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Revista Baiana
de Saúde Pública
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abr./jun. 2010
ARTIGO ORIGINAL
BIOSSEGURANÇA À LUZ DA ERGOLOGIA: POSSIBILIDADES PARA A SAÚDEDO TRABALHADORa
Tatiana Pereira das Nevesb Roberta de Oliveira Jaime Ferreira Limac
ResumoEstudo de natureza teórico-conceitual, que discute como os aportes da abordagem
ergológica podem contribuir para uma compreensão mais ampliada da biossegurança. Como tal abordagem francesa considera o trabalho como “uso de si”, isto é, compreende que trabalhar nunca se resume a repetir normas preestabelecidas, no presente estudo argumenta-se que somente pela participação dos trabalhadores é possível construir estratégias de prevenção de riscos adequadas. Conclui-se que os saberes científicos ou aqueles construídos na prática são sempre incompletos; portanto é fundamental que tais saberes sejam constantemente aproximados e articulados para que se aperfeiçoem mutuamente, produzindo, assim, estratégias de biossegurança realmente efetivas que considerem os trabalhadores como reais sujeitos da aprendizagem, com suas diferenças e particularidades.
Palavras-chave: Biossegurança. Ergologia. Saúde do trabalhador.
BIOSAFETY IN LIGHT OF ERGOLOGY: POSSIBILITIES FOR THE WORKERS’ HEALTH
AbstractThis is a conceptual-theoretical study that aims to discuss how the ergological
approach may contribute to a broader understanding of biosafety. Since this French approach considers the work as a “use of oneself”, i.e. , it understands that working is never resumed to repeating pre-established rules, in this study infers that only through the workers’ participation that it is possible to build suitable risk prevention strategies. It was concluded that scientific knowledge and those deriving from practice are always imcomplete, therefore, it is essential that these different types of be constantly close and coordinated so that improve upon one
a Este artigo é baseado em trabalho de conclusão do curso de Especialização em Biossegurança nas Instituições de Saúde (IPEC-FIOCRUZ).
b Biomédica (UNI-RIO). Especialista em Saúde Pública (ENSP-FIOCRUZ). Mestre em Saúde Pública (ENSP-FIOCRUZ). Doutoranda em Saúde Pública (ENSP-FIOCRUZ). Professora colaboradora do Curso de Especialização em Biosseguran-ça nas Instituições de Saúde (IPEC-FIOCRUZ).
c Enfermeira (UERJ). Possui Residência em Nefrologia – Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ). Especialista em Bios-segurança nas Instituições de Saúde (IPEC-FIOCRUZ). Enfermeira chefe do serviço de Emergência do Instituto de Pueri-cultura e Pediatria Martagão Gesteira (UFRJ).
Endereço para correspondência: Rua Tirol, 123, apto. 101, Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22750-008. [email protected]
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another, thus producing effective biosafety strategies, that consider the workers as real subjects of learning, with their differences and particularities.
Key words: Biosafety. Ergology. Worker’s health.
BIOSEGURIDAD A LA LUZ DE LA ERGOLOGÍA: POSIBILIDADES PARA LA SALUD DEL TRABAJADOR
Resumen
Estudio teórico-conceptual que discute como las aportaciones de la ergología
pueden contribuir para una comprensión más amplia de la bioseguridad. Como ese abordaje
francés considera el trabajo como “el uso de si”, es decir, entiende que trabajar nunca se
resume a repetir normas preestablecidas, en el presente estudio se argumenta que sólo a través
de la participación de los trabajadores es posible construir estrategias de prevención de riesgos
adecuadas. Se concluye que los saberes científicos o auqellos construidos en la práctica son
siempre incompletos, por lo tanto es fundamental que tales saberes sean constantemente
aproximados y articulados para que se perfeccionen mutuamente, produciendo, así, estrategias
de bioseguridad realmente efectivas, que consideren a los trabajadores como sujetos del
aprendizaje, con sus diferencias, y particularidades
Palabras clave: Bioseguridad. Ergología. Salud del trabajador.
INTRODUÇÃO
As unidades de serviço de saúde são marcadas como lugares de exercício de um
conjunto de práticas em saúde, configurando uma tecnologia do processo laboral que, em
sua singularidade, exige do trabalhador respostas individuais e coletivas ao lidar diariamente
com uma tomada de posição antecipada diante da possibilidade de ocorrência de acidentes e
doenças.1
Dentro deste contexto, o local no qual se presta serviços específicos à população
apresenta uma variedade de ações de saúde e também expõe seus trabalhadores a vários tipos
de riscos, dentre os quais destacam-se a exposição a doenças infecto-contagiosas e àquelas
relacionadas ao contato direto com pacientes e/ou com artigos e equipamentos contaminados
com material orgânico. Assim, para minimizar tais riscos, faz-se necessário que se utilizem
medidas de biossegurança.
Compreende-se por biossegurança o conjunto de medidas técnicas, administrativas
e normativas com a finalidade de preservar a saúde pública e o meio ambiente.2 Tal conjunto
de normas é bastante importante para o entendimento da dinâmica de trabalho em unidades
de saúde, no que se refere à segurança biológica. Entretanto é importante que se interrogue
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se apenas normas técnico-administrativas são suficientes para que as ações de trabalho sejam
realizadas de modo seguro. Deve-se considerar que a ação tem início e fim determinados, sendo
inerente a tal ação uma decisão que é sujeita à razão, compreendendo-se que o trabalhador
possui prolongamentos que ultrapassam a pessoa física.3 Desse modo, pensar no sujeito que
desenvolve ações como participante peculiar no processo da realização de trabalho, torna-se
essencial.
Partindo dessa premissa, deve-se considerar que o trabalhador é um sujeito ativo
no processo de trabalho, com capacidade de antecipação, isto é, habilidade de formar conceitos
que possibilitem captar o inesperado do trabalho.4 Torna-se pertinente, dessa forma, questionar
se o profissional é realmente responsável pelos acidentes ocorridos, como destacam diversos
estudos que abordam a biossegurança.5-8
Mediante o exposto, o presente artigo tem por objetivo compreender as questões
que perpassam o desenvolver da atividade laboral do trabalhador em saúde, no que tange
a sua relação com a biossegurança, utilizando a abordagem ergológica como referencial
teórico. Para a referida abordagem não é possível viver sob total “heterodeterminação”, por
isso, os trabalhadores fazem um uso de si por si, além de um uso de si pelo outro. Em outras
palavras, para viver e trabalhar, buscam recriar o meio, elaborando novas normas.4 Acredita-se
que as reflexões contidas neste estudo possam contribuir para um olhar diferenciado sobre os
profissionais de saúde no que se refere ao trabalho e ao trabalhador, visando compreender a
atividade de trabalho de uma maneira mais ampla.
BREVE HISTÓRICO SOBRE BIOSSEGURANÇA
A preocupação com o desenvolvimento de atividades que produzem riscos à
saúde é uma característica antiga da humanidade e é neste contexto que surge a biossegurança.
Esta expressão engloba a tentativa de controlar riscos relacionados ao trabalhador de unidades
de saúde quer seja em laboratórios ou em instituições assistenciais, uma vez que define as
condições sobre as quais os agentes infecciosos podem ser manipulados e contidos de forma
segura.9
O conceito de biossegurança começou a ser usado na década de 1970, na
reunião de Asilomar, ocorrida na Califórnia, na qual a comunidade científica iniciou a discussão
a respeito de impactos da engenharia genética na sociedade. O encontro foi caracterizado
como uma tentativa de discutir e apresentar propostas para minimizar e controlar os riscos
relacionados ao progresso científico.10 É importante ressaltar que, nessa discussão, não estavam
presentes representantes dos trabalhadores.
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Ainda na década de 1970, surgiram os primeiros manuais da Organização
Mundial de Saúde (OMS) sobre Biossegurança, abordando as práticas preventivas no trabalho
de laboratório com agentes patogênicos para os seres humanos. Somente a partir da década
de 1980 houve um enfoque analítico e preventivo global, com a associação de programas de
qualidade em laboratórios com a saúde do trabalhador, como, por exemplo, o lançamento
do Manual de Biossegurança da (OMS) e a primeira edição do Manual de Biossegurança do
Centers for Disease Control (CDC).2
Atualmente, existe uma tendência cultural mundial com relação à obtenção de
novos padrões de comportamento direcionados à preservação do meio ambiente e da própria
vida.9 No Brasil, embora recentemente, esta temática tem sido abordada com mais frequencia,
principalmente após a vigência de dispositivos legais como a Lei nº 8.974, de 5 de janeiro
de 1995,11 e o Decreto nº 1.752, de 20 de dezembro de 1995,12 que regulamenta tal lei.
Surgiu, então, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) vinculada ao Ministério
da Ciência e Tecnologia que, dentre outras coisas, estabelece o funcionamento de Comissões
Internas de Biossegurança (CIBio). Destaca-se que esta comissão, inicialmente, estava diretamente
voltada para as ações ligadas aos organismos geneticamente modificados (OGMs), como se
pode perceber ao analisar a Lei nº 8.974.13 Contudo, em fevereiro de 2002, foi instituída no
âmbito do Ministério da Saúde a Comissão de Biossegurança em Saúde (CBS), que possui
como uma de suas atribuições participar e acompanhar, nos âmbitos nacional e internacional, a
elaboração e a reformulação de normas de biossegurança; proceder ao levantamento e à análise
das questões referentes a biossegurança, visando identificar seus impactos e suas correlações
com a saúde humana.2
Pode-se então perceber que, embora exista a regulamentação da CBS, a
biossegurança no Brasil está em desenvolvimento, visto que ainda está diretamente relacionada
com manipulação de OGM ou com questões éticas em torno das pesquisas com células tronco,
tendo em vista, na revisão da Lei nº 8.974, realizada em 2005, permanecer uma lacuna
em relação ao trabalhador.2 Nesse sentido, pode-se afirmar que Biossegurança é um termo
polissêmico, uma vez que são encontradas várias definições na literatura, também sendo
caracterizada como um campo novo de conhecimento.14
CONTRIBUIÇÕES DA ERGOLOGIA
A ergologia foi criada na França, inserida no contexto social e econômico de
modificações do mundo do trabalho no continente europeu. Dentre tais transformações, devem
ser destacados o declínio do taylorismo, o aparecimento de novas técnicas e tecnologias e a
redução no tamanho das empresas, com a resultante retração no mercado de trabalho.15
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Naquele contexto, configurava-se um desafio político-epistemológico a busca por
respostas aos questionamentos feitos pelos operários ao modelo taylorista-fordista de organização
do trabalho e gestão da produção. Em torno dessa demanda, reuniram-se pesquisadores
de vários campos do saber – Filosofia, Linguística, Sociologia, Ergonomia, Economia –, em
colaboração com trabalhadores assalariados que se defrontavam com novas questões postas
pelas estratégias de racionalização do trabalho. Assim, a abordagem ergológica nasceu desse
encontro de saberes.3
Escolheu-se o termo ergologia, pois se refere à problemática da atividade.
Contudo tal expressão não possui um histórico filosófico, como as noções e conceitos de
práxis, prática, ação e produção. Em grego, ergasesthai indica o termo mais geral e ergon é o
produto desse fazer. A Ergologia, desse modo, consiste na palavra com maior neutralidade e
generalidade e com menor marca histórica. Tal generalidade é fundamental, porque se refere
a uma estrutura gerada pela atividade humana que ocorre pelas histórias do uso de si, pelas
distâncias entre normas antecedentes e renormalizações, trazendo, ao mesmo tempo, todas os
condicionamentos históricos.16
A Ergologia considera como trabalho o que sistematicamente é desprezado pelas
organizações. Busca encontrar a vida, o trabalho vivo e procura descobrir as possibilidades
existentes nas atividades, que são sempre enigmáticas e não podem ser determinadas a
princípio. Identificar a vida que há no processo de trabalho é fundamental, quando se busca
produzir estratégias – em conjunto com os protagonistas da atividade, os trabalhadores – que
melhorem as condições de saúde dos grupos envolvidos. O enfoque ergológico implica, assim,
um modo de saber, uma inteligência forjada na prática, que não deve ser ignorada.4
Toda situação de trabalho requer que o trabalhador faça escolhas e análises em
seu cotidiano. O trabalhador escolhe e analisa para gerir, como, por exemplo, sua realização
individual de objetivos em contrapartida com a realização coletiva do trabalho.
De acordo com a abordagem ergológica, trabalhar implica fazer uso de si, isto
é, o trabalho é o lugar de uma tensão constante, de um espaço de possibilidades no qual
sempre se está negociando conflitos. Dessa forma, não existe execução de tarefas, mas uso de
si, pois é o trabalhador como ser vivo que é convocado para gerir as situações, mesmo que de
forma não aparente, já que as tarefas cotidianas necessitam de capacidades mais amplas que as
explicitadas a princípio.15
Assim, o trabalho sempre envolve o “uso de si”, que pode ser de duas maneiras:
o uso de si pelos outros, pois o trabalho, em parte, é determinado por um conjunto de normas,
prescrições e valores históricos; e o uso de si por si próprio, já que a todo tempo os trabalhadores
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estão criando estratégias singulares e modificando as normas e as prescrições para conseguirem
superar os desafios do trabalho.16
O trabalhador está o tempo todo gerindo os conflitos do uso de si por si e do
uso de si pelos outros. Assim, o termo gerir também deve ser estendido para a condução da
vida subjetiva do trabalhador e não deve ser apenas um atributo do corpo gerencial de uma
empresa. Todos os trabalhadores, pertencentes a funções técnicas ou gerenciais, são gestores
nesse processo. Eles fazem, a todo tempo, gestão de suas contradições e de suas relações com
os outros. Como o trabalho real jamais se restringe à aplicação do trabalho prescrito, a dimensão
subjetiva de microdecisões sobre o uso de si por si e o uso de si pelos outros permeia toda a
atividade do trabalho.
BIOSSEGURANÇA E ERGOLOGIA: UMA INTEGRAÇÃO FUNDAMENTAL
De acordo com a Ergologia, trabalhar significa gerir-se em um meio circunscrito
por normas de ordens técnica, organizacional e gerencial entre as estru turas produtivas que
heterodeterminam os objetivos do tra balho humano, seus instrumentos, seu tempo e seu
espaço.15 No entanto, tais níveis de heteroderminação, isto é, de “uso de si pelos outros”
não retiram a ativi dade humana em sua mobilização de saberes e valores incor porados nas
práticas, e esta é condição essencial para a ação competente em um meio produtivo que está
se modificando constantemente.
É importante destacar que a compreensão sobre a relação saúde-trabalho em
diversos estudos que abordam a biossegurança encontra-se relacionada à abordagem da saúde
ocupacional. Esse fato é justificado, uma vez que o conceito de biossegurança é proveniente
de tal abordagem, que tem por objetivo contextualizar o ambiente de trabalho em relação a
riscos específicos, tendo como uma de suas preocupações fundamentais a contaminação por
agentes biológicos. Outras situações de risco são incorporadas de forma secundária e estão
associadas aos riscos definidos pela potencial exposição aos agentes biológicos, que classificam
os ambientes em um grau de risco ocupacional, populacional e ambiental, com normas e
procedimentos correspondentes.17
Na perspectiva da saúde ocupacional, o entendimento da relação saúde-doença
e trabalho contido no conceito de biossegurança traduz-se em uma valorização dos ambientes,
dos espaços e dos agentes neles presentes, com o trabalhador sendo visto como simples meio
de produção, desprezando-se suas possibilidades de compreensão e interferência no processo
produtivo. Nesta abordagem da relação saúde-trabalho, o trabalho não é compreendido como
atividade e relação social, sendo relevantes apenas os objetos, como fatos e dados não-históricos.
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Uma importante consequência deste enfoque constitui-se na perda da noção de trabalho como
processo e transformação, tornando-se coerente avaliar o trabalho como uma sucessão de
lugares que não se articulam claramente, impedindo que a lógica global do processo produtivo
seja incorporada.18
Esse enfoque da saúde ocupacional valoriza normas e regulamentos genéricos
de segurança que são elaborados, desconsiderando os saberes dos trabalhadores, sendo, dessa
maneira, insuficientes na proteção à saúde dos profissionais. Procedimentos e normas partem de
conhecimentos estáveis (sobre materiais, substâncias e técnicas) e são expressos por prescrições,
que muito raramente apreendem os riscos produzidos na atividade de trabalho.19
Nesse sentido, a compreensão do significado da atividade de trabalho é bastante
útil, pois a compreensão de tal conceito, bastante utilizado na abordagem ergológica, possibilita
uma aproximação com o caráter não padronizável, mutável e variável da vida e das situações
de trabalho. A atividade assume, assim, o lugar de uma dialética, na qual é necessário articular
os conflitos do sujeito com todos os tipos de normas apreendidas no horizonte histórico-social.
Estas normas devem ser analisadas como anteriores aos sujeitos que devem lidar com tais
regras, contudo, simultaneamente, constituem-se em história destes sujeitos, que é anterior a
estas normas. Por outro lado, a atividade também permite abordar localmente o resultado das
negociações, das quais resulta, a cada vez, a reconfiguração do meio. Com este reposicionamento,
a atividade sai das disciplinas apenas do sujeito para ser um caldeirão enigmático da história,
que perpassa os campos disciplinares.20
Em todas as situações, haverá uma diferença entre o trabalho prescrito nas regras/
procedimentos e o trabalho em situações reais, uma vez que não é possível conhecer a atividade
de trabalho a priori, pois é sempre enigmática.3 Assim, é fundamental considerar o caráter
imprevisível e variável da atividade de trabalho.
A tensão existente entre as prescrições técnicas relativas às normas de biossegurança
e o sentido atribuído ao trabalho podem também ser observados no confronto entre o trabalho
prescrito, tecnicamente correto, e o trabalho real, a atividade. Na atividade de trabalho,
interpõe-se o que o profissional denomina de “hábito”: o trabalhador age de acordo com algo
aprendido, automatizado. Esta automatização, por sua vez, economiza o planejamento dos atos
futuros.21
Nesse sentido é importante a compreensão do conceito de normas antecedentes
oriundo da ergologia. Tal noção, tanto quanto o conceito de trabalho prescrito, remete ao que
é fornecido e exigido do trabalhador, antes do trabalho ser realizado.3 Entretanto, a noção de
normas antecedentes evidencia certos elementos que estão geralmente ausentes nas definições
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de trabalho prescrito, tais como envolver restrições de execução determinadas à distância da
atividade de trabalho, possuir caráter de construção histórica e englobar valores não apenas
monetários, mas também aqueles de bem comum.22
As normas antecedentes relacionam-se a um patrimônio científico, conceitual e
cultural próprio de cada época, contribuindo para a análise das renormalizações realizadas
durante a atividade de trabalho, isto é, o processo de retrabalho das normas antecedentes
que ocorre em qualquer atividade de trabalho. Além disso, se em grande parte das situações
de trabalho não houvesse o descumprimento da norma, a atividade de trabalho não seria
concretizada, uma vez que a infração seguida de um processo de renormatização é fundamental
para que se produza o saber-fazer de prudência, útil para a eficácia e saúde no trabalho.19
Não se trata de negar a importância das normas antecedentes e, dentro deste
contexto, as normas de biossegurança, mas de destacar que as normas permitem resolver
apenas parte dos riscos no trabalho, pois tendem a desconsiderar o gradiente que não pode
ser estabilizado: o humano. Desse modo, a relação de causa-efeito entre risco, consciência
deste, correr risco e irracionalidade deve ser relativizada pela consideração da pluralidade de
racionalidades dos trabalhadores. Estes são os protagonistas da atividade de trabalho, entretanto
realizam suas atividades com base em dispositivos e regras que não lhes são próprios, utilizam
meios de trabalho que não são seus, além de se encontrar inseridos em uma organização do
trabalho não concebida por eles. Portanto, é essencial que tais fatores sejam considerados antes
da culpabilização do trabalhador por um acidente ou por uma infração à norma.19
A não-utilização de equipamento de proteção individual (EPI) não deve ser
considerada sinal de negligência, como muitos estudos que abordam a biossegurança enfatizam,5-8
pois, embora seu uso seja uma norma de segurança, nem sempre é possível trabalhar com os
EPI, como por exemplo, luvas e máscaras, uma vez que estes equipamentos restringem os
movimentos dos trabalhadores. Cabe salientar também que o EPI representa um símbolo de
imposição; assim, não usá-lo pode refletir uma reação às imposições e regras estabelecidas ou
significar a renormatização, com o trabalhador assumindo as regras da situação.23 A dinâmica
das renormatizações está permanentemente em curso nos processos de trabalho, embora seja
frequentemente desconsiderada em grande parte dos estudos sobre o trabalho.4
O principal problema da prevenção prescritiva, na qual estão incluídas as normas
de biossegurança, é a limitação da liberdade do trabalhador pelos dispositivos normalizadores
e reguladores. Tais prescrições são instrumentos formalizados necessários à gestão da saúde
e segurança no trabalho, mas, por serem elaboradas sem participação daqueles que deverão
cumpri-las, muitas vezes são rejeitadas por eles. É comum a incompreensão desta rejeição por
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parte dos responsáveis pela segurança e saúde no trabalho, sendo a resposta para isto a redução
da liberdade dos trabalhadores “insensatos” por meio de regulações cada vez mais restritivas.
Além disso, grande investimento em campanhas de educação, informação e sensibilização
é efetuado, para que os trabalhadores adotem comportamentos considerados “ideais” pelos
especialistas e, assim, se garanta a segurança no trabalho.24
Muitas estratégias de prevenção provavelmente não são bem-sucedidas
por dificuldade de comunicação ou por incompreensão de situações e comportamentos
considerados de modo precipitado como incoerentes pelos especialistas.25 A incorporação do
saber dos trabalhadores, resultante de suas experiências com os riscos no cotidiano, permite
processos legítimos de aprendizagem coletiva com intercâmbios de informações, expectativas
e perspectivas. Assim, abordagens preventivas para a minimização dos riscos necessitam ser
contextualizadas com análises/diagnósticos situacionais e uso de metodologias participativas
para que sejam realmente exitosas.25
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em diversos estudos que tratam da biossegurança, o “trabalho” é abordado
sob uma concepção de reconhecimento de atos inseguros e consequente culpabilização
do trabalhador, responsabilizando-o por possíveis contaminações em casos de acidentes de
trabalho com material biológico. Tais estudos desconsideram, fundamentalmente, o processo
de trabalho como fator fundamental para a análise e compreensão da relação saúde-trabalho.
O destaque na exigência de cumprimento das normas de biossegurança menospreza o fato
de tais normas, que são elaboradas sem participação dos trabalhadores, serem insuficientes na
proteção à saúde dos protagonistas da atividade de trabalho.
A ênfase na prevenção prescritiva baseada em instrumentos formalizados é
recorrente em diversos estudos sobre a biossegurança, no entanto a grande maioria também
reconhece a rejeição, por parte dos trabalhadores, a este tipo de prevenção. Como solução,
propõem a realização de campanhas de educação, informação e sensibilização para os
trabalhadores.26 Se for considerada, porém, a atividade humana de trabalho como uma constante
gestão de si, referenciada no agir competente em um meio produtivo, a única pos sibilidade
de encontrar a mencionada solução é pela descoberta das singularidades dos trabalhadores,
tornando-os sujeitos ativos no processo decisório no que diz respeito ao cumprimento de
normas.
A integração entre a abordagem ergológica e a biossegurança proposta neste
artigo não nega a importância das normas de biossegurança, mas enfatiza que a obediência
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irrestrita a normativos preestabelecidos sem a participação dos trabalhadores é praticamente
impossível. Assim, a principal contribuição do presente ensaio consiste no reconhecimento
do caráter sempre incompleto dos saberes, seja científicos, seja construídos na prática, sendo
fundamental, portanto, que tais saberes sejam constantemente aproximados e articulados para
que se aperfeiçoem mutuamente.14
Mais que educar, informar e sensibilizar, faz-se necessária, primeiramente, a
compreensão dos valores de cada sujeito envolvidos no processo de trabalho, considerando os
agentes como reais sujeitos da aprendizagem, tendo em vista suas diferenças e particularidades.27
Desse modo, o objetivo final da promoção da biossegurança será alcançado pela valorização
substancial da vida do outro e não pela irrestrita imposição normativa de ordens prescritas.
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Recebido em 4/12/2008 e aprovado em 18/1/2010.
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