bioÉtica e violÊncia de gÊnero nos povos indÍgenas
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JANNAYNA MARTINS SALES
BIOEacuteTICA E VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO NOS POVOS INDIacuteGENAS DIAGNOacuteSTICO DE UMA NEGLIGEcircNCIA
Brasiacutelia fevereiro de 2016
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UNIVERSIDADE DE BRASIacuteLIA
FACULDADE DE CIEcircNCIAS DA SAUacuteDE
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM BIOEacuteTICA
JANNAYNA MARTINS SALES
BIOEacuteTICA E VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO NOS POVOS INDIacuteGENAS DIAGNOacuteSTICO DE UMA NEGLIGEcircNCIA
Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Mestre em Bioeacutetica pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Bioeacutetica da Universidade de Brasiacutelia
Orientador Prof Dr Claacuteudio Lorenzo
BRASIacuteLIA
2016
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JANNAYNA MARTINS SALES
BIOEacuteTICA E VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO NOS POVOS INDIacuteGENAS DIAGNOacuteSTICO DE UMA NEGLIGEcircNCIA
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
________________________ Claacuteudio Lorenzo ndash Presidente
Universidade de Brasiacutelia
______________________ Aline Albuquerque SantrsquoAnna de Oliveira
Membro titular interno ao programa Universidade de Brasiacutelia
______________________
Ximena PamelaDiaz Bermudez Membro titular externo ao programa
Universidade de Brasiacutelia
______________________ Maria Gloria de Lima
Membro titular interno ao programa Universidade de Brasiacutelia
Tese apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Mestra em Bioeacutetica pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Bioeacutetica da Universidade de Brasiacutelia
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Agraves mulheres de garra que reescrevem a nossa histoacuteria a partir de suas lutas e conquistas
Agrave minha matildee que me ensinou esse caminho como o caminho da sobrevivecircncia
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AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Claudio Lorenzo pelo
comprometimento atenccedilatildeo e cuidado que me motivaram a buscar um crescimento
constante
Agradeccedilo a minha famiacutelia e amigos que me compreenderam e me acolheram em
todas as etapas
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Sonhe com o que vocecirc quiser Vaacute para onde vocecirc queira ir Seja o que vocecirc quer ser porque vocecirc possui apenas uma vida
e nela soacute temos uma chance de fazer aquilo que queremos Tenha felicidade bastante para fazecirc-la doce Dificuldades
para fazecirc-la forte Tristeza para fazecirc-la humana E esperanccedila suficiente para fazecirc-la feliz
(Clarice Lispector)
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Resumo
As estatiacutesticas sobre a violecircncia de gecircnero tem sido impactantes e uma seacuterie de medidas poliacuteticas juriacutedicas e institucionaistem sido desenvolvidas com a intenccedilatildeo de coibir o problema obtendo ateacute agora apenas uma discreta melhoria da situaccedilatildeo Entretanto a questatildeo da violecircncia contra a mulher indiacutegena natildeo parece vir recebendo uma atenccedilatildeo especial apesar delas virem denunciado em seus foacuteruns e movimentos as violecircncias de que satildeo viacutetimas O objetivo deste trabalho foi traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional e por programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiros agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica Utilizou-se como meacutetodo a revisatildeo integrativa tal como proposta por Whittemore e Knalf O levantamento da literatura teve por base os artigos cientiacuteficos brasileiros indexados nas bases SCIELO e LILACS usando-se os descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo A escolha de programas e poliacuteticas foi feita por conveniecircncia elegendo-seaqueles relacionados agrave sauacutede e proteccedilatildeo dos povos indiacutegenas e das mulheresDentre os 570 artigos encontrados 66 atenderam aos criteacuterios de inclusatildeo e exclusatildeo e fazem parte do estudo Entre os resultados vale notar que natildeo foi encontrado nenhum artigodirigido ao problema especiacutefico da violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena Apenas 7 abordaram em seus textos a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e de considerar aspectos histoacutericos e eacutetnicos ao tratar do tema Nenhum deles foi produzido a partir de uma perspectiva bioeacutetica Quatro poliacuteticas e programas institucionais foram estudados Todos abordaram ao menos indiretamente o problema mas natildeo constavam de diretrizes ou accedilotildees especiacuteficas visando uma adequaccedilatildeo intercultural das medidas O referencial teoacuterico com o qual os resultados foram discutidos foi sustentado na Bioeacutetica Criacutetica enquanto campo reflexivo e de compromisso praacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade e emancipaccedilatildeo de grupos em desvantagens sociais historicamente determinadas Eacute dado ecircnfase tambeacutem aos estudos de colonialidade a partir dos quais a negligecircncia identificada foi atribuiacuteda agrave uma colonialidade de saber e de poder Conclui-se que a crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado e com esse panorama invisiacutevel e negligente promove uma grande lacuna a ser preenchida por estudos nessa aacuterea Considera-se ainda a necessidade de construccedilotildees descoloniais de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero O estudo conclui pela necessidade da divulgaccedilatildeo da invisibilidade cientiacutefica einstitucional detectadase propotildee entre outros caminhos uma maior inserccedilatildeo do tema nas graduaccedilotildees e poacutes-graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica quanto em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais especiacuteficos para estudos etnograacuteficos sobre relaccedilotildees de gecircnero ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia focando os registros de violecircncia de gecircnero em contexto indiacutegena e muito especialmente a promoccedilatildeo de
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espaccedilos e foacuteruns a partir dos quais as proacuteprias mulheres construam accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo intracomunitaacuterias culturalmente adequadas
Palavras-Chave Violecircncia de gecircnero Povos indiacutegenas Colonialismo Bioeacutetica criacutetica ABSTRACT Gender-based violence statistics have been striking the society with important numbers so a series of political legal and institutional measures have been developed with the intention to restrain the problem resulting only on a slight improvement in the situation Violence against indigenous women on another account doesnrsquot seem to be receiving any special attention although these women have been reporting in forums and through specific social movements all the violence they suffer The objective of this study was to establish an overview of the approach taken by the Brazilian scientific production and both public programs and policies on gender-based violence in the context of indigenous peoples and analyze its results in the perspective of Critical Bioethics It was used an integrative review as proposed by Whittemore and Knalf The literature review was based on the Brazilian scientific articles indexed in SCIELO and LILACS using the following descriptors violence against women gender violence and bioethics separately and in combination with the following keywords indigenous peoples indigenous population and indigenous The choice of programs and policies was made by convenience in order to elect those related to either health or protection of indigenous peoples and women Among the 570 articles found 66 met both the inclusion and exclusion criteria to be part of the study Among the results no article addressed the specific issue of gender violence against indigenous women was foundand only 7 addressed in its considerations the need to expand studies to indigenous populations and to consider historical and ethnic aspects when addressing the issue None of them was produced from a Bioethical perspective Four political and institutional programs were studied All covered at least indirectly the problem but didnrsquot contain specific guidelines or actions to an intercultural appropriateness of the guidelines The theoretical framework with which the results were discussed was held based on a Critical Bioethics as a reflective field and a practical commitment to the transformation of reality and emancipation of groups singled out by an historically determined social disadvantage We also emphasize colonialism studies from which the identified negligence was attributed to onersquos colonialism of knowledge and power We conclude that the cruelty and the helplessness to women victims of violence increases as the conception of the modern state and the free market move forward and this invisible and negligent panorama promotes a large gap to be filled by studies in this area It also considers the need for non colonialist buildings of plural paths both for the scientific field and to public policies laws and institutional safety nets which also implies in an ethical dimension of opening spaces for intercultural dialogue with a changing overview on structures and social relations of gender The study concludes the need to point out the scientific and institutional invisibility of the chosen subject and proposes greater integration of the theme at the undergraduate and postgraduate courses both in bioethics and in public health the development of
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specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
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Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
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Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
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SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
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1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
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os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
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foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
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O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
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A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
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2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
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3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
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4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
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Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
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Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
2
UNIVERSIDADE DE BRASIacuteLIA
FACULDADE DE CIEcircNCIAS DA SAUacuteDE
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM BIOEacuteTICA
JANNAYNA MARTINS SALES
BIOEacuteTICA E VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO NOS POVOS INDIacuteGENAS DIAGNOacuteSTICO DE UMA NEGLIGEcircNCIA
Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Mestre em Bioeacutetica pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Bioeacutetica da Universidade de Brasiacutelia
Orientador Prof Dr Claacuteudio Lorenzo
BRASIacuteLIA
2016
3
JANNAYNA MARTINS SALES
BIOEacuteTICA E VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO NOS POVOS INDIacuteGENAS DIAGNOacuteSTICO DE UMA NEGLIGEcircNCIA
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
________________________ Claacuteudio Lorenzo ndash Presidente
Universidade de Brasiacutelia
______________________ Aline Albuquerque SantrsquoAnna de Oliveira
Membro titular interno ao programa Universidade de Brasiacutelia
______________________
Ximena PamelaDiaz Bermudez Membro titular externo ao programa
Universidade de Brasiacutelia
______________________ Maria Gloria de Lima
Membro titular interno ao programa Universidade de Brasiacutelia
Tese apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Mestra em Bioeacutetica pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Bioeacutetica da Universidade de Brasiacutelia
4
Agraves mulheres de garra que reescrevem a nossa histoacuteria a partir de suas lutas e conquistas
Agrave minha matildee que me ensinou esse caminho como o caminho da sobrevivecircncia
5
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Claudio Lorenzo pelo
comprometimento atenccedilatildeo e cuidado que me motivaram a buscar um crescimento
constante
Agradeccedilo a minha famiacutelia e amigos que me compreenderam e me acolheram em
todas as etapas
6
Sonhe com o que vocecirc quiser Vaacute para onde vocecirc queira ir Seja o que vocecirc quer ser porque vocecirc possui apenas uma vida
e nela soacute temos uma chance de fazer aquilo que queremos Tenha felicidade bastante para fazecirc-la doce Dificuldades
para fazecirc-la forte Tristeza para fazecirc-la humana E esperanccedila suficiente para fazecirc-la feliz
(Clarice Lispector)
7
Resumo
As estatiacutesticas sobre a violecircncia de gecircnero tem sido impactantes e uma seacuterie de medidas poliacuteticas juriacutedicas e institucionaistem sido desenvolvidas com a intenccedilatildeo de coibir o problema obtendo ateacute agora apenas uma discreta melhoria da situaccedilatildeo Entretanto a questatildeo da violecircncia contra a mulher indiacutegena natildeo parece vir recebendo uma atenccedilatildeo especial apesar delas virem denunciado em seus foacuteruns e movimentos as violecircncias de que satildeo viacutetimas O objetivo deste trabalho foi traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional e por programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiros agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica Utilizou-se como meacutetodo a revisatildeo integrativa tal como proposta por Whittemore e Knalf O levantamento da literatura teve por base os artigos cientiacuteficos brasileiros indexados nas bases SCIELO e LILACS usando-se os descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo A escolha de programas e poliacuteticas foi feita por conveniecircncia elegendo-seaqueles relacionados agrave sauacutede e proteccedilatildeo dos povos indiacutegenas e das mulheresDentre os 570 artigos encontrados 66 atenderam aos criteacuterios de inclusatildeo e exclusatildeo e fazem parte do estudo Entre os resultados vale notar que natildeo foi encontrado nenhum artigodirigido ao problema especiacutefico da violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena Apenas 7 abordaram em seus textos a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e de considerar aspectos histoacutericos e eacutetnicos ao tratar do tema Nenhum deles foi produzido a partir de uma perspectiva bioeacutetica Quatro poliacuteticas e programas institucionais foram estudados Todos abordaram ao menos indiretamente o problema mas natildeo constavam de diretrizes ou accedilotildees especiacuteficas visando uma adequaccedilatildeo intercultural das medidas O referencial teoacuterico com o qual os resultados foram discutidos foi sustentado na Bioeacutetica Criacutetica enquanto campo reflexivo e de compromisso praacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade e emancipaccedilatildeo de grupos em desvantagens sociais historicamente determinadas Eacute dado ecircnfase tambeacutem aos estudos de colonialidade a partir dos quais a negligecircncia identificada foi atribuiacuteda agrave uma colonialidade de saber e de poder Conclui-se que a crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado e com esse panorama invisiacutevel e negligente promove uma grande lacuna a ser preenchida por estudos nessa aacuterea Considera-se ainda a necessidade de construccedilotildees descoloniais de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero O estudo conclui pela necessidade da divulgaccedilatildeo da invisibilidade cientiacutefica einstitucional detectadase propotildee entre outros caminhos uma maior inserccedilatildeo do tema nas graduaccedilotildees e poacutes-graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica quanto em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais especiacuteficos para estudos etnograacuteficos sobre relaccedilotildees de gecircnero ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia focando os registros de violecircncia de gecircnero em contexto indiacutegena e muito especialmente a promoccedilatildeo de
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espaccedilos e foacuteruns a partir dos quais as proacuteprias mulheres construam accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo intracomunitaacuterias culturalmente adequadas
Palavras-Chave Violecircncia de gecircnero Povos indiacutegenas Colonialismo Bioeacutetica criacutetica ABSTRACT Gender-based violence statistics have been striking the society with important numbers so a series of political legal and institutional measures have been developed with the intention to restrain the problem resulting only on a slight improvement in the situation Violence against indigenous women on another account doesnrsquot seem to be receiving any special attention although these women have been reporting in forums and through specific social movements all the violence they suffer The objective of this study was to establish an overview of the approach taken by the Brazilian scientific production and both public programs and policies on gender-based violence in the context of indigenous peoples and analyze its results in the perspective of Critical Bioethics It was used an integrative review as proposed by Whittemore and Knalf The literature review was based on the Brazilian scientific articles indexed in SCIELO and LILACS using the following descriptors violence against women gender violence and bioethics separately and in combination with the following keywords indigenous peoples indigenous population and indigenous The choice of programs and policies was made by convenience in order to elect those related to either health or protection of indigenous peoples and women Among the 570 articles found 66 met both the inclusion and exclusion criteria to be part of the study Among the results no article addressed the specific issue of gender violence against indigenous women was foundand only 7 addressed in its considerations the need to expand studies to indigenous populations and to consider historical and ethnic aspects when addressing the issue None of them was produced from a Bioethical perspective Four political and institutional programs were studied All covered at least indirectly the problem but didnrsquot contain specific guidelines or actions to an intercultural appropriateness of the guidelines The theoretical framework with which the results were discussed was held based on a Critical Bioethics as a reflective field and a practical commitment to the transformation of reality and emancipation of groups singled out by an historically determined social disadvantage We also emphasize colonialism studies from which the identified negligence was attributed to onersquos colonialism of knowledge and power We conclude that the cruelty and the helplessness to women victims of violence increases as the conception of the modern state and the free market move forward and this invisible and negligent panorama promotes a large gap to be filled by studies in this area It also considers the need for non colonialist buildings of plural paths both for the scientific field and to public policies laws and institutional safety nets which also implies in an ethical dimension of opening spaces for intercultural dialogue with a changing overview on structures and social relations of gender The study concludes the need to point out the scientific and institutional invisibility of the chosen subject and proposes greater integration of the theme at the undergraduate and postgraduate courses both in bioethics and in public health the development of
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specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
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Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
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Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
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SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
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Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
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Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
3
JANNAYNA MARTINS SALES
BIOEacuteTICA E VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO NOS POVOS INDIacuteGENAS DIAGNOacuteSTICO DE UMA NEGLIGEcircNCIA
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
________________________ Claacuteudio Lorenzo ndash Presidente
Universidade de Brasiacutelia
______________________ Aline Albuquerque SantrsquoAnna de Oliveira
Membro titular interno ao programa Universidade de Brasiacutelia
______________________
Ximena PamelaDiaz Bermudez Membro titular externo ao programa
Universidade de Brasiacutelia
______________________ Maria Gloria de Lima
Membro titular interno ao programa Universidade de Brasiacutelia
Tese apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Mestra em Bioeacutetica pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Bioeacutetica da Universidade de Brasiacutelia
4
Agraves mulheres de garra que reescrevem a nossa histoacuteria a partir de suas lutas e conquistas
Agrave minha matildee que me ensinou esse caminho como o caminho da sobrevivecircncia
5
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Claudio Lorenzo pelo
comprometimento atenccedilatildeo e cuidado que me motivaram a buscar um crescimento
constante
Agradeccedilo a minha famiacutelia e amigos que me compreenderam e me acolheram em
todas as etapas
6
Sonhe com o que vocecirc quiser Vaacute para onde vocecirc queira ir Seja o que vocecirc quer ser porque vocecirc possui apenas uma vida
e nela soacute temos uma chance de fazer aquilo que queremos Tenha felicidade bastante para fazecirc-la doce Dificuldades
para fazecirc-la forte Tristeza para fazecirc-la humana E esperanccedila suficiente para fazecirc-la feliz
(Clarice Lispector)
7
Resumo
As estatiacutesticas sobre a violecircncia de gecircnero tem sido impactantes e uma seacuterie de medidas poliacuteticas juriacutedicas e institucionaistem sido desenvolvidas com a intenccedilatildeo de coibir o problema obtendo ateacute agora apenas uma discreta melhoria da situaccedilatildeo Entretanto a questatildeo da violecircncia contra a mulher indiacutegena natildeo parece vir recebendo uma atenccedilatildeo especial apesar delas virem denunciado em seus foacuteruns e movimentos as violecircncias de que satildeo viacutetimas O objetivo deste trabalho foi traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional e por programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiros agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica Utilizou-se como meacutetodo a revisatildeo integrativa tal como proposta por Whittemore e Knalf O levantamento da literatura teve por base os artigos cientiacuteficos brasileiros indexados nas bases SCIELO e LILACS usando-se os descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo A escolha de programas e poliacuteticas foi feita por conveniecircncia elegendo-seaqueles relacionados agrave sauacutede e proteccedilatildeo dos povos indiacutegenas e das mulheresDentre os 570 artigos encontrados 66 atenderam aos criteacuterios de inclusatildeo e exclusatildeo e fazem parte do estudo Entre os resultados vale notar que natildeo foi encontrado nenhum artigodirigido ao problema especiacutefico da violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena Apenas 7 abordaram em seus textos a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e de considerar aspectos histoacutericos e eacutetnicos ao tratar do tema Nenhum deles foi produzido a partir de uma perspectiva bioeacutetica Quatro poliacuteticas e programas institucionais foram estudados Todos abordaram ao menos indiretamente o problema mas natildeo constavam de diretrizes ou accedilotildees especiacuteficas visando uma adequaccedilatildeo intercultural das medidas O referencial teoacuterico com o qual os resultados foram discutidos foi sustentado na Bioeacutetica Criacutetica enquanto campo reflexivo e de compromisso praacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade e emancipaccedilatildeo de grupos em desvantagens sociais historicamente determinadas Eacute dado ecircnfase tambeacutem aos estudos de colonialidade a partir dos quais a negligecircncia identificada foi atribuiacuteda agrave uma colonialidade de saber e de poder Conclui-se que a crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado e com esse panorama invisiacutevel e negligente promove uma grande lacuna a ser preenchida por estudos nessa aacuterea Considera-se ainda a necessidade de construccedilotildees descoloniais de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero O estudo conclui pela necessidade da divulgaccedilatildeo da invisibilidade cientiacutefica einstitucional detectadase propotildee entre outros caminhos uma maior inserccedilatildeo do tema nas graduaccedilotildees e poacutes-graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica quanto em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais especiacuteficos para estudos etnograacuteficos sobre relaccedilotildees de gecircnero ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia focando os registros de violecircncia de gecircnero em contexto indiacutegena e muito especialmente a promoccedilatildeo de
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espaccedilos e foacuteruns a partir dos quais as proacuteprias mulheres construam accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo intracomunitaacuterias culturalmente adequadas
Palavras-Chave Violecircncia de gecircnero Povos indiacutegenas Colonialismo Bioeacutetica criacutetica ABSTRACT Gender-based violence statistics have been striking the society with important numbers so a series of political legal and institutional measures have been developed with the intention to restrain the problem resulting only on a slight improvement in the situation Violence against indigenous women on another account doesnrsquot seem to be receiving any special attention although these women have been reporting in forums and through specific social movements all the violence they suffer The objective of this study was to establish an overview of the approach taken by the Brazilian scientific production and both public programs and policies on gender-based violence in the context of indigenous peoples and analyze its results in the perspective of Critical Bioethics It was used an integrative review as proposed by Whittemore and Knalf The literature review was based on the Brazilian scientific articles indexed in SCIELO and LILACS using the following descriptors violence against women gender violence and bioethics separately and in combination with the following keywords indigenous peoples indigenous population and indigenous The choice of programs and policies was made by convenience in order to elect those related to either health or protection of indigenous peoples and women Among the 570 articles found 66 met both the inclusion and exclusion criteria to be part of the study Among the results no article addressed the specific issue of gender violence against indigenous women was foundand only 7 addressed in its considerations the need to expand studies to indigenous populations and to consider historical and ethnic aspects when addressing the issue None of them was produced from a Bioethical perspective Four political and institutional programs were studied All covered at least indirectly the problem but didnrsquot contain specific guidelines or actions to an intercultural appropriateness of the guidelines The theoretical framework with which the results were discussed was held based on a Critical Bioethics as a reflective field and a practical commitment to the transformation of reality and emancipation of groups singled out by an historically determined social disadvantage We also emphasize colonialism studies from which the identified negligence was attributed to onersquos colonialism of knowledge and power We conclude that the cruelty and the helplessness to women victims of violence increases as the conception of the modern state and the free market move forward and this invisible and negligent panorama promotes a large gap to be filled by studies in this area It also considers the need for non colonialist buildings of plural paths both for the scientific field and to public policies laws and institutional safety nets which also implies in an ethical dimension of opening spaces for intercultural dialogue with a changing overview on structures and social relations of gender The study concludes the need to point out the scientific and institutional invisibility of the chosen subject and proposes greater integration of the theme at the undergraduate and postgraduate courses both in bioethics and in public health the development of
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specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
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Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
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Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
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SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
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Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
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Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
4
Agraves mulheres de garra que reescrevem a nossa histoacuteria a partir de suas lutas e conquistas
Agrave minha matildee que me ensinou esse caminho como o caminho da sobrevivecircncia
5
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Claudio Lorenzo pelo
comprometimento atenccedilatildeo e cuidado que me motivaram a buscar um crescimento
constante
Agradeccedilo a minha famiacutelia e amigos que me compreenderam e me acolheram em
todas as etapas
6
Sonhe com o que vocecirc quiser Vaacute para onde vocecirc queira ir Seja o que vocecirc quer ser porque vocecirc possui apenas uma vida
e nela soacute temos uma chance de fazer aquilo que queremos Tenha felicidade bastante para fazecirc-la doce Dificuldades
para fazecirc-la forte Tristeza para fazecirc-la humana E esperanccedila suficiente para fazecirc-la feliz
(Clarice Lispector)
7
Resumo
As estatiacutesticas sobre a violecircncia de gecircnero tem sido impactantes e uma seacuterie de medidas poliacuteticas juriacutedicas e institucionaistem sido desenvolvidas com a intenccedilatildeo de coibir o problema obtendo ateacute agora apenas uma discreta melhoria da situaccedilatildeo Entretanto a questatildeo da violecircncia contra a mulher indiacutegena natildeo parece vir recebendo uma atenccedilatildeo especial apesar delas virem denunciado em seus foacuteruns e movimentos as violecircncias de que satildeo viacutetimas O objetivo deste trabalho foi traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional e por programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiros agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica Utilizou-se como meacutetodo a revisatildeo integrativa tal como proposta por Whittemore e Knalf O levantamento da literatura teve por base os artigos cientiacuteficos brasileiros indexados nas bases SCIELO e LILACS usando-se os descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo A escolha de programas e poliacuteticas foi feita por conveniecircncia elegendo-seaqueles relacionados agrave sauacutede e proteccedilatildeo dos povos indiacutegenas e das mulheresDentre os 570 artigos encontrados 66 atenderam aos criteacuterios de inclusatildeo e exclusatildeo e fazem parte do estudo Entre os resultados vale notar que natildeo foi encontrado nenhum artigodirigido ao problema especiacutefico da violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena Apenas 7 abordaram em seus textos a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e de considerar aspectos histoacutericos e eacutetnicos ao tratar do tema Nenhum deles foi produzido a partir de uma perspectiva bioeacutetica Quatro poliacuteticas e programas institucionais foram estudados Todos abordaram ao menos indiretamente o problema mas natildeo constavam de diretrizes ou accedilotildees especiacuteficas visando uma adequaccedilatildeo intercultural das medidas O referencial teoacuterico com o qual os resultados foram discutidos foi sustentado na Bioeacutetica Criacutetica enquanto campo reflexivo e de compromisso praacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade e emancipaccedilatildeo de grupos em desvantagens sociais historicamente determinadas Eacute dado ecircnfase tambeacutem aos estudos de colonialidade a partir dos quais a negligecircncia identificada foi atribuiacuteda agrave uma colonialidade de saber e de poder Conclui-se que a crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado e com esse panorama invisiacutevel e negligente promove uma grande lacuna a ser preenchida por estudos nessa aacuterea Considera-se ainda a necessidade de construccedilotildees descoloniais de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero O estudo conclui pela necessidade da divulgaccedilatildeo da invisibilidade cientiacutefica einstitucional detectadase propotildee entre outros caminhos uma maior inserccedilatildeo do tema nas graduaccedilotildees e poacutes-graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica quanto em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais especiacuteficos para estudos etnograacuteficos sobre relaccedilotildees de gecircnero ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia focando os registros de violecircncia de gecircnero em contexto indiacutegena e muito especialmente a promoccedilatildeo de
8
espaccedilos e foacuteruns a partir dos quais as proacuteprias mulheres construam accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo intracomunitaacuterias culturalmente adequadas
Palavras-Chave Violecircncia de gecircnero Povos indiacutegenas Colonialismo Bioeacutetica criacutetica ABSTRACT Gender-based violence statistics have been striking the society with important numbers so a series of political legal and institutional measures have been developed with the intention to restrain the problem resulting only on a slight improvement in the situation Violence against indigenous women on another account doesnrsquot seem to be receiving any special attention although these women have been reporting in forums and through specific social movements all the violence they suffer The objective of this study was to establish an overview of the approach taken by the Brazilian scientific production and both public programs and policies on gender-based violence in the context of indigenous peoples and analyze its results in the perspective of Critical Bioethics It was used an integrative review as proposed by Whittemore and Knalf The literature review was based on the Brazilian scientific articles indexed in SCIELO and LILACS using the following descriptors violence against women gender violence and bioethics separately and in combination with the following keywords indigenous peoples indigenous population and indigenous The choice of programs and policies was made by convenience in order to elect those related to either health or protection of indigenous peoples and women Among the 570 articles found 66 met both the inclusion and exclusion criteria to be part of the study Among the results no article addressed the specific issue of gender violence against indigenous women was foundand only 7 addressed in its considerations the need to expand studies to indigenous populations and to consider historical and ethnic aspects when addressing the issue None of them was produced from a Bioethical perspective Four political and institutional programs were studied All covered at least indirectly the problem but didnrsquot contain specific guidelines or actions to an intercultural appropriateness of the guidelines The theoretical framework with which the results were discussed was held based on a Critical Bioethics as a reflective field and a practical commitment to the transformation of reality and emancipation of groups singled out by an historically determined social disadvantage We also emphasize colonialism studies from which the identified negligence was attributed to onersquos colonialism of knowledge and power We conclude that the cruelty and the helplessness to women victims of violence increases as the conception of the modern state and the free market move forward and this invisible and negligent panorama promotes a large gap to be filled by studies in this area It also considers the need for non colonialist buildings of plural paths both for the scientific field and to public policies laws and institutional safety nets which also implies in an ethical dimension of opening spaces for intercultural dialogue with a changing overview on structures and social relations of gender The study concludes the need to point out the scientific and institutional invisibility of the chosen subject and proposes greater integration of the theme at the undergraduate and postgraduate courses both in bioethics and in public health the development of
9
specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
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Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
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Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
12
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
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Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
5
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Claudio Lorenzo pelo
comprometimento atenccedilatildeo e cuidado que me motivaram a buscar um crescimento
constante
Agradeccedilo a minha famiacutelia e amigos que me compreenderam e me acolheram em
todas as etapas
6
Sonhe com o que vocecirc quiser Vaacute para onde vocecirc queira ir Seja o que vocecirc quer ser porque vocecirc possui apenas uma vida
e nela soacute temos uma chance de fazer aquilo que queremos Tenha felicidade bastante para fazecirc-la doce Dificuldades
para fazecirc-la forte Tristeza para fazecirc-la humana E esperanccedila suficiente para fazecirc-la feliz
(Clarice Lispector)
7
Resumo
As estatiacutesticas sobre a violecircncia de gecircnero tem sido impactantes e uma seacuterie de medidas poliacuteticas juriacutedicas e institucionaistem sido desenvolvidas com a intenccedilatildeo de coibir o problema obtendo ateacute agora apenas uma discreta melhoria da situaccedilatildeo Entretanto a questatildeo da violecircncia contra a mulher indiacutegena natildeo parece vir recebendo uma atenccedilatildeo especial apesar delas virem denunciado em seus foacuteruns e movimentos as violecircncias de que satildeo viacutetimas O objetivo deste trabalho foi traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional e por programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiros agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica Utilizou-se como meacutetodo a revisatildeo integrativa tal como proposta por Whittemore e Knalf O levantamento da literatura teve por base os artigos cientiacuteficos brasileiros indexados nas bases SCIELO e LILACS usando-se os descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo A escolha de programas e poliacuteticas foi feita por conveniecircncia elegendo-seaqueles relacionados agrave sauacutede e proteccedilatildeo dos povos indiacutegenas e das mulheresDentre os 570 artigos encontrados 66 atenderam aos criteacuterios de inclusatildeo e exclusatildeo e fazem parte do estudo Entre os resultados vale notar que natildeo foi encontrado nenhum artigodirigido ao problema especiacutefico da violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena Apenas 7 abordaram em seus textos a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e de considerar aspectos histoacutericos e eacutetnicos ao tratar do tema Nenhum deles foi produzido a partir de uma perspectiva bioeacutetica Quatro poliacuteticas e programas institucionais foram estudados Todos abordaram ao menos indiretamente o problema mas natildeo constavam de diretrizes ou accedilotildees especiacuteficas visando uma adequaccedilatildeo intercultural das medidas O referencial teoacuterico com o qual os resultados foram discutidos foi sustentado na Bioeacutetica Criacutetica enquanto campo reflexivo e de compromisso praacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade e emancipaccedilatildeo de grupos em desvantagens sociais historicamente determinadas Eacute dado ecircnfase tambeacutem aos estudos de colonialidade a partir dos quais a negligecircncia identificada foi atribuiacuteda agrave uma colonialidade de saber e de poder Conclui-se que a crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado e com esse panorama invisiacutevel e negligente promove uma grande lacuna a ser preenchida por estudos nessa aacuterea Considera-se ainda a necessidade de construccedilotildees descoloniais de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero O estudo conclui pela necessidade da divulgaccedilatildeo da invisibilidade cientiacutefica einstitucional detectadase propotildee entre outros caminhos uma maior inserccedilatildeo do tema nas graduaccedilotildees e poacutes-graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica quanto em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais especiacuteficos para estudos etnograacuteficos sobre relaccedilotildees de gecircnero ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia focando os registros de violecircncia de gecircnero em contexto indiacutegena e muito especialmente a promoccedilatildeo de
8
espaccedilos e foacuteruns a partir dos quais as proacuteprias mulheres construam accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo intracomunitaacuterias culturalmente adequadas
Palavras-Chave Violecircncia de gecircnero Povos indiacutegenas Colonialismo Bioeacutetica criacutetica ABSTRACT Gender-based violence statistics have been striking the society with important numbers so a series of political legal and institutional measures have been developed with the intention to restrain the problem resulting only on a slight improvement in the situation Violence against indigenous women on another account doesnrsquot seem to be receiving any special attention although these women have been reporting in forums and through specific social movements all the violence they suffer The objective of this study was to establish an overview of the approach taken by the Brazilian scientific production and both public programs and policies on gender-based violence in the context of indigenous peoples and analyze its results in the perspective of Critical Bioethics It was used an integrative review as proposed by Whittemore and Knalf The literature review was based on the Brazilian scientific articles indexed in SCIELO and LILACS using the following descriptors violence against women gender violence and bioethics separately and in combination with the following keywords indigenous peoples indigenous population and indigenous The choice of programs and policies was made by convenience in order to elect those related to either health or protection of indigenous peoples and women Among the 570 articles found 66 met both the inclusion and exclusion criteria to be part of the study Among the results no article addressed the specific issue of gender violence against indigenous women was foundand only 7 addressed in its considerations the need to expand studies to indigenous populations and to consider historical and ethnic aspects when addressing the issue None of them was produced from a Bioethical perspective Four political and institutional programs were studied All covered at least indirectly the problem but didnrsquot contain specific guidelines or actions to an intercultural appropriateness of the guidelines The theoretical framework with which the results were discussed was held based on a Critical Bioethics as a reflective field and a practical commitment to the transformation of reality and emancipation of groups singled out by an historically determined social disadvantage We also emphasize colonialism studies from which the identified negligence was attributed to onersquos colonialism of knowledge and power We conclude that the cruelty and the helplessness to women victims of violence increases as the conception of the modern state and the free market move forward and this invisible and negligent panorama promotes a large gap to be filled by studies in this area It also considers the need for non colonialist buildings of plural paths both for the scientific field and to public policies laws and institutional safety nets which also implies in an ethical dimension of opening spaces for intercultural dialogue with a changing overview on structures and social relations of gender The study concludes the need to point out the scientific and institutional invisibility of the chosen subject and proposes greater integration of the theme at the undergraduate and postgraduate courses both in bioethics and in public health the development of
9
specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
10
Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
11
Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
12
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
8 REFEREcircNCIAS
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132 Ministeacuterio da Sauacutede (BR) Secretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede
Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher princiacutepios e diretrizes Brasiacutelia Ministeacuterio da Sauacutede 2004 82 p
133 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
Mulheres Poliacutetica Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia contra as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2011 70 p
134 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
MulheresPlano Nacional de Poliacutetica para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013 114 p
135 Segato RL Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres
Rev Soc Estado 2014 maio-ago 29(2)
70
136 Segato RL Que cada povo teccedila os fios da sua histoacuteria o pluralismo juriacutedico em diaacutelogo didaacutetico com legisladores Revista de Direito da Universidade de Brasiacutelia 2014 jan-jun1(1)
Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
6
Sonhe com o que vocecirc quiser Vaacute para onde vocecirc queira ir Seja o que vocecirc quer ser porque vocecirc possui apenas uma vida
e nela soacute temos uma chance de fazer aquilo que queremos Tenha felicidade bastante para fazecirc-la doce Dificuldades
para fazecirc-la forte Tristeza para fazecirc-la humana E esperanccedila suficiente para fazecirc-la feliz
(Clarice Lispector)
7
Resumo
As estatiacutesticas sobre a violecircncia de gecircnero tem sido impactantes e uma seacuterie de medidas poliacuteticas juriacutedicas e institucionaistem sido desenvolvidas com a intenccedilatildeo de coibir o problema obtendo ateacute agora apenas uma discreta melhoria da situaccedilatildeo Entretanto a questatildeo da violecircncia contra a mulher indiacutegena natildeo parece vir recebendo uma atenccedilatildeo especial apesar delas virem denunciado em seus foacuteruns e movimentos as violecircncias de que satildeo viacutetimas O objetivo deste trabalho foi traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional e por programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiros agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica Utilizou-se como meacutetodo a revisatildeo integrativa tal como proposta por Whittemore e Knalf O levantamento da literatura teve por base os artigos cientiacuteficos brasileiros indexados nas bases SCIELO e LILACS usando-se os descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo A escolha de programas e poliacuteticas foi feita por conveniecircncia elegendo-seaqueles relacionados agrave sauacutede e proteccedilatildeo dos povos indiacutegenas e das mulheresDentre os 570 artigos encontrados 66 atenderam aos criteacuterios de inclusatildeo e exclusatildeo e fazem parte do estudo Entre os resultados vale notar que natildeo foi encontrado nenhum artigodirigido ao problema especiacutefico da violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena Apenas 7 abordaram em seus textos a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e de considerar aspectos histoacutericos e eacutetnicos ao tratar do tema Nenhum deles foi produzido a partir de uma perspectiva bioeacutetica Quatro poliacuteticas e programas institucionais foram estudados Todos abordaram ao menos indiretamente o problema mas natildeo constavam de diretrizes ou accedilotildees especiacuteficas visando uma adequaccedilatildeo intercultural das medidas O referencial teoacuterico com o qual os resultados foram discutidos foi sustentado na Bioeacutetica Criacutetica enquanto campo reflexivo e de compromisso praacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade e emancipaccedilatildeo de grupos em desvantagens sociais historicamente determinadas Eacute dado ecircnfase tambeacutem aos estudos de colonialidade a partir dos quais a negligecircncia identificada foi atribuiacuteda agrave uma colonialidade de saber e de poder Conclui-se que a crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado e com esse panorama invisiacutevel e negligente promove uma grande lacuna a ser preenchida por estudos nessa aacuterea Considera-se ainda a necessidade de construccedilotildees descoloniais de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero O estudo conclui pela necessidade da divulgaccedilatildeo da invisibilidade cientiacutefica einstitucional detectadase propotildee entre outros caminhos uma maior inserccedilatildeo do tema nas graduaccedilotildees e poacutes-graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica quanto em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais especiacuteficos para estudos etnograacuteficos sobre relaccedilotildees de gecircnero ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia focando os registros de violecircncia de gecircnero em contexto indiacutegena e muito especialmente a promoccedilatildeo de
8
espaccedilos e foacuteruns a partir dos quais as proacuteprias mulheres construam accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo intracomunitaacuterias culturalmente adequadas
Palavras-Chave Violecircncia de gecircnero Povos indiacutegenas Colonialismo Bioeacutetica criacutetica ABSTRACT Gender-based violence statistics have been striking the society with important numbers so a series of political legal and institutional measures have been developed with the intention to restrain the problem resulting only on a slight improvement in the situation Violence against indigenous women on another account doesnrsquot seem to be receiving any special attention although these women have been reporting in forums and through specific social movements all the violence they suffer The objective of this study was to establish an overview of the approach taken by the Brazilian scientific production and both public programs and policies on gender-based violence in the context of indigenous peoples and analyze its results in the perspective of Critical Bioethics It was used an integrative review as proposed by Whittemore and Knalf The literature review was based on the Brazilian scientific articles indexed in SCIELO and LILACS using the following descriptors violence against women gender violence and bioethics separately and in combination with the following keywords indigenous peoples indigenous population and indigenous The choice of programs and policies was made by convenience in order to elect those related to either health or protection of indigenous peoples and women Among the 570 articles found 66 met both the inclusion and exclusion criteria to be part of the study Among the results no article addressed the specific issue of gender violence against indigenous women was foundand only 7 addressed in its considerations the need to expand studies to indigenous populations and to consider historical and ethnic aspects when addressing the issue None of them was produced from a Bioethical perspective Four political and institutional programs were studied All covered at least indirectly the problem but didnrsquot contain specific guidelines or actions to an intercultural appropriateness of the guidelines The theoretical framework with which the results were discussed was held based on a Critical Bioethics as a reflective field and a practical commitment to the transformation of reality and emancipation of groups singled out by an historically determined social disadvantage We also emphasize colonialism studies from which the identified negligence was attributed to onersquos colonialism of knowledge and power We conclude that the cruelty and the helplessness to women victims of violence increases as the conception of the modern state and the free market move forward and this invisible and negligent panorama promotes a large gap to be filled by studies in this area It also considers the need for non colonialist buildings of plural paths both for the scientific field and to public policies laws and institutional safety nets which also implies in an ethical dimension of opening spaces for intercultural dialogue with a changing overview on structures and social relations of gender The study concludes the need to point out the scientific and institutional invisibility of the chosen subject and proposes greater integration of the theme at the undergraduate and postgraduate courses both in bioethics and in public health the development of
9
specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
10
Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
11
Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
12
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
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133 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
Mulheres Poliacutetica Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia contra as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2011 70 p
134 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
MulheresPlano Nacional de Poliacutetica para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013 114 p
135 Segato RL Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres
Rev Soc Estado 2014 maio-ago 29(2)
70
136 Segato RL Que cada povo teccedila os fios da sua histoacuteria o pluralismo juriacutedico em diaacutelogo didaacutetico com legisladores Revista de Direito da Universidade de Brasiacutelia 2014 jan-jun1(1)
Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
7
Resumo
As estatiacutesticas sobre a violecircncia de gecircnero tem sido impactantes e uma seacuterie de medidas poliacuteticas juriacutedicas e institucionaistem sido desenvolvidas com a intenccedilatildeo de coibir o problema obtendo ateacute agora apenas uma discreta melhoria da situaccedilatildeo Entretanto a questatildeo da violecircncia contra a mulher indiacutegena natildeo parece vir recebendo uma atenccedilatildeo especial apesar delas virem denunciado em seus foacuteruns e movimentos as violecircncias de que satildeo viacutetimas O objetivo deste trabalho foi traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional e por programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiros agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica Utilizou-se como meacutetodo a revisatildeo integrativa tal como proposta por Whittemore e Knalf O levantamento da literatura teve por base os artigos cientiacuteficos brasileiros indexados nas bases SCIELO e LILACS usando-se os descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo A escolha de programas e poliacuteticas foi feita por conveniecircncia elegendo-seaqueles relacionados agrave sauacutede e proteccedilatildeo dos povos indiacutegenas e das mulheresDentre os 570 artigos encontrados 66 atenderam aos criteacuterios de inclusatildeo e exclusatildeo e fazem parte do estudo Entre os resultados vale notar que natildeo foi encontrado nenhum artigodirigido ao problema especiacutefico da violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena Apenas 7 abordaram em seus textos a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e de considerar aspectos histoacutericos e eacutetnicos ao tratar do tema Nenhum deles foi produzido a partir de uma perspectiva bioeacutetica Quatro poliacuteticas e programas institucionais foram estudados Todos abordaram ao menos indiretamente o problema mas natildeo constavam de diretrizes ou accedilotildees especiacuteficas visando uma adequaccedilatildeo intercultural das medidas O referencial teoacuterico com o qual os resultados foram discutidos foi sustentado na Bioeacutetica Criacutetica enquanto campo reflexivo e de compromisso praacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade e emancipaccedilatildeo de grupos em desvantagens sociais historicamente determinadas Eacute dado ecircnfase tambeacutem aos estudos de colonialidade a partir dos quais a negligecircncia identificada foi atribuiacuteda agrave uma colonialidade de saber e de poder Conclui-se que a crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado e com esse panorama invisiacutevel e negligente promove uma grande lacuna a ser preenchida por estudos nessa aacuterea Considera-se ainda a necessidade de construccedilotildees descoloniais de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero O estudo conclui pela necessidade da divulgaccedilatildeo da invisibilidade cientiacutefica einstitucional detectadase propotildee entre outros caminhos uma maior inserccedilatildeo do tema nas graduaccedilotildees e poacutes-graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica quanto em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais especiacuteficos para estudos etnograacuteficos sobre relaccedilotildees de gecircnero ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia focando os registros de violecircncia de gecircnero em contexto indiacutegena e muito especialmente a promoccedilatildeo de
8
espaccedilos e foacuteruns a partir dos quais as proacuteprias mulheres construam accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo intracomunitaacuterias culturalmente adequadas
Palavras-Chave Violecircncia de gecircnero Povos indiacutegenas Colonialismo Bioeacutetica criacutetica ABSTRACT Gender-based violence statistics have been striking the society with important numbers so a series of political legal and institutional measures have been developed with the intention to restrain the problem resulting only on a slight improvement in the situation Violence against indigenous women on another account doesnrsquot seem to be receiving any special attention although these women have been reporting in forums and through specific social movements all the violence they suffer The objective of this study was to establish an overview of the approach taken by the Brazilian scientific production and both public programs and policies on gender-based violence in the context of indigenous peoples and analyze its results in the perspective of Critical Bioethics It was used an integrative review as proposed by Whittemore and Knalf The literature review was based on the Brazilian scientific articles indexed in SCIELO and LILACS using the following descriptors violence against women gender violence and bioethics separately and in combination with the following keywords indigenous peoples indigenous population and indigenous The choice of programs and policies was made by convenience in order to elect those related to either health or protection of indigenous peoples and women Among the 570 articles found 66 met both the inclusion and exclusion criteria to be part of the study Among the results no article addressed the specific issue of gender violence against indigenous women was foundand only 7 addressed in its considerations the need to expand studies to indigenous populations and to consider historical and ethnic aspects when addressing the issue None of them was produced from a Bioethical perspective Four political and institutional programs were studied All covered at least indirectly the problem but didnrsquot contain specific guidelines or actions to an intercultural appropriateness of the guidelines The theoretical framework with which the results were discussed was held based on a Critical Bioethics as a reflective field and a practical commitment to the transformation of reality and emancipation of groups singled out by an historically determined social disadvantage We also emphasize colonialism studies from which the identified negligence was attributed to onersquos colonialism of knowledge and power We conclude that the cruelty and the helplessness to women victims of violence increases as the conception of the modern state and the free market move forward and this invisible and negligent panorama promotes a large gap to be filled by studies in this area It also considers the need for non colonialist buildings of plural paths both for the scientific field and to public policies laws and institutional safety nets which also implies in an ethical dimension of opening spaces for intercultural dialogue with a changing overview on structures and social relations of gender The study concludes the need to point out the scientific and institutional invisibility of the chosen subject and proposes greater integration of the theme at the undergraduate and postgraduate courses both in bioethics and in public health the development of
9
specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
10
Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
11
Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
12
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
8 REFEREcircNCIAS
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107 Costa MC Lopes MJM Soares JSF Elementos de integralidade nas
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123 Porto M Costa FP Lei Maria da Penha as representaccedilotildees do judiciaacuterio
sobre a violecircncia contra as mulheres Estudos de Psicologia I Campinas I
27(4) I 479-489 I outubro - dezembro 2010
124 Silva LEL Oliveira MLC Violecircncia contra a mulher revisatildeo sistemaacutetica
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BSS Meneses MP organizadores Epistemologias do Sul Coimbra Ediccedilotildees Almedina 2009 p73-118
131 Ministeacuterio da Sauacutede (BR) Fundaccedilatildeo Nacional de Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas 2 ed Brasiacutelia Ministeacuterio da Sauacutede 2002 40 p
132 Ministeacuterio da Sauacutede (BR) Secretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede
Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher princiacutepios e diretrizes Brasiacutelia Ministeacuterio da Sauacutede 2004 82 p
133 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
Mulheres Poliacutetica Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia contra as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2011 70 p
134 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
MulheresPlano Nacional de Poliacutetica para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013 114 p
135 Segato RL Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres
Rev Soc Estado 2014 maio-ago 29(2)
70
136 Segato RL Que cada povo teccedila os fios da sua histoacuteria o pluralismo juriacutedico em diaacutelogo didaacutetico com legisladores Revista de Direito da Universidade de Brasiacutelia 2014 jan-jun1(1)
Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
8
espaccedilos e foacuteruns a partir dos quais as proacuteprias mulheres construam accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo intracomunitaacuterias culturalmente adequadas
Palavras-Chave Violecircncia de gecircnero Povos indiacutegenas Colonialismo Bioeacutetica criacutetica ABSTRACT Gender-based violence statistics have been striking the society with important numbers so a series of political legal and institutional measures have been developed with the intention to restrain the problem resulting only on a slight improvement in the situation Violence against indigenous women on another account doesnrsquot seem to be receiving any special attention although these women have been reporting in forums and through specific social movements all the violence they suffer The objective of this study was to establish an overview of the approach taken by the Brazilian scientific production and both public programs and policies on gender-based violence in the context of indigenous peoples and analyze its results in the perspective of Critical Bioethics It was used an integrative review as proposed by Whittemore and Knalf The literature review was based on the Brazilian scientific articles indexed in SCIELO and LILACS using the following descriptors violence against women gender violence and bioethics separately and in combination with the following keywords indigenous peoples indigenous population and indigenous The choice of programs and policies was made by convenience in order to elect those related to either health or protection of indigenous peoples and women Among the 570 articles found 66 met both the inclusion and exclusion criteria to be part of the study Among the results no article addressed the specific issue of gender violence against indigenous women was foundand only 7 addressed in its considerations the need to expand studies to indigenous populations and to consider historical and ethnic aspects when addressing the issue None of them was produced from a Bioethical perspective Four political and institutional programs were studied All covered at least indirectly the problem but didnrsquot contain specific guidelines or actions to an intercultural appropriateness of the guidelines The theoretical framework with which the results were discussed was held based on a Critical Bioethics as a reflective field and a practical commitment to the transformation of reality and emancipation of groups singled out by an historically determined social disadvantage We also emphasize colonialism studies from which the identified negligence was attributed to onersquos colonialism of knowledge and power We conclude that the cruelty and the helplessness to women victims of violence increases as the conception of the modern state and the free market move forward and this invisible and negligent panorama promotes a large gap to be filled by studies in this area It also considers the need for non colonialist buildings of plural paths both for the scientific field and to public policies laws and institutional safety nets which also implies in an ethical dimension of opening spaces for intercultural dialogue with a changing overview on structures and social relations of gender The study concludes the need to point out the scientific and institutional invisibility of the chosen subject and proposes greater integration of the theme at the undergraduate and postgraduate courses both in bioethics and in public health the development of
9
specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
10
Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
11
Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
12
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
8 REFEREcircNCIAS
1 Waiselfisz JJ Mapa da violecircncia 2015 homiciacutedios de mulheres no Brasil Brasiacutelia Flacso 2015
2 Compromisso e Atitude Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha Dados e estatiacutesticas sobre a violecircncia contra as mulheres Campanha Disponiacutevel emhttpwwwcompromissoeatitudeorgbrdados-e-estatisticas-sobre-violencia-contra-as-mulheres
3 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres
Balanccedilo 2014 ndash Ligue 180 ndash Central de Atendimento agrave Mulher Brasiacutelia 2014
4 Garcia LP Freitas LRS Silva GDM Houmlfelmann AD Violecircncia contra a mulher feminiciacutedios no Brasil Brasiacutelia Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2013
5 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013
6 Lorenzo CFG Vulnerabilidade em Sauacutede Coletiva implicaccedilotildees para as poliacuteticas puacuteblicas Revista Brasileira de Bioeacutetica vol 2 num 3 2006
7 Segato RL El sexo y la norma frente estatal patriarcado desposesioacuten
colonialidad Estudos Feministas 2014 maio-ago 22(2) 593-616
8 Burnette CE From the ground up indigenous womenrsquos after violence experiences with the formal service system in the United States British Journal of Social Work2015 45 1526-45
9 Kuokkanen R Globalization as racialized sexualized violence the case of
indigenous women International Feminist Journal of Politics 2008 Jun 10(2) 216-33
10 Hargreaves A Colonial violence and the narrative imperative in feminist anti-
violence discourse and indigenous womenrsquos riting Canadian Woman studiesLes Cachiers de la femme 2009 27(23)
11 1ordf Assembleacuteia das Guerreiras Mulheres Indiacutegenas do Leste e Nordeste Conselho Missionaacuterio Indigenista ndash CIMI Disponiacutevel emhttpcimiorgbrsitept-brsystem=newsampaction=readampid=2709
58
12 Torres MS Um olhar sobre a violecircncia intrafamiliar em aldeias karajaacute In Fazendo gecircnero 9diaacutesporas diversidade deslocamentos 2010 ago 23 a 26 Florianoacutepolis
13 Souza EL Aleixo MT Ruffeil MB Maria(s) diversas Pen(h)as diferentes
entre violecircncias domeacutesticas gecircnero e diversidade cultural In Fazendo Gecircnero 9diaacutesporas diversidades deslocamentos 2010 ago 23 a 26 Florianoacutepolisp 3
14 Zimmermann TR Seraguza L Viana AEA Relaccedilotildees de gecircnero e violecircncia
contra mulheres indiacutegenas em Amambai-MS (2007-2013) Espaccedilo Ameriacutendio 2015 jan-jul 9(1) 105-26
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Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
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specific notices to ethnographic studies on gender relations expanded studies in police reports focusing on gender violence records in the indigenous perspective and the promotion and dissemination of spaces and forums from which women themselves can build actions and networks of knowledge and culturally appropriate intra protection Keywords Gender violence Indian peopleColonialismcritical bioethics
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Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
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Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
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SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
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1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
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os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
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foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
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A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
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feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
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132 Ministeacuterio da Sauacutede (BR) Secretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede
Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher princiacutepios e diretrizes Brasiacutelia Ministeacuterio da Sauacutede 2004 82 p
133 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
Mulheres Poliacutetica Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia contra as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2011 70 p
134 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
MulheresPlano Nacional de Poliacutetica para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013 114 p
135 Segato RL Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres
Rev Soc Estado 2014 maio-ago 29(2)
70
136 Segato RL Que cada povo teccedila os fios da sua histoacuteria o pluralismo juriacutedico em diaacutelogo didaacutetico com legisladores Revista de Direito da Universidade de Brasiacutelia 2014 jan-jun1(1)
Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
10
Lista de Quadros Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo agrave categoria de objetivos agrave citaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegena e aos aspectos eacuteticos ou bioeacuteticosabordados Quadro 2 Porcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos Quadro 3 Poliacuteticas e programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agrave presenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
11
Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
12
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
8 REFEREcircNCIAS
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107 Costa MC Lopes MJM Soares JSF Elementos de integralidade nas
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132 Ministeacuterio da Sauacutede (BR) Secretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede
Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher princiacutepios e diretrizes Brasiacutelia Ministeacuterio da Sauacutede 2004 82 p
133 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
Mulheres Poliacutetica Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia contra as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2011 70 p
134 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
MulheresPlano Nacional de Poliacutetica para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013 114 p
135 Segato RL Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres
Rev Soc Estado 2014 maio-ago 29(2)
70
136 Segato RL Que cada povo teccedila os fios da sua histoacuteria o pluralismo juriacutedico em diaacutelogo didaacutetico com legisladores Revista de Direito da Universidade de Brasiacutelia 2014 jan-jun1(1)
Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
11
Lista de Abreviaturas e Siglas SCIELO ndash Scientific Eletronic Library Online LILACS ndash Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede PNASPI ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas PNASM ndash Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher PNEVCM ndash Pacto Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres PNPM ndash Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres SUS ndash Sistema Uacutenico de Sauacutede CRAM ndash Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher CREAS ndash Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social CUT ndash Central Uacutenica dos Trabalhadores AMNB ndash Articulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras SPM-PR ndash Secretaria de Poliacuteticas Para Mulheres CEDAW ndash Convenccedilatildeo sobre a eliminaccedilatildeo de todas as formas de discriminaccedilatildeo contra a mulher
12
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
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Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
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Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
12
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 JUSTIFICATIVA 17
3 OBJETIVOS 18
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO 19
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees 19
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance 23
43 Bioeacutetica Criacutetica 24
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber 30
45 Interculturalidade e Direitos Humanos 33
46 Feminismo 36
5 METODOLOGIA 39
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO 41
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 55
8 REFEREcircNCIAS 57
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
8 REFEREcircNCIAS
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Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher princiacutepios e diretrizes Brasiacutelia Ministeacuterio da Sauacutede 2004 82 p
133 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
Mulheres Poliacutetica Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia contra as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2011 70 p
134 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
MulheresPlano Nacional de Poliacutetica para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013 114 p
135 Segato RL Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres
Rev Soc Estado 2014 maio-ago 29(2)
70
136 Segato RL Que cada povo teccedila os fios da sua histoacuteria o pluralismo juriacutedico em diaacutelogo didaacutetico com legisladores Revista de Direito da Universidade de Brasiacutelia 2014 jan-jun1(1)
Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
Os impactos da violecircncia fiacutesica psicoloacutegica ou simboacutelica sobre a sauacutede das
mulheres tecircm sido amplamente discutidos na literatura brasileira e internacional O
Brasil ocupa o 7ordm lugar no ranking mundial de violecircncia contra mulheres em uma lista
de 84 paiacuteses ficando atraacutes apenas da Colocircmbia na Ameacuterica Latina e sustentando
um iacutendice de 44 assassinatos para cada 100 mil mulheres(1)
Eacute alarmante o fato de que 48 das mulheres satildeo viacutetimas de violecircncia em sua
proacutepria casa (2)Cerca de 20 dos filhos satildeo viacutetimas diretas com as matildees (3) e eacute
tambeacutem comum que mesmo quando natildeo satildeo fisicamente agredidas as crianccedilas
presenciem as cenas de violecircncia As implicaccedilotildees dessas experiecircncias tendem a se
refletir na naturalizaccedilatildeo do comportamento agressivo e na reproduccedilatildeo da violecircncia
em seus futuros relacionamentos ou ciacuterculos sociais
No Brasil desde a promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006o combate agrave
violecircncia contra a mulher obteve avanccedilos no que se refere ao aumento de denuacutencias
por parte das mulheres e agrave criaccedilatildeo de mecanismos sociais para sua repressatildeo
Entretanto nuacutemeros atuais mostram que ainda haacute muito a se fazer
O crime de feminiciacutedio por exemplo teveapenas um pequeno decliacutenio em
2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 mas em 2010
esse iacutendice jaacute havia voltado a crescer (4) A recente tipificaccedilatildeo do feminiciacutedio como
crime hediondo impondo diversos agravantes agrave condenaccedilatildeo tornou-se outro
importante instrumento juriacutedico de combate
Na esfera do Poder Executivo o Plano Nacional de Poliacuteticas para Mulheres
lanccedilado em 2005 instituiu uma Rede de Atendimento a Mulheres em Situaccedilatildeo de
Violecircncia que articula accedilotildees e serviccedilos nas aacutereas de assistecircncia social justiccedila
seguranccedila puacuteblica e sauacutede (5)Esta rede busca assegurar a partir de estruturas
administrativas de atendimento sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas
da violecircncia se encontram a identificaccedilatildeo e os encaminhamentos adequados aleacutem
da integralidade e humanizaccedilatildeo da assistecircncia Seraacute composta por serviccedilos
especializados como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e
14
os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) e
natildeoespecializados necessaacuterias ao atendimento
Natildeo obstante os avanccedilos que tecircm sido alcanccedilados na estruturaccedilatildeo do
combate agrave violecircncia contra a mulher o novo aparato juriacutedico-estatal natildeo parece vir
sendo pensado para abarcar a diversidade cultural do nosso paiacutes em especial no
que se refere aos povos indiacutegenas A Lei Maria da Penha universaliza o tratamento
em relaccedilatildeo agrave etniaraccedila mas natildeo alcanccedila as diversidades encontradas nos
indiacutegenasparticularmente quantoaos sistemas juriacutedicos proacuteprios e agraves redes
comunitaacuterias de proteccedilatildeo
Lorenzo (6) em abordagem bioeacutetica sobre a formulaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicasressalta que no contexto sociopoliacutetico de elaboraccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas
eacute necessaacuterio que se conheccedilam os sujeitos demandantes e suas principais
necessidades de modo a se respeitar a diversidade entre os grupos alvo das
poliacuteticas Segundo eletanto a matriz simboacutelica de compreensatildeo do processo de
sauacutede-doenccedila como a matriz cultural dos grupos sociais e eacutetnicos excluiacutedos satildeo
diferenciadas daquela em que o formulador se estabelece Desconsiderar esses
elementos pode potencializar as situaccedilotildees vulneraacuteveis nas quais estes vivem
Assim mais que accedilotildees programaacuteticas ou de transposiccedilatildeo de leis
entendemos que seja necessaacuterio estabelecer processos de formulaccedilatildeo participativos
e que levem como diz Lorenzo a condicionar os grupos alvo de modo a capacitaacute-
los para se realizarem plenamente no que diz respeito natildeo soacute ao acesso a
oportunidades bens e serviccedilos como tambeacutem agraves possiblidades de escolha Caso
contraacuterio ressalta o autor o modelo que prega o ldquoautoritarismo meacutedico-cientiacutefico e
o etnocentrismomoral e poliacuteticordquoseraacute fortalecido
Neste sentido natildeo seria adequado fazer uma simples transposiccedilatildeo das leis e
das accedilotildees programaacuteticas previstas pelas poliacuteticas puacuteblicas para a prevenccedilatildeo
denuacutencia e responsabilizaccedilatildeo sem considerar o universo cultural e social dos
diversos povos Sua adequada aplicaccedilatildeo natildeo pode prescindir de estudos
antropoloacutegicos sobre relaccedilotildees de gecircnero sobre compreensatildeo cultural das causas e
consequecircncias da violecircncia e sobre formaccedilatildeo intracomunitaacuteria de mecanismos de
enfrentamento A elaboraccedilatildeo das vias de aplicaccedilatildeo dos aparatos de proteccedilatildeo e de
outras formas de combate culturalmente mediadas demandaria aleacutem da aplicaccedilatildeo
dos saberes construiacutedos a partir de estudos etnograacuteficos a abertura de amplos
15
foacuteruns de discussatildeo onde as mulheres indiacutegenas fossem ouvidas e propusessem
caminhos
Os estudos socioantropoloacutegicos que investigam as relaccedilotildees entre violecircncia de
gecircnero e justiccedila tecircm procurado discutir como se datildeo as hierarquias sociais e de
gecircnero e conhecer como as mulheres satildeo vitimizadas tanto no seu acircmbito familiar
quanto por estruturas de poder como o Estado Mas natildeo parecem ser frequentes
estudos dedicados agrave questatildeo da mulher indiacutegena
Segato (7) chama a atenccedilatildeo sobre a inexistecircncia de evidecircncias quanto agrave
incidecircncia e agraves diversas formas de violecircncia agraves quais as mulheres indiacutegenas tecircm
sido historicamente submetidas devido agrave escassez de estudos antropoloacutegicos sobre
as relaccedilotildees de gecircnero entre os povos indiacutegenas na Ameacuterica Latina No Brasil talvez
em funccedilatildeo da pequena proporccedilatildeo de indiacutegenas na populaccedilatildeo estudos dessa
natureza satildeo ainda mais escassosJaacute na literatura internacional encontra-se com
maior frequecircncia tanto estudos etnograacuteficos quanto ensaios teoacutericos sobre a
questatildeo a exemplo dos que buscam compreender a percepccedilatildeo das mulheres
indiacutegenas sobre a rede estatal de assistecircncia e proteccedilatildeo (8)analisar a articulaccedilatildeo
histoacuterica entre patriarcalismo colonialismo e capitalismo dentro do processo de
globalizaccedilatildeo como origem de diversos tipos de violecircncia contra a mulher indiacutegena
(9) ou criticar a tendecircncia colonial no discurso antiviolecircncia de algumas correntes do
feminismo em relaccedilatildeo agraves mulheres indiacutegenas (10)
No Brasil conforme censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica ndash
IBGE em 2010 (35) havia817963 pessoas se declararam indiacutegenas Isso
representava menos de 05 da populaccedilatildeo geral do Brasil
De acordo com estudo especial do IBGE divulgado em 2012 o crescimento
da populaccedilatildeo indiacutegena no Brasil no periacuteodo 20102000 natildeo foi significativo
quandocomparado ao periacuteodo 19912000 Este apresentou aumento de 150
contra apenas 114 daquele
Ainda assim o Brasil se destaca na Ameacuterica do Sul por seu ldquosignificativo
contingenterdquo de indiacutegenas Destaca-se tambeacutem pela ldquomiscigenaccedilatildeo entre os
diversos grupos eacutetnicosrdquo que ldquodeu origem a tatildeo numerosas e complicadas
combinaccedilotildees que se torna impossiacutevel chegar a uma classificaccedilatildeo eacutetnica dos
brasileirosrdquo (36)
16
O Censo de 2010 mostra que diminuiu o nuacutemero de pessoas autodeclaradas
como indiacutegenas nas zonas urbanas Isso pode ser um indicativo de que nessas
aacutereas as populaccedilotildees indiacutegenas se tornam invisiacuteveis por influecircncias culturais das
grandes cidades para que sejam integrados agrave essa esfera Mas quando satildeo
atraiacutedas para as regiotildees perifeacutericas ou ainda de volta para suas comunidades
tambeacutem pode indicar um processo etnoculturalinjusto de desempoderamento como
descreve Kymlicka (37) ao tratar do processo migratoacuterio e imigratoacuterio cultural
O que parece claro seja no Brasil seja na maioria os paiacuteses com populaccedilotildees
indiacutegenas eacute que a organizaccedilatildeo e as relaccedilotildees de poder dentro das comunidades
vecircm sofrendo influecircncias das concepccedilotildees de modernidade para alterar padrotildees
culturais e histoacutericos de interaccedilatildeo entre os gecircneros Aleacutem de favorecer as praacuteticas
de violecircncia isso dificulta o encontro de soluccedilotildees culturalmente mediadas Pois o
imperativo moral que conduz os homens a serem cada vez mais sujeitos masculinos
e que os forccedila a comportamentosque provem habilidades de resistecircncia
agressividade e que demonstrem forccedilas beacutelicas poliacuteticas sexual econocircmica e
moral tem como consequecircncia o comportamento violento do homem sobre a mulher
(7)
As mulheres indiacutegenas por meio de associaccedilotildees civis jaacute vecircm denunciando
as violecircncias que sofrem em suas comunidades Em foacuteruns realizados em Roraima
as mulheres declaram que ldquoCresce a violecircncia contra os povos indiacutegenas e suas
lideranccedilas Neste cenaacuterio destaca-se a grande vulnerabilidade pelas vaacuterias formas
de violecircncia que as mulheres e as crianccedilas indiacutegenas sofrem fiacutesica moral
psicoloacutegica entre outrasrdquo(11)
EmMato Grosso (12) e em Brasiacutelia (13)por meio de encontros e oficinas de
trabalho para discutir as pautas das mulheres indiacutegenas elas fizeram apelo por
providecircncias do Estado sobre as causas que levam os homens de suas aldeias a
cometer violecircncias em especial o alcoolismo mal moderno quesegundo elasseduz
os homens e os levam a praacuteticas violentas
Outros estudos(14)(15) jaacute apontam que as mulheres indiacutegenas satildeo viacutetimas
de violecircncia principalmente pela relaccedilatildeo direta com situaccedilotildees que rompem suas
organizaccedilotildees sociais como as perdas territoriais e a ruptura dos viacutenculos sociais
poliacuteticos econocircmicos e religiosos que as colocam em situaccedilatildeo de vulnerabilidade
17
A Bioeacutetica constitui-secomodisciplina produtora e modificadora da histoacuteria
reforccedilando o papel poliacutetico e de respeito agraves culturas a partir dos significados e
siacutembolos de cada uma para a resoluccedilatildeo de problemas Nesse sentido natildeo pode se
ater a anaacutelises principialistas ou doutrinaacuterias previamente definidas (17) Eacute tambeacutem
tarefa da Bioeacutetica a abordagem criacutetica da ciecircncia de seus interesses e produccedilotildees
bem como das consequecircncias sociais das mesmas
A presente dissertaccedilatildeo tem a finalidade de fazer uma revisatildeo integrativa das
publicaccedilotildees cientiacuteficas brasileiras sobre violecircncia de gecircnero com foco na mulher
indiacutegena e nos programas e poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede e agrave proteccedilatildeo da
mulher indiacutegena Busca identificar oque tem sido proposto pela comunidade
cientiacutefica e pelo Estado para a abordagem do problema neste contexto de
interculturalidade Os resultados dessa revisatildeo satildeo analisados na perspectiva da
Bioeacutetica Criacutetica
18
2 JUSTIFICATIVA
Em face do conjunto de demandas reconhecidas pelas mulheres indiacutegenas e
do evidente desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que incentivam accedilotildees de combate
agrave violecircncia haacute um conflito entre as formas de adequaccedilatildeo cultural que exige uma
anaacutelise aplicada que ilumine caminhos culturalmente adequados dialogados e
plurais Neste sentido a Bioeacutetica como campo de eacutetica aplicada eacute um
espaccediloapropriado para a anaacutelise dos conflitos caracteriacutesticos ao enfrentamento da
violecircncia de gecircnero contra as mulheres indiacutegenas agrave percepccedilatildeo cientiacutefica do
problema e agrave adequada aplicaccedilatildeo de instrumentos poliacuteticos-institucionais para seu
equacionamento
A bioeacutetica segundo Garrafa (18) tem se dedicado especialmente na
Ameacuterica Latina a construir referecircncias puacuteblicas e a promover a participaccedilatildeo direta
de atores sociais na anaacutelise das responsabilidades de sauacutede e no reconhecimento
da trajetoacuteria histoacuterica e social das pessoas Essa interpretaccedilatildeo natildeo se restringe agrave
esfera privada alcanccedilando o espaccedilo social compartilhado em especial aquele
relacionado agraves questotildees que envolvem os grupos mais fraacutegeis e necessitados
Nesse contexto um estudo bioeacutetico sobre a abordagem dada agrave violecircncia
contra a mulher indiacutegena avaliando a produccedilatildeo cientiacutefica nacional e as poliacuteticas
institucionais de apoio poderaacute dimensionar demandas por atuaccedilotildees culturalmente
adequadas Poderaacute tambeacutem contribuir para a formulaccedilatildeo e implementaccedilatildeo de redes
de proteccedilatildeo baseadas em uma construccedilatildeo dialoacutegica intracomunitaacuteria
19
3 OBJETIVOS
Geral
Traccedilar um panorama sobre a abordagem dada pela produccedilatildeo cientiacuteficae por
programas e poliacuteticas puacuteblicas brasileiras agrave violecircncia de gecircnero no contexto dos
povos indiacutegenas e analisar seus resultados na perspectiva da Bioeacutetica Criacutetica
Especiacuteficos
a) Produzir uma ampla revisatildeo dos artigos cientiacuteficos publicados no
periacuteodo de 2000 a 2015 nas bases SCIELO e LILACS sobre violecircncia
de gecircnero
b) Investigar quais os objetivos principais dessa produccedilatildeo e as regiotildees
em que foram produzidas por comparaccedilatildeo aos iacutendices de violecircncia de
gecircnero e agrave presenccedila de povos indiacutegenas
c) Avaliar diretrizes e accedilotildees propostas por programas e poliacuteticas puacuteblicas
relacionados agrave sauacutede da mulher indiacutegena eagrave proteccedilatildeo contra violecircncia
de gecircnero
d) Analisar a partir de uma perspectiva bioeacutetica critica intercultural e
descolonial a abordagem dada agraves questotildees interculturais e em
especial agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena
20
4 REVISAtildeO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEOacuteRICO
41 Violecircncia de Gecircnero Conceitos e Tipificaccedilotildees
Entendemos gecircnero como algo que se constitui a partir do conjunto de
relaccedilotildees atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes(19) que permitem melhor
compreensatildeo sobre papeis de mulheres e homens na vida social Desde logo cabe
ressaltar que tal entendimento se distanciada antiga conceituaccedilatildeode base
bioloacutegica(20)
Este conceito possibilita compreender como o gecircnero eacute influenciado
pelasrelaccedilotildees de poder entre o homem e a mulher Por consequecircncia possibilita
tambeacutem compreender como o gecircnero estaacute sujeito a desigualdades e violecircncias que
desestabilizam atributos papeacuteis crenccedilas e atitudes tiacutepicas da mulher na sociedade
Na antropologiacomo jaacute apontado os estudos que investigam as relaccedilotildees
entre violecircncia de gecircnero e justiccedila tecircm discutido natildeo soacute como se datildeo as hierarquias
sociais e de gecircnero mas tambeacutem como as mulheres satildeo vitimizadas no acircmbito
familiar e em estruturas de poder como o Estado (21)Ainda assim natildeo haacute entre os
etnoacutelogos um consenso sobre a questatildeo de gecircnero Como aponta Segato (7) a
posiccedilatildeo predominante da antropologia no Brasil eacute a de que a discussatildeo de gecircnero
em comunidades indiacutegenas subordina-se a estudos de parentesco e de famiacutelia e
que em geral haacute muita reserva entre os etnoacutelogos brasileiros quanto agrave questatildeo de
gecircnero no mundo indiacutegena Segundo a autora haveria disputas poliacuteticas e de
minorias ndash diretos humanos e direitos das mulheres ndash espuacuterias e impostas do
exterior pela visatildeo do mundo aldeia Isso tem tido como consequecircncia a escassez
de estudos etnograacuteficos dessa natureza
No campo social a violecircncia de gecircnero eacute estudada com o olhar voltado para a
violecircncia domeacutestica sexual e familiar Mas jaacute haacute estudos especiacuteficos sobre a
reflexatildeo da ausecircncia de mulheres em espaccedilos institucionais sobre o machismo e o
asseacutedio sexual e moral que as mulheres sofrem e sobre a responsabilidade que as
mulheres deteacutem em seus espaccedilos de vida privada e familiar (22)
21
Jaacute no campo do direito (23)a violecircncia de gecircnero adquire caraacuteter especiacutefico
por causa da judicializaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais e da contiacutenua incursatildeo do direito na
vida social por meio de normativas que regulam o comportamento social Muitas
vezeso julgamento se faz a partir do olhar criacutetico agraves mulheres viacutetimas de violecircncias
como se estas tivessem sido motivadaspor problemas como falta de confianccedila
baixa autoestima ou dificuldades de comunicaccedilatildeo por parte das mulheres
Em termos de tipificaccedilatildeo legal a Lei Maria da Penha (24)criou mecanismos
para coibir e prevenir a violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher pois foi
concebida a partir da realidade de violecircncia vivenciada por mulheres inseridas em
um espaccedilo poder ocupado predominantemente pelo homem Esse espaccedilo eacute o da
esfera privada e o do conviacutevio no acircmbito da famiacutelia como comunidade constituiacuteda
por parentesco ou por laccedilos naturais afinidades ou vontades expressasem qualquer
relaccedilatildeo iacutentima de afeto
A Lei Maria da Penha tambeacutem inovou ao trazer conceitos e tipificaccedilotildees das
formas de violecircncia domeacutestica e familiar contra a mulher como a violecircncia
psicoloacutegica moral e patrimonial aleacutem da violecircncia fiacutesica e sexual Diante dessa
caracterizaccedilatildeo especificou mecanismos do Estado a serem disponibilizados para
coibir essas praacuteticas como campanhas educativas e de comunicaccedilatildeo sobre a
violecircncia e o preconceito pelo qual as viacutetimas satildeo submetidas Aleacutem disso propocircs o
desenvolvimento de estudos sobre o fenocircmeno da violecircncia contra mulher inclusive
na perspectiva de gecircnero raccedila ou etnia
A Lei Maria da Penha propocircs ainda outras accedilotildees articuladas com diferentes
entes e oacutergatildeos do Estado voltadas para a assistecircncia agrave viacutetima da violecircnciacomo
accedilotildees de proteccedilatildeo pessoal imediata inclusive de viacutenculos trabalhistas Haacute tambeacutem
partes da leidedicadas ao procedimento e agrave atuaccedilatildeo das autoridades legais sejam
policiais jurisdicionais ou assistenciais de modo a constituir estruturas
administrativas para o recebimento o tratamento e o julgamento de atos de violecircncia
domeacutestica e familiar contra a mulher Nesse contexto cabe destacar a criaccedilatildeo de
centros de atendimento integral e multidisciplinar a constituiccedilatildeo de casas-abrigo e a
abertura de delegacias nuacutecleos e defensorias especializadas
Por tudo isso a Lei Maria da Penha representa um avanccedilo importante no
combate a todas as formas de violecircncia de gecircnero dando visibilidade e
materialidade agravequilo que antes era tratado na intimidade das mulheres e de suas
22
famiacutelias como algo a ser tolerado e velado Nesses espaccedilos de intimidade como se
sabehaacuteuma grande influecircncia da cultura e dos valores eacuteticos e morais advindos da
famiacutelia Em alguns momentos as mulheres natildeo tecircm clareza sobre as formas de
violecircncia e de dominaccedilatildeo e por isso acabam se submetendo agrave chantagem do
discurso de ldquosempre foi assimrdquo por medo de perder sua identidade seu capital
poliacutetico sua cultura e seu capital simboacutelico na famiacutelia e em outros grupos sociais
Na verdade poreacutem romper com esse falso discurso eacute alcanccedilar conquistas
descoloniais e emancipatoacuterias (25)
Ainda que tente abarcar questotildees eacuteticas quando trata das accedilotildees de
prevenccedilatildeo a Lei Maria da Penha natildeo pode alcanccedilar o reconhecimento da
necessidade de considerar as questotildees eacuteticas morais e culturais por se um
dispositivo legal Entretanto isso seria uma forma de reforccedilar a necessidade de
contextualizar e inserir em sua aplicaccedilatildeo outras realidades natildeo reconhecidas pelo
senso comum a exemplo da violecircncia sofrida por mulheres indiacutegenas
De acordo com Castilho (26)representante do Ministeacuterio Puacuteblico que
participou da elaboraccedilatildeo da proposta da Lei Maria da Penha esta natildeo prevecirc
tratamentos diferenciados para culturas diferenciados Isso reforccedila os desafios que
se apresentam ao lidarmos com a questatildeo da violecircncia de gecircnero em comunidades
com culturas e valores diferentes dos nossos nas quais a interpretaccedilatildeo do rigor da
lei pode divergir de suas leis internas
Recentemente outro dispositivo trouxe novas tipificaccedilotildees legais de proteccedilatildeo agrave
violecircncias contra mulheres Trata-se da Lei nordm 13104 de marccedilo de 2015 (27)
denominada Lei do Feminiciacutedio que altera o Coacutedigo Penal para prever que o
feminiciacutedio seja circunstacircncia qualificadora do crime de homiciacutedio transformando
assim o homiciacutedio de mulheres em crime hediondo
Ainda que a nova lei natildeo seja suficiente para solucionar o problema das
mortes das mulheres trecircs pontos merecem ser destacados O primeiro diz respeito
ao proacuteprio conceito de feminiciacutedio ali identificado como crimes ldquocontra a mulher por
razotildees da condiccedilatildeo de sexo femininordquo que parece indicar uma possibilidade de
incompreensatildeo do termo ldquogecircnerordquono sentidoamplo aqui utilizado para se referir a
todas as formas sociais marcadas pela presenccedila do feminino natildeo se restringindo
apenas ao oacutergatildeo sexual feminino O segundo ponto diz respeito agrave ampliaccedilatildeo da
esfera de atuaccedilatildeo legal pois se a Lei Maria da Penha se dedicava exclusivamente agrave
23
violecircncia domeacutestica e familiar ocorridas em acircmbito familiar ou iacutentimo a aplicaccedilatildeo da
Lei do Feminiciacutedio se expande para a esfera puacuteblica quando esta se refere a crimes
de menosprezo ou discriminaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de mulher incluindo o homiciacutedio por
extermiacutenio Por fim o terceiro ponto diz respeito ao agravamento da pena nos casos
de crimes que envolvem crianccedilas e idosas que eacute a grande marca da Lei do
Feminiciacutedio
Com o tempo essas e outras novas formas juriacutedicas permitiratildeoo
desenvolvimento de mecanismos sociais mais eficazes de proteccedilatildeo e defesa agraves
viacutetimas de violecircncia de gecircnero Trata-se de uma possibilidade pois o problema
ainda se configura pouco visiacutevel na sociedade brasileira
Mas alguns movimentos sociais e populares no paiacutes jaacute mostram sensibilidade
agrave questatildeo da violecircncia de gecircnero Eacute o caso do Movimento dos Sem Terra ndash
MST(28)para quem a luta em defesa das mulheres viacutetimas de violecircncia no
campohoje representa tambeacutem uma frente de resistecircncia contra a sociedade
patriarcal capitalista que tem na posse da terra uma de suas principais fontes de
poder econocircmico e poliacutetico
A Rede Nacional Feminista de Sauacutede Direitos Sexuais e Reprodutivos (Rede
Feminista de Sauacutede) jaacute considerava a violecircncia de gecircnero como problema mundial
haacute 14 anos quando elaboraram o Dossiecirc Violecircncia Contra a Mulher (29) O
documento natildeo soacute apontava a relaccedilatildeo de poder masculino como elemento chave na
violecircncia contra mulheres como tambeacutem reconhecia que a violecircncia domeacutestica e
sexual eram formas histoacutericas de violecircncia agraves quais vieram a se associar mais
recentemente outras formas de violecircncia como as diferenccedilas remuneratoacuterias as
diferenccedilas nos atendimentos em sauacutede eo asseacutedio sexual no trabalho Apontava
ainda um ponto extremamente importante a invisibilidade do tema Indicativa da
incompatibilidade da lei com a praacutetica social a referida invisibilidade estaacute
relacionada com uma suposta inexistecircncia do problema da violecircncia de gecircnero ou
com o fato de tal problema natildeo poder ser discutido na esfera puacuteblica Isso manteria
a violecircncia de gecircnero como problema invisiacutevel perante a sociedade a ser escondido
na intimidade da mulher e em seu conviacutevio familiar
Recentemente a Central Uacutenica dos Trabalhadores ndash CUT organizou o 8ordm
Encontro Nacional de Mulheres da CUT (30) evento no qual a necessidade de
reforccedilar a luta pela igualdade e pela liberdade das mulheres foi tema amplamente
24
debatida O texto-base do encontro afirmava que a violecircncia de gecircnero na sociedade
brasileira deve ser enfrentadacomo problema social natildeo como problema individual
Essa constataccedilatildeo levou o movimento sindical a atuar no combate agrave violecircncia contra
as mulheres ampliando o seu espaccedilo de lutas para aleacutem daquele tradicionalmente
reservado agraves questotildees trabalhistas
AArticulaccedilatildeo de Organizaccedilotildees de Mulheres Negras Brasileiras ndash AMNB (31)
considera quea questatildeo da violecircncia de gecircnero eacute mais grave entre as mulheres
negras por comparaccedilatildeo agraves mulheres brancas O nuacutemero de homiciacutedios entre as
primeiras por exemplo eacute bem maior que aquele registrado entre as uacuteltimas Isso
revela para aleacutem da gravidade da situaccedilatildeo de violecircncia contra as mulheres negras
no paiacutes tambeacutem a persistecircncia do racismo como problema ainda invisiacutevel aos olhos
da sociedade e do Estado brasileiros
Diante do conjunto de conceitos e tipificaccedilotildees dados agrave questatildeo da violecircncia
de gecircnero e da amplitude de campos de estudo e movimentos sociais organizados
envolvidos em seu enfrentamento podemos concluir que ainda natildeo se fazem
visiacuteveis no Brasil accedilotildees poliacutetico-institucionais e de reconhecimento cientiacutefico que
dialoguem no sentido de adequaccedilatildeo agrave diversidade cultural
42 Panorama da Violecircncia de Gecircnero no Brasil e seu Alcance
Desde a aprovaccedilatildeo da Lei Maria da Penha em 2006 o combate agrave violecircncia
contra a mulher no Brasil tem tido avanccedilos em suas denuacutencias e na sua repressatildeo
Entretantoos nuacutemeros atuais mostram que ainda muito se precisa fazer para reduzir
a violecircncia contra mulheres e principalmentepara enfrentar suas principais causas
Segundo dados da Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres da Presidecircncia
da Repuacuteblica ndash SPM-PR (3) referentes a 52957 casos registrados em 2014 as
denuacutencias sobre violecircncia contra a mulher no Brasil satildeo assim distribuiacutedas Violecircncia
fiacutesica 517 Violecircncia psicoloacutegica 318 Violecircncia moral 97 Violecircncia
patrimonial 19 Violecircncia sexual 29 Caacutercere privado 18 Envolvendo traacutefico
04
Os dados revelam ainda que a violecircncia de gecircnero teve um singelo decliacutenio
em 2007 saindo do patamar de 46 mortes por 100 mil mulheres para 45 (4) Mas
essa reduccedilatildeo eacute insignificante diante da magnitude do problema tanto que em 2010
esse iacutendice volta a crescer
25
Segundo dados do Mapa de Violecircncia (1)de 2013 as taxas de homiciacutedio de
mulheres (por 100 mil) satildeo altamente preocupantes nos seguintes estados
brasileiros Roraima (153) Espirito Santo (93) Goiaacutes (86) Alagoas (86) Acre
(83) Paraiacuteba (64) Rondocircnia (63) Cearaacute (62) Mato Grosso do Sul (59) e Paraacute
(58) Dentre estes estados pelo menos trecircs tecircm grande contingente de indiacutegenas
Paraacute Roraima e Mato Grosso do Sul
Esses nuacutemeros demonstram a grande intoleracircncia existenteeseu resultado
em termos de violecircncias de gecircneroNo Balanccedilo do Disque 180 (3) apresentado em
2015 os relatos de violecircncia contra a mulher satildeo apresentados principalmente por
mulheres negras (585) seguidas por mulheres brancas (405) por mulheres
amarelas (05) e por mulheres indiacutegenas (04) Infelizmente o estudo do Mapa
da Violecircncia natildeo desagregou o contingente de mulheres negras que inclui mulheres
que se declararam como pretas ou pardas contrapondo esse total ao das mulheres
brancas
Para enfrentar a violecircncia de gecircnero estruturas de proteccedilatildeo agrave mulher satildeo
constituiacutedas a partir de poliacuteticas puacuteblicas que fazem previsatildeo de planos de defesa e
de combate a determinados problemas de grupos ou minorias especiacuteficas O Plano
Nacional de Poliacuteticas para Mulheres (5) por exemplo definiu objetivos e estrateacutegias
para o fortalecimento das questotildees relacionadas agrave mulher Dentre as accedilotildees
previstaspara esse fim destaca-se a estruturaccedilatildeo de uma Rede de Atendimento a
Mulheres em Situaccedilatildeo de Violecircncia a partir da articulaccedilatildeo de accedilotildees e serviccedilos nas
aacutereas de assistecircncia socialjusticcedila seguranccedila puacuteblica e sauacutede
Areferida rede deve contemplar estruturas administrativas de atendimento e
que sejam sensiacuteveis agraves situaccedilotildees em que as mulheres viacutetimas da violecircncia se
encontram Busca-se proceder agrave identificaccedilatildeo e aos encaminhamentos adequados
de modo a assegurar a integralidade e a humanizaccedilatildeo da assistecircncia por meio de
um amplo conjunto de instituiccedilotildees governamentais Aleacutem de serviccedilos especializados
como os Centros de Referecircncia de Atendimento agrave Mulher (CRAM) e os Centros de
Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) deveraacute contar tambeacutem
com serviccedilos natildeo-especializados como os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) (2)
Na perspectiva dos direitos humanos a proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
tem sido abordada pela Convenccedilatildeo sobre a Eliminaccedilatildeo de Todas as Formas de
26
Discriminaccedilatildeo contra a Mulher ndash CEDAW Trata-se do o primeiro texto especiacutefico em
defesa das mulheres no qual se afirmou o compromisso por parte dos Estados em
garantir igualdade de direitos econocircmicos sociais culturais civis e poliacuteticos aleacutem
de tratar da eliminaccedilatildeo das diferentes formas de discriminaccedilatildeo sejam elas poliacuteticas
econocircmicas sociais culturais ou civis (32) Haacute ainda a Convenccedilatildeo de Beleacutem do
Paraacute que trata da proteccedilatildeo das mulheres contra todos os atos de violecircncia inclusive
atos de violaccedilatildeo de direitos humanos e liberdades fundamentais (33)
A violecircncia de gecircnero estaacute intimamente ligada a fatores como o machismo
(46) e o alcoolismo (31) (34) Nesse contexto natildeo eacute difiacutecil entender que as
motivaccedilotildees se marcam pela constituiccedilatildeo de relaccedilotildees de poder que se estabelecem a
partir do pensamento masculino de dominaccedilatildeo seja pela cultura do homem como
representaccedilatildeo do poder perante a mulher seja pela dominaccedilatildeo exercida por ele
encorajada pelo alcoolismo Isso remete agrave relaccedilatildeo patriarcal estabelecida haacute
seacuteculos ainda vigente na atualidade como mecanismo de dominaccedilatildeo baseado no
poder do pai sobre os filhos e dos jovens aos mais velhos na necessidade de
divisatildeo social e do trabalho Apesar do avanccedilo da conquista de direitos por parte das
mulheres essa relaccedilatildeo tem sido ampliada para o poder do homem sobre a mulher
cabendo a ele prover a unidade domeacutestica e aela a tarefa de cuidado do lar e dos
filhos
Atualmente as famiacutelias adquiriram novas configuraccedilotildees mas isso natildeo
impediu o patriarcado de se atualizar subjetivamente para se adaptar De fato as
mulheres satildeo responsaacuteveis tambeacutem por prover Aleacutem de dividir o trabalho cuidam
dos filhos e do lar Mas estatildeo sujeitas agraves imposiccedilotildees dos homens e ainda se sentem
culpadas por natildeo serem completas em suas ldquo atribuiccedilotildeesrdquo Tais mudanccedilas tambeacutem
alcanccedilaram as comunidades indiacutegenas
43 Bioeacutetica Criacutetica
Nesse item discutiremos a Bioeacutetica Critica como sustentaccedilatildeo teoacuterica e
caminho analiacutetico para abordar a questatildeo da violecircncia de gecircnero em mulheres
indiacutegenas Em seguida discorreremos sobre a relaccedilatildeo de colonialidade do poder e
do saber que contorna o problema Por fim descreveremos os papeis que o
27
feminismo a interculturalidade e os Direitos Humanos desempenham na discussatildeo
sobre a violecircncia de gecircnero
A Bioeacutetica Critica eacute calccedilada na Teoria Criacutetica da Escola de Frankfurt e eacute
apresentada por Lorenzo (16) em seu exerciacutecio de fundamentaccedilatildeo por conter
fundamentos analiacuteticos e prescritivos para a bioeacutetica Entretanto o autor alerta que
seu exerciacutecio inicial carece de empenho na adequaccedilatildeo da teoria ao contexto cultural
latino-americano e para tanto propotildee uma costura teoacuterica com os referenciais dos
Estudos da Colonialidade
Instaurada no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e
disseminada por Max Horkheimer (38) a partir do marxismoa Teoria Criacutetica tem
como caracteriacutestica a posiccedilatildeo questionadora sobre a teoria tradicional cujo principal
objetivo era a expansatildeo dos mercados capitalistas e o aumento da capacidade de
exploraccedilatildeo a partir da produccedilatildeo de conhecimento e de tecnologias (16) Nesse
sentido pensar problemas bioeacuteticos a partir da teoria criacutetica pode qualificar a
anaacutelisea partir de um olhar criterioso reflexivo politizado e comprometido com a
mudanccedila da realidade
A Escola se concretizou a partir de um grupo de intelectuais vinculados ao
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt em 1923 Sua histoacuteria eacute
marcada pela criaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do Instituto entre 1922 e 1932 pela migraccedilatildeo
dos seus fundadores (Benjamim Horkheimer Adorno e Marcuse) para a Suiacuteccedila e os
EUA durante o periacuteodo nazistaentre 1933 e 1950 e pelo retorno de seus
fundadores agrave Alemanha no poacutes-guerra entre 1950 e 1970 Atualmente vive uma
fase de construccedilatildeo de geraccedilotildees posteriores aos seus fundadores (39)
Cabe destacar quea Teoria Criacutetica natildeo se caracteriza por uma uacutenica
abordagem Na verdade ela eacute composta de perspectivas diferenciadas de acordo
com a modelo teoacuterico que cada adepto da teoria desenvolveu Por isso a ldquoEscola de
Frankfurtrdquo natildeo se institui como escola no sentido literal da palavra Entretanto as
vaacuterias possibilidades teoacutericas ligadas pela Teoria Criacutetica tecircm como elo o olhar
emancipatoacuterio e de rompimento com modelos de dominaccedilatildeo colocados
Inicialmente com Walter Benjamim os estudos abarcaramtemas da filosofia e
da histoacuteria bem como temas relacionados agrave violecircncia inclusive as violaccedilotildees
decorrentes do Estado (40) Max Horkheimer esteve em maior destaque nos estudos
que questionavam a produccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica refletindo sobre a razatildeo e as
28
diversas dimensotildees de domiacutenio do modelo capitalista Em conjunto com Adorno
Horkheimer escreveu uma das principais obras da teoria que eacute centrada na loacutegica
de dominaccedilatildeo da razatildeo moderna e se caracteriza pelo distanciamento entre sujeito e
objeto a partir de um modelo dominante em relaccedilatildeo ao dominado (41)
Marcuse (42)voltou-se ao estudo das contradiccedilotildees internas entre as forccedilas
produtivas e as relaccedilotildees sociais mostrando como a racionalidade tecnoloacutegica e
cientiacutefica modificou as bandeiras de classes para extinguir qualquer ameaccedila de
revoluccedilatildeo por parte dos trabalhadores Por isso ele defendia a emancipaccedilatildeo por
grupos sociais externos ao sistema produtivoClaramente conseguiu demonstrar
que a teoria tradicional afastada da moralidade e em conjunto com a racionalidade
instrumental formou uma grande modelagem tecno-cientiacutefica-industrial Com
efeitoa induacutestria e a universidade se uniam para produzir conhecimentos e
tecnologias que fossem consumidas pelo mercado
Um dos criacuteticos mais severos internamente agrave Teria Critica Habermas
defendia que a emancipaccedilatildeo seria possiacutevel a partir da reforma do Estado
Democraacutetico de Direito (43) isto eacute a partir da construccedilatildeo de espaccedilos de diaacutelogo que
natildeo fossem baseados na racionalidade instrumental Esta natildeo considera o pensar
nem a objetificaccedilatildeo do pensar a serviccedilo da dominaccedilatildeo mas sim por meio da
racionalidade comunicativa baseada na linguagem possibilitando a comunicaccedilatildeo
dialoacutegica ateacute mesmo em espaccedilos puacuteblicos(44)
Foi com Jurguen Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo que se tornou
possiacutevel pensar a emancipaccedilatildeo social a partir da produccedilatildeo de conhecimentos que
impliquem a redefiniccedilatildeo de redes de influecircncias enfraqueccedilam grupos de poder e
estabeleccedilam outras formas de regulaccedilatildeo do Estado Eacute o caso por exemplo da
constituiccedilatildeo de espaccedilos de discussatildeo que consigam neutralizar a racionalidade
instrumental e a transformar em uma racionalidade comunicativa
Na proposta de Habermas a institucionalizaccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticosinternos agrave estrutura juriacutedico-democraacutetica poderia ser uma forma de os
grupos sociais conduzirem a uma mudanccedila de postura do Estado (16) Com isso faz
sentido pensar que as poliacuteticas e programas puacuteblicos precisam alinhar-se a uma
racionalidade comunicativa reconhecendo os grupos sociais demandantes de
direitos a partir da discussatildeo apropriada por eles de modo a tomar accedilotildees efetivas
enquanto Estado e de acordo com o interesse demandado
29
Entretanto claro estaacute que a inserccedilatildeo dos grupos nestes espaccedilos
democraacuteticos ainda carece de ser potencializada incentivada e promovida como
parte intriacutenseca da mudanccedila Principalmente quando nos deparamos com questotildees
essencialmente morais e culturais como eacute o caso dos povos indiacutegenas As
denuacutencias das mulheres indiacutegenas sobre a violecircncia tecircm sido frequentes mas pouco
se escuta as vozes dessas mulheres nos espaccedilos democraacuteticos e nem as decisotildees
aiacute tomadas parecem contemplar asopiniotildees e a moral delas
Ressalte-se que essa posiccedilatildeo teoacuterica tende a entrar em conflito com os
Estudos de Colonialidade(16) Estes natildeo acreditam numa emancipaccedilatildeo no contexto
da modernidadeuma vez que ela eacute a sustentaccedilatildeo do sistema hierarquizado de
lugares e papeacuteis sociais alinhados com o padratildeo de dominaccedilatildeo imposto (45)
A tendecircncia acima mencionada foidivisada por Lorenzo (16) que orienta
outros estudos a aprofundarem essa relaccedilatildeo a fim de construir uma base teoacuterica
para a Bioeacutetica Criacutetica que contemple tanto a Teoria Critica como os Estudos sobre
Colonialidade No entanto embora Habermas identifique um lado da modernidade
que outros autores da Teoria Criacutetica natildeo apontaram como a possibilidade de
diaacutelogo por dentro do Estado ou seja por dentro da Modernidade eacute importante
destacar que natildeo podemos principalmente aqui na Ameacuterica Latina desconsiderar
elementos apontados pelos Estudos de Colonialidade que nos colocam em um lugar
diferenciado hierarquizado e subjugado a essa modernidade
Aleacutem da relaccedilatildeo de poder estabelecida natildeo podemos desprezar o conteuacutedo
racial natildeo abordado pela Teoria Critica o qual tem sido considerado categoria
essencial (45) para um pensar emancipatoacuterio e descolonialTrata-se de uma
manobra para classificar raccedilas e hierarquizaacute-las entre os povos buscando
comprovaccedilotildees bioloacutegicas de inferioridade para sustentar o projeto de exploraccedilatildeo e
de hierarquizaccedilatildeo dos povosque eacute caracteriacutestico da modernidade e que leva agrave
Colonialidade da Vida Como afirmamNascimento e Garrafa (46) esta
[]eacute exatamente o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas satildeo mais importantes do que outras desdeo ponto de vista poliacutetico fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo e submissatildeo sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida(p292)
Eacute no sentido de colonialidade de vida assim caracterizado que Nascimento e
Garrafa denunciam que os indiacutegenas e os africanos foram asvidas escolhidas para a
30
opressatildeo em favor do progresso da Europa como projeto de desenvolvimento
mundial Nessa mesma linha e aprofundando nosso objeto de estudofaz-se
necessaacuterio afunilar a anaacutelise para entender natildeo soacute gravidade do problema que as
mulheres indiacutegenas viacutetimas de violecircncia de gecircnero se colocam mas tambeacutem para
entender como a modernidade atua no sentido de agravar esse problema
Ao mesmo tempo queessa influecircncia modernocolonial impotildee uma relaccedilatildeo de
poder do Norte para com o Sul institui hierarquias na produccedilatildeo de conhecimento em
que o Norte sempre tem o bastatildeo do saber Isso se forma a partir de relaccedilotildees de
poder econocircmicoque impotildeem aos paiacuteses padrotildees descontextualizados de
desenvolvimento econocircmico cultural e poliacutetico Dessa forma tais paiacuteses satildeo
levados pelas matildeos do Estado a transformar sua estrutura cultural em marcas de
marginalizaccedilatildeo e violecircncia
Nesse contexto imagine-se o que pode ocorrer com as mulheres indiacutegenas
que vivenciam cultura diversa da modernidade e estatildeo sujeitas a todas as violecircncias
consequentes da relaccedilatildeo mundo modernocolonial Eacute por isso que Segato (25)
afirma que assim como a raccedila o gecircnero eacute categoria central para a criacutetica
descolonial transformado o papel e o corpo das mulheres em extensatildeo do territoacuterio
de disputa edomiacutenio de inimigos
Portanto a Teoria Criacutetica reflete muitos elementos de anaacutelise da influecircncia
hieraacuterquica colonial e da possibilidade de propor espaccedilos de discussatildeo e
emancipaccedilatildeo caracteriacutesticos da Bioeacutetica Criacutetica
44 Estudos sobre Colonialidade Colonialidade do Poder e do Saber
Entender a Colonialidade eacute essencial para entender as mutaccedilotildees e
transformaccedilotildees da ordem mundial vivida na atualidade moderna Alguns estudiosos
vecircm desenhando linha criacutetica de argumentaccedilatildeo que tem como foco a modernidade
partindo do princiacutepio que ela se constitui a partir de uma loacutegica colonialsatildeo estes
estudiosos representados por AnibalQuijano Walter Mignolo e Enrique Dussel que
fundamentam os chamados Estudos sobre a Colonialidade todos da Ameacuterica
Latina Esses estudos buscam entender de quais maneiras as relaccedilotildees de poder de
conhecimento de vida e de resistecircncia tecircm se organizado em torno do grande ideal
de dominaccedilatildeo da modernidade(47) Isso eacute relevante para entender que pode existir
31
uma organizaccedilatildeo de mundo baseada na hierarquizaccedilatildeo e colonizaccedilatildeo ou melhor
no domiacutenio de grupos menores com a injunccedilatildeo de vontades e prioridades de um
eixo superior de dominaccedilatildeo Ou como designam os estudos sobe colonialidade um
modo ldquoEurocentrado de Interpretaccedilatildeordquo
Dentre as relaccedilotildees apontadas a relaccedilatildeo de poder eacute a que parece determinar
a estrutura colonial na qual tudo aquilo que natildeo tem a marca da modernidade passa
a ser rechaccedilado e subjugado Isso implicauma hierarquizaccedilatildeo centrada em quem
deteacutem a imagem do poderSegundo Nascimento e Garrafa (46)
Essa imagem supotildee (e institui) um escalonamento hieraacuterquico entre quem eacute desenvolvido e quem natildeo eacute de modo que essa hierarquizaccedilatildeo estaacute pensada em termos de quem eacute moderno e quem natildeo eacute Haacute uma quase natural afirmaccedilatildeo da inferioridade de quem natildeo eacute marcado pela modernidade precisando este ser educado civilizado colocado na marcha do progresso (pelos jaacute modernosdesenvolvidos) mesmo que isso implique ndash e eacute o que geralmente acontece e serve aos interesses da presente discussatildeo e criacutetica ndash na instauraccedilatildeo de um processo de dominaccedilatildeo(p 290)
Para Walter Mignolo (48) falar da perspectiva da Colonialidade do Poder eacute
dizer queexistem mutaccedilotildees que influenciam as relaccedilotildees mundiais Dessa forma eacute
possiacutevel construir caminhos para o pensar descolonial e renunciar a todas as formas
de imposiccedilatildeo edificando novas formas de diaacutelogo entre povos e culturas que
interajam e troquem suas experiecircncias suas histoacuterias e suas culturas
Essa libertaccedilatildeo ou emancipaccedilatildeo se torna necessaacuteria a partir do
questionamento sobre os efeitos da dominaccedilatildeo do poder colonial Estes se datildeo a
partir de uma hegemonia global por meio do exerciacutecio do poder e do saber sobre o
outro de modo que o poder colonial especialmente na Europa por todo seu impeacuterio
econocircmico e cientiacutefico prega ideias de desenvolvimento que atribuem a
imperatividade de padrotildees econocircmicos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
hierarquizados nos quais o superior eacute sempre identificado como superdesenvolvido
e objeto de idealizaccedilatildeo de todos os outros
Nas paacuteginas preliminares ao livro intitulado Textos de Fundaccedilatildeo de Anibal
Quijano (48) Segato avalia que partindo para um panorama continental a
colonialidade na meacuterica Latina ainda se faz presente na atualidade pelos
consequentesproblemas sociais como desigualdade racismo e violecircncia que
representam as diversas formas de vulneraccedilatildeo do ser humano
Os mecanismos de accedilatildeo da Colonialidade satildeo focais nas populaccedilotildees de
baixo desenvolvimento social e econocircmico Aleacutem desse campo atingem tambeacutem as
32
subjetividades como valores saberes liacutenguas siacutembolos e experiecircncias das
comunidades A accedilatildeo desses instrumentos se reflete na memoacuteria histoacuterica dos
povos tendo eles que se submeter a uma transformaccedilatildeo de padrotildees culturais e de
formas de saber e agir para se adequar ao padratildeo eurocentrado Foram reduzidos e
aprisionados para serem controlados pelo poder e explorados no trabalho Essa
transformaccedilatildeo foi tambeacutem capaz de alterar o imaginaacuterio dos povos de tal modo que
ainda nos dias atuais eacute perceptiacutevel a valorizaccedilatildeo de padrotildees europeus como
verdades absolutas (48)
Considerando a capacidade de exploraccedilatildeo a expressatildeo de um modo
colonizado parece se refletir na imposiccedilatildeo de padrotildees nos campos de produccedilatildeo de
conhecimento nas perspectivas nos sistemas de imagens nos siacutembolos nos
modos de significaccedilatildeo nos recursos e instrumentos de expressatildeo no intelectual e
no visual Como designa Quijano (48) trata-se deuma ldquoalienaccedilatildeo histoacutericardquo na qual o
modo de fazer eacute marcado pelo encanto de participar do grupo dominador e de
alcanccedilar os mesmos benefiacutecios materiais o mesmo poder e a mesma natureza
Tudo isso em nome do ldquodesenvolvimentordquo
O retrato da colonizaccedilatildeo na Ameacuterica Latina eacute desalentador segundo
Quijano Isso porque aleacutem de todas as formas de transformaccedilatildeo impostas pelo
poder dominador foram ainda comprometidas as populaccedilotildees indiacutegenas que
sofreram grande extermiacutenio nos uacuteltimos tempos Natildeo soacute suas mortes mas a morte
de suas culturas satildeo expressotildees formais que seguem padrotildees culturais europeus
alijando culturas a uma existecircncia oral e iletrada
Um dos elementos de estudo de Quijano eacute a questatildeo da produccedilatildeo de
conhecimento como paradigma da colonialidade cultural e da modernidade-
racionalidade em que o pensamento europeu propositadamente estrutura a
produccedilatildeo do conhecimento a partir de uma loacutegica objetiva e racional Nessa loacutegica o
sujeito deixa de ser visto como possuidor de subjetividades para ter uma relaccedilatildeo
individualista de objeto Desprezam-se assim a intersubjetividade e a totalidade
social que satildeo fontes da produccedilatildeo do conhecimento para o autor
Essa relaccedilatildeo do sujeito enquanto objeto que despreza a existecircncia do outro
e remete a um pensamento isolado e de propriedade que favorece a colonialidade
Nessa linha tambeacutem estaacute a motivaccedilatildeo para accedilotildees violentas Eacute o que Nascimento e
Garrafa confirmam quando dizem que ldquoA colonialidade da vida normalmente tem
33
sido usada como pretexto para praacuteticas violentas contra sociedadesrdquo(46) Mas
violentas em especial para as mulheres que historicamente tecircm tido seus corpos
usados como instrumentos de guerrae para demonstraccedilatildeo de domiacutenio de territoacuterio
alheio ou de forccedila punitiva(7)
O questionamento ldquoQueacute papel tienen las relaciones de geacutenero en este
procesordquo feito por Segato(25)eacute central para entender o problema da violecircncia
contra a mulher Eacute perceptiacutevel que a crueldade e o desamparo a mulheres viacutetimas
de violecircncia aumentam conforme a modernidade e o mercado avanccedilam Ateacute por que
os protagonistasdesse espaccedilo satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo para a conquista do projeto colonial
A forma de agir do Estado embora disfarccedilada na defesa da coisa puacuteblica se
transforma em duro ataque agraves formas alternativas de organizaccedilatildeo social Ele invade
e cerceia os espaccedilos de autonomia e praacuteticas comunitaacuterias pela necessidade do
controle A manobra se daacute a partir de uma concepccedilatildeo de igualdade disfarccedilada em
concepccedilatildeo de modernidade com fundo liberal e capitalista mas carregada de males
como o racismo e a hierarquizaccedilatildeo (25) Assim o Estado dificilmente pode escolher
entre a proteccedilatildeo agraves autonomias e direitos comunitaacuterios e o exerciacutecio do controle e a
manutenccedilatildeo do seu domiacutenio Nesse contexto o papel do Estado seria entatildeo o de
devolver a jurisdiccedilatildeo e a garantia de deliberaccedilatildeo aos povos para que eles possam
dispor de seu proacuteprio projeto histoacuterico e assim promover a interculturalidade
Para Segato (25) a defesa das autonomias torna-se inviaacutevel a partir do
relativismo cultural e eacute preciso reconhecer o pluralismo histoacuterico de modo
substitutivo ao relativismo cultural O reconhecimento da pluralidade da autonomia
para deliberaccedilotildees e da troca de experiecircncias de outros povos leva agrave construccedilatildeo da
interculturalidade acrescida do elemento histoacuterico indispensaacutevel para tal processo
Isso significa promover uma comunicaccedilatildeo entre os povos olhando para as marcas
deles na histoacuteria
45Interculturalidade e Direitos humanos
O exerciacutecio de reconhecimento da pluralidade perpassa a interculturalidade
como um elemento importante no estabelecimento de laccedilos entre as vivecircncias do
passado e a construccedilatildeo do futuro E nessa construccedilatildeo decorrem experiecircncias
34
conflitantes como trocas de interesses antagonismos conflitos eacuteticos e posturas
poliacuteticas e que fazem parte de uma histoacuteria
Para ampliar a base teoacuterica da bioeacutetica criacutetica conduzindo-a a uma reflexatildeo
adequadamente cultural a interculturalidade seraacute outro braccedilo de aplicaccedilatildeo
dabioeacutetica no acircmbito da questatildeo da mulher indiacutegena
A interculturalidade eacute a relaccedilatildeo de diaacutelogo estabelecida entre atores de
culturas diferentes buscando entender a forma de organizaccedilatildeo das sociedades
Segundo o Consejo Regional Indiacutegena de Cauca(49) assim entendida a
interculturalidade ldquoEacute um projeto poliacutetico que transcende o educativo para pensar na
construccedilatildeo de sociedades diferentes [hellip] noutro ordenamento socialrdquo
Nesse sentido tem sido abordado de trecircs perspectivas distintas segundo
Walsh (49) A primeira eacute a perspectiva relacional que faz referecircncia agrave forma mais
baacutesica e geral de contato e intercacircmbio entre culturas que se daacute por igualdades ou
desigualdades nas relaccedilotildees estabelecidas entre culturas como as indiacutegenas e
afrodescendentes A segunda eacute perspectiva funcional que busca promover o
diaacutelogo a convivecircncia e a toleracircncia visando a inserccedilatildeo na estrutura social jaacute
existente sem questionar as causas de diferenccedilas Por isso eacute vista como uma nova
forma de dominaccedilatildeo objetivada apenas no controle do conflito eacutetico e na
manutenccedilatildeo da estabilidade social como uma estrutura de ilusatildeo que tem como
uacutenico objetivo o projeto neoliberal A terceira e uacuteltima eacute a perspectiva criacutetica que
parte do problema estrutural-colonial-racial para se contraporao campo funcional
induzindo a uma discussatildeo sobre a transformaccedilatildeo das estruturas e relaccedilotildees sociais
de forma distinta a partir do ldquoreconhecimento de que a diferenccedila se constroacutei dentro
de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado com os
brancos e lsquobranqueadosrsquo em cima e os povos indiacutegenas e afrodescendentes nos
andares inferioresrdquo
No campo dos Direitos Humanos aleacutem das convenccedilotildees jaacute enunciadas como
normativas positivadas como bastotildees de proteccedilatildeo a atenccedilatildeo deve ser dirigida a
uma visatildeo indutora de olhares eacuteticos Isso porque segundo Segato faz-se
necessaacuterio introduzir um outro princiacutepio de justiccedila afastado da moral e da lei que
natildeo esteja calccedilado em normas positivas e enumeraacuteveis(50)
Esse princiacutepio segundo ela seria a pulsatildeo eacutetica que ldquonos possibilita natildeo
somente contestar e modificar as leis que regulam o contrato impositivo em que se
35
funda a naccedilatildeo mas tambeacutem distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e
transformar os costumes das comunidades morais que de fazemos parterdquo
Nesta pulsatildeo eacutetica a Bioeacutetica tem se aproximado dos direitos humanos pela
defesa da dignidade humana fazendo interlocuccedilatildeo com valores morais Nesse
contexto a dignidade humana ldquoeacute o mais evidente ponto de aproximaccedilatildeo entre a
Bioeacutetica e os Direitos Humanos sendo o princiacutepio fundamental e alicerce de toda
construccedilatildeo teoacuterica nos dois campos do saberrdquo (51)
Abioeacutetica interculturalsurge da necessidade de se ter uma ferramenta que
seja capaz de considerar asnuances da questatildeo da violecircncia de gecircnero
considerando os elementos eacuteticos e morais que asseverem a proteccedilatildeo da dignidade
das mulheres Dessa forma a Bioeacutetica Intercultural se torna essencial para
solucionar questotildees que exigem o cuidado e a contextualizaccedilatildeo cultural Eacute por isso
que seguindo ferramenta sugerida por Oliveira (52) vamos ampliar esse
entendimento e o levar para o campo da sauacutede epara o campo das poliacuteticas e
programas puacuteblicos instituiacutedos Assim procedendo busca-se seguir as
premissasapresentadas pela autora de que natildeo se devem analisar culturas a partir
de padrotildees proacuteprios mas buscar sempre o encontro da igualdade entre as culturas e
promover visatildeo criacutetica para enfrentar alguns de seus elementos
Com o valor eacutetico de ser a verdadeira cultura da humanidadepercebe-se
ligaccedilatildeo entre os direitos humanos e a bioeacutetica intercultural Esta apresenta-se sob a
forma de espaccedilo capaz de oferecer olhares eacuteticos morais poliacuteticos e culturais para
atomada de decisatildeo e o fornecimento de procedimentos de mediaccedilatildeo necessaacuteriosao
enfrentamento de questotildees relacionadas aos povos indiacutegenas
Eacute interessante desenhar a partir da interculturalidadeo papel descritivo e
natildeo normativo que a bioeacutetica assume ao estudar e descrever os conflitos culturais a
partir dos comportamentos morais e das suas diferenccedilas Ao considerar tais
particulares a bioeacutetica contribui para o entendimento dos direitos humanos como
interculturalismo com igualdade de valor para as culturas(52)
Entretanto a igualdade natildeo pressupotildee a ausecircncia de conflitos entre as
culturas pois o conflito bioeacutetico estaacute calcado na divergecircncia moral No caso em
estudo tal conflito estaacute relacionado com a necessidade moral de proteccedilatildeo das
mulheres indiacutegenas e com a efetivaccedilatildeo de poliacuteticas institucionais direcionadas que
36
natildeo apenas descrevam formas de atuaccedilatildeo adequada mas permitam a construccedilatildeo
do processo com autonomia e protagonismo
Como descreve a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos
em seu artigo 12 do Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo (53)
A importacircncia da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideraccedilatildeo Todavia tais consideraccedilotildees natildeo devem ser invocadas para violar a dignidade humana os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princiacutepios dispostos nesta Declaraccedilatildeo ou para limitar seu escopo
Os direitos humanos satildeo fundamentais para a proteccedilatildeo dos indiviacuteduos de
grupos minoritaacuterios pois servem de defesa contra a inserccedilatildeo de outras culturas
inclusive as impostas pelo Estado Assim essa limitaccedilatildeo deve se estender aos atos
de omissatildeo sobre um problema tatildeo negligenciado como a violecircncia contra mulheres
indiacutegenas Isso significa estabelecer diaacutelogo intercultural sem violar a dignidade
humana mesmo com a supremacia hierarquizada do Estado ou entre culturas
diferentes umas das outras
Assim Oliveira (52) afirma que
Determinadas praacuteticas danosas a mulheres e crianccedilas como casamentos precoces estupros coletivos como forma de justiccedila entre comunidades e homiciacutedios de mulheres em nome da honra natildeo devem ser toleradas sob o manto de serem praacuteticas culturais Ateacute porque certas praacuteticas culturais satildeo reflexos de patriarcalismo relaccedilotildees assimeacutetricas de poder discriminaccedilatildeo de mulheres e subjugaccedilatildeo de crianccedilas(p 85)
A base de direitos humanos sustenta a proteccedilatildeo construtiva de uma cultura
de humanidade capaz de exigir dos governos nacionais e dos organismos
internacionais accedilotildees reais e de efeito Limitaccedilotildees que aparecem nessas discussotildees
satildeo sempre acobertadas pela justificativa das praacuteticas culturais como praacuteticas
especiacuteficas a cada cultura
46 Feminismo
Falar sobre gecircnero eacute necessaacuterio para trazer ao presente trabalho elementos
dos estudos sobre o feminismo e as bandeiras de luta das mulheres afim de melhor
compreender o lugar histoacuterico dos papeacuteis femininos na sociedade
Na bioeacutetica a questatildeo feminina inicialmente foi tratada pelo aspecto da
medicalizaccedilatildeo e regulaccedilatildeo do corpo no acircmbito reprodutivo (54) avaliando apenas
questotildees de pesquisas sobre o sistema reprodutivo Mais adiante eacute que passou a
37
avaliar a mulher do ponto de vista da autonomia e do direito a decidir sobre o seu
proacuteprio corpo Diniz (55) citaa partir de Wolfcomo pontos criacuteticos da bioeacutetica
em primeiro lugar uma criacutetica aos pressupostos da teoria principialista que se supotildeem universalizaacuteveis em segundo apontam para os limites da ideologia liberal que tem o individualismo e consequentemente o princiacutepio da autonomia como valor maacuteximo em terceiro e para noacutes talvez a criacutetica mais importante reconhecem que a estrutura da bioeacutetica preserva os interesses dos que se encontram em vantagem social constituindo uma lsquobioeacutetica para os privilegiados(p 04)
Wolf (56)vai aleacutem na afirmativa de que a bioeacutetica inclusive no campo
acadecircmico tem tido interesse seletivo quanto a estudos relacionados agrave medicina e agrave
ciecircncia Isso se traduz em um isolamento das questotildees feministas e conforme jaacute
apontadoem umaColonialidade de saber que negligencia questotildees femininas como
a violecircncia de gecircnero
Atualmente afirma Diniz as pautas da abordagem feminista da bioeacutetica
foram se ampliando e hoje caminham em direccedilatildeo agrave desconstruccedilatildeo da estrutura
hegemocircnica das instituiccedilotildees e das praacuteticas meacutedicas sobre o corpo feminino Haacute
inclusive discussotildees sobre pesquisa cliacutenica com mulheres sobre o uso da objeccedilatildeo
de consciecircncia geralmente relacionados com as mulheres e suas decisotildees
reprodutivas e sobre o envelhecimento do corpo feminino Isso prova que a bioeacutetica
tem sido campo rico e ampliado de anaacutelise das questotildees femininas (57)
EntretantoSegato (25) apresenta algumas visotildees diferenciadas
sobrequestatildeo de gecircnero principalmente a respeito dos modelos de pensamentos
feministas O primeiro modelo apresentado pela autora eacute o feminismo eurocecircntrico
que considera que o problema da dominaccedilatildeo de gecircnero eacute patriarcal e universal
justificando a possibilidade de transferecircncia dos avanccedilos da modernidade agraves
mulheres natildeo-brancas indiacutegenas e negras colonizadas Assim tal modelo impotildee
uma superioridade moral que reduz aquelas mulheres agrave desigualdade e a
discriminaccedilatildeo
Jaacute o segundo modelo de pensamento feminista afirma que a questatildeo de
gecircnero inexistia no mundo preacute-colonial E o terceiro defendido pela autora
considera a possibilidade de existecircncia de nomenclaturas de gecircnero nas sociedades
tribais e afro-americanas caracterizando uma organizaccedilatildeo patriarcal de baixa
intensidade que natildeo se submete a lideranccedilas do feminismo eurocentrado
Por isso reconhecer a questatildeo de gecircnero como central na discussatildeo parece
abre um caminho de possibilidades para conflitos violentos nos quais as mulheres
38
satildeo tatildeo vitimizadas Principalmente por entender que o corpo feminino lhes pertence
e que natildeo cabe a ningueacutem inscrever marcas nele exceto a proacutepria mulher A
elacabe dizer o lugar para o qual deseja ir e o papel que deseja assumir de modo
adequado agrave sua realidade sem hierarquias de poder de saber ou culturais
propostas pelos discursos europeus e colonizadores
Diante desse posicionamento e a partir do referencial teoacuterico da Bioeacutetica
Critica dos Estudos de Colonialidade da Interculturalidade dos Direitos Humanos e
do Feminismo elementos que cercam a temaacutetica apresentada neste trabalho
entendemos que a Bioeacutetica seja sede para a discussatildeo e reflexatildeo do problema da
violecircncia de gecircnero contra a mulher indiacutegena De acordo com Lorenzo entendemos
tambeacutem que isso eacute ldquobastante uacutetil agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica do componente analiacutetico
da eacutetica aplicada () e especificamente na anaacutelise dos conflitos e desvios eacuteticos em
torno das ciecircncias da vida ndash tarefa proacutepria da bioeacuteticardquo(16)
Com esse compromisso propomos a anaacutelise da invisibilidade cientiacutefica e das
negligecircncias institucionais sobre a violecircncia contra a mulher indiacutegena com base na
Bioeacutetica Criacutetica A ideia eacute aprofundar o estado da arte a partir do entendimento sobre
as produccedilotildees no campo eacutetico cientifico e institucional e sobre o comportamento
dessa rede diante do contexto intercultural
39
5 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisatildeo integrativa que consiste em um meacutetodo de
avaliaccedilatildeo especiacutefico e que eacute normalmente utilizado para pesquisas de literatura
sejam empiacutericas ou teoacutericas mas que forneccedilam uma compreensatildeo ampla de um
fenocircmeno singular ou um problema de sauacutede conforme sintetiza Broome (58)
Conforme proposto por Whittemore e Knalf (59) consiste em meacutetodo que inclua
pesquisas experimentais e natildeo experimentais e que permite uma combinaccedilatildeo de
dados teoacutericos com literatura para definiccedilatildeo de conceitos revisatildeo de teorias analise
de provas e de metodologia entre outras possibilidades Quando bem elaboradas ela
eacute capaz de contribuir para o desenvolvimento das teorias cientiacuteficas na pratica e nas
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede
Desse modo a revisatildeo aqui proposta eacute constituiacuteda por meio de
levantamento dos artigos cientiacuteficos publicados entre os anos 2000 e 2015A revisatildeo
constou de dois corpi de documentos 1 artigos cientiacuteficos selecionados nas bases
de dados da Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e da Literatura Latino-
Americana e do Caribe em Ciecircncias da Sauacutede (LILACS) e 2 Portarias poliacuteticas
puacuteblicas e programas estabelecendo diretrizes para organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave sauacutede
da mulher e sauacutede indiacutegena e para o enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero A busca
desses dados foi realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2015
Para a pesquisa dos artigos foram utilizados os descritores em Ciecircncias da
Sauacutede (DECS) ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo ldquoviolecircncia de gecircnerordquo e bioeacuteticardquo de
forma separada e tambeacutem em combinaccedilatildeo com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo utilizando-se o operador boleanoand Os
criteacuterios de inclusatildeo foram 1 artigos publicados entre 2000 e 2015 2 artigos
publicados em perioacutedicos brasileiros Os criteacuterios de exclusatildeo foram a) artigos que
natildeo se remetessem ao contexto brasileiro b) artigos dirigidos a um grupo social
especiacutefico de mulheres como grupos de trabalhadoras entre outros c) artigos
abordando uma regiatildeo ou circunstacircncia especiacutefica onde natildeo haacute possibilidade de
relaccedilatildeo com a questatildeo indiacutegena d) artigos cujo tema principal fosse outras formas
de violecircncia domeacutestica tais como em crianccedilas e idosos Para anaacutelise do corpus final
de artigos foi desenvolvido um instrumento composto dos seguintes toacutepicos tiacutetulo
40
do artigo autores ano de publicaccedilatildeo objetivo citaccedilatildeo ou abordagem dada agrave
questatildeo da mulher indiacutegena Os resultados encontram-se sintetizados nosQuadros1
e 2
Os documentos legais ou poliacutetico-institucionais foram definidos por
conveniecircncia elegendo-se aqueles que regulamentam tanto accedilotildees de proteccedilatildeo
contra a violecircncia de gecircnero quanto poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees programaacuteticas
relacionadas agrave sauacutede da mulher ou agrave sauacutede indiacutegena O resultado da anaacutelise desses
documentos eacute apresentado no Quadro 3
41
6 RESULTADOS E DISCUSSAtildeO
Eacute importante destacarlogo de iniacutecio o fato de que enquanto isolados os
descritores ldquoviolecircncia contra a mulherrdquo e ldquoviolecircncia de gecircnerordquoencontraram570
artigos enquanto apenas um artigo foi encontrado quando esses descritores foram
cruzados atraveacutes do operador boleano AND com os descritores ldquopopulaccedilatildeo
indiacutegenardquo ldquopovos indiacutegenasrdquo e ldquoindiacutegenasrdquo Apoacutes a aplicaccedilatildeodos criteacuterios de inclusatildeo
e exclusatildeo aos 570 artigos encontradoschegou-se a um nuacutemero final de 66 artigos
sobre os quais foi aplicado o instrumento de anaacuteliseOs principais achados
relacionados agrave pesquisa estatildeo sintetizados no Quadro 1
Quadro 1 Variaacuteveis relacionadas ao ano de publicaccedilatildeo categoria de objetivoscitaccedilatildeo ou abordagem agrave questatildeo interculturalmulher indiacutegenaaspectos eacuteticos ou bioeacuteticos
abordados
Variaacutevel Nordm
Ano de publicaccedilatildeo
2006 a 2008 8 1212
2009 a 2011 20 3030
2012 a 2014 27 4091
2015 11 1667
Categoria de Objetivos Principais dos Artigos
1 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para a mulher viacutetima de violecircncia (60 61 62 63 64 65 66 67 68)
9 1364
2 Discussatildeo sobre a condiccedilatildeo de gecircnero enquanto categoria do fenocircmeno da violecircncia (69 70)
2 303
3 Enquadramento da violecircncia de gecircnero no campo da sauacutede puacuteblicacoletiva (71 72 73)
3 455
4 Estudo de articulaccedilotildees gecircneroraccedilacoretnia na violecircncia contra a mulher (74 75)
2 303
5 Estudo de praacuteticas discursivas sociais sobre gecircnero e violecircncia (76)
1 152
6 Estudo do funcionamento das redes institucionais de proteccedilatildeo (77 78 79)
3 455
7 Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade resultante (80 81 82 83 84 85 86 87 88)
9 1364
8 Estudos de relatos pessoais sobre formas de enfrentamento agrave violecircncia de gecircnero (89)
1 152
42
Quanto agrave presenccedila ou menccedilatildeo agrave questatildeo intercultural dos 66 artigossete
mencionaram a questatildeo intercultural ou relacionada agrave mulher indiacutegena sendo que
trecircs (45) abordaram a importacircncia de considerar questotildees histoacutericas o respeito a
diferentes relaccedilotildees sociais e ao pluralismo cultural e os outros quatro (65) artigos
abordaram a necessidade de ampliar estudos para as populaccedilotildees indiacutegenas e a
necessidade de considerar as relaccedilotildees histoacutericas e eacutetnicas dos povos indiacutegenas ao
tratar do tema da violecircncia de gecircnero
Sobre o conteuacutedo eacutetico ou especificamente sobre a incidecircncia de bioeacutetica
como campo de estudo da violecircncia de gecircnero nos artigos Bandeira(70) assume a
necessidade da eacutetica ser um dos alicerces para o desenvolvimento de poliacuteticas de
atendimento e acompanhamento das mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia Ao
contraacuterio Azevedo (95) jaacute diz que o movimento contra a violecircncia de gecircnero tem
transferido ao ldquodomiacutenio puacuteblico as turbulecircncias perplexidades e incertezas vividas
na privacidaderdquo conduzindo agrave uma desestabilizaccedilatildeo do Estado em termos de
controle domiacutenio e poder Assume ainda que as leis jaacute cumprem aracionalidade
eacutetica necessaacuteria a uma conduta emancipatoacuteriacomo forma de intervenccedilatildeo do
Estado Enquanto caminha-se para a construccedilatildeo de soluccedilotildees eticamente
adequadas a racionalidade ainda conduz alguns autores a uma frieza e
subjugamento da gravidade do problema da violecircncia Por outro lado a afirmaccedilatildeo
dele confirma que a luta de movimentos sociais e outros estaacute alterando a forma de
relaccedilatildeo com o Estado
9 Estudos sobre a constituiccedilatildeo de redes comunitaacuterias de apoio agrave mulher viacutetima de violecircncia (90 91)
2 303
10 Estudos sobre o perfil das mulheres viacutetimas de violecircncia domeacutestica e ou de seus agressores (92 93 94)
3 455
11 Estudos socioloacutegicos e ou juriacutedicos sobre a Lei Maria da Penha (95 96 97)
3 455
12 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais da sauacutede diante da violecircncia ( 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 1081 09 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122)
25 3788
13 Percepccedilotildees e atitudes de profissionais dos campos juriacutedico e policial (123)
1 152
14 Revisatildeo de literatura sobre o tema (124 125)
2 303
43
Jaacute no contexto da LeiMaria da Penha o elemento eacutetico eacute utilizado por Pougy
(77) no sentido de que as instancias juriacutedicas devem considerar a eacutetica em suas
avaliaccedilotildees de condutas como certo ou errado e no tratamento do conflito vivido
aplicando a eacutetica o papel de mediaccedilatildeo de conflitos
Eacute de se esperar um estudo que trata da articulaccedilatildeo entre gecircnero e raccedila na
questatildeo da violecircncia nos traga uma boa reflexatildeo em que nos sugere a inserccedilatildeo da
eacutetica para a reflexatildeo e alteraccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo como em estudo de
Silveira e Nardi (74)
Dessa forma o que podemos fazer eacute trazer a eacutetica para o campo das relaccedilotildees cotidianas que marcam a microfiacutesica do poder exercitando-a como praacutetica reflexiva da liberdade e dessa forma alterando os jogos de poder para que obedeccedilam a relaccedilotildees de forccedilas mais equacircnimes(p 324)
Nesse processo de reflexatildeo eacute importante se considerar que a violecircncia de
gecircnero eacute um problema de perspectivas eacuteticas e poliacuteticas de compreensatildeo de formas
de inibir a violecircncia e do cuidado a sauacutede da mulher em busca emancipaccedilatildeo por
isso Guedes Fonseca e Egry (62) tambeacutem sugerem que a Sauacutede Coletiva eacute
espaccedilo para estas discussotildees
Haacute ainda discussotildees que satildeo feitas a partir da visatildeo do homem diante do
fenocircmeno da violecircncia contra a mulher satildeo apresentados argumentos que de certo
modo demonstram a vitimizaccedilatildeo dos homens ao sistema machista e reprodutor de
violecircncias conforme descreve Medrado e Meacutello (76)em seu artigo intitulado
ldquoPosicionamentos Criacuteticos e Eacuteticos sobre a Violecircncia contra as Mulheresrdquo
Em siacutentese as informaccedilotildees acima evidenciam que os homens estatildeo colocados no contexto da violecircncia em diferentes lugares inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrotildees de subjetividade orientados por modelos de gecircnero e de relaccedilotildees hieraacuterquicas de poder que definem a dominaccedilatildeo masculina sobre as mulheres(p 81)
Jaacute na perspectiva dos profissionais de sauacutede a eacutetica eacute percebida nos
estudos como caracteriacutestica necessaacuteria ao bom desempenho do trabalho por estar
relacionada a atuaccedilatildeo interpessoal (64) e teacutecnico (114) entre os profissionais e as
mulheres atendidas
Os achados com a presenccedila da temaacutetica geralmente estatildeo relacionados a
reconhecer as diferenccedilas eacutetnicas ou interseccionadas com a questatildeo de raccedilacor no
44
estudo de violecircncia de gecircnero como no artigo de DrsquoOliveira e Schraiber (73) em
que
Por outro lado para a efetiva proteccedilatildeo dos direitos eacute necessaacuterio o reconhecimento por todos dos eixos de desigualdade social especialmente no que tange agraves diversas manifestaccedilotildees das desigualdades de gecircnero mas tambeacutem de classe e raccedilaetnia(p 137)
Esses achados estatildeo contidos do levantamento de categorias de objetivos
sendo que apenas dois deles se remetem de forma especiacutefica agrave questatildeo da mulher
indiacutegena reconhecendo-as como raccedila histoacuterica viacutetima de violecircncias e indicando a
necessidade de novos estudos nesse campo Nenhum dele se remete agrave bioeacutetica
especificamente como campo de atuaccedilatildeo embora seja encontrado o sentido da
responsabilidade eacutetica como propotildee Santos e Vieira (79) ao afirmar que a eacutetica
passsa ser uma elemento necessaacuterio ao desenvolvimento do trabalho em sauacutede
uma concepccedilatildeointerdisciplinar que respeite as diferenccedilas que seja corresponsaacutevel
propondo soluccedilotildees compartilhadas com o objetivo de alcanccedilar uma efetiva
integralidade do cuidado agrave sauacutede das mulheres viacutetimas de violecircncia
Com relaccedilatildeo ao ano de publicaccedilatildeo embora a pesquisa tenha sido prevista a
partir do ano 2000 os resultados comeccedilaram a surgirem 2006 provavelmente
influenciados pela promulgaccedilatildeo da Lei Maria da Penha Nota-se que os anos de
2012 a 2014 tiveram a maior concentraccedilatildeo de produccedilatildeo de artigos relacionados ao
tema com cerca de 40 do total dos artigos achados produzidos nesse periacuteodo Em
2015 jaacute satildeo 11 artigos sinalizando uma crescente na produccedilatildeo desde o ano de
2006
Os estudos cujo objetivo principal foi analisar a percepccedilatildeo e atitudes de
profissionais da sauacutede diante da violecircnciade gecircnero representaram 37 do total da
amostra demonstrando acentuado interesse em que eles contribuam para
programas de educaccedilatildeo continuadacom vistas agrave prevenccedilatildeo da ocorrecircncia de
violecircncia contra a mulher e ao atendimento agravesviacutetimas Eles satildeo seguidos pelos
estudos em nuacutemero de publicaccedilotildees por artigos com objetivo de avaliar a
articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da atenccedilatildeo agrave sauacutede para as mulheres
viacutetimas de violecircncia e em igual nuacutemero por aqueles que estimama prevalecircncia de
tipos de violecircncia e mortalidade resultante Vale ressaltar que nesse contingente de
categorias de objetivos que representa cerca de 65 do total de publicaccedilotildees
nenhumartigo nesse grupo se remete agrave questatildeo da mulher indiacutegena Destaca-se que
65 eacute a proporccedilatildeo do total de estudos produzidos por dois estados da Federaccedilatildeo
45
cujos iacutendices de populaccedilatildeo indiacutegena satildeo diversosSatildeo Paulo com 9160 produz
363 das produccedilotildees e o Rio Grande do Sul com 32989 pessoas autodeclaradas
indiacutegenas produz 287
Ao compararmos o retrato dos dez estados mais violentos para a mulher
com contingente significativo de povos indiacutegenas vemos que Roraima deteacutem 49637
indiacutegenas autodeclarados e o maior iacutendice (153) de morte de mulheres no Brasil No
fim do ranking (1) em decimo lugar estaacute o Estado do Paraacute com 39081 indiacutegenas e
um iacutendice de 58 mulheres mortas por questotildees de gecircnero nesse Estado
Interessante observar o estado de Mato Grosso do Sul com 61737 (126) ecom
maior parcela de povos indiacutegenas entre os dez Estados natildeo teve nenhum artigo
registrado no levantamento aqui apresentado Em nenhumas das situaccedilotildees e dados
informados acima existe a produccedilatildeo cientiacutefica voltada para a questatildeo da violecircncia de
gecircnero contra as mulheres indiacutegenas o que pode significar uma escassez de
produccedilatildeo e uma rota de produccedilatildeo descontextualizada com as realidades locais
O Quadro 2 apresenta a distribuiccedilatildeo da produccedilatildeo por Regiatildeo e Estado onde
os estudos foram realizados
Quadro 2ndashPorcentagem de produccedilatildeo cientiacutefica no tema por regiatildeo e estados e categoria de objetivos
Regiatildeo Qtde de produccedilatildeo
Objetivo Principal mais prevalente por regiatildeo
Norte
455 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial AC 3 455
Nordeste
1818 Percepccedilotildees e Atitudes de profissionais dos
campos juriacutedico e policial e
Estudos de prevalecircncia de tipos de violecircncia e mortalidade
BA 4 606
CE 1 152
PB 2 303
PE 4 606
RN 1 152
Centro-Oeste
303 Articulaccedilatildeo de serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo DF 2 303
Sudeste
3788 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RJ 1 152
SP 24 3636
Sul
3636 Percepccedilatildeo e atitude de profissionais diante da violecircncia
RS 19 2879
SC 5 758
46
Surpreendentemente a regiatildeo com maior produccedilatildeo sobre o tema eacute a regiatildeo
sudeste em especial o Estado de Satildeo Paulo e natildeo outras regiotildees que tenham maior
contingente de povos indiacutegenas Ademais a preocupaccedilatildeo com a percepccedilatildeo dos
trabalhadores da sauacutede eacute o tema de maior interesse dos pesquisadores o que pode
demonstrar uma preocupaccedilatildeo com a preparaccedilatildeo da rede para receber mulheres
viacutetimas de violecircncia
Chama atenccedilatildeo tambeacutem a invisibilidade da mulher indiacutegena em torno das
questotildees de violecircncia de gecircneromesmo em estudos com maior nuacutemero de sujeitos
como os inqueacuteritos ou revisotildees documentais de maior porte O estudo que
caracterizou 2674 mulheres em Satildeo Paulo viacutetimas de violecircncia por parceiro iacutentimo
(66) natildeo encontrou nenhuma mulher indiacutegena O mesmo ocorrendo com o que
estudou 939 fichas de notificaccedilatildeo entre os anos de 2006 e 2008(85)em FortalezaCE
que natildeo encontrou nenhumaocorrecircncia relacionada agrave mulher indiacutegenaOutroestudo
envolvendo 56 serviccedilos na regiatildeo metropolitana de Satildeo Paulo no qual foram
entrevistados 100 profissionais gerentes e teacutecnicos sobre a inserccedilatildeo dos
psicoacutelogosna rede de assistecircncia agrave mulher (64)natildeo registrou qualquer preocupaccedilatildeo
por parte dos entrevistados sobre dificuldades com realidades culturalmente
diversas ou especificamente relacionadas agrave mulher indiacutegena No mesmo sentido um
amplo estudo envolvendo221 meacutedicos e enfermeiros sobre o atendimento de
mulheres em situaccedilatildeo de violecircncia em Ribeiratildeo PretoSP tambeacutem natildeo teve
referecircncia a mulheres indiacutegenas(102) Obviamente esses achados podem ser
decorrentes unicamente de campos de pesquisa com baixa proporccedilatildeo da populaccedilatildeo
indiacutegena mas eacute liacutecito que levantem tambeacutem a suspeita do natildeo reconhecimento
pelas mulheres indiacutegenas da efetividade das redes oficiais de proteccedilatildeo ou da
existecircncia de barreiras simboacutelicas ou funcionais de acesso
Se confrontarmos os resultados da presente revisatildeo com o fato de que a
violecircncia contra a mulher tem sido considerada um problema de dimensotildees globais
(127) e no Brasil descrito como um problema prioritaacuterio para a sauacutede puacuteblica(128
129)e quepor isso mesmo passou a ganhar um relevante espaccedilo de discussatildeo no
campo cientiacutefico e na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas veremos claramente que a
negligecircncia cientiacutefica em relaccedilatildeo agrave violecircncia especiacutefica contra a mulher indiacutegena e
quanto aos aspectos culturais necessaacuterios para lidar com o problema natildeo
satildeoquestotildees emergentes mas estruturadas por uma produccedilatildeo colonial de saber
47
Chamamos de ldquocolonialidade do saberrdquo a forma caracteriacutesticada produccedilatildeo do
conhecimento hegemocircnico fortemente restringido por uma visatildeo de mundo
construiacuteda pela modernidade europeia a quallegitima o conhecimento vaacutelido a partir
de uma relaccedilatildeo de identidade de valores esteacuteticos poliacuteticos e morais com os
padrotildees coloniais dominantes e onde a identidade de raccedila eacute estruturante (130)
Nesse sentido a atitude colonial integrada agraves proacuteprias subjetividades de
gestores profissionais de sauacutede e pesquisadores provoca uma invisibilidade das
mulheres indiacutegenas o que afeta tanto o niacutevel da praacutetica assistencial nos planos
juriacutedicose de sauacutede quanto o proacuteprio interesse cientiacutefico em abordar o problemaAs
mulheres indiacutegenas satildeo assimsubtraiacutedas do direito de falar de suas proacuteprias
histoacuterias em favor de discursos hegemocircnicos mesmo quando tratamos de discursos
que lutam contra outras formas de dominaccedilatildeo Hagreaves (10) demonstra bem isso
ao tratar das narrativas nos discursos feministas antiviolecircncia
O mais grave eacute que esse silecircncio e invisibilidade ocorrem de forma
concomitante ao contiacutenuo processo de transformaccedilatildeo dos atributos e tarefas
culturais de gecircnero em funccedilatildeo do contato com natildeo indiacutegenas que iratildeo
redefinirprestiacutegio e reconhecimento de homens e mulheres na comunidade fator que
por si soacute eacute potencialmente conflitivo (14)Surgemtambeacutem novos padrotildees
comportamentais incluindo em especial o alcoolismo identificado pelas mulheres
indiacutegenas como o principal fator potencializador da violecircncia de gecircnero
Tovar-Restrepo e Irazaacutebal (15) demonstram que a situaccedilatildeo comeccedila a
envolver todo o espaccedilo de convivecircncia da mulher indiacutegena No acircmbito domeacutestico
satildeo sujeitas da mudanccedila de comportamento dos homens para o agir masculino
ocidental e violento e fora de suas casas satildeo vitimadas pela violecircncia consequente
da relaccedilatildeo social com os natildeo iacutendios e o mais grave eacute que em muitas situaccedilotildees a
violecircncia parte de atores das redes oferecidas pelo Estado que deveriam oferecer
proteccedilatildeo e apoio a exemplode militares em torno de suas terras Kuokkane (9)
afirma que em todo mundo a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido agravada
pelo fenocircmeno da globalizaccedilatildeo que passa a influenciar a economia e as formas de
vida cotidianas atacando-as em sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo
Percebe-se pela revisatildeo apresentada neste trabalho a existecircncia de uma
intencionalidade cientiacutefica de estudos e registros que natildeo satildeo representadas pela
neutralidade da ciecircncia O que se percebe eacute o direcionamento de estudos alinhados
48
a uma colonialidade de saber Ou seja o problema da violecircncia de gecircnero contra a
mulher indiacutegena existe vem sendo denunciado mas natildeo estaacute descrito nos estudos
cientiacuteficos como objetivos principaisA prevalecircncia dos estudos aqui apresentados
satildeo no sentido de analisar as formas de Articulaccedilatildeo dos serviccedilos e planejamento da
atenccedilatildeo entretanto a partir da perspectiva do Estado e natildeo do sujeito o que
representa a imposiccedilatildeo de produccedilatildeo de conhecimento direcionada ao centro e por
isso natildeo neutra desconsiderando a subjetividade do sujeito e o torna objeto de
anaacutelise
Se por um lado a violecircncia contra a mulher indiacutegena tem sido negligenciada
pela produccedilatildeo cientiacutefica nacional a participaccedilatildeo de movimentos sociais e
associaccedilotildees civis de mulheres indiacutegenas e a atuaccedilatildeo de alguns antropoacutelogos e
sanitaristas sensiacuteveis agrave questatildeo conseguiram pautar o problema em algumas
poliacuteticas puacuteblicas e programas governamentais
O Quadro 3sintetiza os resultados da revisatildeo das principais poliacuteticas e
programas relacionados
Quadro 3 Poliacuteticas e Programas relacionados agrave sauacutede indiacutegena sauacutede da mulher e violecircncia de gecircnero quanto agravepresenccedila ou natildeo de abordagem especiacutefica da
violecircncia de gecircnero no contexto dos povos indiacutegenas
Tiacutetulo do documento
Ano Instituiccedilatildeo
Presenccedila de abordagem agrave questatildeo de violecircncia de
gecircnero no contexto indiacutegena
Portaria nordm 254 Aprova a Poliacutetica
Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos
Povos Indiacutegenas (PNASPI)
2002 Ministeacuterio da Sauacutede
Diretriz 4 ldquoacompanhamento monitoramento e desenvolvimento de accedilotildees que venham coibir agravos de violecircncia (suiciacutedios agressotildees e homiciacutedios alcoolismo) em decorrecircncia da precariedade dascondiccedilotildees de vida e da expropriaccedilatildeo e intrusatildeo das terras indiacutegenasrdquo (p19) Natildeo se refere especificamente a accedilotildees ou mecanismos dirigidos agrave proteccedilatildeo contra a violecircncia de gecircnero
Princiacutepios e Diretrizes da
Poliacutetica Nacional de
2004 Ministeacuterio da Sauacutede
Faz menccedilatildeo ao contexto do etnodesenvolvimento das sociedades indiacutegenas e da atenccedilatildeo integral agrave mulher
49
Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da
Mulher (PNASM)
indiacutegena (p 53)Natildeo aborda especificamente a violecircncia de gecircnero neste contexto
Pacto Nacional de
enfrentamento agrave Violecircncia Contra as Mulheres
(PNEVCM)
2011
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
ldquoReconhecimento das diversidades culturais sociais e geograacuteficas de forma a tornar a Poliacutetica Nacional universal poreacutem especiacutefica agraves diferentes mulheres como por exemplo []as indiacutegenas []rdquo (p 24) ldquoPara um amplo atendimento e garantia de acesso a todas as mulheres []mulheres negras e indiacutegenas eacute fundamental a ampliaccedilatildeo da rede []rdquo (p 32)
Plano Nacional de Poliacuteticas
para as Mulheres (PNPM)
2013
Secretaria de Poliacutetica para Mulheres da
Presidecircncia da Repuacuteblica (SPMPR)
O Plano traz em seu capiacutetulo 7 - instituiccedilatildeo de foacuteruns de Mulheres Indiacutegenas para a definiccedilatildeo de estrateacutegias de enfrentamento agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena (p 71)
50
Como podemos notar a maior e mais importante poliacutetica direcionada agrave
sauacutede indiacutegena(131) que cria um subsistema especiacutefico de sauacutede e enuncia
diretrizes para a organizaccedilatildeo da atenccedilatildeo em todo o territoacuterio brasileiro apesar de
proporestrateacutegiaspara enfrentamento das praacuteticas de violecircncia em geral natildeo cita a
violecircncia de gecircnero como uma situaccedilatildeo especiacutefica que demande accedilotildees tambeacutem
especiacuteficas O mesmo ocorre com a PNASM(132) que embora chame a atenccedilatildeo agraves
particularidades para a atenccedilatildeo em sauacutede das mulheres indiacutegenas e de outros
grupos de mulheres com identidades culturais diversas e reconheccedila a escassez de
dados epidemioloacutegicos produzidos sobre o grupo natildeo se remete especificamente agrave
violecircncia de gecircnero em nenhuma parte de seu texto
Cabe observar que embora o Estado detenha poliacuteticas para as situaccedilotildees
apresentadas e ainda que os estudos predominantes nas regiotildees estejam
relacionados com o agir do Estado qual seja a articulaccedilatildeo das redes de serviccedilo e a
percepccedilatildeo dos profissionais na vida praacutetica esse empenho natildeo parece garantir
praticas de respeito agrave diversidade cultural
A PNEVCM (133) de 2011 eacute o primeiro documento entre os estudados que
se dirige diretamente agrave violecircncia contra a mulher indiacutegena e o faz por meio de eixos
que apontam para a necessidade de produccedilatildeo de dados que refletiam a extensatildeo e
natureza do problema e para a ampliaccedilatildeo e o fortalecimento da rede de serviccedilospara
mulheres em situaccedilatildeo de violecircnciavisando abarcar as mulheres indiacutegenas mas do
ponto de vista da avaliaccedilatildeo das accedilotildees iniciadas em 2007 quando da primeira versatildeo
do Plano relata apenas a capacitaccedilatildeo dos atendentes da Central Telefocircnica de
Atendimento agrave Mulher para lidarcom as especificidades das mulheres indiacutegenas o
que parece muito pouco diante da gravidade do problema
Jaacute a PNPM (134) traz entre suas metas uma proposiccedilatildeo que reputamos
como a estrateacutegia mais interessante entre as que estatildeo descritas no conjunto de
enunciados das poliacuteticas e programas estudados a instituiccedilatildeo de foacuteruns de
mulheres indiacutegenas como forma de desenvolver estrateacutegias culturalmente
adequadas ao enfrentamento da violecircncia de gecircnero
Pode-se concluir pela possibilidade de que a publicaccedilatildeo em 2006 da Lei
Maria da Penha e o consequente aumento da discussatildeo do problema pela
sociedade como um todo influencioua abordagem por poliacuteticas e programas uma
51
vez que satildeo exatamente as poliacuteticas e programas anteriores agrave lei que satildeo
completamente omissos em relaccedilatildeo agrave questatildeo agrave violecircncia de gecircnero enquanto um
problema de sauacutede puacuteblica
De forma geral a violecircncia contra a mulher indiacutegena nas poliacuteticas
institucionais quando citadas encontram-se comprimidas em outras pautas Natildeo satildeo
propostas accedilotildees efetivas capazes de alcanccedilar nessas mulheres como
reestruturaccedilatildeo de redes oferecidas pelo estado ou apoio a processos de construccedilatildeo
de mecanismos intracomunitaacuterios de vigilacircncia e assistecircncia Assim se de um lado o
Estado se apropria e comeccedila a abrir espaccedilo para o discurso da interculturalidade em
seus documentos oficiais por outro lado continua a agir poliacutetica econocircmica e
socialmente em favor dos interesses coloniais que destroem as formas de vida
cotidianas dos diversos povos
Segato (135)chama a atenccedilatildeo para uma ldquopropensatildeo generalizadardquo ao
engano provocado pelo discurso colonial universalizante da modernidade o qual
nos conduz a uma crenccedila acriacutetica no Estado suas instituiccedilotildees e leis Ela se refere a
uma ldquofrente estatal-empresarial-midiaacutetica-cristatilde sempre colonialrdquo que continua
avanccedilando sobre as comunidades indiacutegenas na Ameacuterica Latina o que faz com que
os esforccedilos do Estado e seus agentes para elaboraccedilatildeo de leis poliacuteticas puacuteblicas e
outras accedilotildees de proteccedilatildeo estejam sempre a reboque do proacuteprio processo de
destruiccedilatildeo que esse mesmo Estado opera sobre essas comunidades Nesse
sentidoesta autora aposta na formaccedilatildeo de mecanismos intracomunitaacuterios de
proteccedilatildeo baseados em valores intriacutensecos pertencentes ao ldquomundo-aldeiardquoque eacute
como ela define as relaccedilotildees sociais intriacutensecas dos povos indiacutegenas antes da
invasatildeo colonial que se estruturou no percurso histoacuterico entre a dominaccedilatildeo
ultramarina europeia e a constituiccedilatildeo republicana dos chamados Estados ditos
modernos na Ameacuterica Latina dentro do qual a proacutepria tomada dos corpos das
mulheres constituiu um elemento estrateacutegico da dominaccedilatildeo e eacute responsaacutevel por
grande parte das violecircncias que hoje elas vivenciam
Estudos internacionais envolvendo paiacuteses com parcelas significativas de
populaccedilatildeo indiacutegena como Canadaacute e Austraacutelia tambeacutem tecircm demonstrado a relaccedilatildeo
estreita entre os processos de dominaccedilatildeo colonial da ordem capitalista global e a
destruiccedilatildeo das relaccedilotildees e papeacuteis sociais tradicionais de gecircnero Kuokkanen (9)
exemplifica a migraccedilatildeo nesses dois paiacuteses de mulheres de seus territoacuterios para
52
zonas urbanas em busca de sobrevivecircncia o que as tornam sujeitas ao encontro
com o comeacutercio de sexo Essa autora argumenta que a violecircncia de gecircnero que natildeo
parecia se constituir em um problema para os povos autoacutectones antes da
colonizaccedilatildeo sofre uma profunda modificaccedilatildeo a ponto de hoje no Canadaacute as
mulheres iacutendias terem cerca de 35 mais chances de serem vitimas de algum tipo de
violecircncia que as mulheres natildeo iacutendias e na Austraacutelia esta chance chega a ser 45
vezesmaior
O estudo de Burnette(8) sobre o serviccedilo formal de atendimento agraves mulheres
viacutetimas de violecircncia nos Estados Unidos mostrou que os agentes do Estado em
exerciacutecio natildeo compreendiam as experiecircncias da violecircncia nem as condiccedilotildees
histoacutericas de opressatildeo e discriminaccedilatildeo vivenciadas pelas mulheres indiacutegenas e
apontou como os principais problemas do sistema a demora na resposta agraves
denuncias de violecircncias a falta de confidencialidade e uma tendecircncia agrave proteccedilatildeo
aos perpetradores das praacuteticas de violecircncia Segundo essa autora a falta de amparo
jurisdicional tem levado as mulheres iacutendias a buscarem outros meios de amparo fora
do sistema formal de proteccedilatildeo principalmente por entenderem que suas relaccedilotildees
organizacionais satildeo baseadas em comunidade onde ldquoeveryone is related to
everybodyrdquo Zimermaan Saraguza e Viana (14) tambeacutem indicaram ao estudar
relatos de mulheres guarani e kaiowaacuteem Mato Grosso do Sul a importacircncia das
relaccedilotildees de parentesco e articulaccedilotildees comunitaacuterias na resoluccedilatildeo de conflitos
internos
O aparato juriacutedico-institucional ainda natildeo expressa sensibilidade ao universo
particularizado da diversidade cultural e das mulheres indiacutegenas persistindo em
tratar pela reacutegua da universalizaccedilatildeo O fato eacute que muitos desses meios de controle
do Estado tendem inclusive a naturalizar a violecircncia contra a mulher indiacutegena como
um elemento equivocadamente considerado enquanto caracteriacutestica cultural Do
outro lado agentes dos poderes judiciaacuterios podem simplesmente ignorar o
problema como demonstrou o estudo de Silveira e Nardi (75) que entrevistou juiacutezes
do Poder Judiciaacuterio de Porto Alegre
Essa indisposiccedilatildeo agrave solidariedade e visibilidade do problema pelas redes de
proteccedilatildeo e apoio agraves mulheres viacutetimas de violecircncia influencia as relaccedilotildees destas com
as mulheres indiacutegenas as quais acabam natildeo as reconhecendo enquanto espaccedilos
legiacutetimos de acolhimento aos seus problemas A ausecircncia de registros e
53
informaccedilotildees referentes a essas mulheres seja nas notificaccedilotildees dos serviccedilos de
sauacutede seja nas ocorrecircncias policiais como apresentado por alguns dos artigos que
compuseram a presente revisatildeo sugerem esse distanciamento o qual tambeacutem foi
reconhecido pelo proacuteprio plano nacional de enfrentamento agrave violecircncia contra as
mulheres
Essa realidade de pouca visibilidade cientiacutefica poliacutetica e institucional da
violecircncia contra a mulher indiacutegena no Brasil convive com o clamor dessas mesmas
mulheres por accedilotildees estrateacutegicas do Estado para ajudaacute-las a enfrentar a violecircncia por
elas vivenciada Elas tecircm demonstrado uma compreensatildeo das agressotildees infringidas
por seus parceiros como em grande parte induzidas pelos males do mundo
natildeoiacutendio como o alcoolismo as drogas e a convivecircncia deles com a cultura violenta
da sociedade comumEm outro relato de resultados de grupos de discussatildeo em
Mato Grosso as mulheres indiacutegenas afirmaram que o aacutelcool tem sido o grande
responsaacutevel pelas agressotildees nas aldeiaspoisldquoo homem becircbado eacute capaz de bater
em qualquer mulher que ver pela frente seja sua matildee seja sua mulher ou filhardquo(12)
Segundo Segato(136) o papel do Estado deveria ser o de restituir e garantir
direitos eacutetnicos e comunitaacuterios devendo oportunizar aos povos a restauraccedilatildeo de
seus laccedilos perdidos em decorrecircncia da colonizaccedilatildeo Natildeo se trata da ausecircncia do
Estado e sim construccedilatildeo de um Estado Pluralista que ldquona pessoa dos seus agentes
teraacute de ser o de estar disponiacutevel para supervisionar mediar e interceder com o fim
uacutenico de garantir que o processo interno de deliberaccedilatildeo possa ocorrer livremente
sem abusos por parte dos mais poderosos no interior da sociedaderdquo
Segato aposta na capacidade de as mulheres indiacutegenas administrarem sua
soberania sexual e reprodutiva e a constituiccedilatildeo de suas relaccedilotildees de gecircnero
tornando-se a principais propositoras dos caminhos de proteccedilatildeo Para isso faz-se
necessaacuterio suspender os paracircmetrospor meio dos quais o Estado estabelece as
normativas positivas de uma culturaEacute nesse sentido que o apoio agrave realizaccedilatildeo de
foacuteruns de mulheres indiacutegenas como proposto no PNPM de 2013 parece constituir a
proposta que mais se aproxima de uma construccedilatildeo descolonial de soluccedilatildeo ao
problema Entretanto fica clara a necessidade de enfrentar a situaccedilatildeo de
negligecircncia cientiacutefica sobre o problema com editais especiacuteficos para aproduccedilatildeo de
estudos etnograacuteficos envolvendo especificamente o problema com o intuito de
subsidiar tomadas de decisotildees que envolvam incontornavelmente as interaccedilotildees
54
entre leis poliacuteticas e serviccedilos do Estado de proteccedilatildeo agrave violecircncia de gecircnerocom a
diversidade de contextos culturais de nossos povos autoacutectones
55
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A crueldade e o desamparo agraves mulheres viacutetimas de violecircncia aumentam
conforme avanccedila a concepccedilatildeo de Estado moderno e o livre mercado ateacute porque os
protagonistas nessas estruturas satildeo representados pelo poder masculino e pelos
interesses de hierarquizaccedilatildeo decorrentes do projeto de dominaccedilatildeo
Ao avaliar o panorama de negligecircncia de estudos cientiacuteficos e da
invisibilidade nos sistemas poliacuteticos-institucionais comprova-se uma grande lacuna
a ser preenchida com novos estudos sobre violecircncia de gecircnero relacionada agraves
mulheres indiacutegenas e novas propostas para mecanismos de formulaccedilatildeo de soluccedilotildees
culturalmente mediadas
A discrepacircncia entre as regiotildees de realizaccedilatildeo dos estudos que abordaram as
questotildees interculturais e indiacutegenas e os estados com maiores populaccedilotildees indiacutegenas
eacute reflexo da proacutepria assimetria de desenvolvimento cientiacutefico das diversas regiotildees do
paiacutes o que pode em certa medida ser interpretada como fenocircmenos coloniais
internos em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de saber
O presente trabalho apontou para a necessidade de construccedilotildees descoloniais
de caminhos plurais tanto para o campo cientiacutefico quanto para as poliacuteticas puacuteblicas
leis e redes de proteccedilatildeo institucionais o que implica tambeacutem uma dimensatildeo eacutetica da
abertura de espaccedilos de diaacutelogos interculturais com olhar transformador sobre as
estruturas e as relaccedilotildees sociais de gecircnero
Obviamente a presente revisatildeo tem limitaccedilotildees uma vez que se restringiu a
apenas duas bases de dados ainda que sejam as que indexam os principais
perioacutedicos nacionais e latino-americanosno campo da sauacutede o que torna necessaacuteria
a ampliaccedilatildeo futura do presente estudopara outras bases nacionais e internacionais
Ainda que se considerem esses limites natildeo deixa de ser significativa a enorme
diferenccedila entre os 570 artigos iniciais encontrados com descritores restritos agrave
violecircncia de gecircnero em geral e um uacutenico artigo quando esses descritores foram
cruzados com aqueles referentes aos povos indiacutegenas A aridez da produccedilatildeo
especiacutefica eacute espantosa
A bioeacutetica eacute um campo de anaacutelise e manifestaccedilotildees criacuteticas relacionadas ao
fenocircmeno da vida nos espaccedilos de discussatildeo tem sido elemento de diaacutelogo
56
aprofundado o respeito agrave diversidade cultural e ao pluralismo eacutetico por meio da
aceitaccedilatildeo da existecircncia de numerosos grupos eacutetnicos raciais religiosos ou culturais
distintos dentro de uma unidade social organizaccedilatildeo ou populaccedilatildeo
Com efeito este solo feacutertil permite a concretizaccedilatildeo de proposiccedilatildeo que
desnudem essa invisibilidade cientiacutefica e poliacutetica da violecircncia de gecircnero contra
mulheres indiacutegenas tal como a inserccedilatildeo das discussotildees nas graduaccedilotildees e poacutes-
graduaccedilotildees tanto na bioeacutetica como em sauacutede puacuteblica desenvolvimento de editais
para estudos etnograacuteficos e de mobilizaccedilatildeo da sociedade ao combate produccedilatildeo de
materiais de conscientizaccedilatildeo sobre o problema que se debrucem sobre a violecircncia
de gecircnero em mulheres indiacutegenas ampliaccedilatildeo de estudos em boletins de ocorrecircncia
focando os registros de mulheres indiacutegenas e especialmente a promoccedilatildeo de
espaccedilos e foacuteruns de mulheres para pensar accedilotildees e redes de saberes e de proteccedilatildeo
intracomunitaacuterias adequadas culturalmente para elas
57
8 REFEREcircNCIAS
1 Waiselfisz JJ Mapa da violecircncia 2015 homiciacutedios de mulheres no Brasil Brasiacutelia Flacso 2015
2 Compromisso e Atitude Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha Dados e estatiacutesticas sobre a violecircncia contra as mulheres Campanha Disponiacutevel emhttpwwwcompromissoeatitudeorgbrdados-e-estatisticas-sobre-violencia-contra-as-mulheres
3 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres
Balanccedilo 2014 ndash Ligue 180 ndash Central de Atendimento agrave Mulher Brasiacutelia 2014
4 Garcia LP Freitas LRS Silva GDM Houmlfelmann AD Violecircncia contra a mulher feminiciacutedios no Brasil Brasiacutelia Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2013
5 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013
6 Lorenzo CFG Vulnerabilidade em Sauacutede Coletiva implicaccedilotildees para as poliacuteticas puacuteblicas Revista Brasileira de Bioeacutetica vol 2 num 3 2006
7 Segato RL El sexo y la norma frente estatal patriarcado desposesioacuten
colonialidad Estudos Feministas 2014 maio-ago 22(2) 593-616
8 Burnette CE From the ground up indigenous womenrsquos after violence experiences with the formal service system in the United States British Journal of Social Work2015 45 1526-45
9 Kuokkanen R Globalization as racialized sexualized violence the case of
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131 Ministeacuterio da Sauacutede (BR) Fundaccedilatildeo Nacional de Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede dos Povos Indiacutegenas 2 ed Brasiacutelia Ministeacuterio da Sauacutede 2002 40 p
132 Ministeacuterio da Sauacutede (BR) Secretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede
Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher princiacutepios e diretrizes Brasiacutelia Ministeacuterio da Sauacutede 2004 82 p
133 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
Mulheres Poliacutetica Nacional de Enfrentamento agrave Violecircncia contra as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2011 70 p
134 Presidecircncia da Repuacuteblica (BR) Secretaria de Poliacuteticas para as
MulheresPlano Nacional de Poliacutetica para as Mulheres Brasiacutelia Secretaria de Poliacuteticas para as Mulheres 2013 114 p
135 Segato RL Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres
Rev Soc Estado 2014 maio-ago 29(2)
70
136 Segato RL Que cada povo teccedila os fios da sua histoacuteria o pluralismo juriacutedico em diaacutelogo didaacutetico com legisladores Revista de Direito da Universidade de Brasiacutelia 2014 jan-jun1(1)
Anexo I
PLANILHA COM AS INFORMACcedilOtildeES DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA
ANAacuteLISE