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[SSJJ Reitora Vice-reitor led~ Diretor-presidente Presidente Vice-presidente Diretora Editorial Diretora Comercia! Dire.o.: Administrativo Editoras-assistentes lJN!VCRSI[\AnE llE SÃO PAULO Suely Vilela Franco Maria Lajolo EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Plinio Martins Filho COMIS~À('I EDITORIAL José Mindlin Carlos Alberto Barbosa Dantas Benjamin Abdala Júnior Carlos Augusto Montciro Maria Anninda do Nascimento Arruda Nélio Marco Vincenzo Bizzo Ricardo Toledo Silva Silvana Biral lvete Silva Pctcr Grciner J J'. Marilcna Vizentin Carla Femanda Fontana Môruca Cristina Guimarães dos Santos Pierre Bourdieu !fJC f\~ ~OT]]~ A Distinção cr íii ca social do julgamento lerl~

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Page 1: BOURDIEU, Pierre - O Habitus e o Espaço Dos Estilos de Vida & Para Uma Crítica Vulgar Das Críticas Puras in a Distinção

[SSJJReitora

Vice-reitor

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PresidenteVice-presidente

Diretora EditorialDiretora Comercia!

Dire.o.: AdministrativoEditoras-assistentes

lJN!VCRSI[\AnE llE SÃO PAULO

Suely VilelaFranco Maria Lajolo

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Plinio Martins Filho

COMIS~À('I EDITORIAL

José MindlinCarlos Alberto Barbosa DantasBenjamin Abdala JúniorCarlos Augusto MontciroMaria Anninda do Nascimento ArrudaNélio Marco Vincenzo BizzoRicardo Toledo Silva

Silvana Birallvete SilvaPctcr Grciner J J'.

Marilcna VizentinCarla Femanda FontanaMôruca Cristina Guimarães dos Santos

Pierre Bourdieu

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Page 2: BOURDIEU, Pierre - O Habitus e o Espaço Dos Estilos de Vida & Para Uma Crítica Vulgar Das Críticas Puras in a Distinção

o h(]hjtus e o espaço dos estilos de vida

Se, para evocá-I o, bastasse o fato de que ele possa apresentar-se sob a forma de um~squem2, c espaço social tal como foi descrito é uma representaçiio abstrata, produzidanediante um trabalho especifico de construção e, à maneira de um mapa, proporcionairna visão panorâmica, um ponto de vista sobre o conjunto dos pontos a partir dos qualsIS agentes comuns - entre eles, o sociólogo ou o próprio leitor em suas condutas habituais. lançam seu olhar sobre o mundo social. Assim, ao fazer existir, na simultaneidade dema totalidade perceptlvel obtida por umasó espiadela - aliás, aI está sua virtude heurlsticadeterminadas posições, cuja totalidade e multlpllcídade de suas relações nunca podem

er apreendidas pelos agentes, ele é para o espaço prático da existência cotidiana com suasistâncias, mantidas ou definidas, e seus semelhantes que podem estar mais longe do que5 estranhos, o que o espaço da gecrnetria é para o espaço hodológico da experiênciairnurn com suas lacunas e descontlnuidades. No entanto, o mais importante é, sem dúvida,re a questão desse espaço é formulada nesse mesmo espaço; que os agentes têm sobrene espaço, cu]a objetividade não poderia ser negada, pontos de vista que dependem daisição ocupada aí por eles e em ljue, rnuitas vezes, se exprime sua vontade de transforma-ou conservá-lo. É assLn que um grande número.de palavras utilizadas pela-ciência para.sígnar as classes que ela constrói são emprestadas ao uso habitual em que servem paraprimir a visão - freqüenternente, polêmica - que os grupos têm uns dos outros. Com (I

.e Impelidos por seu élan para uma maior ~bjetividade, os sociólogos esquecem quasempre sue os "objetos" classiflcados por eles, além de produtores de práticas classificáveisletivamente, são operações não menos objetivas de classlflcação, por sua vez,.ssificáveis. A divisão em classes operada pela clêncla conduz à raiz comum das práticasssiflcávels produzidas pelos agentes e dos julgamentos classificatórios emitidos pors sobre as práticas dos outros ou suas pr6prias práticas: o bsbitus«, com efeito, prlncfpio-adorde práticas objetivamente classlflcáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificaçãoincipium divislonis, de tais práticas. Na relação entre as duas capacidades que definemsbitus, ou seja, capad :lade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidadediferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui ondo social representado, ou seja, o espaço elos estilos de vida.

A relação estabeleclda, de fato, entre as características pertinentes da condiçãonõrnica e social- o volurne e estrutura do capital, cuja apreensão é sincrõnlca e diacrônica)S traços distintivos assodados à posição correspondente no espaço dos estilos de vidase torna uma rela ;ão lnteligível a não ser pela construção do hubitus como fórmula

idora quc permite [ustlf.car, ao mesmo tempo, práticas e produtos classiflcáveis, assim10 julgamentos, pcr sua vez, classificados que constituem estas práticas e estas obras

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em sistema de sinais distinuvos. Falar do ascctismo aristocrático dos prnr-ssores ou dapretensão da pequena burguesia não t somente descrever estes grupos ptt uma de suaspropriedades, mesmo que se tratasse da mais importar te, mas tentar norrear o princípiogerador de todas as suas propriedades c C1C todos J') seus julgamenas sobre suaspropriedades 0'1 as dos outros. Necessidade incorporada, convertida em dispOl!ição geradorade práticas sensataséde percepções capazes de fornec. r sentido às práriCõ$engendradasdessa forma, o hebitus, enquanto disposição geral e ti aisponível, realiza lIll1a aplicaçãosistemática e universal, estendida para além dos limites c'o que foi diretarnerre adquirido,da necessidade inerente às condições de aprendizagem: ': o que faz com qtf o conjuntodas práticas de urn agente - ou do conjunto dos agentes que são o produte de condiçõessemelhantes - são sistemáticas por serem o produto da aplicacâo de esquenas idênticos -ou mutuamente convertíveis - e, ao mesmo tempo, sisremancamentedistinus das práticasconstitutivas de um outro estilo de vida.

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Pelo fato de que as condições diferentes de existência produzem hsbitus diferentes,sistemas de esquemas geradores suscetfvels de serem aplicados, por simples transferência,às mais diferentes áreas da prática, as práticas engendradas pelos diferentes habitusapresentam-se como configurações sistemáticas de propriedades que: exprimem asdiferenças objetivamente inscritas nas condições de existência sob a forma de sistemas dedistâncias diferenciais que, percebidos por agentes dotados dos esquemas de percepção ede apreciação necessários para identificar, interpretar e avaliar seus traços pertinentes,funcionam como estilos de vida. I

Estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas, o habitusé também estrutura estruturada: o princípio de divisão em classes lógicas que organiza apercepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da divisão em classessociais. Cada condição é definida, inseparavelmente, por suas propriedades intrfnsecas epelas propriedades rehcionals inerentes à sua posição no sistema das condições que é,.tarnbérn, um sistema áe diferenças, de posições diferenciais, ou seja, por tudo o que adistingue de tudo o que ela não é e, em pàrriculú: de tudo o que lhe é oposto: a identidadesocial defir.e-se e afirma-se na diferença. O mesmo é dizer que, nas disposições do habitus,se encontra inevitavelmente inscrita toda estrutura do sistema das condições tal como elase realiza na experiência dêuma condição que ocupa determinada posição nessa estrutura:as oposições mais funda.uentais da estrutura das condições - alto / baixo, rico / pobre,etc, - tendem a impor-se como os princfpios fundamentais de estruturação em relação àspráticas e à percepção das práticas. Sistema de esquemas geradores de práticas que, demaneira sistemática, exprime a necessidade e as Iihcrdades inerentes à condição de classee a âiierenç« constitutiva da posição, o hsbltus apreende as dlferenças dp rnnrli\~n raptadaspor ele sob a forma de diferenças entre práticas c.asslflcadas e c1assificantes - enquantoprodutos do hebltus - segundo princfpios de diferenciação que, por serem eles próprios oproduto de tais diferenças, estão objetivamente ajustados a elas e, portanto, rendem apercebê-Ias como naturais.' Se é necessário reafirmar, contra todas as formas de mecanismo,que a experiência comum do mundo social é um conhecimento, não deixa de ser menos,importante de perceber, contra a ilusão da geração espontânea da consciência a que estãoreduzidas tantas teorias da "tornada de consciência", que o conhecimento primeiro élrreconhecírnento, reconhecimento de uma ordem que está estabelecida também noscérebros. Os estilos de vida são, assim, os produtos sistemáticos dos habitus que, percebidosem suas relações mútuas segundo os esquemas do hebitus, tornam-se sistemas de sinaissocialmente qualificados - como "distintos", "vulgares", etc. A dialética das condições edos bebitus é o fundamento da alquimia que transforma a distribuição do capital, balançode uma relação de forças, em sistema de diferenças percebidas, de propriedades distintivas,ou seja, em distribuição de capitai slrnbólico, capital legítimo, irreconhecfvel em sua verdadeobjetiva.

Enquanto produtos estruturados (opus opetetumi que a mesma estruturaestruturante (moJus operandJ) produz, mediante retraduções impostas pela lógica própriaaos diferentes campos, todas as oráticas e as obras do mesmo agente são, por um lado,objetivamente harrnonizadas entre si, fora de qualquer busca intencional da coerência, e,pOJ outro, objetivamente orquestradas, fora de qualquer concertação consciente, com asde todos os membros da mesma classe: o habicus engendra continuamente metáforas

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práticas, isto é, em uma outra linguagem. transferências - a transferência de hábitos motoresé apenas um exemplo particular - ou, melhor, trcnsposiçôes sistemáticas impostas pelascondições particulares de sua aplicação prática- assim, o mesmo ethos ascético que, deacordo com a expectativa, deveria exprimir-se sempre na poupança po~e, em determinadocontexto, manifestar-se emuma forma particular de utilizar o crédito. As práticas do mesmoagente e, mais amplamente, as práticas de todos os agentes da mesma classe, devem aaflnidade de estilo que transforma cada uma delas em uma metáfora de qualquer uma dascutras ao fato de serem o produto das transferências de um campo para outro dos mesmosesquemas de ação: paradigma familiar do operador analógico que é o hsbitus, a disposiçãodesignada por "escrita", ou seja, uma forma singular de traçar caracteres, produz semprea-mesma escrita, Isto é, traços gráficos que, a despeito das diferenças de tamanho, matériae cor associadas ao suporte (folha de papel ou quadro negro) ou ao Instrumento (caneta-tinteiro ou giz), portanto, a despeito das diferenças entre os conjuntos motores mobilizados,apresentam um aspecto familiar imediatamerte perceptível, à maneira de t060s os traçosde estilo ou de atltude pelos quais é possível reconhecer determinado pintor ou escritortão infalivelmente quanto um homem pela sua maneira de: andar.'

A sisternaticldade está no opus operacum por estar 110 modus opcrendi: cnconrrn-se no conjunto das "propriedades", no duplo sentido do termo, de que os indivíduos ouosgrupos estão rodeados - casas, móveis, quadros, livros, automóveis, álcoois, cigarros,perfumes, roupas -, e nas práticas em que eles manifestam sua distinção - esportes, jogos,distrações culturais -, apenas porque ria está na unidade criginariamente sintética dobsbltns, princfpio unificador e gerador de todas as prát ir.as. O gosto, propensão e aptidãopara a apropriação - material e/ou simbólica - de de: crrninada classe de objetos ou depráticas classificadas e c1assificantes é a fórmula g,~raco(a que se encontra na origem doestilo de vida, conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógicaespecífica de cada um dos subespaços simbólicos - mobiliário, vestuário, linguagem ou

. hexiscorporal- a mesma intenção expressiva, Cada dinu-nsão do estilo de vida "simbolizacom" os outros, como dizia Leibniz, e os simboliza: a vis.;o do mundo de um velho artesãomarceneiro, sua maneira de administrar o orçamento, o tempo ou o corpo, sua utilizaçãoda linguagem e sua escolha de. roupas estão inteiramente presentes em sua ética do trabalhoescrupuloso e impecável, aplicado, caprichado e bem acabado, assim como em sua estéticado trabalho pelo trabalho que o leva a avaliar a bc'eza de seus produtos pelo que exigemde aplicação e de paciência.

O sistema de propriedades bem combinadas entre .rs quais convém contar as pessoas- fala-se de "casal bem ajustado" e os amigos gostam de «izcr que os cônjuges manifestamos mesmos gostos - tem por princípio o gosto, sistema di! ~squemas de classificação, cujoacesso à consciência é, em geral, bastante parcial, embora o estilo de vida - à medida quese sobe na hierarquia social - reserve urn espaço cada vez mais importante ao que Weberdesigna como "estilizacão da vida", O gosto está na origem do ajuste mútuo de todos ostraços associados a uma pessoa e recomendados pela antiga estética para o Iortelecimentomútuo fornecido por cada um: as inumeráveis informações produzidas, consciente ouinconscientemente, por uma pessoa reduplicart-se e confirmam-se indefinidamente,oferecendo ;,0 observador advertido a espécie de prazer que as simetrias e ascorrespondências resultantes de uma distribuição har mcniosa das redundâncias

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r/il i, proporclcnam ao amante das artes, O efeito de sobredetermlnação que resulta ó•. taisredundãncias é tanto mais fortemente sentido, quanto mais fortemente interpenetradosestiverem, para a percepção comum, os diferentes traços que, obrigatoriamente, são isoladospela observação ou pela avaliação: assim, cada um dos elementos de informação fornecidospela prática (por exemplo, um julgamento em pintura) fica contaminado - e, em caso dedesvio em relação ao traço provável, corrigido - pelo efeito do conjunto dos traçosanteriormente ou simultaneamente percebidos. Daí vem que a investigação tendente li

isolar os traços - dissodando, por exemplo, as coisas ditas da maneira de dizê-Ias ", aarrancá-los ao sistema dos traços correlatos, tende a minlmizar ~ diferença, em cada pon :0,

entre as classes e, sobretudo, a distância entre os pequeno-burgueses e os burgueses: nassituações habituais da existência burguesa, as banalidades sobre a arte, a literatura ou ocinema servem-se de uma voz grave e bem articulada, da dicção lenta e desenvolta, dosorriso distante ou confiante, do gesto ponderado, do figurino bem desenhado e do salãoburguês de quem as pronuncia.'

Assim, o gosto é o operador prático da transmutação das colsas em sinais distintose distintivos, das distribuições contínuas em Oposições descondnuas; ele faz com que asdiferenças inscritas na ordem tlsic« dos .corpos tenham acesso à ordem simbólica dasdistinções significantes. Transforma práticas objetivamente classificadas em que umacondição significa-se a si mesma - por seu intermédio - em práticas classificadoras, OLl

seja, em expressão simbólica da posição de classe, pelo fato de percebê-Ias em suas relaçõesmútuas e em função de esquemas sociais de classificação. Ele encontra-se, assim, na origemdo sistema dos traços distintivos que é levado a ser percebido como urna expressãosistemática de uma classe particular de condições de existência, ou seja, como um estilodistint.vo de vida, por quem POSSU'l o conhecimento prátlco das relações entre os slnalsdistintivos e as posições nas distribuições, entre o espaço das propriedades objetivas,.revelado pela construção científica, e o espaço não menos objetivo dos estilos de vida queexiste como tal para a - e pela - experiência comum. Este sistema de classificação que é oproduto da Incorporação da estrutura do espaço social tal como ela se impõe através daexperiência de uma determinada posição neste espaço é, nos limites das possibilidades edas impossibilidades econômicas - que ele tende a reproduzir em sua lógica -, o principiode práticas ajustadas às regularldades Inerentes a uma condição; ele opera continuamente

. a transfiguração das necessidades em estratégias, das obrigações em preferências, eengendra, [ora de qualquer determinação r.iecânlca, o conjunto das "escolhas" constitutivasde estilos de vida classificados e classificantes que adquirem sei! sentido - ou seja, se'Jvaler - a partir de wa posição em um sistema de oposições e de correlações.' Necessidadetomada virtude, ele tende a transformar continuamente a necessidade em virtude, levandoa "escolhas" ajustadas à condição de que ele é o produto: como é bem visivel err, todos oscasos em que, na seqüência de uma mudança de posição social, as condições em que ohsbitus foi produzido não coincidem com as condições nas qua.s ele funciona e em que épossível isolar sua eficácia própria, o gosto, ou seja, gosto de necessidade ou gosto de luxo- e não uma baixa ou elevada renda - é que comanda as práticas objetivamente ajustadasa tais recursos. Ele é o que faz com que um Indivíduo seja detentor do que gosta porquegosta do que tem, ou seja, as propriedades que lhe são atribuídas, de fato, nas distribuiçõese fixadas por direito nas classificações.'

165 Picrrc Bourdicu

A hornolcqla entre os espacesTendo em m<:nlC tudo o que precede r, e-n part icular, o fato de que os esquemas

gcrador"$1I0 hsbitus aplicam-se, por simples transferência. aos mais diferenes domínios.da prática, compreende-se imediatamente que as práticas ou os bens que esão associadosàs diferentes classes nos diferentes domínios da prática organizarn-se scgurdc estruturasde oposição que são perfeitamente homologas entre s por serem todas .~mólogas doespaço das oposições objetivas entre as condições. Sern prctcndcrrnos derneistrar - aqui,em algumas páginas - o que deverá ser estabelecido por roda a seqüência d~a exposiçãoe limitando-nos a dar a perceber em sua integralid;\dr. um conjunto de relações que correm.0 risco de serem dissimuladas pelo detalhamento das análises, contentar-cos-emos emindicar, de forma bastante esquemática, como os dois grandes princípios de organizaçãodo espaço social comandam a estrutura e a mudança do espace do consumorultural e, deforma mais geral, de 'todo o espaço dos estilos de vida dos quais este C(J!l6UmOé umaspecto. Em matéria de consumo cultural, a oposição principal, segundo o eelurne globaldo capital, estabelece-se aqui entre o consumo, designado como distinto pOll'sua própriararidade, das frações mais bem providas, 10 mesmo tempo, erro capital ecooômico c emcapital cultural, por um lado, e, por outro, o consurr-o considerado socialmente comovulgar- por ser, a um só tempo, fácil e comum - dos mais desprovidos nesses dois aspectosde capital; e, nas posições intermediárias, encon .rarn-se as práticas destinacbs a aparecercomo pretensiosss pelo fato da discordãncia -ntre a ambição e as possibilidades de suarealização. A condição dominada que, do ponto de vista dos dominantes, se caracterizapela combinação da ascese forçada com o laxisrno injustificado, a estética dominante,cuJas realizações mais acabadas são a obra de arte ca disposição estética, opõe a combinaçãoda naturalidade com a ascese, ou seja, o ascetismo eletivo como restrição deliberada,economia de recursos, moderação, reserva, que se afirmam na manifestação absoluta daexcelência que é a distenção na tensão.

Esta oposição fundamenta. especifica-se segundo a estrutura do capital: pelamediaçãodos meios de apropriação à sua disposição, por um lado, exclusiva ou

~"prlnclpalmente culturais e, por outro, de preferência, econômicos, e as diferentes for nasda relação com as obras de arte dar resultantes, as diferentes frações da classe dominanteencontram-se orientadas para práticas culturais tão diferentes em seu estilo e seu objeto,assim como, às vezes, tão abertamente antagonistas - (1).110 as dos "arcisras" e as dos"burgueses" - que se acaba por esquecer que elas são variantes da mesma relaçãofundamental com a necessidade e com aqueles que lhe estão submetidos, além de teremem comum a busca da apropriação exclusiva dos bens cuiturais legítimos e dos ganhos dedistinção que ela proporciona. Diferentemente dos membros das frações dominantes qu~exigem da arte um elevado grau de denegação do mundo social e tendem para uma estéticahedonista da naturalidade e da facilidade, simbolizada pelo teatro de bulevar ou pela pintu raimpressionlsta, os membros das frações dominadas mantêm uma relação estreita com aestética em seu aspecto essencialrnente ascético e, por conseguinte, são impelidas a aderira-todas as revoluções artísticas realizadas em nome da pureza e da purificação, da recusada ostentação e do gosto burguês do ornamento; assim, as disposições em relação ao

A Dlstlnção Ili 7

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mundo social, decorrentes de seu estatuto de primos pobres, fazem com que sejam levados,além disso, li acolher uma representação pessimista do mundo social.

Se é por demais evidente que a arte oferece-lhe seu terreno por excelência, ocorreque, em todas as áreas da prática, pode exprimir-se a intenção de submeter as pulsõesfáceis e as necessidades primárias à depuração, ao requinte e à sublimação; além disso, emtodos os domínios, a "estílízação da vida", ou seja, o primado conferido à Iotme sobre aIunçêo que conduz à denegaçáo da Iunçio, pode produzir os mesmos efeitos. Em matériade linguagem, é a oposição entre a espontaneidade popular e a linguagem altamentecensurada da burguesia, entre a busca expressionista do pitoresco ou do efeito e a opiniãopreconcebida da moderação e da simplicidade fingida - em grego, litótes. Verifica-se amesma economia de meios no uso da linguagem corporal: ainda neste aspecto, a gesticulaçãoe a pressa, a aparência e as mímicas, opõem-se à lentidão - "os gestos lentos, o olharlento" da nobreza, segundo Nlctzsche? - à moderação e à impassibilidarle que é a marca daaltivez. E, o gosto primário, inclusive, organiza-se segundo a oposição fundamental com aantítese entre a quantidade e a qualidade, a comilança e as iguarias, a matéria e as maneiras,a substância e a forma. .

A forma e a suhstància

o fato de que, em matéria de consumo alimentar, a oposição principal corresponde,grosso modo, a diferenças de renda, dissimula a oposição secundária que, no âmago dasclasses tanto médias quanto dominante, estabelece-se entre as frações mais ricas em capitalcultural e as menos ricas em capital econômico. Por um lado, e, por outro, as fraçõesdetentoras de um património de estrutura Inversa. Os observadores vêem, assim, umefeito simples da renda no fato de que, à medida da ascensão na lüerarquia social, a parcelado consumo alimentar diminui ou que a parcela no consumo alimentar dos ingredientespesados e gordurosos e que levam a engordar, além de serem baratos - massas, batatas,feijão, toucinho, carne de porco (EC., XXXIlI) - e, também, vinho decresce, enquantoaumenta a parcela dos ingredientes magros, leves (de fácil digestão) e que não levam aengordar - carne de boi, de vitela, de carneiro, de ovelha e, sobretudo, frutas e legumesfrescos, etc." Pelo fato de que o verdadeiro princípio das preferências é o gosto cornonecessidade tornada virtude, n teoria que transforma o consumo em uma função simplesda renda parece ser fundamentada já que a renda contribui, em grande importante, paradeterminar a distância da necessidade. Todavia, ela não pode ser a justificativa para casosem que a mesma renda encontre-se associada a consumos de estruturas totalmentediferentes: assim, os contramestres permanecem vinculados ao gostO "popular", emboradisponham de uma renda superior a dos empregados, cujo gosto não deixa de marcar umaruptura brutal em relação ao dos operários, aproximando-se do gosto dos professores.

Para conseguir uma verdadeira justificativa das variações que a lei de Engel lirnita-se a registrar, convém levar em consideração o conjunto das características da condiçãosocial que estão associr ..das - do ponto de vista estatístico - desde a primeira infância àposse de urna renda mais ou menos elevada e que é de natureza a modelar gostos ajustadosa tais condições. 11 O verdadeiro princípio das diferenças que se observam no campo doconsumo, e muito além dessa área, é a oposição entre os gostos de luxo (ou de liberdade)

16.8 P!crrc Bourdlcn

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e os gostos de necessidade: os primeiros caracteriz am os indivíduos que são o produto decondições materiais de existência definidas pela disténci: da necessidade, pelas liberdadesou, como se diz, às vezes, pelas (aci/ida,"es garantidas pe!a posse de um capital; por suavez, os segundos exprimem, em seu próprio ajuste, as necessidades de que são o produto.Assim, é possível deduzir os gostos populares pelos aJimcnros mais nutritivos e, ao mesmotempo, mais econômicos=c duplo pleonasmo .110~,ra a redução à pura função primária -da necessidade de reproduzir, ao menor cusro, a força é/C ireb.ilho que se impõe, como SlI:1

própria definição, ao proletariado. A idéia de gosto, tipicamente burguesa, já que supõe ;)liberdade absoluta da escolha, é tão estreitamente asscouda à idéia de liberdade que édiflcil conceber os paradoxos do gosto da necessidade: ou por sua abolição pura e simples,transformando a prática em um produto direto da necessidade econõmica .. os operárioscomem feijão por não disporem de recursos para comprar outro alimento - e ignorandoqUI!,na maior parte do tempo, a necessidade só é satisfeita porque os agentes têm propensãoa satisfazê-Ia por terem o gosto daquilo a que, de qualquer modo, estão condenados; oupor sua transformação em gosto de liberdade, esquecendo os condicionamentos de que

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ele é o produto e, assim, por sua redução a uma preferência patológica ou mórbida para ascoisas de - primeIra - necessidade, uma espécie de indigência congênita, pretexto para aprática de um racismo de classe que associa o povo ao que ~ gordo e gorduroso, ao vinhotinto forte, aos enormes tamancos, aos trabalhos pesados, à gargalhada estrondosa, àspiadas exageradas, ao bom senso um tanto rudimentar e às pilhérias grosseiras. O gosto élimar [a fi, escolha do destino, embora forçada, produzida por condições de existência que,ao excluir qualquer outra possibilidade como se trat asse .íe puro devaneio, deixam comoúnica escolha o gosto pelo necessário.

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Basta descrever os gostos de necessidade con 1(' se tratasse de gostos de luxo!' - oque acontece, Inevitavelmente, sempre que se ignor a moda/idade das práticas - paraproduzir falsas coincidências entre as duas posições e..trernas do espaço social: tratando-se de fecur.didade ou de celibato - ou, o que dá no mesrno, de atraso no casamento -, vc-se que tal fenômeno é, para uns, um luxo eletivo, enquanto, para outros, é um efeito daprivação. Neste sentido, a análise de Nicole Tabard sobre as atitudes em relação ao trabalhofeminino é exemplar: para as mulheres da (Ias se operária, "o trabalho é uma obrigação quese toma menos adstringente com o aumento da renda do mariao"; ao contráno, para asclasses privilegiadas, o trabalho feminino é uma escolha, como dá testemunho o fato deque "a taxa de atividade feminina não diminui com a elevação do estatuto"." Oeverlamoster em mente este exemplo ao lermos determinadas esta .lsticas em que a identidade nominalque impõe a homogeneidade da interrogação oculta (OfTlO se verifica, frequentemente.auando se passa de uma extremidade para a outra do e :1" aço social- realidades totalmentediferentes: se, em um caso, as mulheres trabalhadoras afirmam ser favoráveis ao trabalhofeminino, enquanto em outro elas podem trabalhar sem deixarem de afirmar que sãodesfavoráveis a essa situação, é porque o trabalho ao qual .e Icrerem tacitamente as mulheresda classe operária é o único ao seu alcance, ou seja, 1I:T1 trabalho braçal penoso e malremunerado, que nada tem de (~mum com o que a palavra "trabalho" evoca p2ra as mulheresda burguesia. E para dar uma idéia dos efeitos ideológicos exercidos pela visão dominantequando, essenciallsta e antigenérica, ela naturaliza. consciente ou inconscientemente, o

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A Dlstinçao Ili<J

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gosto de necessidade - o "gosto bárbaro" de Kant - convertendo-o em inclinação naturalpelo simples fato de dlssociá-lo de suas razões de ser econõmlcas c sociais. bastará lembrarurna experiência de psicologia social segundo a qual o mesmo ato - doação de sangue - épercebido como voluntárlo ou forçado conforme for realizado por membros das classesprivilegiadas ou por membros das crasse» populares."

o gosto de necessidade só pode engendrar um estilo de vida em si que é definidocomo tal apenas de forma negativa. por falta. pela relação de privação que mantém com osoutros estilos de vida. Para uns, os emblemas eletivos, enquanto, para os outros. os estigmasque carregam, inclusive, em seu corpo. "Do mesmo modo que o povo escolhido trazia inscritona fronte que ele pertencia a [eová, a divisão do trabalho imprime no operário de manufaturaum sinete que o consagra como propriedade do capital", Este sinete, mencionado por Marx,não é outra coisa senão o próprio estilo de vida, através do qual os mais desprovidos sedenunciam imediatamente, até mesmo .10 uso de seu tempo livre, dedicando-se, assim, aservir de concraste a todos os empreendimentos .de distinção e a contribuir, de maneiratotalmente negativa, para a dialética da pretensão ~ dadis-tinção que se encontra na origemdas incessantes mudança! do gosto. Não contentes. por um lado, de estarem destituídos dequase todos os conhecimentos ou maneiras que recebem valor no mercado dos examesescolares ou das conversações mundanas e, por outro, de possuírem apeaas habilidadesdesprovidas de valor nos mercados, eles são aqueles que "não sabem viver", que mais seconformam com os alimentos materiais - e com os mais pesados, grosseiros e que levam aengordar, tais como pão, batatas e ingredientes gordurosos -, além de serem os mais vulgares(por exemplo, o vinho); aqueles que ligam menos para o vestuário e cuidados corporais,para a cosmética e estética; aqueles que "não sabem. descansar", "que têm sempre algo parafazer", que montam a tenda em campings superlotados, que fazem o piquenique à beira dasgrandes rodovias. que se metem na fila dos engarrafamentos da partida para férias com seuRenault 5 ou Slrnca 1000, que se deixam levar pelos lazeres pré-fabrlcados, aliás, concebidospara eles pelos engenheiros da produção cultural em grande escala; aqueles que, por todasestas "escolhas" tão mal ínsplradas, confirmam o racismo de classe, se é que é necessáric,com a convicção de que, afinal, só têm o que merecem.

A arte de beber e de :omer continua sendo, sem dúvida, um dos únicos terrenos emque as classes populares se opõem, explicitamente. à arte legítima de viver. À nova ética dasobriedade para a magreza - tanto mais reconhecida quanto mais elevada for a posição nahierarquia social>, os camponeses e, sobretudo, os operários, opõem uma moral da boa vida.Além de gostar de comer e beber bem, o boa-vida é aquele que sabe entrar na relação generosae familiar- isto é. simples e, ao rnesrr,o tempo, livre - simbolizada e favoreci da pelo beber ecomer em comum, suprimindo. também, a moderação, as reticências e as reservas quemanifestam o distanciarnento pela recusa do convivi o e da partilha espontânea com os outros.

64% dos quadros superiores. membros das profissões liberais e industriais. alémde 60% dos quadros médios e empregados julgam que "o francês come demais". Osagricultores - os mais propensos, de longe, a pensar que ele comc "normalmente", ou seja,54% contra 32% nas classes superiores - e os operários são os menos impelidos a aceitara nova norma cultural (40% e 46%) que é mais reconhecida entre as mulheres e os jovens

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do que entre os homens e as pessoas idosas, respccrivamente. Em matéria iir bebidas,somente os agricultores opõem-se nitidamente à opinião .lorninante - 32% dcem que "ofrancês bebe normalmente" - aceita, todavia, menos rrcqlitnlcmentc pelos OJVfáriosdoque pelas outras categorias. 63% dos operários - e 56% d·JScamponeses conOll48% dosquadros, membros das profissões liberais e industrius - dizem ter uma optniâefavorávelde quem gosta de comer c beber bem. Outro índice de sua propensão em reivindaar, nestedomínio. práticas heterodoxas que, em matéria de culu.ra, esforçam-se em 4!B,simular.eles dizem que, no restaurante, escolheriam um pr.uo mai 5 bem caprlchado, em= de umgrelhado - como é o caso dos quadros superiores - ou que S·! serviriam, a um sóeernpo. dequeijo e de sobremesa (o que e compreensível se svUCerll1w.que. pela sua própriuaridade,a ida ao restaurante é para a maior parte deles - 51% dos agricultores e 44% doseperáriospraticamente nunca o freqüentam contra 6% dos rr.ernbros das classes superiees - algoextraordinário, associado à idéia de abundância e suspensão das restrlções cormns). Atémesmo em matéria de consumo de ilcool, em que o peso da legitimidade é. sen dúvida,maior, os membros das classes populares são os menos propensos - 35% para os agricultorese 46% para os operários contra 55% para as classes superiores - a situar acima dt 15 anosa idade em que uma criança pode consumir bebidas alcoólicas (EC., XXXIV).

A fronteira em que se marca a ruptura com a relação popular aos alimernes passa.sem duvida alguma, entre os operários e os empregados: dispensando para a alimentaçãomenos que os operários com qualificação. tanto em valor absoluto (9.377 r contra 10.347 F)quanto em valor relativo (34,2% contra 3~.3%). os empregados consomem menos pão,carne de porco, salsicharias, leite e queijos. coelhos e ~v~~ de êri,ç:o, legumes secos eingredientes gordurosos; além disso, no âmbito de um orçamento de alimentaÇão maisrestrito, dlspen~ uma soma equivalente para a carne - boi, vitela, carneiro, cooleiro - eum pouco mais para o peixe, frutas frescas e aperitivos. Estas transformações da estruturado consumo alimentar são acompanhadas por um aumento das despesas em matéria dehigiene ou de cuidados corporais - ou seja, para a saúde e, ao mesmo tempo, para a beleza-e de vestuário; assim como de um leve aumento das despesas com cultura e lazer. Bastaobservar que a restrição das despesas alimentares e, em particular, das mais terrestres. maisterra-a-terra e materiais, é acompanhada por uma restrição dos nascimentos para termos odireito de supor que ela constitui o aspecto de uma transformação global da relação com omundo: o gosto "modesto" que sabe sacrificar os apeti tes e os prazeres irned tatos aos desejose satisfações vindouros opõe-se ao materialismo espontâneo das classes populares querecusam entrar na contabilidade benthamiana dos prazeres c dos sofrimentos, dos ganhos edas despesas - por exemplo, para a saúde e para a beleza. O mesmo é dizer que estas duasrelações com os alimentos terrestres têm por princípio duas disposições em rei ção ao futuroas quais, por sua vez, mantêm uma relação de causalidade circula! com dois futuros ob'etivos:contra a antropologia Imaginária da ciência econômica que nunca recuou diante da formulaçãode leis universais da "preferência temporal". convém lembrar que a propensão a subordinaros desejos presentes aos desejos futuros depende do grau em que este sacrificio é "razoável".ou seja, das possibilidades de obter. de qualquer modo. satisfações futuras superiores àssatisfações sacriflcadas." Entre as condições econômicas ela propensão a sacrificar assatisfações Imediatas às satisfações almejadas. convém contar a probabilidade de tais

A Illstlnção 171

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Tabela 16 - Estrutura do consumo alimentar dos empregados, contramestres eoperários com qualificação (F. C., III)

cper. com quallf contramestre cmprcKacto~nO médio de pes. por (amlll, 3.61 ),tS 2.9~desp, méd .• eu! pc, r.mlll. (em F.) 2691 I )5311 27376desp .• Iim. rnéd. por r"",nI. (em f.) 10347 12S03 9376de sp. atlrn. em " da desp. (otll 38,) lS.~ lU--_.de sp. média em F. e , da

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Ltaumu (total} e. em paI tlcular: 853 !,l 979 7.1 766 8.2• batatas 141' I.~· - . 1~6 1.2 112 1.2· legumes (rtK<.JS S56 S.~ 6S6 5.2 521 S.6· Itgumes S(cos e em conserva 162 1.6 177 I.~ 127 I.J

-Frutas (tOLAI) e, em partfrulr r: 515 S.O 642 5.1 511 5.S· (rutu (rue., HI U l29 2.6 278 l.O· (rutu d(ricas, bananu 202 1.9 229 1.1 177 1.9· (rutu seeu 65 0.6 16 0.1 62 o.rCat,:u de açougue :tot.11) e, em plrtlcullt~ 1153 16.9 2176 1'.~ 1560 lU- boi I~O 1.1 1016 1,1 101 I.S· vlttla l02 2.9 380 ~.O 296 l.1· "&lnciru. cordeiro 16~ 1.6 170 1.3 I 5~ 1.6· cavalo 18 O.ft lI) M 7~ 0.6· fOrto '" ~.~ ~2! ],i :!Z~ ,._.J:thlchll1.J .. pratos p~..colldoJ 19l I.~ 10~6 1.4 '111 8.0

PtIXH, eruseãeecs. marllc:ol 261 2.6 310 1.6 210 3.0

Avtl de crlaçlo ll9 3.7 ~Ol 3.2 317 l.~

Ceetbc, C1Ç' 173 1.7 156 1.1 III I.~

Ovo. 164 1.6 II~ 1.5 146 I.S

Leite lU l.l 337 1.7 152 2.7

QueIJo •• IOIur ••• 611 6.1 700 5.6 521 5.5---In&rt<fi"'". gomuro,.,. (tottl) e. <m portleul'" 5~7 5.3 629 5.0 ~39 O· manttlJI l65 3.5 H5 3.5 291 l.1-óleo. 149 I.~ 146 1,1 125 1.3• margarina 30 o.a 37 0.3 21 O".<- banha de porco 2 I

AÇIlar. ccmpcta s, caC1U (chocolate) 345 i.a ~02 3.2 290 3.1

Álcool. (lO'11) e. em p."lcul.r. 113 1.6 H59 11.1 771 8.2• vinhol 555 S.4 1017 1.1 466 5.0- «rv<J' - 100 1.0 109 0.9 65 0.7· sid,'1 Il 5 I• aperítívo. llcores, etc. 21S 2.1 l21 ~.6 229 2.~

A-ebidu nl.o alcoóllc'" 216 2.3 2~1 1.0 22~ 2.~

Cart chl 199 1.9 252 2.0 179 1.9

Re(eiçlo no rtstturtnte S06 ~.9 SI3 ~.7 S71 6.1

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satisfações futuras que está inscrita na condição presente. É ainda uma espécie de cálculoeconõmlco que desincendva a submeter a existência ao cálculo econômico: o hedonismoque, no dia-a-dia, leva a tomar as raras satisfações - "os bons momentos" - do preSClltl'imediato é a única filosofia concebível para aqueles que, segundo se diz. não tendo futuro.s6 podem acalentar, de qualquer modo, escassas expectativas ;'\seu respeito. 16 Compreende-se melhor que o materialismoprático - manifestado, sobretudo, m relação com os alimentos_ seja um dos componentes mais fundamentais do etnos, até mesmo, da ética popular: apresença ao presente que se afirma no cuidado cm_ aproveitar dos bons momentos e deaceitar o tempo tal como ele se apresenta é, por si só, uma afirmação de solidariedade comos outros - que são, aliás, na maior parte das vezes, a única garantia presente contra asameaças do futuro - na medida em que esta espécie de imanentismo temporal é umreconhecimento dos limites que definem a condição. Eis porque a sobriedade do pequeno-burguês é sentida, profundamente, como uma ruptura: abstendo-se de torrar o bom tempoe de vivê-Ia com os outros, o pequeno-burguês de aspiração atraiçoa sua arnbiçãc de mancar-se ao presente comum quando ele não constrói uma verdadeira imagem de si em torno daoposição entre a casa e o bar, a abstinência e a internperança, ou seja, também, entre asalvação individual e a solidariedade coletiva.

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o bar não é apenas o local em que se v~i para beber, mas ?ara beber em companhiaP. em que é posslvel instaurar relações de familiaridade baseadas na suspensão das censuras.convenções e conveniências que devem ser respeitadas nas trocas com estranhos: poroposição ao bar ou ao restaurante burguês ou pequeno-burguês, no qual cada mesa constituium pequeno território separado e apropriado (pede-se licença yara retirar uma cadeira ouo saleiro), o bar popular é uma companhia (daí, a saudação "Olá, companheiros!" ou "Bom-dia a todo o mundo" ou "Tudo bem, caras?" do recém- hegado) na qual o indiv.duo seintegra. O centro é o balcão em torno de. qual as pessoa: se acotovelam depois de teremapertado a mão ao "proprietário". colocado desta forma: n pcsição de anfitrião (muitasvezes, é ele quem orienta a conversação) e. às vezes. ali' Ir .smo, a todos os presentes (:\~mesas - cujà existência não é obrigatória - sendo deixadas para os "estranhos" ou para asmulheres que vieram dar de beber algo a um filho ou fazer uma ligação telefônica). No bar,a arte tiplramente popular da piada atinge sua plena real ização, ou seja, a arte de levartudo na brincadeira (daí, as interjeições sem brincsr Oll Io:« de brincadeira pelas quais semarca o retorno às coisas sérias e que. aliás, podem introduzir uma piada com segundasintenções), mas também a arte de dizer piadas ou de fazer brincadeiras, das quais o bomgordo é a. vItima predestinada: por um lado, ele presta-se. mais do que qualquer outrapessoa, a esse jogo por uma propriedade que. segundo o cód gn popular, é uma singularidadepitoresca, em vez de uma tara; e, por outro. a boa natureza de que é creditado o predispõea aceitá-Ias e considerá-Ias de forma pos'tiva. Em poucas palavras, a arte de zombar dosoutros sem irritá-los por meio de deboches ou de injúrias C1t1'ais que são neutralizados porseu próprio excesso e que. supondo uma 131ande familiaridade. tanto pela informação queutilizam, quanto pela própria liberdade de que dão testemunho, são de fato testemunhosde atenção ou de afeição, determinadas maneiras de valorizar sob a aparência de denegrir.de assumir sob a aparência de condenar - embora possam s-rvir para colocar à provaaqueles que tivessem a pretensão de distanciar-se do gruoo."

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Três maneiras de se distinguir

A oposição principal entre os l:ostos de luxo e os gostos de necessidade especifica-se em um número de oposições igual às diferentes maneiras de afirmar sua distinção emrelação à classe operária e a suas necessidades primárias ou, o que dá no mesmo, igual aospoderes que permitem manter a necessidade à distância. Assim, na classe dominante,pode-se distinguir, simplificando, três estruturas de consumo distribuldas em três itensprincipais: alimentação, cultura e despesas com apresentação de si e COr:1 representação(vestuário, cuidados de beleza, artigos de higiene, pessoal de serviço). Estas estruturasassumem formas estritamente inversas - como as estruturas de sev capital - entre osprofessores e os industrials ou grandes comerciantes: enquanto estes têm um consumoalimentar excepcionalmente elevado (acima de 37% do orçamento), além de despesasculturais bastante baixas e despesas médias de apresentação e representação, 05 primeiros,cuja despesa total média é mais reduzida, têm despesas alimentares baixas (inferiores,relativamente, às dos operários), despesas de apresentação e de representação restritas(incluindo, despesas com saúde que se encontrarnêntre as mais elevadas) e despesasculturais (livros, jornais, espetáculos, esportes, brinquedos, música, rádio e toca-discos)reiatívamente fortes. A essas duas categorias, opõem-se os membros das profissões liberaisque, à alimentação, reservam uma parcela de seu orçamento igual à dos professores (24,4%)para uma despesa global m~ito mais elevada (57.122 F, em vez de 40.884 F), e cujasdespesas de apresentação e representação superam de longe as de todas as outras frações,sobretudo, se acrescentarmos as despesas com pessoal de serviço, enquanto suas despesasCUlturais são mais baixas do que as dos professores (ou iguais às dos engenheiros e quadrossuperiores que se riruam a meio caminho entre 0& professores e os membros das profissõesliberais, embora esteja." mais perto destes relativamente li quase todos os consumos).

Tabela 17 - Estrutura das despesas entre os professores, membros das profissõesliberais, industriais e grandes comerciantes (F. C., 1Il)

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grandes comerciantesprof llberalsr

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cultura' 1753 4.3 1298 2.3 574 1.3

I Incluindo as refeições no restaurante ou cantina,I Vestuário. calçado. clrurgla plástl:a e limpeza. artigos de higiene. penteado. empregados domésticos., LiVl,OS. jurnais. papelaria. discos. esporte. brinquedos. música. espetáculos,

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<Pode-se indicar com precisão o sistema das diferenças ao observar, mais atentamente,

a maneira como se distribui o consumo alimentar: neste aspecto, os industriais e oscomerciantes diferem profundamente dos membros das profissões liberais e, a Iottiori,dos professores, em razão da importância atribuída aos produtos à base de cereais - emparticular, à confeitaria -, aos vinhos, conservas de carne e caça, além de seu pouco interessepor carne, frutas e legumes frescos. Os professores, cujas despesas alimentares têm umaestrutura quase idêntica à dos empregados de escritório gastam, mais do que todas asoutras frações, em pão, laticínios, açúcar, compotas, bebidas não alcoólicas; sempre menos,em vinhos e álcoois; e nitidamente menos do que os membros das profissões liberais, emprodutos caros, tais cemo a; carnes - e, sobretudo, as mais caras como é o carneiro e ocordeiro =, as frutas e os legumes frescos. Por sua vez, os membros das profissões liberaisdistinguem-se, sobretudo, pela parcela importante de suas despesas com produtos carose, em particular, com as carnes (18,3% das despesas com a alimentação) e, sobretudo,com as mais caras (vitela, cordeiro e carneiro), com os legumes c frutas frescos, peixes ecrustáceos, queijos e aperitivos. 11 .

Assim, quando se vai dos operários p~Í'a.os empresários do comércio e da indústria,passando pelos contramestres, artesãos e pequenos comerciantes, o freio econômico tendea abrandar sem que haja alteração do princípio fundamental das escolhas de consumo: aoposição entre os dois extremos estabelece-se, então, entre o pobre e o (novo) rico, entre'a comida e a comilança; os alimentos consumidos são cada vez mais duplamente ricos(mais caros e mais ricos em calorias) e cada vez mais pesados (caça, patê de figado). Aocontrário, o gosto dos membros das profissões liberais ou dos quadros superiores constituinegativamente () gosto popular como gosto do pesado, gorduroso e grosseiro, orientando-se para o leve, oelicado, requintado: a abolição dos freios ecenômicos é acompanhada pelofortalecimento das censuras sociais que interditam a grosseria e a grossura em beneficioda distinção e da finura. O gosto pelos alimentos raros e aristocráticos tende à preparaçãode uma culir.ária de tradição, rica em produtos caros ou raros (legumes frescos, carnes,ete.). Finalmente, os professores, mais ricos ~m capital cultural do que em capitaleconômico, e, por isso mesmo, impelidos a COllSUmOf,ascéticos em todas as áreas, opõem-se quase conscientemente - por uma busca de originalidade ao menor custo econômicoque se orienta para o exotismo (cozinha Italiana, chinesa, etc.) e para o populismo culinário(pratos da zona rural) - aos (novos) ricos e a seus alimentos ricos, vendedores econsumidores de "cornllança", aqueles a quem, às vezes, se atribui a denominação de"grossos" - gordos do ponto de vista corporal e, intelectualmente, grosseiros - que possuemos recursos econômicos de afirmar, com uma arrogância percebida como "vulgar", umestilo de vida bastante próximo, em matéria de consumo econômico e cultural, daqueledas classes populares. J'

É evidente que não se pode autonomizar os consumos alimentares - sobretudo,apreendidos unicamente através dos produtos consumidos - em relação ao conjunto doestilo de vida: nem que seja pelo simples fato de que o gosto em matéria de especialidadesculin:frias- cujos produtos, sobretudo, no grau de indeterminação em que são apreendidospela estatística, limitam-se a fornecer uma idéia bastante aproximada - está associado,por intermédio do modo c: preparação, a toda a representação da economia doméstica eda divisão do trabalho entre os sexos. Assim, o gosto pelos pratos cozinhados na panela

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(pot-au-[eu, blenquette, dauve), exigindo um forte investimento de tempo e de interesse.está em afinidade com uma concepção tradicional do papel feminino: neste aspecto, 3

oposição é particularmente marcante entre as classes populares e as frações dominadas daclasse dominante em que as mulheres. cujo trabalho tem um elevado valor mercantil - oque contribui, sem dúvida, para explicar que elas tenham uma idéia mais elevada de seuvalor -, desejam reservar .seu, tempo livre, priori tariamente, para cuidar dos filhos e para arransmlssâo do capital cultural, além de mostrarem tendência a questionar a divisãotradicional do trabalho entre os sexos; por outro lado, 2 busca da economia de tempo e de

_trabalho na preparação dos pratos conjuga-se com a procura da leveza e do baixo teor emcalorias dos produtos que leva a preferir os grelhados e os ingredientes crus - a "saladarussa" -, assim como os produtos e pratos congelados, os iogurtes e os laticínios adoçados,ou seja, outras tantas escolhas que estão nos antípodas dos pratos populares, dos quais omais típico é o pot-eu-Ieu, feito de carne de segunda ensopada - por oposição a grelhadaou assada - modo de cozimento inferior que, acima de tudo, exige tempo. Não é por acasoque esta forma de culinária - diz-se de uma mulher que se consagra inteiramente ao larque é pot-eu-Ieu _. simboliza um estado da condição feminina e da divisão do trabalhoentre os sexos, assim como as panwfas, calçadas antes do jaatar, simbolizam o papelcomplementar atribuído ao homem."

Entre os operários é que se dedica mais tempo e interesse à culinária: de acordo comos depoimentos, 69% gostam de confeccionar pratos com maior esmero contra 59% entre osquadros médios, 52% entre os pequenos comerciantes c 51 % entre os quadros superiores.membros das proflssõcs liberais c industriais (EC., Y\.,I'{XIV bis). Outro índice indireto detais diferenças em matéria de divisão sexual do trabalbo: para os professores e quadrossuperiores, segundo parece, a prioridade é atribuída à m.•quina de lavar a louça ou a roupa.enquanto para os membros das proflssões lioerais e os industriais ou grandes comerciantes.ela estaria orientada, de preferência, para o televisor e o a .itomóve' (EC., IlI). Finalmente,tendo sido convidados a escolher as duas iguarias preferid. s, em uma lista de sete pratos, osagricultores e os operários que, à semelhança de tocas :'S outras categorias, colocam nuprimeiro lugar" gigoc [pernil de carneiro], mostram maior propensão (45% e 34% - Contra28% dos empregados, 20% dos quadros superiores e 19% dos pequer.os empresários) a citaro pot-eu-Ieu (os agricultores são, praticamente, os únicos a escolher a andouillette [chouriço 1- na razão de 14% contra 4% dos operários, empregados e quadros médios, 3% elosquadrossuperiores e 0% dos pequenos empresários), Os operários e os pequenos empresáriospreferem, também, o coq-au-vin [galo ao vinho t.nto] (50% c 48%), ou seja, prato típico dospequenos restaurantes médios com pretensão a se tornare m chiques, sem dúvida, associadopor isso mesmo à idéia de "ida" ao restaurante (contra 12% dos empregados, 39% dosquadros superiores e 37% dos agricultores). Os quadros, membros das profissões liberais eempresários, s6 se distinguem de maneira relativamente nítida pela escolha daquele pratoque - fazendo parte de uma lista, em seu entender. psrticulnrmente restriu - é, ao mesmotempo, relativamente "leve" e marcado simbolicamente. em relação à rotina comum daculinária pequeno-burguesa, ou seja. a bouillebelssc [caldeirada à provençal] (31% contra22% dos empregados, 17% dos pequenos empresários 10% àos operários, 7% dosagricultores) e em que a oposição entre o peixe e a carne - e, sobretudo, a carne de porco do

:; A nl~t\nçao 177

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.'chucrute ou do csssoulet [guisado de feiJ~obranco) - duplica-se claramente com a coloraçãoregionallsta e turística (EC" XXXIV" É evidente que, pelo fato da Imprecisão da classificaçãoutilizada, não se pode apreender, acui, os efeitos da oposição secundária entre as frações;além disse, as tendências observadas teriam sido, sem dúvida; mais rnarcanres se tivessesido possível, por exemplo, Isolar os professores e se a lista de pratos propostos tivesse sidomais diversíficada nos aspectos sociologicamente pertinentes.

Gráfico 9 - O espaço dos consumos alimentares

fino I requintadomagro leve

boi, peixe

cru grelhaúo (rutas

rebuscadoexótico

lludAve1narural-adoçadolatlcínk s

ricoforte-gorduroso-salgadoespedarluvínhos-élcoch

I ----, suco de frutacompotAscongelado

CAP. CULT~'CAP. ECO-TEMPO UVRB <?-ESTATUTO 9+con •. allm.-cons. cult.+

aperitivos:onf:lt:r1: CAP. CULT.- I

CAP. ECO+TEMPO UVRE Ç>±ESTATUTO«+

cens, allm.»eens. cult.-

I•• Islcharla

carne de porcopor lU (eu

'pio.algrdo - gorduroso - peuado - fone - cozido

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CAP. CULT,-CAP. ECO-TEMPO UVRE 9±ESTATUTO<?-

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o gosto em matéria alimentar depende também da. idé.a que cada classe faz docorpo e dos efeitos da alimentação sobre o corpo, ou seja, sobre sua força, sua saúde c suabeleza, assim como das categorias que ela utiliza para avaliar tais efeitos - aliás, algunspodem ser adorados por uma classe e ignorados por outra, de modo que as diferentesclasses podem estabelecer hierarquias bastante diferentes em TI! os diferentes efeitos: éassim, nas áreas err, que as-classes populares, mais atentas à iorça do corpo (masculino)do que à sua forma, tendem a procurar produtos, ao mesmo t.rnpo, baratos e nutritivos,os membros das profissões liberais mostrarãc sua preferência por produtos saborosos,bons para a saúde, leves e que não fazem engordar. Cultura ti irnada natureza, ou seja,Incorporada, classe feita corpo, o gosto contribui para fazer o (IlIPO de classe: princípio declassificação incorporado que comanda todas as formas de incorporação, ele escolhe emodifica tudo 0 que o corpo ingere, digere e assimila, do ponto de vista ta,nto fisiológico,quanto pslcclógico. Segue-se que o corpo é a objetivação mais irrecusávél do gosto declasse, manifestado sob várias maneiras. Em primeiro lugar, no que tem de mais natural,na aparência, ou seja, nas dimensões (volume, tamanho, peso, etc.) e nas formas (redondasou quadradas, rígidas ou flexíveis, retas ou encurvadas, etc.) de sua conformação visívelem que se exprime de inúmeros modos uma verdadeira relação com o corpo, ou seja, amaneira de tratá-I o, cuidar dele, alimentá-I o, sustentá-Ia, que e reveladora das disposiçõesmais profundas do hsbitus: com efeito, a distribuição entre as classes das propriedadescorporais é determinada, por um lado, através das preferências em matéria de consumoalimentar que, por sua vez, podem perpetuar-se para além de suas condições sociais deprodução - como é o caso, em outras áreas, de um sotaque, da maneira de andar, etc. _11 e,por outro, é claro, através dos usos rio corpo no trabalho e no lazer que são solidários comtais condições,

A mediação pela qual se estabelece a definição social dos alimentos convenientesnão é somente a representação quase consciente da configuração aprovada do corpopercebido e, em particular, de sua grossura ou finura. É, de forma ainda mais profunda,todo o esquema corporal e, especialmente, a maneira de posicionar o corpo no ato decomer que está na origem da seleção de determinados alimentos, Assim, o motivo pelo'qual as classes populares consideram o peixe, por exemplo, como um alimento pouco

!'~ónveniente para os homens não é somente ,I)cr sua leveza, por sua incapacidade de, ,;sustentar o corpo e por ser confeccionado, de fato, por razões higiênicas, ou seja, para

~?s doentes e para as crianças, mas também por fazer parte, em companhia das frutas -';l;-, salvo, as bananas - dessas coisas delicadas que não podem ser manipuladas por mãos de

. homem e diante das quais o homem é como uma criança (ao assumir o papel materno,, aexernplo do que faz em todos os casos semelhantes, a mulher ficará encarregada de

preparar o peixe no prato ou desca.scar a pêra): e, sobretudo, pcr sua exigência em ser:. éomldo de um rr.odo que, em todos os aspectos, contradiz a maneira propriamente: ~lasculina de comer, ou seja, com moderação, em pequenas doses, mastigando lentamente

com a parte dianteira da boca e na ponta dos dentes - tratando-se das espinhas. FicaI'

.> Comprometida totalmente a identidade masculina - o que se chama a virilidade - nestas. duas maneiras de comer: na ponta dos lábios e por pequenas doses, como as mulheres aquem convém debicar; ou com a boca cheia, grande apetite e pedaços enormes, como

. convém aos homens. Do mesmo modo que ela está comprometida nas duas maneiras,

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f r ' perfeitamente homologas, de falar: com a parte dianteira da boca ou com toda a boca e,em particular, o fundo da boca, a garganta (segundo a oposição, já anotada alhures,entre a boca, a boca delicada, a boca de lábios delgados e que se conserva fechada, porum lado, c, por outro. a goela, ser falador e insolente, berrar, xingar e, também,empanturrar-se demais). Esta oposição encontrar-se-ia em todos os usos do corpo e, emparticular, nos mais insignificantes n.1aparência; neste aspecto, eles estão predispostosa servir de dito popular em que estão depositados os valores mais profundos do grupo esuas "crenças" mais fundamentais. Seria fádl mostrar, por exemplo, que os lenços depapel - seu uso exige que se pegue no próprio nariz com delicadeza, sem apertar demaise a pessoa as.oa-se, de algum modo, na ponta do nariz, por pequenos toques - estãopara o grande lenço de pano, no qual a pessoa sopra com força, de uma só vez, e fazendoum grande ruído, franzindo os olhos com o esforço e segurando bem o nariz com osdedos da mão, o que o riso contido em suas manlfestações vislveis e sonoras é para oriso a benâeires desprega das que se serve de todo o corpo, franzindo o nariz, abrindobem a boca e respirando bem fundo ("rachou de rir"), como que para ampliar ao máximouma experiência que não suporta ficar contida e, "àrúes de mais nada, porque deve sercompartilhada, portanto, claramente manifestada à Intenção dos outros. E a filosofiaprática do corpo masculino como uma espécie de 'poténcle, grande, forte, CO.l1

necessidades enormes, Imperiosas e brutais, que se afirma na maneira masculina deportar o corpo e, em particular, diante dos alimentos, encontra-se também na origem dadivisão dos alimentos entre os sexos, divisão reconheclda, tanto nas práticas quanto nodiscurso, pelos dois sexos. Compete aos homens dispor de um maior volume de bebidae de comida, além de alimentos mais fortes, condizentes com sua imagem. Assim, noaperitivo, os homens serão servidos duas vezes - Inclusive, ainda mais veles, tratando-se de uma festa - ern doses bem medidas e em copos. grandes (o sucesso do aperitivoRicard ou Pernod deve-se, em grande parte, ao fato de que se trata de uma bebida, aomesmo tempo, forte e abundante - nada a ver com o conteúdo de um "dedal"); alémdisso, eles deixarão os tira-gostos (salgados, amendoins, etc.) p.a(a as crianças e para asmulheres que bebem um golinho ("temos de poupar nossas pernas") de um aperitivopreparado por das próprias - r:ujas receitas trocam entre si. Do mesmo modo, nasentradas, os produtos de salslcharia são, de preferência, para ,:,s homens e, em seguida,o queijo (que será tanto mais apropriado para eles quanto mais forte for), enquanto osingredientes crus são destinados, sobretudo, às mulheres, como a salada: uns e outrosvoltarão a servir-se ou compartilharão as sobras das travessas. A carne, alimento nutritivopor excelência, forte e fornecedora de força, vigor, sangue, saúde, é o prato dos homensque têm direito a repetir, enquanto as mulheres servem-se apenas de uma pequenaporção: em vez de significar, propriamente falando, de uma privação, trata-sesimplesmente de perda de apetite p:>r algo que pode fazer falta aos outros e, em primeirolugar, aos homens, ou seja, os destinatários por definição da carne; assim, sentem-segratificadas por não tererr: vívencindo tal situação como uma privação. Além disso, elasnão têm o gosto por alimentos próprios de homem que, sendo considerados nocivos aoserem absorvidos em grandes quantidades pelas mulheres - por exemplo, comer carnedemais faz "o sangue ferver", fornece vigor anormal, provoca espinhas, etc. -, podematé mesmo suscitar uma espécie de nojo.

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•As diferenças de pura conformação são reduplicadas e, s imbesliomenrc.

acentuadas pelas diferenças de atitude, diferenças na maneira de portar Ij)} csrpo, deapresentar-se, de comportar-se em que se exprime a relac.io com o mundo sxial. /I

esses Itens, acrescentam-se todas RS correções intencionalmente introdhuidas noaspecto mcdiflcável do corpo, em particular, pelo conjun 10 aas marcas n:.btivas ~cosmética - penteado, maquiagem, barba, bigode, suíças, ct«. - ou ao vestuáeo que,dependendo dos meios econômicos e culturais suscetíveis, c serem investidos ai. sãooutras tantas marcas sociais que recebem seu sentido e S':~ valor de sua possão nosistema de sinais distintivos que elas constituem, além de qUI~ele próprio é hanólogodo sistema de posições sociais, Portador de sinais, o COrr,(1é também proderor designos que são marcados em sua substância perceptível peli relação com o ~rpo: é

~>..assim que, através da maneira de posicionar a boca ao [alar ou de a~sentar ~ voz, avalorização da virilidade pode determinar totalmerte a pronúncia das classes popllares,Produto social, o corpo - única manifestação sensível da "pessoa" - é cormmentepercebido como a expressão mais natural da naturez a pr ofuuda: não hâ sinaispropriamente "físicos"; deste modo, a cor e a espessura do ba tom ou a configureçâo deuma mímica, assim como a forma do rosto ou da boca, são imediatamente lidas comoíndices de uma fisionomia "moral", socialmente caracterizada, ou seja, estados deânimo "vulgares" ou "distintos", naturalmente "naturais" ou naturalmente"cultivados". Os sinais constitutivos do corpo percebido, produtos de uma falzficaçãopropriamente cultural, cujo efeito consiste em distinguir os grupos no que diz respeitoao grau de cultura, ou seja, de distância à natureza. parecefll estar baseados lia 1l.ilJleLd.

O que se chama apresentação, ou seja, a maneira legítima de posicionar o corpo capresentá-lo, é espontaneamente percebida como um índice de conduta moral econstitui o fato de deixar ao corpo a aparência 'natural" como índice de displxência,de abandono culpável à facilidade,

, Assim, delineia-se um espaço dos corpos de classe que, salvo os acasos biológicos,tende a reproduzir, em sua lógica específica, a estrutura do espaço social. E nio é poracaso, portanto; que as propriedades corporais são apreendidas através dos sistemassodals de classificação que, aliás, dependem da distribuição, entre as classes sociais,

,;"das diferentes propriedades: as taxinomias em vigor tendem a opor, hierarquizando-as,;. as propriedades mais freqüentes entre os dominantes - ou seja, as mais raras - e as mais',freqUentes entre os dominados." A representação social do próprio corpo com a qual

cada agente deve contar, e desde a origem, para elabora: a representação subjetiva deseu corpo e de sua hexis corporal é assim obtida pela aplicação de um sistema declasslflcação social, cujo principio é o mesmo dos produtos sociais ao qual ele se aplica,Assim, os corpos teriam todas as possihilirlades de receher um valor estritamente

.proporclonado à posição de seus possuidores na estrutura da distribuição das outras• -propriedades fundamentais se a autonomia da lógica da hereditariedade biológica em.relação à lógica da hereditariedade social não atribuísse, às vezes, aos mais desprovidos,.sob todas as outras relações, as propriedades corporais mais raras, por exemplo, a belezaf=" que, às vezes, (designada como "fatal" por constituir uma ameaça para as hierarquias- e se, inversamente, os acidentes da biologia não privassem, às vezes, os "grandes" dos

, atributos corporais de sua posição, tais como a corpulência ou a beleza,

182 181

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A IllstlnçãoPlcrre Bourdlcu

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• Sem ccrimonia ou falta de educação?

Portanto, fica claro que o gosto em matéria alimentar não pode ser completamenteautonornizado das outras dimensões da relação com o Inundo, com os outros e com opróprio corpo, em que se realiza a filosofia prática característica de cada classe. Paracomprová-I o, deveria ser promovida a comparação sistemática entre a maneira popular ~!amaneira burguesa de tratar da alimentação, de servi-Ia, apresentá-Ia e oferecê-Ia, que' éinfinitamente mais reveladora do que a própria natureza dos produtos em questão _sobretudo, quando se ignora, à semelhança do que ocorre com a maior parte das pesquisasde consumo, as diferenças de qualidade. Trata-se de uma análise dificil já que cada um dosestilos de vida só pode ser pensado, realmente, em relação ~D outro que é sua negaçãoobjetiva t subjetiva, de modo que o sentido das condutas pode passar do "a favor" para. o"contra" de acordo com o ponto de vista segundo o qual for apreendido e conforme foreminscritas significações populares ou burguesas na leitura de palavras comuns - por exemplo,"maneiras" - que deverão ser utilizadas para no~eá-Ias.

É possível imaginar os mal-entendidos que podem resultar da ignorância destemecanismo em todas as pesquisas por questionário que são sempre trocas de palavras.A ,roniori, quando se visa coletar julgamentos sobre palavras ou suscitar reações a partirde palavras (à semelhança do "teste ético" segundo o qual todos os entrevistadosdispunham da mesma lista de adjetivos para caracterizar um amigo; um vestuário ou adecoração ideal de Limacasa): neste CJSO, as respostas registradas sno realmente definidasem relação a estímulos que, para além de sua idenrirfnde n0"1;MI (~ r1~~ palavraspropostas), variam em sua teslidede percebida, portanto, em sua eficácia prática, segundoos próprios princípios de variação (e, para começar, a classe social), cuja pretensão consisteem avaliar sua eficiência - o qUI! leva a encontros totalmente desprovidos de sentidoentre classes opostas. Os grupos investem-se Inteiramente, com tudo o que os opõe aosoutros grupos, nas palavras comuns em G,uese exprime sua identidade social, ou seja,sua diferença. Sob sua aparente neutralidade, palavras tão comuns - por exemplo, prático,sóbrio, limpo, funcional, engraçado, delicado, Intimo, distinto - estão, assim, divididascontra elas mesmas, seja porque as diferentes classes atribuem-Ihes sentidos diferentesou, então, o mesmo sentido e, neste caso, conferem valores opostos às coisas nomeadas:assim, em relação ao vocábulo caprichado tão fortemente assumido por aqueles que olevam a exprimir seu gosto pelo trabalho bem feito e bem acabado, ou a atenção umtanto meticulosa prestada à própria aparência externa que ele evoca - sem dúvida, paraaqueles que o rejeitam -, o rigor um tanto estrito ou acanhado que percebem no estilode vida pequeno-burguês; ou, ainda, em relação à palavra engraçado, cujas ccnotaçõessociais associadas a uma pronúncia, uma elocução socialmente rnarcante, de preferência,burguesa ou esnobe, entram em contradição com os valores manifestados, deixando naconfusão aqueles que haveriam de reconhecer-se, com toda a certeza, em um equivalentepopular, tal como btdomunt; rnarranr ou rigolo; ou, ainda, em relação à palavra sóbrioque, aplicada ao vestuário ou à decoração de uma casa, pode receber significaçõesradicalmente diferentes. conforme é utilizada para exprimir as estratégias estéticasprudentes e defensivas do pequeno artesão, o ascetlsmo estctizante do professor ou o

184 Piem Bourdlcu

gosto pela austeridade no luxo do grande burguês de velha ccpa. Corre vemos, todatentativa para produzir um órganon ético comum a rodas as classes está, anll:Cipadamente,condenada ao fracasso, a menos que, à semelhança do qu~ ocorre com tOlb a moral oureligião "universal", se sirva sistematicamente do rato de que. além de ser comum àsdiferentes classes, a língua é, ao mesmo tempo, capaz de receber sentidos diferentes --ou, inclusive, opostos - nos seus usos particulares, até mesmo, antagonisns.

A propósito das classes populares, seria possível falar de comer sem I'lmmalidades,do mesmo modo que se diz falar sem papas na língua. A refeição ê colocada SQ.b o signo daabundância - que não exclui as restrições e os limites - e, sobretudo, ela li1ztrdade: sãopreparados pratos "elásticos" e "em fartura", tais como as sopas e os molhes, as massas

, ou as batatas (quase sempre, associadas aos legumes) e que, servidas, com Ullllt concha oucolher, evitam a preocupação de ter de medir e contar - ao contrário dé tudooque tem deser fatiado, por exemplo, os assados." Esta impressão de abundância - que é de regra nasocasiões extraordinárias e que vale sempre, no~-Iimites do possível, para os homens, cujoprato é servido duas vezes até à beirada (privilégio que marca o acesso do jovem ao estatutode homem) - tem, freqüentemente, como contrapartida, nas ocasiões habituais, as restriçõesque, muitas .vezes, as próprias mulheres se impõem - servindo-se de lima porção paraduas pessoas ou cornendo as sobras da véspera; por sua vez, o acesso das moças ao estatutode mulher fica marcado pelo fato ele que elas começam a se privar, Faz parte do estatuto dohomem comer e comer bem - assim como de beber bem: insiste-se, particularmente, com

~ eles, para que consumam invocando o principio de que "nada deve ficar no prato"; aliás, a-. recusa :em algo de suspeito. No domingo, enquanto as mulheres. sempre de pé, estão

ocupadas em servir, em retirar as coisas da mesa c er t lavar a louça, os homens, aindat~~. sentados, continuam bebendo e comendo. Como estas diferenças bastante marcadas entre'~t'.os estatutos sociais (associados ao sexo ou à idade) nã» são acompanhadas por qualquer'f.:1!f... diferenciação prática (tal como a divisão burguesa entre a sala de jantar e a copa na qual

"'~'~, comem-os domésticos e, às vezes, as crianças), tende-se ó ignorar a preocupação em segui ra ordem estrita da refeição: assim, tudo pode ser colocndr em cima da mesa, praticamente,

'!!.ao mesmo tempo - tendo como virtude, igualmente, a economia de deslocamentos - de''':modo que as mulheres podem já esta na sobremesa com as crianças que, por sua vez,

'. carregam o prato para diante do televisor, enquanto os homens ainda estão terminando o~prato principal ou o "jovem", que chegou atrasado, engole a sopa. Mesmo que possa ser

~ percebida como desordem ou displicência, esta lil.erdade está bem adaptaria àst circunstâncias. Em primeiro lugar, garante a ecor.om a de esforços, aliás, procurada,.: propositalmente: como a participação dos homens nas (;11 cfas domésticas está excluída -;, e, acima de tudo, pelas mulheres que sentir-se-iam de.onradas em vê-los desempenhar./ um papel excluído de sua definição - o lançar mão de qualquer recurso é vantagem para,~'minimizar "os gastos". Assim, no bar, os homens podem contentar-se corú uma só colher~de café que, depois de sacudida, t entregue ao vizinho pa:,-; que, por sua vez, ele " ..nexa seu.~.:açúcar". No entanto, tais economias de esforces são acci tas simplesmente porq uc a pessoa. ".se sente e deseja se sentir corno se estivesse entre amigos, em casa, em família, o que

exclui precisamente fazer fita: por exemplo. para econorr.izar os pratos de sobremesa,,~pode-se tirar - exibindo um aspecto brincalhão para mostrar que se trata de uma

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transgressão "perrnitlda" - material, ao acaso, do armário destinado às confeitarias; as~lm,'o vizinho convidado para a sobremesa receberá também seu pedaço de papelão (aliâs,apresentar-lhe um prato equivaleria a exclut-lo) como um testemunho de C10SRltfamiliaridade a seu respeito. C'o mesmo modo, não há troca de pratos para servlr osdiferentes ingredientes. O prato da sopa, que é limpo com um pedaço de pão, pode se:utilizado, assim, até o fim da referção. A dona da casa não deixará de propor a "troca depratos", afastando a cadeira com uma das mãos enquanto a outra tenta pegar o prato de,vizinho; no entanto, todo o mundo fica indignado ("afinal, tudo se mistura no estômago") '.e sua insistência daria a impressão de que ela pretende exibir sua louça -- o que lhe l: 1

permitido ao tratar-se de um presente que acaba de receber - ou considera seus convidadoscomo estranhos, à semelhança do que, às vezes, se faz conscientemente com intrusos ou '1

parasitas - conhecidos, precisamente, pelo fato de nunca "retribuírem o convite" - peró.ntel1

os quais se pretende manter distância, trocando os pratos apesar de seus protestos, deixando ".de sorrir diante de suas brincadeiras ou repreendendo a atitude das crianças ("Não temimportância! Deixem-nas em paz, elas podem. perfeitamente ... ", dirão os convidados; "J~é tempo de saberem comportar-se" responderão os pais). A raiz comum de todas essas "Z'"permissões" assumidas pela pessoa é, sem dúvida, o sentimento de que ela não vai impor -.;a si mesma controles, obrigações, restrições deliberadas - menos ainda em matéria de (.alimentação que é uma necessidade primária e uma desforra -, além de ser, no próprio .:,âmago da vida doméstica, o único refúgio de liberdade uma vez que, por todos os lados e~no tempo restante, ela continua submetida à necessidade. l

Ao "comer sem formalidades" popular, a burguesia opõe a preocupação em comer .\:nos conformes. Assim, em primeiro lugar, trata-se de respeitar ritmos que implicam '~'expectativas, atrasos, reservas: nunca S( deve dar a impressão de precipitar-se sobre! a.rcomida; só se começa a comer, depois que todos estiverem servidos; ao servir-se dos;;alimentos, e :"0 retomá-I os uma segunda vez, a pessoa deve proceder com discrição. ()s'~Kpratos são apresentados em determinada seqüência, excluindo-se qualque! coexistência ~de alimentos que devem estar separados pela ordem estrita da refeição, tais como assado 9e peixe, queijo e sobremesa: por exemplo, 'antes de servir a sobremesa, retira-se tudo o':que se encontr •. em cima da mesa, Inclusive, o saleiro, além de serem varridas as migalhas.Esta maneira de Introduzir o rigor da regra, até mesmo, no cotidiano - o homem faz a~barba e veste-se, todos os dias, de manhã, e não apenas para "sair" -, de excluir o corte: .entre dentro e fora de casa, entre o cotidiano e o extracotídlano (associado, para as classepopulares, ao fato de endorningar-se), não se explica somente pela presença, no âmago dq.mundo familiar e bem conhecido, desses estranhos que são ou domésticos e os convidados, \mas é a expressão de um habitu.~de ordem, conduta e reserva que não poderia ser abdicado ..;E tanto menos que a relação co.n os alimentos - a necessidade e o prazer primários por '!excelência - é apenas lima dimensão da relação burguesa com o mundo social: a oposlção,ent.e o imediato e o diferido, o fácil e o diflcll, a substância ou a função e a forma, que se';~·exprime aí de maneira particularmente impressionante, encontra-se na origem de qU:llquer}estetização das práticas e de toda estética, Através de todas as formas e de todos cs'forrnallsrnos que se encontram impostos ao apetite imediato, "que é exigido - e ínculcsdo,- não é somente a disposição de disciplinar o consumo alimentar pela adoção de urna .-.forma que é também uma censura amável, indireta, invisível - totalmente oposta à ;

Imposição brutal de privações -, além de ser parte integrante de uma arte de viver; deste~inodo, o fato de comer nos conformes é, por exemplo. a maneira de prestar homenagem·aos anfitriões e à dona da casa, cujos cuidados e trabalho são levados na devida consideração,·ao ser respeitada a ordem rigorosa da rcfeiçã J. Mas é também uma verdadeira rclaçâo coma natureza animal, com as necessidades primárias e com .:' vulgar que se manifesta aí semrestrições; é a maneira-de negar o consumo em sua sigr ificação e sua função primárias.'essencialmeilte comuns, transformando a refeição em uma cerimônia social, em uma~firmação de conduta ética e de requinte estético, A ma -ieíra de apresentar a alimentação·e de consumi-Ia, a ordem da refeição e a disposicão dos lugares, estritamente diferenciados· segundo a seqüência das iguarias e dispostos para agrad-e a vista, a própria apresentação

os pratos, considerados tanto em sua composição segundo a Iorrna e a cor à mancir a debras de arte, quanto em sua simples substância consumlvel, a etiqueta orientando a

,'é~nduta, a atitude, a maneira de servir ou de se se-vir c de utilizar di'(erf!ntes utensflios. af.·distribulção dos convidados, submetida a princípios bastante escritos, mas sempre

,:: eufemísticos, de hlerarquização, a censura imposta a todas as manifestações corporais do"'-:ato(como os rufdos)ou do prazer de comer (come. a precipitação), o próprio requinte das

coisas consurnldas, cuia qualidade prevalece em relação à quantidade - eis o que é verdadeiroi'anto para o vinho, quanto para as iguarias -, todo este expediente de estilizaçâo tende ;}'deslocar a ênfase da substância e a função em direção à forma c à maneira; por conseguinte.~ negada ou, melhor ainda, denegada a realidade, grosseiramente material, do ato de~consumo e das coisas ce.nsumidas ou, o que dá no mesmo, a grosseria vilmente material:daqueles que se abandonam às satistações imediatas do consumo alimentar. forma por.excelência da simples sistbesis. H

Em uma tabela sinótica, foram reun.dos os principais resultados de uma pesquisaextremamente rica (EC., XLIII) sobre a arte de receber que permite corroborar e conferirmaior precisão a tais análises. Em prirneito lugar, observa-se. aí que, na classe operária.o universo das trocas de convites improvisados ou organizados é circunscrito à família eao u~rverso das pessoas amigas que podem ser tratadas "(Orno se fossem da família" ccom quem é possível "sentir-se em família", enquanto as reJaç6es propriamente ditas,no sentido de relações profissionais, úteis na profissão, aparecem no nível das classesmédias e caracterizam, sobretudo, a classe dominante. Como testemunho desta liberdade,O fato de que o convite é dirigido, sobretudo, para tomar café, sobremesa ou aperitivo -ao passo que, no outro extremo do espaço social, convida-se, de preferência, para tomarchá, almoçar ou jantar, ou para uma ida ao restaurante. Se existe a preferência em limitaros convites improvisados a tomar o aperitivo ou 0 café é porque se evita a convidar "pelametade" e coloca-se o ponto de honra em "fazer bem as coisas", excluindo as "soluçõespráticas" - sugeridas pelos semanários Femininos - destinadas a permitir uma economiade esforços, como o bufê ou o prato único." Esta recusa dos fingimentos - pretende-se,antes de mals nada, que os convidados tenham comida suficiente e pratos bem preparados;e, secundarlarne.ite, que não fiquem entediados - torna-se ainda mais bem visível naanálise ,da composição das refeições oferecidas. Os operários entendem que a refeiçãocomporta todos os elementos considerados como constitutivos de uma verdadeira refeição.desde o aperitivo até a sobremesa - ao passo que, nas outras classes, aceita-se. com

186 187

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.,Tabela 19 - Variações das maneiras de rec.eber (E c., XLIII)

o~r'rlo,

tmprt8Adosquadrosmédios

~u~droJ.InloU!lr ..r.llb..••1... ".

reservam nu' ('O" 'hei lmprovtsados:• para I 'amflla mllS pr6dma 51,7 30 32.5· para o. Iml~ol {ntlmos 20.9 35,9 )).2· para os amigos dos rilhos 2,1 3,~ 8,3· pau as reiaçOt, profissionais 1,9 3.1 ~,2____ o ,--reservam StUS convites, (cltos cem lnte<:cd~ncil:· part I (lIf,lIi. mais próxima 41,2 33,1 JO.2· t,UI U rtla.:6es profisslonab 2.6 U 18,9-convidam vjrlu veres. ou Ireqceotemente. para:· o c.ié ~9,2 48.4 J8.2· a Jobrtmtn 2J.7 14,7 15,1· oJanur 51,3 61,ft 70,2

fa.!tm convhes Improvhados pari:· o aptrhl v o 52,8 46.3 39,2'1 rdtlçio 23.9 31.9 40,0

o mair Importante nos convites Improvisados:· Iguarias Clprlchadu 10,1 5.9 9.4· muita comida 33,6 2ft,~ 26.0· ninguém fi:. eruedlado 33.~ ~6,6 n,9

prdtrtn oferecer 10 convidado:· um bu~ ou um pnto õatee ' 19,4 25,) 26.1- um verdadeiro clrdi?lo 11,2 11.6 10.9

por oculto do convite, utlllum Iregul. e mulfas vetes):· btixela de prata 27,8 40,1 61,5· cop<'s de crlual 29,J 49,1 ~7,)· baixela de porcelana 39.6 46,3 60,0

copos co nuns lU 5M 5 5, ~· louça de barro vidrado 60,6 55,9 5U

gosum que os convidados estcj.am:· elegantes 10.8 15.9 30.6· com traje de pauclo 19,1 10,9 58,S· sejam poslclonados por eles 29,7 31,3 46,0• escclban, Jeu h,g lr 65,1 63,1 46.8

prerere-n:· separar os caull ' 22,1 35,0 50,6· não scp.ri.lo~ 26,0 38,4 26.0-------.«Itlm oU crianças (em méd.. com Idade mrn.):

• nl~r(lç'o 6,5 1,5 8,8· no finu do di. 10,9 11,9 12,9· nl conversaçl0 12,0 12,2 12.1_.

41.8 56,3 68,314,6 16.6 9.811,6 16,9 14.0

~8.1 56,6 51,114,4 4,1 ~,264,9 55,3 ~5,366.4 59.1 50.9rg"'''ut )08

Leitura desta tabela: 5 1,7% dos operários reservam seus convites improvisados para a família mals próximae 1.0,9% para os amigos íntimos, etc.: enquanto 34,7% dos empregados e quadros médios reservam osconvites ~ a famflia mais pr6xima c 35,9% para os amigos Intimes, etc, Para cada questão, o total das .porcentagens pode ser Inferior ou superior a 100: com efeito, os enuevistados tiveram a possibilidade deapontar mais de uma das escolhas propostas ou, pelo contrário, rejeitarem todas. Em ncgrito, está indlcada .a mais elevada tendência no interior de cada linha. "

188 Plerrc Bourdlcu

.•-'~!~'"<"'". .QI••• ~'" •••••

maior freqüência, "simplificar", suprimindo a entrada, a salada ou a sobrzaesa." Aprimazia .cnferída à substância em relação à forma faz com q.ie, se houver easiâo de"simplificar", tal operação só poderá ocorrer na ordem da (otms, das maneiras.consideradas como não-essenciais, puramente simbólicas. Pouco importa que» serviçode mesa seja ordinirio se a refeição é extra-ordinária: eis o que se gosta de p~lamar eum grande número dereflexões rituais incidern sobre este lema. Pouco irnpoza que osconvidados não estejam dispostos segundo as formas, nem disponham do trajedc rigor.Pouco importa que se verifique a interferência das crianças em uma refeiçãOfl,lJe nadatem de um ritual - contanto que evitem intervir na conversação que é um nt:gÓCio deadultos. Não tendo a religião das formas, pode-se assistir a um programa de IIOt!cvisão,tomar a iniciativa de cantar lima canção no final da refeição ou, até mesmo, Ci:Dganizar

,', jogos: ainda, neste aspecto, como a função ~ claramente reconhecida-, "estarees. aqui,para nos divertir" r, as pessoas empenham-se em realizá-Ia, servindo-se de rodos osrecursos disponfveis - bebidas, jogos, histórias engraçadas, etc, - para [ezer a ~ta. E oprimado da substância em relação à forma, a recusa da denegação irnplicada 00 fato deadotar formas, exprime-se ainda no conteúdo dos bens trocados por ocasião das It(cpções:as flores que têm a ver cem o gratuito, a arte, a arte pela arte - gosta-se de brincar como fato de que "isso não se come" - são relegadas em benefício dos alimentos [l;frestres,vinhos ou sobremesas, a.iás, presentes "que dão sempre prazer" e que podem seroferecidos sem cerimônia em nome de uma representação reclisra do custo da refeição,assim como da vontade - considerada como natural e aceito 'le comum acordo - decontribuir para reduzi-los,

t..~

Seria possível engendrar, de novo, todas as oposições entre as duas maneiras\'.antagonistas de tratar a alimentação e o ato de comer a partir da oposição entre a forma e a. substância: em um caso, a alimentação é reivindicada em sua verdade de substância nutritiva'por .sustentar o corpo e fornecer energia (o que tende a privilegiar os alimentos pesados,'.gordurosos e fortes, cujo paradigma ~ a carne de porco, gordurosa e salgada, antítese do':pelxe, magro, leve e Insosso); no outro caso, a prioridade arribilda à forma (por exemplo, do'-rpo) e às formas leva a relegar, para o segundo plano, a bus za da energia e a preocupaçào

m a substânda, reconhecendo a verdadeira liberdade na ascese eletiva de uma regra prescritaara 51 mesmo, E mostrar que duas visões antagonistas do mundo, dois mundos, duasêpresentaçóes da excelência humana estão confinadas nesta matriz: a substância - ou aatéria - é o que é substancial. no sentido primeiro de nutritivo, mas também de real, por

posição a todas as aparências, todos os (belos) gestos, em resumo, tudo o que é, como se'diz, puramente simbólico; é a realidade contra a imitação, o ::ímile, a poeira nos olhos; é obotequlrn sem boa aparência, com mesas de mármore e toalhas de papel, mas em que o. inheiro é bem gasto e ninguém é iludido com falsas promessas como ocorre nos restaurantes~tu'e inventam moda; é o ser contra o parecer, a natureza ("ele é natural") e o natural, a,1mplicidade (com à vontade, simplesmente, serr cerimônia) contra os embaraços, asípàrêndas, os trejeitos, as maneiras I: as cerimônias, sempre suspeitos de serem apenas um, bstíturo d" substância, ou seja, da sinceridade, do sentimento, do que é sentido e se

.~mprova por atos; é o falar sem pap:s na língua ea delicadeza do corr çâo que fazem oerdadcíro "cara legal", quadrado, inteiro, honesto, reto, franco, feito de uma só peça, por

/\\'.1.. Dlstlnçao 189

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oposição a tudo o que é pura forma, a tudo o que é feito apenas pela forma ("da boca para'fora") e à delicadeza das palavra~ ("é cortesia demais"); é a liberdade e a recusa dascomplicações por oposição ao respeito das formas espontaneamente percebidas comoInstrumentos de distinção e poder. Em relação a estas perspectivas de moral, a estas visõesdo mundo, não existe ponto de vista neutro: aí onde uns vêem o sem-cerimonioso, adisplicência, os ortros enxergam a falta de cerimônia e de pretensão; para uns, a famiJiaridad~é a forma mais absoluta de reconhecimento, a abdicação de qualquer dlstância. o abandonoconfiante, a relação em pé de igualdade; enquanto para outros, aqueles que evitam afamiliaridade, trata-se da inconveniência de atitudes demasiado livres.

O realismo popular que leva a reduzir as práticas à verdade de sua função, a fazer o ,que se faz, a ser o que se é ("eu sou assim mesmo"), "sem inventar histórias" ("é assim.'mesmo"), e o materialismo prático que predispõe a censurar a expressão dos sentimentosou a exorcizar a emoção por violências ou grosserias são a an ftese praticamente perfeita dadenegacão estética que, por uma espécie de hipocrisia essencial - visível, por exemplo, naoposição entre a pornografia e o erotismo - dissimul«, pela primazia conferida à forma, ointeresse atribuído à função e impele a fazer o que se faz como se Isso não tivesse sido feito.

"t)astsnte marcante em quantidade e qualidade, de te das as cornpr.rs de roupas masculinas'resume-se na oposição entre o terno, apanágio de>quadro superior, e o macacão. marcadistintiva do agricultor ou operário (com exceção dos artesãos, ele é praticamente ignorado

,Pelos outros grupos); ou, ainda, entre o sobretudo que, sempre mais raro em relação à,capa feminina, é nitidamente. r:nais utilizado entre os quadros ~,Ui)<:riores do qu.: nas outras::c1asses, e o eatacão ou a jaqueiã'que são utilizadas, sobretudo, r,,~los camponeses e ~elos'.operárioS. A meio caminho, encontram-se os quadros médios que, praticamente, deixaram'de usar um vestuário de trabalho e, com maior freqüência, cornpr arn ternos., Entre as mulheres - que, em todas as categorias (salvo os agricultores e assalariados"agrícolas), fazem despesas superiores às dos homens (com uma diferença particularmente

, ,arcante entre os quadros médios, quadros superiores e proflssócs independentes ou nas'~das mais elevadat) -, o número de compras aumenta à medida 'l'le se sobe pa hierarquia

sõdal, de modo que a diferença é máxima para os raillcurs e conjunros (artigos caros),'enquanto é menor para os vestidos e, em particular, para as saias e casacos, Observa-seentre o sobretudo, cujo uso é cada vez mais freqüente quando se sobe na hierarquia social,e a csp« de ehuva que "serve-para todas as ocasiões", uma oposição análoga àquela que se~sta1:.elece, para os homens, entre o sobretudo e ~ jaqueta, O uso da bata ou do avental -~ue, nas classes populares, é uma espécie (~e traje de f:mção da dona de casa - crescebrtemente quando se desce na hierarquia social (ao contrário do rol/pão, praticamente'êsconhecido no mundo rural e operário).

o visível e o invisível

No entanto, a alimentação - considerada pelas classes populares como algo da ordem;da substância e do ser, enquanto já é percebida, segundo as categorias da forma e do parecer, •pela burguesia que' recusa a distinção entre o dentro e o fora, o para si e o para outrem, Ócotidiano e o extracotidiano - está, por ~,,~ vez, Fara o vestuário na relação entre o dentro co fora, o Intimo e o exterior, o doméstico e o público, o ser e o parecer. E a inversão daimportância atribuída à alimentação e ao vestuário nas classes populares - que consagram a,.:prioridade ao ser -, enquanto as classes médias manifestam a preocupação em parecer, é o ,:cindício de uma reviravolta de toda a visão do mundo. As classes populares transformam o ,vestuário em um US0 realista ou, se preferirmos, funcionallsta. Ao privilegiar a substância e ;

I .::

a função em relação à forma, elas desejam a devida compensação, se assim se pode dizer, "para seu gasto, escolhendo algo "que pode durar muito tempo". Ignorando a preocupação]burguesa de introduzir a boa apresentação no universo doméstico - lugar da liberdade, do!avental e das pantufas (para M mulheres), do torso nu ou da camiseta (para os homens) -, ielas desleixam a distinção entre a roupa de cima, vísível, destinada a ser vista, e a roupa de~baixo, lnvísível ou escondida, ao contrário das classes médias que começam a ficar inquietas ':j

- pelo menos, fora de casa e no trabalho (cresce, cada vez mais, o número de mulheres 1trabalhadoras) - co:n sua aparência externa, incluindo vestuário e cosmética,

É assim que, apesar dos limites dos dados disponíveis, encontramos, na ordem do 'vestuário masculino - muito mals tnsrcsnte, em relação ao que a estatística dos prudutos -:pode apreender a seu respeito, do que o vestuário feminino _. o equivalente das grandes :"oposições constatadas em matéria de culinária, Na primeira dimensão do espaço, o cortepassa - também, neste aspecto - entre os empregados e os operários c, em particular, ficamarcado pela oposição entre a bata, cinzenta e o macacão azul, o sapato social e os mocassin~",os kickers ou bsskets, ou seja, calçado mals descontraído (sem falar do roupão, cujo volume ~'de compra é, entre os empregados, da ordem de 3,5 superior ao dos operários), O aumento, ;t

190 Picrre BOllrdiCU,l

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192Picrrc Bourdieu

.Sm média anual, os operário! compram lenços, camisetas c sungas em>;quantidade ~uperior - e meias, meias curtas. pólos, pulôveres, erc, praticamente em ~.número igual - ao que é comprado pelas outras classes, mas sempre uma quantidade .•menor de pijamas (vestuário que, \ exemplo do roupão, é 'um atributo tipicamenteburguês) e de camisas, Em relação as mulheres, as difcrenças _ entre as classes, emmatéria de roupas de baixo, nitidamente marcantes pelo seu valor _ são reduzidas emrelação ao número de peças adquiridas (e, inclusive, Invertem-se em relação àscombinações, camisolas, meias, co:antes e lenços), Ao contrário, para as mulheres, "assim come- para os homens, as compras de roupa de cima crescem em núm~ro e valor.quando se sobe na hierarquia social.

Por sua vez, as oposições transversais são mais diflcels de apreender pelo fato.de que a pesquisa s~brr. as condições de vida das famllias que permite o estudo das",variações segundo categorias mais bem detinidas limita-se a levar em consideraçãoitens bastant\! sumários, Observa-se, todavia, que - pratk;,mente insignilicantes emrelação à roupa de baixo - as despesas. em matéria de vestuário variam bastantefortemente, no âmago da classe dominante, entre as frações, e vão aumentandoregularmente desde os professores que mostram o menor interesse por este item tantoem "alar absoiuto quanto em valor relativo (1.523 F por ano, ou seja. 3.7%) aosindustriais e aos grandes comerciantes (4,5%), aos quadros superiores e aos engenheiros(5,7% e 6.1 %), até os membros das profissões liberais (4,361 F. ou seja, 7,6%), Taisdiferenças no vslor atrlbuíéo a estes Instrumentos da apresentação de si (o consumode calçado varia como o do vestuário) encontram sua origem nas fórmulas geradorasque. em um estilo de vida p:trticular, retraduztm as necessidades e as facilidadescaracterlsticas de uma condição e de uma posiçáo, determinando, por exemplo, o valore o lugar atribuídos à vida de relações - no rncnorgrau, segundo parece, entre osprofessores, próximos neste aspecto da pequena burguesia; e, no maior grau, entre osmernbrcs das profisJões liberais ou a grande burguesia dos negócios, não isolada pelasestatísticas - como oportunidade de acumular capital social. No en~anto, seriaimpossrvel caracterizar completamente a forma especifica assumida, neste domínio .•.particular, pelos prindplos fundamentais de cada estilo de vida sem dispor de descrições'sutis da qualidade dos obJe~os considerados - tais como tecido '(por exemplo, os Inglesesassociam os rweeds ao "country gencleman"), cor, corte _ permitindo apreender astaxinomias utilizadas eas Imenções expressivas que, consciente ou Inconscientemente, ;<são procuradas ("jovt!m" ali "clássico", "esporte" ou "traje a rigor", etc.). No entanto,tudo permite supor que o vestuário ou o penteado assumem um modo cada vez maislavem à medida que se verifica um afastamento do pólo dominante, tornando-se cadavez mais sério (ou seja, sombrio, allstero. clássico) à medida que há uma aproximaçãodesse pélo." quanto mais Jovem, do ponto de vista soclal- ou seja, mais próximo, noespaço das frações, do pólo dominado e/ou dos novos setores do espaço profissional(novas profissões) - tanto maior será a afinidade de alguém com todas as novas formasde vestuário (roupas unlsexo da moda chamada junior. jean, sweat. shirt, erc.) que sedefinem por uma recusa das obrigações e convenções associadas ac-vesrcãrto segundoos quais um indivíduo está vestido a rigor.

bela 20 - Variações do valor atribuído ao corpo. à beleza e aos cuidados com c:corpo (F. C" XLIV)

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60.8

11,918,8

M cuIdado. qu-t .e--Itm Co-in-iUibc1euaumentam li oPOrtunldadu de .uceuo

75,0 6U.R

no plano da beleza, elas preterlrtarn ser:· n.tural&, requlnudu

69,612.0

pensam que dlulmular .ualdade pehn é normal

- ----..para perner peJO, I~ ....,um f'<!llm. allm.ntar 23,9 19,8 28,8 ; J.l 2l,9 23,1,taport e, s'nbtlca ·1,3 8,3 I~.O i s.s 10.(, 11.8· um tratamento com mwlc.amtnto. 2,2 4,6 3,6 3.0 l.r. 3,6

c _. ,nada 69,6 71.7 60,6 (,6,1 6&.3 66,~a?f'OYlJl1orectJrtOldru'1laplútlapanrejuv.n"",r 50,0 50,0 ;6,~ s~,~tomam, nom1nImõ; um bQí\hõouumadUd\ípordk 9.8 16.9 "3'6.6 ~3,2 2),2 h,omaqullm.,.tõdoa oa di.. 12,0 29,6 <5,0 -~7 30,1 H.8nu nu, O'J ranmentt, te maqulam 48,9 35,6 21.2 1/,3 ?,S.~p•••• m maio de mela·hora na higiene pe•• cal 12,3 ~5,6 ~8.9 ; 1.3 11,1 48,2ou noa culdadot de bel.amaqulam.at para atu m~ral ~.3 15,9 "'IT:9- i7,8 21,0 22.1vlo ao •• ,10 de cabdelrelro. pelo menos. 6,5 8.1 16,9 - Io.r-w-'1T.5uma ve l, de 15 em 15 di••

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o interesse que as diferentes classes atribuem à apresentação de si, a atenção que lh'; , " nhecendo, com maior freqüência, o ideal dominante el1' rnaréna de e':c~lência ctJVOral

,prestam e a consci~ncia qUI! t~m dos ganhos que el~ traz, assim como os investimentos d:~ ,façam Investimentos, tão impo~antes - em tem~o, s~bretudo, ', em prJ\'aç~es - à n:c!bor1?:tempo, esforços, privações, CUidados que elas lhe dedicam, realmente, são proporcionais !s~, •.;de sua aparência flslca e manifestem uma adesão tao incondicir» 'ai a rodas as fo,rms deoportunidades de lucr,os mat~riais ou i,;mbólicos que, de uma forma razoável, podem esperar~ ,: VolunWismo cosmético (tal como o recurso à cirurgia piá stica) , Por sua vez, as mulhens d~como retorno; e, mais 'prec!séJ11entc, eles c'ependern, por um lado, da existência de um'i' ,,'classedominante obtêm do co~_~m" dupla certeza: ao acreditarem, a exerr;plo das p~on.ercado de trabalho eIt. que as propriedades cosméticas possam receber valer (em gra , 'burguesas, no valor da beleza e novalor do esforço para se embclcza rem, alem de as so()llfem,variável , segundo a natureza do oficio) no próprio exercido da profissão ou nas rela ões: ~'~slm, o valor estético com o valor moral, elas sentem-se supi riores tanto pela kIezap-oflssicnais e, por outro, das oportunidades diferenciais de acesso a este mercado, e\o:'" , ' ",__;:'tntrlnseca, natural, do próprio corpo, quanto pela arte de embeiezá-lo e por tudo 0J ~uesetores deste mercado, em q~e a valorização profissional recebe sua maior contribuição da'~ , ,,'~{designam por conduta digna, virt~de, i~sc,paravelme'lte moral e estética, que cotatltUIbeleza e de u:na conduta digna, É possível verificar uma primeira confirmação dcstaJ. "'~~",negativamente a "natureza" como dJsp!JcenCla,A beleza pode ser, assrrn, um dom da :1amrezacorrespondência entre a propensão para os investimentos cosméticos e as oportunidades d ' ' ao m'esmo tempo, uma conquista do mérito, urna graça da natureza, por ISSO I11!:Smo,lucro na diferença que, em relação a todos os cuidados corporais, estabelece uma separaçã6 ,'clficada, e uma aquisição da virtude, dup~:mentr. [ustificada, que se opõe tanjo ao d~lxoentre as mulheres que exercem e as que não exercem um oficio (e que deve ainda variar' 'êàs facllidac1es da vulgaridade quanto à feiúra.segundo a natureza do trabalho e do meio profissional). Segundo esta lógica, compreende.' ' ~:f.~v' Assim, a experiência por excelência do "corpo aliena~()'~, o, con5l'rangime~1f1>.e ase que as mulheres das classes populares _ que têm menos oportunidades de acesso a uma; :t"', experiência oposta, a naturalidade, propõem -se, em toda a evidência, com probabi rJlildesprofissão e, ainda menos, àquelas profissões' que exigem a mais estrita conformidade às; , 'desiguais aos membros da pequena burguesia e da burguesia que, atribuir.do o ~~onormas dominantes em matéria de cosmética corporal _ estejam menos conscientes, em' "J~onhecimento à mesma representação da conformaçJo c da, ó ciclld:! le~[timas, ~taorelação a todas as outras classes, do valor "mercantil" da beleza e, por conseguinte, sejam' ~,~,equipados, de forma desigual, para realizá-lo: assim, as oportunidades de viver o ,f'I0Çl riomuito menos impelidas a investir tempo, esforços, privações e dinheiro na estética do corpo.j -', rpo sob o modo da graça e do milagre continuado são ta~to maiores q~anto marer for aNão é o que se passa com as mulheres da pequena burguesia e, sobretudo, da nova pequena ' ..,~pac1dade corporal em relação ao grau do reconh~Llmento; ou, Inversam~~e, abu~guesi~ das profissões de apresentação e de representação que, muitas vezes, impõem um , ,:,,:'probabilidade de experimentar o c~rpo no mal-estar, n~ constrangimento e na tirnidez,tra!e destinado, entre outras funções, a abolir todos os traços de um gosto heterodoxo e que ~ será tanto mais elevada quanto maior for a desproporçao entre o corpo Ideal e, o corpoexigem sempre o que se ?esi:~a pO,rcomportamento decente no sentido de "conduta digna !~,feal, entre o corpo sonhado e o jo~kjJJ~-~;iJ',; .;clr - corno :c d;~, à, vezes " resn tuído pelase de correção das maneiras Implicando, segundo o dicionário Robert, "uma recusa em'~reações dos outros (as mesmas leis sao válidas em relação à linguagem),ceder à vulgaridade e à facilidade" (as escolas especíallzadas na formação das recepcíonistassubmetem as moça; das classes populares, seleclonadas em função de sua beleza "natura!·;~a uma transformação radical em sua maneira de andar, sentar, rir, sorrir, falar, vestir, maqular, 'etc) ,As mulheres da pequena burguesía interessadas pelos mercados em que as propriedades';corporais podem funcionar como capital para atribuir um reconhecimento incondicional 1':representação dominante do corpo, mas não dispõem, pelo menos, a seus próprios olhos ~e, sem dúvida, objetivamente - de um capital corporal suficiente para obter os mais elevados', ,ganhos, ocupam, alnda neste aspecto, o lugar de maior tensão, Com efeito, a garantia que d!fa certeza de seu próprio valor e, em particular, do valor de seu próprio corpo ou de sua~l"própria linguagem, é intimamente associada à posição ocupada no espaço social (e, é claro, ,-à trajetória): assim, a parcela das mulheres que se julgam abaixo da média para a beleza, ou}que pensam ter uma aparência de mais idosas do que sua idade, decresce muito fortemente ..,quando se sobe na hierarquia social; do mesmo modo, as mulheres tendem a atribuir-senotas tanto mais elevadas para ar, diferentes partes do corpo quanto mais elevada for a)posição ocupada no espaço social, apesar de não subsistirem dúvidas em relação ao ~"concomitante aumento das exigências, Compreende-se que as mulheres da pequena burguesia ':que, em relação ac seu corpo, estão praticamente tão pouco satisfeitas quanto as mulheres ~~das classes populares (inclusive, são as mais numerosas a manifestar o desejo de mudar de japarência e ~ afirmar seu descontentamento em relação a diversas partes do corpo) e, aomesmo tempo, têrr muito mais consciência do que elas em relação à utilidade da beleza, -:

194

I,

o simples fato de que as propriedades corporais mais procuradas - magreza, beleza,, etc, _ não estejam distribuldas, por acaso, entre as classes (por exemplo, a parcela das mulheresque têm uma altura nonnalizada superior à altura modal cresce bastante fonementcquandose desce na hierarquia social) seria suficiente para excluir que se possa tratar como alienaçãogenérica, constitutiva do "corpo para o outro", a relação que os agentes mantêm com arepresentação social de seu corpo, ou seja, o "corpo alienado" evocado pela análise de~ncia,corpo genérico, como a "alienação" que advém a qualquer corpo ao ser percebido e nomeado,portanto, obJedvado pelo olhar e pelo discurso dos outros (cf.],·?' Sartre, J.:P.cre er lenéanc,Paris, Gallimard. 1943, P: 404-427), O "corpo para o outro" dos fenvrnenólogos é, duplamente,um produto SAal: de deve suas propriedades distintivas a suas conoições sociais de produção;e o olhar social não é um poder universal e abstrato de objetivação, como o olhar sartriano.mas um poder social quI' fica sempre devendo lima parte de sua eficácia ao fato de queencontra, naquele a quem se aplica, o reconhedmento das r.atego,'ias de percepç..io e deapreciação que lhe aplica.

Apesar de não ser seu rnonopól'o, o~ pequeno-burgueses distinguem-se, na suaexperiência do mundo social, antes de mais nada, pela timidez, ou seja, constrangimento de,quem não se sente bem em seu corpo e em sua linguagem: em vez de formar um rodo com:,essesaspectos, ele observa-os, de algum modo, do exterior, com os olhos dos outros, vigiando-

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'~1. ~se, corrigindo-se, retratando-se; e, através de suas tentativas desesperadas para vOltar., :apropriar-se de um ser-para-o-outro alienado, oferece precisamente a ocasião à apropria<;ãó,"traindo-se tanto por sua hipercorreçáo quanto por sua falta de jeito. Assim, a timidez:manifestada, a contragosto, pelo corpo objetivado e que se deixa confinar no destino prope'sto'pela percepção e pela enunciação coletivas - que se pense nos apelidos e alcunhas _ ~ ,ursiçcede por um corpo submetido à representação dos outros, inclusive, em suas reaçõeS!passivas e inconscientes (a sensação de enrubeseer). Ao contrário, a naturalidade, essa espl~de:de indiferença acrlhar objetivante dos outros que neutraliza seus poderes, supõe a segunlilçà~fornecida pela certeza de ser capaz de objetivar essa objetivação, apropriar-se dessa'apropriação, de es:ar em condições de impor as normas da percepção de seu corpo, emresumo, de dispor de todos os poderes que - apesar de estarem sediados no corpo e de lhepedirem de empréstimo, aparentemente, suas armas específicas, tais com? a pOStur4'imponente ou o encanto - lhe são essencialmente lrredutlveis. É assim que se devecompreender o resultado da experiência de Oanncnmaicr e Thumin na qual os indivfduos,convidados a avaliar, de memória, d altura de pessoas conhecidas, tendiam a superestimá-Iana mesma proporção em que era mais irnpo rtan te-li autoridade ou o prestfgio dessas pessoaspara os entrevistados." Tudo leva a pensar que a lógica que impelc a perceber os "grandes';como se fossem ainda maiores aplica-se de maneira bastante geral e que a autoridade, seja'de que ordem for, contém um poder de sedução que, só por ingenuidade, pode ser reduzidoao efeito de um servilismo lnteresseíro, Eis porque a contestação polftica tem recorrido í

sempre à caricatura, deformação c.a imagem corporal destinada a quebrer o encanto e",-,,,,,,,,,,,,ridicularizar urn dos princípios de efeito de imposição da autoridade. ~~,.*",

O encanro e o carisma designam, de fato, o poder de alguns r~r~impor, como H;;ôla:::;:::r ': ..repre-entação objetiva e coletiva de seus próprios corpos e existências, a representação;'-i:i(.que têm de si mesmos, assim como para levar o outro, a exemplo do que se passa com oiamor ou com a crença, a abdicar de seu poder genérico de objetívação a fim de delegá-lo;àquele que seria seu objeto e que, assim, encontra-se constiruído como objeto absoluto.]sem exterior - já que ele é outro para si mesmo -, plenamente justificado em sua existência; j:legitimado. O chefe carisrnátlco consegue ser para o grupo o que ele é para si mesmo, em;vez de ser para si próprio, à maneira nos dominados da luta simbólica, o que ele é para olloutro; ele "faz", como se diz, a opinião que o fabrica; ele constitui-se como inconromâvel/,sem exterior, absoluto, por uma simbólica do poder que é constltutiva de seu poder já que.!"ela permite-lhe produzir e impor sua própria objetivação. ,l

tio,

~b/tus se especificam, p:l.ra cada um dos grandes domínios da prática, realizando uma ouurra das posslveis esútletices oferecidas por cada campo: o do esporte e o da música. o da

'Ílimentação e o da decoração, o da polftica e o da linguagem, e assim por diante. Ao;obrcpor esses espaços hornólogos. obter-se-ia uma representação rigorosa do espaço dos

1'~tilos de vida permitindo caracterizar cada um dos traços distintivos - O uso do boné ou~ prática do plano - sob asduas relações em que ele se define objeti'lamente, ou seja: porim lado, em relação ao conjunto dos traços constitutivos do domínio considerado - por

hemplo, o sistema dos penteados -, sistema das possibilidades no interior do qual ele~sume seu valor distintivo; e, por outro, em relação ao conjunto dos traços constitutivos~e um estilo de vida particular - o estilo de vida popular - no interior do qual se determina" ua.significação social. Assim, por exemplo, para cada novo recém-chegado, o universo

fi\lpráticas e dos espetáculos esportivos apresenta-se como um conjunto de escolhas.~;'~vlamente determinadas e de possibilidade5 objetivamente instituídas - tradições, regras,

'!:~~:'Valores, equlpamer.tos, técnicas, sfmbolos - que recebem sua significação social do sistema~){ constituído por elas e que ficam devendo, em cada momento, uma parcela de suas

~propriedades à hIstória ..IF

Os universos de possíveis estillsticas:i.

É impossível compreender a ambigüidade social de um esporte, tal como orúgbi que, ainda praticado nas "escolas da elite", pelo menos, na Inglaterra, .ornou-se, nu França, o apanágio das classes populares e médias das regiões ao Sul do rioLolre _ conservando, ao mesmo tempo, alguns baluartes "universitários", tais comoI) Racing ou ° SBUC -, se não se tiver em mente a história do processo que, nas"escolas da elite" da Inglaterra do século XIX, conduz à rransmutação dos jogospopulares em esportes de elite, associados a uma ruorai e a uma visão do mundoaristocráticas _ {airpiar, wil! to win, ete. -, mediante "ma mudança radical de sentidoe de função totalmente análoga à que afeta, por "0 \ lado, as danças popuiares aoassumirem as formas complexas da música erudita e, I c r outro, a história, sem dúvida,ainda p0!Jco conhecida, do processo de divulgação, ap'lrcntado em vários aspectos àdifusão da música clássica ou tot): pelo disco de "inil'1 IC, crn um segundo momento,

. ~)I~transforma o esporte de elite em esporte de mAS ;.i uão só como espetáculo, mas

!'.. também como prática,ti .

~." ..As propriedades distribucionais que advêrn às diferentes práticas ao serem.,preendidas por agentes detentores de um conhecimento prático de sua distribuição entregentes que, por sua vez, estão distribufdos por classes hierarquizadas ou, se preferirmos,a.probabilldade para as diferentes classes de praticá-Ias, devem muito, com efeito, ao

·"~ss:l.dode tais distribuições em razão dos efeitos de histerese: a imagem "aristocrática".t~e~portes, tais como o tênis ou a equitação, sem falai do golfe, pode sobreviver àt'tarisformação _ relativa - das condições materiais do acesso, enquanto a pétanque, por~u'as origens e seus vínculos populares e meridionais - duj l i maldição - é subsidiária des= signIficação distribucional bastante próxima daquela »tribulda ao aperitivo Rlcsrd1l!- a 'Outras bebidas fortes, assim como a to íos os alimentos não só baratos, mas tambéml\o.:te:;e, segundo se presume, fornecedores de energia por serem pesados, gordurosos eplrnentados,

19610.,

Assim, os espaços das preferências relativas à alimentação, ao vestuário e à cosméticaorganizem-se segundo a mesma estrutura fundamental, ou seja, a do espaço social,determinado pelo volume e pela estrutura do capital. Para construir completamente o:espaço dos estilo" de vida no interior dos quais se definem os consumos culturais, conviria'~estabelecer, para cada classe e fração de classe, ou seja, para cada uma das configurações :.do capital, a fórmula geradora do bsbitus que, em um estilo de vida particular, retraduz asnecessidades e as facilidades características dessa classe de condições de existência.;'(relativamente) homogêneas e, feito isso, determinar a maneira como as disposições do,

Plcrre Bourdlc\l

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·f\. negligência. Correndo o risco de parecer adaptar-se aos "efeitos fáceis" estigmatizados'., pelo ·,0«0 puro", mia po ss ',,1 mostrar que toda ,lioS"""' do ''''d" "cá confinadaI em uma rejeição de princfpio do fácil, entendido em todos os sentidos atribuídos a estat. palavra pela ética e estética burguesas.' que o "gosto puro". puramente negativo em sua.

Elt.. t íf " I " ..~~. essência, tem por prlncfpio a aversão, freqientemcnte designada como viscere! ("fazernen OS para urna cnuca vu qar ::~~:'~.-~doecer"e"provocav6mitos"l;portudooquec"fácil",comosl~dizdeuma:nú:icaoude, e tt :.'~I'.jt'. um efeito estilístico, assim como de uma mulher ou de seus costumes. A rejeiçao do quedas críticas puras";.~.~.~.;éfádl no sentido de simples, portanto, sem Fr~fundidade, e "b; ~ato", já que sua deci~r~ç~o

·.i{-:~ é cômoda c pouco "dispendiosa" do ponto de vista cultural, con..uz naturalmente à rejeiçao. -·1" ., ..:~. 7 do que é fácil no sentido ético e estético, de tudo o que oferece prazeres imediat~mencc

.. ~;.. ,.t· . aeesslveisei por conseguinte, desacreditados como "infantis ' ou "primitivos" (por oposiçãoAlguém, talvez, já tenha questionado o motivo pelo qual, em um texto dedicado ao ~~: :., aos prazeres adiados da arte legítima). Fala-se assim, de "efeitos fáceis" pa,ra caracterizar,

gosto e à arte, nunca tenha sido feito apelo à tradição da estética filos6fi~a ou literária. E, '1;t .:,. por exemplo, a elegância um. ta~to espalhafat~sa de c~rt~ ~slilo jorralls:,i~o ~u ~ encantocertamente, terá chegado à conclusão de que se trata de uma recusa deliberada, :';i/' ..:~.. um pouco demasiadamente insistente e previsível da rnusica chamada ligeira (palavra

Não há dúvida, com efeito, de que aestétlcaerudlta - não s6 a que está envolvida ."':'~ ~ cujas conotações abrangem, praticamente, as de "fácil") ou de certas execuções da músicae~n estado .p~:í.tico nas obras legítimas, mas t~b~r.n a que se exprime nos escritos que /,,' ~ clássica, de modo que determinado crítico possa denllnci~r, por ~xel~plo, a "sensualidadevisam explicitá-la e colocá-Ia em forma - consntur-se fundamentalmente, para aléru das, ~ vulgar" ou "o orlentalismo de bazar" que transforma a interpretaçao da dança dos setevariantes, contra tudo o que pôde ser adquirido por esta pes qulsa, ou seja, a indivisibilldade ":," . '. --;ê~s da Salomé de Richard Strauss em •.uma música de café-concerto". De acordo com asdo gosto, a unidade dos gostos mais "puros" e mais depurados, mais sublimes e ~;tii palavras utilizadas para denunciá-Ias, "fácil" ou "ligeiro", é claro, mas também "frívolo",sublimados, além dos gostos mais "impuros" e mais "grosseiros", mais comuns e mals "fútil", "espalhafatoso", "superficial", "sedutor" (traduzido, em inglês, pelo termo maisprimitivos. Inversamente, tal postura significa que, antes de mais nada. esta pesquisa di!,-Jnto, meretricious) ou, no registro das satisfações orais, "xaroposo", "adocicado",exigia a renúncia, por urna espécie de amnésia deliberada, a todo o corpus de discur's-ci~ "insosso", "enjoativo", as obras "vulgares" não são somente uma espécie de insulto aocultos sobre a cultura e, por consegulnte, não s6 aos lucros que proporciona a exibição dos requinte dos requintados, uma maneira de ofensa ao público "difícil" que não entendesinais de reconhecimento (e que se fazem lembrar, pelo menos, através dos custos que lhe ofereçam coisas "fáceis" (a respeito dos artistas e, em particular, dos chefes deimplicados unicamente pela omissão), mas também aos lucros mais íntimos do deleite orquestra, costuma-se dizer qUE'eles se respeitam e respeitam seu público); tais obrasletrado, aqueles invocados por Proust ao indicar o que lhe custou a visão lúcida dos prazeres :~. suscitam o mal-estar e a aversão ao adotarem métodos de sed ução, habitualmente.da leitura: "Foi com minhas mais caras impressões estéticas que desejei lutar aqui, .$ denunciados como "baixos", "degradantes", "aviltantes", que incutem no espectador oprocurando levar a sinceridade intelectual até seus/últimos e mais cruéis llrnltes".' (Sem a i:hj sentimento de ser tratado como qualquer um, que se pode seduzir com atrativos depossibilidade de dissimular a si mesmo que os prazeres da "visão lúcida" podem representar: ., pacotílha, convidando-o a [egredirpara as formas mais primitivas e elementares do prazer,a forma mais "pura" e mais requintada, alnda que, muitas vezes, monótona, do delelte)~'~, quer se trate das satisfações passivas do gosto infantil pelos líquidos doces e adoçados

E se convém autorizar o retorno do recalrado, uma vez produzida a verdade do:"tl. (evocados pelo termo "xaroposo") eu das gratificações quase animalescas do desejo sexual.'gosto contra a qual se construiu, por um imenso recalcamento, toda a estética legítima •. "1·'..··\ .. Seria possível evocar o preconceito platônico iIlCanSavelme.~te ~:.a.firmado, em favor dosnão é somente para submeter as verdacies adquiridas a um derradeiro teste (quenão,;,a , . sentidos "nobres", a visão e a audição, ou o privilégio atribuído por Kant à forma, maiscorresponde, de modo algum, a um enfrentamento contra as teorias rivais), mas também \ i,I.\ .. purã;' em detrlme.ito da cor e de sua sedução quase carnal. Mas ·noscontentarcmos come, sobretudo, para evitar que, por-um efeito bastante comum de desdobramento, a ausên~~ ;~' um texto realmente exemplar em que, ao estabelecer entre "belo" e "lindo'vuma oposiçãode confronto direto permita a coexistência pacifica de dois discursos, em dois universos .~ perfeitamente idêntica àquela proposta por Kant, em Critique du jugetnent, entre "prazer"de pens~mento e discurso cuidadosamente separados. ~j: .; e "frulção", "belo" e "agradável", "o que agrada" e "o que d~ prazer", Ss_hºp.enhauer, por

um lado, define o "lindo" como "o que estimula a vontade, oferecendo-lhe diretamente °que a lisonjeia", corno o que "faz o coatcmplsdot perdera estado de intuição pura, necessáriaà intuição do belo", o que" seduz infalivelmente a vontade pela visão dos objetos que alisonjeiam imediatamente" e, por outro, coisa significativa, reúne na mesma condenaçãoas duas formas de satisfação, oral e sexual, contra as quais entende constituir a satisfaçãoreconhecida como proprlamenre estética: "A forma inferior do 'lindo' encontra-se, diz ele,nos quadros de interior dos pintores holandeses quando eles têm a extravagância de P.0S

Postscripturn .;

A aversão pelo fácil

A Dlltln~i1o

o gosto "puro" e a estécica que lhe serve de teoria encontram sua origem na i'ejeiç~.odo gosto "impuro" e da «istbesis, forma simples e primitiva do praur sensível reduzido a -i~~\:um prazer dos sentidos, à semelhan~a do .que Kant designa por "gosto da língua, do palato .,,~~;;.e da boca", abandono à sensacão Imediata que, em outra ordem, assume a figura da 'rl~f

~~,4~9448 Plerrc Bouràlel

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r· representar comestíveis, verdadeiros trompe-l'oll que não podem deixar de nos excitar o ~,apetite; a vontade encontra-se, por isso mesmo, estimulada e, deste modo, põe um fim a·····••'toda contemplação estética do objeto. Que se pinte frutas é suportável, desde que a fruta ~~~apareça como a conse~êncll da flor, como um produto da natureza, belo por sua cor, belo'JL~~por sua forma, e que não sejamos de modo algum forçados a sonhar efetivamente Comsuas propriedades comestíveis; mas, infelizmente, leva-se muitas vezes a busca dasemelhança e da ilusão até representar Iguarias servidas e arranjadas, tais como ostras,arenques, lagostas, tor~a~as com manteiga, cerveja, vinhos e assim por diante: isso é'absolutamente inadrnlssível. Na pintura histórica e na escultura, o lindo se traduz pelosnus cLÍJaatitude e desnudamento, acrescidos à maneira geral pela qual são representados,tendem li excitar a IubrIcldade dos espectadores: a contemplação estética cessaimediatamente: o trabalho do autor foi contrário à finalidade da arte".' .•

Como afirma muitíssimo bem Schopenhauer, neste aspecto, muito próximo de Kant' . ,,'e de todas as estéticas em que SI! exprime, sob uma forma raclonallzada, o ethos da fraçãodominada da classe dominante, o lindo que reduz "o puro sujeito cognoscente", "liberadoda subjetividade e de seus desejos impuros", a u'm"sujelto voluntário, submetido a todasas necesslcades e servidões", exerce uma verdadeira violência sobre o espectador: indecer.te,exibidonlsta, ele se introduz e se impõe, arrastando O corpo por seu ritmo, que está emafinidade com os ritmos corporais, cativando o espírito pela aparência enganosa de suasintrigas, suspenses e surpresas, impondo-lhe uma participação real completamente opostaao "dístanciarnento" e ao "desiri"teresse" do gosto puro.' ....

Nada opõe mais radicalmente os espetáculos populares - desde o Guignol até apartida de futebol, passando pelo cstch ou circo, ou, até mesmo, o cinema de bairro deoutrora - aos espetáculos burgueses que a forma da participação do público: emdeterminado caso, constante, manifesta (berres, assovios), às vezes, di~eta (o indi~lduoinvade o terreno de Jogo), ela é, em outros casos, desconrínua, distante, altamentericualizada, com aplausos, inclusive, gritos de entusiasmo obrigatórios, no final ou, atémesmo, perfeiramenre silenciosa (por ocasiãó dos concertos nas Igrejas). O jazz embaralha~ssa oposição apenas em aparência: espetáculo burguês que Imita o espetáculo popular; ~.ele reduz os sinais de participação (estalido dos dedos ou marcação de ritmo com os pés)ao esboço silencioso do gesto (pelo menos, no free jazz).

O "gosto pela reflexão" e o "gosto pelos sentidos"O gosto puro rejeita exatamente a violência a que se submete o espectador popular

(pensa-se na descrição que Adorno faz das músicas populares e de seus efeitos); elereivindica o respeito, o distanciarnento que permite manter à distância. Sua expectativa éa de que :1 obra de arte, finalIdade sem outro fim além de si mesma, ~:ate o espectador ~.m._conformldede com o imperativo kantiano, 011 seja, como um fim e não como um ~~i.c?~Assim, o principio do gosto puro nada é além de uma rejeição' ou, melhor ainda, de limaRversão;aversão-pelos objetos que: impõem à fruição, assim como aversão pelo gostogrosseiro e vuigar que se compraz com essa fruição imposta. HA única espécie de feiúraque, representada segundo a narureza, elimina qualquer satisfação estética e, por

450 Plcrrc Bourdlcu

conseguinte, a beleza a.tística, é a que provoca aversão, De fato, como nessa sensação singularque se baseia apenas na imaginação, o objeto é representado, de algum modo, como se ele seimpusesse à frulção quando, afinal, oferecemos-lhe uma forte resistência, a representaçãoartística Já não se distingue, na nossa sensação, da natureza desse objeto, de modo que elanão pode ser considerada bela".' A aversão é a experiência paradoxal da Iruiçâo extorquidapela violência.ou seja, da früição que provoca horror. Este horr cr, ignorado por aqueles que

- se abandonam à sensação, resulta, fundamentalmente, da aborição da distância, em que seafirma a liberdade, entre a representação e a coisa representada, em suma, da alienaçáo, daperda do sujeito no objeto, da submissão imediata ao presente .mediato, determinada pelaviolência subjugadora do "agradável". Assim, por oposição à inclinação suscitada pelo"agradável" que, comum aos animais e aos homens, diferentemente da beleza (p. 47), éprõpfcíõ" a seduzir "aqueles que se preocupam apenas com a fruiçãc" (p. 44,,46, 97) e "convémimediatamente aos sentidos" - enquanto "desagrada mediaramenre" à r~zão (p. AS) -,9 o"gosto puro" (p, 64, 66), "gosto pela reflexão" ([1. 51) que se opõe ao "gosto dos sentidos",assim como "os atrativos" à "forma" (p. 59, 60), deve excluir ú interesse e não "dar nenhumaimportância à exlstêncíada coisa" (p. 43).10

O objeto que "se impõe à fruição", tanto pela imagem quanto na realidade, em carnee osso, neutraliza a resistência ética, assim como a neutralizaçâo estética: em suma, eleelimina o poder de distância da representação, a liberdade propriamente humana de colocarem 'süspense a adesão imediata, animalesca, 30 sensível e de rejeitar a submissão ao puroãteto, à 'simples aisthesis. Duplo desafio à liberdade, à humanidade, à cultura, enquantoantinatureza, a aversão é, portanto, a experiência ambivaJenre da horrível sedução dorepugnante e da fruição, que opera urna cspér.ic ~c ::d~ç3c ~~:'"c:5~d ~ animalidadc. 3.corporeldade, ao ventre e ao sexo, ou seja, ao que é .:omum, portanto, vulgar, abolindo todadiferença entre aqueles que resistem com todas as suas forca S e aqueles que se co.nprazernno prazer, que usufruem da fruição: "Sob o termo 'comum' .. não só no nosso idioma que.ne'ste' aspecto, oferece u~a verdadeira ambigüidade, mas t.rrnbérn em outros idiomas -,entendemos o que é vulgar (das Vulgare), o que se encontra por toda pane; além disso,possuí-lo não é um mérito, nem um privilégio" (p. 121-122). A natureza entendida como

'.. sensioilidade toma igual, mas pelo nível mais baixo ((:5:;10 i j1. o "nivelamcnto' detestadopelos heideggerianos). Aristóteles havia ensinado que as .x.isas diferentes sedíferendamnaquele aspecto era que elas se assemelham, ou seja, em um caractere comum: com horror,a aversão descobre a animalidade comum sobre r contra a qual se constrói a distinção moral.

:'Conslderamos grosseiro e sem nobreza o modo de pensamento daqueles que nãotêm o sentimento da natureza bela (...) e se contentam à mesa 0U perto da garrafa, emusufruir das simples sensações dos sentidos" (p. )30). E l.ant enuncia, alhures, da maneira~ais direta possível, o fundamento social da oposição .ntre o "gosto pela reflexão" e o:'gost~ dos sentidos": "Q instinto, enquanto voz de Deus, iIqual obedecem todos os animais,deveria ser, antes de mais nada, c único guia a conduzir nossa nova criatura. Permitir-lhe-ia certas coisas para sua alimentação. proibindo-lhe algumas outras. Mas não é necessárioadmitir um instinto particular, desaparecido atualmente, pua esse uso; o sentido do odorpoderia ser suficiente por seu ra1entesco com o órgão do gosto, assim como a a fiaidadebem conhecida deste último com ° aparelho digestivo; assim, o homem tinha, de algum

A Illstlnção~r;1

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modo. o poder de pressentir a inocuidade ou nocividade dos alimentos para consumo.ainda hoje. é possível ver exemplos disso. E. inclusive. pode-se admitir que esse sentidc.tivesse sido tão apurado no primeiro casal do que na atualidade. Com efeito, trata-se deum fato b,m conhecido que existe un,a diterençe considerável na força das percepções.entre os homens preocupados apenas com seus sentidos ~ squcles que, ncupados tambémcom !CIlS penssmentos, conseguem por isso mesmo desviar-se de suas sensações" (E.Kant, "Conjectures", op. cit.. p. 113). Reconhece-se, aqui, o mecanismo ideológico queconsiste em descrever, como momentos de uma evolução (neste caso. o progresso danatureza em direção A cultura). os termos da oposição estabeiecida entre as classes sociais.

Assim, em bora continue a recusar 10 gosto tudo o que poderia assemelhar-se auma gênese empírica, psicológica e, sobretudo, social (ver, por exemplo, p. 37, 96), servindo-se sempre do corte mágico entre o transcendental e o ernpírico," a teoria do gosto puroencontra seu fundamento, como é tester.unhado pela oposição estabelecida por ela entreo agradável (que "não torna culto" e limita-se a ser.urna frulção, cf. p. 97) e a cultura'! ou,ainda, as alusões à aprendizagem e à educabllldade do gosro.'! na empiria de uma relaçãosodal: a antítese entre a cultura e o prazer corporal (ou, se quisermos, a natureza) enraíza.se na oposição entre a burguesia culta!' e o povo, lugar' fantasmátIco da natureza inculta,da barbãrie entregue à pura frulção: "Ao misturar os atrativos e as emoções à satisfação, ogosto é sernpre bárbaro: ainda mais, se faz disso a medida de seu assentimento" (p, 59).

Se avançarmos aré as últimas conseqüências de uma estética que, segundo a lógicade Essai sur les grandeurs négstives, deve ~v~lI~r ~ virtvde pela p.ml'!itu~e dos víclcssuperados e o gosto puro pela intensidade da pulsão C:enegadae da vulgaridade vencida,devemos reconhecer a arte mais realizada nas obras que levam, ao mais elevado grau detensão, a antítese da barbárie civiliza.:la,do impulso reprimido, da grosseria sublimada:esse é o caso, atualmente, de Mahler que impeliu, mais longe que qualquer outro, o Jogoperigoso com a condescendência e com tocas as formas de recuperação erudita das "artes

Ipopulares" ou, até mesmo, do estilo empolado; ou, em outras épocas, Beethoven, cujagrandeza reco.ihecída se avalia pela grandeza negativa das violências, exorbitânclas eexcessos, multas vezes celebrados 'pela bagíografia, que tiveram de ser superados pela <~

ascese artística, espécie-de trabalho do luto. Enquanto condição da experiência do prazer"puro", a Inibição do prazer imediatamente acessível pode tomar-se, por sua vez, fonte deprazer; ;ssÚn,.o requint» leva a cultivar, por si mesmo, o "prazer "reliminar", menclonad;-por Freud, a adiar cada vez mals a resolução da tensão, a aumentar, por exemplo, a distância••ntre o acorde dissonante e sua resolução completa ou conforme as normas. De modo que

í a forma mais=pura" do prazer do esteta, a aisrhesisdepurada, sublimada, denegada, poderia-; assim consís.ír, paradoxalmente, em uma ascese, sskesls, uma tensão provocada ei alimentada, isto é, exatamente o contrário da 'aischesis primária e prirriitiva.

Prazer ascético, prazer fútíl que traz em seu bojo a renúncia ao prazer, prazer depuradodo prazer, o prazer pu:o está predisposto a tornar-se um símbolo de excelência moral,enquanto a obra de arte torna-se um teste de superioridade ética, uma medida indiscutívelda capacidade de sublimação que define o homem verdadeiramente humano: I 5 o desafio do

45ç Picrrr Bourdlcu

~. discurso estético, assim como da imposição de uma dctiniçúo do (-mpriamence humano queele visa realizar, nada é, afinal de contas, além do monopólio .:/ahumanidade. I! Compete àarte exatamente certificar a diferença entre homer.s e não-homens: imitação livre da criação-natural, da natura neturens - P. não da natura naturara - pela qual o artista (e, por seuintermédio, o espectador) afirma sua transcendência em relação à natureza naturada aoproduzir "outra natúreza'":(p, 140), submetida unicamente n:; lei; de construção do gêniocriador (p. 136). a experiência artística é ° que mais se aprc» .rna da experiência divina dointuitus originarius, percepção criadora que, sem reconhecer outra, regras ou obrigaçõesalém das próprias (p. 133), engendra livremente seu próprio objeto. O mundo produzidope'la"criação" artística não é somente "outra natureza", mas uma "contra-natureza", ummundo produzido à maneira da natureza, mas contra as leis comuns da natureza - as daj\. gravidade na dança, as do desejo e do prazer napintura ou escultura, etc; - por um ato de

.. ' sublimação artística que está predisposto a desempenhar uma função de legitimação social:a negação da frulção inferior, grosseira, vulgar, mercenária, venal, servil, em suma, natural,contém a afirmação da sublimidade daqueles qüe sabem se satisfazer com prazeressublimados, requintados,.distintos, desinteressados, gratuitos, livres. A oposição entre osgostos naturais e os gostos opcionais introduz urr,a relação qt: e 6 a de corpo com a alma,entre aqueles que são apenas natureza e aqueles que, em sua capacidade para dominar suaprópria natureza biológica, afirmam sua pretensão legítirna para dominar a natureza social.E compreende-se melhor que, de acordo com a observação de Bakhtine a propósito deRabelals, resta à Imaginação popular derrubar a relação que serve de fundamento à sociodicéia

4 .i ;stéct~:aõ responder ao expediente da sublimação por uma opinião preconcebida de redução.' .- . \ ou, se quisermos, de degradaçJo, como ocorre com a glria, a paródia, o burlesco ou a caricatura,"I~~~.( qu.:~~loca de ponta-cabeça todos os "val~r~s" em que se reco~hp.ce e se afi~ma a s~blimidade

.; ~ dos dominantes, com o recurso à obscenidade ou à escatologia, ela nega sisternaucamente a." diferença, menospreza a distinção e, como as brincadeiras de Carnaval, reduz 0S prazeres;~ ~T distintivos da alma às satisfações comuns do ventre e do sexo.".\_...:.1'- 't.'

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Uma relação social deneqadaA teoria da beleza como criação absoluta do eititex deus que permite a qualquer

homem (digno desse nome) imitar o ato divino da criação, r., sem dúvida, a expressão "natural"da Ideologia profissional daqueles que apreciam se atribuir a denominação de "criadores";ísso expllca que, até mesmo, fora de qualquer influênc.a direta, ela tenha continuado a serreinventada pelos artistas, desde Leonardo Da Vinci - que havia' transformado o artista no~senhor de todas as coisas" - até Paul Klee com sua pretensão de criar à maneira da natureza. I.

E- sem falar da relação evidente que ela mantérr, com a antítese entre as duas formas deprazer estético e, por 5CU intermédio, com a oposição entre a "elite" da cultura e as massasbárbaras, a oposição estabelecída por Kant entre a "arte livre", "que agrada por si mesma" ecujo prodÚt~é liberdade - já que agrada por si mesma, sem inibir, elemodo algum, o espectador_,I' e a "arte mercenária", atividade suhmissa e servil que, "atraente unicamente por seuefeltó"(o salário), pode ser imposta pela força" (p. 131) e rujo produto, ao se impor :\0

espectador com toda a violência subjugante de seu atrativo sensível, exprime muitodiretamente a representação que Kant tem a respeito da posição - na divisão do trabalho e,

A Disllnç~o ~q

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mais precisamente, na divisão do trabalho intelectual - desses intelectuais "puros" Ou"autônomos" que Sã~ se dermos crédito ao livro te contlit des facuJcés, os professores daFaculdade de filosofia, e. em seu limite mais depurado. os escritores e artistas." A obraCricique du jugemenc está mer.os afastada do que possa parecer da "Idéia de uma históriauniversal do ponto de vista cosmopolita" na qual se viu. acertadamente. a expressão dosinteresses sublimados da intelligentsi« burguesa: essa burguesia intelectual que. de acordocom a afirmação de Norbert Elias, "retira sua aurc-justlficativa, em primeiro lugar. de suasreaiizaçôes intelectuais, clentlficas ou artísticas"," ocupa uma posição instável, totalmentehomologa à da atual intelligentsie, no espaço social: "elite aos olhos do povo". ela se encontraem uma "condição inferior aos olhos da aristocracia da corte"."

Um grande número de extravagâncias do texto de Kant ficam esclareci das a partir domomento em que se percebe o desdobramento do segundo termo da oposição fundamentalentre o prazer e a fruição. Neste caso. a pureza ética do prazer de cultura encontra-se definidanão só contra a uarbárie da fruição subserviente, mas também contra a fruição heceron6micada Civilização: "No domfnio da arte e da ciência •.somos cultos no grau mais elevado; esomos de tal modo civilizados que nos sentimos esmagados por tudo o que se refere àurbanidade e às conveniências sociais de toda a espécie. No entanto, ainda falta muito paraque sejamos considerados já morslizedos. D~ fato, a idéia da rnoralldade pertence ainda àculturs; ao contrário, a aplicação da idéia que leva apenas a uma aparência de moralidade M

honra I': honorabilidade exterior. constitui. simplesmente a dvilização".21 Kant lança nas trevasdo "empírico", como vimos, HO interesse acrescentado indiretamente ao belo pela inclinaçãosocial" que o processo da Civilização produz, mesmo que essa "inclinação requintada" pornhjl"t(\~ f]\'1" 1I~0 prodigalizam qualquer satisfação de fruição Se encontre o mais próximapossível do puro prazer, A negação da natureza conduz tanto à per-nrsão das "propensõessupérfluas". quanto à moralldade pura do prazer estético: "yma propriedade da razão consisteem poder. com o apoio da imaginação, criar artificialmente desejos. não só sem fundamentos~stabelecidos robre um Instinto natural. mas inclusive em oposlçêo a ele; no inicio, essesdesejos facilitam. aos poucos, a eclosão de um verd~deiro enxame de propensões supérfluas.e o que é pior. contrárias à natureza, sob a denominação de 'sensualidade' ".H Arnblgüidadedo "contra-natureza": a civilização é censurada, enquanto a cultura é aprovada. A diferençaentre o prazer civilizsdo, heteronõmíco e exterior. e o prazer culto q'.'e supõe um "longoesforço de formação interior do pensamento"," é estabelecida por Kant apenas no terrenoda ética. ou seja, dos determlnantes - externos e "patológicos", por um lado. e. por outro.puramente internos - do prazer estético. Essa estética pura é efetivamente a racional.i~ilçãQde um ethos: tão afastado da concupiscência quanto da conspicuous consumption, o puro

/ pra.zer~·ou seja, totalmente depurado de qualquer interesse sensível ou sensual e. ao mesmotempo, perfeitamente llber ido de qualquer interesse social e mundano. opõe-se tanto àfruição requintada e altruísta do cortesão," quanto à fruição bruta e grosseira do povo. Nadano conteúdo dessa estética tiplcamente professoral" poderia opor-se ao fato de que auniversalidade lhe s~ja reconhecida unicamente p~r seus leitores comuns. ou seja •.~~professores de filosofia, ocupados demais em rechaçar o historicismo e o sociologismo parase aperceberem da coincidêncu hlstór'ca e social que. neste caso entre tantos outros. encontra-se na origem de sua ilusão em relação à universalidade.'! E o trabalho de dar forma, necessáriopara permitir a expressão das pulsõcs e dos interesses sociais nos limites das censuras de

454 Plcrrc Bourdleu

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uma forma particular de conveniência social. só pode contribuir para facilitar ta! ilusão. aofazer, assim. que urrodiscurso - que constitui a arte enquanto ccrtificação da distinção éticae estética como diferença social irreconhecida e reconhecida - possa ser lido remo urnaexpressão universal da universalidade da arte e da experiência estética.. Totalmente anistórica, como qualquer pensamento fil isófico digno desse nome -toda philosophia é pere~jíiS'-' perfeitamente etnocêntrica porque não adota outro datumalém da experiência vivida de um homo ecsthcticus que é apenas o sujeito do discursoestético constituído como sujeito universal da experiência artística. a análise IClI:ntianadojulgamento do gosto encontra seu princípio real em um conjunto de princípios tuCOS quesão a uníversalização das disposições associadas a uma conoiç ío particular. No entanto,c..?.n.v~mabster-se de tratar como simples máscara formal tudo o que o discurso em formadeve ao esforço para resolver os problemas suscitados pelas divisõeq teóricas e pelasdistinções conceítuais elaboradas nas outras Críticas e para exprimir o "pensamento deKant" de acordo com os esquemas de pensamento constitutivos do que se designa por"pensamento kantlano"." Sabendo que o próprio princípio da eficácia simbólica do discursofilosófico reside no jogo de duas estruturas de discurso. cuja integraçêo ~ visada pelotrabalho de dar forma. sem que esse esforço seja totalmente bem-sucedido, seria ingênuoreduzir a verdade desse duplo discurso ao discurso subjacente em que se exprime a ideologiakantiana do belo, aliás. reconstituído pela análise ao reatar a trama das anotaçõesernbaralhadas pelas interferências das estruturas. No próprio Kant e em seus leitores, ascacegorias sociais do julgamento estético funcionam apenas sob a forma de CAtegoriasaltamente sublimsdes, tais como as oposições entre beleza e atrativo, prazer e fruição oucultura e civilização - espécie de eufemismos que. fora de qualquer intenção consciente dedissimulação. permitem exprimir e experimentar oposições sociais sob uma forma queesteja em conformidade com as normas de expressão de um campo específico. Q_()Culto.ou seja. a dupla relação social- com a corte (espaço da civílizeçêo oposta à cultura) e com'opovo (espaço da natureza e da sensibilidade) - es:·i. ao m.-srno tempo. presente. e ausente.Ele apresenta-se. no texto. sob espécies tais que é possível. com toda a boa fé. deixar devê-lo ali; além' disso. a leitura ingenuamente redutora. qu e limitasse o texto de Kant àrelação social que nele se dissimula e transfigura, seria tiio falsa quanto a leitura comumque viesse a reduzl-lo à verdade fenomenal em que ele só r.e desvela ao ocultar-se.

Parerc« e paTajipo.mena

.A maneira mais decisiva de manifestar os mecanismos sociais que conduzem àdenegação dos verdadeiros princípios do julgamento do gesto> e à sua re-denegação emiodas as leituras em conformidade com as normas - é, CC' .iarnente, aquela que permitevê-los em ação em um comentário destinado :pelo rnen- is, na aparência) a manifestá-fés. ou seja, na leitura de Critique du jugemenc proposta por Jacques Derrida": alémdl~so. apesar de revelar - mediante uma transgressão nas regras mais formais docomentário ortodoxo - alguns dos pressupostos ocultos da filosofia kantiana dojulgamento do gosto. ela permanece submissa à, censuras dá leitura pura. Derrida vê,perfeitamente o segulnte: o que está em jogo é a oposição entre o "prazer", legítimo. ea "frulcão" ou. a parte objecti, entre as artes agradável s. q ueseduzern pelo" atrativo" do

A Illstlnção ~~~

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conteúdo sensível, e as Belas-Artes, que oferecem o prazer sem fruição: sem estabelecerexplicitamente o vínculo com a oposição precedente, ele percebe, também, a antíteseentre os gostos grosseiros de quem "se contenta, à mesa ou segurando uma garrafa, emusufruir simples sensações dos sentidos', entre "a oralidade consumidora" como "gost.1ínreresselro" e o gosto puro; ele indica que a aversão é, talvez, a vcrdadc'ia origem dogosto puro pelo fato de "abolir a distância representativa" e, ao impelir irre$istívellTlentcao consumo, elimina a liberdade que se afirma na suspensão da adesão imediata aosensível e na neutralização rio afeto, ou seja, no "desinteresse" como falta de interesse'pela existência ou pela não-existência da coisa repre~ntada. E, sem dúvida, apesar deevitar fazê-lo explicltamente, é possível relacionar todas as oposições precedentes - quedizem respeito h relação do consumidor com a obra de arte - com a última das oposições .,'apresentadas, ou seja, aquela estabe lecida por Kant, na ordem da produção, entre a .;-"arte livre" que implementa o livre arbítrio, e a "arte mercenária" que troca o valor deseu trabalho por urn salário. É óbvio que semelhante transcrição, qur. acaba por condensare comprimir, estabelecendo assim paralelismos.excluídos do original, além de que, aoinstituir uma "ordem das razões", produz encadeamentos somente sugeridos e, sobretudo,confere a todo o propósito o aspecto de urna demonstração orientada por um desafioque coloca em Jogo p verdade, constitui uma transformação ou uma deformação, nosentido forte: a tentativa de resumir um discurso que, como o testemunho a atençãoprestada à escrita e à paginação, é o produto da Intenção de dar forma c, de antemão,

. rejeita como "sumário" e "redutor" qualquer sumário visando separar- o conteúdo daforma, a reduzir o texto à sua Mais simples expressão, a apresentá-lo da forma maisresumida possível, consiste, com efeito, em negar a intenção mais fundamental da obrae, por uma espécie de redução transcendental que critica alguma jamais sonhou emoperar, fazer a epcc.hé de tudo Isso por meio de que o texto filos6fico afirma sua existência'enquanto texto filosófico, ou seja, seu "desinteresse", sua liberdade e, por conseguinte,sua verticalidade, sua distinção, sua distância em relação a todos os discursos "vulgares".No e~tanto, ~ jogo supremamente erudito jogado por Iacques Oerrida supõe a 1'~c,i.d~.E,:é~;-na adesão ao Jogo: "Trata-se do prazer. De pensar o prazer puro, o ser-prazer do prazer. :~,Partida do prazer, a terceira Ctltice roi escrita para ele e para ele deve ser lida. Prazer um:~_tanto árido - sem conceito, nem fruição - prazer um tanto estrito, mas aprende-se ai .~'uma vez mais que não existe prazer sem estrltura, Se me deixo conduzir pelo prazer, ,i' "11

reconheço e, ao mesmo tempo, afasto urna injunção. Eu a sigo: 9, ~nigrna __d_o_'p'razer4~

coloca o livro inteiro em movimento. Eu a seduzo: ao tratar a terceira Crltlce como urnaobra de arte ou um lindo objeto» essenão era, afinal, seu destino - procedo co~o~~-ãCxist~ncJa do livro fosse indiferente para mim (o que, explica-nos Kant, é exigido porqualquer experiência estética) e pudesse ser considerada com um imperdoáveldesapego"." Assim, Derrida diz-nos a verdade de seu texto e de sua leitura (caso particularda experiênciado prazer puro) como se implicasse a epoché de qualquer tese de existênciaou, mais simplesmente, a indiferença à existência do objeto considerado, mas em umtexto que implica essa epoché e essa indiferença: forma exemplar de denegação - nós(nos) dizemos a verdade, mas de tal modo que (para n6s) não a dizemos - que define averdade objetiva do texto filosóflco em seu uso social, conferindo a esse texto umaaceitabilidade social que corresponde a sua irrcalidade, sua gratuidadc e de indiferença

45ô Picrre ~·ourrllcu

soberana." Por nunca se retirar do jogo filosófico, do qu.i' ele respeita as convcncócs,inclusive nas transgressões rituais que não podem chocara não rer os intcgrisras, resta,lhe dizer filosoficamente a verdade do texto filosófico e da leitura filosófica dos textos"filosóficos, o ,!ue - deixado de lado o silêncio da ortodoxi.l·· é a melhor maneira de nãodizê-Ia e ele não pode mostrar verdadeiramente a verdade ,]:1 fllosofia kantiana da arte e,de forma mais geral, da-própria filosofia, que seu próprio discurso contribuiu paraproduzir. Do mesmo modo que a retórica pictural, que (, .nr inua a se impor a todos osartistas, produz um efeito inevitável de estctizaçãc, assir» também a maneira filosóficade falar da filosofia desrcaliza tudo o que pode ser dito a respeito da filosofia.- Os questlonamentos radicais anunciados pela filosofia encontram, com efeito, seulimite nos interesses associados ao pertencirnento ao campo de produção filosófica, ouseja, à pr6pria exístência desse campo e às censuras correlatas. Apesar de ser o produtohist6rico do trabalho dos fil6sofos sucessivos que os constituíram como filosóficos aoirnpó-los ao comentário, à discussão, à crítica e à polêmica. os problemas, as teorias, ostemas ou os conceitos formulados em escritos considerados em determinado momentocomo filosóficos (livros, artigos, temas de dissertação, etc.), que constituem a filosofiaobjetiveâe, se Impõem como uma espécie de mundo autônomo àqueles que pretendementrar em filosofia e devem não s6 conhccê-los, enquanto elementos de cultura, masreconhecê-los, enquanto objetos de crença (pré-reflexiva), sob pena de se excluírem docampo fllosófico. Todos aqueles que fazem profissão de filosofar têm um inceresse de vida'ou de morte, enquanto filósofos, pela existência desse dep6sito de textos consagrados .cujo controle mais ou menos completo constitui o essencial de seu capital específico.Assim, sob peno. de questionarem sua própria existência, euquanio [i.ósolos, e os poderessimbóllcos que Ihes são garantidos por esse titulo, nunca podem levar até o fim as rupturasque implicam uma epoché prática da tese da existência da filosofia, ou seja, uma denúncia~o contrato tácito que define as condições do pertencimento ao campo, um repúdio dacrença fundamental nas convenções do jogo e no valor dos desafios, uma rejeição ematribuir os simis indiscutíveis do reconhecimento - rcferêr.cias e reverência, obsequium,respeito pelas convenções inclusive na inconveniência - em suma, tudo isso por meio deque se adquire o reconhecimento do pe-tenclmcnto." Por não serem, também, rupturas

-sõcials que evitam assumir verdadeiramente a perda das gratificações associadas aopertencimp.nto, ~_~I?tur,a,s intelectuais mais audaciosas da leitura pura contribuem aindapara arrancar o depósito de textos consagrados ao estado de letra morta, de documento dearquivos:bOm apenas para a hi~t6ria das idéias ou para a sociologia do conhecimento, epara perpetuar sua existência e seus poderes propriamente filosóficos, levando-o a funcionarcomo emblema ou matriz de discursos que, seja qual for sua intenção declarada, são sempretambém estratégias simbólicas que, aos textos consagrados, tornam de -mpréstimo oessencial do poder que eles exercem. A exemplo do niilismo religioso de alguma; leresiasmísticas," o niilismo filosófico pode encontrar, assim, nos ntuais de transgressão libertadorauma derradeira via de salvação: do mesmo modo que, por uma maravilhosa reviravoltadialética; os atos de escárnio e dessacralização multiplicados pela arte moderna contra aarte transformaram-se sempre, enquanto atos artísticos, na glorificação da arte e do artista,assim também a "desconstrução'' filosófica da filosofia é efetivamente, ao esvair-se a própriaesperançã'cÍe uma reconstrução radical, a única resposta filosófica à destruição da filosofia.

A Illsílnção 4S~

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\A estratégia. bestante comum entre os artistas depois de Ducharnp, que consl5te

ern tomar como objeto a própria tradição da qual se participa, assim como a atividadepraticada, para submetê-Ias a uma ousse-objetlvsçêo, tem o efeito de tramformar ocomentérlo, gênero tipicamente escolar, tanto em suas condições de produção (cursos e,em especial, os de agrégation), quanto em sua própria natureza de obra essencialmenteimpessoal e 11ar. disposições ao mesmo tempo dóceis e rigorosas que ele exige, em umaobra pessoal suscetível de ser pu 'ilicada em revistas de vanguarda - por outra tran~gressão,que escandaliza os ortodoxos, da fronteira sagrada entre o campo universitário e o carnpoliterário, ou seja, entre o "sério" e o "frívolo". Isso ocorre mediante uma encer.ação(particularmente visível na "dupla sessão") que visa atrair o olhar para o "gesto" filosófico,transformando a própria profissão do discurso em um "ato", no sentido atribuído a essa "., .. 'palavra pelos pintores de vanguarda I!, ao mesmo tempo, colocando a pessoa do filósofo .• i;no centro da ribalta filosófica.

A objetivação filosófica da verdade do discurso filosófico encontra seur limites nascondições objetivas de sua própria existência enquanto atividade que pretende alcançar alegitimidade filosófica, ou seja, na existê~cia de um campo filosófico que exige oreconhecimento dos princípios que se encontram no próprio fundamento de sua existência:essa seml-objetivação permite sltuar-se, ao mesmo tempo, no Interior e no exterior, nojogo e fora do jogo, ou seja, às margens, à fronteira, em lugares que, a exemplo do "quadro",peretgon, são outros tantos llrnltes, começo do fim; fim do começo. Trata-se de pontos e;;:;que, por um lado, se atinge a distância máxima do interior sem cair nu exterior, nas trevasexternas, ou seja, líavüt'garidade do não-filosófico, na grosseria do discurso "ernpirico","õntico", "positivista", etc., e; por c utro, é possível acumular os benefícios da transgressãoe os lucros do pertencimento, ao produzir o discurso mais próximo, ao mesmo tempo, deum" realização exemplar do discurso filosófico e de uma explicitação da verdade objetivadess.e discurso."

Por oposição à leitura ortodoxa que toma ao pé da letra a lógica patente do textosagrado, à "ordem das razões' enfatizada por ele, ao plano que ele anuncia e pelo qualimpõe ainda sua ordem à sua própria decifração, a leitura herética assume liberdadescom as normas e as formas que os guardiões do texto sagrado impõem a qualquer leiturae que toda leitura com pretensão a se conformar às regras tem de se impor. ~_r.!:!m lado,o ponto de vista correto, aquele designado, de antemão, por Kant ao manifestar a

. arqultetõnica e a lógica aparentes de seu discurso, por um verdadeiro aparelho de tftulose subtítulos articulados de forrr.a erudita e por uma exlblção permanente dos sinaisexteriores do rigor dedutivo; ao servir-se de seus escritos anteriores, por um belo efeitode aurolegitimação circular, para fundamentar uma problemática que é, em grande parte,o produto artificial das divisões e oposições - entre o entendimento e a razão, o teóricoe o prático, etc, - produzidas, preclsarncnte, por esses escritos e que, daí em diante,depois de Hegel e de tantos outros pensadores, devem ser conhecidas e reconhecidaspor todo aquele que pretenda se fazer reconhecer e conhecer como filósofo, ~or. outrolado. um olhar delibcradamente eiwiesado, descentrado, isento, para não dizer subversivo,'que ignora os procedimentos habituais e rejeita a orde:n imposta, apega-se aos detalhes

458 Picrrc Bourdleu

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ignorados dos comentaristas comuns, anotações, exemplos, parênteses, e, assim, éobrigado _ nem que fosse para justificar a liberdade que assume - a cknunc!ar aarbitrariedade da leitura ortodoxa e. até mesmo, da lógica patente do discursoaoalisado,a suscitar dificuldadcSl~ e, inclusive, revelar a.guns dos lapsos sociais pelCl\. quais seatraiçoam, apesar do verdadeiro trabalho de eurcmização e racionalização, ó-S intençõesdenf.gadas que, por definição, escapam ao comentár:o ortodoxo.

o prazer da leitura

t,Apesar de marcar uma ruptura nítida com o ritual comum da leitura idólatra, a

leitura pura ainda atribui o essencial à obra fllosófica:" ao solicitar' um rratarncnto'seméihante ao que ela reserva a seu objeto, ou seja, se r tratada como obra Cx: arte, aoadotar como objetivo o próprio objeto da cora lida, isto é, o prazer c~)to, ao cultivar oprazer culto, ao exaltar artificialmente esse prazer artiflcíal pOI' um último requinte de'Übertino que, enquanto tal, implica uma lucidez sobre esse prazer, ela oferece, antes demais nada, uma exemplificação exemplar do prazer diante da arte, do prazer do 2J11or pelaarte a respeito do qual, à semelhança de qualquer prazer, não é assim tão fácil falar. Prazerpuro, se quisermos, no sentido em que ele é irredurível à busca dos benefícios de distinçãoe se vive como simples prazer de brincar, de jogar bem o jo::\o cultural, dr. servir-se de suaarte de brincar, de cultivar o prazer que "cultiva" e, assim, produzir, qual espécie de fogoinextinguível, o alimento sempre renovado do qual ele se alimente: alusões sutis, referências.deferentes ou írreverentes. paralelismos esperados ou insólitos, etc. É possível depositarconfiança em Pro1Jst que não deixou de cultivar e, ao mesmo tempo, analisar o praccrculto, quando, para tentar compreender e fazer compreender a espécie de prazer idólatr aque se tem ao ler tal página celebre (um trecho de Stones ()( venice de Ruskin), ele deveevocar, além das próprias propriedades da obra, toda :J. red,:' das referências cruzadas quese tece à sua volta, referência d1 obra às experiêrcias ?I:ssoais que ela ~companhou,favoreceu ou, até mesmo, produziu no leitor, referência .J;, exp:!riência pessoal às obrasque ela contariiinou subterraneamente com suas conotacê es, por último, referências daexperíência da obra a uma experiência anterior da mesma e bra ou à experiência de outrasobras, cada uma delas enriquecida com todas as assoe la,;."{ s ,~ re~,onância:l que lhe estãoassociadas: "Em si mesma, ela é misteriosa, repleta de imagens, ao mesmo tempo, debeleza e de reiigião, como essa igreja de São Marcos em que todas as figuras do Antigo ed'o Novo Testamento têm como fundo uma espécie de obscuritlade esplêndida e ele brilhefurta-cor. Lemhro ..me de ter lido essa obra, pela primeira I'CZ, na própria igreja de SãoMarcos, no -:lecorrer de uma hora de tempestade e de oh:.curidade em que o brilho dosmosaicos surgia apenas de sua próoria e materiallumin05idade e de um dourado interno,rerrestre e antigo, ao qual o sol veneziano, qt;e chega a infl.unar os anjos dos campanários,nada acrescentava; a emoção que eu experimentava ao lei essa página, entre todos essesanjos que se Iluminavam com as trevas circundantes, era bastante grande e, no entanto,talvez, não muito pura. Como aumentava a alegria de ver as lindas figuras misteriosas,mas alterava-se com o preze: em alguma [or-n« de crutli, 50 qlle eu experif11entava emcompreender os textos publicados em letras b:zantinas ao lado te suas frontes aurroladas,assim também a beleza das imagens de Ruskin era reavivada e cocompida pelo orgulho de

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se referir :10 texto sagrado. Uma espécie dc retorno egoísta para si mesmo é inevitáver;,~:nestas alegrias surgidss da mescla de erudição com arte em que o prazer estético pode :~tornar-se mais sutil, sem permanecer, contudo, tão puro".)1 O prazer culto alimenta-se"dessas referências cruzadas que se fortalecem e se legitimam mutuamente, ao produzirindisscluvelmente a crení.!\ no valor das obras, :1 "idolatria" que se encontra na própri~.:origem do prazer culto, e o encanro inimitável que elas exercem objetivamente sobre"todos aqueles que, possuidores possufdos, podem entrar no Jogo. Até mesmo, em su~--:;forma mais pura, mais isenta, na aparência, de qualquer interesse "mundano", esse jogo ésempre um jogo de sociedade, baseado como afirma ainda Proust, em "uma franco~maçonaria de usos" e em uma herança de tradições: "Afina! de contas, a verdadeira disti~Çãõfinge sempre dirigir-se apenas a pessoas distintas que conhecem os mesmos usos, sem dar.quslouer explicação. Um livro de Anatole France subentende uma multidão dêl:conhecirnenros eruditos, traz em seu bojo perpétuas alusóes, não percebidas pelo vulgo, /,.,que fazem, fora de suas outras belezas, sua incomparável nobreza".'! As "pessoas dequalidade de inteligência", de acordo com a expressão utilizada por Proust, sabem mã'~Za~sua distinção da maneira mais peremptória, ao destinarem à "elite" daqueles que sabemdeclfrá-los os finais tão discretos quanto irretUtáveis de seu pertencimento à "elite" (co'~;a verricalidade das referências emblemáticas que, em vez de fontes ou autoridades, designamo círculo bast.inre exclusivo, seleto, dos interlocutores reconhecldos), além de seremdiscretos na afirmação desse pertendmento. "

O Interesse "ernpírico" entra na composição dos prazeres mais desinteressados dogosto puro. porque o princípio do prazer proporcionado por esses Jogos de elevado requinteque se jogam entre requintados, reside, em última análise, na experiência de negada Ge_uma relação social de pertencimento e de exclusão. O senso da distinção, dísposlçãoadquirida, movida pela necessidade obscura do instinto, afirma-se não tanto nos manifestos >e nas manifesta~õe$ positivas da certeza de si, mas nas inumeráveis escolhas estillsticaL'ou temãrlcas que, tendo como princípio a preocupação de marcar a diferença, excluemtodas as formas (consideradas em determinado momento como) Inferiores da atividadeintelectual (ou artística}, objetos vulgares, referências indignas, modos de exposiçãomarcados por uma didática simplesmente monótona, problemas "Ingênuosõg(essencialmente porque do possuerntltulos nobiliárquicos, ou seja, uma genealogia:;ifilosófica) 0'1 "trívials" (Será que Kant diz a verdade em Critique du jugemerit? O objetivoda leitura deste livro consistirá em dizer a verdade em relação ao que diz Kant? ete.);.posições estigmatizadas corno empírismo ou historicismo (sem dúvida, porque elas ",ameaçam a própria existência da atividade filosófica), etc, Vê-se que o senso da disti.12ç~?_âlosófica não passa de uma forma da aversão vlsceral diante da vulgaridade que define ogosto puro como relação socisl incorporada, tornada natureza; e que seria impossível esperarque uma Ieltura filosoficamente distinta da Critique du jugemetit revele a relação social.de distinção que .~e encontra na origem dessa obra considerada acertadamente como cpróprio símbolo da distinção filosófica.

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Anexo 1.

Algum'as reflexões sobre o método

Em uma versão anterior desse texto. tomamos o partido de adotar,excepcionalmente, uma ordem de exposição tão próxima quanto possível do próprio

.i andamento da pesquisa e de apresentar progressivamente, na própria ordem em que forami"" efetuarias, as operações que permitiram extrair sentido sistematicamente dos dados

diretamente recolhidos ao longo das diferentes pesquisas estatísticas e etnográficas.Esperávamos Impor assim, mais naturalmente, um corpo de hipóteses teóricas que.apresentado abruptamente, poderia ter parecidoarbitrário ou forçado; mas a respeito doqual não poderíamos ignorar (nem deixar ignorar) que não teria jamais podido ser deduzidodo material analisado se não tivesse estado presente. sob a forma de esquemas heurlsticos,desde o começo da pesquisa. Ainda que a ordem de expcsição que toma como ponto departida o ponto de chegada da pesquisa seja menos favorável à exposição complacente dedados e de protocolos de procedimentos que são ordinariamente tidos como a melhorgarantia de clentlfícldade, e ainda que o aumento de rigor que implica tenha comocontrapartida toda uma série de elipses e de atalhos próprios a uma representaçãoingenuamente empirísta do trabalho científico, ela terminou por se impor como a únicaque permite recolocar cada fato no sistema de relações em que ele tem seu valor de verdade .

É por isso que é preciso evocar, em linhas gerais, as principais operações da pesquisa,sem tentar dissimular o que pode haver de pouco real nessa reconstrução retrospectiva. Apesquisa que serviu de base a esse trabalho foi c:onduzida em 1963, após urna pré-pesquisapor meio de entrevistas aprofundadas e observação etnográfica junte a uma amostra de6921ndivlduos (homens e mulheres) de Paris, de Lílle e de uma pequena cidade do interior.A fim de dispor de uma população suficientemente importante para permitira análise dasvariações das práticas e das opiniões segundo unidades sociais suficientementehomogêneas, procedemos em 1967-1968 a uma pesquisa complementar, elevando assima 1217 o número de pessoas entrevistadas. Tendo em vista que a pesquisa media disposiçõesrelativamente estáveis, essa defasagem temporal não parece ter afetado as respostas (comexceção, talvez, da questão sobre a canção, domínio da cultura que é submetido a limarenovação mais rápida).'

Um exame aprofundado das categorias que, ao final de uma primeira análise, revelaram-se as mals heterogêneas, tanto ao nível das características objetivas quanto ao nível das escolhas,em particular os artesãos e os pequenos comerciantes, os quadros médios, 0S quadros superiorese 0S professores secundários e universitários, levou a isolar, apesar de seu pequeno número, osprodutores artísticos (classificados pelo INSEE entre; s profissões intelectuais e reagrupadoscom os professores secundários e universitários), os intermediários culturais (reagrupadospelo INSEE com os professores primários) e os artesãos e pequenos comerciantes ele arte e a

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suficientemente numerosa para autorizar o tratamento estatístico: em primeiro lugar, eladeixa escapa I quase completamente o que diz respeito à modalidade das práticas; ou, emum domínio que é aquele da arte, entendido no sentido de maneira de ser e de fazerparticular, como na "arte de viver", a maneira de efetuar as práticas e a maneira de falarsobre elas, desabusada ou desenvolta, séria ou apaixonada, fazem muitas vezes toda adiferença (pelo menos todas as vezes em que estivermos diante de práticas comuns. comoa televisão ou o cinema). Eis aI uma primeira razão que faz com que tudo o que é dito aquisobre as diferenças entre as classes ou as frações de classe valha a Iottlori .

Além disso, o cuidado em oferecer ao sistema das disposições constitutivas de gostoum campo de aplicação o mais extenso e o mais diversificado possível dentro dos limites,necessariamente restritos, de um questionário obrigou a uma série de apostas que consistiamem entregar a exploração de todo um domínio (por exemplo a música, o cinema, a cozinha,o vestuário) a duas ou três questões (às vezes a uma s6) que deveriam elas pr6prias substituir.muito freqüenternente, toda uma bateria de testes e de observações: é assim, por exemplo,que ao pedir às pessoas questionadas que escolhessem em uma lista de adjetivos estabclecidaa posteriori, a partir de uma série de entrevistas não-dlretlvas e de testes (apresentação defotografias socialmente marcadas, teste consistindo em' reconstltulr um rosto masculino oufeminino "ideal" pelo acrésdrr;o de atributos socialmente classlflcantes, penteado, bigodes,sulcas, barba, ctc.), aqueles que lhes pareciam melhor convir a seus amigos, não poderíamosesperar obter outra coisa além de uma manifestação atenuada e confusa das disposiçõesprofundas que orientam á escolha dos parceiros amorosos, de amizade ou profissionais(entre outras razões porque a lista de qualificativos proposta, ainda que tão trabalhada,apresentava írnperfelções e constrangia muitos entrevistados à escolha negativa do itemmenos distante de seu sentimento).' Que um instrumento de medida tão imperfeito tenhapodido registrar diferenças tão marcadas, e, sobretudo, tão sistemáticas, constitui por si sóum testemunho da força das disposições medidas.

De fatc. o que perdemos em precisão e em sutileza na análise de cada domínioparticular, que pode ser Julgado por todo um conjunto de pesquisas, de observações e detestes, foi recompensado em sistematiddade: do mesmo modo como, na escala de um únicocampo, o da pintura, por exemplo, podemos encontrar na configuração singular daspreferências (Renoír não tendo o mesmo sentido quando se associa a Da Vinci ou Picasso doque quando está com Utrlllo.e Buffet), um substituto das Indlcaçóes de maneira queforneceriam a. observação e o questlonamento diretos, o sentido de cada uma das aplicaçõesparticulares do sistema único das disposições se revela em sua relação com todas as outras.Nada manifesta melhor a slsternatlcidade do bebltus do que essa espécie de redundânciasistemática na definição indefinida que define todos os seus produtos, Julgamentos ou práticas.

Mas é, sem dúvida, ao mobilizar em torno de uma pesquisa sistemática todos osdados estatísticos disponlveis a propósito de cada um dos domínios diretamente explorados,bem corno a propósito de domlnios que foram excluídos da definição inicial do objeto dainvestigação, como a cultura econômica, a freqüência ao teatro, as disposiçóes em matériade educação das crianças e da sexualidade, etc., que chegamos a melhor compreender econtrolar 0S dados fornecidos pela pesquisa principal e a compensar, assim, o que ainformação diretamente recolhida em um conjunto tão extenso de dornlnios tão diferentespossa ter de parcial e, às vezes, de superficial (segundo a força dos indicadores utilizados).

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e isso sem cair, igualmente, na irreal idade abstrata da "",<ú'jse secundária" dos dadosdisparatados que tesaurizam mecanicamente os "bancos de dados" sem capital teórico,instituições positivistas pelas quais são loucas as burocracias da pesquisa.' Resta que algunsdos limites pr6prios à análise secundária não podem ser superados, É assim que, como asdiferentes pesquisas realizadas pelo INSEE, a pesquisa cond:lZida em 1966 pela SOFRES,encomendada por um conjunto de empresas e com a finalidade, estritamente prática, dedeterminar intenções de consumo (EC., V), dá poucas infu'ln~ções sobre a freqüência e aocasião dos consumos ou sobre a qualidade dos objetos consumidos que, em mais de umcaso, fazem toda a diferença (por exemplo, no caso da freqüência ao teatro, que cobretanto o teatro de vanguarda quanto o teatro de covleverd): da reagrupa, além disso. emuma mesma questão, a freqüência a museus e a freqüência a exposições sobre as quaissabemos (pela pesquisa do INSEE sobre os lazeres, EC., IV) que não variam sempre nomesmo sentido - a freqüência ao museu, mais ascética, sendo antes característica dosprofessores secundários e universitários, a freqüência às exposições, mais "mundana",das profissões liberais e de uma fração da velha burguesia patronal- e ela não fornece, poroutro lado, nenhuma indicação sobre o ritmo da freqüência a0S museus, às exposições ougalerias; do mesmo modo, ela confunde concerto ópera e espetáculos de dança em umamesma questão, quando encontraríamos, sem dúvida. entre o concerto e a ópera, umaoposição análoga àquela que se estabelece entre o museu c as exposições. Outro exemplo,'a leitura de obras filos6ficas, não significa grande coisa enquanto ignoramos a qualidadedos autores lidos: tudo Inclina, com efeito, a supor que cada fração tem" seus" filósofos oumesmo sua idéia do fil6sofo ou da filosofia e que uns evocarão Teilhard de Chardin, qurmsabe Saint-Éxupery ou Leprlnce-Ringuet. ali onde outros pensarão em Sartre ou emPoucault. Assim, Interrogados em 1967 sobre os conferencistas que desejariam verconvidados em sua escola, os alunos literários da École notmsle supérieure, saídos emgrandes proporções das frações dominadas da classe dominante, pensavam, em primeirolugar, em Sartre, Lévi-Strauss, Ricoeur e Foucault, enquanto os alunos da École nationa.leâ'eáministrstion, saldos em sua maior parte de membros da alta função pública ou de

profissões liberais nomeavam, sobretudo, Aron, Bioch-Lainé, Massé ou Delouvrier, Sartre,citado em primeiro lugar na ENS, aparecia apenas em quinto lugar na ENA - que colocano topo três homens políticos, Mendcs-France. segundo na ENS, Giscarí d'Estaing e deGaulle. Outro llrnlte, a pesquisa da SOFRES (FC .. V) não fornece todas as lnforrnaçôesnecessárias à construção do sistema de princípios explicativos dos consumos e das práticas.volume e estrutura do patrimônio, trajetória social: não possuímos quase nenhumaindicação sobre o patrimônio econômico (propriedades rurais ou urbanas, benefíciosindustriais e comerciais, etc.) ou cultural, objetivada (obras de arte, móveis antigos, piano,etc.) ou Incorporada (nível de instrução) nem muito sobre a origem social e a carreiraanterior dos pesquisados. A pesquisa conduzida pelo CES:' em 1970 (EC., VI) permitepreencher algumas dessas lacunas, mas muito lmoerfeitamente, de modo que dispomos,somente nesse caso, da distribuição por jcrnal ou semanário lido (e não por classe 011

fração de classe), Quanto à pesquisa conduzida sob encomenda da Secretaria de Estado daCultura (F.C., VJl), ela contém informações muito interessantes (por exemplo, sobre aposse de obras de arte), mas não permite a análise por frações (a informação precisa sobreas profissões não foi coletada).

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# fI" Enfim, a pesquisa do INSEE sobre os lazeres (EC., IV), ainda que forneça o conjunto

mais notável de informações jamais coletadas em matéria de consumos culturais, encontraseus limites na natureza da classificação empregada (ll posição bizarra das indústriastornando, por exemplo, o fato de que a categoria rlxada agrupa todos os empresários queempregam mais de cinco pess •..•as); no fato de que estarnos diante de práticas declersds«que, sabemos, não mantêm uma relação perfeitamente constante segundo as classes comas práticas ehivas; no fato, enfim, de que a pesquisa não fornece informações sobre aqualidade dos consumos culturais e subestima, assim, a dispersão das práticas. Reduzindoas diferentes classes de práticas e consumos à sua freqüênda, isto é, à quantidade, emmatérias nas quais quase tudo é questão de qualidade, minimizamos sistematicamente(sem modificar, no entanto, as relações de ordem) as diferenças entre as classes. Assim,como sabemos, as diferenças entre a quantidade das visitas ao museu se encontramduplicadas como que ao infinito pelas diferenças na qualidade dessas visitas. As classesprivilegiadas, menos submetidas aos ritmos coletivos, encontram em uma freqüência maisuniformemente repartida 11() ano e na semana o meio de ~scapar à multidão dos períodosde pico e à experiência desencantada que ela suscita. Essas diferenças de ritmo associam-se elas mesmas a diferenças não menos marcadas na qualidade dos lugares de exposição _.museus de diferentes "níveis", exposições mais ou menos "distintas" c distintivas - e,inseparavelmente, na qualidade dos gêneros, dos estilos, dos autores. Mas é, sobretudo,na maneira de conduzir a visita - em particular, com o tempo que a ela é consagrado .- e,sobretudo, talvez, na maneira de se conduzir durante a visita que a busca mais ou menosinconsciente da distinção pode encontrar matéria para duplicações quase infinitas.

Tendo incessantemente ao espírito os limites dos dados coletados e de toda a informaçãoobtida em uma relação tão artifidal, de qualquer maneira, quanto a entrevista por questionário,conduzimos, ao longo da análise, isto é, cada vez que uma dificuldade surgia ou que uma novahipótese o exigia, observações e entrevistas em situação real (cf., por exemplo, as entrevistasinseridas na terceira parte). Mas devemos, sobretudo, aprender pouco a pouco a transgredir aregra não escrita que deseja que apenas possam in,tervir na construção cientlfica os dadoscoletados em condições socialmente definidas como científicas, isto é, pela entrevista ouobservação armada (e que não se imporia tão fortemente ao inconsciente cientlfico se nãotivesse como virtude colocar O sociólogo fora do jogo, ao abrigo, então, da sócio-análise queimplica em bom método toda. análise), para fazer ressurgir todas as informações que o sociólogo,enquanto' sujeito social, possui inevitavelmente e que, controladas pela confrontação com osdados rnesuráveis da observação, podem entrar no discurso dentífico.

Apenas um diário de.pesquisa poderia dar uma idéia Justa das inumeráveis escolhas,todas tão humildes e derris6rias, todas tão diflceis e decisivas, logo, das inumeráveis reflexõesteóricas, muitas vezes ínfimas e indignas do nome de teoria tomado no sentido comum, queé preciso operar, durante anos, a prop6sito de um questionário dificil de classificar, de umacurva inesperada, de uma questão mal colocada, de uma distribuição à primeira vistaincompreensível, para chegar a um discurso que será tanto mais bem-sucedido quanto melhoresquecer os milhares de retornos, de retoques, de controles, de correções que o tornarampossível ao afirmar, em cada uma de suas palavras, o alto teor de realidade que o distinguedo, igualmente não falso, ensalsmo. Contentamo-nos, então, em apresentar, a seu tempo,no pr6prio transcorrer da exposição dos resultados, as informações indispensáveis para

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compreender e controlar os desdobramentos da análise estatística. com o cuidado de evitartanto a ênfase metodol6gica que mascara muitas vezes a ausência de toda reflexão real sobreas operações quanto a arrogância teórica que priva o leitor de todo instrumento de verificação(assim, por exemplo, ainda que tenhamos nos abstido de dar-lhe o aspecto de um protocoloformal, apresentado como tal, tentamos dar ao leitor informado, sem desviar o leitor poucociente da técnica, toda a informação útil para controlar os resultados daquelas análises dascorrespondências que apresentamos em detalhe - dirncnsôes do qua:lro, número de questõese número total de modalidades correspondentes, número de indivíduos, natureza e codífícaçãodo quadro, lista de variáveis, descrição das hipóteses subjacentes à distinção entre variáveisativas e variáveis llustrativas, lista dos valores próprios e das taxas de inércia, principaiscontribuições absolutas e contribuições relativas).'

Resta um último problema que mereceria, sem dúvida, um longo desenvolvírnento,aquele da escrita: a dificuldade principal, sobretudo a respeito de tal assumo, reside nofato de que a linguagem empregada deve, ao mesmo tempo, marcar uma ruptura com aexperiência comum que não é menos necessária para se apropriar adequadamente doconhecimento produzido do que para produzi-lo, e fazer sentir àqueles que não a conhecem,ou não querem conhecê-Ia. a experiência social correspondente. As análises que dizemosconcretas, ainda que não tenham nada de concreto no sentido comum do termo, uma vezque elas supõem a construção, estão ali para favorecer o retorno do produto da descriçãocientífica à experiência e tornar mais dificil o distanciamento e a neutralizaçâo que favorececomumente a linguagem serní-eruditada falsa ciência. O mesmo vale para todos osdocumentos (fac-símlles de livros ou de artigos, fotografias, extratos de entrevistas, etc.)que foram inseridos no próprio texto, a fim de dcsencorajar as leituras distraídas quechamamos de abstratas porque não têm nenhum referente na realidade.

A arte é um dos lugares por excelência da contestação do mundo social. Mas a mesmaintenção inconsciente de contestação está no cerne de numerosos discursos que se atribuemcomo projeto declarado falar sobre o mundo social e que, em c' mseqüência podem ser escritos,e lidos, de modo inverso. (Quantos filósofos, sociólogos, í.lólogos chegaram à filosofia, àsociologia ou à filologia como nesses lugares que, mal situados no espaço social, permitemescapar à definlção? Todos esses utopístas de fato, que não querem saber onde estão, não sãoos melhor situados para saber o que é o espaço social onde e,Li,· colocados. Teríamos, de outromodo, tantas leituras e lectotes, materialistas sem material, pensamentos sem instrumentosde pensamento, logo, sem objeto, e tão poucas observações e, por conseguinte, auaores?).Não podemos fazer progredir a ciência do mundo social e a expandir a não ser sob a condiçãode Iorçer o retomo do reprimido, neutralizando a neutralização, negando a contestação sobtodas as suas formas, das quais a maior é a desrealização pela radicalizaçâo hiperbólica decerto discurso revolucionário. Contra o discurso nem verdadeiro, nem falso, nem verificável,nem falseável, nem teórico, nem empírico que, corria Racine não falava de vacas mas de bezerras,não pode falar do Smig ou das camisetas da classe operária, mas somente do modo de produçãoe do proletariado ou dos papéis e das atitudes da lowet middJc clsss, não é suficiente demonstrar,é preciso mostrar, objetos e mesmo pessoas, fazer com que 0 dedo toque - o ';1uenão querdizer mostrar com o dedo, colocar no indcx toque -, fazer entrar em um blstró popuiar ou CII'

um campo de rúgbi, em um campo de golfe ou em um clube privado, pessoas que. acostumadasa falar °que pl'nsarn pensar, não sabem mais pensar o que falam.

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( f' •A dificuldaoe subjetiva e objetiva da escrita não se deve somente ao fato de que

pedimos à Ifngua que diga o que ela tem por vocação negar ou contestar. Não é fácilencontrar o tom justo, escapar à alternativa da celebração e da i' rovocação, que dela nadamais é do que a inversão, quando as próprias questões que devemos colocar para construiro objeto são antecipadamente definidas, no próprio objeto, como barbarismos. O discursocientífico sobre a arte e sobre os liSOS sociais da obra de arte destina-se a parecer, aomesmo tempo, vu Igar e terrorista: vulgar, porque transgride o limite sagrado que distinguec reino puro da arte e da cultura do domínio inferior do social e da pclítlca, destinação queestá no próprio princfpio dos efeitos de dominação simbólica exercidos pela cultura ou emseu nome; terrorista, porque pretende reduzir a classes "uniformes" tudo o que é"explosivo" e "liberado", "múltiplo" e "diferente", como se diz hoje em dia, e encerrar aexperiência por excelência do "jogo" e do "prazer" nas proposições terra a terra de um"saber" "positivo", logo "positivista", "totalizante", logo "totalitário". Se há terrorismo, énos vereditos peremptórios que. em nome do gosto. remetem ao ridículo, à indignidade, àvergonha. ao silêncio (é aí que seria preciso citar exemplos, tomados de empréstimo aouniverso particular de cada um) dos homens e das mulheres aos quais falta simplesmente.aos olhos de seus juízes, o que faz a boa maneira de ser e de fazer: é nos golpes de forçasimbólicos pelos quais os dominantes tentam impor sua própria arte de viver e dos quaisestão repletos os semanários masculinos assim como os femininos. "Conforama é o GuyLux dos móveis", como diz o Nouvel Observareur, no qual não se lerá jamais que o NouveJObs é o Club Méditer::anée da cultura. O terrorismo está em todas 1S propostas da mesmafarinha, lampejos de lucidez interessada, que engendra o ódio ou o menosprezo de classe,Apenas o trabalho necessário para construir enquanto talo campo de lutas no interior doqual se definem os pontos de vista parciais e as estratégias antagonistas, permite o acessoa um conhecimento que se distingue da clarividência cega dos participantes. sem seidentificar com o olhar soberano do observador imparcial. A objetivação apenas é completase objetiva o lugar da objetivação, esse ponto de vista não visto, esse ponto cego de todasas teorias, o campo intelectual e seus conflitos de interesses, no qual se engendra, âsvezes, por um acidente necessário, o interesse pela verdade; e também as contribuiçõessutis que traz à manutenção da ordem simbólica, até pela intenção de subversão, todasimbólica, qUE lhe designa muitas vezes a divisão dotrabalho de dominação.

Tratando-se de tal objeto; c trabalho científico sobre o objeto é indissociável de umtrabalho sobre o sujeito do trabalho. Ele depende, antes de tudo, da capar.idade que possuide dominar, na prática, em sua prática, os mecanismos que se esforça por objet.var, e quepodem comandar ainda sua relação com o objeto. Deveríamos destinar à meditação, comoantigamente as Vidas paralelas, a história do Princeton Project, vasto estudo empfricosobre o consumo da música que reuniu Adorno e Lazarsfeld, casal epistemológico feito dehomens. Arrogância do teórico, que se recusa a sujar as mãos na cozinha da empiria e quepermanece muito visceralrnente ligado aos valores e aos lucros da Cultura para estar aptoa dela fazer um objeto de ciência; submissão do ernpirista, pronto para todas as abdicaçõese abjurações que exige uma ordem científica estreitamente subordinada à ordem social.Arrogância do positivísta, que tenta instaurar como norma de toda a prática científicauma metodologia do ressentimento que tem por princípio uma espécie de furor vingativocontra qualquer questionarnento global; submissão do marxista distinto, que faz.marxismo

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vulgar lá onde seria preciso refiná-lo c marxismo distinto I,i onde seria preciso a coragclnde ser vulgar. Cada um vê bem a verdade Jo outro.

Os obstáculos epistemológicos que deve superar a ciência social são, a princípio,obstáculos sociais; tal é a representação comum da hierarquia das tarefas constitutivas dooficio de sociólogo que, leva tantos pesquisadores a se desviar das atividades humildes.fáceis e fecundas para se dIrigir a.exercíclos, ao mesmo tem DO. difíceis e estéreis, ou umsistema de recompensas anôrnico que coloca a pesquisa diante da alternativa do domésticoou do caótico, da doutrina ou da ninharia. desencorajando a combinação de uma grandeambição e de uma longa paciência que é necessária para produzir um trabalho científico,Com efeito, diferentemente das intuições, às vezes sugestivas. do ensaísmo, das teses, àsvezes coerentes, do teorismo ou das constatações, às vezes válidas. do ernpirismo, ossistemas provisórios de proposições científicas, que se esforçam em associar a coerênciainterna e a compatibilidade com os fatos, não podem ser produzidos a nio ser 3.0preço deum trabalho lento, dificil e destinado a permanecer ignorado por todas as leituras apressadasque não podem ver nada além de reafirrnações repetitivas de teses, de: intuições ou defatos já conhecidos no resultado provisório de uma longa série de totalizações porque elasignoram o essencial. isto é, a estrutura das relações entre as proposições.

o questionário

- Sexo:• Ano de nascimento:

- Estado civil:solteiroviúvo

casadodivorciado

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."- Número e idade das crianças:- Local de residência:- Data de chegada ao local de residência:

Menos de 5 anos 10 anos ou maisDe 5 a 10 anos

. Local de residência anterior:- Maior diploma obtido,- Profissão exercida (t20 precisa quanto possível):- Maior diploma e profissão de seu pai e de seu avó paterno (caso haja necessidade. indicar aúltima profissão exercida)

tltulação profissão

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