bethania mariani-preconceito linguístico

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    28 Mariani, Bethania.Entre a evidncia e o absurdo: sobre o preconceito lingstico

    falavam.2 Recentemente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, emdiscurso, afirmou o seguinte: H, sim, gente que sabe falar mais de uma ln-gua, mas sabemos falar nossa lngua, e falamos direito. E faremos o possvel e o

    impossvel para que todos os brasileiros falem a nossa lngua e falem bem.3

    Esses comentrios sempre chamaram minha ateno, pois mesclam, demodo simultneo, um absurdo e uma evidncia. Trata-se de um absurdo por-que podemos nos perguntar como possvel algum dizer que no sabe falarsua prpria lngua materna. E como possvel que isso se mostre para o sujeitocomo uma verdade, uma evidncia sobre si mesmo? Ou seja, como possvelque algum diga que mal fala, ou que mal fala, sua lngua materna, que

    tambm a lngua nacional? Nesses enunciados no est em jogo a identidadede quem fala? Ou melhor, no estaria em jogo uma no identificao entre osujeito que diz no saber falar sua prpria lngua e a lngua portuguesa? Essesenunciados so sintoma de qu? possvel sinalizar, de qualquer maneira,uma relao vacilante entre sujeito e lngua materna que se manifesta na formade um preconceito que o sujeito manifesta em relao a si prprio. essa atemtica que vou abordar na perspectiva da Anlise do Discurso.

    2 Os exemplos so inmeros. Agradeo a Suely Peanha de Almeida, a permisso de citaralguns por ela mencionados, em tese de doutorado defendida em maro de 2008, sob minhaorientao, na UFF (ALMEIDA, Suely Peanha de. Lngua, ensino e nacinalidade no Ins-tituto de Educao do rio de Janeiro (1880-1932); uma contribuio Histria das IdiasLingsticas. Tese de doutorado. Programa de Ps-Graduao em Letras, Universidade Fe-deral Fluminense, Niteri, 2008): (I) em cidade balneria:

    Sou advogada, mas antes fiz um curso de Letras. Na poca estudei bastante e sabia muitoPortugus. Hoje j esqueci tudo.

    II) ou, ainda em conversas entre amigos e familiares: a) Meu maior sonho aprender a falar um bom portugus. b) Quero aprender Portugus porque preciso passar num concurso pblico. (...., Suely,

    2008, indito)3 Este o trecho do discurso: Ns somos , sim, gente que estuda e trabalha, porque sem

    estudo e sem trabalho no se muda o Brasil. H , sim, acadmicos entre ns. No temosvergonha disso. H, sim, gente que sabe falar mais de uma lngua, mas sabemos falar nossalngua, e falamos direito. E faremos o possvel e o impossvel para que todos os brasileirosfalem a nossa lngua e falem bem. E no sejam brasileiros liderados por algum que desprezaa educao, a comear pela prpria disse o ex-presidente, no discurso de encerramento doencontro em que foi eleita a Executiva Nacional do PSDB, que passar a ter o senador SrgioGuerra (PE) como presidente. (Globo online, 23/11/07).

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    29Cardernos de Letras da UFF Dossi: Preconceito lingstico e cnone literrio, no36, p. 27-44, 2008

    Preconceito: um conceito do passado aos dias de hoje

    De acordo com o filsofo alemo Hans-Georg Gadamer, a histria das

    idias mostra que at o sculo XVIII, mais precisamente at o Iluminismo, oconceito de preconceitono tinha a conotao negativa que tem nos dias de hoje.Diz o autor: preconceito significa um julgamento que formulado antes quetodos os elementos que determinam uma situao tenham sido examinados.4(Gadamer, 1988, p. 270)5

    Preconceito, at ento, no significava um falso julgamento, mas apon-tava, na terminologia jurdica alem, por exemplo, que um fato pode ter um

    valor positivo ou negativo. Nas lnguas alem, francesa e inglesa, o que parece ter havido uma limitao no sentido de preconceito, em funo da crtica doIluminismo. Uma limitao que restringiu a idia de preconceito simplesmentea um julgamento infundado. De acordo com o pensamento Iluminista, parahaver dignidade em um julgamento necessrio ter havido uma base, uma justi-ficativa metodolgica. De acordo com Gadamer, para o Iluminismo, a ausnciadessa base no significa que deveria haver outros tipos de certezas, mas que ojulgamento no tem fundamento nessas prprias coisas, isto , que infundado.

    Essa concluso segue apenas no esprito do racionalismo. Essa a razo paradesacreditar os preconceitos e a razo cientfica, o conhecimento cientfico, rein-vidica sua excluso por completo. (Gadamer, op. cit., p. 278)

    As cincias humanas e sociais, tal como as conhecemos hoje, so tribut-rias dessa perspectiva, e a Lingstica, por essas razes, ope-se ferozmente aochamado preconceito lingstico. Assim, um lingista sempre se pe a seguira regra da dvida cartesiana, ou seja, no aceita como certeza nada de que se

    possa duvidar.Os iluministas dividiam a idia de preconceito em dois tipos. H pre-conceito devido autoridade humana e aquele devido a um excesso de pres-sa. Trata-se de uma distino que toma como base a origem dos preconceitosem pessoas preconceituosas. Afirma Gadamer: Que a autoridade umafonte de preconceitos, isso est de acordo com o princpio bem conhecidodo iluminismo que Kant formulou: tenha a coragem de fazer uso de seu

    4 Essas e as demais citaes de Gadamer foram traduzidas por mim.5 GADAMER, Hans-Georg. Truth and method. 2. ed. New York: Continuum, 1988.

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    30 Mariani, Bethania.Entre a evidncia e o absurdo: sobre o preconceito lingstico

    prprio entendimento.6A pressa uma fonte de errros que surge quando seutiliza, quando se parte apenas da prpria razo. J a autoridade, entretanto, responsvel pelo uso da razo alheia, e no a prpria. (Gadamer, id., ibid.)

    Vamos mais adiante com Gadamer: A distino, no Iluminismo, entrea f na autoridade e o uso da razo pessoal , em si, legtima. Se o prestgioda autoridade desloca o julgamento pessoal, ento a autoridade de fato umafonte de preconceitos. Mas isso no prescreve de ser uma fonte de verdade, eisso o que o Iluminismo fallhou em ver quando denegria toda autoridade.(...) autoridade no tem nada a ver com obedincia cega a comandos. De fato,autoridadade tem a ver menos com obedincia do que com saber, conheci-

    mento. verdade que autoridade implica a capacidade de comandar e deser obedecido. Mas isso procede apenas da autoridade que uma pessoa tem.(Gadamer, id., ibid.)

    No sculo XIX, a retomada do pensamento iluminista pelos romnticos,dir que h um tipo de preconceito que ligado tradio. A tradio seria ooposto liberdade de pensamento, pois apaga a histria e impe um modo depensar como bvio, nico e evidente. O que foi sancionado pela tradio e peloscostumes tem uma autoridade (que no nomeada), e nosso ser finito em termos

    histricos marcado pelo fato de que a autoridade que chegou at ns, que nosfoi passada (...) toda educao depende disso. (Gadamer, id. p. 282)

    De acordo com o filsofo alemo, de qualquer modo, estamos sempresituados entre tradies e isso no um processo objetivo (...) faz parte de ns,um modelo ou um exemplo, um tipo de conhecimento cuja historicidade nopercebemos (em ns). (Gadamer, id. ibid) Se fazemos parte da histria e estano transparente para ns, por outro lado, o prprio movimento da histria,

    com seu real e com suas contradies, implica a possibilidade de mudana ede resignificao.Tocando nessa questo de modo bastante singular, Gadamer aponta para

    o fato da impossibilidade de haver um horizonte histrico fechado, e afirma:O horizonte algo dentro do que ns nos movemos e que se move conosco.Horizonte muda para uma pessoa que est em movimento. Ento, o horizontedo passado, fora do qual toda vida humana no vive e o qual existe na formada tradio, est sempre em movimento. (Gadamer, op. cit., p. 285)

    6 Kant em texto de 1784, intitulado O que o iluminismo?

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    31Cardernos de Letras da UFF Dossi: Preconceito lingstico e cnone literrio, no36, p. 27-44, 2008

    Nos dias de hoje, o conceito de preconceito pode ser definido como umpr-julgamento, em geral ingnuo, ligado ao senso comum, a crenas que dosuporte a certezas injustificadas. Preconceito, ento, uma opinio ou crena

    admitida sem ser discutida ou examinada, internalizada pelos indivduos semse darem conta disso, e influenciando seu modo de agir e de considerar ascoisas. O termo possui um sentido eminentemente pejorativo, designando ocarter irrefletido e freqentemente dogmtico dessas crenas (...) (Marcon-des e Japiassu, 1996, p. 219)7

    Essa breve explanao sobre a histria do preconceito ajuda a circuns-crever a questo proposta por esse texto: como possvel introjetar, ou me-

    lhor, naturalizar uma viso preconceituosa com relao ao prprio modo defalar? Temos algumas pistas que indicam que tais enunciados representam,na historicidade atual da nossa formao social, a internalizao de umacrena. Tal crena, ou suposio existe um modo de falar corretamentea lngua e tal internalizao foram possveis em funo de uma tradiolegitimadora na qual se d o apagamento da historicidade que a consti-tuiu de uma determinada forma de falar em detrimento de outra. O quea tradio fez, e faz ainda, associar distintas e opostas representaes de

    lngua nacional.

    Discursividades em circulao

    Do ponto de vista da Anlise do Discurso, situamos a questo do pre-conceito lingstico como uma discursividade que se encontra em circulao,que mantida por relaes sociais, institucionais e administrativas que inte-

    ressam s instncias de poder (Orlandi, 2002)8

    . Assim pensando, diremos queo precoceito de natureza histrico-social, e se rege por relaes de poder,simbolizadas. O preconceito se realiza individualmente, mas no se constituino indivduo em si e sim nas relaes sociais, pela maneira como se significame so significados. (Orlandi, op. cit., p. 197)

    7 MARCONDES, D. e JAPIASSU, H. Dicionrio bsico de filosofia. 3a. edio revista eampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

    8 ORLANDI, Eni.Lngua e conhecimento lingstico.So Paulo: Cortez, 2002.

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    32 Mariani, Bethania.Entre a evidncia e o absurdo: sobre o preconceito lingstico

    Ao dizer que fala errado, o sujeito se coloca em uma posio de devedor:ele estaria em dvida com as autoridades simblicas que zelam pela tradiode uma determinada representao da lngua. No se trata, portanto, de um

    processo consciente, pois em funo do modo como essa tradio se constitui,ou seja, em funo do modo como a historicidade constitui os sentidos, o su-jeito no se d conta nem de como esses enunciados se constituem nele e nempercebe a repetio em si.

    Por outro lado, importante ressaltar, o que est sendo discutido aquino se coloca contra a existncia de normatizaes ou de regras em termosde lngua nacional. O que est sendo discutido e pensado, neste trabalho,

    o como uma norma passa a ser um divisor que qualifica ou desqualifica oscidados, dando-lhes lugar ou excluindo-os da convivncia social qualificada.(Orlandi, op. cit., p. 199)

    Vamos desenvolver essa afirmao seguindo dois eixos. No primeiro,propomos de modo bastante conciso uma histria dos sentidos do confrontoentre a diferena e a deficincia em termos de lngua. No segundo, retomare-mos sinteticamente o percurso da histria das idias lingsticas no Brasil.

    Um percurso: da Grcia ao Novo MundoRevisitando a tradio grega

    Quando se estuda o interesse dos gregos pela linguagem, verifica-se que osgregos do perodo clssico tinham conhecimento tanto da existncia de lnguasdiferentes quanto da variao lingstica presente na prpria lngua grega.

    De tudo isso, diz-nos Robins, surpreendentemente, sabemos muito

    pouco. Herdoto e outros citam e comentam palavras estrangeiras; Plato admi-te no Crtiloa possibilidade da origem aliengena de parte do vocabulrio grego,e ns sabemos da existncia de falantes bilngues e de intrpretes profissionais.No h, porm, nenhuma evidncia de que existisse entre os gregos interessepelas lnguas em si mesmas. Um sintoma da provvel falta de interesse temos,ao contrrio, na aplicao aos falantes estrangeiros do termo barbaroi (dondea nossa palavra brbaro), com que os gregos sempre se referiam s pessoas defala ininteligvel. (Robins, 1979, p. 8)9Porm, de modo indireto, possvel

    9 ROBINS, R.H. Pequena histria da lingstica. Rio de Janeiro: ao Livro Tcnico, 1979.

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    33Cardernos de Letras da UFF Dossi: Preconceito lingstico e cnone literrio, no36, p. 27-44, 2008

    afirmar que os gregos de algum modo reconheciam as variaes internas dalngua, mas defendiam uma unidade lingstica como forma de fazer frente aosdemais povos. Robins cita um relato de Herdoto para corroborar esse ponto de

    vista: Herdoto (...), em seu relato da maior faanha realizada por uma Grciatemporariamente unida contra os invasores persas, no incio do sculo V a.C.,pe nos lbios dos delegados gregos a declarao de que, entre os laos que osuniam para resistir aos brbaros, estava o fato de toda a comunidade grega tero mesmo sangue e a mesma lngua. (Robins, op. cit, p. 9)

    O termo brbaro, portanto, em princpio designava o estrangeiro, ooutro, a outra lngua. Com imprio romano, por outro lado, brbaro passa a

    designar o outro no civilizado. A diferena lingstica

    povos que no fa-lam latimfica subordinada a uma valorao negativa, ou seja, brbaro passaa designar todos aqueles que no partilham dos costumes romanos. H, nessesentido, um processo de excluso que engloba lngua e cultura.

    Para o antroplogo Copans (1974)10, o perodo medieval ressignifica osentido de brbaro. Lembremos, aqui, que durante a Idade Mdia que seconsolida o processo de cristianizao da Europa. Assim, o ponto de vistaromano que dividia os grupos sociais entre brbaros X civilizados modifica-

    se pelo acrscimo da diviso do mundo entre cristos e no cristos. O olhareurocntrico cristaliza como paradigmtico o seu modo de ser no mundo, ummodo de ser que relaciona civilizao com cristianismo. As grandes navega-es, caminho para a descoberta e colonizao do chamado Novo Mundo,levam esse olhar para os povos desconhecidos. Para os europeus, a partir dosculo XV, as diferenas lingsticas, scio-culturais e religiosas so compreen-didas como deficincia. A chegada dos portugueses na frica e no Brasil est

    inserida nesta ideologia.

    A tradio revisitada: Novo Mundo

    Em termos ideolgicos, ento, preciso entender esse processo colo-nizador e lingstico portugus em relao s demais lnguas europias.A expanso lingstica fruto de uma ideologia de legitimao nacional quese d tanto em termos de uma poltica lingstica interna nao portuguesa

    10 COPANS, Jean. Antropologia: cincia das sociedades primitivas? Lisboa: Edies 70. 1974.

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    34 Mariani, Bethania.Entre a evidncia e o absurdo: sobre o preconceito lingstico

    quanto relativamente ao conjunto das outras lnguas tambm gramatizadas,ensinveis e traduzveis. Uma vez constituda, essa relao lngua-nao torna-se um emblema da real ordem scio-poltica portuguesa. No contexto brasilei-

    ro, faz parte da colonizao lingstica (Mariani, 2004)11, em seu ideal comu-nicativo de produo de transparncias, uma srie de prticas linguageiras,ou melhor, de rituais scio-discursivos oriundos, em sua maioria, de prticasreligiosas associadas manuteno do poder real.

    Assim, para a metrpole portuguesa, o exerccio de uma poltica unitriade imposio da lngua portuguesa representava a possibilidade de domesti-cao e absoro das diferenas de povos e culturas indgenas que se encon-

    travam fora dos parmetros do que se entendia como civilizao na poca.Para a igreja12, sobretudo aps o movimento conhecido como contra-reformacatlica, o caminho mais direto para a expanso da evangelizao realizava-seatravs da adoo do vernculo local, no caso, da utilizao do tupi, a lnguaindgena majoritariamente falada na costa do Brasil13, e que nas primeirasdcadas da colonizao era chamado de lngua braslica. importante lembrarmais uma vez que essa lngua braslicafoi a lngua eleita comogeral pelos jesu-

    11 MARIANI, Bethania. Colonizao lingstica: lngua, poltica e religio no Brasil (sculosXVI a XVIII) e nos Estados Unidos da Amrica (sculo XVIII). So Paulo: Pontes, 2004.

    12 Veja-se que o esprito evangelizador no se restringia ao Brasil. A expanso portuguesalevou a catequese tambm a todos os territrios conquistados na sia. No final dosculo XIX, este esprito cristo j era visto com olhos crticos por alguns historiado-res portugueses, como se pode ler na Introduo do Livro das Mones, publicado em1893 pela Academia de Sciencias de Lisboa: Sendo a idia dominante na PennsulaHispnica, nas pocas transactas, a converso dos povos barbaros ao Christianismo, eportanto necessaria a interveno do clero, por esta causa foram para a India, em seguida sua descoberta, muitos membros das diversas corporaes religiosas, e ali fundaram togrande nmero de casas que chegou a ser necessrio expedir terminantes ordens para serestringirem no s em nmero de conventos e hospcios, como no pessoal delles.Devemos crer que no era s a converso das almas que levava os pacficos religiosos quellalongnquas paragens, e sim tambm o interessem das communidades; e tanto isto se prova,que num perodo relativamente no muito longo estavam j senhores da maioria dos terre-nos mais frteis, por cuja posse constantemente litigavam entre si, quando no era com ospovos ou com o prprio governo de Estado, por questes redditos, ou por quaqulquer outrointeresse, intromettendo-se at nas obrigaes a cargo das autoridades civis e militares.

    13

    Aryon Rodrigues (1990) afirma que os os portugueses se aplicaram a procurar convivercom os tupinambs e a aprender a lngua destes, que tinha ento a virtude de permitir acomunicao em quase toda a grande extenso da costa do Brasil.

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    tas e, apesar da diversidade lingstica existente, os esforos de gramatizao(Auroux, 1992)14centraram-se fundamentalmente nela.

    O caso da lngua portuguesa frente s lnguas indgenas o da imposio

    da lngua do conquistador. Lngua essa que, por ser de domnio comum da na-o portuguesa, supe, ainda que imaginariamente, um entendimento entre orei e seus sditos. Tal entendimento, por sua vez, significa a regulao jurdicadas atribuies, direitos e deveres dos sditos de sua majestade, bem como ainsero de todos os portugueses em uma memria comum da hegemonia dalngua portuguesa frente ao latim. Assim, ao se impor a lngua portuguesa paraos ndios, est se impondo tambm uma lngua com uma memria outra: a

    do portugus cristo. O silenciamento das lnguas indgenas o silenciamentoda memria de outros povos. H, dessa forma, um efeito homogeneizadorresultante desse processo de colonizao lingstica que repercute ainda hojeno modo como se concebe a lngua nacional no Brasil.

    Em suma, o esforo portugus em civilizar os ndios nada mais era senoinclu-los nos moldes da civilizao europia, provendo aquilo que suposta-mente estaria faltando para esta incluso: uma estrutura jurdico-administra-tiva, uma autoridade governamental e uma religio. Em Gndavo, Histria da

    provncia de Santa Cruz(1576), pode-se depreender a formulao da ideologialingstica eurocntrica que projetava nas lnguas desconhecidas as precarieda-des sociais e religiosas atribudas aos ndios:

    (...) a lingoa deste gentio toda pella costa he ha, caree de tresletras no se acha nella f, nl, nR, cousa digna despanto por~q assy no tem f nlei, nem Rei, & desta maneira viusem

    justia desordenadamente.15

    Lembremos que, na descrio das lnguas, os cronistas da poca, seguindoessa idia lingstica, estabeleciam sempre uma correspondncia com o enun-ciado sem lei, sem rei, sem Deus, o qual serviu de mote para a materializaode uma ideologia lingstica no Brasil. Ideologia essa bastante ntida e precisapor parte dos jesutas, mas muitas vezes contraditria por parte da metrpole

    14

    AUROUX, Sylvain. A revoluo tecnolgica da gramatizao.Campinas, Ed. da Unicamp,1992.15 Gndavo, (1576) 1965, p. 181-183.

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    portuguesa. Em outras palavras, esse enunciado inaugural16institui um pri-meiro stio de significncia17sobre as lnguas indgenas, que tanto possibilitainmeras repeties e parfrases em torno desse imaginrio da deficincia lin-

    gstica quanto justifica a ideologia da superioridade das lnguas europias e,mais especificamente, da portuguesa. Tal enunciado falado, escrito, lido erepetido em todas essas modalidades constri um limite para os sentidos.Ele possibilita, com a cristalizao do gesto de interpretao18ali constitudosimbolicamente, a naturalizao desse sentido de falta para as lnguas e para ossujeitos que as falam: como uma evidncia dessa precariedade e dessa defici-ncia que ambos sero ouvidos e descritos, ou seja, interpretados.

    Essa tradio sobre as lnguas indgenas, uma tradio criada em tornoda idia de deficincia, de falta, tinha nos jesutas seu lugar de autoridadesimblica. Uma autoridade que foi derrubada, negada, banida em meados dosculo XVIII, com o Diretrio dos ndios, uma ordem rgia expedida com oaval do Marqus de Pombal que ordena o uso exclusivo da Lngua Portuguesana colnia brasileira. A lngua portuguesa, instituio da nao portuguesa, foiinstitucionalizada na colnia atravs desse ato poltico-jurdico, um ato queoficializa de modo impositivo que era essa, e apenas essa, a lngua que devia

    ser falada, ensinada e escrita, exatamente nos moldes da gramtica portuguesavigente na Corte.

    A partir da, abre-se o caminho para institucionalizar-se, assim, A lnguaportuguesa com SUA memria de filiao ao latim. O Diretriobusca colocar emsilncio a lngua geral e seus falantes, caracterizando a referida lngua como umainveno diablica. No se fala em um portugus-brasileiro. Ele ou no existeaos olhos da metrpole, ou, se existe, precisa ser corrigido, melhorado, reforma-

    tado de acordo com os moldes gramaticais portugueses. Aos olhos da metrpoleprecisa ser a continuidade da imaginria homogeneidade que confere o carter

    16 Orlandi discute o enunciado Terra vista enquanto enunciado inaugural do Brasil, queatesta nas letras a nossa origem como uma terra em que a descoberta (o vera terra) significaconquista (ORLANDI, Eni. Terra vista. So Paulo: Ed. Cortez & Campinas: Ed. daUnicamp, 1990, p.14).

    17 ORLANDI, Eni. Lngua e conhecimento lingstico; para uma histria das Idias no Brasil.So Paulo, Cortez Editora, 2002, p. 15.

    18 Conforme Orlandi, retomando Pcheux (1969), a interpetao um gesto, ou seja, umato no nvel do simblico. (1996 a, p. 18).

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    nacional a Portugal. Mas os processos histricos, como dissemos anteriormente,so continuidade e mudana, sempre. E os horizontes, mesmo que convivamentre tradies, podem se alterar, como vimos com Gadamer (op. cit.).

    No sculo XIX, com a independncia, outras questes se colocam, so-bretudo a discusso sobre os sentidos da lngua nacional dos brasileiros inde-pendentes. Mas ser apenas no final do sculo XIX que gramticas escritas porbrasileiros comeam a ser escritas, inaugurando um lugar de autoria no Brasil.

    Durante o XIX, portanto, consolidou-se um sentimento de independn-cia frente a Portugal e de nacionalismo.19Apesar de o incio da independnciater sido, entre outras coisas, fruto de acordos polticos realizados pela famlia

    real, o processo desencadeado permitiu uma lenta e gradual separao entre osdois Estados-naes. principalmente no Rio de Janeiro, capital do impriobrasileiro, que se realizam os grandes debates sobre as direes de um nacio-nalismo brasileira.

    Mas e a lngua? Seria possvel para os polticos e homens de letrasda poca afirmar que no Brasil independente havia uma outra forma lin-gstica sobre a qual se poderia dizer que era uma lngua de cultura e decivilizao? Lembremos, aqui, que a expresso lngua de culturaest geral-

    mente associada a uma lngua depositria de uma tradio literria, cujalegitimao histrica parea indiscutvel. E lngua de civilizao aquelaque cumpre a funo de garantir o acesso e a circulao das informaescientficas e culturais.20

    A questo lingstica presente logo aps a independncia referia-se tam-bm a uma controvrsia, nem sempre colocada de modo explcito, at porqueela apresentava muitos aspectos a serem considerados: a pertinncia ou no do

    emprego da lngua metropolitana do modo como ela era empregada na Euro-pa; a necessidade ou impossibilidade de utilizao da lngua da antiga matriz com uma escrita, uma gramtica, uma prosdia e uma literatura de algumaforma impostas pelo ex-colonizador como lngua nacional de uma naoindependente; e, ainda, a aceitao ou no da presena das lnguas indgenase africanas na lngua falada.

    19

    Cf. MARIANI, Bethnia; JOBIM, Jos Lus. National language and post-colonial literaturein Brasil. In: Revista da Anpoll. No. 20, 2006, p. 11.20 Cf. BAGGIONI, Daniel. Linguas e nacins na Europa. Galicia, Ed. Laiovento, 2004.

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    38 Mariani, Bethania.Entre a evidncia e o absurdo: sobre o preconceito lingstico

    Sendo o momento conveniente politicamente para descartar o pensa-mento de uma unidade lingstica absoluta, j que se engendra uma auto-nomia incipiente, formulam-se as perguntas: At que ponto seria possvel

    expressar as especificidades de uma nao recm-independente com a lnguado colonizador? o Estado que engendra a lngua e a nao ou, ao contrrio,uma lngua-naotem precedncia sobre um Estado-nao?21

    Inserindo-se no contexto do debate de ex-colnias sobre um naciona-lismo lingstico, debate iniciado no sculo anterior com a independnciaamericana, por exemplo, essas discusses vigentes no sculo XIX configuramum espao discursivo polmico em torno de um imaginrio de lngua e vo

    recortar e focalizar ora as diferenas no modo de falar e no lxico, ora as seme-lhanas na forma escrita da lngua, com argumentos favorveis ou contrrios unidade lingstica entre Portugal e Brasil. E um dos elementos que entraem jogo como demarcao de posies de defesa ou de ataque autonomialingstica do Brasil exatamente o nome da lngua nacional: lngua brasileira,para uns; lngua portuguesa, para outros.

    De acordo com a periodizao da histria da lngua portuguesa no Brasilproposta por Guimares (2005)22, essas discusses integram o quarto perodo

    histrico, momento em que se inaugura de modo sistemtico a gramatizaodo portugus brasileiro e cujo incio, de acordo com o autor, se d precisamen-te no ano de 1826, quando o deputado Jos Clemente se vale da expressolinguagem brasileira para designar o nome da lngua a ser usada na confec-o de diplomas mdicos.

    Observe-se, porm, que Jos Clemente usa essa expresso sem nenhumrespaldo legal, pois a constituio outorgada em 1824 no menciona a lngua

    que se fala no Brasil, deixando em aberto no mbito legal o nome da lngua ofi-cial. Nessa constituio, define-se o que o imprio do Brasil no artigo primeiro O Imprio do Brasil a associao Poltica de todos os cidados brasileiros.Eles formam uma Nao livre, e independente (...) , define-se quem so oscidados brasileiros no artigo sexto So cidados brasileiros os que no Brasil

    21 Baggioni (op. cit.) discorre longamente sobre esta questo referindo-se particularmente situao da Frana e da Alemanha.

    22 GUIMARES, Eduardo. A lngua portuguesa no Brasil. In: Lnguas do Brasil. Revista cincia eCultura da SBPC. Ano 57, nmero 2. So Paulo, SBPC & Imprensa Oficial, 2005, p. 24 a 28.

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    39Cardernos de Letras da UFF Dossi: Preconceito lingstico e cnone literrio, no36, p. 27-44, 2008

    tiverem nascido, quer sejam ingnuos ou libertos (...)23, mas no se definenem se menciona qual a lngua falada pelos cidados desse imprio. Seria alngua um fato aparentemente to bvio que no precisasse ser mencionado na

    Constituio, ela prpria escrita nesta lngua? Essa indefinio jurdica estrategi-camente se mostra bastante produtiva em termos de denominao: mesmo noafirmando, a lngua portuguesa a lngua oficial da nao recm-independente.Esse primeiro texto de nossa histria constitucional, bom lembrar, vigorou ata proclamao da repblica, ou seja, teve a durao de 65 anos.

    No mbito da lei, desliza-se, desse modo, de algo no dito o nome dalngua oficial para a utilizao da expresso lngua nacional como forma

    de designar o nome da lngua falada no Brasil. Assim que, em uma lei geralrelacionada ao ensino e promulgada em 1827, aparece pela primeira vez aexpresso lngua nacional para designar que os professores ensinaro a ler,escrever (...) a gramtica da lngua nacional.24 Ora, a indefinio jurdicaaponta para uma ambigidade semntica, pelo menos para alguns letrados:qual seria a lngua nacional? A que se refere a expresso lngua nacional?

    No mbito das discusses intelectuais e acadmicas, atribui-se ao Vis-conde da Pedra Branca a autoria do texto que menciona pela primeira vez de

    modo mais sistemtico as diferenas entre a lngua portuguesa em Portugal eno Brasil.25Escrito em francs e publicado na Introduo doAtlas Etnogrficodo Globo (1824-25), de Adrien Balbi, nesse texto encontra-se a utilizao daexpresso idiome brsilien, alm da descrio de aspectos da pronncia brasi-leira e uma listagem de palavras.26Mas essa forma de diferenciao listagemde palavras e descrio de aspectos prosdicos j se encontra no dicionrio

    23 Conforme reproduo de Nogueira (1997), p. 79 e 80, in NOGUEIRA, Octaciano (org.).Constituies brasileiras. Volume 1, 1824. Coleo Constituies Brasileiras. Braslia, Sena-do Federal e Ministrio da Cincia e Tecnologia, Centro de Estudos Estratgicos, 2001.

    24 Sobre os sentidos do idioma nacional, v. Dias (1996).25 o que afirma E. P. Pinto (1978), quando estabelece um conjunto bastante representativo

    de textos e autores sobre essa temtica entre 1820 e 1920 (PINTO, Edith Pimentel. Oportugus do Brasil; textos crticos e tericos, 1 1820/1920, fontes para a teoria e a histria.Rio de Janeiro, Livros Tcnicos e Cientficos & So Paulo, Edusp, 1978).

    26 As listas de palavras tanto as indgenas e africanas quanto as portuguesas que tm seu sentidoalterado no Brasil estiveram presentes desde o incio da colonizao lingstica nas cartas je-sutas, nas crnicas dos historiadores, nos dicionrios bilnges com finalidades catequticas.

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    40 Mariani, Bethania.Entre a evidncia e o absurdo: sobre o preconceito lingstico

    (1813) e na gramtica (1802) do lexicgrafo Antnio de Morais e Silva sob aforma de ... anotaes naturalmente sugeridas pela linguagem do Brasil.

    Depreendem-se nesse comeo da independncia, que corresponde ao

    incio do quarto perodo da histria da lngua portuguesa no Brasil, os proces-sos de produo de sentidos norteadores das discusses subseqentes sobre onome e a natureza da lngua do Brasil: uma lngua autnoma, expresso de umpovo independente ou uma lngua-herana, e, portanto, ainda subserviente norma portuguesa? As discusses do XIX trazem tona posies scio-histri-cas reveladoras, de certo modo, do prprio processo de ressignificao de umalngua de colonizao quando em contato com outras lnguas.

    De um ponto de vista discursivo, compreende-se que a lngua portugue-sa, ao atravessar o Atlntico e adentrar as terras da colnia, sem dvida ir so-frer modificaes em sua estrutura, mas ir, sobretudo, historicizar-se de mododiferente, passando a ser uma lngua cuja memria j no mais apenas aquelarelacionada histria portuguesa. O contato com outras lnguas e o fato de serfalada por sujeitos nascidos na colnia impregnam a lngua usada no Brasil comum sentimento de identidade outro, no mais portugus. Sua legitimao comolngua nacional no Brasil, portanto, passa por injunes que a historicizam de

    modo diferenciado: essa lngua portuguesa j no mais a mesma que se con-tinua falando em Portugal. Por outro lado, no h como silenciar totalmente amemria portuguesa, gerando esse efeito contraditrio: fala-se a mesma lngua eao mesmo tempo fala-se outra lngua. De acordo com Orlandi:

    Como estamos no Brasil, h um deslocamento (transporte) que

    fora contornos enunciativos diferenciados. (...) H um giro no

    regime de universalidade da lngua portuguesa que passa a tersua prpria referncia no Brasil. Se, empiricamente, podemos

    dizer que as diferenas so algumas, de sotaque, de contornos

    sintticos, de uma lista lexical, no entanto, do ponto de vista

    discursivo, no modo como a lngua se historiciza, as diferenas

    so incomensurveis: falamos diferente, produzimos diferentes

    discursividades. (ORLANDI, 2005, p. 30)27

    27 ORLANDI, Eni. A lngua brasileira. In Lnguas do Brasil. Revista Cincia e Cultura daSBPC. Ano 57, nmero 2. So Paulo, SBPC & Imprensa Oficial, 2005.

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    41Cardernos de Letras da UFF Dossi: Preconceito lingstico e cnone literrio, no36, p. 27-44, 2008

    Em suma, durante o sculo XIX, nesses processos histrico-linguageirosem que contraditoriamente jogam o mesmo e o diferente na lngua falada noBrasil, politicamente se configuram trs regies de significao, marcadas por

    lugares enunciativos conflitantes em termos de autoridade simblica sobrea lngua: o primeiro, como j mencionamos, o da lei com suas indefini-es; os outros dois lugares enunciativos referem-se ao de alguns fillogos,gramticos e historiadores, e ao de literatos.28Apesar de comportarem umaheterogeneidade interna, esses posicionamentos enunciativos divergentes po-dem ser esquematizados como segue: de um lado, aqueles que falam sobre aslnguas, os gramticos e os fillogos, pensando dominar um saber sobre estas

    e julgando-se no direito de classificar, modelizar e avaliar os usos literrios eno-literrios; e, de outro, os escritores que falam sobre a lngua que usam,comprometidos que esto com os regimes enunciativo-literrios de sua poca,muitas vezes inseridos em projetos histricos e estticos opostos aos sabereshegemnicos em circulao.

    Mas so os gramticos os principais defensores da unidade lingsti-ca. Descrevendo a lngua numa perspectiva esttica, no espao da memriaportuguesa, os gramticos portugueses negam a possibilidade de haver uma

    outra histria da lngua a partir da travessia do Atlntico. Alguns autores,como Carneiro Ribeiro (1890) definem a lngua falada no Brasil como sen-do o idioma luso-brasileiro. Outros s se referem lngua que aqui se falaquando objetivam apontar os desvios ao bom portugus, como diz, porexemplo, Gomes:

    Provincialismos

    - corrupes no modo geral de falar peculiares a provncias ou pas ondeuma lngua falada.

    - demora da prolao das palavras, defeitos do brasileiro em gerale, emparticular, do norte do Brasil.

    28Cf. MARIANI, B; SOUZA, Tania. 1822, ptria independente: outras palavras? InOrganonQuestes de Lusofonia. No 21, Volume 08. Porto Alegre, UFRGS, 1994, p. 43 a 52.

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    42 Mariani, Bethania.Entre a evidncia e o absurdo: sobre o preconceito lingstico

    29 ALENCAR, Jos de. Ps-escrito segunda edio de Iracema. In: ---. Obra completa. Rio deJaneiro: Aguilar, 1958 [1870]. V. 2. p. 308-320.

    Brasileirismos

    - termos ou expresses prprias dos brasileiros: vi ele, encontrei ela, se

    disse que ele no apresentou-se, para mim comer, vatap, capoeira, quilombo-la. (Gomes, 1895, p. 196, apud Mariani e Sousa, op. cit.)

    So corrupes lingsticas, so defeitos do brasileiro a prosdia e ostermos ou expresses prprias dos brasileiros. Produz-se, desse modo pejo-rativo, ou para melhor dizer, retomando o incio de nosso trabalho, fala-se deum lugar preconceituoso que mantm uma tradio, a memria de uma de-terminada significao constitutiva do passado da colnia, uma vez que sob a

    rubrica brazileirismos classificam-se palavras de origem indgena e africana.Para os representantes do outro grupo, ao contrrio, as diferenas entre alngua falada no Brasil e a lngua falada em Portugal so motivo de orgulho e, aomesmo tempo, decorrncia da prpria atividade lingstica, como afirma Jos de

    Alencar (1870)29em sua longa divergncia com a posio de Pinheiro Chagas.Enfim, falar do nacional e de lngua(s) nacional(nais) ainda nos dias de

    hoje, tomando como pano de fundo os efeitos da colonizao lingstica, seencontrar politicamente inscrito em duas ordens contraditrias: a que acolhe

    e a que rejeita a lngua do colonizador. E que se registre aqui que, dessa hete-rogeneidade, memria e esquecimento so constitutivos da contradio abertapela tenso entre o lembrar e o esquecer tais marcas da colonizao lingstica.Assim, ao acolher a lngua do colonizador, fala-se de uma determinada posi-o: aquela que confere autoridade simblica aos gramticos defensores dopadro normativo, um padro que legitima uma representao de lngua nosmoldes da gramtica portuguesa. Ao rejeitar essa representao, abre-se espao

    justamente para um outro horizonte, um horizonte na perspectiva trazida porOrlandi: Nessa perspectiva, ento, falamos decididamente a lngua brasileira,pois isto que atesta a materialidade lingstico-histrica. Se, empiricamen-te, podemos dizer que as diferenas so algumas, de sotaque, de contornossintticos, de uma lista lexical, no entanto, do ponto de vista discursivo, nomodo como a lngua se historiciza, as diferenas so incomensurveis: falamosdiferente, produzimos diferentes discursividades. (Orlandi, 2005)

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    43Cardernos de Letras da UFF Dossi: Preconceito lingstico e cnone literrio, no36, p. 27-44, 2008

    Preconceito e identificao

    Retomando o incio de nosso trabalho, quando trouxemos o lugar

    entre o absurdo e a evidncia que muitos ocupam ao repetir enunciadospreconceituosos sobre o seu prprio falar, podemos pensar o quanto essessujeitos, muito provavelmente, encontram-se inseridos em uma tradioque, historicamente, construiu a evidncia de uma unidade lingstica erepresenta imaginariamente a lngua nacional a partir da lngua do coloniza-dor. No entanto, essa lngua nacional, ensinada na escola, preconizada comocorreta, pouco ou quase nada tem a ver com o modo como muitos e muitos

    brasileiros falam a lngua.Muitos brasileiros, ento, no se identificam com o que chamado delngua nacional, no se identificam com essa representao que projeta umimaginrio de unidade, sentem-se excludos e, como os enunciados atestam,acabam por introjetar um preconceito contra seu prprio modo de falar. H,em termos discursivos, uma contra-identificao (Pcheux, 1988 [1975])30degrande parte dos brasileiros com a lngua que fala.31

    O que esses enunciados materializam a contradio constitutiva da

    memria de nossa lngua, uma lngua que, se em seus comeos foi umalngua de colonizao em luta com outras lnguas, para firmar-se como ln-gua nacional apagou essas outras lnguas bem como sua heterogeneidadeinterna.

    30 PCHEUX, Michel.Semntica e discurso; uma crtica afirmao do bvio. Campinas, Ed.da UNICAMP, 1988 [1975]).

    31 Sobre a questo da contra-identificao, desenvolvemos essa discusso emLngua nacional epontos de subjetivao(2007). Tambm Suely P. de Almeida, em sua tese de doutorado, trata

    dessa temtica.

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    44 Mariani, Bethania.Entre a evidncia e o absurdo: sobre o preconceito lingstico

    RSUM

    Cet article a comme thme la question du prjug lin-

    guistique, du point de vue de lAnalyse du Discours. partir du parcours historique de ce concept, nous en-

    visageons de discutir la faon par laquelle, au Brsil, ce-

    lui qui parle la langue portugaise au Brsil a la sensation

    quil ne parle pas comme il faut (correctement).

    MOTSCLS: Prjug linguistique, analyse du discours, histoire

    Recebido em 01/02/2008

    Aprovado em 05/06/2008