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  • 8/13/2019 Borges: metodologias e prticas para crticas utpico-contextualistas - Breno Anderson Souza de Miranda

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    Borges: metodologias e prticas para crticas utpico-contextualistas

    TemporalidadesRevista Discente UFMG

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    Borges: metodologias e prticas para crticasutpico-contextualistas

    Breno Anderson Souza de MirandaMestre em Histria e Mestre em Letras (UFMG) e Doutorando em Histria Social (USP)

    [email protected]

    RESUMO:Pretendemos nesse trabalho apontar algumas metodologias, que de alguma forma,contribuam para um hipottico e utpico historiador que trabalhe com a literatura, em diretodilogo com a teoria da literatura presente na obra de Borges. As crticas contextualistas emBorges seriam interessantes instrumentais para o historiador, uma vez que problematizariam oque se entende por realismo na literatura. Tentaremos, portanto, intersees da criao literrio-ficcional borgiana com prticas utpico-contextualistas de leituras crticas. Para tanto,aproximaremos a teoria borgiana recepo sociolgica de Pierre Bourdieu, e convidaremos ohistoriador Roger Chartier para adentrar-se ao debate texto/contexto/autor em Borges,buscando dilogos da criao literrio-ficcional com a histria, a poltica e a sociologia.

    PALAVRAS-CHAVES:Borges, Crticas, Teorias.

    ABSTRACT: We intend in this work to point out some methodologies that somehow,contribute to a hypothetical and utopian historian who works with the literature, in directdialogue with the theory of literature present in Borges' work. The contextualist criticisms inBorges would be interesting instrumental for the historian, since they would problematize what ismeant by realism in literature. We will try thus, intersections of the borgesian literary-fictionalcreation with contextualist-utopian practices of critical readings. To do so, we will approach theborgesian theory to the sociological reception of Pierre Bourdieu, and we will invite the historianRoger Chartier to enter to the debate text / context / author in Borges, seeking dialogues of theliterary-fiction creation with the history, the politics and the sociology.

    KEYWORDS:Borges, Criticisms, Theories.

    Introduo e tentativa de aproximao de Borges recepo sociolgica de

    Pierre Bourdieu

    Nessa introduo apresentamos nosso objeto/fonte de estudo, Jorge Luis Borges (sua

    literatura e algumas de suas crticas), como uma fortuna crtica problematizvel por diversificadas

    recepes Borges lido (mais citado que lido) por diversos campos das cincias humanas

    (histria, sociologia, poltica, etc., alm, claro, da literatura). um escritor terico-crtico que

    no tem uma literatura didtico-explicativa e de fcil assimilao (sua literatura no vem a ser

    generosa e piedosa com o historiador que espere a literatura enquanto reflexo da realidade).1

    1No custa nada lembrar o ato crtico de nosso literato-historiador Machado de Assis, em sua recusa a beneficiar aleitura de um leitor comum. Nele, o leitor entra, muitas vezes, como um personagem que dialoga com o narradormachadiano, que j o prepara de antemo, uma vez que no ter uma leitura fcil, e completamente aprazvel. ComBorges no seria muito diferente.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    Nossa proposta no seria, portanto, uma anlise documental-objetivista-linear

    pormenorizada, sequer um minucioso levantamento documental para uma determinada

    reconstituio de um fato histrico, e sim, algo mais prximo a configuraes de dilogos para

    sugestes de hipteses terico-metodolgicas, que, de alguma forma, tragam para os estudiosos

    de histria, como tambm para os de literatura, alguns apontamentos sobre prticas de estudar a

    literatura atravs de crticas contextualistas. Como essas crticas poderiam ser complementares, ou

    at mesmo repulsivas a outras tradies crticas opostas?

    O nosso contexto terico pode ser beligerante, mas pode tambm possibilitar

    encontros. Percebemos em uma primeira aproximao, que mesmo Borges no escapara aos

    estudos histricos, mas estamos cientes dos velhos mitos que ainda poderiam circunscrever

    algumas de suas recepes. Entretanto, como objetos para o historiador, isto , como aquilo que

    muda no decorrer do tempo, crticas contextualistas se apresentam em relao a outros mitos,

    que reconstroem seus antecessores, recriando o que se entende como a sempre porosa, lacunar e

    comunicante tradio.

    Para falar em invenes de tradies na escritura borgiana, contribuiu uma girada de

    perspectiva na crtica sobre Borges, que tentou afastar-se das ironias e pardias do prprio autor

    sobre os realismos, e passou a preocupar-se tambm com traos documentais, biogrficos,

    autobiogrficos, e com intersees de sua criao literrio-ficcional com a poltica, a sociologia2e

    a histria. Nem Jorge Luis Borges estaria imune a um fin-de-siclee incio de outro, atormentado

    por esmiuar a realidade a todo o momento e em todas as partes. Pululam atualmente publicaes

    de manuscritos, cartas, dirios e biografias sobre o autor em todo o mundo, e diramos que

    Borges j no mais o que at ento sempre fora, ou o que quisera (sempre?) ter sido o mito

    do escritor fantstico-fantasmtico-niilista, tanto em sua obra, como em sua vida.

    Ainda na sociologia densa e nada lquida de Pierre Bourdieu, no que ela tem de

    prxis importante para os estudos literrios contextualistas (numa atualizao do que j vinha

    sendo feito por E. Durkheim, Lukcs3, Gramsci, Weber, Marx, Hegel, Lvi-Strauss, dentre

    outros), as estratgias de campo intelectual e habitus at que permitiriam que adentrssemos

    2 O socilogo da Universidade de So Paulo (USP), Sergio Miceli, divulgador da obra e metodologia de PierreBourdieu, rendeu-se aos encantos de um possvel realismo em Borges. Este artigo examina condicionantes e prticas sociais que viabilizaram a trajetria literria de Jorge Luis Borges, autor que teria logrado apagar as marcas desua vida pessoal. Por meio da anlise dos textos de juventude, das relaes familiares e do campo literrio argentinono incio do sculo XX, o artigo deslinda novas chaves para a compreenso da obra borgeana. MICELI, Sergio.

    Jorge Luis Borges: histria social de um escritor nato.Novos Estudos Cebrap, So Paulo, n.77, p. 155, mar. 2007.3Marcos Rogrio Cordeiro atenta ao esforo de teorizao das relaes entre forma e contedo, literatura e histria,nas obras de Lukcs e outros materialistas. CORDEIRO, Marcos Rogrio. Consideraes sobre a teoria e o mtodohistrico-literrio. Revista Brasileira de Literatura Comparada, So Paulo, n.14, p. 141-171, 2009.

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    de certa forma na escritura irrealista-circular-fechada borgiana, tida muitas vezes como uma

    releitura ps-moderna dos idealismos platnico e alemo. Mas at que ponto o meramente, o

    especificamente literrio teria o poder de escapar aos desgnios do determinismo histrico-

    sociolgico, perguntaria Bourdieu?

    Bourdieu distancia-se de qualquer assertiva estruturalista, ou ps-estruturalista, que

    apregoe o desaparecimento do sujeito, e da filosofia do sujeito, nas tramas da obra literria.

    Aproxima-se de Chomsky de uma maneira peculiar, frisando as disposies adquiridas,

    socialmente constitudas em meio s intencionalidades inventivas. Mas, como amplamente

    difundido em sua sociologia, o habitus tem uma necessidade voraz pela incorporao da

    objetividade.

    Percebe-se a que ponto absurda a catalogao que inclui no estruturalismo destrutordo sujeito um trabalho que se orientou pela vontade de reintroduzir a prtica doagente, sua capacidade de inveno, de improvisao. Mas eu queria lembrar que essacapacidade criadora, ativa, inventiva, no de um sujeito transcendental como natradio idealista, mas a de um agente ativo. [...]. Tratava-se de retomar no idealismo olado ativo do conhecimento prtico que a tradio materialista, sobretudo a teoriado reflexo, havia abandonado. Construir a noo de habitus como sistema deesquemas adquiridos que funciona no nvel prtico como categorias de percepo eapreciao, ou como princpios de classificao e simultaneidade como princpiosorganizadores de ao, significava construir o agente social na sua verdade deoperador prtico de construo de objetos.4

    Sedutoras para o cientista social, para o historiador, essas teorizaes muito

    sociologizantes no podem abarcar os espectros e pontos cegos da fico de Borges, dada sua

    acentuada carga antifsica5, que sempre flui, mesmo em qualquer tentativa compactadora de

    objetivao. Borges tido como o Midasdas intenes de purismo literrio de seu tempo, e sua

    narrativa, altamente provocadora, mexe com as delimitaes rgidas da prxis. Borges ganhou

    de muitos de seus crticos um papel condensador de uma gigantesca biblioteca, imaginria e

    infinita que, no mbito da desconstruo (guardadas as devidas propores e inverses), talvez

    possa ser comparado com o que Hegel fora para a progresso (?). Haveria em Borges aquelautopia dialgica, que tanto repetem de Bakhtin? E/ou uma utopia que atravessasse alguns

    confinamentos institucionalizadores (para lembrar Foucault), e unisse por alguns instantes, sem

    resolver o litgio fico, histria, memria e vida com as vrias temporalidades do texto?

    Hipteses para uma teoria da leitura libertria e guerrilha crtica na relao

    texto/contexto em Borges

    4BOURDIEU, Pierre. Fieldwork in philosophy. In: ______. Coisas ditas. Trad. Cssia R. da Silveira e Denise

    Moreno Pegorin. So Paulo: Brasiliense, 2004, p. 25-26. (grifos nossos).5COSTA LIMA, Luiz. A antiphysis em Jorge Luis Borges. In: ______. Mmesis e modernidade: formas das sombras. 2.ed. So Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 237-265. Para Costa Lima neste ensaio, a antiphysis borgiana teria o poder de seopor mmesis.

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    Em nossas introdutrias colocaes acima, no defendemos que a teoria desenhada por

    Borges em sua literatura, como tambm em sua crtica, seja a nica e a ideal teoria contextualista.

    Contenhamos ao territrio terico borgiano, que por si s, j demasiadamente abrangente.

    Interessa-nos tambm, como objeto para o historiador que lida com a literatura, e como

    metodologia para sua prtica, elencar algumas hipteses utpicas para a crtica em Borges. Elas

    seriam generalistas, porque no implicariam em uma prtica restritiva, isto , no podemos

    descaracterizar Borges ao ponto de requerer uma teoria do reflexo da sociedade em sua literatura.

    Buscar-se-ia ento uma prtica mais pluralista.

    Nossas hipteses no so tanto determinismos que impomos ao vis literrio, e sim

    utopias, isto , esto presentes em nossa realidade, mas no foram ainda totalmente efetivadas

    apresentam-se como projetos de um construto terico-literrio transdisciplinar. Aqui, o

    historiador no teria receios da literatura, e buscaria tentar humildemente compreend-la. Seus

    mritos no estariam apenas na anlise documental, isto , na literatura contextualizando uma

    poca. Ao aproximar-se com maior esmero da esttica, visualizar-se-ia o quanto proposies

    formal-ficcionais do escritor, em nosso caso, um escritor-crtico, tentam romper com prticas

    institucionalizadas do fazer literrio, e com recepes unilaterais. A literatura de Borges atual, e

    tenta ultrapassar vrias barreiras tericas. Cabe assim ao estudioso de prticas humanas no

    tempo, colocar essa arte (ou artifcio) no calor dessas hipteses (no necessariamentedemonstrveis por documentos e bibliografias), sobretudo porque utpicas.

    A literatura de Borges importa sim queles que queiram deter-se ao estudo de

    problematizaes que envolvam as recepes institucionalizadoras das fontes literrias,

    modificveis e nunca definitivas no decorrer do tempo. Nossa principal hiptese que a literatura

    de Borges permita avanar no estudo prtico de uma complicada utopia literrio-crtica (que no

    almeje ser didtica e busque despertar o leitor de alguma morosidade, como prprio do literato

    argentino que estudamos), exposta vivamente em meio a tantas runas crticas. Runas porque sorestos, remendos de outras teorias, vindas de diversos lugares. Ainda se tentare-construir esse

    objeto histrico, apontar quais seriam essas fontes e com quais instituies ele buscaria dialogar.

    Para isso contribuem, mas no determinam, nossa experincia latino-americana (mais que

    simplesmente argentina) e os diversos autoritarismos poltico-discursivos, que tanto

    incomodaram a Borges. Qual seria a contribuio de um literato argentino para a formulao de

    uma teoria abrangente e humanista, apropriada por vrios lugares epistemolgicos? O que sua

    literatura terica poderia alcanar de ethoslibertrio-poltico?

    Any reading of Borges should take into account the ethics that sustains it. For certainreaders, the term might seem strange, even dubious. By ethics I mean the honest

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    conduct and conveyance of text, seemingly deceitful yet aware of its deceptions,admitting to its inevitable traps, confessing to the creation of simulacra it does nothingto conceal.6

    Nossas hipteses tambm tentam atravessar uma cartografia crtico-pedaggica (que

    emanaria do prprio autor-narrador?), que se posiciona contra rigores determinista-

    metodolgicos, ao lidar com o objeto literatura. Em nossas ponderaes, ou nas borgianas, as

    discriminaes tcnico-criativas, e procedimentos de leitura e crtica, aproximam-se e querem

    aproximar-se (se possvel at por instncias do desejo e do erotismo vide Barthes7) de

    autoritarismos discursivos, justamente para procurar alguma forma de libertao.

    Nossas utopias caminham por propsitos um tanto quanto alheios aos cnones, mesmo

    que estes sejam nosso foco principal Borges quer-se realisticamente enquanto cnone e mito

    da literatura argentina e universal. O crtico-leitor-autor do discurso utpico em Borges busca

    algum no-sentido no CORPO DA LETRA, no vazio da PALAVRA, no submundo da narrativa

    literria monumental, nas possibilidades do impossvel, e tenta sublinhar alguns lugares da

    escritura crtica.

    A tcnica historiogrfica seria meio essa: o universo da imaginao crtica, da utopia, da

    memria literria, afasta-se (ao aproximar-se) da grande narrativa mtica, seja ela qual for. O

    crtico-historiador-ficcionista em Borges, encarrega-se de despertar o leitor intrnseco ou

    extrnseco de sua letargia, para tentar dialogar com outras conscincias, sempre debatendo,

    registrando, criptografando ou descriptografando os preenchimentos, os exlios, as tenses, as

    falhas, rupturas e ausncias do corpo da escrita. Autor-leitor-crtico-personagem em Borges,

    busca respostas envoltos em uma sensibilidade democrtica, aristocrtica, anarquista e realista, e

    porque no brbara.

    Podemos perceber, sem nenhum espanto, certos traados autoritrios e sistemtico-

    compactadores na narrativa borgiana. Mas eles (nem sempre) ganham ares libertrios, uma vez

    que so sintetizados e centralizados a partir de certa inverso (j to discutida por muitos) na

    centralidade hegeliano-iluminista. Sylvia Molloy afirma que o texto borgiano tenta ignorar a

    fixidez, por causa de sua imperfeio; diramos que s poderiaser um perfeccionismo em meio

    perfeio imperfeita. Antes, ela ressalta a natureza do discurso borgiano: a vocao de

    6Qualquer leitura de Borges deve levar em conta a tica que a sustenta. Para certos leitores, o termo pode parecerestranho, at mesmo duvidoso. Pela tica eu quero dizer a conduta honesta e transmisso de texto, aparentemente

    enganoso, ainda consciente de seus enganos, admitindo s suas armadilhas inevitveis, confessando criao desimulacros, que ele no faz nada para esconder-se. (traduo nossa). MOLLOY, Sylvia. Signs of Borges. Transl. OscarMonteiro. Durham and London: Duke University Press, 1994, p. 4.7BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 4. ed. So Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

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    sociais de possibilidade das situaes em que se l [...], mas tambm sobre as condies sociais de

    produo de lectores11. A teoria de Bourdieu provoca a teorizao de alguns leitores de Borges, a

    partir do momento em que se choca com supostos projetos filolgicos universalizantes e

    essencialistas.

    Os fillogos correm o risco de projetar nas palavras que esto estudando a filosofiadas palavras implicada no fato de estudar as palavras, e de assim deixar escapar o queconstitui a verdade das palavras, quando, no uso poltico, por exemplo que jogasabiamente com a polissemia , elas tm como verdade o fato de terem diversasverdades. [...]. Percebe-se que, se o fillogo refletisse sobre o que ser fillogo, seriaobrigado a se perguntar se o uso que ele faz da linguagem por ele estudada coincidecom o uso que dela faziam os que a produziram; e se no h o risco de que osdescompassos entre o uso e os interesses lingusticos introduza na interpretao umvis essencial [...].12

    Em proposies instigadoras, Bourdieu coloca o crtico e o intrprete (fillogo ouetnlogo) da literatura margem do logocentrismo abstratizante da contemporaneidade, e retorna

    crtica que Plato faz poesia, na qual a relao mimtica, com a linguagem que ela implica,

    envolve todo o corpo: o poeta, o aedo, evoca poesia como se evocam os espritos, e a evocao

    (isso vale tambm para os poetas berberes) inseparvel de toda uma ginstica corporal13.

    Aqui, no h a separao moderna entre poesia, poema, prosa, ritual, etc., e o objeto de

    estudo o mito grego ou primitivo produto da prpria alterao logocntrica que se

    prope na atualidade. O sacerdote, aquele que prepara e exerce o ritual coletivo, meramentehumano e singular. De fato os letrados nunca entregam ritos em estado bruto (o ferreiro talha,

    corta, aniquila, separa o que est reunido, logo, especialmente indicado para operar todas as

    separaes rituais, etc.)14.

    Quando o objeto experimental narrado, ele j no mais apenas uma prxis

    mimtica, e est atravessado por uma lgica corporal orientada para algumas funes.

    Mudam os interesses e os alvos que esto em jogo, ou, para dizer as coisas de um modo simples:

    acredita-se neles de uma forma diferente15. Assim, no poderia haver a distanciada culturaletrada-erudita-autorreferencialista. O jogo da reinterpretao no inteiramente livre; ele supe,

    da parte do narrador hermeneuta (Homero, Hesodo ou o poeta cabila), uma familiaridade

    11BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura. In: ______. Coisas ditas. Traduo de Cssia R. da Silveirae Denise Moreno Pegorin. So Paulo: Brasiliense, 2004, p. 135.12BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura, p. 137.13______. Leitura, leitores, letrados, literatura, p. 138.14______. Leitura, leitores, letrados, literatura, p. 140.15______. Leitura, leitores, letrados, literatura, p. 141.

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    imediata com a estrutura de primeiro grau, uma espcie de intuio estrutural dessa estrutura,

    caracterstica da relao viva com a cultura viva16.

    Essas explanaes sobre a teoria sociolgica de Bourdieu (aqui no to determinista

    como poderia supor), em interseo com a antropologia, so desculpas para adentrarmos ao

    Borges construtor e atuante em uma civitasliterria. No difcil perceber na obra borgiana, quo

    grande so o apreo e a paixo pela materialidade da prtica artesanal da leitura, algo que busque

    fincar um lugar no vasto horizonte de expectativa17, que luta contra a instantaneidade do tempo

    presente da modernidade ou ps-modernidade.

    O locus da leitura intimista de outros textos expe uma direta consonncia com sua

    exterioridade pblica o consenso flutuante, que o literato-crtico cria com seus pares e com o

    mundo. A atualidade (o instante) da crtica subjetiva inscreve-se na con-figurao e interseo de

    vrios espaos, temporalidades, utopias e distopias, que se comunicam em constante trnsito. A

    leitura seria possibilidade de refundao da tradio? Haveria alguma relao entre o eu

    emprico a experincia ntima do eu , e a construo extempornea da funo autor, para

    retornar a Foucault emQuest-ce quun auteur? e Lordre du discours?

    ali onde se fixam as categorias fundamentais que organizam a ordem do discursoliterrio moderno, tal como Foucault o caracterizou em dois textos clebres, Quest-ce

    quun auteur? e Lordre du discours: o conceito de obra, com seus critrios de unidade,coerncia e persistncia; a categoria de autor, que faz com que a obra seja atribuda aum nome prprio; e, por ltimo, o comentrio, identificado com o trabalho de leitura einterpretao que traz luz a significao j presente de um texto.18

    O historiador Roger Chartier adentra-se ao debate texto/contexto/autor em

    Borges

    Se acima tentamos aproximar Borges teoria de Pierre Bourdieu, agora, convidamos

    Roger Chartier para adentrar-se a este complexo debate, principalmente aps o decreto ps-

    morte do autor, via Barthes, e as implicaes sobre o ressurgimento do mesmo, recentemente.

    Chartier pode auxiliar-nos em nossas construes de hipteses utpicas, sobretudo porque lana

    mo do Borges terico de sua prpria obra, como no conto Borges y yo, publicado emEl hacedor

    (1960). experincia ntima do eu se ope a construo do autor por parte das instituies 19.

    Irremediavelmente, cai-se na temtica do duplo, to caracteristicamente borgiano, e nas

    16BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura, p. 145.17KOSELLECK, Reinhardt. Espacio de experiencia y Horizonte de expectativa, dos categoras histricas. In:______. Futuro pasado: para una semntica de los tiempos histricos. Trad. Norberto Smilg. Barcelona: Ediciones

    Paids, 1993, p. 333-357.18CHARTIER, Roger. Conferncia. In: CHARTIER, Roger; HANSEN, J. A.; DAHER, A. Debate Literatura eHistria. Roger Chartier, Joo Adolfo Hansen e A. Daher. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 198, jan./dez. 2000.19______. Conferncia, p. 199.

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    oscilaes sempre no resolvidas entre realismo e fico. A partir de qual momento, Borges que

    era o primeiro deixou de s-lo? Ento, talvez o segundo Borges seja mais institucionalizado e

    institucionalizador que o primeiro...?

    O caso autoral borgiano constitui-se por si s um agravante, pela quase completa

    diluio entre obra, crtica e vida, mesmo nos momentos mais fantasmticos. Aos gostos

    secretos que definem o indivduo em sua irredutvel singularidade se ope o exagero teatral das

    preferncias exibidas pelo autor, figura pblica e ostentativa20.

    A crtica de Chartier apurada no estudo do El espejo y la mscara, conto publicado em

    El libro de arena (1975). Rejeita-se a interpretao da literatura enquanto representao de uma

    verdade-realidade una e previamente estabelecida, e descobre em alguns textos literrios uma

    representao aguda e original dos prprios mecanismos que regem a produo e transmisso do

    mistrio esttico21. No h nada que no seja historicizvel e cotidianizado (mesmo que a

    histria no seja capaz de abarcar toda e qualquer prtica), e o leitor, enquanto personagem no

    texto literrio, est inserido na ekphrasis, como prtica dentro da escrita. O personagem leitor

    constri a institucionalizao, a canonizao e a mitologizao da leitura, ao mesmo tempo em

    que particulariza a noo universalizada de pblico, que costumamos generalizar como

    autonomia crtica, opinio pblica, livre-concorrncia etc.22. Est exposta para aquele que

    quiser, e puder ler, a relao visceral entre poeta, rei (poder) e comunidade de leitores; entre o

    discurso, o enredo e o fazer potico.

    Para realmente superar a oposio artificial que se estabelece entre as estruturas e asrepresentaes, tambm preciso romper com o modo de pensamento que Cassirerdenomina substancialista e que leva a no reconhecer nenhuma outra realidade almdas que se oferecem intuio direta na experincia cotidiana os indivduos e osgrupos. A contribuio maior daquilo que realmente se deve chamar revoluoestruturalista constitui em aplicar ao mundo social um modo de pensamentorelacional, que o modo de pensamento da matemtica e fsica modernas e queidentifica o real no a substncias, mas a relaes.23

    Determinismos sociolgicos e histricos parte, nesse conto e tambm em outros do

    mesmo autor, esto em jogo vises de mundo sobre o poder simblico da palavra, que no

    deixam de ser capturveis nos limiares da esttica, ainda que sua centralidade consigne uma

    intencionalidade de vazio. Os vrios textos (escritos e declamados) e contextos do conto chamam

    a realidade da escrita para a alquimia do fazer-se movimento. A esttica borgiana prima pela

    20CHARTIER, Roger. Conferncia, p. 200.21______. Conferncia, p. 197.22 HANSEN, Joo Adolfo. Debate. In: CHARTIER, Roger; HANSEN, J. A.; DAHER, A. Debate Literatura eHistria. Roger Chartier, Joo Adolfo Hansen e A. Daher. Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, p. 209, jan./dez. 2000.23BOURDIEU, Pierre. Espao social e poder simblico. In: ______. Coisas ditas. Trad. Cssia R. da Silveira eDenise Moreno Pegorin. So Paulo: Brasiliense, 2004, p. 152.

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    renovadora da escrita e leitura. O niilismo no a previsibilidade que a massa receptiva tenta

    impor sobre a narrativa borgiana, e sim construo dentro da escrita.

    O rei da Irlanda quer o poeta, para o que ele entende como a narrao de si, e o poeta se

    diz capaz de correspond-lo, pois domina toda a arte e mitologia da palavra, capaz de produzir a

    verdadeira poesia. O poeta quer diluir a poltica, a histria e a poesia oficiais na elaborao de

    uma unidade compacta da escrita. Domino a escrita secreta que defende nossa arte do indiscreto

    exame do vulgo25. Porm, a transcrio que trinta escribas fazem do panegrico doze vezes,

    demonstra que a constante reescrita da histria pelos corteses no consegue abarcar nenhuma

    totalidade, e s faz ressaltar os silncios da escrita; ou, a releitura e transcrio feita pelos que

    foram silenciados, corresponde apenas ao simulacro de perceber a mmesis na literatura como

    imitatio da realidade que quer-se narrar.26

    No cairemos tambm em uma soluo revolucionria de luta de classes antagnicas

    oprimidos contra opressores, leitores (ouvintes) contra o autor. O articulador da narrativa

    consegue dar a corda (no caso borgiano, o pesadelo do espelho e da mscara), para que o poeta

    (o indivduo, esteja ele onde estiver) enforca por si prprio. Borges retorna ao pesadelo do

    espelho, que reflete a distopia de tantos sonhos, tanto na fico como na realidade. O poeta

    prestes a despir-se de sua palavra mgica e bela no ningum, ou inteiramente humano como

    qualquer outro. Traos autobiogrficos do autor Borges apresentam-se em sua escritura-crtica,

    que insulta e incomoda a escrita de tantos outros.

    O que agora compartilhamos os dois murmurou o Rei. O de haver conhecidoa Beleza, que um dom vedado aos homens. Agora nos cabe expi-lo. Dei-te umespelho e uma mscara de ouro; eis aqui o terceiro presente, que ser o ltimo. Ps emsua mo direita uma adaga. Do poeta, sabemos que se matou ao sair do palcio; doRei, que um mendigo que percorre aos caminhos da Irlanda, que foi seu reino, e quenunca repetiu o poema.27

    Roger Chartier talvez procure alguma compatibilidade com a esttica da recepo28, ao

    discorrer que, cada nova escrita e publicizao do poema pico de El espejo y la mscara,

    25BORGES, Jorge Luis. O espelho e a mscara. In: ______. O livro de areia (1975). Trad. Lgia Morrone Averbuck.Obras Completas, v. 3, 1975-1985. So Paulo: Editora Globo, 1999, p. 50.26A mmesiscomo no imitatio, e a imaginatiocomo no semelhana foi estudada por Luiz Costa Lima em diversasobras.27BORGES, Jorge Luis. O espelho e a mscara, p. 53.28Segundo Hans Robert Jauss, a experincia esttica no se distingue apenas do lado de sua produtividade, comocriao atravs da liberdade [...], mas tambm do lado de sua receptividade, como aceitao em liberdade. medidaque o julgamento esttico pode representar tanto o modelo de um julgamento desinteressado, no impondo umanecessidade [...], quanto o modelo de um consenso aberto, no determinado a priori por conceitos e regras [...], a

    conduta esttica ganha, indiretamete, significao para a prxis da ao. o caso exemplar, distinguido por Kantcomo o procedimento de sucesso (Nachfolge) em face do mero mecanismo da imitao (Nachahmung), que medeiaentre a razo terica e a prtica, entre a universalidade lgica da norma e do caso e a vigncia apriorstica da lei moral,possibilitando, deste modo, a ponte entre o esttico e o tico. JAUSS, Hans Robert. A estt ica da recepo:

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    corresponde a diferentes motivaes. Trs vezes, cada vez com um ano de distncia, o poeta

    retorna diante do rei com um poema cujo objeto idntico: celebrar o rei triunfante. Mas

    diferente. E cada vez so diferentes a escritura potica, a esttica que a governa, a forma da

    publicao do texto e a figura de seu destinatrio.29

    No incio, o poeta est a servio dos caprichos e regras da idiomtica para depois, no

    querer mais respeit-las. A obra no se ajusta s convenes da arte literria: ela no mais

    imitao, mas inveno30. Para o que nos importa, a inveno e a impossibilidade de imaginar a

    completude e a abrangncia do fato, assumem lugares antes delegados imitatio de projetos

    realistas, consagrao do gnio autoral, e ao entendimento da literatura e da crtica como reflexo

    da natureza mtica. Joo Adolfo Hansen retoma instncias polticas do acontecimento crtico nas

    anlises que Chartier faz sobre Borges e Pirandello, e prope uma teoria da resistncia do tempo

    presente, que pode reler o passado, visando destruir e reconstruir monumentos.31

    Outra vez cantou o rouxinol nas selvas saxnicas e o poeta retornou com seu cdice,menor que o anterior. No o repetiu de memria; leu-o com visvel insegurana,omitindo certas passagens, como se ele mesmo no as entendessecompletamente ou no quisesse profan-las. A pgina era estranha. No era adescrio da batalha, era a batalha. Em sua desordem blica, agitavam-se o Deus que Trs e Uno, os numes pagos da Irlanda e os que guerreariam centenas de anosdepois, no princpio da Edda Maior. A forma no era menos curiosa. Um substantivosingular podia reger um verbo plural. As preposies eram alheias s normas comuns.A aspereza alternava com a doura. As metforas eram arbitrrias ou assim pareciam.O Rei trocou umas poucas palavras com os homens de letras que o rodeavam e faloudeste modo: De tua primeira loa pude afirmar que era um feliz resumo dequanto secantou na Irlanda. Esta supera tudo o que a antecedeu e tambm o aniquila.32

    Crticas sociais e polticas nas inter(invenes) das tradies canonizadoras, e a

    utopia de uma mescla entre lugares institucionalizadores em Borges

    Ainda falamos em leituras e crticas borgianas, e em invenes de tradies. Contudo,

    buscaremos nesse momento, relacionar a teoria crtica borgiana no apenas aos aspectos sociais,

    mas tambm aos polticos. Assim, a crtica borgiana poderia hipoteticamente, adquirir mais umaproblematizao esta tambm objeto de estudo para o historiador da literatura. Lembremos

    seu conhecidssimo ensaio sobre Franz Kafka, melhor, o exame que faz dos precursores de

    Kafka. Neste texto, cuja temtica central tambm se repete em outras publicaes, o que nos

    comove a mezcla das institucionalizadas identidades do ficcionista, do crtico literrio e do

    colocaes gerais. Trad. Luiz Costa Lima e Peter Naumann. In: ______. et al.; COSTA LIMA, Luiz (Sel.; Coord.;Trad.).A literatura e o leitor: textos de esttica da recepo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 67-84.29CHARTIER, Roger. Conferncia, p. 201-202.30______. Conferncia, p. 203.31HANSEN, J. A. Debate, p. 215.32BORGES, Jorge Luis.O espelho e a mscara, p. 51-52. (grifos nossos).

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    historiador da literatura, suas rupturas e inter(invenes) nas tradies canonizadoras. O narrador

    borgiano chama ateno para as diversas vozes no texto e para as falsificaes nas recepes de

    diversas pocas, isto , para o carter construtor da leitura e da literatura. Se no me engano, os

    heterogneos textos que enumerei parecem-se a Kafka; se no me engano, nem todos se parecem

    entre si33.

    O fato de cada escritor criar seus prprios precursores interage com nossa inquirio, na

    medida em que a crtica ao texto oral ou escrito pode intuir, nesse intenso fluxo, certas

    intencionalidades, crenas e valores literrios. Seria nas palavras de Sergio Pastormerlo, uma

    crtica estratgica de intervenciones polticas [crtica estratgica de intervenes polticas (traduo

    nossa)]34. Nesse ponto, interessante estabelecer pontes com desejos e sonhos, s vezes

    pretensiosos, mas que no deixam de expor e assombrar os limites e alcances da imaginao

    crtica. Modifica(m) nossa concepo de passado, como h de modificar o futuro 35. Isso o

    que podemos chamar de figuraes utpicas.

    Em outro de seus tantos textos que falam de crtica, Borges esboa uma genealogia

    crtica, que vai das alegorias aos romances. Dessa maneira, explanar sobre os conceitos de

    alegoria e romance mais um pre-texto para traar precursores e tradies. Croce versus

    Chesterton (crticos), Plato versusAristteles (fundadores), universos versus indivduo ordem

    versus erro realismo versus nominalismo (conceitos); enfim tradies-tradues-leituras :

    [Parmnides, Plato, Spinoza, Kant, Francis Bradley] Dupin (razo) versus [Herclito, Aristteles,

    Locke, Hume, William James] Don Segundo Sombra (gaucho). Borges no decide para qual

    tradio crtica ir pender e prefere os tantos anos [que] multiplicaram at o infinito as posies

    intermedirias e as distines.

    O tempo, ou os tantos anos, so as trajetrias que atravessam a alegoria e o romance,

    e permitem que a monstruosa alegoria, enquanto arte arremedando cincia (como defende

    Croce), possa ser vista como o alegrico, que nega que a arte esgote a expresso da realidade

    (como prope Chesterton). Assim, o narrador borgiano traz a parcialidade e o erro para as

    proposies universais do realismo. Nessa mistura de gneros, a alegoria ganha ares de romance,

    e se preocupa tambm com fatos concernentes s coisas meramente humanas.36

    33BORGES, Jorge Luis. Kafka e seus precursores. In BORGES, Jorge Luis. Outras Inquisies (1952). Trad. SrgioMolina. Obras Completas, 1952-1972. So Paulo: Editora Globo, 2005, p. 98. v. 2.34PASTORMERLO, Sergio. Sobre el declive de una ideologa literaria romntica en la crtica de Borges. VariacionesBorges. Revista del Centro de Estudios y Documentacin J. L. Borges. Copenhagen: Borges Center, n. 9, p. 100, 2000.35BORGES, Jorge Luis.Kafka e seus precursores, p. 98.36BORGES, Jorge Luis. Das alegorias aos romances. In: BORGES, Jorge Luis. Outras Inquisies (1952), p. 134-137.v. 2.

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    As abstraes so personificadas; por isso em toda alegoria h algo de romanesco. [...].A passagem da alegoria ao romance, de espcies a indivduos, do realismo aonominalismo, demandou alguns sculos, mas ouso apontar uma data ideal. Aquele diade 1832 em que Geoffrey Chaucer, que talvez no se julgasse nominalista, tentou

    traduzir para o ingls o verso de Bocaccio E con gli occulti ferri i Tradimenti (E comferros ocultos as Traies) e reproduziu deste modo The smyler with knyf under thecloke (Aquele que sorri, com o punhal sobre a capa).37

    O desplazamiento das leituras ou alegorias realistas, ou universais, declara (como na

    crtica que Borges faz de Chesterton) a insuficincia da linguagem. Mitos perpassam e so

    perpassados pelo urbanismo da crtica, que feita de palavras, mas no uma linguagem da

    linguagem, um signo de outros signos da virtude valorosa e das iluminaes secretas que essa

    palavra indica38. Nesse aspecto, esboam-se alguns contornos de geografias imaginadas no ato

    de leitura. Constri-se um estatuto de valores e crenas, mesmo perene, nas fronteiras, margens

    e centros da tradio crtica. A literatura tenta desenhar fronteiras geogrficas e corporais, e

    inscrever a topografia da individualidade em uma topografia comunitria39.

    Como ocorreria o embate na literatura de Borges sobre possibilidades presentes,

    passadas e futuras do ser, do vir-a-ser, e tambm do no-ser brbaro ou civilizado, latino-

    americano ou europeu, atrasado ou moderno? Tudo isso num cenrio intelectual hbrido ou

    mezclado, onde uma modernidade paradoxal poder propor utopias, como o entre-lugar40 ou

    orillas, e mesmo contra-utopias e distopias. Velhas problemticas, tanto formais quanto alegricas,

    vindas do romantismo e do realismo-naturalismo (como o mito da refundao e configurao da

    literatura, do sujeito literrio, e comunidade de leitores e crticos nacionais, ou universais), ainda

    ressoam em Borges, mesmo em um momento mais maduro de sua obra.

    Ainda continuamos no espao das relaes entre a literatura de Borges, os realismos e

    os contextos. Sergio Pastormerlo v as relaes de Borges com a ideologia romntica a partir

    de declives, manifestos nas amarras mais slidas dos projetos dos escritores intelectuais do

    sculo XIX. Borges seria, dentre outras coisas, um ateo literario nesse complexo e denso sistema

    de crenas utpicas, e ironizaria o culto romntico do artista individual. O carter experimental

    em Borges, estaria em seu desejo de criar um pblico novo, um leitor futuro, livre e sensato,

    que se desligaria dos rastros religiosos deixados pelo romantismo. Essa seria a f borgiana, uma

    espcie de contra-crena a possibilidade da dvida e da ironia. Borges duvida dos valores

    37BORGES, Jorge Luis. Das alegorias aos romances, p. 137.38BORGES, Jorge Luis. Das alegorias aos romances, p. 135.39RODRGUEZ PRSICO, Adriana. Identidades nacionales argentinas 1910 y 1920. In: ANTELO, Ral (Org.).Identidade e representao. Florianpolis: Ps-graduao em Letras/ Literatura Brasileira e Teoria da Literatura UFSC,1994, p. 83. (traduo nossa).40SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: ______. Uma literatura nos trpicos: ensaiossobre dependncia cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 9-26.

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    literrios que ele mesmo formula. A crtica borgiana no s mudou as coisas de lugar, mas se viu

    obrigada a interrogar os pressupostos de toda crena e valor literrio41.

    Isto no quer dizer que Borges no acreditasse em nada, que fosse um incorrigvel

    niilista. Em Borges Crtico42, Pastormerlo desenha, dentre outras, uma interessante crtica del gusto

    em Borges. Nada mais parcial, mais pessoal, mais autobiogrfico, uma vez que em Borges, suas

    leituras podem confundir-se com sua prpria vida. Hablar del problema del valor en la crtica

    borgiana es hablar de[l] carcter resueltamente valorativo de sus textos crticos, que nunca

    acataron el precepto de Menard: Censurar y alabar son operaciones sentimentales que nada

    tienen que ver con la crtica43. As colocaes de Pastormerlo recusam uma prtica rotineira na

    crtica sobre Borges, a de alar o lugar bem definido do autor ou escritor (real), sem nenhum

    despropsito, mera continuidade de sua obra crtico-ficcional. Mas isso no uma questo

    somente da crtica sobre Borges, ele mesmo ajudou, como nenhum outro, a institucionalizao de

    sua fantasmagoria em uma nadera de la personalidad pblica no faltaram entrevistas para

    revistas e televiso, e conferncias, nas quais parecia no existir ao falar de si e de sua obra.44

    Robin Lefere prope uma no simples continuidade entre o escritor emprico, isto ,

    aquele que se situa fora do texto, e o autor implcito, o que est no interior das margens do

    livro. A instituio literria Borges no seria um homogneo bookman, como querem muitos,

    e sim um espao de tenses e conflitos, onde convergem mltiplas facetas. Deberemos estar

    41PASTORMERLO, Sergio. Sobre el declive de una ideologa literaria romntica en la crtica de Borges, p. 85 eseguintes. (traduo nossa).42PASTORMERLO, Sergio. Borges crtico. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, 2007.43Falar do problema do valor na crtica borgiana falar do carter decididamente valorativo de seus textos crticos,que nunca acataram o preceito de Menard: Censurar e elogiar so operaes sentimentais que nada tem a ver com acrtica(traduo nossa). PASTORMERLO, Sergio. Borges crtico, p. 141. (alteraes nossas).44[...] Soy una supersticin y quizs una cariosa supersticin. Segn he comprobado en mis ltimos viajes, hay mucha gente que mequiere, que ha ledo unas lneas, quiz me quieran por eso. En todo caso, hay una imagen de un escritor Borges, en Buenos Aires;adems, yo sent eso cuando fui a los Estados Unidos por primera vez, en el ao sesenta y uno, con mi madre. Pens, bueno, tengo muchascartas fuertes, una es que soy un hombre viejo, la otra es que soy sudamericano, eso me hace pintoresco, es casi si fuera un indio pampa; yla otra, una carta fuerte tambin, es la de ser ciego (tengo que darme cuenta de que es una combinacin fuerte), y poeta: un viejo poetasudamericano; eso ya crea una figura simptica para la gente. A m, la idea de ser viejo no me es simptica. La idea de ser sudamericanono me llama tanto la atencin, aunque en lo de ser poeta, no estoy seguro, pero de todos modos, la gente me ve as: un viejo poetasudamericano y ciego, lo cual me convierte en Milton o en Homero. Entrevista de Borges a Antonio Carrizo em um canal deteleviso, dezembro de 1981. Publicada como: Borges el memorioso. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid, p. 104,505-507, jul./set. 1992. Sou uma superstio e talvez uma carinhosa superstio. Segundo comprovei em minhasltimas viagens, h muita gente que gosta de mim, que leu umas linhas, talvez gostem de mim por isso. Em todocaso, h uma imagem de um escritor Borges, em Buenos Aires; tambm, eu senti isso quando fui aos Estados Unidospela primeira vez, no ano de sessenta e um, com minha me. Pensei, bem, tenho muitas cartas fortes, uma que souum homem velho, a outra que sou sul-americano, isso me faz pitoresco, quase se fosse um ndio pampa; e aoutra, uma carta forte tambm, a de ser cego (tenho que me dar conta de que uma combinao forte), e poeta:

    um velho poeta sul-americano; isso j cria uma figura simptica para as pessoas. Para mim, a ideia de ser velho nome simptica. A ideia de ser sul-americano no me chama tanta ateno, embora na de ser poeta, no estou seguro,mas de todos os modos, as pessoas me vem assim: um velho poeta sul-americano e cego, os quais me convertemem Milton ou em Homero. (traduo nossa).

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    atentos tanto a las convergencias como a las divergencias, incoherencias o incluso

    contradicciones: entre el Borges de la escritura y el de las relaciones pblicas45.

    []Hoy parece imposible acercarse a la obra prescindiendo de la personalidad de suautor. No slo vuelve a un primer plano la consabida y discutible frmula el hombre,la obra, sino que el hombre amenaza la obra. Se puede lamentar que lo anecdticoacabe encubriendo lo literario, pero lo cierto es que tanto el hombre como la obra hanpermitido, incluso fomentando el equvoco. Aqul no rehuy dicho protagonismo,sino que lo asumi y jug con su imagen pblica. Y la obra, por muy intertextual ymetaliteraria que sea, encierra un importante y variado componente autobiogrfico(lato sensu) que, como sus dems aspectos referenciales, ha sido infravalorado. Porotra parte, compiten con los textos que critican la nadera de la personalidad y lasupersticin del autor otros que reivindican ambas nociones, al mismo tiempo quetodos afirman una voz y un universo inconfundibles, y significativamente constantes.46

    Essas novas leituras crticas da obra de Borges, respondem de certa forma as

    acusaes veementes, imputadas pelos que se dizem combatentes mquina cptica da ps -

    modernidade. Borges e Paul De Man so tratados, por exemplo, como uma s personalidade,

    real e esttico-literria, pelo historiador italiano Carlo Ginzburg, que travou em muitas obras, uma

    luta acirrada contra teorias, que supostamente tenderiam a transformar a historiografia em

    aparatos ficcionais. O niilismo de Nietzsche, o poder da duplicidade e apropriao em Borges e o

    poder mgico que leitor teria de transformar-se no que l, inclusive no autor, seriam inspirao

    (no sentido de respirar fico) para as inverdades e relativismos de De Man. De Man tratava

    de Borges ou o utilizava para expressar-se? Mas aqui estamos ainda no plano, relativamentesimples, dos contedos. Muito mais significativo o fato de De Man ter chegado a elaborar uma

    teoria crtica que via, no ato de ler, um processo interminvel no qual a verdade e a mentira esto

    inextricavelmente entrelaadas47.

    As proposies de Robin Lefere sobre as relaes entre Borges e a dita ps-

    modernidade so mais apropriadas, pois no visam pasteurizar como negao, as complexidades

    inerentes construo de um possvel realismo que permeia a obra, em paralelo ou

    transversalmente aos seus muitos con-textos. [] No me parece resuelta la cuestin de Borges

    45 Deveremos estar atentos tanto s convergncias como s divergncias, incoerncias e inclusive contradies:entre o Borges da escritura e o das relaes pblicas . (traduo nossa). LEFERE, Robin. Borges: entre autorretrato yautomitografa. Madrid: Editorial Gredos, 2005, p. 9.46[]. Hoje parece impossvel aproximar-se da obra prescindindo da personalidade de seu autor. No apenas voltaa um primeiro plano a consagrada e discutvel frmula o homem, a obra, mas que o homem ameaa a obra. Pode -se lamentar que o anedtico acabe encobrindo o literrio, mas o certo que tanto o homem como a obra tempermitido, inclusive fomentado o equvoco. Aquele no evitou dito protagonismo, mas o assumiu e jogou com suaimagem pblica. E a obra, por mais intertextual e metaliterria que seja, encerra um importante e variadocomponente autobiogrfico (lato sensu) que, como seus demais aspectos referenciais, foram supervalorizados. Poroutra parte, competem com os textos que criticam a nadera de la personalidad e a superstio do autor outros que

    reivindicam ambas noes, ao mesmo tempo que todos afirmam uma voz e um universo inconfundveis, esignificativamente constantes. (traduo nossa). LEFERE, Robin. Borges: entre autorretrato y automitografa, p. 8.47GINZBURG, Carlo. Relaes de fora: histria, retrica, prova. Trad. Jnatas Batista Neto. So Paulo: Companhiadas Letras, 2008, p. 34.

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    y la posmodernidad, a pesar de una nota de Jaime Alazraki sobre el tema (1988). Mejor dicho, me

    parece mal resuelta.48Se pesa uma definio de ps-modernidade, como uma epistemologia

    do irrealismo e algo pretensiosamente antimoderno (interpretao simplista), no caberia reduzir

    a literatura de Borges a esse conceito.

    Si bien Borges comparte con muchos modernos una actitud crtica hacia el lenguaje,en especial tiene la conviccin de que es inadecuada para representar el mundo yexpresar al hombre, dicha conviccin, adems de ser vacilante (recurdense ciertorealismo, el concepto del texto como autorretrato...), no desemboca claramente en lacrtica de una metafsica de la verdad. No encontramos aqu una crtica de cortekantiano, marxiano o freudiano de la expresin y de la representacin, sino unafrustracin y una nostalgia, incluso un anhelo que no duda de satisfacerse a nivelsimblico (en las ficciones, los ensayos, los poemas). Pinsese en las evocacionescomplacidas de la palabra verdad.49

    Intersees da fico borgiana com o biografismo, o autobiografismo e os

    contextualismos

    Intersees da fico com o biografismo ou autobiografismo impedem uma contraparte

    unilateral do textualismo em Borges. Se relembrarmos os comentrios de Chartier citando

    Foucault, de que nem toda prtica seria textualizvel em um discurso, e que algumas poderiam at

    escapar aos contornos da escrita, perceberemos ento na atualidade, certa condescendncia com

    propostas de reabilitao autoral em Borges. Soy de los que piensan que conviene rehabilitar al

    autor, en el mismo plano terico; es decir, no se trata por supuesto de volver a la situacinanterior, sino de reinterpretar al autor, []de reevaluar el papel de la nocin desde los puntos

    de vista gentico y hermenutico50. Seguindo a crtica de Lefere, a interpretao em chave

    hermenutica puxa de alguma maneira, a revalorizao de algum trao de propriedade sobre o

    estilo do texto. Entretanto, a hermenutica e a estilstica constituiriam seu prprio limite, ao no

    se renovarem enquanto caricatura do velho ego-cogito cartesiano.

    El autor efectivo (el hacedor, relativamente distinto del hombre y del escritor) es a lavez principio, funcin y producto: es, sustentada en un sujeto que es Yo, Ello ySuperyo, en un cuerpo y sus ritmos, una mente polmicamente determinada,

    48[...] No me parece resolvida a questo de Borges e a ps -modernidade, apesar de uma nota de Jaime Alazrakisobre o tema (1988). Melhor dito, me parece mal resolvida. (tra duo nossa). LEFERE, Robin. Borges ante lasnociones de modernidad y posmodernidad. Rilce: Revista de Filologa Hispnica, Pamplona: Navarra: Espaa,18.1, p. 51, 2002.49 Se bem, Borges compartilha com muitos modernos uma atitude crtica pela linguagem, em especial tem aconvico de que inadequada para representar o mundo e expressar o homem, dita convico, alm de ser vacilante(recordem certo realismo, o conceito de texto como autorretrato...), no desemboca claramente na crtica de umametafsica da verdade. No encontramos aqui uma crtica de corte kantiano, marxiano ou freudiano da expresso eda representao, mas uma frustrao e uma nostalgia, inclusive um anseio que no duvida de satisfazer-se a nvelsimblico (nas fices, nos ensaios, nos poemas). Pensemos nas evocaes comprazidas da palavra verdade .

    (traduo nossa). LEFERE, Robin. Borges ante las nociones de modernidad y posmodernidad, p. 57.50Sou dos que pensam que convm reabilitar o autor, no mesmo plano terico; quer dize r, no se trata claro devoltar situao anterior, mas de reinterpretar o autor, [...] de reavaliar o papel da noo desde os pontos de vistagentico e hermenutico. (traduo nossa). LERERE, Robin.Borges: entre autorretrato y automitografa, p. 13.

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    comprometida y articulada en el lenguaje, que, al transmutarse en le texto que vacreando, proyecta en ste una imagen de s, de forma indirecta e implcita (el autorimplicado), y a veces directa y explcita (el autor representado).51

    Tudo o que falamos sobre as diversas distines da subjetividade no texto borgiano

    (poema, conto, ensaio-crtico), sobre o autor que se projeta como personagens ou narrador, sobre

    o escritor emprico que no fala outra coisa publicamente (nos meios de comunicao de massa),

    que sua presena ou ausncia marcante em seus repetidos textos, encontra confluncias com a

    teoria da citao e da crtica discursos sobre outros discursos, formas dos textos e misturas de

    gneros (literatura, fico, histria, poltica, sociologia, etc.). As obras crticas e literrias, como

    discursos e aes polticas, so decisivas nos processamentos temporais do texto. Contudo, no

    so determinadas pela exterioridade e fixidez de contingncias realistas.52

    O conjunto da obra borgiana quer-se enquanto cnone (uma literatura marginal que se

    torna cnone), que l outros cnones. Entretanto, no deixa de marcar a presena de umapersona

    imaginria, ficcional, autoconstrutora, ou at autodestrutiva. s vezes sarcstica com esse mesmo

    cnone, pode escapar aos trmites da prpria escrita e do processo criativo autoral, no buscando

    dilogo em pblico (na multido das vozes altissonantes), mas somente uma conversa curta, ao

    p do ouvido, com o leitor em sua intimidade.

    Trabalho a citao como uma matria que existe dentro de mim; e, ocupando-me, ela

    me trabalha; no que eu esteja cheio de citaes ou esteja atormentado por elas, maselas me perturbam e me provocam, deslocam uma fora, pelo menos a do meu punho,colocam em jogo uma energia [...]. Mais que a fotografia, mais que a biografia, abibliografia que me informa e capaz de despertar meu desejo.53

    A nfase na leitura deixa de incidir na tpica e desloca -se para questes referentes

    disposio textual54. As preocupaes sobre os deslocamentos espaciais, temporais e contextuais

    da tradio crtica, esto interiorizadas nas problematizaes e posturas fsico-corporais dos

    objetos, figuradas atravs da prtica da reescritura autobiogrfica.55O texto relaciona-se com a

    51O autor efetivo(o fazedor, relativamente distinto do homem e do escritor) ao mesmo tempo princpio, funoe produto: sustentada em um sujeito que Eu, Ele e Super-eu, uma mente polemicamente determinada,comprometida e articulada com a linguagem, que, ao transmutar-se no texto que vai criando, projeta neste umaimagem de si, de forma indireta e implcita (o autor implcito), e s vezes direta e explcita (o autorrepresentado). (traduo nossa). LEFERE, Robin.Borges: entre autorretrato y automitografa, p. 17.52 O uso rgido de critrios de exterioridade e interioridade da construo textual prejudicial tanto ao objetohistoriogrfico quanto ao ficcional. COSTA LIMA, Luiz. Histria. Fico. Literatura. So Paulo: Companhia dasLetras, 2006, p. 37.53COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citao. Trad. Cleonice P. B. Mouro. Belo Horizonte: Editora UFMG,2007, p. 45 e 112.54 GRATE, Miriam. Civilizao e barbrie nos sertes: entre Domingo Faustino Sarmiento e Euclides da Cunha.Campinas: Mercado de Letras; So Paulo: Fapesp, 2001, p. 16.55Quanto crtica, penso que uma das formas modernas de autobiografia. A pessoa escreve sua vida quandopensa estar escrevendo suas leituras. No o contrrio do Quixote? O crtico aquele que reconstri sua vida nointerior dos textos que l. PIGLIA, Ricardo apudBRANDO, Ruth Silviano.A vida escrita. Rio de Janeiro: 7Letras,2006, p. 9.

  • 8/13/2019 Borges: metodologias e prticas para crticas utpico-contextualistas - Breno Anderson Souza de Miranda

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    Borges: metodologias e prticas para crticas utpico-contextualistas

    TemporalidadesRevista Discente UFMG

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    historiografia crtico-literria e com a historiografia do contexto. H ainda mais um complicador

    em Borges: os referenciais terico-metodolgicos podem estar inseridos e prefigurados no corpus

    das leituras. H um trnsito e deslocamento crtico, em constante comunicao, e no uma

    simples sobreposio.

    Consideraes finais

    A tradio crtica em Borges convergncia de experincias mpares e compartilhadas,

    alm de temporalidades e utopias diversas. Tentar emergir na tradio reconhecer propostas

    tericas no campo da leitura, da autobiografia, da citao, da intertextualidade, da

    autobi(bli)ografia, alm das relaes, sempre porosas e no resolvidas, entre texto e contexto.

    Intenes e inter(invenes) utpicas, polticas e estticas podem ser capturveis por atitudes

    subjetivas, s vezes partidrias, outras vezes fluidas claramente autobi(bli)ogrficas que

    entram na esfera pblica em tenso e conflito, ou em encontro, atravs de alguma corporificao

    crtico-textual.

    Assim chegamos s consideraes finais. Defendemos que Borges possa vir a ser um

    sugestivo terico para metodologias e prticas de crticas contextualistas e/ou realistas objeto e

    prtica para o historiador da literatura. Reiteremos aqui, que nossa inteno no uma anlise

    documental pormenorizada, sequer uma reconstituio de determinado fato, evento ou momento

    histrico, usando a literatura como prova. O que almejamos foram modestas tentativas de

    mapear hipteses, que so gerais, abrangentes, o que no diz que no venham a ser tambm

    realidades e prticas pontuais. A literatura de Borges marca seus fundamentos, ao recusar

    verdades consolidadas e resolvidas sobre as recepes do texto literrio, e sempre traz a dvida, a

    ironia e o paradoxo para o ato da leitura. As proposies borgianas no so as nicas, muito

    menos receiturios ideais para o terreno literrio. Vive-se atualmente o dilema da canonizao

    daquilo que no buscara (necessariamente) percorrer os trmites, para que se consolidasse

    enquanto monumento e didtica ps-moderna. O texto de Borges no facilitador no

    sentido que sempre dialoga com a provocao. Se a leitura dessa literatura no facilitadora,

    assim tambm suponhamos que, utopicamente, apresente sua crtica contextualista. Ela mexeria

    portanto, com delimitaes rgidas de prticas disciplinares que lidam com o realismo literrio, ou

    mesmo com a desconstruo.

    A racionalidade histria, com a revoluo dos Annales, se coloca fortemente como asubmisso daquilo que ocorre condio de sua possibilidade. Com isso ela chega aidentificar o tempo como o sistema das condies dessa possibilidade,

    identificao que resumirei numa frmula: s existe possvel segundo o tempo.Essa forma de racionalidade que submete o real ao possvel segundo o tempo e, aocontrrio, identifica a inexistncia com a impossibilidade segundo o tempo, ao

  • 8/13/2019 Borges: metodologias e prticas para crticas utpico-contextualistas - Breno Anderson Souza de Miranda

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    que ela chama anacronismo tem duas propriedades notveis. A primeira suacapacidade de ocupar o lugar de crena poltica. [...]. S existe possvel segundo otempo: o possvel autorizado pelo sculo, segundo o estado do desenvolvimento,das riquezas e dos costumes; o possvel que se define em termos de ritmos temporais:

    formao, desenvolvimento, tendncia, indcios e prazos [...]. Se so os historiadoresque usam correntemente, diante da opinio, o discurso da poltica realista, no emvirtude de algum tipo de sabedoria ou lio da histria. porque a racionalidadesegundo a qual eles pensam sua cincia a nica enunciao terica apresentvel dapoltica realista. [...]. O tempo idntico prpria crena. Pode-se escapar ao controlede um tempo como esse? [...]. Pode-se imaginar a exceo, um homem que recusa acrena imanente ao tempo, um precursor? [...]. Assim, o historiador exemplar denosso tempo condiciona estritamente a questo da verdade da possibilidade,identificando a questo dessa possibilidade com a prpria questo do tempo. O queele demonstra, no fundo, a impossibilidade de que jamais comece o tempo quetornaria possvel o tempo da ruptura com o tempo da impossibilidade. [...]. Em outraspalavras, no h de um lado a questo da anlise dos fatos histricos e do outro

    a questo platnica da mentira e do no-ser.56

    O leitor crtico do discurso utpico, entranhado na literatura, procura o no-sentido,

    segundo a interpretao de Jacques Rancire. Se espao e tempo so ingredientes bsicos da

    utopia, ela experimenta, nos contos de Borges, sopro de vida fora, ou dentro, de sua matriz

    compactadora. H impossibilidades possveis fora do espao fundado pelo sentido unificador e

    unilateral da verdade; que, no labirinto (imagem borgiana), pode levar-nos a outros lugares, a

    infinitas sries de tempo e espaos. Talvez assim, a histria de uma utopia pudesse ser reescrita

    pelo seu duplo(outra imagem borgiana) a literatura-crtica.

    Recebido: 15/05/2012Aprovado: 05/08/2012

    56RANCIRE, Jacques. A poltica da Escrita. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, p. 242-247.(grifos nossos).