biko e a problemática da presença
DESCRIPTION
Quando eu cheguei pela primeira vez na África do Sul em 1989, eu era um marxista. Pelo final de 1997, dois anos e meio depois de Nelson Mandela chegar ao poder, eu deixei o país sem saber o que eu era...Eu estava convencido que a rubrica da alienação e da exploração (ou uma gramática do sofrimento implicada na intensificação do trabalho e na extração de mais-valia) não estava a altura da tarefa de (a) descrever a estrutura do antagonismo, (b) delinear um sujeito revolucionário próprio, ou (c) elaborar a trajetória de um “inconoclasma”3 institucional, abrangente bastante para começar “a única coisa no mundo que vale a pena começar: o fim do mundo, por Deus!”.TRANSCRIPT
Corpo & Politica http://corpoepolitica.blogspot.com
Osmundo Pinho Austin, abril de 2014
1
Biko e a Problemática da Presença1i
Frank Wilderson, III2 “Assumamos que o povo negro adquiriu o valor da Ausência. Este modo de existência tornou-‐se uma existência manqué– existência fracassada. O seu modo de ser tornou-‐se o NÃO ” – Lewis Gordonii “O maior erro que já cometido pelo mundo negro foi pressupor que qualquer um que se opusesse ao apartheid era um aliado” -‐ Steve Bikoiii 1. Reconhecimento Negro?
Quando eu cheguei pela primeira
vez na África do Sul em 1989, eu
era um marxista. Pelo final de
1997, dois anos e meio depois de
Nelson Mandela chegar ao poder,
eu deixei o país sem saber o que
eu era. Isto não para dizer que eu,
como muitos marxistas
arrependidos, tinha me voltado
para aquilo que sabichões da
política e notáveis da alta cúpula
do comitê executivo do ANC
chamavam, então, de uma, por
assim dizer, “economia mista”, uma
expressão que explica menos que
1 Traduzido a partir de “Biko and the Problematic of the presence”, disponível em: http://www.incognegro.org/pdf/Biko%20and%20the%20Problematic%20of%20Presence.pdf . 2O autor é professor de “Drama” e “African American Studies” na Universidade da Califórnia em Irvine. Obteve seu PhD em “Rethoric/Film Studies” pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Além de professor e pesquisador é poeta, dramaturgo, ativista e cineasta. Autor de “IncogNegro”, obra biográfica onde relata sua experiência de sete anos como militante do Congresso Nacional Africano, na África do Sul; e de “Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms”. É considerado um dos principais nomes da corrente crítica conhecida como “Afro-‐Pessimism”. Sobre o autor e sobre afro-‐pessimismo cf.: http://www.incognegro.org/
Cartaz comemorativo do Partido Comunista da África do Sul.
Corpo & Politica http://corpoepolitica.blogspot.com
Osmundo Pinho Austin, abril de 2014
2
nada, mas que parecia tão atraente e saturada de senso comum que tornou-‐se
inatacável. Não, eu não havia sido convertido para a “ética” do “mercado livre”, mas
eu estava convencido que a rubrica da alienação e da exploração (ou uma gramática
do sofrimento implicada na intensificação do trabalho e na extração de mais-‐valia)
não estava a altura da tarefa de (a) descrever a estrutura do antagonismo, (b)
delinear um sujeito revolucionário próprio, ou (c) elaborar a trajetória de um
“inconoclasma”3 institucional, abrangente bastante para começar “a única coisa no
mundo que vale a pena começar: o fim do mundo, por Deus!”.iv
Em junho de 1992, não muito depois do massacre de Boipatong4, Ronnie Kasrils co-‐
coordenava uma reunião da Aliance Tripartite5 -‐ “Rolling Mass Action”, com um
membro do comitê central da COSATU e um membro da ANC NEC6. Eles sentaram-‐se
juntos em uma grande mesa no palco do auditório no porão do Allied Bank Building
em Jo’burg (Johanesburgo). Uma centena de delegados da Aliança Tripartite haviam
sido enviados para planejar uma serie de ações civis, destinadas a paralisar os
centros nervosos urbanos das cidades sul-‐africanas (“a Opção Leipzig”7 como alguns
a chamavam). Eu era um dos delegados. Das 100 pessoas, parecia que não mais que
5 ou 10 eram brancas ou indianas. Havia alguns mestiços (Coloureds). Um negro
(norte)americano – eu; e de oitenta a noventa negros sul-‐africanos.
Começamos com canções, que duraram tanto, e foram tão sonoras e tão agudas em
sua mensagem (Chris Hani8 é o nosso escudo! O Socialismo é o nosso escudo! Morte
ao fazendeiro, Morte ao Bôer9!), que no momento em que a reunião finalmente
teve início sentia-‐se uma tensão silenciosa nos rostos de Kasrils e de seus co-‐
3 Destruição de todos os símbolos e imagens, como representações dos poderes constituídos. 4 Em 1992, 46 pessoas foram mortas na township de Boipatong na província de Gauteng por indivíduos ligados ao Inkhata Freedom Party apoiados por membros da polícia, que pintaram seus rostos de preto. 5 Aliança formada pelo ANC (African Nacional Congress); COSATU (Congress of South Africans Trade Unions); e SACP (South African Comunist Party). Grosseiramente falando os negros, os sindicalistas e os comunistas. 6 National Executive Comitee da ANC. 7 Referência às demonstrações pacíficas e de massa, na cidade de Leipzig na então Alemanha do Leste (RDA), e que contribuíram para o fim do comunismo. 8 Chris Hani foi militante do ANC desde 1957, tornando-‐se líder do Umkontho We Sizwe, o braço armado do ANC em 1962. Em 1993 foi assassinado por Janusz Walus, migrante polonês e membro do National Party. 9 São chamados bôeres os descendentes dos primeiros colonizadores de origem holandesa na África do Sul. A palavra significa, literalmente, fazendeiro. No século XIX bôeres e ingleses enfrentaram-‐se em duas ocasiões pelo direito de autodeterminação em territórios que posteriormente vieram a ser anexados pela União Sul-‐Africana. A cultura Bôer é associada a extremado nacionalismo e ao apoio ao National Party, principal força política do Apartheid.
Corpo & Politica http://corpoepolitica.blogspot.com
Osmundo Pinho Austin, abril de 2014
3
cordenadores. Uma expressão que eu veria repetidas vezes, a partir 1991 nos rostos
dos notáveis da Freedom Charter10; faces contorcidas por dentes sorridentes e testas
franzidas, solidariedade e ansiedade; faces repuxadas por demandas opostas – a
necessidade de enquadrar o Estado e a necessidade de lidar com os negros, e essa
seria uma necessidade que estava parecendo intratável.
Multidão armada em Boipatong
Planos para uma invasão em massa estavam sobre a mesa: uma frota de ônibus
lotada de manifestantes deveria rumar para a fronteira da “homeland” de Ciskei11,
que era governada pelo notório general Joshua Oupa Gqozo. Deveríamos
desembarcar, realizar um comício, depois uma marcha, e então, em algum momento
da marcha, deveríamos arrebentar a cerca, libertando dessa forma as pessoas da
“homeland”, pela pura força de nossa presença. Kasrils e seus co-‐coordenadores
10 A “Carta da Liberdade” é o documento político de união da Congress Alliance, a coalizão multirracial liderada pelo ANC. 11 O Governo da União Sul-‐Africana criou em 1913 por meio da Native Land Act os chamados Batustans, regiões “bantu” autônomas, “homelands”. Europeus eram proibidos de fixaram-‐se na área, assim como “nativos” de fixaram-‐se fora delas. O bantustão de Ciskei foi criado para fixar as populações de fala xhosa. Em 1961 tornou-‐se uma região administrativa própria, em 1972 sob o governo do Chefe Justice Mbandla declarou autogoverno. Em 1981 declarou independência, que não foi reconhecida por nenhum Estado soberano. Em 1990, o Brigadeiro Joshua Oupa Gqozo liderou um golpe de estado e passou a dirigir o território como um ditador sanguinário.
Corpo & Politica http://corpoepolitica.blogspot.com
Osmundo Pinho Austin, abril de 2014
4
olharam-‐se entre si. Sim, as coisas estavam saindo do controle. Assim que uma nova
rodada de canções começou eles juntaram as cabeças e começaram cochichar.
O camarada Kasrils se levanta. Ele sai, a direita do palco. Logo volta, com um
pequeno pedaço de papel. Um importante relato da inteligência, camaradas, notícias
que devem nos obrigar a refletir. Lendo do pedaço de papel, ele diz que acaba de
receber o recado de que se nós, de fato, aprovássemos no plenário a proposta de
invadir a “homeland” com uma massa beligerante, o General Joshua Oupa Gqozo
abriria fogo contra nós com munição letal. Para horror do camarada Kasrils o salão
irrompeu em vivas e aplausos. Essa, eu penso, enquanto me junto aos aplausos e
comemorações, não era a resposta que a sua “inteligência” esperava produzir12.
Teria sido o Camarada Kasrils pego em sua própria armadilha, ou haveria dissonância
entre a lógica presumida através da qual ele e a Aliance Tripartite colocaram a
questão, “o que significa sofrer?”, e a maneira pela qual a questão foi posta – ou
imposta – a massa de delegados negros? A divergência entre nossa alegria e o que
parecia ser sua ansiedade, estava expressa em estruturas de sentimento
divergentes, o que eu acredito seja sintomático do contraste entre concepções de
sofrimento, e sintomático das diferenças irreconciliáveis, sobre o “como” e o “onde”
os negros estão ontologicamente posicionados em relação aos não-‐negros. Nos
últimos dias do apartheid nós fracassamos em imaginar a diferença fundamental
entre o trabalhador e o negro. Como entendemos o sofrimento, e se localizamos ou
não a sua essência na exploração econômica, ou na Anti-‐Negritude, tem um impacto
direto sobre como imaginamos a liberdade; e sobre como fomentamos a revolução. v
Talvez as balas que estavam prometidas para nós não se manifestassem no interior
de nossa psique como impedimentos letais, porque se manifestavam como dádivas;
invulgares dádivas de reconhecimento; dádivas subtraídas a negritude; o
reconhecimento de que nós formávamos, de fato, um conjunto de capacidades
12 Todavia, a marcha ocorreu, em 7 de setembro de 1992, liderada pelo mesmo “camarada” Kasrils. A Forças de Defesa do Ciskey dispararam contra a multidão, seguindo ordens de Gqozo, e 28 pessoas morreram, no que ficou então conhecido como o massacre de Bisho.
Corpo & Politica http://corpoepolitica.blogspot.com
Osmundo Pinho Austin, abril de 2014
5
humana ao invés de uma coleção de cafres (kaffirs), ou um punhado de pretos
(niggers). Experimentamos uma impossibilidade transcendente: um momento de
negritude-‐como-‐presença (Blackness-‐as-‐Presence) em um mundo sobre-‐
determinado pela negritude-‐como-‐ausência (Blackness-‐as-‐Absence) .
Eu não estou dizendo que nós acolhemos a profecia de nossa morte coletiva. Estou
argumentando que a ameaça de nossa morte coletiva, uma ameaça em resposta ao
nosso gesto coletivo – nossa “existência” (living) – vontade, nos fez sentir como se
estivéssemos vivos, como se possuíssemos de fato o que não possuíamos, vida
humana, como oposta a vida negra (que é sempre já “morte substitutiva”, “um
modo fatal de se estar vivo”vi) . Poderíamos morrer porque estávamos vivos...
O texto acima é um excerto do Capítulo 4: “Biko and the Problematic of Presence” por Frank B. Wilderson, III. Reproduzido com a permissão de Palgrave Macmillan. O trecho foi tomado do manuscrito original do autor e não foi editado. A versão definitiva pode ser encontrada em Biko Lives! Editado por Andile Mngxitana, Amanda Alexander e Nigel Gibson (New York: Palgrave Macmillan, 2008) que pode ser adquirido em www.palgrave.com .
Tradução: Osmundo Pinho Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (Cachoeira)/University of Texas (Austin).
i Agradecimentos especiais para Janet Neary e Anita Wilkins pela colaboração na pesquisa. ii Lewis Gordon, Bad Faith and Antiblack Racism (Atlantic Highlands, NJ: Humanities Press, 1995), 98. iii I Write What I Like (London: The Bowerden Press, 1978), 63. iv Aime Cesaire citado em Frantz Fanon, Black Skins White Masks (New York: Grove Press, 1952, 1967), 96. v Até onde sei, o termo Anti-‐Negritude (Anti-‐Blackness) foi nomeado pela primeira vez, como um imperativo estrutural, por Lewis Gordon, em Bad Faith. vi David Marriot, On Black Men (New York: Columbia UP, 2000), 15,19.