho continuamente, toda vez que alguém abre o livro e
dispõe-se a explorar o cenário por onde flui incessantemente o Sirimim. É um movimento que
livra a escrita de uma lógica discursiva linear, inaugurando uma nova estética: a de tentar
quebrar o cristalizado, buscando-lhe as multiplicidades intensivas, aquilo que surgiu na ordem
do intempestivo.
O Sirimim surge como acontecimento, enquanto modo ou singularidade. Logo no
início do conto, o narrador contador de estórias estabelece uma relação de aproximação
singular com seus leitores: “Só a vocês eu vou contar o Riachinho Sirimim” (ROSA, 1994,
1171). É uma certa intimidade, que se intensifica quando não se usa a preposição para se
referir ao Sirimim (vou contar o Sirimim e não sobre o Sirimim). Neste sentido, o riacho que
poderia ser um regato qualquer, ganha uma singularidade no processo narrativo.
O Sirimim se coloca, portanto, em meio de um “neutro”, o lugar do Impessoal ou o
Plano que o Impessoal desdobra. O Impessoal é atravessado por um outro tempo. Este não é
mais visto como ser, como “é”, mas como “entre”, a possibilidade de percorrer o “entre”.
111
Mesmo quando houver apenas dois termos, surge a conjunção ‘e’ entre ambos, que não é mais
nem um, nem outro, nem um que se torna o outro, mas que constitui, precisamente, o
Impessoal, a multiplicidade, como passagem abaixo nos ajuda a constatar.
O que a define é o E, como alguma coisa que ocorre entre os elementos ou entre os conjuntos. E, E, E, a gagueira. Até mesmo, se há apenas dois termos, há um E entre os dois, que não é nem um nem outro, nem um que se torna o outro, mas que constitui, precisamente, a multiplicidade. Por isso é sempre possível desfazer os dualismos de dentro, traçando a linha de fuga que passa entre os dois termos ou os dois conjuntos, o estreito riacho que não pertence nem a um nem a outro, mas os leva, a ambos, em uma evolução não paralela, em um devir heterocromo. Ao menos não é dialética (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 29).
Em termos deleuzianos, pode-se dizer que este estado tem relação com o devir-
criança. O movimento do riachinho Sirimim é um modo contínuo de devir, o que importa é o
que se coloca entre nascente e foz, ou entre as múltiplas possibilidades de apreensão do
sentido de ser riacho.
Por isso, a escrita rosiana exemplificada no conto, apesar de íntima relação com o
infantil, não necessariamente faz referência a uma infância específica, ou alguma criança.
Neste caso, o personagem conceitual representado no Sirimim tem a força de recriar os
sentidos do infantil, mesmo não sendo propriamente uma criança.
Para Rosane Neves da Silva, o personagem conceitual é uma presença intrínseca ao
pensamento, uma condição de possibilidade do próprio pensamento (p.11). Como expressa
Deleuze em O que é filosofia, o personagem conceitual é uma espécie de operador para o
exercício do próprio pensamento. O personagem conceitual força o pensamento: vai em
direção às singularidades por meio das diferenças. Assim, não há um infantil pessoal, mas
singular – em Rosa, o jardim e o riacho de “Jardins e Riachinhos” funcionam como
personagens conceituais em direção à invenção do conceito de infância.
Não se trata, então, de imitar uma “criança molar”, que necessariamente chegará a
uma idade adulta, nem uma simples identificação com a criança (DELEUZE, GUATTARI,
2007, p.4-5). Esse devir-criança, linha de fuga na correnteza do Sirimim, relaciona-se com
uma involução criadora que se afasta da lógica da evolução, assim como do tempo
progressivo. Um movimento contínuo, que não cessa, mas que nunca é o mesmo, pois não
vem a se tornar alguma coisa.
Pensar na criança como devir, no devir criança, anterior a toda a forma, inclusive à forma criança. Pois o que interessa a Deleuze é o sujeito larvar, o
112
embrião que pode mais que qualquer forma, porque pode fazer o que hoje o organismo não pode mais: movimentos impossíveis (ALBUQUERQUE, 2007, p. 237).
“Nos mesmo rios entramos e não entramos, somos e não somos” (HERÁCLITO,
2000, p. 92). Recorremos a Heráclito para melhor refletirmos sobre a predileção de Rosa por
neologismos cujos significados não são fixos, mas cambiantes, conflitantes, e, desse modo,
eficazes no sentido de ampliar indefinidamente as opções de seus possíveis significados.
Opção que, conforme a entendemos, gera algo de uma permanência impossível. Nietzsche
escreve sobre o entendimento que possuía Heráclito acerca do mundo, por ele concebido
como algo que “nada mostra de permanente, nada de indestrutível, nenhum baluarte no seu
fluxo (NIETZSCHE, p.10). Assim como o rio de Heráclito, assim como o mundo de
Heráclito, no qual “entramos e não entramos, somos e não somos”, as palavras, e mais
especificamente neste caso a figura do riacho, estão em constante devir, em constante fluxo e
não possuem uma identidade fixa, um significado único e estático.
Esse curso indefinido não tem, ele próprio, momentos por mais próximos que estejam
uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ele não sobrevém nem sucede,
mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vê-se o acontecimento ainda por vir e já
ocorrido, no absoluto de uma consciência imediata (DELEUZE, 2003, p. 14).
Deleuze e Guattari explicam melhor esta relação com o termo hecceidade. As
hecceidades designam a singularidade dos acontecimentos. Assim, por exemplo, as estações,
horas, datas são hecceidades porque são dotadas de “uma individualidade perfeita à qual não
falta nada”, mesmo que não possamos defini-las nem como coisas nem como sujeitos. Sua
individualidade consiste numa determinada “relação de movimento e de repouso entre
moléculas ou partículas” que implica num determinado” poder de afetar e de ser afetado”
(DELEUZE, GUATTARI, 2007, p.50).
A hecceidade mostra um tipo de individuação bem diferente daquele de uma pessoa,
um sujeito, uma coisa ou uma substância. Ainda que os tempos sejam iguais, a individuação
de uma vida não é a mesma que a individuação do sujeito que a carrega. É o tempo Aión, o
indefinido do acontecimento, linha flutuante que só conhece velocidades e, ao mesmo tempo,
não cessa de produzir divisões. É algo que simultaneamente representa o que vai se passar e
acaba de se passar. Um tempo que se coloca no infinitivo, se opondo aos “valores
cronológicos ou cronométricos” (Idem, p. 51).
113
Liga-se ao acontecimento pela intensidade do instante (Aión). Uma hecceidade não
tem origem nem um destino, está sempre no meio. É neste sentido que os acontecimentos
“possuem uma verdade eterna e seu tempo não é nunca o presente que os efetua e os faz
existir, mas o Aion ilimitado, o Infinitivo em que eles subsistem e insistem” (Idem, p. 56).
É, portanto, um lugar-entre, um passar entre, onde não há espaço para dualismos e
contraposições, é o devir. E quando se pensa em devires, abrem-se caminhos para um tipo de
individuação muito diferente da individuação de uma pessoa, de um sujeito, ou de algo que se
identifica com a ordem do desenvolvimento, com o plano que tem a ver com as limitações e
os contornos, com o tempo cronológico.
É neste sentido que os acontecimentos “possuem uma verdade eterna e seu tempo não é nunca o presente que os efetua e os faz existir, mas o Aion ilimitado, o Infinitivo em que eles subsistem e insistem” (O que é filosofia, p. 56)... Os acontecimentos são efeitos das relações entre os corpos. Deleuze não nega a multiplicidade de sentidos de um acontecimento, mas admite a existência dos acontecimentos nas suas efetuações espaço-temporais. Não é a linguagem que os cria, mas ela que os expressa (SCHÖPKE, 2004, p.141-142).
Na escrita de Rosa é bastante marcante esta característica de um tempo em suspensão
que não é delimitado, que não começa ou não acaba, que pode ser o agora e o sempre. Por
esta razão, muitos identificam o sentido arcaico e originário na narrativa rosiana. Mas tal
sentido não está relacionado a um tempo perdido, mas a algo que pode estar em sempre
constante renovação.
Recusa da linguagem existente sabendo que é impossível escrever em uma língua reduzida à estupidez instrumental. O mundo produzido por Rosa com os destroços da linguagem existentes é poeticamente bárbaro e arcaico. A nostalgia que se pode ainda sentir de sua inteireza épica não é a de nenhuma mítica e regressiva unidade perdida, mas simplesmente a que nasce do pensamento da nossa existência que ainda não veio (NUNES, 2007, p.31).
O escrever poético de Rosa relaciona-se com o criar conceitos de Deleuze. O riachinho
Sirimim surge como personagem para pensar em outros modos de infância. Em vez de
essências cristalizadoras, um fluxo de forças que aponta para o devir. Assim, surge a
necessidade de subverter a língua, de brincar com a sintaxe e a semântica. Rosa lança na
escrita uma linha de fuga, pois procura sempre outros significados possíveis nas palavras que
114
recria. “Sirimim traspassa agosto, setembro a abril, chovido fevereiro, dezembro e tudo, flui,
flui. (...) Sirimim atravessa uma noite e um luar, muito claros, os vaga-lumes vindos, os
curiangos cantando, perto e longe, por cima do mundo inteiro” (ROSA, 1994, p.1173).
A invenção na escrita rosiana força uma atitude de experiência poética. É a tensão
gerada por um pensar a infância não mais numa escala temporal definida, sequencial e
ordenada, mas na forma de um conjunto de acontecimentos entrecruzados, confronto que nos
conduz a uma gama de questões que, por sua vez, direcionam este trajeto investigativo.
115
CAPÍTULO IV - ENTRE BARROS, BARTOLOMEU E ROSA: CAMI NHOS DA INFÂNCIA DA ESCRITA
4.1 - A Infância da Palavra em Manoel de Barros
Quando representada na linguagem poética de Manoel de Barros, a infância remete a
uma experiência diferenciada no mundo, em que o tempo cronológico não ordena a captura
das memórias de uma infância passada. As construções da linguagem brincam com o tempo
passado, com uma memória inventada. O fazer poético de Manoel de Barros joga com os
sentidos do tempo que se passou, fundindo-o com o presente, contextualizando os objetos da
natureza e fazendo que deles se irradiem novos significados.
Assim como Guimarães Rosa, Manoel de Barros compõe uma linguagem inovadora,
povoada de neologismos e, ao mesmo tempo, resgata as raízes da língua portuguesa, em busca
de uma escrita originária. As poesias são construídas no ritmo da liberdade, da inovação
linguística. O minimalismo, o lúdico, e o coloquial são aspectos bastante recorrentes em sua
obra. Ele escreve pelo exercício poético, como diz Larrosa, de fazer insólito o cotidiano e
cotidiano o insólito (2002, s/p).
Quando Manoel de Barros recria a língua, igualmente faz ressurgir um outro mundo,
muitas vezes invisível aos olhos daqueles que estão insensíveis às coisas simples e pequenas.
Para tanto, opta por elementos como ao resíduos, os fragmentos, uma poética da pequeneza.
Assim, sua escrita inverte os sentidos habitualmente conferidos a tais elementos. Manoel de
Barros constrói sua obra partindo dos refugos e dos vestígios, tal como fazem as crianças em
suas brincadeiras, valorando os restos. Brincando, as crianças fazem saltar de um “simples
pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha as mais diferentes figuras” (BENJAMIN,
1984, 69-70).
Barros valoriza em sua poesia os objetos e as coisas sem valor de mercado (como latas
e parafusos velhos, cisco, lagartixas e formigas). Ao valorizar a simplicidade, atribui-lhe
relevo, dando a entender que as pequenas coisas ganham uma dimensão maior quando
associadas à brincadeira e à invenção.
Meu desagero é de ser Fascinado por trastes. (BARROS, 2001e, p.53)
116
É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo. O ser que na sociedade é chutado como uma barata – cresce de importância para o meu olho. (BARROS, 2001d,p.27)
A criança, que geralmente não tem sua voz legitimada no mundo adulto, permeia
grande parte da obra de Manoel de Barros de Barros. Ao observar como é a lógica do mundo
adultizado, com a supervalorização de um sujeito amadurecido e forte, Manoel de Barros
verifica na linguagem infantil a possibilidade de quebrar paradigmas e inventar outras
escritas.
Só as palavras não foram castigadas com a ordem natural das coisas. As palavras continuam com os seus deslimites. (BARROS, 2001d, p.77)
Na linguagem infantil, podem ser encontrados os deslimites da palavra, que, na forma
de liberdade própria da poesia, se esgarçam para recriar a escrita. A identificação do poeta
com a infância se sustenta no fato de que ambos fazem uso da linguagem como a maneira de
experimentar não só o vivido, mas também o imaginado. A palavra recriada pela criança pode
transfigurar a realidade:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças. (BARROS, 1999, s/p.) No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio. (BARROS, 2001b, p. 15)
A língua é transgredida em sua formalidade, pois só assim se possibilita a renovação,
experimentando novas formas de sentir o mundo, como uma criança que experiencia tudo,
entre séria e lúdica, como num jogo de descobertas.
117
A infância para Barros não é uma categoria de ingenuidade ou incompetência, mas
como uma inquietude inventiva e transgressora, um estado capaz de criar uma língua menor
inserida numa língua maior, tal como o pensamento de Deleuze, já explicitado no capítulo
anterior. Dentro do pensamento deleuzeano, o estilo de Manoel de Barros fica evidente
através da menção do filósofo a Proust: “Os belos livros estão escritos em um espécie de
língua estrangeira” (DELEUZE, 1997, p. 8). A língua menor está abaixo da palavra de ordem
e se localiza fora das imposições da língua da maioria. O estilo de Barros se aproximaria
dessa língua menor dentro da língua maior, como um devir outro da língua, uma minoração
delirante da língua maior.
O poeta, ao valorizar uma escrita que não se importa com a lógica, está produzindo tal
minoração da língua, de caráter delirante. Dessa forma se afasta do pensamento racionalizante
- característico do adulto. A poesia de Barros, então, presta mais atenção à fala infantil, já que
a criança tem uma habilidade de segmentar, lacunarizar e reinventar a linguagem.
A racionalidade própria do adulto, via de regra apoiada sobre um discurso de verdades
incontestáveis, força a desvalorização da imaginação em contraposição à razão. Jobim &
Souza (1994, p. 89) afirmam que “a criança emprega suas mágicas usando metamorfoses
múltiplas, Só ela dispõe tão bem da capacidade de estabelecer semelhanças. Esse dom a
separa dos adultos, cuja imaginação se encontra tão bem adaptada à realidade”. Desta forma,
o mundo adulto força a perda do potencial criador que tem a palavra. Faz-se, então,
necessário, reinventar uma linguagem ou resgatar algo que nela está perdido. Jobim entende
que a linguagem infantil é expressão crítica da modernidade, vendo a infância como caminho
para a recuperação da pura expressão, no contexto de uma sociedade capitalista que tudo
cristaliza. Nesse contexto, a linguagem e a atitude infantil ameaçam as convenções validadas
pelos adultos.
Manoel de Barros viola a língua padrão, a norma culta, para compor poesia com o
modo de falar da criança, articulando oralidade e escrita. Em Poeminhas pescados de uma
fala de João (2001c, s/p.), o eu lírico é a voz de uma criança que não aprendeu a conjugar os
verbos irregulares e fala por onomatopéias: “Nain remou de uma piranha. Ele pegou um pau,
pum!, na parede do jacaré... Veio Mariapreta fazeu três araçás pra mim. Meu bolso teve um
sol com passarinhos... Você viu um passarinho abrido naquela casa que ele veio comer na
minha mão?”
118
Manoel de Barros toma como matéria de poesia aqueles aspectos característicos da
escrita infantil que professores e estudiosos da língua consideram falhos ou incorretos. É o
reconhecimento de que as palavras, na escrita infantil, não é apenas um instrumento de
comunicação, mas também um campo de exploração, um jogo com as palavras, em constante
experimentação. É bastante comum à infância os jogos de linguagem em que esta é
empregada para além de seus usos codificados e estabelecidos. A linguagem da criança torna-
se, dessa forma, uma referência para se considerar a não arbitrariedade do signo lingüístico. É
palavra sobre palavra, um circuito lúdico interno ao sistema lingüístico.
Para Manoel de Barros de Barros, naquilo que o adulto considera desrazão, absurdo e
insensatez, é que se pode encontrar a poesia. O eu lírico do poema abaixo rememora sua
infância, mostrando nas brincadeiras de que participava a possibilidade de imaginação e
criação.
Eras Antes a gente falava: faz de conta que este sapo é pedra. E o sapo eras. Faz de conta que o menino é um tatu. E o menino eras um tatu. A gente agora parou de fazer comunhão de pessoas com bicho, de entes com coisas. A gente hoje faz imagens. Tipo assim: Encostado na Porta da Tarde estava um caramujo. Estavas um caramujo – disse o menino. Porque a Tarde é oca e não pode ter porta. A porta eras. Então é tudo faz de conta como antes? (BARROS, 2001a, s/p.)
Ao ler estas linhas da poesia de Barros, verifica-se que já é tarde demais para se
resgatar as vivências do menino que recriava o mundo pelo “faz-de-conta”. Mas, de fato, ao
reverter a ordem temporal e jogar com os sentidos da palavra “eras”, o eu poético recupera,
através da linguagem, a possibilidade de renovar a infância, cada vez que o leitor desliza seu
olhar por suas (de Barros) linhas poéticas.
O mundo se recria transfeito, transfigurado numa linguagem ludicamente poética. A
escrita também se reinventa em contato com a realidade em devir. Ela é o ritmo da ludicidade
do ser em devir, como o sugere a passagem abaixo:
Eterno Retorno do Infantil que produz a novidade e a diferença, o Ser do
119
devir-criança é um sistema do múltiplo, que não se detém nunca no jogo de sua própria proliferação, e que é unívoco, não no sentido da unidade platônica, mas porque, no jogo ideal do acaso, é Ser jogado todo de uma vez (TADEU, CORAZZA, 2003, p. 94).
As mudanças surgem na poesia em que o brincar infantil transforma as coisas ínfimas
e inúteis da natureza em linguagem poética da reinvenção. O resultado é um texto que registra
a interpenetração das propriedades naturais. Desse modo, árvores, animais, pedras comungam
com os seres humanos, a vida se potencializa na diversidade da natureza. Ao entrar em
contato com a poesia de Manoel de Barros ressurgem os desejos de “rachar o vento”, de
“entrar dentro de um inseto”, de “aprender o idioma das árvores”, de ter um “bolso cheio de
sol com passarinhos”.
Uso a palavra para compor meus silêncios Não gosto das palavras fatigadas de informar ... Queria que a minha voz tivesse um formato de concha. Porque não sou da informática: eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios (BARROS, 2003, O apanhador de desperdícios). 2
Não é somente um exemplo de nostalgia ou de saudades da infância, mas do
entendimento de que as palavras podem reinventar uma outra infância, por meio dos silêncios
que se estabelecem entre as linhas poéticas. Ao falar que os “cheiros de infância”
representam um dos sedimentos das palavras, Manoel de Barros mostra os vestígios da
criança que se conservam no adulto:
Remexo com um pedacinho de arame nas minhas/ memórias fósseis./ Tem por lá um menino a brincar no terreiro/ entre conchas, osso de arara, sabugos, asas de caçarolas, etc./(...) / O menino também puxava, nos becos de sua aldeia, por um barbante sujo, umas latas tristes./ (...) O menino hoje é um homem douto que trata com/ física quântica./ Mas tem nostalgia das latas./ Tem saudades de puxar por um barbante sujo/ umas latas tristes.(...) Aos parentes que ficaram na aldeia esse homem/ encomendou uma árvore torta.../ Para caber nos seus passarinhos./ De tarde os passarinhos fazem árvore nele (BARROS, 2001b, p. 47).
2
As referências são indicadas pelo nome do poema, pois a obra é composta por folhas soltas dentro de
caixas.
120
O poema vem mostrar que a vida humana não se desenvolve em uma temporalidade
em uma linha reta, mas em um entrecruzamento de tempos. Haverá sempre uma sombra da
infância, das brincadeiras de criança nos atos dos adultos. É uma saudade que não se detém no
passado, mas que cria a partir desses vestígios do infantil.
4.1.1. Memórias inventadas: sendas para os achadouros da infância
Em três datas distintas — 2003, 2006 e 2008 — Manoel de Barros publicou uma
trilogia cujos volumes se intitulam respectivamente A Infância, A Segunda Infância e A
Terceira Infância. Em 2010, volta a publicar o livro Menino do Mato, em que retoma o tema
da infância.
A trilogia Memórias inventadas, publicada pela editora Planeta, vem dentro de uma
caixinha em forma de presente, onde os textos são ilustrados por iluminuras feitas pela filha
do poeta, Martha de Barros. As poesias reinventam a infância do autor, carregada de lirismo,
levando à descoberta da poesia, dos animais e da sexualidade e provando que um quintal é
maior que o universo. As três obras são prefaciadas pelo texto “Manoel por Manoel”, em que
o autor se autodefine em sua função de poeta. Menino do Mato também é prefaciado por esse
mesmo texto, mas é publicado pela editora Leya, e no formato tradicional do livro.
Por sua vez, o título Memórias Inventadas lança uma indagação causada por uma certa
estranheza: se são memórias, como podem ser inventadas? A invenção é da ordem do novo,
daquilo que ainda não aconteceu. E as memórias relacionam-se com lembranças do que, de
alguma forma e com alguns limites, já existiu. É que no plano da infância as coisas acontecem
de outra maneira: tudo pode ser inventado. A frase de Barros, “noventa por cento do que
escrevo é invenção; só dez por cento é mentira” (BARROS, 2003, p. 45), reforça o valor da
invenção na criação do novo. E como nada escapa a esta potência criativa, até as memórias
são inventadas. Uma escrita do que foi experimentado no passado pode ser desdobrada em
múltiplos sentidos.
O livro Memórias inventadas. A infância mostra uma outra concepção da memória,
que não se constrói pelas rememorações do real. Geralmente a memória é considerada como
“algo da ordem do não-inventado, da desinvenção. Ao contrário, a invenção parece indicar
121
algo novo, que se inicia, que começa, portanto impossível de ser lembrado... A memória e a
invenção andariam em direções contrárias, desentendidas” (KOHAN, 2007, p. 56). E é
justamente nesta contradição que Manoel de Barros cria a sua poesia, voltando-se para o
passado e reinventando o tempo da infância. A linguagem poética é o diapasão que regula e
afina esse processo polifônico que constrói, com os cacos da infância, os novos sentidos
escondidos nas dobras das palavras.
Nestas contradições, são abertas possibilidades de se repensar o processo de criação. É
algo que traduz um corte com a ordem contínua e sucessiva do tempo. Uma memória
inventada está numa dimensão outra, que não comporta nem passado, nem presente, mas um
instante contínuo de experimentação, algo muito próprio do imaginário infantil.
A maioria das histórias contadas pelos adultos sobre a sua infância não representa o
mundo infantil em toda sua potência criadora. As infâncias, tais quais narradas em muitos
textos biográficos, não conseguem traduzir a experiência do universo infantil. A poesia de
Manoel de Barros não sofre dessa limitação. Na imaginação do autor, a infância é descrita
como um poema, ele brinca com as palavras, criando imagens inusitadas em suas
composições. Ao inventar suas memórias, o poeta apresenta uma forma outra de se
experimentar a infância, que não é referencial nem verificável, mas singular em suas
vivências criadoras.
A intimidade com os objetos de brincadeira infantil, a simbiose com os elementos
naturais fazem do poeta um artesão que, na correnteza da linguagem, assinala sua
singularidade. Este diferencial instaura relações novas com o mundo ao redor. As coisas
pequenas e ínfimas são valoradas, ganhando espaço na poética de Barros.
Manoel de Barros escreve um faz-de-conta da infância, rompendo com os clichês e os
valores cristalizados, uma escrita em expansão, traçando linhas em que passado e presente se
cruzam. O futuro então aparece como possibilidade nas recordações e nas vozes silenciadas
pelo tempo.
Ao compreender o texto poético de Manoel de Barros como uma infância da escrita,
abrem-se vias, por meio da linguagem, para que muitas experiências possam ser
experimentadas. As memórias afetivas seriam grafadas por um registro inaugural e originário
de sensações que talvez nunca poderiam ser vivenciadas no período da infância. As memórias
122
podem então ser criadas, no reino da “invencionática”. Um desenho novo se delineia, como as
lembranças de uma infância que jamais existiu, como aquelas evocadas por Barthes:
Do passado é minha infância que mais me fascina; somente ela , quando a olho, não me traz o pesar do tempo abolido. Pois não é o irreversível que nela descubro, é o irredutível: tudo o que ainda está em mim, por acessos; na criança, leio a corpo descoberto o avesso negro de mim mesmo, o tédio, a vulnerabilidade, a aptidão dos desesperos (felizmente plurais), a emoção interna, cortada, para sua infelicidade, de toda expressão (BARTHES, 2002, p.34).
Na poesia de Manoel de Barros, também se verifica esse irredutível de que Barthes
fala. O que importa são os caminhos que se abrem, acessando pela palavra poética uma
infância. No quintal em que se brincou na infância, o poeta revelou os “achadouros”, buracos
que os holandeses faziam para esconder suas moedas de ouro. A partir desta história que uma
descendente de escravos contava, Barros reflete sobre os “achadouros de infância”. Ao cavar
buracos nos quintais das memórias, se podem construir caminhos até a redescoberta de uma
infância, como no poema “Achadouros” (BARROS, 2003).
O quintal é o lugar onde as coisas ganham importância pelo grau de intimidade que se
tem com elas. Retorna-se a um tempo através das lembranças que se valorizam pela carga
emotiva estabelecida entre passado e presente. Assim percebida, a infância não se reduz a um
tempo pessoal e imutável, podendo funcionar como um laboratório para repensar e ampliar
sensibilidades e virtualidades não desenvolvidas, conforme postulação de Konder:
Todo passado está carregado de possibilidades de futuro que se perderam e que teriam (ou têm?) para nós uma significação decisiva: Benjamin sublinhava a importância desse “futuro do pretérito” na rememoração histórica.(...). É aí que o tema da infância assumia um papel fundamental: cada um de nós tem a possibilidade de rememorar sua própria infância, que é uma história que lhe é íntima, que pode lhe abrir segredos preciosos, que pode funcionar como um centro especial de treinamento para o sujeito desenvolver sua sensibilidade e sua capacidade de resgatar significações obscurecidas que ficaram no passado (KONDER, 1988, p. 55-56).
Para Manoel de Barros, a infância é lugar privilegiado. Na sua escrita, há sempre um
futuro do pretérito, algo que se passou, mas que pode ser continuamente recriado. O empenho
do eu poético ocorre no sentido de buscar os achadouros, abrindo caminhos em direção à
infância, não diferentemente do que faz o narrador do romance Dom Casmurro cujo evidente
fim é reencontrar o tempo antigo e redescobrir o frescor da juventude, ou, nas palavras dele,
123
“atar as duas pontas de vida, e restaurar a velhice na adolescência” (MACHADO DE ASSIS,
1959, p.730). Em Barros, lemos:“ Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu
quintal vestígios dos meninos que fomos” (BARROS, 2003).
O poeta não quer somente buscar o menino que ele foi, mas uma infância propícia à
criação. Um reencontro constante com essa infância que torne os leitores uns “apanhadores de
desperdícios”. É a maneira de resgatar a criança que imagina, inventa, valoriza os
“inutensílios” e, por vezes, transgride a ordem adulta.
De acordo com o Dicionário Michaellis da Língua Portuguesa, há as seguintes
definições para a palavra senda:
1 Caminho desviado, estreito, para pedestres; atalho, vereda. 2 O caminho que se segue na vida, quer praticando a virtude quer o vício. 3 Hábito, praxe, rotina. 4 Modo de proceder. 5 Via moral.
Tendo tal sentido em vista, também aqui se abrem sendas para descobrir uma infância
da escrita na obra de Guimarães Rosa. São atalhos ou veredas que se estendem a uma poética
infantil, percurso mediado pela “invencionática” de Manoel de Barros. E igualmente abre-se a
possibilidade de pensar outras formas de proceder literariamente.
4.1.1.1 - Senda primeira: Comunhão
No prefácio incluído nas últimas quatro obras de Barros, o autor tenta se definir,
reportando ao modo de ser menino. Eis o que diz o autor:
Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um
124
orvalho e sua aranha,de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores (BARROS, 2003, Manoel de Barros por Manoel de Barros).
A infância é descrita como o tempo das descobertas, do contato e comunhão com a
natureza, espaço e tempo em que tudo se nos afigura uno, e o desprezível passa a ter valor, a
merecer destaque. Manoel de Barros remexe com as possibilidades múltiplas do escrever, ou
seja, demonstra o quanto criativo e libertador pode ser o trabalho poético. Essa possibilidade
resulta sobretudo da comunhão, intermediada pela natureza, entre a infância e a escrita
poética.
Na infância, há uma maior receptividade das coisas que são naturais, há mais
comunhão com seres e linguagens primevas, pois a criança experimenta sempre, como se
fosse a primeira vez, cada emoção, cada contato com a terra, com as árvores, com os bichos,
enfim, com o mundo.
Conforme defende Linhares, na poética de Barros há uma interação do eu-atual e do
eu-do-passado: “Ele busca fazer a comunhão entre a criança que foi com o adulto que é, mas
sem conseguir desvencilhar-se da visão que nesse um conjugam-se dois” (2006, p.65). Assim,
não há espaço para a comparação entre ser adulto e criança, pois pela escrita poética, instaura-
se uma comunhão entre ambos, ou seja, entre tempos ou fases da vida que, via de regra, são
considerados excludentes entre si.
Existe também uma relação íntima entre o menino e a natureza. O limite entre os dois
é quase indistinguível: a criança se integra à natureza, torna-se natureza, comunga com ela.
Isso se torna possível porque, ao compor seu mundo de brincadeiras, a criança nulifica os
limites entre interioridade e exterioridade, dentro e fora, natureza e cultura. Além disso, o
espaço na natureza é propício ao brincar e ao diluir fronteiras: nele, há comunhão da criança
com as coisas, bichos e plantas. Pode-se, ademais, entender o quintal da infância representada
125
na poética de Barros como o espaço em que, criativas, as crianças constroem um mundo sem
a intervenção, a limitação ou o direcionamento de adultos.
Esta senda da comunhão que Manoel de Barros abre para a compreensão da escrita
poética infantil, leva em direção ao Sirimim rosiano. A comunhão para a qual aponta Barros
ocorre pela retomada de uma singularidade que, através das palavras, se transmuta na criança
e na fusão dos elementos da natureza. Tudo germina, cresce, transforma-se com uma escrita
poética. Trata-se de uma poesia/vida que promove, na escrita da infância, um encontro cuja
dimensão está fora do tempo sucessivo e linear.
Em toda a narrativa de “Recados do Sirimim”, de Guimarães Rosa, percebe-se a
comunhão entre poesia, natureza e o modo infantil de agir/imaginar/escrever infantil.
Encontram-se muitos exemplos que materializam sensações que podem ser experimentadas
pelo leitor quando este percorre o riacho Sirimim. Por meio da escrita de Rosa, é possível se
reportar à infância nas imagens criadas, ou desejá-la como uma infância que poderia ser
vivida por qualquer pessoa. Assim, experimentando sensações e compartilhando imagens,
pode-se viver de forma inaudita uma infância pessoal e peculiar, mas ao mesmo tempo bem
universal. As experiências ou vivências forjadas na imaginação propiciam sensações que nos
aproximam de realidades possíveis que se presentificam através do discurso.
Em “Recados do Sirimim” surge o narrador em primeira pessoa. Parece um
aprofundamento gradual que se estabelece na relação entre o narrador e o leitor. Aos poucos,
conforme se institui um maior contato com a narrativa rosiana, tece-se uma intimidade do
leitor com a história do riachinho. “Nosso riachinho vai, vai. Dou a vocês notícias dele, nesse
tempo de amores. De lá, o mundo é lúcil, transparente. É julho” (ROSA, 1994, 1175).
Os elementos da natureza se conjugam nesta paisagem invernal, compondo um
mosaico sutil que sempre tem como personagem principal o próprio Sirimim. As “raízes
crianceiras” citadas por Barros aparecem aqui em cada detalhe do cenário que vai se
concretizando, como a neblina que se torna fiapos. “Com o sol, ela já dá de se esfiapando,
subindo – os penachos de neblina” (ibidem).
Tudo está em comunhão na paisagem de Sirimim: as pedras, a neblina, as árvores, os
animais, as pessoas. Neste sentido, as coisas de importância menor são ressaltadas na
composição da natureza que circunda o riachinho. É assim que ocorre na gradação em que é
apresentado o Sirimim, pois na sequência dos três contos (“Riachinho Sirimim”, ‘Recados do
126
Sirimim” e “Mais meu Sirimim”) aos poucos são inseridos os personagens humanos. O riacho
é o eixo principal, em torno dele, em total comunhão, estão outros elementos da natureza e os
seres humanos, sem que haja uma relevância maior para qualquer um desses componentes.
Como Manoel de Barros, Rosa humaniza as coisas e os humanos, colocando-os num mesmo
patamar.
Em “Recados do Sirimim”, a escrita de Rosa revela a comunhão entre os seres, entre
as possibilidades. O sujeito é dissolvido na paisagem, não aparece nem como agente, nem
como observador. Para o autor, o importante não está em grandes, mas em pequenos
acontecimentos da vida. Descobre nos eventos locais uma valoração da simplicidade do viver.
Essa atitude poética só acontece quando a escrita se constrói a partir de uma visão infantil, em
homologia com estas palavras de Barros: “Porque se a gente fala a partir de ser criança, a
gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e
sua árvore” (BARROS, 2003, Manoel de Barros por Manoel de Barros).
Não é necessário vivenciar ou experimentar diretamente esta realidade para se
identificar com a experiência de uma infância no Sirimim. Na verdade, experimenta-se, por
meio da poesia, uma vivência do Outro, uma imaginação do Outro, da criação ou recriação da
mente que “vê, revê e transvê” (BARROS, 2000, p. 75). Nesse sentido, citando Lopes (2007,
p. 87), o mundo e a paisagem “implodem o sujeito” através da escolha de termos que
evidenciam a pluralidade que integra a formação de uma singularidade: a comunhão, senda
aberta para a compreensão da infância da escrita em Rosa, ocorre por uma distinção não de
uma coisa fora de si mesma, mas distinta em si.
As palavras em Rosa estão povoadas de sensações, em uma comunhão sinestésica.
Indistintos sentimentos podem brotar de expressões como “Pedro raiava feliz”, “o calor estava
pesando forte”, “barulho de nino de água” (ROSA, 1994, p. 1175- 1176). Nesta comunhão de
sensações, é muito forte a impressão de materialização do que parece impalpável, o que é
próprio do infantil:
Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento – mas o rabo do vento escorregava muito e eu não conseguia pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. (BARROS, 2008, Soberania).
127
A necessidade de concretude deste ato é concomitante ao instante em que o menino
tenta agarrar algo inconsistente. E a escrita poética deriva mesmo destas tentativas de captar
aquilo que é impalpável, difícil de ser definido concreta e semanticamente. É o ritmo fluido da
poesia.
Os personagens misturam-se ao ambiente que os cercam. A vivência e a comunhão
entre os seres parecem completas, simbióticas, um amálgama. Como já visto anteriormente,
não são priorizadas as narrativas dos personagens habitantes das margens do Sirimim. Não se
conta uma história sobre a vida deles. O que ganha relevância é justamente essa comunhão
das pessoas com os elementos naturais. São os olhos d’água no terreiro de Joaquim, o
formigueiro na casa de Antonio, as plantações de Pedro, as rãs de Irene (ROSA, 1994, p.
1175-1177). Ao mostrar as histórias do Sirimim, Rosa logra também a comunhão entre os
personagens e a natureza ao redor. Ao capturar o riacho em seu curso, o autor não quer
somente assemelhar pessoas à natureza, mas transmutá-las na própria natureza.
Manoel de Barros, em entrevista à Martha Barros, diz que
(...) é preciso evitar o grave perigo de uma degustação contemplativa dessa natureza, sem a menor comunhão do ente com o ser. Há o perigo de se cair no superficial fotográfico, na pura cópia, sem aquela surda transfiguração epifânica. A simples enumeração de bichos, plantas (jacarés, carandá, seriema, etc.) não transmitem a essência da natureza, senão que apenas a sua aparência. Aos poetas é reservado transmitir a essência. Vem daí que é preciso humanizar de você a natureza e depois transfazê-la em versos” (BARROS, 1996, p.315).
É pela escrita poética que Barros, assim como Rosa, constrói uma singularidade, numa
série de aproximações e distanciamentos, nas coisas em si. Assim, costura seu processo de
identificação juntando permanência e singularidade, corporiedade e incorpóreo. Demonstra o
ser no mundo e com o mundo, de forma que a essência se realiza na existência humana, não
podendo ser entendido como tal, se fossem furtadas suas experiências de interação e
descobertas com a natureza, com as pessoas, com os seres naturais. Assim sendo, nessas
interações e descobertas, estão potencializadas as motivações que o conduzem ao poético.
4.1.1.2 - Segunda senda: Canto inaugural
O sentido da poética da Manoel de Barros reconhece em seus temas variações do
128
mesmo, como o encantamento da palavra inaugural: “Transforma-se em poeta de um só tema:
a palavra a ser inventada e, com ela, toda a realidade” (CASTRO, 1991, p.12). O poeta busca
nas palavras, nomeando o ser nas coisas que brotam e emergem, conferindo-lhes presença na
vida do poema. A palavra é original e originante. Manoel de Barros, encantador de palavras,
comunga da visão a partir do horizonte das coisas, pois “o que desabre o ser é ver e ver-se”
(BARROS, 2003, p.23).
Manoel de Barros cria o instante poético de uma infância que perdura na memória do
adulto. O que não é, porém, uma simples recordação do passado infantil. O processo de
revitalização da infância se estende além da rememoração, pois se vincula a um modo de
constante criação e transformação. Recuperam-se os instantes vividos da infância pela
imaginação criativa de uma memória poética, como nos sugere a seguinte passagem:
Meditar na origem da existência humana, recordar o tempo de infância significa poetizar a gênese da vida [...] A origem não é o início, mas o princípio dinâmico da vida, que assegura a sua razão de ser [...] O mundo da existência renasce porque mergulha as suas raízes no universo da infância (MELO E SOUZA apud CASTRO, p. 114).
O movimento poético de Barros, então, é o de “escovar as palavras”, para que se
possam escutar os “clamores antigos” (BARROS, 2003, Escova). São as palavras-concha,
lugares que se desdobram em inúmeras possibilidades para inaugurar sentidos outros.
A palavra poética de uma infância resgatada nas grutas pela memória desconhece a
disciplina da ordem estabelecida pelo mundo adulto. Assim, também desconhece o sentido
arbitrado para o que é útil e o que não é. A poesia de Barros se estabelece pelos “nomes que
fertilizam a linguagem”, abrindo caminhos de “volta aos primórdios”, para “o início dos
cantos do homem” (BARROS, 2006, Nomes). Descarta as coisas úteis, redescobrindo funções
poéticas nas inutilidades. Todos os nomes se unem na direção da gênese da poesia. Palavra,
terra, infância, inutilidades, memória – elementos que surgem encantados pela magia da
poesia que fala dos começos.
Barros se satisfaz em brincar com as palavras, virá-las e revirá-las em seus usos e
sentidos. Usa, assim, “os fósseis linguísticos que acha para renovar sua poesia” (Idem,
Aprendimentos). A natureza não é somente um lugar para a contemplação, mas para a
formação das palavras:
129
Fomos formados no mato – as palavras e eu. O que de terra a palavra se acrescentasse, a gente se acrescentava de terra. O que de água a gente se encharcasse, a palavra se encharcava de água. Porque íamos crescendo de em par. Se a gente recebesse oralidades de pássaros, as palavras receberiam oralidades de pássaros. Conforme a gente recebesse formatos de natureza, as palavras incorporavam as formas da natureza (BARROS, 2008, Formação).
Assim como Barros, Rosa não busca na natureza uma simples enumeração de bichos e
plantas, mas resgata a essência das coisas simples, procurando a “semente da voz, a metáfora”
(ibidem). “A poesia nasce de modificações das realidades linguísticas” (ROSA, 1973, s/p).
Conforme Coutinho, na linguagem poética, “a palavra não é um meio, mas um fim em
si mesmo, ela deve transcender o conceito sugerindo muito mais do que basicamente
significa” (1983, p.204). A escrita de Rosa pondera sobre a palavra ou construção da língua
utilizadas por ele, ao recobrar a expressividade originária das palavras que, desgastadas com o
uso ao entrarem no âmbito da linguagem corrente, perderam seus significados poéticos e
passaram a ser puros significados conceituais.
Ao compor a sua escrita, Rosa não cria uma língua nova, mas faz, a partir da
afirmação de Coutinho, “explorar as possibilidades latentes dentro do sistema da língua com
que está lidando e conferir existência concreta àquilo que existia até então como algo
meramente em potencial” (COUTINHO, 1983, 205). Guimarães Rosa, ao revitalizar a
linguagem, não somente doou novos significados às palavras da língua portuguesa, mas
também construiu novos significados para a realidade, transformando a maneira de se pensar
as coisas no mundo.
(...) se alguém altera a organização habitual dos vocábulos e rompe com a estrutura sintática da sentença, estará inevitavelmente transformando o mundo percebido através dela (...) Para Guimarães Rosa, é mediante a criação da linguagem que o poeta renova o mundo. E, deste modo, todo verdadeiro poeta é também revolucionário, porque, ao libertar a língua da estrutura tradicional, estará automaticamente libertando o homem de suas categorias arcaicas de pensamento e o estará induzindo a enxergar a nova realidade de seu tempo (COUTINHO, p. 207-8).
Guimarães Rosa afirma, em entrevista, que seu método “implica na utilização de cada
palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem
cotidiana e reduzi-la a seu sentido original” (LORENZ, 1973, p.81). Por isso, ele prefere a
língua falada no Brasil, pois não está tão saturada, como o português falado na Europa.
130
A escrita de Rosa, então, está sempre procurando uma espécie de linguagem em estado
nascente, que se instaura junto com a estória que está sendo narrada. Na trilogia do riachinho
Sirimim, o autor faz referência às origens do riacho, às águas primordiais. Dessa forma,
também se reporta a uma busca pelo sentido originário das coisas no mundo. “Vamos vir ao
começo: aquela grande pedra manânime, ninfal. Donde o Sirimim primeiro nasce” (ROSA,
1994, p. 1175). Ela é o berço, fonte dos eventos primordiais.
Ao criar novas formas de demonstrar os sentidos da expressão poética, Guimarães
Rosa quase sempre inaugura novas palavras e expressões. Isso pode ser mais claramente
verificado no trecho em que é narrada a brincadeira do patinho atrás de uma libélula, em
“Recados do Sirimim”:
Parece que queria pegar uma libélula. O patinho veio nadando, subindo o Sirimim, por todas as retas e curvas, contra a correnteza, tão pequenino e douradinho, entrequequanto. Veio parar antes da ponte, no bambuzinho adonde um ninho de sabiá. Ali, estreita. Ali, ele gostou, nadava em volta de si, e parafusava com a cabeça, dentre o d´água. No que estava, porém, entre capins, se assustou e voou. Se assustou, sem duas vezes, com algo do mato. Voou para baixo e para cima dos bambus. Voou para o rio certeiro, voltou voando para perto da pata, sua mãe, na foz: e a marreca, com seus sete marrequinhos, mergulharam então para fugir, para o rio, além (ROSA, 1994, p. 1179).
Rosa faz brincadeiras com as palavras, para acentuar o sentido lúdico da aventura do
patinho atrás de uma libélula. Carrega de tons infantis a escrita que se descobre sempre nova,
cantada em sons inaugurais. Isso faz com que se busquem novos possíveis significados “para
além do puro aspecto denotativo da expressão” (COUTINHO, 1983, p.206). Ao criar
expressões como “entrequequanto”, Rosa inventa um termo que tenta dar conta do sentido de
um lugar no tempo e no espaço deslizantes que continuamente se colocam numa região
intermediária. O patinho nada feliz em algum lugar entre as margens do Sirimim, num átimo
de tempo intenso de ludismo antes de pegar a libélula. Além disso, produz uma palavra —
entrequequanto — que remete sonoramente ao grasnar do patinho.
A omissão de verbos de ligação no trecho — “Veio parar antes da ponte, no
bambuzinho adonde um ninho de sabiá ali, estreita” — salienta ainda mais o sentido imediato
decorrente da brincadeira do patinho. A experiência lúdica era para ser vivida no ali e no
agora, dada a força intensiva do momento singular. Um tempo que é único, sem passado ou
futuro. O tempo quase em suspensão da infância.
131
A força da escrita poética de Rosa manifesta-se neste pequeno espaço do Sirimim e
advém do exemplo da criança. O autor se identifica com a infância, com os primórdios. É a
criação original: evocação e recriação de algo que está na origem dos tempos e no fundo de
cada homem, algo que se confunde com o tempo e o humano, e que, sendo de todos, é
também único e singular. A frase poética é tempo vivo, concreto; é ritmo, tempo original,
perpetuamente se recriando.
É pela voz da infância que o poeta alcança a linguagem primordial. A liberdade do
dizer inaugural não pode ser submetida a uma estruturação rígida da língua. A proposta do
poeta de representar a infância é coerente com o desejo de traduzir uma fala inaugural. É na
criança que habita o segredo do poeta.
4.1.1.3 - Terceira senda: Brincar de palavras
A escrita de Manoel de Barros é uma descoberta renovada, como as infinitas
possibilidades da poesia, que nascem de um descompromisso com a formalidade da língua. É
uma poesia de quem experimenta ver o mundo sob uma ótica inaugural, com a da criança. A
par da descoberta e da novidade, o poeta “não gosta das palavras engavetadas”, “aquela que
não pode mudar de lugar”. A procura da palavra incontaminada, renovada ou musical leva o
poeta “a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo o que elas informam”
(BARROS, 2003, Cabeludinho).
As palavras se tornam objetos lúdicos, com os sentidos desregrados e livres da prisão
referencial. E geram um enorme contentamento, uma alegria de quem brinca, sem a
preocupação com os compromissos e as formalizações. Esta atitude brincante, tão própria do
infantil, é bem caracterizada no poema “Jubilação”:
Tenho gosto de lisonjear as palavras ao modo que o Padre Vieira lisonjeava. Seria uma técnica literária do Vieira? É visto que as palavras lisonjeadas se enverdeciam para ele. Eu uso essa técnica. Eu lisonjeio as palavras. E elas até me inventam. E elas se mostram faceiras para mim. Na faceirice as palavras me oferecem todos os seus lados. Então a gente sai a vadiar com elas por todos os cantos do idioma. Ficamos a brincar brincadeiras e brincadeiras. Porque a gente não queria informar acontecimentos. Nem contar episódios. Nem fazer histórias. A gente só gostasse de fazer de conta. De inventar as coisas que aumentassem o nada. A gente não gostava de fazer nada que não fosse de brinquedo. Essas vadiagens pelos recantos do idioma seriam só para fazer jubilação com as palavras. Tirar delas algum motivo de alegria. Uma alegria de não informar nada de nada. Seria qualquer coisa como a conversa
132
no chão entre dois passarinhos a catar perninhas de moscas. Qualquer coisa como jogar amarelinha nas calçadas. Qualquer coisa como correr em cavalo de pau. Essas coisas. Pura jubilação sem compromissos. As palavras mais faceiras gostam de inventar travessuras. Uma delas propôs que ficássemos de horizonte para os pássaros. E os pássaros voariam sobre o nosso azul. Eu tentei me horizontar às andorinhas. E as palavras mais faceiras queriam se enluarar sobre os rios. Se ficassem prateadas sobre os rios falavam que os peixinhos viriam beijá-las. A gente brincava no prateado das águas. A mais pura jubilação! (Idem, 2008, Jubilação)
Qual não seria o modo de contar do Sirimim, se não pela senda da pura vadiação? Para
Rosa, não importa contar episódios ou dar informações técnicas sobre o riachinho. Nem
mesmo se faz uma história do Sirimim. O que acontece é o júbilo com as palavras, o motivo
de se tirar alegria.
Na narrativa de “Mais meu Sirimim”, vê-se como o riachinho vence a ordem do
utilitarismo frente à natureza, quando, via de regra, se extrai sua fartura em benefício do ser
humano. É assim como pensa Joaquim, irmão de Pedro. Desde o início, é mostrado como o
senhor que quer explorar tudo que está à volta do Sirimim. Joaquim briga com as formigas
que insistem em passar até mesmo pela água, teima em plantar as laranjeiras em local úmido,
onde algumas já até morreram (ROSA, 1994, p.1173). E ele nem olha para a revoada de
pássaros que comem o arroz de rebroto após as colheitas, aquele que não serve para consumo
humano (idem, p.1177).
Joaquim representa o oposto do descompromisso infantil do Sirimim: “Joaquim é
homem sério, estrito e correto demais, não gosta da natureza para os olhos.”; “tudo ele pega,
presa, mede, apreça – o Joaquim” (idem, p.1183). É um senhor carrancudo e prepotente, que
tenta disciplinar e administrar a natureza, visando unicamente aos resultados de sua produção.
A fartura é o que mais importa a Joaquim. A vadiação é o que mais o incomoda. Para
ele, o Sirimim representa a vadiação, riacho que sai por aí, correndo e cantando, sendo,
portanto, motivo de seu aborrecimento. E Sirimim jubila, no correr de suas águas, depois de
transpor o território de Joaquim (idem).
O Sirimim, então, insiste em inventar “inutilidades” e brincar com a natureza ao redor.
“O meu Sirimim no descuidoso imprestar-se: a lânguida água à lengalenga e a ternura em
aventura” (idem, p. 1184). Há uma escrita lúdica nesta frase repleta de aliterações,
assonâncias, musicalidade. A linguagem brinca com os sentidos de “imprestar”: ao inventar o
vocábulo, ele mostra a dupla ideia do riacho que se doa e o faz sem nenhuma serventia ou
133
utilidade. Uma força inaudita que revela uma infância da escrita, uma “ternura em aventura”.
O autor explora intensamente a inutilidade, fazendo parecer que nada de muito importante se
pode identificar no Sirimim. Voltando às sendas abertas pela poética de Barros, verifica-se
que também em Rosa as palavras “saem a vadiar por todos os cantos do idioma”.
4.1.1.4 - Quarta senda: Agramaticalidade das palavras
Que os poetas aprenderiam — desde que voltassem Às crianças que foram Às rãs que foram Às pedras que foram. Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua.
(BARROS, 2009, p. 64).
Mais além da proposição expressa na epígrafe sobre a agramaticalidade das palavras,
Manoel de Barros propõe uma volta à infância da palavra, numa visão primordial do mundo.
“Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc. Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural” (idem).
A poética marcada pelo diálogo entre a criança e o universo onírico instaura em
Manoel de Barros um discurso produtor de inquietações, sobretudo quando ele propõe uma
estética cuja linguagem corresponda a uma “língua errada”. Tal estética poderia ser
considerada uma estética do erro, aproximando-se daquilo que a criança exprime quando tenta
dizer as coisas a seu modo, quando está aprendendo a falar.
A poesia também brinca com essas variações do dizer. A língua do poema decalca
significados variados nas pedras-palavras. Esta senda poética instala uma
agramaticalidade quase insana, pois com a linguagem poética o movimento mais importante é
o da reinvenção. Com esta, toldam-se as relações entre as palavras, proporcionando outras
formas de se compreender a escrita de Barros.
A arte literária se renova a partir de outras formas, o que inclui novas palavras. E
reconhece-se a autoridade do escritor, nos domínios da linguagem, motivo pelo qual os usos e
inovações na literatura são aceitos. Assim, é muito comum encontrar em Manoel de Barros e
134
Guimarães Rosa o uso de neologismos e estruturas inusitadas. Ambos os escritores “catam”
palavras e criam outras novas, dando-lhes diferenciados sentidos.
A agramaticalidade quase insana (BARROS, 2009, p. 62) é a expressão da
radicalidade transgressora de postura do poeta pantaneiro ante a língua, ordenada por uma
rígida lógica das leis gramaticais. Quando constrói seus versos, o poeta prefere ousar na
liberdade de criar e, assim, romper com os limites impostos à língua. Para tanto, é preciso
fraturar as regências e libertar-se das palavras dicionarizadas. Ele inventa, desrespeita e até
ironiza as formas fixas, permitindo-se ser seduzido pelo desafio de inventar palavras e
sintaxes. E assim se considera um arrombador de gramáticas. Sua poesia desdenha os cânones
formais, abarca todas as margens e enfatiza os deslimites da palavra. O poema enfeitiça a
palavra, infundindo-lhe significados exalados da combinação de realidades oníricas que
subvertem as margens da linguagem.
As imagens poéticas não apenas estão mais perto da infância, como também estão
mais perto dos sentidos do que a linguagem regida pela gramática busca a ordenação lógica e
a correção ortográfica. Por isso, autores como Manoel de Barros e Guimarães Rosa se voltam
à linguagem dos sentidos, própria a uma língua pré-formal e pré-formatada.
Na primeira parte do livro Compêndio para o uso dos pássaros, “De meninos e
pássaros”, ao prestar atenção no filho João, Manoel de Barros redescobre a fala de sons e
imagens da infância: “O menino caiu dentro do rio, tibum” (BARROS, 1961, p.127); “escuto
o meu rio: / é uma cobra / de água andando / por dentro do meu olho”. E observando a filha
Martha: “E o passarinho com uma porcariínha no bico se cantou” “Quis pegar / entre meus
dedos / a Manhã. / Peguei vento” (idem, p.130).
Manoel de Barros torce e retorce as frases e as ideias. Na linguagem figurada, os
termos permutam sentidos. No livro Em matéria de poesia (1974), Manoel de Barros afirma
que a poesia se alimenta de “tudo aquilo que a nossa / civilização rejeita, pisa e mija em cima”
(p.180). Ao recorrer à quebra das expectativas convencionais, Barros demonstra que o lugar
do homem perante a natureza e o meio-ambiente não deve ser de soberania e manipulação ou
regido pela lógica do progresso destrutivo, mas de um tipo de sabedoria que reconhece a
igualdade entre os seres e as coisas. Esse conhecimento recai sobre a linguagem, ao criar uma
maneira poética de se relacionar com as coisas simples e sem valor.
135
Essa mudança vocabular calcada na agramaticalidade que é empregada em seus textos
proporciona surpresas e estranhezas. As metáforas utilizadas, no entanto, não estão
relacionadas somente com as palavras, pois tal processo transcende a simples mudança do
sentido vocabular, e se relaciona com todo o conteúdo, metaforizando todo o poema. Para
Manoel de Barros, “um desvio no verbo pode produzir um assombro poético” (BARROS,
1996, p.318). O autor preocupa-se com o modo de dizer e conduz o leitor ao âmbito do não
familiar, do estranho, do deformado.
Dentre outros recursos, a poética de Barros investe na experimentação e na inovação
da língua por meio de um laborar lúdico com as palavras. A infância na poesia de Manoel de
Barros não se reduz à cronologia dos primeiros anos de vida de uma pessoa ou mero jogo de
ser, mas na utilização do lúdico como gratuidade do acontecer no mundo, das coisas e das
pessoas, unindo-se ao espírito libertário da infância.
Assim, Barros busca uma linguagem que obedece à desordem das falas infantis, em
contraposição às ordens gramaticais (2006, Aula). Trata-se de palavras tomadas muito mais
pelo fluxo onomatopaico e musical da natureza do que pela organização gramatical. Não
diferentemente, ao adentrar o universo de Sirimim, Rosa faz surgir muitas expressões
formadas na linguagem da natureza.
A “paisagem sólida” do Sirimim no inverno é cheia de “alegrias direitinhas”. Nela, “o
clarear é curto, para se assistir ao madrugar”. As corujas, que são duas, fazem seus
barulhinhos diferenciados. “Dado o dia, bem guardam-se”. Várias aves são apresentadas, os
galos, as galinhas, os pintainhos, melros, cambaxirra com seu “trinadozinho tristris”. A ordem
neste lugar é deixar mamão maduro para os pássaros comerem. A árvore de flor amarela para
onde vão os anus pretos, está “enchida de lagartas” (ROSA, 1994, p. 1181).
O que acontece neste espaço dos primeiros parágrafos de “Mais meu Sirimim” exige a
presença do leitor, sua receptividade ao texto, sua participação. Há uma evidente ruptura com
a lógica gramatical, por meio da qual Rosa continua a brincar com a linha tênue e arbitrária
que distingue as coisas. Com uma linguagem desviante, reescreve a própria língua e dá voz ao
que não fala – não apenas a criança, mas qualquer sujeito sem voz, até mesmo a natureza e as
coisas todas da vida que não são ouvidas por não serem pronunciadas dentro de um código
convencional.
136
A arte literária encontrada nestas linhas demonstra a independência da palavra em
relação ao vocabulário ou à gramática normatizante. A força semântica da palavra literária,
sua capacidade de livrar-se, de depreender-se dos limites assemelha-se ao ato infantil de
inaugurar sentidos. Esta força da palavra literária que não se deixa aprisionar no âmbito do
discurso é a mesma que faz com que ela flua. As noções de tempo linear, de localização
histórica e territorial, bem como de gramaticalidade da língua parecem inúteis, neste caso.
Tais referenciais restam irrelevantes e improdutivos, na medida em que não correspondem às
experiências intensas e atemporais que são descortinadas na passagem do riachinho; “Agora
escuto o barulho do muçum, pelo sol: a bulha da água remexida” (ROSA, 1994, p. 1181).
Em suas leituras críticas da literatura rosiana, Eduardo Coutinho ressalta a relação
entre significante e significado, que apesar de arbitrária, possui uma carga expressiva no
início, quando as palavras são criadas. Com o tempo, porém, essa expressividade se perde.
Desgastados que são pelo uso, os significados tornam-se puramente conceituais: “A missão do
poeta é, então, revitalizar a palavra, fazê-la recobrar a sua expressividade originária.”
(COUTINHO, 1983, p.204).
É a criação de uma língua desviante, de um modo de inscrever-se no mundo, de uma
“literatura menor”, que, em termos deleuzianos, é o “que uma minoria faz em uma língua
maior” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, P. 25). A natureza poeticamente representada nesses
contos ocupa espaços fronteiriços, que surgem às margens e enfeitam o curso do rio. A
intensidade da escrita de Rosa dá força ao literário como objeto simultaneamente lingüístico e
estético. Sua arte literária desenha formas gráficas, cria significados, gera significantes,
inventa meios de expressão. Ao provocar uma outra ordem da escrita, ele se esforça na criação
de pensamentos novos, infantis, balbuciantes. Para isso, vai na contra-corrente da gramática
convencional, sempre escrevendo de maneira ousada e instigante.
4.1.1.5 - Quinta senda: Movimento
(...) uma língua estrangeira não é escavada na própria língua sem que toda a linguagem por seu termo sofra uma reviravolta, seja levada a um limite, a um fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições que já não pertencem a língua alguma. Essas visões não são fantasmas, mas interstícios da linguagem, nos desvios de linguagem. Não são interrupções do processo, mas paragens que dele fazem parte, como uma eternidade que só pode ser revelada no devir, uma paisagem que só aparece no movimento. Elas não estão fora da
137
linguagem, elas são o seu fora. (DELEUZE, 1997, p. 16)
Em muitos de seus poemas, Manoel de Barros reafirma o poder das palavras em
movimento. Para isso, ele cria os substantivos verbais: “lesmas e lacrais também eram
substantivos verbais porque se botavam em movimento” (BARROS, 2006, p, Nomes). O
poeta faz com que os nomes ganhem mobilidade, fazendo-os esticar nas possibilidades de se
tornarem ações. E os verbos se ocupam em emendar os nomes. Para Barros, a palavra precisa
estar sempre transitando entre os diversos sentidos. Em Aula (BARROS, 2006), pode-se ler:
“O que eu não gosto é de uma palavra de tanque. Porque as palavras de tanque são
estagnadas, estanques, acostumadas. Ou podem até pegar mofo. Quisera um idioma de larvas
incendiadas. Palavras que fossem de fontes e não de tanques”.
As palavras em desvio de Manoel de Barros, em suas “Memórias Inventadas”, estão,
como diz Deleuze, nos interstícios da linguagem. Sempre em formação (DELEUZE, 1997,
p.16). Seu estado, como o da criança, é móvel, pois não se conformam com o confinamento
de um tanque, querem sempre jorrar como fonte.
A própria edição da trilogia de Barros, colocada em caixas, em folhas que não estão
presas, reforça esta ideia de mobilidade. É possível ler os poemas soltos, sem necessariamente
seguir uma ordem, o que apenas existe é a numeração dos capítulos.
É algo que escapa ao planejamento, a uma arrumação prévia que determina o modo de
ler. O fluxo da vida está delineado nos versos de Manoel de Barros, assim como na correnteza
da prosa de Rosa. Trata-se de uma linha de fuga criadora que traz consigo toda a poesia, toda
a leveza da infância da palavra, de sua sonoridade e movimentação. “Não são interrupções do
processo, mas paragens que fazem parte dele, como uma eternidade que apenas pode ser
revelada no devir, uma paisagem que apenas aparece no movimento” (ibidem).
Tal paisagem se localiza antes da significação, antes do emprego e da função, antes da
correção gramatical, antes do discurso. Assim é que, no fluxo do ler experimenta-se o infantil
e intensamente o instante. “Quisera o canto jubiloso/que corresse por dentro de minhas
palavras/como um rio destampado corresse para os campos” (BARROS, 2010, p.75).
O Sirimim, riacho, é a força suprema deste fluir sem fim, da escrita que escorre e que
se renova nas mesmas águas, a língua. A alegria, em seu fluir, desloca-se na intensidade dos
vários elementos da natureza nas margens difusas entre tristeza e alegria, encantamento e
138
decepção, prazer e dor. Intensos e fugazes são os encontros com gente, animais e plantas em
volta da correnteza do Sirimim. Nas linhas traçadas por esses encontros e nos movimentos
que o fluxo da vida imprime, experimentam-se sentimentos, diverte-se com as brincadeiras do
riachinho travesso, encanta-se com os coloridos impressos nas flores e aves. Mas a
mobilidade de tudo abre espaços para desvios, atalhos, diferentes vias e acessos múltiplos.
Entre gente, lugares e sentimentos, há a recorrente imagem da travessia que reforça a ideia do
percurso necessário para que movimentos se realizem. “Enquanto o Sirimim por ali se vai
sempre a cair – no oceano sonho. Nunca mais, mesmo que se acabe o mundo, deixará de
haver, para vocês e em mim, o riachinho Sirimim” (ROSA, 1994, 1179).
Um desdobramento desta transitividade poderia ser pensado para a linguagem, que não
corresponde a uma regra determinada, obedecendo à lógica adulta. “O saber não vem das
fontes?” (BARROS, 2005, s/p). Uma linguagem que é transitiva, transitória, em trânsito.
Entre os tempos, os lugares e as linguagens. Móvel, movente, mobilizadora. Em constante
devir. Uma infância da palavra (idem, 2010, p. 19).
4.2 - Em voo: os sentidos de expansão e da morte na infância da escrita
4.2.1 - Voos de Bartolomeu Campos de Queirós: uma trajetória em direção à infância
Muitas das obras de Bartolomeu Campos Queirós permitem um voo em que a
literatura abre caminhos e possibilita variadas linhas de leitura. Uma das obras do autor, Até
Passarinho Passa, publicada em 2003, é uma dessas produções que desliga o leitor do chão
formal da leitura e o leva para descobrir novos modos de ler. O livro reúne muitos dizeres que
se reafirmam continuamente na trajetória autoral de Bartolomeu. São temas que, retomados,
ganham força lírica nesta produção recente.
Para dar conta de muitas dores, o autor escreve Até passarinho passa e lança voo em
direção a outras possibilidades de escrita, ao compartilhar de penas experimentadas por um
menino que se vê diante da morte. Quem abre o livro para começar a ler é atraído para sair do
espaço real, próprio da retenção, e mergulhar no espaço livre da escrita literária, como um
pássaro desprendido do chão. Menino e passarinho se conjugam neste desejo de estar voando,
liberdade possível no universo da fantasia e da imaginação.
139
O pássaro é o ser que representa em si o sentido da liberdade, tão desejada pelo
homem. Na possibilidade do voo, a ave pode seguir caminhos diversos, seguir em rumos
desligados dos impedimentos do chão. Na terra, o peso amarra a direção seguida pelo
andarilho, pode-se até tropeçar se o caminhante não estiver atento aos obstáculos no chão. No
ar, o mundo está em constante expansão.
Como ser aéreo, o pássaro está também livre, estendendo-se em direção ao infinito. O
voo é a ação própria do ser que sonha. Pelo movimento imaginário, o ser se desprega da terra,
tornando-se leve, flutuante. Em O Ar e os Sonhos, Bachelard desenvolve os temas produtores
da imagem do pássaro. O ser que voa é feito de matéria aérea, dotado de movimentos livres.
“ No reino da imaginação criadora aérea, o corpo do pássaro é feito do ar que o cerca, e sua
vida do movimento que o arrebata” (BACHELARD, 2001, p. 69).
Tal imaginação criadora é muito própria do infantil. Uma criatividade que parte da
ideia de uma permanente instabilidade criativa, em constante movimento em direção a uma
outra possibilidade, como em um voo. Em termos deleuzianos, é uma variação imanente
atirando as formas estabelecidas em uma tensão de futuro, sem que se possa assegurar a nova
forma que se confecciona, apenas que ali algo se cria e se inova. Um dinamismo criativo da
linguagem que seria da ordem do virtual (DELEUZE, 1993, p.139).
São linhas de fuga que orientam a busca deste aspecto criativo da linguagem em um
sistema aberto, cuja instabilidade é imanente e produtiva, criando possibilidades gramaticais,
lexicais e prosódicas diferenciadas.
Em outro livro de Bartolomeu Campos Queirós, intitulado Para criar passarinho, o
pássaro representa mais incisivamente o sentido da liberdade do ser em estado de constante
expansão e fuga. Escrito em forma de um manual para criar passarinho, o sujeito da
enunciação prescreve vários procedimentos para o cuidado de uma ave. E todas as predições
descritas no manual remetem à liberdade inerente ao pássaro, animal mais emblemático do ar.
É bom para o criador de passarinhos “ter asas na alma”, uma “imensa inveja dos voos”
e viver “leve como as penas” (QUEIRÓS, 2003, p. 7). A leveza deve ser um valor importante
para aquele que cuida de pássaros. Com esta atitude, há uma constante garantia de liberdade,
de poder alçar voo.
A expansão do céu é o único lugar possível para se “prender” um passarinho. Retê-lo,
só na única maneira de se conservar sua total liberdade: no ar inteiro, um “espaço pequeno
140
para a ligeireza das asas” (idem). E a liberdade de movimentos não é a forma exclusiva de se
criar o pássaro, é preciso também deixar livres as suas escolhas em relação ao refúgio e suas
buscas em direção ao espaço desconhecido.
Em um outro nível de leitura do texto, a criação pode ser vinculada à ideia de
inventividade, além do sentido de cuidado. Criar passarinho é saber que, no texto literário, o
único modo de criação do texto é na liberdade.
... é preciso ter ao alcance das mãos a linha o horizonte para escrever poesia para passarinhos cantarem. E isso se torna possível soltando o olhar para o bem depois das montanhas, dos mares, deixando o carinho murmurar rascunho de poema (idem, p. 18).
No livro Até passarinho passa, o local criado imaginariamente, rememorado na
infância de um menino que amava os pássaros, o símbolo vegetal encontrado não é o de uma
velha árvore frondosa, com raízes que se aprofundam por anos numa terra segura. Isto
mostraria uma fixidez que desvia do sentido de fugacidade a envolver a narrativa desde o
início. O pé de maracujá não está fixo na terra, também é um índice aéreo, localizado no
telhado, limite com o céu. Os galhos são mais importantes que as raízes, reforçando o caráter
de expansão da cena.
Nas folhas seguintes, outros elementos são dispostos nesta composição de voo.
Aparecem as borboletas, as abelhas, as cigarras saídas da terra - pois que cantam -, os vaga-
lumes, os insetos miúdos dançando em volta das lâmpadas acesas. Animais que surgem ao
entardecer, trazendo em seu adejo as cores, os sons, os cheiros da natureza que se prepara para
a noite.
O céu é um espaço bastante presente na imagem criada, vista da varanda da casa.
Apesar da fala do narrador, dizendo de um céu muito distante, o ambiente descrito preenche-
se por esta matéria fugidia, o ar que toma conta do espaço, aproximando as figuras celestes da
terra. A varanda está repleta de um “nada transparente e concreto”, o vento que varre o
mundo, a brisa que afaga a natureza (idem, p. 7).
No encontro às tardes, pássaros devolvem às reminiscências da personagem um calor.
Mas também carregam em si uma poesia sem cantos e palavras, essa poesia aérea vinda de
suas passagens pelo céu, delineada pelas possibilidades de se evadir na imaginação. Para
Bachelard, a figura do pássaro “faz esquecer o tempo, arranca às viagens lineares da terra para
nos arrastar numa viagem imóvel que as horas não soam mais, a idade não pesa” (2001, p.
70).
141
Em Até passarinho passa, os pássaros fazem o elo entre o céu e a terra, e, nos instantes
em que eles pousam na varanda da casa, trazem à vida do menino um significado diferenciado
do que é o tempo/espaço de quem vive sem limites. Não se encontrava “sinal de tristeza na
existência dos passarinhos. Um sempre contentamento brilhava entre suas penas” (QUEIRÓS,
2003, p. 12). Os pequenos visitantes passavam pela extensão do alpendre só pelo prazer de
andar. Seu destino era guiado pelo desejo.
Nesta passagem do livro de Queirós, o deslimite é metaforizado pelos passos e gestos
dos passarinhos.
Seus pés, com passos miúdos percorriam os quatro cantos do alpendre pelo prazer de andar, sem conhecer a rosa-dos-ventos. O norte estava onde o desejo apontava. Só exercitavam as asas quando a distância era longa e o vazio era muito largo (idem, p. 13)
Desta maneira, o tempo suspenso da infância e o espaço limitado do alpendre ganham
uma visão que se estende, como um voo na infinitude do céu. É a companhia dos pássaros que
traz ao menino a sensação de felicidade na pequena tristeza fria que sentia na chuva fina
trazida. O “absurdo do presente” alongava-se na caminho dos pássaros, aquecendo o solo
limpo e frio da varanda.
Se o destino pode vir a ser descortinado, instaura-se o domínio de um espaço criador.
O voo também carrega o sentido da liberdade, do que não se pode prender. Por isso a imagem
do pássaro ser tão presente nas narrativas de Bartolomeu Campos Queirós. O caminho traçado
pelo voar do pássaro não tem linha determinada, todo o espaço aponta para variadas direções.
Todas estas imagens de evasão, retratadas nas metáforas de voo, remetem ao processo de
escape proporcionado pela imaginação e pela memória.
“Escrever não tem o seu fim em si mesmo, precisamente porque a vida não é qualquer
coisa de pessoal. Ou antes, a finalidade de escrever é levar a vida ao estado de um poder não
pessoal” (DELEUZE, PARNET, 1997, p. 61). A escrita, a literatura não são simples ficção.
Elas o são pelo contrário, revela Deleuze, no sentido de criar vida, de inventar linhas de vida
possíveis, de abrir à vida novas possibilidades. Não é o resgate de uma reminiscência pessoal,
presa a uma vida específica, a do autor. Quando Queirós fala da experiência de um menino
qualquer na varanda de sua casa, não se refere a uma infância pontual. Está, ao contrário,
apontando para procedimentos de liberdade impessoais.
Essas passagens ou “devires” não são expressões do vivido, não são as percepções, as
142
recordações e as opiniões privadas do artista transfiguradas pela imaginação e retratadas por
escrito. Ao contrário, são “visões” ou “sensações” de uma vida já não pessoal, poderes de uma
vida impessoal ou de uma possibilidade existencial distinta dos estados vividos, da
experiência de uma outridade, de um devir-outro como despersonalização do sujeito.
A liberdade criadora, própria da infância da escrita, aproxima-se do sentido da
atividade literária sempre em expansão, em direção ao outro. E esse outro pode ser uma
infância recriada, não necessariamente a infância rememorada do autor. Não são lembranças,
mas memórias inventadas em uma infância repleta de imaginação e esquecimentos. A escrita
de Bartolomeu Campos Queirós não se ocupa de uma criança empírica, mas do imaginário
ficcional das vivências de uma criança solitária na varanda de uma casa.
4.2.2 - A morte como ausência criadora
E o meu exercício de vida tem sido o de estar procurando o que não foi feito ainda, o que ainda não sei fazer. Só me interesso pelo que me falta. (...) Criar, para mim, é a alternativa derradeira para abrandar o peso do não-sabido.
Bartolomeu Campos Queirós
Quando se observa ao redor, pode-se constatar que todos os seres vivos têm um fluxo
em comum: nascem e morrem. Enquanto estão vivos passam por transformações que são
comumente chamadas de desenvolvimento. Assim tem ocorrido continuamente, um ser só
nasce e morre concretamente uma vez.
O que chama a atenção para este processo são justamente as transformações,
condicionadas por espaço e tempo. Assim como as águas de um rio não passam duas vezes no
mesmo lugar nem ao mesmo tempo, a existência também é condicionada ao tempo que flui e
ao espaço, que se amplia ou se retrai. A marca da perda e da ausência é uma realidade
constante no desenrolar da vida. Procurar estar sempre em contato com os outros e preencher
os tempos vazios com distrações são modos de aliviar a angústia das perdas que acompanham
a existência humana.
Em Até Passarinho Passa, toda a história perpassada pela atmosfera da morte.
Todavia, a sensação da perda ganha uma dimensão diferenciada, se identificando com a ideia
de um vazio esperançado. O protagonista dessa narrativa é solitário. Há pouquíssimas citações
143
que poderiam revelar a presença de outras pessoas convivendo com o menino. Mesmo a idade
passa por uma indecisão: supõe-se que se trata de uma criança principalmente pelo modo
como ela interage com a natureza e os amigos passarinhos.
Na figura das crianças, Queirós se inscreve como interlocutor dos questionamentos
acerca da falibilidade da vida. São personagens infantis que entram em contato com o medo
da ausência e da morte, da solidão e da falta.
A solidão do menino que espera seu amigo passarinho chegar todos os dias na varanda
em Até Passarinho Passa não se reduz a um significado de vazio que representa somente um
nada, a nulidade do tudo. O encontro é mais envolvente quando, sozinho, o menino estabelece
contato com o pássaro. Na tranquilidade do alpendre frio e limpo, a personagem aprende
como lidar com seu amigo. Não há necessidade de materialização do carinho, o toque se dá
pelo olhar (QUEIRÓS, 2003, p. 19). A proximidade se estabelece mediante o respeito à
liberdade do pássaro, à sua natural não contenção.
Mas, apesar de juntos, o pássaro e o menino estão sempre sozinhos. Ao passo que o
menino era um ser do espaço contido, da certeza da finitude, desprovido de asas, ligado à
segurança da terra, o passarinho era o ser da expansão, do espaço aéreo, infinito em seus voos,
delicado em sua não fixidez. A amizade se dava pelo respeito à distância e às diferenças que
tanto os aproximava, quanto os afastava. “Nossa felicidade era maior: estar face a face, sem
susto ou posse” (idem, p. 20).
O pássaro era também um animal de suspeitas. Não se sabia seu endereço certo, partia
de improviso, nunca dizia adeus. Levava em seu voo o senso da eternidade, pois desconhecia
sua origem e seu fim. Nele, a mortalidade era fugidia, sua presença aquecia o real frio e limpo
da varanda de ladrilho xadrez: “Assim vivíamos. Nossa varanda era um lugar de visitas. Nela,
a natureza, em surdina, floria, crescia, mudava de acordo com as estações. E o meu amigo
passarinho aquecia, com seu amor, a paisagem fria e limpa” (idem, p. 22). O retorno contínuo,
seu ritornelo3 fazia parte deste movimento do pássaro que voltava à varanda. Estava sempre
em estado de devir.
Só retorna o que passou pela enésima potência, “o que passa no outro e se torna
idêntico” (Deleuze, 1988, p. 85). A união do homem com as coisas se dá na distância
proporcionada pelo retorno (idem, p. 103). O “Eterno Retorno” é a “proximidade das
3 Do italiano ritornello: significa refrão, estribilho. Atualmente significa a repetição de um trecho musical (HOLANDA, 1986, p. 1513).
144
distâncias” (idem, p. 386). A imagem da espiral é mantida nessa relação. O contato entre
menino e pássaro reforçava ainda mais um caráter distinto de tempo e espaço, não medido
pelas contingências, não mensurável por exigências, mas único e eterno na profundidade da
experiência de encontrar-se, conservando suas solidões. O tempo não era medido numa ordem
formal vazia, classificatória.
O voo do pássaro era uma fuga que sempre fazia retornar, que sempre retomava ao
lugar necessário, em uma atitude de estrangeiro, pois mesmo que o pássaro voltasse para a
mesma casa, não era mais o mesmo – a estrangeiridade se dá por esta impossibilidade de um
reconhecimento pleno na retomada, afinal de contas, ela nunca será a mesma. Cada
reencontro era singular, uma novidade de quem experimenta com intensidade os instantes.
O movimento espiral operado pelo ritornelo garante um território, como se estivesse
“em casa”, ao mesmo tempo que possibilita a fuga do mesmo. Não significa somente sair de
algum lugar para se chegar a outro. A própria concepção de território já se mostra como um
elemento de passagem, um território que é sempre transitório, que sempre é aberto ou se abre
para novos agenciamentos.
O destino era composto pelas relações em que o silêncio era um trato entre os dois
amigos. Era composto de hiatos, de vazios, portanto. O diálogo silenciado, o toque pela
distância, o destino ignorado do amigo são indicações do vazio que acolhe, na amizade
estabelecida entre menino e pássaro.
A angústia de um desaparecimento aparece em toda a história de Até Passarinho
Passa, uma ausência que se anuncia na limpeza e frieza do ladrilho da varanda. Havia nesta
atmosfera uma certa antecipação de tristeza. O frio constantemente perpassava os
deslumbramentos do personagem diante da natureza:
Eu possuía, já naquele tempo, alguma pequena tristeza trazida pela chuva fina (...) A beleza me sufocava (...) Minhas penas não cobriam o corpo nem aqueciam meus pesares. Apenas esfriavam meu coração.(...) Ele apreciava em silêncio minha varanda e a amava pelo que havia nela de frio, limpo e quietude (QUEIRÓS, 2003, p. 12, 20).
Em um quase alvorecer, o menino acorda com o pressentimento de que aquele frio
sempre anunciado se tornou inverno. A perda é acompanhada de susto, neste primeiro
instante, em que ele vê o amigo morto no chão. Aquele pássaro, que sempre trazia promessas
de eternidade, agora jazia inerte na fria varanda envolvida pelo vazio.
145
O movimento ascendente da narrativa, que tinha seu ápice nos encontros do menino
com o passarinho, muda de direção e ganha um caráter de descida. Os elementos na cena
ganham peso e o destino da terra se confirma na finitude do passarinho – “do pó vieste, ao pó
retornarás”.
O menino passa a ser, assim, quase uma folha a cair. Isso é mais do que o instante da
folha que cai. É o fluxo do cair, a verdade da vida que se mostra no contraste com a morte. A
vida que se mostra em raios, em feixes de luz, já que não se deixa ver inteira. O limite da
varanda e do mundo representa a indiscernibilidade das margens entre alegria e dor, entre
intensidade e fugacidade, entre vida e morte.
Um vazio foi tomando conta do mundo do protagonista, como se ele mesmo tivesse
morrido junto com o seu pássaro. A morte, fato externo a sua vivência até aquele instante, se
apodera de seu mundo interior. O que alimentava de afetos as suas tardes não poderia nunca
mais aquecer seus temores. O menino precisaria enfrentar a fria tristeza provocada pela
certeza de que a vida termina.
Tristeza que não permitiria que a vida fosse mais completa. Faltava sempre uma coisa sem resposta, alguma interrogação sem desconfiar da pergunta. Era um incômodo capaz de tornar adoecida a felicidade. Minhas penas não cobriam o corpo nem aqueciam meus pesares. Apenas esfriavam meu coração (QUEIRÓS, 2002, p. 12).
No entanto, a ausência do pássaro na vida do menino torna-se a presença eterna do
amigo em seu coração. É preciso um pouco de dúvida, de falta, de vazio, de incômodo para
que a presença seja possível. Já a morte, ausência derradeira, falta definitiva, desnuda o ser
em suas mínimas inquietações rotineiras e o transporta para outros espaços.
Não tem nada mais democrático que a morte. Acho que a morte inaugura a vida. Ela criou a vida para depois exercer a sua foice. A morte precisa do nascimento para exercer o corte dela... para mim, a morte é a coisa mais exagerada que existe no mundo. Ela é muito indecifrável (idem, 2001, p. 2).
A morte é o fato mais indecifrável que existe na existência humana. Mas o
indecifrável, além de causar a sensação de dúvida e incômodo, estimula a criação. As
circunstâncias que ninguém consegue explicar são as que movem o destino em direção da
transformação, do possível no impossível. Aquilo que é difícil de ser entendido faz criar o
próprio desejo. Nesta perspectiva, o vazio se torna a possibilidade de ser.
146
A vida precisa de vazio: a lagarta dorme num vazio chamado casulo até se transformar em borboleta. A música precisa de um vazio chamado silêncio para ser ouvida. Um poema precisa do vazio da folha de papel em branco para ser escrito. E as pessoas, para serem belas e amadas, precisam ter um vazio dentro delas. A maioria acha o contrário; pensa que o bom é ser cheio. Essas pessoas que se acham cheias de verdades e sabedoria falam sem parar... Bonitas são as pessoas... cheias de vazio. E é no vazio da distância que mora a saudade (ALVES, 2001, p. 102).
Nos vazios inscritos entre as palavras também se instaura um indecifrável que leva ao
desejo de criar. Eles deixam uma sensação de ausência que precisa ser suplementada. E de
certa forma é saciada por uma escrita que se deixa tocar pelos desejos. Porém, ao se bordarem
os espaços da narrativa de Até Passarinho Passa com o lirismo, nunca se consegue estar
pleno, satisfeito, já que a escrita poética nunca se completa definitivamente, encerrada em
uma só interpretação. “E só a arte é capaz de inaugurar aquilo que não existe ainda, mas que
a fantasia faz concretizar. Pelo texto, tento adivinhar o obscuro” (QUEIRÓS, 2003, p.1).
A palavra escrita literariamente encanta porque conserva entre as linhas o vazio
sempre disposto a ser suplementado. Há uma possibilidade contínua de uma outra invenção,
até para compensar o vazio deixado pela perda. É, também, o microespaço da solidão de uma
experiência, conforme sugere a seguinte passagem:
A palavra humana, uma palavra múltipla que abriga em seu interior a expressão do indizível, o silêncio, nos conduz a uma educação (po)ética. Uma educação na qual a palavra humana expressa uma dimensão inexprimível. Essa dimensão na qual o dizer não pode ser dito é a condição da ética, da alteridade, do nascimento e da novidade (MÉLICH, 2001, p. 278-279).
O que nos sugere o texto queirosiano é a morte de um tipo de infância. E, ao mesmo
tempo, a definição de uma outra experiência de infância. Triste, o menino se surpreende com
a fugacidade da vida, pois entende que não pode ser possuidor de um pássaro, ícone da
liberdade. Da mesma forma, a infância é um tempo fugaz, que não pode ser retida e paralisada
na lógica sucessiva do crescimento. Contudo, por meio de uma escrita poética, sempre
podemos cenarizar mais uma vez o espaço/tempo da infância.
4.2.3 - As Garças: a morte e a preservação do fluxo da infância na escrita rosiana
O aprendizado da morte, da perda, da ausência, da finitude da vida em chocante tensão
com a intensidade da experiência de vida é o que expõe o conto que passaremos a comentar. A
147
beleza das aves, ponto focal do conto “As garças”, mostra-se frágil em meio às contingências
da natureza.
A vulnerabilidade conflitava com a explosão de vida exibida pela garças. Aliás, este
contraste entre a pulsão de vida e de morte é uma presença constante no conto, que desde o
início colore de branco e negro os tons determinantes da narrativa. A alvura das garças
conflita com a negritude da cachorra, Nigra, provavelmente a responsável pelo machucado da
garça que acabou fenecendo no quintal de Joaquim.
E a brancura, assim como a volatilidade das garças são imagens da finitude da vida e
da beleza. As garças já eram bastante conhecidas dos habitantes do Sirimim. Voltavam todo
ano no inverno, no mesmo sentido de retorno do passarinho que vinha visitar o menino na
varanda da história de Até passarinho passa. Era certa a visita do par, esperada ano após ano
no vale do riachinho.
O casal devia “estar de amores” (ROSA, 1994, p. 1185). Muitas das palavras utilizadas
a seguir pelo autor reforçam o caráter de ingenuidade e inocência das garças: “meiga”,
“exageradamente cândida, a noiva”, “entre si alvas”, “elas- as brancas”, “faziam maio, júbilo,
virgens, jasmim, verdade, o branco indubitável”, “grosso leite”, “alvinevar (idem, p. 1185-
1187). São, ademais, referências da candura e da castidade da nubente, vestida de branco.
As meninas Lourinha e Lucia são as que mais se atentavam com a chegada das garças.
Loura e Luz, a claridade infantil nos nomes das meninas. Uma delas, porém, não era branca, a
contradição é dita de maneira brincante por Rosa “Deixavam o brinquedo Lourinha e Lucia –
a que, ao contrário, era muito pretinha” (idem, p. 1185).
A diversão de todo inverno para aquelas meninas era o casal de garças cuja posse elas
desejavam. Da mesma forma que o menino da varanda que desejava que o passarinho fosse
seu. “E elas vão ficando mansas, querem morar mais com a gente?” (idem), seriamente
imaginava Lourinha. Mas a liberdade se apresentava como a característica mais forte das
aves, que sempre voltavam, em ritornelo, mas da mesma maneira partiam, fugazes, para outro
destino.
Também podemos destacar os vocábulos que mostram este caráter fugidio e veloz das
garças, que não eram seres fixados na paisagem do Sirimim: “Por súbito: somente é assim que
as garças se suscitam”, “após, olhava-as, lá acima, céleres”, “sumiam-se e surgiam, nódoas,
148
vivas, do compacto”, “Zape! – o zás - ... o chofre”, “incerta celeradeza”, “saque da
sofreguidão”, às súbitas” (idem, p. 1185-1186).
As garças não se fixavam, nem em um espaço, nem em uma definição. Pelo desejo
infantil de ter as garças para si, Lourinha tenta defini-las, pensando assim que poderia, de
certa forma, retê-las. Contudo, ao tentar defini-las, fá-lo por oposição: “E elas são o contrário
da jabuticaba?” (idem, p. 1186).
Explosão de vida presente na natureza do Sirimim que intensificava seus sentidos e
percepções de diferentes modos de vida naquelas aves. A morte das garças cruzava o curso de
uma experiência e lançava as meninas, de súbito, na conflitante relação entre vida e sobrevida
- a necessidade da morte como garantia de outra vida.
Às meninas, impotentes diante da imposição da morte, restava apenas lamentar que
jamais as garças seriam de pertencimento de qualquer pessoa, nem mesmo delas. Contudo,
inevitavelmente, acontecia um súbito e cruel aprendizado: o da fugacidade e da
irreversibilidade de um tempo medido cronologicamente.
A morte gradual foi vivida pela expectativa de Lourinha e Lucia. Agora, pensava
Lourinha, a garça com apenas uma asa ficaria para sempre ali no Sirimim, pela
impossibilidade do voo.
Toda a tarde, a gente ia-a buscar. Fez-se-lhe um ninho de palha, no barracão da porta-da-cozinha. – “E agora, ela vai mais embora, ficou da gente, da casa...” – jurava Lourinha, a se consolar. (...) Lourinha e Lucia trouxeram-na, por uma última vez, Lucia carregando-a, fingia que ela estivesse ainda viva, e que ameaçava dar súbitas bicadas nas pessoas, de jocoso (ROSA, 1994, p. 1188).
Rosa trata da infância, tanto em seu procedimento de escrita, como nas personagens
que cria. Contudo, ele não reterritorializa a infância. Ele a desterritorializa em fluxos de
linguagem que intensificam as relações e permitem pensar vida e morte de modo difuso.
Infância e morte aparecem juntas neste e em muitos dos contos das Primeiras Estórias, como
se fossem instâncias indiscerníveis e íntimas de um movimento recíproco de interrupção e
continuidade.
Experienciar a morte de animais, plantas ou entes queridos parece afirmar a vida
existida e mesmo a vida que resiste e permanece à medida que é narrada. Assim, Rosa
149
também produz vácuos, intervalos de palavras, suspensão de entendimentos. E, mais, provoca
uma instabilidade, de algo que necessita sempre ser preenchido. Ler e escrever, afinal,
produzem um tipo de vazio, de solidão. Retirar-se para tais tarefas é estabelecer uma
separação com o ordinário da vida, da mesma forma que provoca outras sensações. É a
palavra que liberta da circunstância que limita e circunda as experiências.
Durou dois dias Morreu no terceiro.
Ora, dá-se que estava coagulada, dura, durante a tarde, à boa beira d´água, caída, congelada, assaz. Morreu muito branca. Murchou (idem, p.1188).
A morte imprime uma forte carga de fixidez, bem diferente de todo o clima de
mobilidade do voo das garças em vida. Dura, congelada, coagulada, a morte paralisa a
paisagem sempre em movimento do Sirimim.
Estas expressões revelam a abrupta conformidade com a morte, a aceitação de sua
força, o lamento diante do inevitável. “A gente pensava nelas duas. De que lugar, pelo rio, do
norte, elas costumavam todo ano vir? A garça, as garças, nossas, faziam falta, tristes manchas
de demasiado branco, faziam escuro” (idem).
Assim, imprime-se a escuridão advinda da falta. O espaço vazio deixado pela ausência
de outras palavras amplia seu sentido. Intrigantemente Rosa parece opor a escuridão ao
branco, à luz, geralmente associada ao conhecimento produzido pelo homem. Ele apresenta a
escuridão, mas ela se afasta do sentido normatizante que a opõe à pureza da virtude e do
saber. A treva parece tomar parte do percurso incerto da experiência. Associa-se, por vezes, à
dor, a uma dor que não se sofre. A vida em volta do riachinho Sirimim está inserida na
demasia do mundo, misto de luz e treva. A morte, deixada acontecer por Rosa, era uma
espécie de preservação do fluxo de infância que não pode ser detida ou aprisionada. A
liberdade da escrita, essencial na laboração rosiana, é associada ao sentido de constante
liberdade e expansão da infância. Não há como deter a imaginação e a atividade infantil, ao
passo que as garças morrem a fim de conservar uma infância. É uma escolha de Rosa, na
tentativa de conservar em si e em seus leitores, uma disposição para a infância e seu sentido
inaugural. Em vez de essências estáticas, um fluxo de forças. Por isso, surge a necessidade de
subverter a língua, de brincar com a sintaxe e a semântica.
Dessa forma, Rosa surpreende o devir-criança no ato de escrever e, em consequência,
150
segue rumo a uma infância das coisas, a uma infância da escrita que quer se expressar em sua
constante novidade. Uma palavra cheia de cheiros, ruídos e cores. Uma palavra que não passa
apenas pelo inteligível. Ele escreve a infância, muito mais na maneira como organiza
linguisticamente a narrativa do que nos personagens infantis que cria.
Com Rosa, Bartolomeu e Barros verifica-se esta possibilidade de que poemas e
narrativas poéticas traduzam um modo outro de escrita, o que o próprio Manoel de Barros
chama de “infância da palavra”. Uma escrita com uma força transgressora frente à língua, que
se valora por ser singular e criativa, por ser estrangeira numa língua majoritária. Na criação
literária, as escritas da infância inauguram uma infância da escrita.
151
CONCLUSÃO
Ao chegar ao final desta tese, como quem chega à foz do riachinho Sirimim, sentimos
que muitas das questões relativas à infância e à literatura poderiam ser desdobradas em outras
perspectivas e abordagens. Contudo, a formulação do conceito de infância da escrita, proposta
mais relevante deste trabalho, atingiu, em nosso entendimento, os objetivos propostos.
Durante este exercício, trilhamos vários caminhos, ora deixando-nos conduzir, ora
direcionando os corpus teórico e ficcional que permearam nossa pesquisas. Esses textos estão
colocados em uma equivalência de planos, seguindo as indicações de Deleuze, que considera
“a filosofia, a arte e a ciência como espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e
que não cessam de interferir entre si” (1992, p. 156).
Ao formular a hipótese de uma infância da escrita, permitimo-nos relativizar um
enfoque mais convencional da literatura, para propor que, em muitas situações, a literatura
pode ser considerada infantil, se a entendermos como uma língua minoritária e de devir. A
escrita poética está sempre neste movimento de traçar uma linha de fuga para a linguagem,
uma escrita que pode estar identificada com o infantil, na medida em que está constantemente
desafiando o poder maioritário da língua.
Então, como chegar a falar sem dar ordens, sem pretender representar algo ou alguém, como conseguir fazer falar aqueles que não têm esse direito, e devolver aos sons seu valor de luta contra o poder? Sem dúvida é isso, estar na própria língua como um estrangeiro, traçar para a linguagem uma espécie de linha de fuga (DELEUZE, 1992. p. 56).
A palavra literária, neste enfoque, talvez pudesse livrar- nos das especificidades e
exatidões do discurso adulto, minimizando, assim, as amarras das certezas. Ela pode nos
reportar a uma condição infantil na qual as situações ainda são difusas e transmutáveis. Uma
disposição anterior àquela na qual já sabemos de antemão o que querem dizer as palavras. Um
estado originário, anterior à compreensão não questionável das afirmações seria aquele estado
que é, a um só tempo, comum e singular da experiência humana. Uma experiência de
inacabamento.
Não é possível, portanto, falar em infância sem a consciência de uma condição de
seres inacabados. Condição que faz com que os indivíduos estejam disponíveis ao mundo,
curiosos, inquietos, criativos, capazes de pensar um outro mundo, de construir uma outra
152
história; de serem sujeitos da experiência. Experiência como infância. Uma infância que não
nos abandona, que insiste em nos acompanhar por toda a vida.
Ela é condição. Não há como abandonar a infância, não há ser humano inteiramente adulto. A humanidade tem um sôma infantil que não lhe abandona e que ela não pode abandonar. Rememorar esse soma infantil é, segundo Agamben, o nome e a tarefa do pensamento (KOHAN, 2003, p. 245).
Com Walter Benjamin, procuramos reconhecer uma outra concepção de experiência,
aquela pela qual somos tocados, de onde saímos transformados: “esta pode ser hostil ao
espírito e aniquilar muitos sonhos que florescem. Todavia é o que existe de mais belo,
intocável e inefável, pois ela jamais será privada do espírito se nós permanecermos jovens”
(1984, p. 25). Buscamos compreender a experiência como um modo de ser e de estar no
mundo, o que supõe disponibilidade e abertura ao que a ela se oferece, ao mesmo tempo em
que permanece sujeito às influências do desejo, das necessidades, da imaginação e da paixão.
Uma experiência que se aproxima da infância. Por essa razão, a experiência é caracterizada
também pela singularidade, pela heterogeneidade, pela imprevisibilidade, pela incerteza e
pelo descontrole. Como define Larrosa (2004, p. 154), experiência é:
O que nos passa, ou o que nos acontece, ou o que nos toca. Não o que se passa, ou o que acontece, ou o que toca. Mas o que nos passa, o que nos acontece ou nos toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos passa. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos passe.
Com base no conceito de infância, defendido por Agamben em sua obra Infância e
História, pudemos compreender a infância como condição da existência humana e não apenas
como uma etapa passageira do desenvolvimento. Para aquele, a ausência de voz – en-fant –
não significa uma falta, e sim uma condição, uma vez que é na infância que nos constituímos
como sujeitos na e pela linguagem. O ser humano é o único animal que aprende a falar, e não
o faria sem a infância, pois é nela que se introduz a descontinuidade entre aquilo que é
natureza e aquilo que é cultura, entre língua e discurso. Na realidade, é uma condição para que
o próprio homem continue a viver, transformando, no cotidiano, a língua em discurso capaz
de colocá-lo na situação de criador de cultura:
(...) a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de
153
existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito (Agamben, 2005, p. 59).
Historicamente, a infância foi associada à imagem da criança, ou mais
especificamente, a uma determinada etapa cronológica do desenvolvimento humano, fruto de
perspectivas biologistas e psicologizantes, como apresentamos no primeiro capítulo da tese.
Esta imagem esteve quase sempre relacionada a um ser imaturo, dependente, que pouco sabe
e que precisa, portanto, ser educado para se tornar um cidadão no futuro. Uma imagem quase
sempre marcada pelo caráter pueril, ingênuo, simples e prematuro, como afirma Kohan (2005,
p. 233). Ser chamado de infantil, em alguns contextos, significa inclusive um insulto, por tal
adjetivo estar impregnado de um sentido pejorativo, de desvalorização e depreciação da
infância, dessa forma considerada algo menor, sem importância.
Intentamos subverter, por esta razão, o conceito de menor, tornando-o potente. O
infantil deixa de ser uma adjetivação, tornando-se substantivo, um bloco de infância que
atravessa a experiência. Conforme afirma Corazza e Tadeu (2003), a infância não é mais
compreendida como natural, comum, empírica ou mesmo como produção cultural e histórica,
mas passa a ser ‘artistagem’.
O grau zero de infância é condição para que uma nova linguagem e um novo quadro artístico sejam criados, a fim de configurar uma outra infância nascida ao mesmo tempo da crítica das infâncias anteriores e de um plano virgem: autoreferida, desprovida de sentido, a ser artistada (CORAZZA, 2003, p. 117).
O vazio desta infância artificial não traz o prenúncio do que ela irá tornar-se ou a
predeterminação de alguma outra infância, mas afirmação de uma outra estética: a da infância.
Pensar o bloco de infância, como propõem Deleuze e Guattari (1996), significa
considerar que não se trata de ser criança ‘antes’ de ser adulto, mas uma estreita convergência
entre o adulto e a criança. Nesta direção, toda literatura pode ser infantil, na medida em que se
tratar de uma “literatura menor”, conforme conceito de Deleuze. Uma literatura tomada por
um devir-criança.
O intuito desta tese foi compor uma reflexão sobre a infância, sob a ancoragem de
154
teorias nela investidas. E, paralelamente, por meio da escrita literária, propor novas formas de
abordá-la. Os meus muitos anos de docência já saturaram todos os conceitos do que é o
infantil, pela via da educação. Não é mais meu desejo somente educar uma criança para que
ela rapidamente deixe sua infância para trás. Por isso, minha opção pela literatura. Pela arte
literária, é possível sempre se aproximar da infância, mesmo que, do ponto de vista
cronológico, criança não sejamos mais. Deste modo, conforme afirmam Tadeu, Corazza e
Zordan (2004), não há pontos, mas uma linha que percorre um mesmo continuum: um passo
para um lado e iremos para um ponto, um passo para o outro lado e iremos para o outro;
entretanto nunca estamos parados em um mesmo ponto. Deslizamos nas águas do Sirimim,
continuamente, a correnteza nos leva a situações que talvez nunca antes experimentamos. O
conto nos sugere que para nos aproximar da infância é necessário deixar-nos levar, em fluxos,
até ela. E fugir, portanto, das concepções cristalizadas do que é uma criança. Trata-se este de
um movimento que não descreve pontos de saída e nem de chegada. Essa infância que a
escrita de Rosa demonstra ter encontrado não é uma infância que se opõe ao adultez, mas que
se afirma como infantil na própria maneira de compor a narrativa.
E assim, sempre nos reencontramos com uma infância. Não aquela infância nossa,
perdida em algum ponto de uma existência própria. Mas aquela em que “‘uma’ criança
coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de
desterritorialização que nos arrasta a ambos – contrariamente à criança que fomos”
(DELEUZE, GUATTARI, 2007, p.92).
Foi preciso fazer emergir uma escrita infantil que inaugure as coisas no momento de
suas aparições, uma escrita que seja de novo uma inscrição no mundo, um modo de
apresentação de sentimentos e ideias autênticas, uma escrita que agregue, em torno da
palavra, expressões da intensidade da vida. Com Rosa, compreendemos que a narrativa pode
jorrar, infinita e sem uma destinação final. E, com ele, reinventamos o curso da história. O
trabalho literário de Guimarães Rosa consiste em desafiar os modos usuais de entendimento e
os esquemas interpretativos comumente utilizados para a compreensão das coisas no mundo.
O jardim e o rio – figurações expressivas de uma infância por vir – é que nos forçou a
pensar uma infância em sua força criadora e inventiva. A poesia, mais que a história, nos
conduz à recuperação dos processos afetivos, nas epifanias acumuladas ao longo de um
percurso, já que, com sua força expressiva, pode reconstituir o roteiro em que se inscrevem os
passos da trajetória – um mapa afetivo – em uma caminhada única e plural. Rosa percorre
155
uma geografia afetiva, criando imagens de lugares, fenômenos e experiências. De um lugar
imaginado, de um espaço privilegiado de onde se pode construir uma narrativa, coexistem
pessoas, fatos, cenários, objetos, animais, circunstâncias, vegetais. São coisas que se
justapõem, que se misturam à descoberta do menino em um jardim, às peripécias de uma
riacho em seu curso. E é desta profusão de coisas que surge uma escrita singularmente
infantil.
Esta escrita se remete a infâncias de um pensar, infâncias de um sentir. Autores como
Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Bartolomeu Campos Queirós provocam este pensar,
interpelam os sentidos, propiciam maiores e mais intensas experiências de aprendizagem do
humano. Ao criarem suas poesias/narrativas, eles nos desafiam a fazer o mesmo. No devir-
infância da escrita encontram-se aqueles que se deixam levar pelo fluxo sensível das palavras
literárias.
Mas a infância não se restringe à figura da criança. Os autores escolhidos para tal
análise, com o foco mais detido em Guimarães Rosa, não privilegiam a infância somente com
a utilização de personagens infantis. É por essa via que mais se investiu nossa intenção de
contribuir com uma visão renovada acerca da infância, da escrita da infância e da infância da
escrita. Analisamos os elementos como o rio, o jardim, o pássaro, a natureza na condição de
personagens conceituais, em termos deleuzeanos. Quando Deleuze afirma que a filosofia é
uma arte de criar conceitos, ele destaca a força contida num encontro contingente com algo
que nos impele a pensar. Este pensar, intenso e móvel, carece, por conseguinte, de
personagens que configurem uma melhor definição dos conceitos que serão elaborados
(DELEUZE, GUATTARI, 1992, p. 82).
Em todas as obras analisadas, são vários os encontros que nos impele a pensar sobre a
infância. Em “Jardins e Riachinhos”, de Guimarães Rosa, há um menino que se encontra
consigo mesmo no jardim fechado; da mesma forma, o Riachinho Sirimim nos leva a deslizar
pela correnteza, experimentando o encontro com a natureza em estado vivo e vivente. De
maneira similar, existem os encontros promovidos pelo fazer poético de Manoel de Barros,
sempre em busca de um conceito primordial para a palavra materializada pela sua poesia.
Também verificamos no encontro do pássaro com o menino em Até Passarinho Passa, de
Bartolomeu Campos Queirós, uma constatação para a fugacidade da existência humana, e o
quanto a infância precisa se reinventar sempre, a cada novidade da vida.
156
A pretensa familiaridade de quem se encontra no mundo, há muitos anos, traz a
sensação falsa de que tudo é muito conhecido, atitude própria do adulto. Mas o mundo é novo
e estranho para quem o percebe de maneira infantil, procurando sempre a novidade. Aquele
que sensivelmente tenta entender as coisas e é capaz de expressar, com esmero e dedicação, a
partir de um feitio próprio, de algum engenhoso artifício, esse entendimento, também ilustra a
infância, também se faz criança. É assim que arte e infância coexistem no processo de criação.
Na criação literária, são escritas da infância que inauguram uma infância da escrita.
Infância da escrita é o que marca a obra de Guimarães Rosa, Manoel de Barros e
Bartolomeu Campos Queirós. Em seu devir-criança, em suas escritas literárias, esses autores
assumem, em não raras vezes, uma composição fluida de infância. É assim que, por meio da
arte literária, a inventiva escritura de tais escritores se mostra capaz de transformar a
simplicidade da criança na epifania da infância.
157
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Casimiro de. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.
ALBUQUERQUE, Paulo Germano. Sobre literatura, animais e crianças. In: LINS, Daniel(org). Nietzsche / Deleuze: imagem, literatura educação. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza: Fundação de Esporte, Cultura e Turismo, 2007.
ALLIEZ, Eric. Deleuze Filosofia Virtual. São Paulo: Editora 34, 1996.
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