bioÉtica no sÉculo xxi - universidade do minho · 2018. 9. 10. · entre estes, o direito à...

28
1 BIOÉTICA NO SÉCULO XXI ANA FIGUEIREDO SOL & STEVEN S. GOUVEIA

Upload: others

Post on 21-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

1

BIOÉTICA

NO

SÉCULO XXI

ANA FIGUEIREDO SOL

&

STEVEN S. GOUVEIA

Page 2: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

287

14. RETRATOS BIOGENÉTICOS NO COMBATE

À CRIMINALIDADE:

DESAFIO ÉTICOS E SOCIAIS

Filipa Queirós 1

Resumo: Ao longo das últimas décadas, as tecnologias de identificação individual por

perfis genéticos têm conhecido ampla expansão no campo da justiça criminal. A

inferência fenotípica (FDP) constitui uma tecnologia relativamente recente que

ambiciona, a partir de materiais biológicos recolhidos em cenas de crime, prever a

ancestralidade geográfica, aparência e características físicas de suspeitos criminais.

Contrariamente a outras tecnologias forenses, a inferência fenotípica não permite

a identificação do indivíduo específico a quem a amostra de DNA pertence, mas antes a

previsão de um conjunto de características biogenéticas associadas a determinados

grupos populacionais. Este processo tem suscitado controvérsias bioéticas relacionadas

com o elevado potencial de estigmatização e criminalização de determinadas minorias

étnicas e grupos populacionais vulneráveis, podendo conduzir a processos que

consolidam categorias de suspeição existentes. Salientam-se, ainda, os dilemas éticos

relacionados com as potenciais ameaças ao direito à autoinformação e autodeterminação

identitária. Por fim, esta tecnologia têm sido alvo de estratégias de comercialização que,

pelo seu poder persuasivo, agudizam preocupações morais e éticas relacionadas com as

consequências imprevisíveis de crenças na infalibilidade de testes genéticos na previsão

de características biogenéticas de suspeitos criminais.

A partir do mapeamento das principais controvérsias associadas à FDP,

procuramos contribuir para o debate em torno de dilemas presentes e futuros associados

a esta tecnologia. Através da apresentação de um caso criminal ocorrido recentemente

na Alemanha, o presente artigo procura refletir acerca das consequências para a

cidadania e sobre os desafios éticos e sociais que se levantam nos cruzamentos da

tecnologia, genética e cidadania.

Palavras-chave: Inferência fenotípica, desafios éticos, desafios sociais, discriminação,

estigmatização

1 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Instituto de Ciências Sociais da Universidade

do Minho.

Page 3: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

288

Introdução

Crescentes preocupações em torno da segurança e controlo do crime, em

particular com a ameaça do terrorismo e do crime organizado, têm dado origem a

grandes investimentos, por partes dos governos, em sofisticadas tecnologias de

vigilância e bio informação que permitam menorizar os riscos das chamadas ‘ameaças

globais’, identificando e controlando determinadas populações e indivíduos ‘suspeitos’,

ao mesmo tempo que procuram prever e quantificar o perigo. Este investimento em

dispositivos tecnológicos tem estimulado a recolha de dados e a construção de sistemas

de informação organizados e sistemáticos, criando uma cultura de controlo do crime

assente num regime intensivo de regulação, inspeção e controlo social (Owen, 2007).

A inferência fenotípica começou a ser desenvolvida no começo dos anos 2000

(Kayser, 2015), como uma técnica forense que procura prever determinadas

características de aparência física de suspeitos criminais a partir de materiais biológicos

deixado em cenas de crime, ou junto de indivíduos. Em termos simples pode dizer-se

que a FDP visa a produção de uma cara a partir de amostras biológicas como a saliva,

sangue ou sémen.

Na medida em que ambiciona prever a ancestralidade geográfica e características

de aparência física de suspeitos criminais, a FDP tem vindo a ser apresentada enquanto

uma ferramenta bastante promissora. Em primeiro lugar, porque permite uma melhoria

dos mecanismos existentes para a identificação de pessoas desaparecidas. Em segundo

lugar, pelas pistas que pode revelar no âmbito de investigações criminais relativamente

à identificação de suspeitos criminais cuja identidade a polícia desconhece, e/ou em

situações em que não existem testemunhas oculares que permitam indicar pistas de

relevo para a condução da investigação criminal (Claes; Hill; Shriver, 2014; Kayser,

2015; Kayser; Schneider, 2009, 2012) e/ou no âmbito de casos arquivados (Maclean;

Lamparello, 2014; Williams; Wienroth, 2014a). Por fim, na medida em que poderá dar

resposta a uma das grandes ambições da genética forense, a possibilidade de obter

informações sobre os suspeitos mesmo quando a sua informação genética não se

encontra inscrita em nenhum dos registos normalmente utilizados para fins de

investigação criminal (Wienroth; Morling; Williams, 2014, p. 98). Pelas potencialidades

Page 4: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

289

várias que lhe têm vindo a ser atribuídas, esta tecnologia tem suscitado interesses que

lhe têm conferido aplicações que extravasam o campo da investigação criminal2.

A Tecnologia de Inferência Fenotípica

Embora ainda não tenha sido ‘validada cientificamente’, isto é, considerada

cientificamente robusta para aplicação generalizada no âmbito de processos de

investigação criminal, a inferência fenotípica surge no discurso de vários geneticistas

forenses e investigadores criminais como uma tecnologia cujo futuro se adivinha

bastante promissor. Não obstante, uma revisão de literatura produzida por geneticistas

forenses sobre FDP permite observar que, apesar de apresentada por alguns enquanto

‘testemunha biológica’ (Kayser, 2015), o processo de estandardização e validação

científica desta tecnologia encontra-se envolto em controvérsias técnicas que emergem,

desde logo, de diferentes entendimentos e graus de certeza atribuídos em relação ao tipo

de previsões que a esta pode realizar. Por um lado, é possível afirmar que já foi

alcançado consenso científico no que diz respeito ao grau de certeza atribuído à

inferência de características de pigmentação, tais como a cor dos olhos, cor do cabelo ou

cor da pele (Kayser, 2015; Kayser; Schneider, 2009) e à previsão da ancestralidade

geográfica ou bio ancestralidade (Kayser; De Knijff, 2011). Por outro lado, apesar de

vários estudos realizados até ao momento, existe ainda um conjunto de características

de aparência física para as quais ainda não foi alcançado consenso científico: o

peso/estrutura corporal (Hendriks et al.,2014), a perda de cabelo/calvície (Richards et

al., 2008), a idade (Weidner et al.,2014), a morfologia do cabelo (Medland et al., 2009)

e morfologia da cara/variação nas formas da face (Claes, 2015; Claes; Hill; Shriver,

2014; Kayser, 2015).

Apesar da ambição em torno do futuro desta tecnologia, em particular no que diz

respeito ao potencial para gerar um retrato (biológico), o seu produto final não consegue

incorporar, nem prever, a influência de fatores ambientais que de igual modo exercem

2 No ano de 2015, em Hong Kong, uma campanha de sensibilização para o problema do lixo nas ruas

utilizou a tecnologia de inferência fenotípica para (re)construir as imagens dos rostos daqueles a quem o

lixo abandonado nas ruas pertencera - “The face of Litter” (http://www.ogilvy.com/forceforgood/the-

face-of-litter/).

Em 2012/2013 Heather Dewey-Hagborg, desenvolvou um projeto artístico chamado “Stranger Visions”

(http://deweyhagborg.com/projects/stranger-visions) no qual recriou retratos esculturais de vários sujeitos

a partir da análise de vestígios biológicos encontrados em espaços públicos, usando a tecnologia de

inferência fenotípica.

Page 5: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

290

influência na aparência física dos corpos. Por outro lado, tendo em conta o atual nível

de desenvolvimento desta técnica, segundo estudos apresentados (Kayser, 2015), as

margens de erro são ainda elevadas. No que diz respeito às margens de erro e graus de

certeza atribuídos relativamente a cada característica, importa mencionar ainda que os

resultados apresentados, sob a forma de probabilidade, não sofrem os devidos ajustes

face à prevalência dessa mesma característica num contexto populacional mais amplo

(Deutsches Ärzteblatt International, 2017; Lossau, 2017). Desta forma, facilmente se

induzem em erro as possíveis interpretações dos resultados, já que da adequação das

características à prevalência da população, as percentagens apresentadas podem sofrer

consideráveis alterações. A título explicativo:

Num determinado local vivem 1000 pessoas de pele clara e 20 de pele

escura. Após a ocorrência de um homicídio, a análise do DNA dos suspeitos

sugere que estes têm pele escura. A probabilidade atribuída ao grau de

certeza desta informação é de, no máximo, 98%. No entanto, uma vez que os

2% das 1000 pessoas com pele clara ainda constituem um grupo

relativamente grande de "suspeitos" – as pessoas de pele escura-, a

probabilidade de o suspeito ser de pele escura é de 50:503 (Lossau, 2017).

A utilização de marcadores informativos de ancestralidade (AIM) para localizar a

ascendência biogeográfica dos indivíduos constitui uma ferramenta cujo potencial

poderá permitir uma maior precisão dos registos criminais. Uma revisão da literatura

sobre esta ferramenta permite sinalizar potencialidades ao nível da sua utilização em

casos criminais, uma vez que da análise dos vestígios biológicos dos suspeitos deixados

na cena de crime é possível sinalizar a sua ascendência biogeográfica. Não obstante, é

também possível mobilizar esta ferramenta em situações de dúvida relativamente à

origem de determinada pessoa. Neste caso, a tecnologia de bio ancestralidade poderá ser

utilizada pelas autoridades como forma de comparar a informação declarada pelas

pessoa com aquela que a análise genética prediz (Kayser, 2015). Esta é, no entanto, uma

postura que tem como base uma noção muito estreita de privacidade podendo, inclusive,

comprometer o direito à autodeterminação informacional pela priorização da

informação genética sobre a identificação social (Heinemann et al., 2015; Heinemann;

Lemke, 2014).

Para além das dimensões mencionadas, à FDP acrescem ainda controvérsias

3 Tradução livre

Page 6: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

291

relacionadas com a até então classificação utilizada para distinguir e diferenciar zonas

do DNA. Ao analisar as chamadas áreas codificantes do DNA, compostas por

informações de carácter individual, a FDP corrompe a distinção entre DNA codificante

e DNA não codificante, ainda presente na regulação da legislação de alguns países da

UE. Não tendo ainda sido desvendado todo o potencial informativo, existem receios

acerca dos usos futuros sobre tais dados, quer por parte do Estado, quer por parte de

entidades privadas (Machado e Silva, 2008; Williams e Johnson, 2004). Por sua vez, os

perfis de DNA presentes nas bases de dados forenses são construídos com base na

análise de DNA não-codificante (junk DNA), isto é, regiões do genoma humano onde se

considera não existir informação sensível acerca dos indivíduos. Esta é, por vezes,

atribuída como sendo uma das razões para a grande aceitação relativamente da

utilização de perfis enquanto instrumento de combate e controlo da criminalidade

(M’Charek, 2008; Machado; Prainsack, 2014; Machado; Silva; Santos, 2008).

Tal como é possível observar, o desenvolvimento de tecnologias de DNA

constituiu-se num campo de conhecimento onde coexiste tanto um fascínio em

desvendar todo o seu potencial, como um medo no que diz respeito aos seus usos

(Williams e Johnson, 2004). Nas palavras de Williams e Johnson “há uma tensão

essencial que compõe este campo discursivo e que deriva entre o fascínio e

encantamento acerca das capacidades do DNA para identificar autores de crimes e um

pavor acerca da sua capacidade de destruição das liberdades civis e direitos humanos4”

(idem, p. 208).

Por outro lado, a ausência, na maioria dos países da União Europeia, de uma

regulação legal clara relativamente à utilização de FDP faz com que, sempre que a sua

utilização seja ponderada, ou simplesmente debatida, emerjam controvérsias em torno

do dilema do bem-comum versus direitos individuais (Heinemann; Lemke; Prainsack,

2012; Toom et al., 2016). No âmbito destas, por vezes é necessário reforçar “que,

embora o objetivo seja encontrar o "assassino", durante uma investigação estamos a

lidar com um suspeito cujos direitos também constituem os alicerces de nossas

sociedades democráticas5” (Toom et al., 2016). Entre estes, o direito à privacidade.

Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

privacidade, que confira aos indivíduos e aos grupos auto liberdade para “determinar

quando e em que circunstâncias aceitam que as suas informações sejam comunicada a

4 Tradução livre5 Tradução livre

Page 7: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

292

outros6” (Westin, 1967, p. 7). No que diz respeito às características físicas visíveis

externamente (EVC), debate-se o seu carácter privado na medida em que, segundo

alguns geneticistas, estas não podem ser consideradas informações/dados privados.

“Quando se trata de EVC’s as questões privadas, incluindo o direito de não saber, não

se aplicam (...) porque os traços de aparência não são conhecidos apenas pela própria

pessoa, mas por todos aqueles que já a viram” (Kayser, 2015). Por outro lado, há

autores que consideram que os debates em torno da privacidade relativamente a

vestígios deixados por uma pessoa desconhecida num espaço público não fazem sentido

se a pessoa não for identificada (idem). No entanto, a privacidade desta pessoa é

desrespeitada a partir do momento em que a sua informação biológica, à luz da

tecnologia de inferência fenotípica, se transforma em informação pessoal e é decifrada,

permitindo a sua identificação.

Enquanto recurso no âmbito de processos de investigação criminal, a inferência

fenotípica, pelas características mencionadas anteriormente, tem sido apresentada como

uma “testemunha biológica” (Kayser, 2015) pela sua capacidade não só em reduzir a

subjetividade e fontes de incerteza que normalmente se encontram associadas às

descrições de testemunhas oculares acerca dos suspeitos, mas também, porque permite,

à partida, obter informações idênticas. A este respeito, Toom et al. (2016, p. 4) alertam

não só para o facto de que, ao contrário da inferência fenotípica, o recurso a

testemunhas oculares já provou, repetidas vezes, o seu valor tanto no âmbito de

investigações criminais, como no campo judicial e que, ao contrário da primeira, o tipo

de informação que as últimas revelam encontra-se integrado no contexto em que o

crime decorreu permitindo, por isso, um outro tipo de compreensão acerca do mesmo

(2016, p. 4).

Não obstante, a existência de diferentes barreiras que impedem a utilização da

FDP, mesmo quando se considera que a inferência de algumas características já

transmite algum grau de certeza, desencadeia debates bastante interessantes também em

torno da ideia de “dano público”. Apesar da complexidade de que se reveste este debate,

a possibilidade, ainda que não regulada na maioria dos países da União Europeia, de

utilizar esta tecnologia para desvendar casos criminais originou, ainda recentemente na

Alemanha, cujo caso criminal será mais adiante exposto, intensos debates sobre a FDP,

possibilitando ainda um ambiente de discussão da alteração da legislação, com vista à

6 Tradução livre

Page 8: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

293

permissão do seu uso (Lipphardt et al., 2016).

A apropriação privada da biologia humana tornou-se num fenómeno que

envolve negócios de patentes e direitos de propriedade intelectual. O seu potencial foi

explorado, capitalizado e transformado em biocapital (Rajan, 2006). Desta forma, o

desenvolvimento da FDP tem vindo a ser realizado não apenas pela genética forense,

mas também por empresas privadas (Williams; Wienroth, 2014b) ligadas às

biotecnologias que, movidas pelo interesse comercial, começaram a desenvolver os seus

próprios produtos. No âmbito destas, a inovação tecnológica tem-se desenvolvido num

contexto de esperança, em torno das potencialidades e usos que as novas descobertas

tecno científicas podem alcançar (Rose & Novas, 2005, p. 5).

A promessa de uma face, resultado de uma análise realizada ao DNA, é uma

declaração muito forte que vem não só alimentar as dinâmicas de esperança existentes

(Brekke; Sirnes, 2011), mas também levantar grandes expectativas em torno dos seus

usos no futuro. Devido às consequências imprevisíveis relacionadas com a crença na

infalibilidade da ciência, o desenvolvimento da FDP no setor privado agudiza ainda

mais as preocupações morais e éticas relacionadas com as consequências imprevisíveis

de crenças na infalibilidade de testes genéticos na previsão de características

biogenéticas de suspeitos criminais.

Diferentes autores têm vindo a apontar para a necessidade de um

acompanhamento destas tecnologias, regulado e realizado com o contributo de

diferentes grupos de profissionais, no entrecruzamento dos seus diferentes saberes

(biólogos e geneticistas forenses, grupos de discussão ética, cientistas sociais, entre

outros) (Lipphardt et al., 2016; M’Charek, 2016; Toom et al., 2016). A articulação das

competências específicas de cada grupo permitirá uma análise mais ampla e informada

dos impactos associados à inferência fenotípica. Os seus resultados, ao criarem novas

conceções de identidade e modelos de identificação, afetam o mundo fora do laboratório

e do contexto de investigação criminal na medida em que contribuem para um aumento

da suspeição de atividades criminais sobre determinados grupos e minorias étnicas

(Toom et al., 2016, p. 5).

Quer sejam levantados derivado a determinados casos criminais mediáticos, quer

pelo surgimento no mercado privado de empresas que comercializam FDP, esta é uma

tecnologia que tem suscitado alguns debates em torno dos seus riscos e benefícios. No

que diz respeito aos primeiros, uma revisão da literatura produzida permite identificar:

a) preocupações relacionadas com potenciais ameaças ao direito da autoinformação e

Page 9: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

294

autodeterminação identitária; b) vulnerabilização de alguns direitos humanos

fundamentais, nomeadamente a privacidade, liberdade, moral, integridade física,

dignidade e presunção da inocência dos indivíduos (Prainsack; Aronson, 2015;

Williams; Johnson, 2004b; Williams; Wienroth, 2014c); c) risco de divulgação de

informações de caráter sensível, relacionadas com as características de aparência física

dos sujeitos cujo DNA está a ser analisado, ou sobre a existência de doenças ou traços

comportamentais (Williams e Johnson, 2004).

Em suma, se por um lado uma revisão da literatura produzida por geneticistas

evidencia um maior destaque atribuído às descobertas e potencialidades destas

tecnologias (Kayser, 2015; Kayser; Schneider, 2012), por outro as ciências sociais

tendem a apontar maioritariamente para as controvérsias éticas e sociais que a

tecnologia de inferência fenotípica pode dar origem, designadamente, o seu potencial de

estigmatização e criminalização de minorias étnicas e potenciais ameaças ao direito à

autoinformação e à autodeterminação identitária (Duster, 2008; M’Charek, 2013;

Ossorio, 2006; Toom et al., 2016; Vailly, 2016).

A (co)construção dos corpos criminais

As ferramentas tecnológicas da ciência forense caracterizam-se pelo uso de uma

linguagem digital própria (Jones, 2000), binária, adotada por se entender que facilita a

comunicação entre vários interlocutores e países, ultrapassando barreiras linguísticas

que possam existir em diferentes comunidades de prática (Star, 2010). Desde o

momento em que é recolhido um vestígio numa cena de crime, o DNA passa por vários

procedimentos que o tornam tanto num objeto de vigilância como numa fonte de

identificação (Lyon, 2001). Assim, os perfis de DNA constituem e representam o

resultado de um processo de purificação, objetificação e materialização de determinadas

características dos corpos dos indivíduos (Williams; Johnson, 2004a, p. 12) permitindo

a sua observação e mensuração enquanto código, fonte de informação direta,

estandardizada e objetiva (Aas, 2006, p. 154; Lynch et al., 2008) passível de recolher e

classificar (Van der ploeg, 2005a) informações sobre os indivíduos.

Na medida em que se integram num universo binário de produção de respostas

do tipo ‘verdadeiro’, ‘falso’, ‘positivo’ e ‘negativo’ (Aas, 2006), é importante manter

um olhar atento aos riscos inerentes aos diferentes usos e interpretações de tecnologias

Page 10: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

295

forenses como sejam a inferência fenotípica. O trabalho de Vailly (2016) sobre

ancestralidade genética em França relembra-nos da importância de olhar para a forma

como diferentes atores problematizam o uso da tecnologia de inferência fenotípica e

também para a forma como esta é expressa. Assim, apesar de se enquadrar num

universo de linguagem binária, como referido anteriormente, a abordagem destas

tecnologias é complexa, combinando a análise de estudos populacionais com a

estatística e o conhecimento da biologia (2016, p. 12). Desta forma, os resultados que

estas tecnologias permitem obter podem não ser homogéneos. Como observou Vailly

(2016, p. 13) no contexto de uma empresa privada, podem ser omitidas deliberada e

estrategicamente as estatísticas específicas de forma a que o resultado final seja

“apenas” uma probabilidade. Desta forma, a empresa pode acautelar o seu grau de

comprometimento com os resultados apresentados na medida em que apenas aponta

uma possibilidade entre várias. Como mencionado anteriormente, a utilização de uma

probabilidade para apresentação dos resultados na análise da tecnologia de inferência

fenotípica pode induzir a interpretações erradas na medida em que as probabilidades

apresentadas não sofrem alterações face à adequação à prevalência da população.

Pelos motivos enunciados, a utilização destas tecnologias deve acautelar uma

correta interpretação dos resultados obtidos na medida em que: 1) nem todos os atores

possuem o mesmo tipo de conhecimento especializado daqueles que trabalham com o

DNA em laboratórios; 2) as representações que existem acerca do DNA são

heterogéneas, podendo corresponder ao imaginário da ciência forense e do DNA

enquanto ‘máquina da verdade’ (Prainsack; Aronson, 2015, p. 10); 3) as probabilidades

que estes métodos expressam sob a forma de ‘resultado’ não são ajustadas face à

prevalência da população (Deutsches Ärzteblatt International, 2017); 4) os resultados

obtidos exercem impactos reais na vida dos indivíduos e grupos populacionais, podendo

acentuar situações de vulnerabilidade social existentes.

Ao conceber o corpo como fonte de verdade (Aas, 2006), a tecnologia de

inferência fenotípica confere agência ao novo corpo e imagens que dela emergem

(Machado, 2015; Prainsack; Toom, 2010; Sayes, 2014; Van der ploeg, 2003). Resulta

da ação de uma rede de interações com outros atores, humanos e não humanos –

objetos, tecnologias e instrumentos - que vai ganhando diferentes formas (Latour, 1996)

com os quais passamos a estar intrinsecamente conectados. A inferência fenotípica

constitui uma forma diferenciada de olhar os corpos, de os compreender e interpretar.

Olhar para o corpo a partir das suas lentes significa informatizá-lo (Van der ploeg,

Page 11: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

296

2005b), isto é, transformá-lo não só em diferentes padrões de informação e

representação estatística, mas também desprovê-lo do seu contexto e narrativa (Aas,

2004). Ao mesmo tempo que os desapropria do seu carácter, o mesmo processo atribui

aos corpos vigiados uma nova voz e narrativa, genéticas, que apenas comunicam num

sentido.

Apesar de existirem em estreita relação e em construção com o social, as

categorias utilizadas para conhecer e classificar os indivíduos – como seja o caso das

categorias de raça e etnicidade - são, à luz da tecnologia de inferência fenotípica e na

opinião de alguns geneticistas, compreendidas apenas a partir da forma como se

encontram inscritas no código genético dos indivíduos. Desta forma esta tecnologia não

só produz identidades que são genéticas (Atkinson; Glasner; Greenslade, 2007; Kruse,

2010b; Machado; Silva; Amorim, 2010) como, ignora a influência de outros elementos,

como sejam o social e o individual no seu processo de (co)construção.

A análise de diferentes informações genéticas pode substanciar suspeição sobre

‘identidades’ específicas, nomeadamente indivíduos ou grupos populacionais

classificados como ‘perigosos’ ou com potencial para representar uma ameaça para a

sociedade (Cole; Lynch, 2006). Este traduz-se num processo complexo do qual podem

emergir diferentes identidades técnico científicas individuais ou coletivas (Atkinson,

Glasner e Greenslade, 2007; Machado e Silva, 2011a e 2011b; Machado e Costa, 2012;

Rabinow, 2008; Rose, 2007). Através das relações que estabelecem com diferentes

equipamentos de leitura do corpo, estas identidades conjuntam um novo tipo de relações

sociais, permitindo a surgimento de novas biossocialidades (Aas, 2006; Novas e Rose,

2000; Rabinow, 2008).

A tecnologia de inferência fenotípica baseia-se na construção de categorias

populacionais que têm vindo a ser trabalhadas por diversos atores e campos do

conhecimento. Não obstante, importa enfatizar não só que a tecnologia não é, por si só,

construtora de categorias, mas também que as categorias que emergem não são neutras.

Elas resultam de existência de marcadores socioculturais que, pela diferença que fazem

na forma como se relacionam com o observado se constituem enquanto marcadores de

diferença. Estes não só produzem conhecimento no âmbito de uma investigação

criminal, como integram um coletivo articulado (M’Charek, 2008). Assim, ao socorrer-

se destas categorias a FDP contribui, ainda de que forma subtil, para uma perpetuação

da vigilância sobre os indivíduos aos quais as categorias correspondem. Este “poder

Page 12: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

297

vigilante” sobre determinadas características pode potenciar situações de desigualdade,

exclusão e estigmatização social sobre determinados grupos sociais.

Neste sentido, em vez de restrita à tecnologia ou ao contexto onde a mesma de

desenvolve, a normatividade e a política encontram-se nas várias práticas que

relacionam a tecnologia e a sociedade (M’Charek, 2008, p. 527). Segundo M’Charek, as

tecnologias de DNA não devem ser vistas como testemunhas silenciosas, mas sim como

um coletivo articulado. Ou seja, constituem o resultado de um aparato forense,

composto por atores e diferentes objetos. Assim, refere que os perfis de DNA são

objetos normativos e ativos que se articulam com o aparato que os circunda.

Contrariando a ideia de singularidade, e pela forma como se integram numa rede

heterogénea de relações, estes objetos são também coletivos. A normatividade destas

tecnologias e, portanto das características de aparência físicas visíveis encontra-se

dependente do contexto onde as mesmas ocorrem. Assim, a autora reforça que o

coletivo articulado não é nem estável, nem fixo (2008, p. 521).

Como referido anteriormente, apesar das suas raízes no mundo material, a

ciência forense compõe-se e interrelaciona-se de forma complexa com diversas práticas,

dimensões - tecnologia, cultura, lei, crime – atores e objetos, produzindo determinadas

construções de sentido acerca dos corpos, os quais não devem ser ignoradas aquando a

compreensão da prova forense e dos impactos sociais da sua ação (Kruse, 2010). Na

medida em que se encontra relacionada com diferentes práticas – e como tal, pode

sofrer alterações de prática para prática – torna-se redutor conceber a tecnologia

simplesmente enquanto veículo de progresso do conhecimento científico. Assim,

compreendendo as diferentes formas como se interrelaciona com diferentes dimensões

fora do laboratório, esta deve antes ser compreendida enquanto tecnologia-em-prática

(M’Charek, 2008; Toom et al., 2016).

Importa acrescentar que à medida que se têm desenvolvido, estas ferramentas

tecnológicas não só têm conduzido a um apagamento das narrativas dos atores que, até

então, possuíam uma voz ativa no âmbito destes processos, como caminham rumo a um

panorama de genetização das relações sociais (Lippman, 1991; Machado; Silva;

Amorim, 2010). Este constitui um cenário com graves implicações e impactos na forma

como os indivíduos estruturam e regem as suas relações sociais uns com os outros.

Page 13: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

298

Biologização dos suspeitos criminais

O desenvolvimento tecnológico no campo da genética forense tem provocado

alterações nas conceções e práticas de regulação da ordem social, ao mesmo tempo que

(re)produz uma narrativa fundamentalmente biológica acerca dos indivíduos. Baseando-

se num discurso normativo e em premissas de objetividade científica da prova forense,

o reducionismo biológico de que se revestem estas evoluções e inovações tecnológicas

ignora a complexidade que compõe e caracteriza o processo de construção desta

narrativa. Assim, apesar de considerar que a identidade e identificação dos indivíduos se

encontra inscrita e pode ser realizada à luz da leitura do seu código genético, enquanto

máquina de verdade (Lynch et al., 2008), esta é uma visão que desconsidera, entre

outros fatores, a existência e consequente influência de pré-noções e conceitos

socialmente construídos sobre determinados grupos sociais e indivíduos dos quais os

profissionais forenses não se conseguem dissociar e, que desta forma, se encontram a

ser mobilizados nesta lógica de classificação – étnica e racial - das populações (Kruse,

2010a, 2010b, 2013; Lipphardt; Niewöhner, 2007; M’Charek, 2008).

Assente no pressuposto de que o DNA constitui uma estrutura biológica única em

cada indivíduo7, o investimento no desenvolvimento de tecnologias de DNA para

identificação e vigilância dos corpos criminais tem passado, em grande medida, por uma

aliança entre velhas, novas técnicas, tecnologia e as potencialidades da bio informação.

Com o objetivo de reduzir, de forma eficaz, os alvos de vigilância e controlo, estas

tecnologias surgem acopladas à ideia de “objetividade mecânica” (Porter, 1995),

científica (Merton, 1973), certeza, validade e infalibilidade da informação da

“testemunha genética” (Aronson, 2007; Lynch et al., 2008; Murphy, 2007; Williams,

2004), por oposição à subjetividade associada aos processos mais tradicionais de

investigação criminal.

O desenvolvimento de novas e inovadoras tecnologias forenses tem procurado

traçar novos caminhos no âmbito das investigações criminais na medida em que

procuram, através do DNA, encontrar novas pistas que permitam reabrir e,

potencialmente, resolver casos criminais arquivados. É desta forma que se tem traçado

um percurso onde pequenos fragmentos biológicos, isolados dos corpos dos indivíduos,

mas aliados ao desenvolvimento tecnológico, se constituem enquanto agente

7 Com a exceção de gémeos monozigóticos cujo DNA é idêntico.

Page 14: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

299

(bio)político (M’Charek, 2008; Sayes, 2014), desempenhando um papel cada vez mais

importante no que diz respeito às estratégias de combate à criminalidade.

Genetização da raça e da etnia

Consideram alguns autores que existem algumas lacunas na forma como estes

fenómenos têm vindo a ser compreendidos. As questões raciais constituem um

fenómeno histórico que se expressa de forma idêntica globalmente (M’Charek;

Schramm; Skinner, 2014a, p. 461). Embora se tenha evidenciado uma tentativa de evitar

discutir as questões raciais, enquanto fenómeno biológico, estas carecem de

problematização e visibilidade, dada a natureza particular com que permanecem

enraizadas em diferentes práticas. Na Europa, por exemplo, apesar de ser

problematizada, a raça tende a emergir como um objeto ‘obscuro’ e instável (slippery

object) na medida em que tanto aparece na superfície, como se esconde (M’Charek;

Schramm; Skinner, 2014a, p. 459).

As políticas de raça neoliberais contemporâneas procuraram contornar as questões

raciais através da substituição do termo por outras expressões – identidade nacional,

cultural e religiosa. Esta é uma estratégia que tem como consequência a existência de

racismo, sob a máscara de políticas que, alegadamente, procuram promover a abolição

destas práticas (Goldberg, 2008 apud M’charek et al. 2014, p.462).

A ausência presente da raça pode então ser compreendida de duas formas: 1)

normativamente, na medida em que se procura uma abolição discursiva de determinados

termos, pela associação que ainda persiste a períodos históricos passados que remetem

para as épocas coloniais, eugénicas, entre outras. No entanto, esta tentativa de abolição

falha na medida a raça e as questões raciais continuam a emergir de diversas formas nas

sociedades europeias (M’Charek; Schramm; Skinner, 2014a, p. 462); 2)

Metodologicamente, pela forma como se articula e performa com coisas e conceitos, do

presente e do passado, que tendem a ser excluídos e invisibilizados – ‘othered’8.

Compreende-se assim que a influência do passado e da história da Europa é

fundamental à compreensão das questões raciais. Por um lado, permitem compreender

as relações fortes que esta problemática enceta com as questões de gestão e controlo de

8 Este conceito é trabalhado pelos autores no âmbito do artigo “Topologies of race: doing territory,

population and identity in Europe” (2014c)

Page 15: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

300

populações. Por outro, torna evidente as consequências do pensamento hegemónico da

Europa ocidental que tende a produzir uma narrativa simplificada em torno das questões

raciais (2014, p. 464). Não se compreende, por isso, que apenas em estudos e

publicações mais recentes é que este caracter global da raça seja apreendido. Até então,

tanto os debates entre académicos, bem como os estudos de caso utilizados para a

problematização destes fenómenos centravam-se no contexto americano.

Partindo do reconhecimento destas lacunas, é sugerido que se compreendam as

questões raciais através de uma abordagem topológica da raça, observada através da

forma como os diferentes componentes (a)parecem apresentados, como se fossem

inseparáveis uns dos outros – o DNA, a cor, a ancestralidade. Considera-se, por um

lado, que as representações topológicas da raça requerem que o fenómeno seja

compreendido tendo em conta a sua especificidade, na medida em que diferentes

práticas fazem emergir diferentes raças. Por outro, afirmam que esta forma de

compreender a raça permite captar a sua ausência, presente, na Europa (M’Charek;

Schramm; Skinner, 2014a).

Quer pela associação que ainda persiste no contexto europeu relativamente a

períodos históricos passados, que remetem para as épocas coloniais e eugénicas, só

recentemente encontramos na Europa uma problematização das questões raciais em

articulação com tecnologias de identificação criminal.

As tecnologias de ancestralidade procuram localizar a ascendência biogeográfica

dos suspeitos tendo por base a definição de grandes grupos populacionais que servem de

referência para o estudo da origem geográfica. No entanto, a distinção de populações

por continentes ou grupos populacionais pode facilmente conduzir a associações entre

estes e categorias de raça e etnia. Estas associações podem também acentuar fenómenos

de discriminação, estigmatização e racialização sobre determinados grupos

populacionais, tornando-os mais vulneráveis a situações de suspeição (Duster, 2008;

M’Charek, 2013; Ossorio, 2006).

Também as imagens produzidas pela inferência de outras características de

aparência física incorporam determinadas classificações étnicas e raciais (M’Charek,

2008) que resultam de um processo de agregação dos dados dos indivíduos com base na

ideia de que estes partilham características visíveis particulares ou um conjunto de

traços visíveis, isto é culturais (idem). Num contexto de investigação criminal isto

significa que estas pessoas são agrupadas no que se pode designar de “população

suspeita racializada” (M’Charek, 2008, p. 527).

Page 16: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

301

Verifica-se que tanto na tecnologia de ancestralidade geográfica como na

inferência de outras características de aparência física há uma presença ausente da raça,

(M’Charek; Schramm; Skinner, 2014a) que resulta não só da ambiguidade das

categorias utilizadas para classificar as populações suspeitas (M’Charek, 2013, 2016),

mas também de um processo performativo sobre o qual a raça se constrói (M’Charek,

2016). Desta forma, a raça encontra-se ausente e invisibilizada nos discursos dos

geneticistas forenses, mas presente nas práticas, na medida em que os resultados

produzidos no âmbito destas tecnologias podem contribuir para um aumento da

suspeição e do foco do policiamento sobre determinados grupos populacionais que já

são alvo de discriminação.

As ‘imagens’ produzidas pela tecnologia de inferência fenotípica incorporam

determinadas classificações étnicas e raciais (M’Charek, 2008) que resultam de um

processo de agregação dos dados dos indivíduos com base na ideia de que estes

partilham características visíveis particulares ou um conjunto de traços visíveis, isto é

culturais (idem). Num contexto de investigação criminal isto significa que estas pessoas

são agrupadas no que se pode designar de “população suspeita racializada” (M’Charek,

2008, p. 527).

Na medida em que os seus efeitos se estendem para além do campo individual,

apresentando um potencial elevado para afetar a privacidade, autonomia e o direito à

igualdade de tratamento de determinadas populações, no seu todo, considera-se que a

tecnologia de inferência fenotípica apresenta um elevado risco na exacerbação das

desigualdades e criminalização de determinados grupos sociais que já sofrem de outros

tipos de (dis)criminação (M’Charek, 2008, p. 527). Esta constitui uma dimensão de

análise importante, uma vez que levanta o debate sobre como a ciência, através de

tecnologias genéticas, pode estar a contribuir para uma renovação dos processos pelos

quais se mantêm e perpetuam a reprodução de desigualdades sociais sobre determinados

grupos populacionais vulneráveis.

De um modo geral a evolução do conhecimento das ciências da vida provocou um

aumento do interesse no estudo das (inter)conexões entre a ciência, tecnologia e raça

(Fujimura; Rajagopalan, 2011; M’Charek, 2010). A FDP resulta da realização diversos

procedimentos técnicos e de cálculos probabilísticos, cuja escolha, de entre os

resultados obtidos, envolve sempre algum grau de subjetividade humana (Kruse,

2010b), isto é, a influência de pré-noções e conceitos socialmente construídos sobre

Page 17: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

302

determinados grupos e indivíduos dos quais os profissionais forenses não se conseguem

dissociar (Idem).

Baseando-se na premissa da objetividade da prova forense, os discursos em torno

desta técnica não só ignoram o imaginário social de que fazem parte determinadas

classificações étnicas e raciais, como consideram que estas não interferem

significativamente na identidade da pessoa, na medida em que a sua identificação

‘objetiva’ estará já, à partida, assegurada no código biológico” (Maciel; Machado, 2014,

p. 147). A inferência fenotípica corresponde assim a um produto artificial, gerado no

âmbito de um aparato forense (Kruse, 2010b) - (co)produzido em laboratório com o

auxílio de instrumentos, equipamentos, ferramentas matemáticas e informáticas, sob a

ação e interpretação de geneticistas forenses. As características que emergem desta

tecnologia, em vez de corresponderem à imagem do indivíduo a quem o vestígio

biológico pertence, tendem a incidir sobre um conjunto de características associadas a

determinados grupos populacionais aos quais o indivíduo pode pertencer.

O que distingue estas tecnologias genéticas da terceira vaga é que elas não

ambicionam fornecer dados capazes de identificar probabilisticamente

indivíduos específicos. Em vez disso, elas fornecem informações tipológicas

sobre propriedades e características comuns, mas variáveis, de parentesco

com outras pessoas, características da aparência visual ou aspetos da

ascendência biogeográfica9 (Wienroth; Morling; Williams, 2014, p. 100).

Observa-se uma grande diversidade de posicionamentos entre geneticistas acerca

do uso de categorias raciais e étnicas, que integra uma discussão mais ampla em torno

do foco na diferença versus o foco na semelhança (Fujimura; Rajagopalan, 2011). A

geografia do genoma (idem), por exemplo, ao trabalhar o cruzamento da genética com

informações sobre a origem geográfica dos indivíduos, permite a emergência de ilações

relativas a determinadas categorias raciais. Estes cruzamentos representam um perigo

pelo potencial discriminatório sobre determinados grupos populacionais na medida em

que, subjacente jaz a ideia de legitimidade científica (2016, p. 7).

Apresenta-se de seguida um caso criminal ocorrido recentemente na Alemanha,

através do qual é possível problematizar esta e outras potenciais ameaças.

9 Tradução livre

Page 18: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

303

Caso criminal Maria Ladenburger, Freiburg, Alemanha

A 16 de Outubro de 2016 o corpo de Maria Ladenburger foi encontrado nas

margens do rio Dreisam, em Freiburg. Maria Ladenburger estaria a caminho

de casa, de bicicleta, depois de uma festa da faculdade, na noite anterior,

quando o crime ocorreu. Foi violada e morreu afogada no rio.

Na cena de crime foi encontrado um fio de cabelo e um lenço preto contendo

vestígios biológicos que não pertenciam à vítima. O fio de cabelo era longo,

de cor preta, apresentando marcas de ter sido parcialmente pintado de louro.

A partir dos vestígios recolhidos na cena de crime, o perfil de DNA foi

criado e inserido na base de dados de DNA nacional para fins forenses, não

tendo havido qualquer correspondência.

Recuperando as gravações CCTV do dia do crime, as autoridades locais

encontraram, numa estação de transporte local, imagens de um indivíduo

cujas características do cabelo se assemelhavam às do fio de cabelo

recolhido na cena de crime. O suspeito foi mais tarde identificado na rua e

detido por polícias locais. Posteriormente o seu DNA foi recolhido, tendo

correspondido com o DNA presente na cena de crime. A 3 de dezembro de

2016, a polícia organizou uma conferência de imprensa onde anunciou a sua

detenção.

Apesar da presença na cena de crime de elementos que continham vestígios

biológicos do suspeito, este foi encontrado com recurso a outras ferramentas de

investigação criminal. Assim, a prova de DNA, não constituiu um elemento central para

a identificação do suspeito no âmbito deste caso. Na medida em que não houve uma

correspondência na base de dados nacional, esta prova apenas pôde e foi mobilizada

depois da detenção do suspeito para estabelecer uma correspondência entre este e os

vestígios encontrados na cena de crime.

Passado cerca de um mês do homicídio de Maria Ladenburger foi encontrado,

perto de Freiburg, o corpo de Carolin Gruber. Estes casos criminais ocorreram num

curto período de tempo apresentando contornos semelhantes: violação e homicídio de

duas mulheres, cujos corpos foram mais tarde encontrados em parques. Apesar de em

sucessivas declarações a polícia ter reforçado que não havia uma ligação entre os dois

casos criminais, os principais meios de comunicação social desde logo traçaram

comparações entre os dois casos, alimentando o mediatismo em torno dos mesmos. É,

desta forma, que estes surgem vinculados ao debate sobre a necessidade de alterar a lei

na Alemanha, permitindo que análises mais extensivas possam ser realizadas ao DNA

recolhido em cenas de crime.

Page 19: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

304

Retomando o caso de Maria Ladenburger, a presença de um fio de cabelo entre as

provas recolhidas fez, logo desde o início da investigação, despontar no espaço público

um conjunto de debates sobre as barreiras legais do país quanto à utilização de

determinadas tecnologias de análise forense. Importa referir que estes debates, envoltos

num discurso xenófobo, já existiam antes da ocorrência deste caso por parte de diversos

grupos partidários, jornalistas e indivíduos com um posicionamento político mais à

direita (Lipphardt, 2017). No entanto, o mediatismo entretanto criado surgiu como uma

‘janela de oportunidade’ para que diversos atores pudessem expor os argumentos de

suporte à alteração da lei nacional, permitindo a utilização da tecnologia de inferência

fenotípica (FDP). Foi, assim, por via do aparato e da notoriedade mediática que o DNA

se tornou num elemento de destaque associado a este caso criminal.

Alguns geneticistas forenses e membros da polícia criminal Alemã já tinham

realizado um trabalho de deliberação, prévio ao caso de Maria Ladenburger, e tomado

considerações sobre a tecnologia de inferência fenotípica. A estas, rapidamente se

juntaram outras vozes (idem, 2017). Desta forma, conseguiram expor no espaço público

os seus argumentos técnicos e científicos de um modo elaborado, fazendo-se ouvir,

conseguindo ainda exercer pressão política para que se começasse a discutir a

possibilidade de alterar a lei nacional, permitindo o uso da FDP em determinadas

circunstâncias.

O caso criminal apresentado mostra como a presença de um fio de cabelo foi mote

para o início de um intenso debate que aponta para a ausência de uma regulação legal

atualizada que dê conta da evolução tecnológica que o campo das ciências forenses tem

registado ao longo das últimas décadas. Na Alemanha, bem como na maioria dos países

da União Europeia, a tecnologia de FDP não está regulada. Neste caso criminal, este

debate acentuou-se quando do DNA recolhido na cena de crime não foi possível obter

qualquer tipo de correspondência nas bases de dados e registos nacionais. Nos meios de

comunicação social são muitas as referências cujo enfoque incidiu nas potencialidades

destas tecnologias caso o seu uso fosse permitido (Müller, 2017; Röderer, 2017), com

destaque para a possibilidade de inferir a origem biogeográfica do suspeito (Heidegger,

2017; Soldt, 2016; Truscheit, 2016).

Por considerarem que o debate em torno das propostas de alteração de lei

apresentava uma visão parcial, centrado nas potencialidades das novas tecnologias

forenses em debate, um grupo interdisciplinar de académicos redigiu uma carta aberta

com o objetivo de expor não apenas a complexidade dos instrumentos forenses em

Page 20: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

305

debate – FDP, ancestralidade biogeográfica e pesquisa familiar -, mas sobretudo alertar

para os riscos éticos, sociais e legais que esta ampliação acarreta para a população em

geral e não apenas para a população suspeita (Lipphardt et al., 2016).

Apesar de presentes em menor número, desde então este grupo tem vindo a

aumentar, sendo atualmente composto por cientistas de diversos campos da ciência

(ciências da vida, ciências naturais, ciências sociais) que têm vindo a apresentar uma

problematização mais ampla acerca da extensão deste tipo de análises forenses de DNA

(Berndt, 2017; Kastilan, 2017; Kupke, 2017; Wünnenberg, 2017). Destaca-se em

particular o trabalho pioneiro que Veronika e Anna Lippardt, da Universidade de

Freiburg, têm vindo a realizar não só pela sua presença em diversos meios de

comunicação social, procurando dar visibilidade às dimensões menos tratadas no âmbito

destes debates, os riscos, mas também pela compilação de diversos tipos de materiais,

tornados disponíveis para consulta pública numa página da internet.10

A 3 de dezembro de 2016, a polícia realizou uma conferência de imprensa

onde comunicou a detenção do suspeito do caso de Maria Ladenburger, um

jovem refugiado Afegão que pediu asilo em 2015 como menor não

acompanhado. Uma vez que entrou no país sem documentos, os dados

pessoais que estavam registados foram aqueles que o próprio declarou como

sendo verdadeiros. Após a sua detenção surgiram notícias que confirmam

que este já tinha sido condenado na Grécia em 2015 – no mesmo ano que

terá ido para a Alemanha -, onde cumpriu uma pena parcial num caso

criminal que envolveu o roubo e tentativa de homicídio de uma jovem. Em

2015 saiu em liberdade, estando obrigado a apresentar-se periodicamente.

Terá sido nesta altura que foi para a Alemanha. Uma vez que na Grécia

apenas foi emitido um mandato de detenção nacional, os mecanismos

europeus que permitem um controlo e vigilância ao nível transnacional neste

tipo de situações falharam o seu propósito.

Os episódios narrados permitem-nos abordar a discussão em torno da potencial

fragilidade que a tecnologia de FDP pode representar relativamente ao direito à auto

informação e auto determinação identitária. Após se confirmar, por via de impressões

digitais, que se tratava do mesmo indivíduo, as autoridades Gregas partilharam com as

autoridades Alemãs informações sobre os dados pessoais do suspeito. Entre estes

destaca-se a informação sobre a data de nascimento, segundo a qual, o sujeito terá 20

anos, e não 16, como informou aquando do pedido de asilo. A descoincidência

10 Para mais informações sobre os materiais mencionados, consultar STS @ Freiburg -

https://stsfreiburg.wordpress.com/

Page 21: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

306

levantada por estas informações distintas levanta diversas questões sobre as quais urge

refletir.

Tendo em conta o mediatismo que este caso criminal alcançou, nacional e

internacionalmente, estes acontecimentos lançaram novo fôlego em torno das

potencialidades desta tecnologia de DNA, enquanto testemunha biológica, na

confirmação da informação sobre a idade do suspeito. Por outro lado, e porque em causa

poderá estar o seu julgamento enquanto menor ou jovem adulto, associado aos debates

em torno das propostas de alteração da lei, este acontecimento permite problematizar,

em concreto, as potenciais ameaças ao direito da autoinformação e autodeterminação

identitária. Caso seja mobilizada a tecnologia de FDP, existe um risco elevado destes

direitos serem comprometidos face a uma priorização da informação genética

relativamente à identificação social. (Heinemann et al., 2015; Heinemann; Lemke,

2014).

Considerações finais

Ao longo das últimas décadas a evolução tecnológica registada no campo da

genética tem suscitado grandes interrogações relacionadas com os significados e

implicações associados aos usos do DNA. Por um lado, emergem preocupações

relativamente às consequências para a cidadania que advém da eleição de mecanismos

estratégicos de controlo social e combate à criminalidade, pela priorização do

conhecimento biológico, mecanizado e automático em detrimento do social, da

experiência e valores humanos (Prainsack & Aronson, 2015, p. 12). Em segundo lugar,

não só pelos potenciais impactos de um bio-olhar sobre a vida e identidade dos

indivíduos, mas também sobre as construções sociais acerca daqueles que cometem

crimes. Também novos conhecimentos sobre determinados grupos populacionais podem

ser (re)produzidos a partir dos resultados da tecnologia de inferência fenotípica. Ao

mesmo tempo, na medida em que podem reproduzir velhas formas de suspeição sobre

determinadas populações já marginalizadas na sociedade, importa refletir os vários

riscos que a ampliação dos seus usos envolve.

A tecnologia de inferência fenotípica articula o campo da ciência, com o da

biologia e da investigação criminal. Inscreve-se, assim, num conjunto de tecnologias

que classificam e controlam os indivíduos com base nas suas características

Page 22: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

307

biogenéticas. Desta forma, o seu resultado apenas permitirá a previsão das

características do sujeito cuja amostra biológica pertence. Não obstante, salienta-se que

sob a ideia da ‘individualização’ esta tecnologia parte do conhecimento de estudos

populacionais ao mesmo tempo que se baseia em categorias coletivas, socialmente

construídas.

Dado que um dos aspetos da FDP é prever a ancestralidade genética, ou seja a

raça do suspeito, importa também compreender de que modo é que este fenómeno de

genetização pode potenciar a criminalização de certos indivíduos e/ou grupos sociais

vulneráveis. Assim, num cenário onde a genética parece constituir um regime de

verdade (Foucault, 1991, p. 74), o estudo da FDP permite dar conta não apenas das

implicações sociais, éticas, políticas e culturais que emergem do entrecruzamento entre

a tecnologia, a genética e cidadania. Ao mesmo tempo, tendo em conta os contínuos

investimentos nestas tecnologias genéticas, permite captar os modos de biopoder e

biopolítica que compõem estas estratégias de governação. Ou seja, permite compreender

de que modo e em que circunstâncias é que determinadas categorias biogenéticas se

transformam em categorias morais e políticas, acabando por se traduzir em modos de

biopolítica.

A evolução do conhecimento nas áreas da genética e da genómica tem-se

traduzido na emergência de diversos mecanismos e tecnologias de prevenção e combate

à criminalidade que, de diferentes formas, têm vindo a reforçar as conceções biológicas

dos indivíduos. Não obstante, esta evolução tem tido como consequência um acentuar

das desigualdades de indivíduos e grupos populacionais que já se encontram em

situação de exclusão e vulnerabilidade social. A este respeito M’charek defende que: a)

a inferência de determinadas características de aparência física é uma tecnologia que

não permite a individualização. Ela organiza os indivíduos em grandes grupos que,

juntos, passam a constituir a população suspeita. Desta forma, o alvo desta tecnologia

não é o indivíduo específico cujo material biológico analisado pertence, mas sim o

grupo populacional que partilha os mesmos traços de aparência do indivíduo cuja

amostra pertence (M’Charek, 2008, p. 525); b) na medida em que os seus efeitos se

estendem para além do campo individual, estas tecnologias apresentam ainda um

elevado risco na exacerbação das desigualdades e criminalização de determinados

grupos sociais que já sofrem de outros tipos de (dis)criminação (M’Charek, 2008, p.

527); c) apesar de ambos os casos estarem envoltos em discursos racistas e xenófobos, a

análise dos efeitos provocados pelos discursos sobre os grupos populacionais a que os

Page 23: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

308

suspeitos destes crimes pertencem parece evidenciar que alguns sujeitos conseguem

manter a sua individualidade, ao passo que outros, são mais facilmente associados a um

determinado grupo populacionais e/ou étnico. Consequentemente, é possível afirmar

que existem grupos populacionais minoritários mais vulneráveis e grupos populacionais

minoritários mais permeáveis à discriminação e estigmatização social.

O caso criminal apresentado permite observar diferentes dimensões daquilo a que,

segundo a perspetiva das ciências sociais, em particular dos estudos sociais da ciência e

da tecnologia, se designa de genetização ou biologização da sociedade (Haraway, 1997;

Lippman, 1991; Rose, 2007), isto é, a centralidade que a genética ocupa nas sociedades

contemporâneas em diversos níveis. Entre estes, tem vindo a exercer influência também

sobre os conceitos de identidade e identificação.

As identidades que tecnologias como a FDP criam são identidades biológicas,

definidas com base na ideia de pertença a um determinado grupo populacional. Como

tal, representam um potencial elevado para a criação de novas formas de discriminação

racial sobre as já existentes, com base na identidade biológica e no DNA dos suspeitos

(Vailly, 2016, p. 30). Assim, ainda que a tecnologia de inferência fenotípica possa vir a

constituir uma ferramenta utilizada no âmbito dos processos de investigação criminal,

as consequências relacionadas com a disseminação dos seus resultados devem ser

pensadas também em relação aos possíveis efeitos nas auto e hétero representações de

determinadas populações (M’Charek, 2008, p. 523). Deve, portanto, atender-se que

aquilo que inicialmente pode ser visto como uma questão dirigida a um indivíduo em

particular, rapidamente pode ser colocado como uma preocupação que afeta

determinados grupos sociais e populações por causa das associações que daí podem

derivar entre grupos populacionais específicos e criminalidade (M’Charek, 2008).

Agradecimentos

Este trabalho recebeu financiamento do Conselho Europeu de Investigação (ERC) sob o

programa de pesquisa e inovação da União Europeia Horizonte 2020 (Contrato N.º

[648608]), no âmbito do projeto “EXCHANGE – Geneticistas forenses e a partilha

transnacional de informação genética na União Europeia: Relações entre ciência e

controlo social, cidadania e democracia” liderado por Helena Machado e sediado no

Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Instituto de Ciências Sociais

Page 24: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

309

da Universidade do Minho. Agradeço o apoio do projeto EXCHANGE bem como os

comentários críticos de Helena Machado.

Referências

AAS, K. F. From narrative to database: Technological change and penal culture. Punishment &

Society, v. 6, n. 4, p. 379–393, 2004.

AAS, K. F. “The body does not lie”: Identity, risk and trust in technoculture. Crime, Media,

Culture, v. 2, n. 2, p. 143–158, 2006.

ARONSON, J. Genetic witness: Science, law, and controversy in the making of DNA profiling.

Piscataway, NJ: Rutgers University Press, 2007.

ATKINSON, P.; GLASNER, P.; GREENSLADE, H. New genetics, new identities. London and

New York: Routledge, 2007.

BERNDT, C. Excessive hope in the DNA of the perpetrator. Süeddeutsche Zeitung, p. 1–3, 8

jun. 2017.

BREKKE, O. A.; SIRNES, T. Biosociality, biocitizenship and the new regime of hope and

despair: Interpreting “Portraits of Hope” and the “Mehmet Case”. New Genetics and Society, v.

30, n. 4, p. 347–374, 2011.

CLAES, P. Predicting faces from DNA [VIDEO], 2015. Disponível em:

<http://www.ted.com/about/programs-initiatives/tedx-program>

CLAES, P.; HILL, H.; SHRIVER, M. Toward DNA-based facial composites: Preliminary

results and validation. Forensic Science International: Genetics, v. 13, p. 208–216, 2014.

COLE, S.; LYNCH, M. The social and legal construction of suspects. Annual Review of Law

and Social Science, v. 2, p. 39–60, dez. 2006.

DEUTSCHES ÄRZTEBLATT INTERNATIONAL. Pros and Cons: Analysis of DNA areas to

create a perpetrators profile. Deutsches Ärzteblatt International, p. 1–2, 30 mar. 2017.

DUSTER, T. DNA dragnets and race: Larger social context, history and future. GeneWatch, v.

21, n. 3–4, p. 3–5, 2008.

FUJIMURA, J.; RAJAGOPALAN, R. Different differences: The use of “genetic ancestry”

versus race in biomedical human genetic research. Social Studies of Science, v. 41, n. 1, p. 5–

30, dez. 2011.

HARAWAY, D. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan©_Meets_OncoMouseTM.

New York: Routledge, 1997.

HEIDEGGER, K. Limits for DNA analysis: A law that protects murderers. Badische Zeitung, p.

1–2, 29 mar. 2017.

HEINEMANN, T. et al. (EDS.). Suspect families: DNA analysis, family reunification and

immigration policies. London and New York: Routledge, 2015.

Page 25: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

310

HEINEMANN, T.; LEMKE, T. Biological citizenship reconsidered: The use of DNA analysis

by immigration authorities in Germany. Science, Technology, & Human Values, v. 39, n. 4, p.

488–510, 2014.

HEINEMANN, T.; LEMKE, T.; PRAINSACK, B. Risky profiles: Societal dimensions of

forensic uses of DNA profiling technologies. New Genetics and Society, v. 31, n. 3, p. 249–258,

set. 2012.

KASTILAN, S. On Truth Search. Frankfurt Allgemeine, p. 1–3, 27 mar. 2017.

KAYSER, M. Forensic DNA phenotyping: Predicting human appearance from crime scene

material for investigative purposes. Forensic Science International: Genetics, v. 18, p. 33–48,

2015.

KAYSER, M.; DE KNIJFF, P. Improving human forensics through advances in genetics,

genomics and molecular biology. Nature Reviews Genetics, v. 12, n. 3, p. 179–192, 2011.

KAYSER, M.; SCHNEIDER, P. M. DNA-based prediction of human externally visible

characteristics in forensics: Motivations, scientific challenges, and ethical considerations.

Forensic Science International: Genetics, v. 3, n. 3, p. 154–161, 2009.

KAYSER, M.; SCHNEIDER, P. M. Reply to“ Bracketing off population does not advance

ethical reflection on EVCs: A reply to Kayser and Schneider” by A. M’charek, V. Toom, and B.

Prainsack. Forensic Science International: Genetics, v. 6, p. e18–e19, fev. 2012.

KRUSE, C. Producing absolute truth: CSI science as wishful thinking. American

Anthropologist, v. 112, n. 1, p. 79–91, fev. 2010a.

KRUSE, C. Forensic evidence: Materializing bodies, materializing crimes. European Journal of

Women’s Studies, v. 17, n. 4, p. 363–377, 5 nov. 2010b.

KRUSE, C. The Bayesian approach to forensic evidence - Evaluating, communicating, and

distributing responsibility. Social Studies of Science, v. 43, n. 5, p. 657–680, 15 mar. 2013.

KUPKE, S. “Extended DNA analyzes are often over­estimated”. Ärzte Zeitung, p. 1–2, 12 jun.

2017.

LATOUR, B. Aramis or the love of technology. Cambridge, MA: Harvard University Press,

1996.

LIPPHARDT, A. The media development of the debate. Disponível em:

<https://stsfreiburg.wordpress.com/hintergrund/mediale-entwicklung/>.

LIPPHARDT, V. et al. Open letter on DNA analysis in forensics (translated to english).

Disponível em: <https://stsfreiburg.wordpress.com/2016/12/08/offener-brief-zu-dna-analysen-

in-der-forensik/>.

LIPPHARDT, V.; NIEWÖHNER, J. Producing differences in an age of biosociality.

Biohistorical narratives, standardisation and resistance as translations. Science, Technology &

Innovation Studies, v. 3, p. 45–65, 2007.

LIPPMAN, A. Prenatal genetic testing and screening: Constructing needs and reinforcing

Page 26: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

311

inequities. American Journal of Law & Medicine, v. 17, n. 1–2, p. 15–50, 1991.

LOSSAU, N. XY - quite unresolved. Welt, p. 1–5, 1 abr. 2017.

LYNCH, M. et al. Truth machine: The contentious history of DNA fingerprinting. Chicago:

University of Chicago Press, 2008.

LYON, D. Surveillance society: Monitoring everyday life. Buckingham: Open University Press,

2001.

M’CHAREK, A. Silent witness, articulate collective: DNA evidence and the inference of visible

traits. Bioethics, v. 22, n. 9, p. 519–528, 2008.

M’CHAREK, A. Fragile differences, relational effects: Stories about the materiality of race and

sex. European Journal of Women’s Studies, v. 17, n. 4, p. 307–322, 2010.

M’CHAREK, A. Beyond fact or fiction: On the materiality of race in practice. Cultural

Anthropology, v. 28, n. 3, p. 420–442, 2013.

M’CHAREK, A. Performative circulations: On flows and stops in forensic DNA practices.

Tecnoscienza, v. 7, n. 2, p. 9–34, 2016.

M’CHAREK, A.; SCHRAMM, K.; SKINNER, D. Technologies of belonging: The absent

presence of race in Europe. Science, Technology, & Human Values, v. 39, n. 4, p. 459–467,

2014a.

M’CHAREK, A.; SCHRAMM, K.; SKINNER, D. Topologies of race: Doing territory,

population and identity in Europe. Science, Technology, & Human Values, v. 39, n. 4, p. 468–

487, 2014c.

MACHADO, H. Genética e suspeição criminal: Reconfigurações atuais de co-produção entre

ciência, ordem social e controlo. In: FONSECA, C.; MACHADO, H. (Eds.). . Ciência,

identificação e tecnologias de governo. Porto Alegre: Coleções Editoriais do CEGOV, 2015.

MACHADO, H.; PRAINSACK, B. Tecnologias que incriminam: Olhares de reclusos na Era do

CSI. Coimbra: Almedina, 2014.

MACHADO, H.; SILVA, S.; AMORIM, A. Políticas de identidade: Perfil de DNA e a

identidade genético-criminal. Análise Social, v. XLV, n. 196, p. 537–553, 2010.

MACHADO, H.; SILVA, S.; SANTOS, F. Justiça tecnológica: promessas e desafios.

Ermesinde: Ecopy, 2008.

MACIEL, D.; MACHADO, H. Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação.

In: MACHADO, H.; MONIZ, H. (Eds.). . Bases de dados genéticos forenses: Tecnologias de

controlo e ordem social. Coimbra: Coimbra Editora, 2014. p. 141–166.

MACLEAN, C. E.; LAMPARELLO, A. Forensic DNA phenotyping in criminal investigations

and criminal courts: Assessing and mitigating the dilemmas inherent in the science. Recent

Advances in DNA and Gene Sequences, v. 8, n. 2, p. 104–112, 2014.

MERTON, R. K. The sociology of science: Theoretical and empirical investigations. Chicago:

University of Chicago Press, 1973.

Page 27: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

312

MÜLLER, A. Investigators hope for the genetic material. Stuttgarter Zeitung, p. 2–3, 3 dez.

2017.

MURPHY, E. The new forensics: Criminal justice, false certainty, and the second generation of

scientific evidence. California Law Review, v. 95, n. 3, p. 721–797, 2007.

OSSORIO, P. N. About face: Forensic genetic testing for race and visible traits. Journal of Law,

Medicine & Ethics, v. 34, n. 2, p. 277–292, jan. 2006.

PORTER, T. M. Trust in numbers: The pursuit of objectivity in science and public life.

Princeton, NJ: Princeton University Press, 1995.

PRAINSACK, B.; ARONSON, J. Forensic genetic databases: Ethical and social dimensions.

International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences, v. 9, p. 339–345, 2015.

PRAINSACK, B.; TOOM, V. The Prum regime. Situated dis/empowerment in transnational

DNA profile exchange. British Journal of Criminology, v. 50, p. 1117–1135, 2010.

RÖDERER, J. According to the sex murders - what a DNA analysis can and what it allowed.

Badische Zeitung, p. 1–4, 29 mar. 2017.

ROSE, N. The politics of life itself: Biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first

century. Princeton: Princeton University Press, 2007.

ROSE, N.; NOVAS, C. Biological citizenship. In: COLLIER, S. J.; ONG, A. (Eds.). . Global

assemblages: Technology, politics, and ethics as anthropological problems. Malden, MA:

Blackwell Publishers, 2005. p. 439–463.

SAYES, E. Actor-network theory and methodology: Just what does it mean to say that

nonhumans have agency? Social Studies of Science, v. 44, n. 1, p. 134–149, 2014.

SOLDT, R. Raped and murdered. Frankfurt Allgemeine, p. 1–4, 16 nov. 2016.

STAR, S. L. This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science,

Technology, & Human Values, v. 35, n. 5, p. 601–617, 2010.

TOOM, V. et al. Approaching ethical, legal and social issues of emerging forensic DNA

phenotyping (FDP) technologies comprehensively: Reply to “Forensic DNA phenotyping:

Predicting human appearance from crime scene material for investigative purposes” by Manfred

Kayser. Forensic Science International: Genetics, v. 22, p. e1–e4, 2016.

TRUSCHEIT, K. After murder in Freiburg DNA analysis should be extended. Frankfurt

Allgemeine, p. 1–2, 14 dez. 2016.

VAILLY, J. The politics of suspects’ geo-genetic origin in France: The conditions, expression,

and effects of problematisation. BioSocieties, v. 12, n. 1, p. 66–88, 2016.

VAN DER PLOEG, I. Biometrics and privacy: A note on the politics of theorizing technology.

Information, Communication & Society, v. 6, n. 1, p. 85–104, 2003.

VAN DER PLOEG, I. The machine-readable body. Essays on biometrics and the information of

the body. Maastricht: Shaker Publishing B.V., 2005a.

Page 28: BIOÉTICA NO SÉCULO XXI - Universidade do Minho · 2018. 9. 10. · Entre estes, o direito à privacidade. Alude-se, no âmbito deste artigo, a uma conceção ampla do conceito de

313

VAN DER PLOEG, I. Biometric identification technologies: Ethical implications of the

informatization of the bodyBITE Policy Paper: BITE Policy Paper. Rome: [s.n.]. Disponível

em: <http://www.biteproject.org/documents/policy_paper_1_july_version.pdf>. Acesso em: 4

out. 2010b.

WESTIN, A. F. Privacy and freedom. New York: Atheneum, 1967.

WIENROTH, M.; MORLING, N.; WILLIAMS, R. Technological innovations in forensic

genetics: Social, legal and ethical aspects. Recent Advances in DNA and Gene Sequences, v. 8,

n. 2, p. 98–103, 2014.

WILLIAMS, R. The management of crime scene examination in relation to the investigation of

burglary and vehicle crime. London: [s.n.]. Disponível em:

<http://library.npia.police.uk/docs/hordsolr/rdsolr2404.pdf>.

WILLIAMS, R.; JOHNSON, P. Circuits of surveillance. Surveillance & Society, v. 2, n. 1, p.

1–14, jan. 2004a.

WILLIAMS, R.; JOHNSON, P. “Wonderment and dread”: Representations of DNA in ethical

disputes about forensic DNA databases. New Genetics and Society, v. 23, n. 2, p. 205–223, ago.

2004b.

WILLIAMS, R.; WIENROTH, M. Ethical, social and policy aspects of forensic genetics: A

systematic review. Newcastle upon Tyne, UK: [s.n.]. Disponível em:

<http://nrl.northumbria.ac.uk/id/eprint/16313>.

WILLIAMS, R.; WIENROTH, M. Suspects, victims and others: Producing and sharing forensic

genetic knowledge. In: CHADWICK, R.; LEVITT, M.; SHICKLE, D. (Eds.). The right to know

and the right not to know. Genetic privacy and responsibility. [s.l.] Cambridge University Press,

2014c. p. 71–84.

WÜNNENBERG, I. German researchers warn of DNA phenotyping. Heise online, p. 1–4,

2017.