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o Brasil na América Latina Celso Lafer Auditório do Instituto Fernando Henrique Cardoso São Paulo, 18 de abril de 2013 A análise dos atuais desafios relacionados à presença do Brasil na América do Sul, e mais amplamente na América Latina, se beneficia de algumas considerações históricas que esclarecem o pano de fundo da nossa singularidade na região. Nosso processo de independência fez do Brasil um império em meio a repúblicas e, assim, o diferente na região em matéria de regimes políticos. O diferente do Brasil Im- pério era também o de um Estado comuma grande massa territorial herdada da colônia, com uma população de língua portuguesa que permaneceu unida num só Estado pela ação de seus estadistas. Daí as significativas diferenças dos pontos de partida dos Esta- dos na região, pois o mundo hispânico, de fala castelhana foi, nos processos da inde- pendência, se fragmentando, dando origem a vários países. A manutenção da unidade nacional foi o grande e bem-sucedido objetivo do Brasil Império e o seu legado para o país. A construção deste legado fez, no plano regional, da política interna e da política externa, as duas faces de uma mesma moeda: o da consolidação do Estado brasileiro numa região instável e centrífuga. A República preservou a herança do império da unidade nacional e graças à obra de Rio Branco foram dirimidas, pelo direito e pela diplomacia, os temas pendentes de fron- teiras. Equacionou-se, assim, definitivamente, no início do século XX, o primeiro item da agenda da política externa de um Estado independente, que é o da clareza jurídico-polí- tica quanto ao que é "interno" ao país e o que a ele é "externo". É por essa razão que o Brasil é raro caso de país sem contenciosos territoriais com sua abrangente vizinhança. Destes elementos de fluem desdobramentos significativos que podem ser considerados "forças profundas" da visão brasileira sobre sua presença na região e no mundo. Primeiro, um nacionalismo voltado para dentro e não para fora, preocupado e dedicado ao desen- volvimento do grande espaço nacional. Segundo, um interesse específico em contribuir para a paz e o progresso na América Latina, com ênfase na América do Sul, que é o contexto regional da nossa múltipla vizinhança e condição do desenvolvimento do continente. Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP. 193 VOL22 N"l JUL!AGO!SET 20D

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o Brasil na América LatinaCelso Lafer

Auditório do Instituto Fernando Henrique Cardoso

São Paulo, 18 de abril de 2013

A análise dos atuais desafios relacionados à presença do Brasil na América do Sul, emais amplamente na América Latina, se beneficia de algumas considerações históricasque esclarecem o pano de fundo da nossa singularidade na região.

Nosso processo de independência fez do Brasil um império em meio a repúblicas e,assim, o diferente na região em matéria de regimes políticos. O diferente do Brasil Im­pério era também o de um Estado comuma grande massa territorial herdada da colônia,com uma população de língua portuguesa que permaneceu unida num só Estado pelaação de seus estadistas. Daí as significativas diferenças dos pontos de partida dos Esta­dos na região, pois o mundo hispânico, de fala castelhana foi, nos processos da inde­pendência, se fragmentando, dando origem a vários países. A manutenção da unidadenacional foi o grande e bem-sucedido objetivo do Brasil Império e o seu legado para opaís. A construção deste legado fez, no plano regional, da política interna e da políticaexterna, as duas faces de uma mesma moeda: o da consolidação do Estado brasileiro

numa região instável e centrífuga.A República preservou a herança do império da unidade nacional e graças à obra de

Rio Branco foram dirimidas, pelo direito e pela diplomacia, os temas pendentes de fron­teiras. Equacionou-se, assim, definitivamente, no início do século XX, o primeiro item daagenda da política externa de um Estado independente, que é o da clareza jurídico-polí­tica quanto ao que é "interno" ao país e o que a ele é "externo". É por essa razão que oBrasil é raro caso de país sem contenciosos territoriais com sua abrangente vizinhança.

Destes elementos de fluem desdobramentos significativos que podem ser considerados"forças profundas" da visão brasileira sobre sua presença na região e no mundo. Primeiro,

um nacionalismo voltado para dentro e não para fora, preocupado e dedicado ao desen­volvimento do grande espaço nacional. Segundo, um interesse específico em contribuir paraa paz e o progresso na América Latina, com ênfase na América do Sul, que é o contextoregional da nossa múltipla vizinhança e condição do desenvolvimento do continente.

Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP.

193 VOL22 N"l JUL!AGO!SET 20D

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DOCUMENTOS

Terceiro, a aspiração, com o lastro de um consolidado país de escala continental, de terpresença na definição das regras de funcionamento do sistema internacional.

Esta leitura das coisas, com ajustes e mudanças em função das transformações internase externas, explica a importância atribuída pelo Brasil ao entendimento com os vizinhose à cooperação latino-americana, que teve novo impulso depois da noite autoritária comos processos de redemocratização no Cone Sul no contexto do fim da Guerra Fria. Issotrouxe significativa aproximação entre a Argentina e o Brasil, levou ao Mercosul, induziua uma tentativa de integração energética de gás com a Bolívia, e chegou, por iniciativa dopresidente Fernando Henrique, à inédita reunião em 2000 de todos os países da Américado Sul, que criou o IRSA, conjunto de projetos de integração logística, energética e deinfraestrutura dos países da região para fazer a melhor economia da nossa geografia.

Isto tudo mudou nestes últimos dez anos - os dez anos do governo do PT - de ma­neira que os caminhos anteriores não dão resposta aos problemas do presente. Numcerto sentido creio que se configura, em novos moldes, a singularidade do Brasil naregião e no mundo.

O Brasil é hoje, mais do que antes, um ator global, com um patamar no mundo dis­tinto de outros países integrantes da nossa região. Em síntese, o eixo regional tornou-semais assimétrico com todas as suas consequências. São maiores as expectativas dos vi­zinhos em relação ao papel do Brasil na sustentabilidade de cooperação. Também sãomaiores os desafios relacionados às ambições brasileiras da presença num mundo mul­tipolar fragmentado, com tendências centrífugas e muitas tensões de hegemonia e deequilíbrio regional.

A fragmentação alcança a nossa região, que se tornou mais heterogênea nas suas visõesda economia e da política. Por isso, nas instâncias de concertação política e nos processosde integração não ocorrem apenas os naturais conflitos de interesses, mas múltiplos con­flitos de concepção, inclusive sobre o valor da democracia e dos direitos humanos. Estesconflitos de concepção explicam a perda do impulso original do Mercosul, que está sealadificando, ou seja, torna-se um mecanismo de cooperação que deixou de ter o foco deuma dimensão transformadora. A visão dos países com tendências economicamente libe­ralizantes que integram a Aliança do Pacífico (Chile, Peru, Colômbia, México) contrastacom a dos bolivarianos, de discutíveis credenciais democráticas e orientação estatizantenacionalista (Venezuela, Equador, Bolívia). Ora, o Brasil não se enquadra em nenhumadestas duas concepções: não é um liberalizante à moda da Aliança do Pacífico, nem é umbolivariano, e a Argentina imobiliza, no Mercosul, a nossa ação externa comercial.

Esta singularidade não está nos favorecendo. Os acordos comerciais inter e extra zonaestão minando nossas preferências comerciais na região e comprometendo nossas expor­tações de manufaturados que enfrentam a concorrência da China. O IRSA está em com­passo de espera diante da dificuldade de elaboração, por conta de conflitos de concepções,de um marco regulatório comum. O papel do Brasil na formulação das regras de funcio­namento do comércio internacional está sendo reduzido, seja pela longa paralisia dasnegociações da rodada Doha na OMC, seja porque novas normas estão sendo elaboradasem dois mega-acordos comerciais, a Parceria Trans Pacific (TPP) e a Parceria de Comércioe Investimento Transatlântica (TTIP) de que não participamos. Assim, corremos o risco deser, como observou Vera Thorstensen, "ruIe takers", ou seja, seguidores da irradiação denormas impostas pelos outros e não "ruIe makers", papel que, na nossa singularidade,buscamos tradicionalmente exercer.

194 POL!TICA EXTERNA

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o BRASIL NA AMÉRICA LATINA

Um grafite recente num país latino-americano dizia: "Cuando teniamos Ias respuestas nos

cambiaran Ias preguntas". Mudaram as perguntas relacionadas ao como melhor conduzirde forma cooperativa nossa inserção na América do Sul. Falta ao governo brasileiro nãosó uma novit e necessária visão estratégica apta a lidar com a nossa singularidade, agra­vada por um processo decisório fragmentário que, à deriva, reitera respostas inadequadase tópicas para uma realidade que mudou.

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