blecaute revista de literatura e artes n19 completa
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Revista eletrônica editada em Campina Grande - PB, pelo Núcleo Literário Blecaute.TRANSCRIPT
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19Janeiro - Julho- 2015 - ISSN: 2238-930X
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19Janeiro - Julho- 2015
ISSN: 2238-930X
Campina Grande (PB) Ano 6 N19
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Copyright 2015, Ncleo Literrio Blecaute All Rights Reserved.
permitida a reproduo total ou parcial desta edio de Blecaute: revista de lite-ratura e artes; Os textos ou fragmentos de textos, quando reproduzidos, devem ter suas referncias (autoria e lugar de origem da obra) devidamente citadas, conforme preconiza a legislao vigente no Brasil acerca dos direitos autorais (Lei 9.610/98); As opinies emitidas nos textos so de responsabilidade exclusiva dos autores, sendo estes ltimos responsveis pela reviso e contedo de suas produes; vedado o direito de qualquer cobrana pela reproduo desta edio.
Periodicidade: Semestral
CAPA: Escutando Olhares 02, 2013Infogravura sobre tecido sinttico, Jas-One - Jardel
Editores:Bruno Rafael de Albuquerque Gaudncio
[email protected] / @BrunoGaudencioJanailson Macdo Luiz
[email protected] / @jan_macedoJoo Matias de Oliveira Neto
[email protected] / @j_matiasFlaw Mendes (Editor Visual)
fl [email protected] / @fl awmendes
800
R454 Blecaute: revista de Literatura e Artes, ano. 6, n. 19
( Janeiro - Julho - 2015) Campina Grande, 2015.
p.: 56, il. color.
ISSN: 2238-930X
Editores: Bruno Rafael de Albuquerque Gaudncio, Flaudemir S. S. Mendes,
Janailson Macdo Luiz, Joo Matias de Oliveira Neto.
1. Literatura. 2. Literatura Ensaios. 3. Literatura - Contos. 4. Literatura
Poemas. I. Ttulo.
21. ed. CDD
www.revistablecaute.com.brwww.facebook.com/revistaBlecaute
[email protected]@revistablecaute
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ndice
EDITORIAL
CONTO: A Demanda do Bosque Sombrio - Brulio Tavares (RJ-PB)
POEMAS: Estrangeiro e outros poe-mas - Diego Callazans (SE-BA)
O SANTO OFCIO: As Lies de Virginia Woolf - Franklin Jorge (RN)
POEMAS: preciso que te movas e outros poemas - Vanessa Regina (RS)
CONTO: To Sel e or Not to Sel e - Julia Antuerpem (SP)ENSAIO: Uma Ausncia, por
Enquanto: A Melancolia nos Poemas de Hemisf-rio, de Yuri Emanuel - Sidney Andrade (PB)
RABISCO DO OUVIDO:
Carcar - Raoni Xavier (PB)TRECHO DE ROMANCE:
Fade In: Wander Shirukaya (PE-SP)POEMAS: A Marcha dos Sris e outros
poemas - Diego Mendes (PR-PI)
ENSAIO: Duas Pelejas para um Caminho sob o Sol Cordelstico - Aderaldo Luciano (RJ-PB)
OFCIO LITERRIO: Para Gabriel Grcia Mrquez- Reynaldo Bessa (SP-RN)
POEMAS: Conversa com Poeta e outros Poemas - Hildeberto Barbosa Filho (PB)
VISUALIDADES: Recortes e ressigni cao da matria em Luiz Barroso - Wellington Medeiros (PB)
CONTO: O Lobo - Nathalie Loureno (SP)O AEROPAGO: Chega de Saudades (Parte II):
Os Terroristas da Saudade - Valdnio Menezes (RJ- PB)
ARTIGO: Eita gota, que cadin de amor pra render tanto em ns! - Jonhniere Alves Ribeiro (PB)
MEKATRONIA: Will Simes (PB)
POEMAS: Acho que sou plen e outros poemas - Belle Jnior (PR)ARTISTA DA CAPA: Escutan-
do olhares 02, - Jas-One (PB)
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5 Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
Editorial
Habemus Blecaute!
Ave! Finalmente sai a 19 Revista Blecaute! Antes tarde do que nunca, gostaramos de justifi car nosso injusto atraso com uma data vnia: alguns dos nossos editores estiveram, por estes meses, assu-mindo atividades diversas, passando por mudanas geogrfi cas e pes-soais. Foi tamanha a mudana que a Revista Blecaute, a partir deste primeiro nmero de 2015, passar a ser semestral. Isso mesmo, com vistas a garantir a mesma qualidade de sempre e, apesar de nossas mltiplas atividades, tambm buscando se adequar aos projetos dos editores, a Blecaute optou por ser uma revista semestral, como alis costume entre publicaes de vis acadmico e literrio. Esperamos, com essa mudana, a compreenso e o mesmo carinho de todos os leitores que nos acompanham nestes quase sete anos de atividades. Com a periodicidade semestral, a Blecaute tambm busca se constituir como um espao de debates e discusses mais elabora-das, abrindo maior espao para a crtica literria, artigos acadmi-cos, resenhas e ensaios. De acordo com o conceito Qualis conferido pela CAPES (Comisso de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) Revista Blecaute, obtivemos a distino B5 em Litera-tura/Lingustica, o que nos qualifi ca, sendo a Blecaute uma revista que no se encontra associada a nenhuma universidade. Acadmica e tambm literria, a Blecaute prima pela qualidade dos contistas, poetas, crticos, artistas e demais intelectuais que nos honram com a publicao de um material de qualidade, merecedor dos olhos crite-riosos de nossos leitores. com esse clima de retorno que brindamos ao leitor com um conto exclusivo do escritor Brulio Tavares, e ainda com a publicao de um trecho do romance vencedor do Prmio Pernambuco de Li-teratura 2015, Ascenso e Queda, da autoria de Wander Shirukaya. Nesta mesma edio, contos de Nathalie Loureno e Julia Antuer-pem reatualizam a Blecaute dentro da cena literria paulistana, apre-sentando uma amostra de duas boas escritoras do gnero. Entre os
colunistas, Reynaldo Bessa homenageia Gabriel Garcia Mrquez e Valdnio Menezes rendem messes s saudades na coluna O Aeropa-go. Sem contar Franklin Jorge, que nos deleita falando de Virginia Woolf; Welligton Medeiros, sobre o inventivo artista Luiz Barroso. Somam-se, ainda, as colunas visuais de Raoni Xavier e Will Simes, parceiros queridos da revista. So muitas emoes para um s retor-no! Na poesia, um painel de alguns dos mais representativos poe-tas da jovem literatura brasileira contempornea: Diego Callazans, Vanessa Regina, Diego Mendes e Belle Jnior esto na companhia do experiente poeta e crtico literrio paraibano Hildeberto Barbosa Filho. No ensaio, temos um dos mais importantes estudiosos da li-teratura de cordel, Aderaldo Luciano, paraibano radicado no Rio de Janeiro, alm dos jovens escritores e mestres em literatura pela Uni-versidade Estadual da Paraba, Sidney Andrade e Jonhniere Ribeiro, que esboaram estudos sobre fi ccionistas paraibanos. Sem esquecer o artista Jos-One, revelao das artes visuais campinenses, ilustrando a nossa volta depois de muitos meses de ausncia, compomos um belo quadro nesta edio. Diante de um clima de diversidade e retorno s atividades, a Revista Blecaute preparou um sumrio com a melhor e mais diversa equipe de autores selecionados para esta edio. Inaugurando a revis-ta com o conto de Brulio Tavares no seria, por fi m, menos emble-mtico devotar ao mestre da literatura fantstica brasileira nossa mais sincera homenagem. Brulio foi o ganhador do Prmio Blecaute de Literatura em 2014, sucedido por Maria Valria Rezende em 2015, que j publicou em edio passada. Brulio abre a revista com honrarias e distines. Nada mais que o merecido para um grande escritor entre tantos outros.
Boa leitura!
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6 Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
CONTO
A DEMANDA DO BOSQUE SOMBRIOPor Brulio Tavares
Quando acordei, um vozerio confuso penetrava pelo arcobo-
tante da janela do meu quarto, como o burburinho impreciso de
uma feira na Quaresma. Debruando-me para fora, pude lobrigar
a azfama dos cavalarios, empilhando feno, renovando a gua dos
cochos, polindo arreios, alimentando as rdegas cavalgaduras, tudo
isso ao som dos sinos da capela de So Pancrcio, que repicavam
festivamente ao sol matinal. Chamei meus criados de quarto para me
ajudarem a vestir a armadura, pois era fi nalmente chegado o dia da
Grande Expedio. Vieram Fenelonges e Fidncio, que me ajudaram
a vestir a ceroula, o espartilho, os suspensrios, a cota de malhas, as
caneleiras, o peitoral, o boldri, o talim, o broquel, o morrio, os joa-
netes, a couraa, o elmo, a viseira, os guantes, a durindana, a excalibur,
os penachos, o rebenque e os culos bifocais. Pendurei meio quilo
de logotipos herldicos por cima de tudo, e fui escovar os dentes no
terreiro.
Chegando ao salo principal, encontrei Lorde Guardim e o
Baro de Pia-Pouco, que ergueram suas taas em minha saudao.
Discreteamos um pouco sobre assuntos belicosos e cinegticos, en-
quanto saborevamos a refeio matinal: peito de cabor ao molho
de cogumelos, torresmo a escabeche, feijo-da-ndia com rododen-
dros, doce de quiabo turco. Fomos interrompidos pela chegada de
um mensageiro do Senescal da Saxofnia, trazendo um sobrescrito
gtico lacrado com os sinetes del Rei. A mensagem me era destina-
da, e ao romper os lacres deparei-me com uma obumbrosa caligrafi a
de traos barrocos, escrita a pena de ganso silvestre. Esforando-me
para no dar na vista, reli trs vezes o aranzel de garatujas, e supus
dois possveis contedos da missiva: ou o Rei estava me convidando
para uma caada morsa no bosque sententrional do Condado de
Roncro, ou estava me condenando morte pelo barao sacramental
do Carrasco de Rola-Bosta. Na dvida, agradeci ao mensageiro, dei-
lhe dois dinares e um ceitil, e aps sua sada ordenei que o decapitas-
sem para sempre.
Encerrado o desjejum, despedi-me dos meus confrades e dirigi-
me para o ptio, onde diversos arqueiros e homens-de-armas ades-
travam-se no uso da besta, do mantelete, da catapulta, do arete, da
estrapada, do borzeguim e das bandarilhas. Fui saudado marcialmen-
te por todos, e encaminhei-me tilintante at a estrebaria principal,
para ver se Palafrente j estava selado e arreado. Estava. Verifi quei-
lhe as rdeas, a cilha, a sela, os freios, o porta-luvas, os estribos, a
manta, os emplastros cordacos, os frisos da crina, as lantejoulas da
cauda. Ajudado pelos meus escudeiros, Caraminguante e Gongriz,
me escanchei em cima do bufante ginete, soltei meu grito de guerra
que fez fugirem os gansos e as galinholas, e samos para o ptio.
Festiva recepo nos saudou quando emergimos triunfais, com
um cortejo de bandeirolas rubro-amarelas, cmbalos, estandartes des-
fraldados ao vento, rufar de tambores e clangor de trombetas. Er-
guendo a mo para impor silncio, o que consegui depois de berrar
quase meia hora, proferi uma elocuo de despedida, aps o que dei
ordem para que abaixassem a ponte levadia, que atravessamos entre
um agitar de lenos brancos das amuradas, seteiras, ameias e barba-
cs. O imenso descampado verde-oliva se estendia diante de ns e
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7 Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
com ele as vastides tresvariantes da Aventura.
Descrever as peripcias pelas quais passamos seria tarefa para
ociosos; portanto, apresso-me a faz-lo. Secundado por Gongriz e
Caraminguante, que montavam seus respectivos matungos, adentrei
um frondoso bosque de madressilvas, que trescalava um suave odor
lils. Enaltecamos em voz alta quanto grande o poder da Natureza,
quando de repente deparamo-nos com um rstico aldeo campnio,
escorado no tronco de uma rvore pequena, da famlia das icacince-
as (Emmotum nitens), de fl ores amarelas por fora e purpreo-escuras
por dentro, com pilosidade roxa, dispostas em panculas axilares, e
cujo fruto drupceo, suberoso-lenhoso, tendo a madeira utilidade
para cercas. Durante esse tempo todo ele continuou escorado na faia,
olhando para ns com ar meditabundo, e pitando um cachimbo. De-
pois de nos examinar dos ps cabea, e de certamente concluir que
o nosso era um trio sem p nem cabea, dignou-se tirar o barrete e
nos saudar:
- Salve, nobre senhor.
Ergui dois dedos em sinal de bno, e argui:
- Dizei-me, bondoso ancio, qual o nome deste falanstrio e
qual o braso que o custodia. Somos viajores fatigados pela intempe-
rana das intempries, e necessitamos de um teto que nos d abrigo
dos rigores da noite.
Ele discorreu:
- Senhor, nasci e fui criado nestes arredores, e antes de mim
meu pai, e o pai do meu pai. Assevero-vos que pisais terreno perten-
cente casa dos Falangetas, nobre casa aparentada ao sangue real,
atravs do seu patriarca, o Baro de Aambarca.
Eu obtemperei:
- Entretanto, venervel macrbio, em nossos portulanos de via-
gem nada consta sobre a existncia de tal feudo nesses arredores.
Ele argumentou:
- Senhor, tal anomalia cartogrfi ca por certo se deve s frequen-
tes defenestraes sucessrias de que estes ducados e baronatos so
prdigos, difi cultando sobremaneira a atualizao das hierarquias e
dos ttulos.
Eu aquiesci:
- Assim , digno sexagenrio, e podeis estar certo de que em
nossos prprios latifndios essas sublevaes de subalternos so uma
verdadeira espada-de-ndrocles suspensa sobre nossos viscondssi-
mos cangotes.
Ele aduziu:
- Sem se falar, nobre senhor, que s vicissitudes do momento
poltico vm se somar as lacunas produzidas pela peste, pelo escorbu-
to, pela pelagra, e por outras decorrncias da insalubridade reinante
no sculo, como o mal-cltico, o mal-americano, o mal-turco, o mal-
francs, o mal-de-npoles, o mal-escocs, o mal-canadense, o mal-
germnico, o mal-ilrico, o mal-polaco, o mal-glico e outros nus.
Eu tergiversei:
- Mas que isso, provecto antepassado, no vos aquebrante o ni-
mo nem vos ensombrea o sobrecenho, pois rezam os antigos que
uma poca vir, na qual tanto o sangue nobre quanto o sangue fi sio-
lgico estaro a salvo desses traioeiros percalos; uma poca em que
a polcia ser a salvaguarda da poltica, e a penicilina ser a eminn-
cia-parda do pnis.
Ele suspirou:
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- Ai, nobre senhor, quem me dera crer em vossas preconizaes.
Mas sucede que meus antigos so diversos dos vossos, em linhagem
e em profecias. E os meus me dizem que vir uma poca em que o
mundo estar mais do que nunca repleto de males-do-mundo; e que
tais males, mais impiedosos e virulentos que os de hoje, no poupa-
ro nem um s centmetro desse nosso perecvel arcabouo carnal;
e, mais que isso: que os mal-entendidos e as ms-intenes faro
propagar uma tal alastrao de crimes de lesa-realeza que o pescoo
dos plutocratas acabar mais periclitante do que a prstata dos pro-
letrios.
Eu inquiri:
- Ento, primevo gerontiarca, j que o devenir das eras se vos
afi gura to tenebroso, deveis estar em regozijo, por ter-vos sido dada
a benesse de cumprir vossos dias num tempo ainda to respirvel
quanto o atual.
Ele divergiu:
- Nem tanto, nobre senhor; porque, mais do que a precria pas-
maceira a que hoje chamam bem-estar, agradar-me-ia presenciar as
convulses terremotrizes de que o futuro se anuncia to bem provi-
do, e contemplar uma poca em que ns, os labregos, os lapuzes, os
labrostes, empunhssemos os machetes, as foices, as roadeiras, as
lambedeiras, os trinchetes, os facalhes e sassemos em farndola,
ululantes! Instituindo o revertrio da malta, a rebordosa da plebe, o
rebolio das corjas, a recarga do z-povinho, a recada da scia, a re-
corrncia da caterva, o rodopio do populacho, o rasga-bucho da ral!
O pega-pra-capar!
A eu no tugi nem mugi, e sem dizer gua-vai pespeguei-lhe
uma espaldeirada-em-prancha que o descangotou em ngulo reto,
berrando:
- Pois toma logo essa, cascabi-de-sucata, e vai visitar o calca-
nhar de tua putav!
Mas a, como num passe de mgica, choveu sobre ns uma re-
voada de dardos e setas; e vimo-nos cercados por centenas de sic-
rios maltrapilhos e canibalescos, armados de bestas, chuos e fundas!
Erguendo-me terrvel no alto do meu cavalo-de-batalha, prorrompi
em brados guerreiros, enquanto distribua lanaos e cuteladas em
redor:
- A mim, Gongriz! A mim, Caraminguante! Eia, sus! Aqui del
Rei! Viva o imperador! Caluda! A guarda morre e no se rende! Hip,
hip, hurra! Sacrebleu! Caz, caz, caz! Callooh, Callay! Arreda, gen-
talha que eu estripo e esquartejo!
Assim eu vociferava, cercado por um enxame de latages em f-
ria, desvencilhando-me dos laos, esquivando-me dos acutilamentos,
escudando-me das fl echadas, e ao mesmo tempo fendendo crnios,
trinchando espduas e desviscerando abdmens. Enquanto isso, meus
dois desastrados ajudantes distribuam golpes cegos contra o vento,
ou um no outro, ou contra a folhagem, cobrindo-nos com uma verda-
deira chuva de ramculos, brotos, lquens e cips. Por entre o clamor
da batalha e o troar anacrnico das bombardas, abri caminho por
entre a tropa inimiga, enquanto eles se apegavam a mim como um
milho de rs insurretas, grudando-se s minhas costas, mordendo-
me a nuca, afrouxando meu cinto, desparafusando minha armadura,
amorcegando-se em Palafrente, cortando a canivete seus arreios e fa-
zendo com que eu fi nalmente desmoronasse de cima de seu costado,
aluindo ao cho no meio da turbamulta, por entre um clamor feroz
de triunfo, e uma chuva de cacetadas, trompaos e muxices, at que
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9 Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
meus duzentos quilos de ferragens e perplexidade quedaram atravan-
cados em campo-de-honra, sendo calcados aos calcanhares por uma
vintena de hirsutos ferrabrazes que celebravam com alegus o triunfo
de sua jaqueria.
Contundido e estonteado, mal tive noo de que Caramin-
guante e Gongriz eram tambm submetidos e atados um ao outro, e
que os nossos truculentos vencedores nos conduziam, por entre ver-
gastadas e algaravia, ao castigo fi nal! Minha cabea febril entrou em
justifi cado pnico ante a perspectiva de uma morte aviltante, longe
da elegncia das lias ou do fragor das refregas. Enquanto eles me
rebocavam, trpego, balbuciante, com uma ponta do correiame atada
ao meu pescoo e a outra ao rabo de uma burra (manca, ainda por
cima!) eu prorrompi na vasta objurgatria que depois, sem que eu o
soubesse sequer, seria preservada nas crnicas e transmitida aos ps-
teros como minha orao fnebre:
- Ah, iracundos arautos do pandemnio! Acaso estais pensando
que vosso trajeto plantgrado conseguir curvar a cerviz de nossos
brases dicotiledneos? Iluso trda! Brancas nuvens! Doudo af! O
ao impoluto de nosso sangue nobre dar frutos mais duradouros do
que a insensata balbrdia com que requentais a febre das sociedades.
De nada vos adiantar vociferar contra a solidifi cao das artrias
da aristocracia! Jamais as vossas sedies conseguiro fazer estreme-
cer os alicerces de nossas pirmides, de nossos ministrios, de nossas
torres-de-marfi m! A locomotiva da Histria no padece desses reu-
matismos. O Tempo um dinossauro implacvel que vai roer a corda
do vosso sino, e a vai dar o cru! Carnifi cinas! Hecatombes! Hero-
des e So Bartolomeu! Vossos gibes encardidos ho de conhecer a
tmpera do nosso fi no ao de Toledo! Sereis passados a fi o de espada,
e os sobreviventes descero s masmorras imperiais, onde vo ver o
que bom pra tosse! O azorrague! A gua-de-sal! A virgem de ferro!
O leito-de-Procusto! A roda e o pelourinho!...
Nesse nterim, bem como nos anteriores, estvamos atravessan-
do uma clareira que sucedia ao bosque, e terminava abruptamente
numa encosta pedregosa onde adivinhei um precipcio, bem como a
sorte que nos esperava. A foi que eu esbravejei!
- Capadcios e camumbembes! Podeis matar-me, e matar a
esses dois estrupcios que vm a atrs e s fi zeram me atrapalhar!
Mas nossas armas luzem cobertas de glria no campo de combate! O
tempo vos ensinar um dia o signifi cado da palavra Honra! Sabereis
ento que sois o rebotalho da espcie humana, e que vossas caranto-
nhas gafentas jamais merecero fi gurar ao lado das nossas, no pan-
teo dos heris, no sacrbulo dos justos! Ns somos o Sangue Azul!
A eles j estavam me metendo o p na bunda, e eu bem na beirinha
do groto a eu tive que apelar:
- Gongriz, meu santo! Caraminguante, amigo velho! A gente
t lascado! Arreda, que eu pulo s! Vamos dar s de vila-dioooooo-
gooooo...
E mergulhei de cabea pra baixo, logo eu que sofro de vertigem
e ainda ouvi os berros dos dois abestalhados sendo jogados depois
de mim e um cho cheio de pedras l em baixo mas o abismo era
to grande, to grande, mas to grande, que antes de chegar no fundo
eu peguei no sono.
F I M*
BRULIO TAVARES (RIO DE JANEIRO-PARABA) Escritor, compositor e ro-teirista. Tm dezenas de livros publicados, entre coletneas de contos, cordis, poemas, en-saios. Entre as suas obras, destaque para A Espinha Dorsal da Memria (Contos, Rocco, 1990). Possui vrias letras publicadas por diversos cones da msica brasileira, como Elba Ramalho, Antnio Nbrega e Lenine.
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
POEMAS DE DIEGO CALLAZANS
[estrangeiro]
eu sou estrangeiro
estrangeiro
no de carne ou de mapa
as fronteiras mal barram as palavras
(num toque me fao esparso
e lano-me inteiro aos cantos)
eu sou de fora
nem de mim trago mais que esse trago
que ergo a quem me l e verto
sem que o ar me falte
no sou formado dos cacos
de sempres e nuncas que vagam j
entrecruzados
eu sou estrangeiro
no sou retalho ou costura
tapete que se joga ao sto e caro
no sou de cinco minutos
ao p do noticirio
com o peito a calibrar meu silncio
(o meu solfejo peca s pela clave)
eu sou estrangeiro
mesmo que a mo no tropece
na lngua em que me ofereo
que o bero garanta o acesso
e o umbigo fomente frutos
na terra que me reclama
estrangeiro ainda
zanzando entre os cordis
daqueles que portam a estada
estrangeiro
no gueto de um s pria
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
[Bagd]
nesta noite
(pano negro
sem pires),
lrios bolorentos
num convulso
amarelo parem moscas.
sobre Bagd
avoam
acaus serenas.
temos olhos surdos.
mas segredo!
nosso verso pode ser
vmito negro.
[contabilidade]
sol negro nas ruas.
em andrajos se arrastam
os cacos do cenrio.
a cidade acusa os cus
com seus dedos de vidro.
meu dimon febril
em esqueltico abrao
me pe
estilhaos no sangue:
pulsantes vermes nos sonhos
de cada ser reticente anseiam
assassinato!
da as navalhas nos olhos
e as vozes de napalm.
por isso as mes embalam medalhas
ou veem purezas violadas
enquanto em tronos de lama
frgidos grfi cos regem
maquinarias macabras!
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
meu silncio cheira a
bebs retalhados.
metafsico afago:
o cigarro me necropsia.
[machina mentis]
feito uma manufatura,
fordistamente minha cuca
torce & destroa as palavras,
e mal extrai uma metfora,
ou metonmia, ou insight,
ou mesmo chiste fugaz.
a produo no arca mais
com os vastos custos dirios.
a mo-de-obra, os Miolos,
j no recebe sua cota
como os delrios so caros!
os burburinhos do conta
de um indicativo de greve
um aneurisma pra breve.*
DIEGO CALLAZANS (SERGIPE-BAHIA) Poeta. Nasceu no dia 26 de julho de 1982 na cidade baiana de Ilhus. Mora em Aracaju desde os cinco anos. Jornalista no praticante, j dirigiu vdeos, atuou em espetculos teatrais e desenhou quadrinhos Autor do livro A poesia agora o que me resta (Patu, 2013), Tem poemas publicados em re-vistas como Celuzlose, Diversos Afi ns, Mallarmargens e Reversos. Seu segundo livro est previsto para sair em 2015.
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
O SANTO OFCIO
AS LIES DE VIRGINIA WOOLFPor Franklin Jorge
Virginia Woolf [1882-1941] escreveu sobre quase tudo sem
prestar tributos ou dispensar louvores fi ngidos. Sentimos, ao l-la,
que um grande escritor tambm um leitor extraordinariamente cul-
to e apto a atravessar a porta estreita da arte sem carregar as ferra-
mentas do seu absorvente ofcio.
Mais conhecida entre ns por sua prosa de fi co e por ouvir
rouxinis cantando em grego, Virginia mostra-se em O valor do riso
coletnea traduzida e organizada por Leonardo Froes, que acaba de
sair no Brasil - a ensasta criteriosa e sagaz que pode dizer-nos que
a msica incita em ns alguma coisa feroz e inumana; a autora de
textos analticos e autobiogrfi cos que catalisam suas refl exes est-
ticas, inquietaes espirituais e tormentos existenciais que a levaram
ao suicdio em 1941, ao jogar-se nas guas do rio Ouse, perto de sua
casa, em Sussex. Enchera de pedras os bolsos do casaco. Estava ca-
sada desde 1912 com Leonard Woolf, com quem fundara em 1917 a
Hogart Press que se tornaria prestigiosa.
Prospectou a alma humana e esquadrinhou volta de si mes-
ma, buscando o riso puro tal como o ouvimos nos lbios das crian-
as e das mulheres tolas, atualmente em descrdito pois ningum ri
mais, como previu ento. Como jornalista cultural e cronista, lanou
olhares perspicazes sobre as diversas camadas e esteios da sociedade
londrina, ainda formalmente vitoriana mas j solapada pelo talento
iconoclasta do grupo de Bloomsbury, tertlia que reunia s quintas-
feiras em Hyde Park Gates e em outros endereos de Kensington
jovens e brilhantes intelectuais e artistas que pretendiam ser renova-
dores da literatura inglesa.
Seus textos mais intimistas, como quando conversa consigo
mesma, concentram a essncia de sua escrita - uma arte que nos faz
perceber, num estranhamento, que o escritor no um homem livre
e a msica de rua, rudimentar enftica, para fazer sucesso deve ser
estridente.
Admirvel o que escreveu sobre Th oreau, Henry Davi Th oreau
[1817-1862], o ltimo de uma linhagem mais antiga de homens ou
o primeiro de uma ainda por vir. Homem selvagem e indomesticvel,
comps O lago de Walden e A desobedincia civil, obras transcen-
dentalistas inspiradoras de movimentos de vida alternativa e mani-
festaes pacfi cas pelo mundo afora.
Th oreau desconfi ava de toda atividade que exige roupa nova e
defendia que todo cidado podia insurgir-se contra o estado que se
tornasse tirano. Tinha a vocao de fi car em casa e amava as coisas
comuns, como um dia de sol ou uma tarde de inverno. Um homem,
enfi m, que no queria viver o que no fosse vida; viver queria a fundo
Por Franklin Jorge
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e sugar toda a essncia da vida. De sua mo diz-nos Virginia em seu
comentrio a sociedade recebeu uma saraivada de golpes. Estico
que amava o silncio, todo e qualquer aglomerar-se em multides,
para fazer o bem ou obter prazer, era para ele uma afl io intolervel.
Achava que no precisava de mais de trs cadeiras em sua casa: uma,
para a solido; duas, para a amizade; e terceira para os colquios.
No fi cam atrs outros ensaios desse livro que recebeu no ba-
tismo o titulo de O valor do riso, como o que tece sobre a publicao
em dois volumes dos dirios de lady Elizabeth Holland, casada aos
quinze anos com um baronete e membro do Parlamento 22 anos
mais velho, Sir Geodfrey Webster, proprietrio rural em Battle Ab-
bey, cuja manso se transformou em extenso do mundo da poltica,
da sociedade e da alta cultura de Londres. Divorciada, casou-se no
mesmo com Lorde Holland, sete anos mais velho. O que escreve
sobre Jane Austen e o leitor comum so grandes momentos desse en-
sasmo inteligente que nos ensina a ver e a observar seres complexos,
e aparentemente normais.
Virginia tinha o gosto da biografi a, dos dirios e dos documen-
tos ntimos que, por sua vez, produziria como estes to bem esco-
lhidos por Leonardo Froes para introduzir o leitor brasileiro em sua
prosa fl uida e densa. No surpreende que tenha escrito o Orlando,
obra da fantasia, como em Shakespeare Sonhos de uma noite de ve-
ro, quando o autor visivelmente se diverte, escrevendo. Seus dirios
e ensaios so o documento de seu processo individual de criao.
a escritora cativa do compromisso com a escritura e com o ato de
escrever como uma pulso de vida. Suas observaes ao comentar as
memrias da atriz Sarah Bernhardt e sua viso multifacetada da mu-
lher e do universo feminino, presente em seus pensamentos. Velhas
casas de Londres, como a de Carlyle, que no consta dessa antologia
exemplar e outras, mais obscuras, como a da velha senhora que em
subrbio de Londres recebe todos os dias para o ch alguns velhos
amigos de uma vida inteira e banal.
Veneza, a Serenissima Repblica dos Doges, merece-lhe um
olhar percuciente e extasiado que se benefi cia do conhecimento pos-
terior. Cidade de palcios e de pintores da Escola Veneziana decan-
tada e resumida nos quatro volumes da obra de Pompeo Melmonti,
traduzidos para o ingls. O apogeu seguido da decadncia. Virginia
escreve sobre Veneza como o ingls passeia, desapressadamente, po-
rm com essa paixo que no pode faltar arte. Veneza da arte tipo-
grfi ca de Aldo Manuzio, difusor dos Clssicos Greco-latinos, Ve-
neza dos palcios submersos e dos pintores da Escola Veneziana, das
ruas escuras e guas profundas. Cidade que atrai os escritores, como
Baron Corvo, Ruskin, Proust. Trs diferentes escritores se devotam a
Veneza, de uma ou alguma forma. Embarcaes, gndolas e o galeo
dourado que transportava o doge, pai de toda a raa, cortando os
canais e as lagunas, pem-nas em movimento novamente a prosa de
Virginia Woolf.
Admirvel ensasta! Profunda, clara e cheia de pensamentos.*
FRANKLIN JORGE (RIO GRANDE DO NORTE) Escritor e Jornalista. Vence-dor do Prmio Lus Cmara Cascudo. autor, entre outros, do livro Fices, Frices e Africes (Mares do Sul, 1998).
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POEMAS DE VANESSA REGINA
preciso que te movas
um gro que seja
neste teu olho de prata
cabedal de razes
- so tantas as inundaes
que no carregam nada -
preciso, sim
ferir os ns dos dedos
e desnudar os ps
para que colham a ltima chuva
*
h quem diga que o vermelho cobrir meus ps
e as manhs to serenas
- aquelas de um silncio desastroso -
permanecero mnimas
sobre o assoalho plido da cozinha
eu digo que no
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*a precariedade dos dias
e o adiamento da vida
plantados ali na soleira da porta
minhas mos desdobrando o tempo
e guardando num canto escuro o porvir
a casa que no morada
*no seria mais apropriado se o tempo
- este senhor de braos longos
e punhos para o alto -
interrompesse a trajetria equivocada?
mas somos feitos deste cho
sobre qual pisamos
ainda hoje ao meio- dia*
VANESSA REGINA (RIO GRANDE DO SUL) Poeta. Nasceu em Alegrete (RS). Atualmente reside em Rio Grande, onde cursa o Mestrado em Histria da Literatura pela FURG. Edita o blog H quem diga que no era aquela msica.
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CONTO
TO SELFIE OR NOT TO SELFIEPor Julia Antuerpem
Segunda feira, 06:07h Acordou querendo mudar o mundo. Original. Necessrio.
Apenas uma manh de um dia qualquer e c estava ele, deitado, com
uma epifania em sua mente. No se deixou enganar pelos primeiros
raios de sol: eram dias sombrios.
Lembrou que, quando era criana, tinha um grande prazer em
pensar no infi nito. O cu sempre foi o nico limite. Sonhava noites
interminveis em estar com voc, Holden, no campo de centeio. So-
nho adiado. Parava para afagar todos os cachorros que encontrava na
rua e sonhava em levar todos para casa. Sonho perdido. Todo natal
se perguntava Papai Noel: voc existe? P, isso era importante! Mas
foi-se. Hoje, tudo isto no passava de um elixir mgico.
E foi assim toda a vida: o menino que queria ser astronauta,
msico, pintor ou inventor, mas foi condicionado para querer ser
chefe. O adolescente que pensou em estudar fi losofi a, mas teve que
priorizar a efi cincia capitalista. O adulto que j foi freudiano e yun-
giano, religioso e atesta, de direita e de esquerda, a favor e contra.
Mas hoje, preferia no discutir mais nada.
E assim, atualmente, nada mais era do que um homem que no
tinha nada a ver com o mundo.
Ento por que isto agora? O que esta manh tinha de diferente?
Nada. Eis a questo. A janela de seu quarto continuava a mostrar o
mesmo mundo de fora, visto pelo mesmo homem de dentro. Ser
que tantos anos omissos fi nalmente se mostraram como uma pertur-
bao latente? Algum ouve o que ele ouve, algum sente o que ele
sente?
Analisando, ele chegou concluso que o comodismo a peste
do sculo XXI. Arriscar-se para alargar horizontes? Meu caro, mais
vale ser pa 06 CONTO To Selfi e or Not to Selfi e - Julia Antuerpem
SP rvo do que morto. Pergunte a qualquer um. Colombo foi um lou-
co descompensado de atravessar aquele oceano procurando alguma
coisa.
Hoje, em todo lugar do mundo h medo, desconfi ana, desilu-
so. Dinheiro sujo, conscincia suja, discursos que secretam. Espcies
se tornam extintas mais agilmente do que qualquer corrupto, que se
declara socialista, sentenciado. Deus morreu, mas tem um orculo
Por Julia Antuerpem
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oportunista em cada esquina. A direita ganha, a esquerda renasce das
cinzas e tudo recomea do zero nesta tela total. As pessoas no sabem
mais de si. Ningum admira mais o progresso dos outros, ningum
quer ajudar, ningum quer melhorar. Esperam ansiosamente (porm
dentro de uma pacifi ca acomodao), por um mundo melhor. Rotu-
lam o sistema como mau, mas no como inimigo. E, no fi m do jogo,
preferem adiar toda a partida. Adorabilssimo este mundo novo.
Todas aes acontecem pelo medo, no pela busca de uma ple-
nitude. Algum se aproximou no trabalho? Ou pra te imitar ou
boicotar. Desafi o algum achar algum outro adjetivo que venha
mente primeiro. Morra quando quiser, mas, por favor, s no no meio
da maratona usando o uniforme do patrocinador: no pega bem. No
divulgue novas oportunidades, no abra os vidros do carro e use todo
tipo de sorte que tiver disponvel para brincar de sobreviver. Ateno,
o manual de hoje da sobrevivncia alega: no pea paz, pea armas;
no reze para ter esperana, reze para ter foras. Amargo o posto
de fi m do mundo.
O um por todos e todos por um quase uma utopia, um uni-
crnio ou uma imagem fssil de um passado longnquo. Agora o
salve-se quem puder reina como uma constante msica de fundo,
alta e em bom tom. Sndrome da toda alma moderna. Tem tanta
coisa desandando que nem sabemos o nome que dar. Capitalistas:
senhores por mrito, escravos por necessidade. No. Qual o oposto
do milagre? Este seria um bom nome.
Pensou nas inmeras revolues perseguidas, exlio de gnios,
queima de livros e tortura dos que se sacrifi caram por um mundo
melhor, para acabar assim. Oh, amigos, o desculpem: que ele, cmo-
do, sobreviveu e vocs j foram. H uma culpa invisvel e presente:
so estes fantasmas na janela e suas sombras no cho.
Mas agora ele no conseguia mais imaginar aonde encaixar tais
coisas num amanh bem escrito. Os erros tero que ser acertados.
tempo de urgncia, tempo de insurgncia.
06:25h Ento estava decidido: iria mudar o mundo. Simplesmente. Fi-
nalmente.
Seria o idealista, o rebelde, o aventureiro, o altrusta e o incan-
svel. Tomaria o controle de si mesmo. Pararia de apertar o boto
da soneca toda vez que o despertador mostrasse que est na hora de
agir. Agradeceu por ter sido uma criana solitria que s tinha como
amigos os livros. Estes sim formavam um excelente peloto de en-
frentamento. Eureca!
Uma imensa animao e plenitude o atingiram. Um belo co-
meo: uma ideia se tornou um jeito. Decidiu comear escrevendo a
verdade. A verdade! H! Aquelas corriqueiras verdades sobre as quais
pouco se sabe e menos se faz. Afi nal, no foram os prprios humanos
que criaram esta realidade? Criaram, consentiram e at planejaram.
Ui. Estudaria, ento, todas as revolues, o mecanismo do sistema e
reprogramao neuro lingustica. Iria sugerir uma revoluo alm do
capitalismo e alm dos aspectos destrutivos da modernidade. Seria
um texto revolucionrio. Ele, que hoje ningum sabia o que se passa-
va naquele quarto ou em sua mente, mudaria o mundo.
Pensou em escrever com um pseudnimo para no ser encon-
trado, mas achou meio covarde logo em seguida. Seria isto covardia
ou orgulho de querer os louros caso desse certo? Ficou confuso. Pen-
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sou melhor e resolveu comear pela ocupao das ruas, afi nal no s
isso que chama ateno? Talvez, tivesse que comear esta revoluo
fora de casa e no meio das ruas. Mas... nas ruas? Publicamente? E,
se fosse pego, torturado, exilado? Talvez seja melhor comear uma
revoluo discreta enquanto fi nge-se um carter miservel, aceitando
os preconceitos e costumes dominantes, disfarando qualquer coisa
que denote que esta independncia de esprito possa ser interpretada
como uma provocao. Realmente, por mais triste que seja, ser toma-
do por louco traz menos problemas. Difcil a mecnica da revoluo
moderna, hein?
Sua cabea doa. Anos estudando e sonhando aparentemente
sem utilidade, agora vinham tona como um maremoto. Parou e
pensou.
06: 43h Um medo tomou conta. Ser?
O primeiro que levanta a cabea na multido sempre aquele
que toma a primeira pedrada, no ? Que coragem.
Repensou. No conseguia achar outro fi nal para sua empreita-
da: seria, como tantos outros foram, perseguido, exilado, torturado
ou veria sua morte antecipada selada de segredo. No. Temeu pela
prpria vida. Estava exagerando talvez? Afi nal, no d pra ser to
altrusta, to elevado, so seres humanos que habitam a terra, no
mestres ascencionados.
Ser que este idealista aventureiro que ele criou no nada mais
do que um egocntrico, insatisfeito e manaco? H de se convir, que-
rer ser o despertador da atual letargia meio louco. Sem falar suicida.
Quis ter seus livros por perto...
No. Ele no podia fazer tudo. Deixaria algo para deus. No que
ele tivesse medo da morte, mas no tinha pressa em morrer tambm.
Afi nal, por mais que ele quisesse lanar novas leis, no seria julgado
pelas que j existem? Tem como algum transcender e continuar sen-
do membro dele?
J estamos to acostumados com o osso, por que que ele que-
ria pegar a carne agora? Ser o portador das notcias ruins? A verdade
(e que atormenta a todos, at as mentes mais dotadas) que morrer
por um ideal fcil, difcil viver por um ideal.
Ento, brinquemos de poltergeist. Coloquemos-nos na posi-
o de fantoche. Aceitemos esta gerao perdida de pessoas falsas.
Cresamos mortos. Sim. So as injustias da vida. No foi isto que
te ensinaram? A mascara est perfeitamente de acordo com o que se
deseja ocultar.
E assim tudo continuaria igual. Ao fi nal do dia s seria mais um
dia. Sobreviveria, como at agora sobreviveu, junto com esta humani-
dade numa casca de ns.
07: 14h No! No poderia ele arranjar uma desculpa. Outra desculpa.
Outra vez. At a noite mais sombria tem que descansar e o sol h de
nascer.
C estava ele: barganhando por minutos de vida desperdiados,
lutando para ser feliz, mais um pouco que seja. Queria parar de s
assistir, s reclamar, s curtir o Greenpeace no facebook, s chegar no
supermercado e chorar de felicidade que o preo abaixou. Manipula-
dores de todos os tipos reinam imponentemente nesta sociedade viti-
mal, onde um nada mais faz do que suportar o outro, mas ns somos
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os verdadeiros guardies deste mundo. No possvel que estejamos
condicionados ao comodismo.
melhor tentar, ainda que em vo. Ou combatendo o sistema
ou criando um novo. A nica coisa errada no fazer nada. Ir sim,
mudar o mundo. Ir enfrentar o medo, levantar e agir mesmo que isto
signifi casse desfazer vnculos, vender bens e se despedir.
07:30 h O despertador tocou e o tirou desta epifania. Lembrou que era
s um cara em seu quarto, num dia qualquer. E agora?
Ser que tudo isto no se passava de uma indisposio ou se-
ria este o sublime e lento comeo das aes? Maldita hora da noite,
quando nossos sonhos vm. No tinha decidido como fazer. Tambm
no tinha perdido o medo de fazer. Parou. Ficou. , no. Talvez, no
cabia a ele, um rele homem, julgar. necessrio liquidar o silencio do
mundo? No sabia mais.
Suspirou e sacudiu a cabea. Finalmente se levantou. Afi nal, j
eram 7:30, e tinha que ir para o trabalho que no gostava, mas pagava
as contas. E, como bem disse Oxford, a palavra do ano selfi e e no
sharie.
07:31h (e todas as horas adiante) E, talvez, o fi m da humanidade seja diferente do que muitos
esperam. Talvez a humanidade acabe assim, como um suspiro e no
como um estrondo.
Infelizmente, mas simplesmente.
*
JULIA ANTUERPEM (SO PAULO) roteirista e escritora ps-graduada com espe-cializao em Escrita Criativa por Harvard University. ganhadora de diversos editais e concursos privados de Roteiro e Literatura. Dentre eles, destacam-se Melhor Roteiro de Fico pelo Green Nation Fest 2012 (em parceria com a Rede Globo), Melhor Crnica IV Prmio Martha Medeiros 2013 e Prmio Estmulo de Curta Metragem 2011 com projeto suplente. Atualmente, cronista da Revista Benfazeja de Literatura.
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ENSAIO
UMA AUSNCIA, POR ENQUANTO: A MELANCOLIA NOS POEMAS DE HEMISFRIO, DE YURI EMANUEL
Por Sidney Andrade
Campinenses, efusivos, urbanos e introspectivos, os versos do
jovem Yuri Emanuel secretam certa bile negra por entre seus vos
bem encadeados e ritmados, s vezes at ligeiros. Seu livro de estreia,
Hemisfrio, evoca uma melancolia que, longe de ser confundida com
tristeza, nos convida a uma introjeo de si mesmo, a partir de seu
olhar majoritariamente ensimesmado, da celebrao da autoanlise,
da autocrtica, da esperana no prprio devir. Engastados no cin-
za plido da cidade industrializada, desenvolvida, longe das imagens
ridas em tons de spia, os poemas deste livro sobressaltam o leitor
pela umidade com que tinge as cores montonas do cotidiano que,
apesar de preenchido de afazeres, se esvazia dentro de um peito an-
gustiado.
Mas que angstia essa, de onde ela vem? Apesar de esfera
integral, a vida se fragmenta e se divide na intimidade do ser. Dois la-
dos se opem: o eu e o mundo. Um hemisfrio s a metade que me
vale. O outro pura falta. O peso de ser meio-mundo, mais o cansao
de esperar pela outra metade, que no se concretiza. O sentimento de
busca por uma busca um tapa-buraco, tenta suprir a falta de uma
falta, e desse reconhecimento insuportvel de uma ausncia ausente,
sobra a espera angustiada como ncleo de uma grande descontinui-
dade, inrcia agitada que paralisa (HASSOUN, 2002).
[...]Eu sou uma lasca da casca da rvore,O pasto pisado, vasto e comido:Vez ou outra, regurgito;Vez ou outra, ressuscito.No geral, eu s existo.Quero coresQue esse escuro j no basta.
(Sincero, p. 10)
Sendo manuteno de um desejo sem causa, mas cujo objeto
a prpria ausncia, a angstia aparece como manifestao ativa da
melancolia, esta que, por sua vez, pura passividade, morosidade. Por
instantes, o vcuo se preenche e, ainda que indecifrvel, este produto
que enche o peito oscilante d um sentido, mesmo que fugaz e m-
nimo, ao hemisfrio que se : Desgraa no ver que se confunde
pelo amor/ Desgraa ver que se amou direito./ E eu me sinto cheio/
Cansado/ Meio morto./ Eu sou um cara e tanto/ E fi m da piada.
(Vcuo, p. 63).
Vinda da Idade Mdia, quando a peste imps aos homens uma
intimidade inconveniente com a ideia da morte, a melancolia nasce
como introverso, medo do inevitvel, do desconhecido, aniquilador.
A impotncia do ser aplacado pela brutalidade do mundo s se trans-
formou a partir do momento em que, ps sculo 11, o individuo
renascentista entra em contato maior com sua prpria natureza, uma
vez que para se individualizar, precisava se exteriorizar. Esta exterio-
rizao aproximou o homem de si mesmo e, nesta dinmica, o pro-
cesso de autoconhecimento ganhou importncia. Analisar a prpria
melancolia elevou o nmero de biografi as e dotou o objeto espelho
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de uma importncia perturbadora no cotidiano (Scliar, 2003).
[...]A paz olhou pra ele e disse: velho, espera que ta difcil chegar aE ele que j encarou lees,Foi arruinado pelos coelhos.Vou comprar um bicho de estimaoDe preferncia,Um espelho.
(Surpreso, p. 17)
Sujeito e objeto de si mesmo, o individuo diante do espelho pe
em cheque o que pensa e o que no pensa, o que sente e o que no
sente, o que v e o que no v, percebe as falhas, entende as impos-
sibilidades do eu. Olhar-se ser algoz e vtima, num processo inc-
modo, desconfortvel, desconcertante, mas imensamente frtil. Do
embarao com tal confronto, a melancolia leva ao retiro. A retrao,
introspeco. No entanto, ao invs de isolamento, cumpre o papel
de espao da descoberta de si. Como atitude sbia, ensimesmar-se
tentar da conta da metade do mundo que nos cabe, uma vez que,
aparentemente, a metade vazia, o hemisfrio faltante, no se revelar
jamais como apreensvel ao sujeito que Poe em confl ito aquilo que se
e aquilo que se sabe.
Meio-vazio, estar melanclico difere da tristeza na medida em
que esta, na verdade, trata-se de uma reao natural com causa di-
visvel e tempo de durao previsvel, no transcorrer do cotidiano.
Tampouco se confunde com o tdio, sentimento agudo que surge do
contato com a dimenso sequencial montona do tempo do relgio,
que gira em torno do prprio eixo. Para alm destes dois estados, a
melancolia pode fi gurar como condio existencial envolta em uma
aura fi losfi ca capaz at de atribuir certo status intelectual ao melan-
clico (Scliar, 2003).
[...]E por falar em fazer algo, to sem vontade do que quer que seja.No fastio, no verme, No luto, no gripe, no fome, Nem saudade, muito menos se sentir velhoValha!Banzo esse, ento?Deus que sabe!- Vai ver, tdio.
(Por eliminao, p. 36)
O pensar demais, ainda mais sobre si mesmo, tem o curioso
efeito de ruminao das memrias, alm de corroer a conscincia
pela incapacidade de esquecer-se: Hoje eu tive vontade de ser crian-
a outra vez/ Mas no tive tempo de me lembrar/ Como fazia pra es-
quecer/ Do tempo. (Surpreso, p. 17). Mas, se por um lado, voltar-
se para si mesmo confi gura farta fonte de pensamento, no produz
ao quase alguma. Ento, a atitude melanclica, que era vista como
elevao intelectual apropriada, em tempos de Iluminismo, transfor-
ma-se em empecilho social para a era ps-industrializao.
Da modernidade ps-modernidade, os indivduos viram-se
sujeitados inevitvel falta de tempo. Dedicar-se autoanlise pres-
supe um intervalo que no pode ser desperdiado por quem precisa
vender suas horas para garantir o salrio e o sustento. Posteriormen-
te, quanto mais introspectivo, menos socializvel. No se refl ete, se
divulga. O espelho perdeu seu lugar para a lente da cmera, porque
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o tempo de pensamento anula o tempo de exibio. A melancolia,
assim, passou a se manifestar no campo da inadequao. Consequen-
temente, tornou-se causa de sofrimento e angstia ao melanclico
atual.
A subjetividade se realiza, agora, no tempo presente, no nvel
do instantneo, na manifestao do desejo, na demonstrao da em-
balagem imune ao do tempo, no corpo sem marcas. Em plena
sociedade de consumo, o sofrimento psquico brota da artifi cialidade
sexual, moral, subjetiva. A introspeco melanclica coloca o indivi-
duo na borda, uma vez que o destitui da vontade do consumo. Ele
se encontra no tempo da eternidade, sem pressa, sem desejo que o
fi sgue, sem limite que o delineie (PEREIRA, 2012). Melancolia, ao
que parece, submeter-se (ou permitir-se) ao aprisionamento dentro
de um enorme e indefi nido, mas claustrofbico, por enquanto.
[...]Eu no quero mais ter que levantar a mo.Quero s chorar se for preciso,E pedir ao tempo que cure a ferida.Continuo sem sentir saudades,Continuo com a memria ruim.Mas s o fato de continuar j me alguma vitria.
(Trocadilho, p. 20)
Sem perspectiva, no h o que a psicanlise chama de investi-
mento. Sem investimento, no h desejo. Sem desejo, como conviver
harmonicamente na sociedade de consumo? A construo narrati-
va da prpria histria possibilita que os sujeitos tramem as prprias
existncias. Investir confi ar na promessa que se faz a si mesmo,
acreditar no fi nal feliz para o conto que se forja para o futuro da
prpria vida, ainda que o tempo futuro ps-moderno seja imediato,
na medida da satisfao de desejos que se sucedem. Quando no se
consegue articular uma sucesso narrativa que encadeie os fl ashes
cotidianos e que d base para o prognstico do prprio devir, sobra
apenas o apego ao por enquanto, uma vez que a imagem do futuro
revela-se idntica do presente (PEREIRA, 2012). Algo se perdeu,
mas no se sabe o qu. Talvez a prpria possibilidade de se subjeti-
var dialeticamente esteja perdida. Por enquanto, tem-se apenas a si
mesmo, sem querer. E nesse eterno por enquanto, a poesia o que
promete certa redeno:
[...]Que jamais me falte a caixa de fotografi a,Pra que os sorrisos venham sempre lavados pelas l-grimas,E as lgrimas por saudade e saudao, que o soluo.
Que a praga a mim enviada o vento leve,Que os quatro cantos esqueam meu nome,Mas que a Terra um dia me aceite tal como sou.Que eu seja mais do que sou agora,
(Reza, p. 75)
Certa crueldade (para consigo e para com o mundo), no en-
tanto, d ao melanclico a coragem de enfrentar a prpria carncia
de um futuro. No se ilude, o que bom e mau. Mas encara a falta,
sem recuar. O medo de no sentir lhe arranca, ironicamente, o medo
de perder. Esse medo medonho de no viver o que sustenta a vida,
anestesia o grande por enquanto fl or da pele, torna o tdio e a
tristeza suportveis, quase bem-vindos, agridoces.
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Os carros passam l na frente, e me deixam no sobres-saltoPanelas assobiam e distribuem calor.E eu que no tenho dinheiro pra fl ores, volto da venda E encaro o coentro como um buqu de rosas sobre a mesa.O sol que embaava a linha do asfaltoD uma trgua atrs de uma nuvem;Me valho da sombra pra me refrescar,E sendo assim, a vida se resolve sem promessasSo minhas as juras que ainda restamDo lado da janela,Guardadas, Na caixinha do sal.
(Meio-dia, p. 13)
A metade que se e a metade que falta, longe de idealismo ro-
mntico, constituem a busca pela conscincia de si mesmo em meio
ao caos de tantos eles mesmos. Delinear este limite entre dois polos
leva tempo e, no raro, evoca dores abstratas quase invisveis. Em
Hemisfrio, l-se o encontro grave (e mesmo acidental) do eu com
sua inquietude autorrefl exiva, colorindo de marrom outonal, silen-
cioso e quieto, o pasmo de se deparar com um excesso de conscin-
cia inesperado. Se ser um s j me transborda deste lado, que coisas
imensas no haver daquele outro lado que me ultrapassa?
REFERNCIAS:
EMANUEL, Yuri. Hemisfrio. Cidade do Porto: Editora World Art
Friends, 2010.
HASSOUN, Jacques. A crueldade melanclica. Rio de Janeiro: Ci-
vilizao Brasileira, 2002.
PINHEIRO, Tereza. O modelo melanclico e os sofrimentos da
contemporaneidade. In: VERZTMAN, Julio; et. AL. (orgs). Sofri-
mentos Narcsicos. Rio de Janeiro: Cia de Freud, UFRJ, 2012. pp.
17-38.
SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trpicos: a melancolia europeia che-
ga ao Brasil . So Paulo: Companhia das Letras, 2003.*
SIDNEY ANDRADE (PARABA) - Escritor, Jornalista e mestrando em Literatura pela Universidade Estadual da Paraba (UEPB). Colabora com crnicas para o site de notcias culturais campinenses Livre Pauta (www.livrepauta.com) e tem publicado di-gitalmente o livro de contos A Olho Nu, disponvel para download gratuito em www.sidneyandrade.blogspot.com
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes ISSN 2238-930X - Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015
RABISCO DO OUVIDO
Por Raoni XavierCarcar/ L no serto
um bicho que avoa que nem avio
um pssaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavio
Carcar /Quando v roa queimada
Sai voando, cantando,
Carcar / Vai fazer sua caada
Carcar come int cobra queimada
Quando chega o tempo da invernada
O serto no tem mais roa queimada
Carcar mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcar / Pega, mata e come
Carcar / Num vai morrer de fome
Carcar / Mais coragem do que home
Carcar / Pega, mata e come
Carcar malvado, valento
a guia de l do meu serto
Os burrego novinho num pode and
Ele puxa o umbigo int mat
Carcar / Pega, mata e come
Carcar / Num vai morrer de fome
Carcar / Mais coragem do que home
CarcarJoo do Vale
*
RAONI XAVIER (PARABA) Ilustrador, Quadrinista e contista.
ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015
RABISCO DO OUVIDO
Por Raoni XavierCarcar/ L no serto
um bicho que avoa que nem avio
um pssaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavio
Carcar /Quando v roa queimada
Sai voando, cantando,
Carcar / Vai fazer sua caada
Carcar come int cobra queimada
Quando chega o tempo da invernada
O serto no tem mais roa queimada
Carcar mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcar / Pega, mata e come
Carcar / Num vai morrer de fome
Carcar / Mais coragem do que home
Carcar / Pega, mata e come
Carcar malvado, valento
a guia de l do meu serto
Os burrego novinho num pode and
Ele puxa o umbigo int mat
Carcar / Pega, mata e come
Carcar / Num vai morrer de fome
Carcar / Mais coragem do que home
Carcar
*
RAONI XAVIER (PARABA) Ilustrador, Quadrinista e contista.
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TRECHO DE ROMANCE
2FADE IN
Por Wander Shirukaya
Adrian
Tava cansado de ouvir aquele prog mais convencional, Floyd,
Yes, Genesis, aquela coisa toda, e fui na loja que fi cava a dois quartei-
res de casa. Tinha um cara que nunca tinha visto l, e pelo jeito tava
trabalhando. Gostava mais da coroa que trabalhava antes, disseram
que arrumou coisa mais interessante pra fazer do que fi car pesqui-
sando sobre msica pra entender a lngua da turma que colava por
ali. Engraado que o cara novo acabou me convencendo a levar o
London Calling! Puta que pariu, voc sai de casa pra pegar um som
mais elaborado e volta com aquela coisa to simples! Mas o pior
que eu pirei no som. Ele ps pra rolar nos falantes da loja, ouvi com
bastante ateno, j pensando em descer o pau. Acabei fi cando f, eu
e o cara trocamos uma ideia a tarde toda, Johnny o nome dele. Disse
a ele o meu nome, e a, sou Adrian. A ele me mostrou um violo que
estava atrs do balco. Voc um cara legal, s precisa saber que h
mais coisas no mundo da msica do que picos de vinte e oito mi-
nutos. Eu ri com a bobagem que ele tava dizendo, uma menina que
tava escolhendo umas camisetas no outro lado pareceu ouvir e riu. E
aquela mina? Gostosinha, hein! Eu no sei bem, mas me pareceu que
ele tava querendo fazer um raio-X da moa. Como ela tava de costas,
acho que nem percebeu. Peguei o violo, dedilhei alguns arpeggios.
Voc toca bem, cara! Quando ele disse que tambm era formado em
msica, acabei desafi ando ele pra uma jam. Apesar das desavenas, ali
comeou uma grande amizade. Toquei muito na tele dele.
Lune
Esse lbum timo. Obrigada. Goo realmente um grande dis-
co, o que eu tinha em casa era pirata, tava a fi m de encontrar original
pra completar minha coleo. Assim, me contentava em andar com
ele estampado na camiseta que o moo da loja elogiou. Onde fi cam
as camisetas? Ali do lado, perto daquele balcozinho com miniaturas.
Assobiava uma msica, no me lembro qual, enquanto vasculhava
os cabides. Stones, Cannibal Corpse, todos os gostos ali, eu ainda
mal conhecia, quer ajuda, moa? Te preocupa no, moo. Chegou um
cara esquisito solfejando uma coisa que no entendi o que era, que
tu tem de prog a? Deixei a conversa deles pra l, passeei por mais
camisetas, uma estampa legal que fi casse bem com minhas pulseiras
ou com meu cabelo. Ruiva combina fcil com tudo, ri lembrando do
que disse um namorado meu uma vez. Pena que eu nunca consegui
pensar daquela maneira. Resultado: no comprei nada, volto outra
hora, sa, os dois mal perceberam, conversavam sobre msica. Ainda
parei na vitrine da loja ao lado, instrumentos, que guitarra linda! No,
contrabaixo, tinha numa plaquinha com o preo. Deixei de sonho e
fui pra casa.
Johnny
Na loja era proibido fumar, por isso me escondi no banheiro,
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ouvi um barulho. Como poderia ser algum cliente ou mesmo o dono
da loja, atirei os restos de cigarro na privada, dei descarga e fui ao
balco. Para minha sorte, foi apenas uma cliente, uma ruivinha pro-
curando por camisetas. Tive vontade de recomendar qualquer uma;
ruivas so mais adaptveis, sem muitos problemas para se vestir. Para
no ser inconveniente, ative-me a lhe mostrar a seo das camisetas.
Nesta hora chegou um sujeito de jeans e camiseta preta sem estampa
alguma. Indiquei-lhe Floyd, Yes, Genesis, ele deve ter achado meio
primrio. Para no perder o cliente, deixei-o ouvindo algo do meu
gosto enquanto fui vasculhar algumas coisas do gosto dele, pensei
ter visto, logo quando comecei a trabalhar, algo do Van der Graaf
Generator por l, mas no sabia onde. O rapaz me chamou de vol-
ta, comentando ter gostado do som. Clash. Classico! Achei at
estranho algum que dizia ter um gosto to refi nado no conhecer,
mas preferi evitar confl ito. Peguei um violo. Voc um cara legal, s
precisa saber que h mais coisas no mundo da msica do que picos
de vinte e oito minutos, disse em tom de brincadeira, acho que ele
no se importou. Enquanto ele dedilhava algo no instrumento, repa-
rei que a ruiva das camisetas era atraente. No sei bem por que, mas
era. Passei uns instantes a observando. Acho que ela percebeu algum
comentrio, pois foi caminhando para sada enquanto eu e o rapaz
conversvamos. Queria que ela aparecesse mais vezes. *
WANDER SHIRUKAYA (PERNAMBUCO/ SO PAULO) Escritor. Mestre em letras pela Universidade Federal da Paraba (UFPB). Autor do livro Balelas (Contos, Muttus, 2012) e ganhador do Prmio Pernambuco de Literatura (2014) com o romance Ascenso e Queda (CEPE, 2014), do qual aqui foi publicado um captulo.
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POEMAS DE DIEGO MENDES
A MARCHA DOS SIRISPara Ricardo Cravo Albin Todos os siris resolveram
acompanhar os meus ps
Os siris
- dezenas
de patas
azuis
esto se
afogando no mar
a revelar
a carapaa
do amor sublimado
predestinado
cabala dos sonhos
(alm do distante)
nos arrecifes da palavra
a deslizar sem rumo
na marcha dos limites
mar bonito!
mar infi nito!
mar de calma!
Todos os siris e eu
no horizonte fascinante
Sombras da noite incompleta
onde o meu corao
morreu vivo
Siris, alma da minha alma,
direo indiscreta
do meu dedilhar
derrotado
S, vagando no silncio,
os meus siris e eu,
em suprema tristeza
Oh, mar cor da prata
a ferir os meus olhos
ignorados!
Os siris Os siris
ensinaram-me a nadar
na solido dos dias
emirados sob as guas
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A DESPEDIDAPara Astrid Cabral
Assemelhou-se neblina
a doce lgrima da av
o colo de seu tero
no poder de proteger
o viajante
em sua hora
composta
de ardor
aos pedaos
sonoros
de seu calar
de imensa
dor
O ZNGAROPara Ives Gandra da Silva Martins
Do celeste
autntico:
a dor
a revelar-se
verdadeira
Meu relgio parado
para as bestialidades
do adormecimento
em cantos divinizados
Outra noite,
o supremo Anjo
com mantas
estelares
pairou sobre os
meus ombros
e a luz de seu vulto
ofuscou o meu corpo
nas sombras
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da chuvosa paisagem
Eu no sei
ou nada sabia
sobre mistrios
iluminados
de um zngaro
em predestinao
terrenal
Deus aparece azul
na melancolia das
palavras doloridas
e reveste a alma
de vinhos e fugas
em sublimes ardentias
o hino aberto
nos dias dilacerados
pelo Medo
os Tempos pavorosos
em Amor tempestivo
na aurora das rosas
sonoras da sobrevida
repartida em prantos
dos cavalos pressgios
em olhares vrios
o susto
e a redeno
de um vento
passageiro
no horizonte
constelado
e vocacionado
dor
na grande
fora
do etreo
desvelado
sobre mim
*
DIEGO MENDES SOUSA (PARAN- PIAU) Poeta. autor dos livros de poemas Divagaes (2006); Metafsica do Encanto (2008); 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (2010, Edies Galo Branco); Fogo de Alabastro (2011, Coleo Madrugada, Posfcio de Ldo Ivo); Candelabro de lamo (2012, Posfcio de Astrid Cabral) e O Viajor de Altaba (2013, Posfcio de Carlos Nejar).
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ENSAIO
DUAS PELEJAS PARA UM CAMINHO SOB O SOL CORDELSTICO
Por Aderaldo Luciano
Um dia eu quis estudar o cordel brasileiro em sua face pica.
Das pesquisas realizadas poca, conclu que toda a produo refe-
rente ao denominado ciclo dos cangaceiros, com a fi gura de Lampio
frente, oferecia elementos capazes de respaldar minhas opinies
sobre o gnero. E fui procura de aprofundar o bisturi apreciativo.
Essa ao requeria uma observao mais vasta no todo cordelstico
brasileiro, alargando o mapa do material para estudo, tanto terico
quanto literrio. E foi o que destinei-me a realizar.
Na construo do caminho, porm, acabei por encontrar outros
elementos, outros sintomas que fugiam ao tema eleito e me pediam
urgente tomada de deciso. Foi o encontro da peleja Manoel de Aber-
nal e Manoel Cabeceira o responsvel por alguns questionamentos
tericos destoantes do modelo que havia edifi cado. Chegara con-
cluso fi lha da puta que o cordel possua um carter exclusivamente
narrativo, mas, puta que pariu, vejamos o incio da peleja:
Cabeceira Sr. Manoel AbernalSou Manoel CabeceiraO cantador mais tmidoQue teve nesta ribeiraPode fi car descansadoQue ou morre ou sai na carreira
Abernal De onde vossa merc veioTem outro desta maneira?
No tem medo de dizerQue me bota na carreiraEstar bbedo ou fi cou doudo?Para dizer esta asneira?
Deparando-me com esse modelo fui obrigado a repassar as ca-
ractersticas da obra pica e, fazendo o confronto, a comparao, co-
mecei a ver outro caminho para o estudo. No que o cordel perdera
seu elemento pico, seno que ganhara outros elementos. A peleja em
questo, apesar de se desenrolar de maneira igual s outras s quais
tive acesso, faltava-lhe um mestre de cerimnias para apresent-la.
Esse mestre de cerimnias, no caso a pessoa que, supostamente, viu
e descreveu a peleja, um intrujo que sempre aparece nas duas ou
trs sextilhas precedentes ao embate. Foi seguindo essa tradio que
o poeta Varneci Nascimento escreveu sua Peleja de Aloncio com De-
zinho, alis, uma das mais belas e bem construdas sextilhas introdu-
trias que j pude ler em cordel:
Pedir o saber a Deus
praxe dos cordelistas
E o mesmo eu fao agora
Pedindo a Jesus as pistas
Para narrar a contenda
Entre dois bons repentistas
O improviso complexo
Pois no tem um s caminho
Por isso Deus nessa estrada,
Peo-lhe um empurrozinho
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Pra descrever a peleja
De Aloncio com Dezinho
J somos acostumados
Ver repentistas cantando
E acompanhando os versos
Duas violas tocando,
Entretanto essa disputa,
Aconteceu trabalhando.
Nessas trs sextilhas iniciais o poeta, pela voz do mestre de ce-
rimnias, segue risca as orientaes do cordel clssico. Procede a
invocao pedindo a Jesus que lhe d as pistas para escrever um
bom poema, na primeira estrofe. Na segunda, pede a Deus sabedoria
para ser capaz de passar para a escrita o fenmeno do improviso, que
estritamente oral e, na terceira, adverte que no uma peleja nor-
mal entre dois repentistas ao som das violas. Dessa maneira envolve o
leitor e o seduz para que ele se assenhore do motivo dessa peleja ex-
traordinria passada durante dois turnos de trabalho pesado na roa.
Preciso apontar, traidor que sou, um detalhe: na primeira estrofe, o
mestre de cerimnias pede luz para narrar e na segunda pede para
descrever. Num vou nem dizer que um desses tericos capados, que
s pensam em lascar os outros, chamado Georg Lukcs, j desenvol-
veu um estudo inteiro sobre o tema. Considerando que a peleja o
dilogo entre dois personagens, sem a interveno de um narrador,
concordamos que a permuta entre narrar e descrever, aqui, no se
prenda ao acaso, seno a uma confuso intelectual sobre a obra de
cordel, nesse caso, a peleja, difcil de se conceituar, tanto para o leitor,
como para o autor, delatada na voz de um personagem. Pela presena
desse personagem, esse dedo-duro descarado, que quer contar como
se deu a peleja e descrever a prpria peleja na voz dos pelejantes,
acontecida no tempo passado, estando o contador no presente, posso
afi rmar que essa peleja contm traos narrativos. Como suponho que
o leitor da Blecaute no um ignorante completo, creio que ele saiba
que o texto literrio puro no existe, que uma caracterstica que
predomina sobre outra, tambm podemos afi rmar que h uma des-
crio. Peo at desculpas pelo excessos de ques, mas foi o que deu
para arrumar. Olhando um pouco mais, sei que posso, ainda, identi-
fi car traos marcantes do gnero dramtico quando os personagens
assumem, eles mesmos, a direo do poema, confeccionando a inter-
locuo, com o narrador (mestre de cerimnias) retirando-se de cena.
Logo, os trs gneros clssicos se fazem presentes neste texto.
Nas dezesseis sextilhas seguintes o leitor ambientado sobre
o local e a ambientao onde se deu o combate potico: no interior
da Bahia, numa cidade perdida chamada Banza, durante o eito, o
trabalho na roa, na capinagem, cantando batalhes, os versos im-
provisados. Ainda descreve os dois debatedores e apresenta seu Nu
que determina o tema da peleja:
Na cabeceira da roa
Fim do eito derradeiro
Z de Nu disse: Em sextilha
Quero que cantem ligeiro
Seu Dezinho vai ser o boi,
Compadre Aloncio, o vaqueiro!
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
Desse ponto, na vigsima sextilha, os improvisadores assumem
a direo do folheto:
ALONCIO Sou um vaqueiro afamado,
Pego qualquer boi sozinho,
Inda mais sendo pequeno,
E mole feito Dezinho.
De outros correu bastante,
Mas eu lhe pego, Tourinho!
DEZINHO Entro por mata e caminho
E voc no me acompanha,
Pois, correndo atrs de mim,
O seu cavalo se acanha.
Vem metido a estrategista,
Mas volta sem artimanha.
A peleja segue seu ritmo natural, com um dos cantadores sendo
o vaqueiro, que quer pegar o boi, e o outro (o boi) se desvencilhan-
do das armadilhas do primeiro. Percebe-se o respeito oralidade na
observao pontual da deixa, ou seja, leitor incauto, o primeiro verso
da sextilha comeando com a mesma terminao do ltimo verso da
sextilha precedente, o que no levado em conta durante a fala do
mestre de cerimnias, tanto que quando ele retorna, na sextilha qua-
renta e oito, no se prende deixa, para fi car bem marcado o tempo
narrativo, pois a peleja se deu no passado e o mestre de cerimnias
est no presente. Assim:
Algum viu que a disputa
No iria se encerrar
(Um prendia, outro soltava)
E deram pra os dois cantar
Um mote de sete slabas
Pra ver no que ia dar.
A introduo do mote de sete slabas, para ser desenvolvido em
dcimas outra particularidade da peleja oral, seguida a risca pelo fo-
lheto. O mote dado Seno aprende a lio/ Trate ento de se calar,
e os contendores cairo na disputa:
D Aloncio, tome cuidado,
Que eu sou um cantador,
Devo ser seu professor;
Voc por mim educado,
Porque ests atrasado,
No pode me acompanhar...
Ento, jamais vai chegar
minha evoluo.
Seno aprende a lio,
Trate ento de se calar!
A Sempre fala a todo mundo,
Dezinho, a mesma besteira,
Embora que na carreira
No corre nenhum segundo.
Eu sou cantador profundo,
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Nasci para improvisar,
Quando chego pra cantar,
Fao um revoluo,
Seno aprende a lio
Trate ento de se calar!
Quando do desenvolvimento de motes, sejam de sete ou de dez
slabas, os cantadores fi cam desobrigados de perceberem a deixa, para
no amarrar o verso a rimas que se esgotariam, prejudicando as estra-
tgias poticas. O folheto de Varneci Nascimento respeita mais essa
caracterstica. As falas de cada um dos participantes agora so deter-
minadas apenas pela primeira letra de seus nomes, D para Dezinho e
A para Aloncio e o mote tem que ser desenvolvido em dcimas. Ao
fi nal, o mestre de cerimnias retorna para revelar quem foi o poeta
vitorioso. Vejamos quem vence a peleja:
Perceberam que a disputa
Nunca mais ia acabar:
Nem Aloncio nem Dezinho
Queriam se entregar.
Pararam a li e deixaram
Pra outra vez e lugar.
mister que o mestre de cerimnias retorne sempre para fi na-
lizar o folheto, revelando o veredicto. Graas s benevolncias me-
moriais do autor, emotivamente envolvido no poema, nesse folheto
no houve vencedores.
Usei a peleja de Varneci para exemplifi car como funciona o fo-
lheto de peleja clssica. Essa peleja um folheto recente, que conser-
vou a mesma essncia dos folhetos pioneiros. A peleja de Abernal e
Cabeceira, com a qual iniciamos esse papo de corta Loureno, uma
das primeiras escritas por Leandro Gomes de Barros e nega esses
apontamentos todos que fi z sobre texto de Varneci Nascimento.
Na peleja de Leandro no h mestre de cerimnias, nem qual-
quer outro personagem entre os dois debatedores. Eles se apresentam
um ao outro, conduzem suas falas, criam seus estratagemas poticos
e terminam a peleja com um dos dois se dando por vencido. A peleja
toda em sextilhas e Cabeceira reconhece-se perdedor:
Cabeceira Abernal, estou canado
No posso mais debater
Ento dizia Abernal
o que deve fazer
Bateu aqui est no risco
De desertar ou morrer.
Este um caso em que no h narratividade, nem ambientao,
nem tempo. S os personagens debatendo, senhores de sua voz. Por
isso eu fi co puto com uns camaradas que no tem saco para estudar o
cordel em todos os seus aspectos e fi cam escrevendo e falando merda
por a. Depois a gente fala mais sobre isso. Agradeo e abram dos i,
como diz um amigo meu de So Joo do Cariri.*
ADERALDO LUCIANO (RIO DE JANEIRO-PARABA)- Poeta e pesquisador. Tem ps-doutorado em Estudos Culturais pelo Projeto Avanado de Cultura Contem-pornea, da UFRJ. doutor e mestre em Potica pela UFRJ. Licenciado em Letras Ver-nculas pela UFPB. Tem alguns livros publicados, mas cita apenas O Auto de Z Limeira (Confraria do Vento) e Apontamentos Para Uma Histria Crtica do Cordel Brasileiro (Luzeiro-Edies Adaga).
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OFCIO LITERRIO
PARA GABRIEL GARCIA MRQUEZ
A ltima coisa que se encontra ao escrever uma obra aquilo que h de gurar no princpio
Pascal
Por Reynaldo Bessa
Como se comea um livro? Pelo comeo. Mais ou menos. Em
sua Crnica de uma morte anunciada, Gabriel Garcia Mrquez co-
meou pelo fi m. Ou seja, de cara contou o que a maioria dos autores
deixa para o fi nal, porm, como todo grande escritor, arranjou uma
maneira de manter a isca dramtica presa ao anzol, deixando o leitor
interessado at o fi nal-comeo. Edgar Allan Poe, em sua A Filosofi a
da Composio, afi rma que comeou o seu clebre poema, O Corvo,
pelo fi nal, e disse ainda que toda grande Obra deve mesmo ser inicia-
da pelo fi m: comear trabalhando-a pelo fi nal e depois arranjar um
comeo para ela. Entende? Seria o mesmo que imaginar um navio
chegando ao porto: o anseio dos que o esperam, o desembarque, os
abraos, o choro compulsivo e a alegria do reencontro, o apito anun-
ciando que a viagem terminou. Terminou? No, agora preciso pen-
sar em como essa viagem comeou e todo o seu desenrolar... Assim
nos aconselha Poe.
Sobre essa coisa de sentar-se diante do computador, de uma
mquina, ou mesmo do empunhar uma caneta - seja l qual for o
seu jeito de escrever um texto - existe um fi lme, uma comdia, com
Crystal e DeVito. Chama-se: Jogue a mame do trem. Logo no
inicio do fi lme - o trecho mais engraado, a meu ver mostra exata-
mente esse momento da angstia da folha em branco: Billy Crystal
um escritor estabelecido e tenta comear a sua nova obra, mas no
passa da primeira linha. Escreve, rasga, rasga, escreve. De repente
tem um vislumbre e ergue os dedos na inteno de castigar a sua
remington, mas desanima, pois logo ao sentar-se, tudo se esvai fei-
to bolinhas de sabo. Nisso ele gira pela casa, ri as unhas, coa a
cabea, urra, se contorce, pensa, repensa, sussurra. De repente abre
um sorriso iluminado, corre para a mquina como quem procura um
remdio para dor, porm, logo ao sentar-se diante da companheira,
tudo se esvai novamente. Imaginar uma coisa, pr o imaginado
no papel outra completamente diferente. A sensao de que no
seremos capazes de traduzir exatamente o que concebemos, nos seus
mnimos detalhes, nos morde feito co raivoso. Mas nem s de dor
vive o homem. Quando encontramos a ideia certa, a sentena exata,
a palavra precisa, ou algo muito prximo do que imaginamos ento, a
rosa desabrocha suas belas, grandes e generosas ptalas... Uma a uma,
como numa dana de recompensa... E a a coisa vai e vai... E no se
quer mais parar.
Comear bem um texto dar ideia de que aquilo que est por vir
pode ser igualmente bom, ou ainda melhor, e isso desperta a curiosi-
dade e a expectativa do leitor. Um livro que comea mediocremente
bem provvel que termine do mesmo jeito ou ainda pior. A primeira
fi sgada, se bem construda, torna interessante at o tema mais corri-
queiro.
Por isso, saiba escolher o tom. Este dever permear todo o resto
do texto. A maioria dos especialistas afi rma que o primeiro pargrafo
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
do romance Lolita, de Vladimir Nabokov um exemplo disso:
Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne, Minha alma,
minha lama. Lo-li-ta: a ponta da lngua descendo em trs saltos pelo
cu da boca para tropear de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo-
li-ta.
A fi ssura do autor, em primeira pessoa, pela sensualidade da
enteada adolescente j est contida no tom nas primeiras frases do
texto.
No coloque todas as cartas na mesa. V dizendo sem dizer.
Crie expectativas, v enredando, envolvendo. Comece bem, mas no
perca a mo. Lembre-se: o tom. Albert Camus utilizou-se disso ao
iniciar o seu clebre livro: O estrangeiro
Hoje mame morreu. Ou talvez ontem, no sei
A indiferena do narrador logo apresentada, e com pouqussimos
elementos verbais, porm sem esgotar o que est por vir, e j conten-
do o embrio do que o leitor encontrar.
Ao mesmo tempo em que voc deve criar expectativas, tambm
pode e deve contrari-las. Iniciar de forma surpreendente mais uma
maneira de prender o leitor ao mesmo tempo em que lhe passa infor-
maes. Isso quebra a expectativa. H um indcio disso num captulo
de Memrias pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis:
Marcela amou-me por quinze meses e onze contos de ris
A ideia sobre a pessoa nos foi dada no contraste entre tempo e
valor em uma s linha, sem a necessidade de uma descrio minucio-
sa. Isso seria muito chato.
Outro recurso ousado contrariar o senso comum ou os con-
ceitos dominantes (a Dxa). Nas primeiras linhas de Anna Karenina,
de Tolstoi, a ideia dominante da sociedade da poca contrariada
pelo paralelo inesperado.
Todas as famlias felizes se parecem, cada famlia infeliz infeliz
sua maneira.
Enfi m, existem mil maneiras de preparar Neston, perdo, de
experimentar o exerccio de como se pode comear um texto de ma-
neira atrativa. Invente uma. A grande literatura est permeada, no
s de belos pargrafos inicias, como at mesmo de uma nica linha
no estilo execuo sumria. Uma linhazinha apenas e tudo j est ali.
Em O Iluminado, Stephen King usou uma coisa assim:
Jack Torrence pensou : cretino!
A primeira frase pode pegar o leitor pelo brao e conduzi-lo.
Kafka tambm foi mestre nisso, e o seu clssico, A metamorfo-
se um exemplo concreto do ofcio dessa arte.
Certa manh, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Sa-
msa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto mons-
truoso.
O que vir depois disso? Pergunta-se o leitor concentrando-se
ainda mais no livro.
Gabriel Garcia Mrquez no s falava com conhecimento de
causa sobre o assunto, provava: Primeiro pargrafo de Crnica de
uma morte anunciada:
No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se s
5h30m da manh para esperar o navio em que chegava o bispo.
Sou leitor desde muito cedo. Sempre que encontrava um grande li-
vro, quando descobria um grande autor, sentia-me como algum que
acabara de entrar num lugar sagrado, secreto. Pensava ter achado algo
que iria me salvar de todo o mal e de todo o bem tambm. Ainda ve-
jo-me zanzando pelas ruas, em solilquios desesperados, febris, sem-
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Campina Grande (PB) Ano 6 N19 Janeiro - Julho de 2015ISSN 2238-930X - Revista Blecaute - Literatura e Artes
pre e sempre com algum livro debaixo do brao. Eu queria escrever,
e achava que podia. Mas a juventude o momento dos excessos de-
liciosos, dos desafi os desenfreados, do posso-que-posso. Nessa poca
meu pai me perguntava com ares de inquisidor: Enfi m, o que voc
vai ser?. E eu, sem titubear, sem medo da fogueira, enchia a minha
boca com a palavra: Escritor, sem ter ainda a menor noo do que
poderia ser isso. Quando enfi m, achei que poderia, li uma entrevista
do Garcia Mrquez dizendo que j no primeiro pargrafo quase tudo
deve ser defi nido do futuro texto. Tuuuudo: estrutura, tom, estilo, rit-
mo, longitude, e at o carter de um personagem. Isso, de certa forma,
me bloqueou porque eu no entendi nada do que ele queria dizer.
Ora, eu ainda no conhecia bem esse universo, e Gabo j era um
autor estabelecido, vivenciando dia a dia o ofcio da escrita. Escre-
vendo e rasgando e rasgando h tempos, enquanto eu era apenas um
adolescente apaixonado pela grande fi co. Eu era s um leitor voraz
querendo escrever. Como assim, tudo defi nido no comeo do texto?
Perguntava-me. S tempos depois pude entender. Plimmm. Ahh-
hh... Ento isso? Ahhh... Gabo queria dizer que pra saber terminar
um texto, desenvolv-lo, no errar a mo, seguir em frente preciso
principalmente saber comear. Uma coisa t ligada outra. Tudo est
interligado. Se algo desanda, todo o resto tambm soobra. E se isso
acontece, pode ser preciso comear de novo por outro caminho ou at
mesmo jogar o texto to querido no lixo e pensar em outro.
Crnica de uma morte anunciada me fez repensar o meu modo
de escrever. Foi ai que comecei a tentar subverter essa coisa de come-
o, meio e fi m. Passei a querer embaralh-los, confundi-los. Foi a
que comecei a buscar outras possibilidades para meus textos. Depois
disso mantive o autor em minha alma, mas tirei o manto pesado da
sua infl uncia das minhas costas. Fui atrs dos meus prprios come-
os.
Cabe ao leitor-escritor fuar, procurar, ler, descobrir, redesco-
brir, experimentar, escrever, reescrever e principalmente rasgar muito.
Um escritor mais apreciado pelo que rasga do que pelo que publica.
Ter conscincia disso tudo j um bom comeo.*
REYNALDO BESSA (SO PAULO/RIO GRANDE DO NORTE) Escritor e msico. autor de vrios livros e discos. Entre os livros, destaque para Out