bicentenário da pilha elétrica

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35 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 11, MAIO 2000 A tualmente, a pilha elétrica está presente em muitos momentos de nossa vida. Ela foi inventada em 1799/1800 e, portanto, comemo- rando o seu bicentenário. A sua utilida- de não reside apenas na ativação de equipamentos elétricos de nosso uso habitual, como pode-se notar pelo artigo “Pilhas e baterias: funcionamen- to e impacto ambiental”, na página 3 desta revista. No passado, elas servi- ram para fornecer corrente elétrica ne- cessária aos experimentos de cientis- tas que estabeleceram as bases da Eletroquímica, como Humphry Davy (1778-1829), Michael Faraday (1791- 1867) e tantos outros. Como tudo começou Alguns séculos antes da era cristã, o filósofo Tales de Mileto (ca. 625-550 a.C.) havia observado que friccionando pedaços de âmbar (uma resina natu- ral) com tecidos de seda, eles adqui- riam a propriedade de atrair fragmen- tos de palha. Como o âmbar era co- nhecido em grego pelo nome de “elek- tron”, nasceu então a palavra eletrici- dade. Mais de dois milênios depois, em 1660, Otto von Guericke (1602-1686) inventou a primeira máquina para pro- duzir eletricidade: uma esfera de enxo- fre dotada de um eixo e um dispositivo mecânico que permitia imprimir-lhe um movimento de rotação. Quando friccio- nada com algum material - a mão se- ca, por exemplo - a esfera tornava-se ele- trificada e produzia pe- quenas faíscas, atraía gotas de água, frag- mentos de palha etc. Outras máquinas foram idealizadas a partir da de von Gue- ricke, e as cargas elé- tricas por elas geradas se tornaram objeto de investigação em um vasto campo de pesquisa sobre a então chamada eletricidade estática. As cargas elétricas geradas por essas máquinas podem produzir faíscas in- tensas, fluir por pontas metálicas, ser armazenadas em capacitores, então chamados de garrafas de Leiden etc. Todavia, não se conseguia um fluxo contínuo dessas cargas, isto é, uma corrente elétrica. Galvani e a eletricidade Na segunda metade do século 18, Luigi Galvani (1737-1798), professor de anatomia na Universidade de Bolonha (Itália), onde havia se formado em 1759 como médico e filósofo, voltou-se para a aplicação terapêutica da eletricidade, um campo conhecido na época como “eletricidade médica”. Na década de 1780, dirigiu seus tra- balhos sobre o que se chamava de eletrici- dade animal , termo cunhado pelo médico francês Pierre Bertho- lon (1741-1800), que juntamente com o ita- liano Giuseppe Gar- dini (1740-1816) de- fendia a existência de uma eletricidade própria dos corpos animais. No dia 26 de janeiro de 1781, Galvani trabalhava com uma rã disse- cada, cujos membros inferiores repou- savam sobre uma mesa do seu labo- ratório, junto com alguns equipamen- tos, entre eles uma máquina eletros- tática. Quando um dos seus auxiliares tocou os nervos internos da perna da rã com a ponta de um bisturi, houve uma violenta contração dos músculos da perna do animal morto. Aparente- mente isso ocorreu quando uma faísca foi emitida pela máquina eletrostática. A princípio, Galvani supôs que isso só aconteceria quando a máquina eletros- tática estivesse funcionando e que o Mario Tolentino e Romeu C. Rocha-Filho Este artigo apresenta o contexto da invenção da pilha elétrica no final do século 18 por Alessandro Volta, incluindo a sua célebre controvérsia com Luigi Galvani. Alessandro Volta, pilha elétrica, Luigi Galvani, eletricidade animal Tales de Mileto observou que friccionando pedaços de âmbar com tecidos de seda, o âmbar atraia fragmentos de palha. Âmbar era conhecido em grego pelo nome de “elektron”. Assim nasceu a palavra eletricidade Bicentenário da pilha elétrica

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 11, MAIO 2000

Atualmente, a pilha elétrica estápresente em muitos momentosde nossa vida. Ela foi inventada

em 1799/1800 e, portanto, comemo-rando o seu bicentenário. A sua utilida-de não reside apenas na ativação deequipamentos elétricos de nosso usohabitual, como pode-se notar peloartigo “Pilhas e baterias: funcionamen-to e impacto ambiental”, na página 3desta revista. No passado, elas servi-ram para fornecer corrente elétrica ne-cessária aos experimentos de cientis-tas que estabeleceram as bases daEletroquímica, como Humphry Davy(1778-1829), Michael Faraday (1791-1867) e tantos outros.

Como tudo começouAlguns séculos antes da era cristã,

o filósofo Tales de Mileto (ca. 625-550a.C.) havia observado que friccionandopedaços de âmbar (uma resina natu-ral) com tecidos de seda, eles adqui-riam a propriedade de atrair fragmen-tos de palha. Como o âmbar era co-nhecido em grego pelo nome de “elek-tron”, nasceu então a palavra eletrici-dade. Mais de dois milênios depois, em1660, Otto von Guericke (1602-1686)inventou a primeira máquina para pro-duzir eletricidade: uma esfera de enxo-

fre dotada de um eixo e um dispositivomecânico que permitia imprimir-lhe ummovimento de rotação. Quando friccio-nada com algum material - a mão se-ca, por exemplo - aesfera tornava-se ele-trificada e produzia pe-quenas faíscas, atraíagotas de água, frag-mentos de palha etc.

Outras máquinasforam idealizadas apartir da de von Gue-ricke, e as cargas elé-tricas por elas geradasse tornaram objeto de investigação emum vasto campo de pesquisa sobre aentão chamada eletricidade estática.As cargas elétricas geradas por essasmáquinas podem produzir faíscas in-tensas, fluir por pontas metálicas, serarmazenadas em capacitores, entãochamados de garrafas de Leiden etc.Todavia, não se conseguia um fluxocontínuo dessas cargas, isto é, umacorrente elétrica.

Galvani e a eletricidadeNa segunda metade do século 18,

Luigi Galvani (1737-1798), professor deanatomia na Universidade de Bolonha(Itália), onde havia se formado em 1759

como médico e filósofo, voltou-se paraa aplicação terapêutica da eletricidade,um campo conhecido na época como“eletricidade médica”. Na década de

1780, dirigiu seus tra-balhos sobre o que sechamava de eletrici-dade animal, termocunhado pelo médicofrancês Pierre Bertho-lon (1741-1800), quejuntamente com o ita-liano Giuseppe Gar-dini (1740-1816) de-fendia a existência de

uma eletricidade própria dos corposanimais. No dia 26 de janeiro de 1781,Galvani trabalhava com uma rã disse-cada, cujos membros inferiores repou-savam sobre uma mesa do seu labo-ratório, junto com alguns equipamen-tos, entre eles uma máquina eletros-tática. Quando um dos seus auxiliarestocou os nervos internos da perna darã com a ponta de um bisturi, houveuma violenta contração dos músculosda perna do animal morto. Aparente-mente isso ocorreu quando uma faíscafoi emitida pela máquina eletrostática.A princípio, Galvani supôs que isso sóaconteceria quando a máquina eletros-tática estivesse funcionando e que o

Mario Tolentino e Romeu C. Rocha-Filho

Este artigo apresenta o contexto da invenção da pilha elétrica no final do século 18 por Alessandro Volta,incluindo a sua célebre controvérsia com Luigi Galvani.

Alessandro Volta, pilha elétrica, Luigi Galvani, eletricidade animal

Tales de Mileto observouque friccionando pedaçosde âmbar com tecidos de

seda, o âmbar atraiafragmentos de palha.

Âmbar era conhecido emgrego pelo nome de

“elektron”. Assim nasceu apalavra eletricidade

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fenômeno da contração seria induzidopela descarga elétrica do equipamentoou quando uma garrafa de Leidendescarregasse suas cargas elétricas.

Anos depois, Galvani investigou seas faíscas elétricas produzidas naatmosfera (raios) produziam o mesmoefeito. Para isso, tomou as pernas dis-secadas de uma rã e conectou-as aum fio cuja ponta afixou ao ponto maisalto de sua casa; efetivamente, duranteuma tempestade de final de tarde,comprovou que ocorreram contraçõesassociadas a quatro relâmpagos emi-tidos na tempestade. Com o objetivode verificar se a eletricidade presentena atmosfera de um dia calmo tambémpoderia causar as contrações, em se-tembro de 1786 Galvani pendurou par-te do corpo de uma rã dissecada,presa por um gancho metálico (prova-velmente de bronze), em uma dasgrades de ferro existentes no balcãode sua casa. “Cansado de esperar emvão”, Galvani se aproximou da gradee começou a manipular as partes docorpo das rãs. Para sua surpresa,aconteceu um imprevisto: quando elepressionou contra o gradil de ferro osganchos metálicos presos nos nervosda rã, uma forte convulsão provocou acontração das pernas do animal morto.Com ligeiras modificações, repetiu asexperiências em quartos fechados, emdiferentes lugares e condições de tem-po, usando diferentes metais. Galvaniconcluiu que as contrações ocorriamsempre que um semiarco metálicoestabelecia contato entre os nervosdas pernas dissecadas e os músculos,criando um circuito “similar àquele queocorre na jarra de Leiden” (Piccolino,1998).

Após quase dez anos de pesqui-sas, as experiências de Galvani foramdescritas na monografia De ViribusEletricitatis in Motu Musculari (“Sobreas forças de eletricidade nos movimen-tos musculares”), publicada em 1791como o 7º volume da série Commen-tarius, editada pelo Instituto de Ciênciade Bolonha, onde Galvani foi profes-sor de Obstetrícia de 1782 a 1798.Nessa monografia Galvani expôs suaconclusão: a eletricidade detectada ti-nha origem animal, isto é, os músculosarmazenavam eletricidade do mesmomodo que uma jarra de Leiden, e os

nervos conduziam essa eletricidade: “Eainda nunca poderíamos supor que asorte nos seria tão amiga, a ponto denos permitir talvez ser o primeiro a ma-nipular, como aconteceu, a eletricidadeescondida nos nervos, a extraí-la dosnervos e, de certo modo, a colocá-lasob os olhos de todo mundo” (Picco-lino, 1998).

Surge uma outra explicaçãoA monografia de Galvani foi ampla-

mente divulgada para os principaiscentros científicos europeus da época,tendo também chegado às mãos doseu compatriota, Alessandro GiuseppeAnastasio Volta (1745-1827), professorde física na Universidade de Pávia (Fi-gura 1). A exemplo de outros experi-mentadores, em 1792 Volta repetiu econfirmou as experiências de Galvani,expressando sua admiração pelagrande descoberta da eletricidade ani-mal. Entretanto, à medida que suaspesquisas sobre a questão progredi-ram nos anos seguintes, Volta aospoucos mudou de idéia e acaboupropondo outra explicação para os fe-nômenos observados.

Inicialmente, Volta questionou aanalogia de Galvani com a jarra deLeiden, pois notou que contraçõesocorriam quando pontos distintos deum dado nervo crural (nervos perten-centes à coxa) eram conectados atra-vés de um arco bimetálico, sem qual-quer contato com o músculo. Portanto,não era necessário supor que as con-trações musculares requeriam um fluxo

de corrente pelo nervo, da parte internapara a parte externa do músculo, comosuposto por Galvani. Isto conflitavadiretamente com a idéia de Galvanique o músculo era um reservatório deeletricidade.

Posteriormente, Volta se deu contade que a rã era um eletroscópio bioló-gico, extremamente sensível, um “ele-trômetro animal” mais sensível queseus próprios instrumentos físicos.Conseqüentemente, Volta passou a vero animal mais como um sensor de ele-tricidade externa do que uma fonte deeletricidade interna. Gradualmente Vol-ta se deu conta de que um arco bime-tálico era mais efetivo para produzircontrações que um arco monometálico(algo também observado por Galvani,mas não considerado como evidênciacontra a eletricidade animal). Isto fezcom que Volta começasse a considerara possibilidade de que a eletricidadetivesse uma origem externa e decor-resse da diferença dos metais usadospara fazer o arco; a rã reagiria a essaeletricidade metálica, como reagia aoutras formas de eletricidade artificialexterna.

Ocorre que um físico suíço, JohannGeorg Sulzer (1720-1779), havia reali-zado uma interessante observação:colocando a língua entre dois discosde metais diferentes (chumbo e prata),quando os discos eram postos emcontato, encostando em suas bordas,ele sentia um gosto desagradável euma sensação pungente. Volta repetiuessas experiências e, indo mais adian-

Figura 1: Reprodução da frente de uma nota de 10 mil liras emitida pelo Banco da Itália(1984), com desenho de Volta e uma de suas pilhas (ao centro).

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te, incluiu em uma delas o seu próprioglobo ocular. O resultado foi a sensa-ção de luz quando o contato elétricofoi estabelecido.

Esses dados apoiavam a hipótesede Volta de que não era necessárioincluir músculos no circuito do fluxo decorrente para excitar a função nervosa.Nos experimentos com a própria lín-gua, Volta observou que a sensaçãocausada pelo arco bimetálico persistiaenquanto os metais eram mantidos emcontato com os tecidos. Isto fez comque ele pensasse que os metais dife-rentes eram eles próprios capazes dese comportar como “motores” de eletri-cidade (semelhante a máquinas elétri-cas) em vez de como simples conduto-res: “é a diferença de metais que o faz”(Piccolino, 1998).

Mais tarde Volta aprofundaria estavisão, com a teoria dos contatos metá-licos: o contato entre dois metais dife-rentes gera uma força eletromotiva. Eleclassificou os metais levando em contasuas tendências a gerar eletricidadepositiva ou negativa quando em con-tato recíproco. Galvani colocou obje-ções à nova interpretação de Volta,pois contrações eram observadasusando um único metal para conectarnervo e músculo. Adicionalmente, Gal-vani mostrou, em 1794, que contra-

ções também ocorriam em uma rã dis-secada ao se colocar em contato coma superfície do músculo da perna o ner-vo crural seccionado. Volta recusou-se,entretanto, a aceitar isso como provada existência da eletricidade animal,argumentando que um estímulo mecâ-nico (ou químico) podia estar subja-cente à estimulação nervosa. Em 1797,Galvani realizou o que tem sido consi-derado como “o experimento mais fun-damental da eletrofisiologia” (vide qua-dro); mesmo assim, este experimentocrucial não convenceu a Volta e seusseguidores.

O surgimento da primeira pilhaelétrica

Nessa época, Volta também estavaprocurando apresentar uma evidênciadecisiva em apoio ao poder dos metaisde gerar eletricidade artificial. Apósmuitas tentativas, ele logrou detectarcom um eletroscópio a diminuta eletri-cidade gerada ao se colocar em conta-to uma lâmina de prata e uma lâminade zinco. Como conseqüência lógica,surgiu a idéia de associar pares de me-tais sob a forma de placas sobrepostasde tal maneira que se tornasse possívela obtenção de uma força eletromotrizde razoável magnitude, comparável àproduzida pelas máquinas elétricas.

Visando aumentar a força elétricagerada por um único par bimetálico,ele decidiu empilhar de modo alter-nado diversos discos de dois metaisdiferentes, por exemplo, Zn | Ag | Zn| Ag | Zn | Ag. Observou, então, quequando os discos terminais eram domesmo metal a tensão elétrica desa-parecia; e quando eram diferentes, atensão era independente do númerode pares de discos. Essa descobertadeu origem às duas famosas leis deeletrificação por contato (Trasatti,1999).

Finalmente, considerando a pre-sença de fluidos animais nos experi-mentos de Galvani, Volta empilhouseus pares de discos metálicos sepa-rados por um pedaço de papelão ume-decido com água ou, melhor ainda,com solução salina. Notou, então, queas tensões elétricas se somavam;estava inventada a pilha elétrica. Voltapensava que os líquidos eram “condu-tores imperfeitos” - condutores desegunda classe (eletrolíticos) emcontraposição aos de primeira classe(eletrônicos) - e, conseqüentemente,evitariam a descarga de um par metá-lico no outro.

O dispositivo montado por Volta(Figura 1) era formado por discos deprata e zinco (melhor efeito, segundo

A controvérsia entre Galvani e Volta sobre a existênciaou não da eletricidade animal acabou na época sendo ven-cida, de certo modo, por Volta. Entretanto, na realidadeGalvani estava certo. Em 1797, ele realizou um experimentoque mais tarde foi considerado como “o experimento maisfundamental da eletrofisiologia”. Para isto, eleseparou e preparou as duas pernas de umarã com seus respectivos nervos ciáticosseccionados próximo às suas saídas docanal vertebral. Com um bastão de vidro,ele moveu o nervo de uma das pernas demodo que a sua superfície seccionadatocasse a supefície intacta do nervo daoutra perna, o que fez com que elas secontraíssem (vide ilustração). A interpre-tação de Galvani para seus experimentosestava correta quanto à questão principal (aexistência de eletricidade animal), mas erradaquanto ao mecanismo proposto para a exci-tação nervosa. Na realidade, o contato não era um modode permitir condução elétrica passiva, mas sim levava a

Galvani e Volta: controvérsia e explicações erradas

uma estimulação local causada pela diferença de potencialelétrico existente entre as superfícies de tecido lesionadoe intacto. A necessidade do contato entre tecidos lesiona-dos e intactos para que a manifestação de eletricidadeanimal ocorresse só ficou clara mais tarde, com os estudos(1838-1844) de Carlo Matteucci. Além disso, somente após

a introdução da hipótese da membrana (1902) porBernstein é que se compreendeu que a lesão

criava uma rota de baixa resistência para o meiointracelular.

Volta, por sua vez, achava, erroneamente,que a eletricidade gerada pela pilha eradevida ao contato de dois metais diferentes(teoria da eletricidade por contato), nãovendo função para o eletrólito. Dado o enor-me prestígio de Volta, sua teoria foi aceitapor muitos anos, até que, em 1834, Mi-

chael Faraday, ao enunciar as leis da este-quiometria eletroquímica, proveu evidências para

os que apoiavam uma teoria química: a correspondênciaquantitativa entre ação elétrica e eventos químicos.

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Volta) ou prata e chumbo ou prata eestanho ou ainda cobre e estanho.Cada par metálico era separado doseguinte por um disco de um materialporoso - papelão, couro ou outro ma-terial absorvente similar - embebido emuma solução de sal. A “pilha” de dis-cos era organizada de tal forma que ainferior era de prata e a superior dooutro metal, zinco. A essas placasterminais eram ligados fios metálicospara conduzir a eletricidade produzida.

Volta também testou outra modifi-cação, que denominou de uma cadeiade copos (vide Figura 2): vasilhas(copos) de vidro, madeira ou cerâmica,cheias pela metade com uma soluçãode sal ou com barrela, eram colocadaslado-a-lado e conectadas por um con-junto de lâminas cujos terminais eramum de prata depositada sobre cobre(ou diretamente cobre ou latão) e ooutro de zinco (ou estanho), imerso napróxima vasilha. Volta ressaltou quequando um dos metais terminais eraestanho, a barilha ou outras soluçõesalcalinas eram preferíveis, enquantoque a solução de sal era preferível nocaso do zinco.

Divulgação do invento e suarepercussão

Apesar de Volta ter realizado osseus experimentos no 2º semestre de1799, somente divulgou o seu inventoem 20 de março de 1800, através deum comunicado ao presidente daSociedade Real de Londres, sir JosephBanks (1743-1820), intitulado “Sobre aeletricidade excitada por simples con-tato de substâncias condutoras dediferentes tipos”. Segundo Bevilacquae Bonera (1999), no dia 1º de abril de1800, Volta tornou a escrever paraBanks, com algumas adições e notasexplicatórias; as duas correspondên-cias foram juntadas e apresentadas àSociedade Real de Londres no dia 26de junho de 1800, tendo sido transcri-tas no número de setembro de 1800das Philosophical Transactions, of theRoyal Society of London, páginas 403a 431.

Na ocasião ocorreu um fato surpre-endente. Antes do trabalho de Volta serpublicado, uma outra publicação jáfazia referência à pilha, que havia sidousada para decompor, em seus com-

ponentes, a água ligeiramente acidu-lada. De acordo com Laidler (1993), SirBanks, mostrou a carta de Volta aalguns conhecidos, entre eles AnthonyCarlisle (1768-1840), um cirurgião lon-drino, que imediatamente passou ainformação a um competente cientistaamador, William Nicholson (1753-1815), o qual havia fundado sua pró-pria revista, mais conhecida como Ni-cholson’s Journal. Imediatamente, Ni-cholson e Carlisle construíram pilhasusando discos de zinco e moedas demeia-coroa de prata. Eles inseriram fiosconectados aos terminais das pilhasem um recipiente contendo água

acidulada. Usando fios de cobre, nota-ram que hidrogênio se desprendia so-bre um dos fios e que o outro se oxida-va. Usando fios de prata ou de ouro,notaram que hidrogênio se desprendiasobre um dos eletrodos e oxigêniosobre o outro. Nicholson imediatamen-te anunciou esses resultados no núme-ro de julho de 1800 do Nicholson’sJournal.

Em 1801, Volta foi convidado a ir aParis apresentar seu invento e, nestaocasião, o Imperador Napoleão Bona-parte atribuiu-lhe uma medalha e emsua homenagem mandou doar à Es-cola Politécnica uma pilha com 600 dis-

Figura 2: Reprodução do desenho das pilhas anexo à carta de Alessandro Volta a sir Jo-seph Banks publicada nas Philosophical Transactions, of the Royal Society of London, desetembro de 1800, p. 430. Na Figura 1 do desenho é representada a versão denominadapor Volta de cadeia de copos. Nas Figuras 2 a 4 são representadas pilhas com númeroscrescentes de discos metálicos.

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cos. Poucos anos depois, novos ele-mentos foram isolados eletrolitica-mente por Humphry Davy (1778-1829):potássio e sódio em 1807, cálcio e bá-rio em 1808. Em 1812, Davy conseguiuproduzir, pela primeira vez, um arcovoltaico, usando eletrodos de carvãoligados a uma bateria de muitos ele-mentos. Efetivamente, a invenção da

Referências bibliográficasBEVILACQUA, F. e BONERA, G. Fore-

word. IN: VOLTA, A. On the electricity ex-cited by the mere contact of conductingSubstances of different kinds. Edição bi-centenária em francês, inglês, alemão eitaliano da carta a Sir Joseph Banks de20 de março de 1800. Milão: Universitàdegli Studi di Pavia e Editore Ulrico Hoepli,1999.

LAIDLER, K. J. The world of physicalchemistry. Oxford: Oxford University Press,1993.

PICCOLINO, M. Animal electricity andthe birth of electrophysiology: the legacy

pilha elétrica despertou grande interes-se, tanto do público leigo como doscientistas, tanto que, em 1810, Davyescreveu: A pilha de Volta retinira comouma campainha de alarme para osexperimentadores de toda a Europa.Estava assegurada a posição de des-taque de Alessandro Volta no mundoda ciência e da tecnologia, apesar de

of Luigi Galvani. Brain Research Bulletin, v.46, n. 5, p. 381-407, 1998.

TRASATTI, S. 1799-1999: AlessandroVolta’s ‘electric pile’. Two hundred years, butit doesn’t seem like it. Journal of Electroana-lytical Chemistry, v. 460, p. 1-4, 1999.

Para saber maisBRESADOLA, M. Medicine and science

in the life of Luigi Galvani (1737-1798). BrainResearch Bulletin, v. 46, n. 5, p. 367-380,1998.

CHAGAS, A.P. Os 200 anos da pilhaelétrica. Química Nova, v. 23, n. 3, p. 427-29, 2000.

PICCOLINO, M. Luigi Galvani and ani-mal electricity: two centuries after the foun-dation of elctrophysiology. Trends in Neu-rosciences, v. 20, n. 10, p. 443-448, 1997.

Na internet• http://f i le-server.cilea.it/Museo/

index.html (em italiano ou inglês, informa-ções sobre Volta e sua obra)

• http://www.epub.org.br/cm/n06/historia/bioelectr.htm (artigo “A descober-ta da bioeletricidade”, de Renato M.E.Sabbatini, publicado no n. 6 (ago/98) deCérebro & Mente, interessante revistaeletrônica de divulgação científica emneurociência)

sua interpretação errada de como suainvenção funcionava (vide quadro).

Mario Tolentino, doutor honoris causa pela Universi-dade Federal de São Carlos (UFSCar), é aposentadocomo professor titular do Departamento de Químicada UFSCar. Romeu C. Rocha-Filho ([email protected]), licenciado em química e doutor em ciências (áreade físico-química) pela USP, é docente do Departa-mento de Química da UFSCar.

Bicentenário da pilha elétrica

Aula de QuímicaAndréa Horta Machado, professora/

pesquisadora do Colégio Técnico daUFMG, Belo Horizonte, e do CECIMIG/FAE/UFMG no Grupo de Formação Con-tinuada de Professores de Química e deCiências, abre sua ‘aula de química’ aosoutros professores, a fim de discutir, reve-lar e fazer compreender as “relações en-tre a construção do conhecimento e o dis-curso químico no ensino médio”. Já deinício, revela a sua intenção de fazer desuas análises e reflexões uma “conversa”franca e aberta, além de prazerosa, umquase poema, sobre um tema tão presen-te na vida de todos, a ‘sala de aula’. Opoema de Ferreira Gullar, “Muitas vozes”,inserido com maestria no contexto criado,é a forma explícita encontrada para dizerque ‘muitas vozes’ constituem a mente daspessoas e que elas estão presentes nasinterações discursivas de sala de aula.

Trata-se de uma obra na qual a autoraapresenta a pesquisa desenvolvida no in-terior de salas de aula, focalizando os pro-cessos discursivos em que alunos e pro-fessora buscam a elaboração de conheci-mentos químicos a partir de atividadespráticas. “Sala de aula”, nome do primeirocapítulo, é a situação prática que permiteproduzir novas compreensões de açõeseducativas inovadoras que queremos se-

jam desenvolvidas. É um capítulo quemostra as principais teorias que influencia-ram a comunidade de professores e pes-quisadores nos últimos anos, expostasaqui em seus princípios essenciais e muitobem referenciadas na própria históriaconstitutiva da pesquisadora.

No segundo capítulo está explicitadaa opção teórica para a análise das açõesna sala de aula. Propõe a abordagemhistórico-cultural, introduzindo, de formasistematizada e clara, os principais concei-tos de Vygotsky que servem ao objetivodo trabalho. Destaca-se a idéia de concei-tualização mediada pela palavra (práticasocial) e pelo outro (prática pedagógica).Como obra inacabada, as elaborações deVygotsky não podem dar conta da com-plexidade das interações constitutivas dossujeitos nas salas aula. Busca apoio naTeoria da Enunciação de Bakhtin, que vêno ato da fala o encontro/confronto demúltiplas vozes.

A investigação é a própria ‘aula de quí-mica’ e ela vai compor o terceiro capítulo.Deixa claro que é de constituição dossujeitos sobre conhecimento químico quetrata a pesquisa. Isto torna mais importanteo trabalho para os educadores químicos.Há a preocupação em documentar ascondições concretas em que acontece adinâmica das interações discursivas e nasquais os significados e sentidos vão se

constituir na forma ativa dos sujeitos envol-vidos.

O quarto capítulo contempla os episó-dios descritos e sua análise. O primeirodeles torna visível a função do discursopedagógico, entre os quais se destaca arestrição de sentido que ele procura fazer,destacando o papel que o outro, a profes-sora, exerce na constituição coletiva dopensamento no conhecimento escolar.Outro episódio torna visível as relações en-tre discurso e conhecimento através doconfronto das múltiplas vozes que emba-sam as enunciações feitas. Mostra,também, as assimetrias de interação en-tre os componentes dos grupos de alunose da professora.

Conclui que construir conheci-mentos científicos é apropriar-se de for-mas discursivas na mediação pedagógicae constituir-se de uma certa maneira. Aaula de química é vista por Andréa como“espaço de construção do pensamentoquímico e de (re)elaboração de visões demundo” que lhes permite ações sempremais singularizadas.

(Mariluza da Silva Luchese/OtavioAloisio Maldaner - UNIJUÍ)

Aula de Química, discurso e conheci-mento. Andréa Horta Machado. Ijuí: EditoraUNIJUÍ (Coleção Educação em Química),2000. 200 p. ISBN 85 7429-106-4.

Resenha