boa noite, senhor soares

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Boa Noite, Senhor Soares, de Mário Cláudio – Escritor Procura-se Mário Cláudio, pseudónimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nasceu no Porto em 1941. Autor de uma obra variada, tem-se dedicado à poesia, ao ensaio, ao teatro e ao romance, sendo este último o género em que mais se tem destacado. Aliás, não é de descurar o facto de Mário Cláudio contar já com um prémio APE de Romance e Novela (em 1984, pela obra Amadeo) e com o Prémio Fernando Pessoa, atribuído em 2004. Sendo este um dos meus autores de eleição, não posso deixar de acusar alguma desilusão face à sua mais recente obra, Boa Noite, Senhor Soares. O título da novela é apelativo, pelo menos para aqueles que, como eu, cresceram sob o signo da curiosidade e do maravilhamento pela obra de Fernando Pessoa. Convicta de que o génio literário de Mário Cláudio resgatara o semi- heterónimo de Pessoa do Livro do Desassossego e lhe insuflara vida e biografia, acabei por deparar com aquilo que considero ser um bom esquisso, mas um fraco livro. Nesta obra, o autor recria o ambiente lisboeta da década de trinta do século XX e dá vida ao armazém do patrão Vasques e do seu sócio capitalista, na Rua dos Douradores, em plena Baixa pombalina. As personagens do armazém são de proveniência pessoana: Vasques (o patrão), Alcino dos Santos Camacho (o sócio capitalista), Borges (sem cargo conhecido), Moreira (o guarda-livros), Soares (o ajudante de guarda-livros e tradutor), José, Sérgio e Vieira (os caixeiros de praça), António (o aprendiz de caixeiro), Tomé e Ernesto (os caixeiros-viajantes), António (o moço de recados) e o gato Aladino. O núcleo de personagens que não é importado do Livro do Desassossego, digamos assim, é a família de António da Silva Felício, o aprendiz de caixeiro e protagonista desta novela; são eles: Florinda (a irmã), Gomes (o cunhado), Mimi (a sobrinha pequena), a tia Celeste (mãe do cunhado) e Serafim (filho da tia Celeste e emigrante no Brasil). António serve de ponte de ligação entre o mundo resgatado de Fernando Pessoa e o contexto social de uma Lisboa

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Recensão ao livro de Mário Cláudio: Boa Noite, Senhor Soares.

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Page 1: Boa Noite, Senhor Soares

Boa Noite, Senhor Soares, de Mário Cláudio – Escritor Procura-se

Mário Cláudio, pseudónimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nasceu no Porto em 1941. Autor de uma obra variada, tem-se dedicado à poesia, ao ensaio, ao teatro e ao romance, sendo este último o género em que mais se tem destacado. Aliás, não é de descurar o facto de Mário Cláudio contar já com um prémio APE de Romance e Novela (em 1984, pela obra Amadeo) e com o Prémio Fernando Pessoa, atribuído em 2004. Sendo este um dos meus autores de eleição, não posso deixar de acusar alguma desilusão face à sua mais recente obra, Boa Noite, Senhor Soares.

O título da novela é apelativo, pelo menos para aqueles que, como eu, cresceram sob o signo da curiosidade e do maravilhamento pela obra de Fernando Pessoa. Convicta de que o génio literário de Mário Cláudio resgatara o semi-heterónimo de Pessoa do Livro do Desassossego e lhe insuflara vida e biografia, acabei por deparar com aquilo que considero ser um bom esquisso, mas um fraco livro.

Nesta obra, o autor recria o ambiente lisboeta da década de trinta do século XX e dá vida ao armazém do patrão Vasques e do seu sócio capitalista, na Rua dos Douradores, em plena Baixa pombalina. As personagens do armazém são de proveniência pessoana: Vasques (o patrão), Alcino dos Santos Camacho (o sócio capitalista), Borges (sem cargo conhecido), Moreira (o guarda-livros), Soares (o ajudante de guarda-livros e tradutor), José, Sérgio e Vieira (os caixeiros de praça), António (o aprendiz de caixeiro), Tomé e Ernesto (os caixeiros-viajantes), António (o moço de recados) e o gato Aladino. O núcleo de personagens que não é importado do Livro do Desassossego, digamos assim, é a família de António da Silva Felício, o aprendiz de caixeiro e protagonista desta novela; são eles: Florinda (a irmã), Gomes (o cunhado), Mimi (a sobrinha pequena), a tia Celeste (mãe do cunhado) e Serafim (filho da tia Celeste e emigrante no Brasil).

António serve de ponte de ligação entre o mundo resgatado de Fernando Pessoa e o contexto social de uma Lisboa triste, enfadonha, sufocante, em plena decadência de fachadas e de gentes. Os espaços privilegiados da acção são o armazém da Rua dos Douradores, onde pontifica o patrão Vasques, e a casa da irmã e do cunhado de António, na Calçada da Quintinha a Campolide. No dia em que completa dezoito anos, em 1933, António e os colegas caixeiros vão até ao Bairro Alto, onde jantam numa taberna, deambulam pelas ruas e vielas do Bairro até que desembocam na Rua da Rosa, onde o aniversariante tem a sua primeira experiência sexual, paga pelos colegas. Destas e de outras deambulações ressalta sempre uma cidade amargurada e contaminada pela pobreza e pelo cinzentismo. O contraponto de todo este quadro social popular surge numa ocasião peculiar em que a filha do sócio capitalista faz anos e o ricaço convida todo o pessoal do armazém para uma festa no seu “chalé de luxo” (p.20) na Brandoa. O esplendor e o requinte desta festa de aniversário contrastam de forma veemente e caricata com a crueza do jantar de aniversário de António na taberna, bem como com o seu desenlace no bordel. Enquanto na Rua da Rosa António recebe como prenda a estreia sexual, Maria do Patrocínio recebe um envelope com “cinquenta contos de réis” (p.22). Assim se patenteia a diferença entre as filhas do papá e as mulheres da vida, entre as câmaras douradas e os casebres lúgubres. Boa Noite, Senhor Soares pode bem ser entendido como uma novela de costumes, não apenas pelo que fica dito acerca da realidade opressora dos anos trinta do século passado, mas também pelo quadro social que cerca António, cinquenta anos depois, em 1985.

Page 2: Boa Noite, Senhor Soares

Com efeito, o final da obra revela-nos um António septuagenário, em fase de balanço de vida, a viver nas Galinheiras e com um sonho por concretizar: encontrar um escritor que passasse para o papel o relato do seu convívio com o Sr. Soares. Encontrado esse escritor, António espera que a história contada venha a lume por quem sabe do ofício. Talvez Mário Cláudio venha a escrever a segunda parte da história, ou seja, talvez Mário Cláudio assuma o papel de “nègre” (ou “ghost writer”) e um dia apareça com a história do sr. António da Silva Felício contada à sua maneira, acrescentando “por capricho vários posinhos ao que para certas pessoas mereceria um posinho só” (p. 92). Pois, tal como diz o escritor contactado por António: “A verdade é que nenhum de nós narra um qualquer enredo de maneira igual, nem o senhor, nem eu, nem seja quem for que tente decifrar o que nós redigimos.” (p.92). Certo é que o livro está escrito, que António contou a sua história e que para a posteridade ficam registados os tempos em que António, um jovem de Escalos de Cima, no concelho de Idanha-a-Nova, partilhou com Bernardo Soares o mesmo local de trabalho. O magnetismo que “o poeta” exerceu sobre o pobre aspirante a caixeiro é o motor que faz andar a história e os mais ínfimos pormenores do convívio entre ambos são como que efemérides extraordinárias que o septuagenário guarda com o mais profundo afecto e orgulho.