brasil século xx ao pÉ da letra da canÇÃo popular

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BRASIL SÉCULO XX AO PÉ DA LETRA DA CANÇÃO POPULAR SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 3 CAPÍTULO 1 - DA REPÚBLICA VELHA AO FIM DO ESTADO NOVO MALDITO VIOLÃO 5 SÃO PAULO DÁ CAFÉ, MINAS DÁ LEITE E A VILA ISABEL DÁ SAMBA 6 TIA CIATA 7 O FUNDO DE QUINTAL 8 “PAZ E AMORDO INÍCIO DO SÉCULO 9 ALMIRANTE NEGRO 9 O SAMBA COM SOTAQUE PORTUGUÊS 11 O GRAMOFONE E O TELEFONE 12 PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL 14 O COMEÇO DO FIM DA REPÚBLICA VELHA 15 O RÁDIO 16 SEU MÉ E DOUTOR BARBADO 17 A PRIMEIRA ESCOLA DE SAMBA 21 A REVOLUÇÃO DE 30 23 A MALANDRAGEM 26 O MICROFONE 28 A “REVOLUÇÃOPAULISTA DE 32 30 O ESTADO NOVO 31 O MALANDRO REGENERADO 33 EIXO OU ALIADOS 38 A EMBAIXATRIZ DA BOA VIZINHANÇA39 CAPÍTULO 2 - DE UMA RENÚNCIA À OUTRA BENDITO VIOLÃO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. PÓS-GUERRA A DOR DE COTOVELO P-BOSSA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ...NO MESMO LUGAR...ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O “PRESIDENTE BOSSA NOVAERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O QUASE GOLPE ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O HOMEM QUE É UM VIOLÃO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. 50 ANOS EM 5 ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. BRASIL-EXPORTAÇÃO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. CANÇÃO DO AMOR DEMAIS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. CAPÍTULO 3 - DO PLEBISCITO À ANISTIA MALDITA GUITARRA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O NÃO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O YEAH-YEAH-YEAH! ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O MUITO PELO CONTRÁRIO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. AMBIENTE DE FESTIVAL ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O AI 5 ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. ...O SOL SE REPARTE EM CRIMES, ESPAÇONAVES, GUERRILHAS...ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. ESTE É UM PAÍS QUE VAI PRA FRENTE... 89 O DRIBLEERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. BACK IN BAHIA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. E NOVOS BAIANOS PASSEIAM... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.

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Page 1: Brasil  século XX  aO PÉ DA LETRA DA CANÇÃO POPULAR

⎯ BRASIL ⎯ SÉCULO XX ⎯ AO PÉ DA LETRA DA CANÇÃO POPULAR

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 3 CAPÍTULO 1 - DA REPÚBLICA VELHA AO FIM DO ESTADO NOVO ⎯ MALDITO VIOLÃO ⎯ 5 SÃO PAULO DÁ CAFÉ, MINAS DÁ LEITE E A VILA ISABEL DÁ SAMBA 6 TIA CIATA 7 O FUNDO DE QUINTAL 8 “PAZ E AMOR” DO INÍCIO DO SÉCULO 9 ALMIRANTE NEGRO 9 O SAMBA COM SOTAQUE PORTUGUÊS 11 O GRAMOFONE E O TELEFONE 12 PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL 14 O COMEÇO DO FIM DA REPÚBLICA VELHA 15 O RÁDIO 16 SEU MÉ E DOUTOR BARBADO 17 A PRIMEIRA ESCOLA DE SAMBA 21 A REVOLUÇÃO DE 30 23 A MALANDRAGEM 26 O MICROFONE 28 A “REVOLUÇÃO” PAULISTA DE 32 30 O ESTADO NOVO 31 O MALANDRO REGENERADO 33 EIXO OU ALIADOS 38 A “EMBAIXATRIZ DA BOA VIZINHANÇA” 39 CAPÍTULO 2 - DE UMA RENÚNCIA À OUTRA ⎯ BENDITO VIOLÃO ⎯ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. PÓS-GUERRA ⎯ A “DOR DE COTOVELO” ⎯ PRÉ-BOSSA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ...NO MESMO LUGAR...ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O “PRESIDENTE BOSSA NOVA” ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O QUASE GOLPE ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O HOMEM QUE É UM VIOLÃO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. 50 ANOS EM 5 ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. BRASIL-EXPORTAÇÃO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. CANÇÃO DO AMOR DEMAIS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. CAPÍTULO 3 - DO PLEBISCITO À ANISTIA ⎯ MALDITA GUITARRA ⎯ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O NÃO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O YEAH-YEAH-YEAH! ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O MUITO PELO CONTRÁRIO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. AMBIENTE DE FESTIVAL ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O AI 5 ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. ...O SOL SE REPARTE EM CRIMES, ESPAÇONAVES, GUERRILHAS...ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. ESTE É UM PAÍS QUE VAI PRA FRENTE... 89 O DRIBLEERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. BACK IN BAHIA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. E NOVOS BAIANOS PASSEIAM... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.

Page 2: Brasil  século XX  aO PÉ DA LETRA DA CANÇÃO POPULAR

A MOSCA NA SOPA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. OUTROS NORDESTINOS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. O ROCK COM SOTAQUE PORTUGUÊS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. LENTA, GRADUAL E SEGURA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. AMPLA, GERAL E IRRESTRITA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. CAPÍTULO 4 - DO PLURIPARTIDARISMO ÀS DIRETAS ⎯ BENDITA GUITARRA ⎯ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. CAMISA AMARELA 116 A NOVA REPÚBLICA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. GERAÇÃO COCA-COLA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. A NOVA CONSTITUIÇÃO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. A REALIDADE E A IMAGEM ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. BRASIL, MOSTRA A TUA CARA 132 CAÍTULO 5 - ÚLTIMA DÉCADA DO SÉCULO XX ⎯ VÍDEO-CLIP ⎯ 134 FIM DA HISTÓRIA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. A QUESTÃO FUNDIÁRIA 139 O MAL DO SÉCULO 140 PANORAMA MUSICAL DO FINAL DO SÉCULO ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.1 GLOBALIZAÇÃO E INFORMÁTICA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.

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Brasil ⎯ século XX

Ao pé da letra da canção popular

PRA COMEÇO DE CONVERSA

Page 4: Brasil  século XX  aO PÉ DA LETRA DA CANÇÃO POPULAR

Este é um livro de História do Brasil. O Brasil do século XX. A narrativa utiliza como documento uma das mais expressivas manifestações culturais da nação brasileira: a sua música. A fonte de pesquisa vai dos primórdios da indústria fonográfica, com o gramofone, aos sofisticados CDs da era digital, passando pelo rádio e pela TV.

Não é um livro de história da música, embora esses livros constituam a quase totalidade da bibliografia. As páginas que tratarem de questões estéticas estarão subordinadas a uma questão maior: a História do Brasil.

Infelizmente, um número enorme de cantores e compositores de extremada relevância estética estarão ausentes das páginas deste livro. A prioridade foi selecionar canções que de alguma maneira registrem crônicas dos momentos da história brasileira no século XX.

O panorama do século será dividido em cinco períodos. O primeiro deles tem como centro a Revolução de 1930.

Explicaremos os trinta primeiros anos do século, auge e decadência do governo das oligarquias e os quinze anos subseqüentes até o fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, quando se solidifica a nacionalidade brasileira com importante contribuição do rádio de uma maneira geral e da música de modo especial.

O segundo período compreende os anos de 1945 a 1961⎯ da renúncia de Getúlio Vargas à de Jânio Quadros. O centro estético aqui é o movimento da Bossa nova, seus antecedentes e seu apogeu, durante o governo de Juscelino Kubitschek.

O terceiro período ⎯ o mais longo, não em tempo mas em número de páginas, porque nele, mais que em nenhum outro, a música foi fator determinante na demarcação das posturas ideológicas ⎯ vai desde a renúncia de Jânio Quadros (1961) até o decreto da anistia aos presos e exilados políticos (1979). Estudaremos a década de 60, com o cenário musical dividido em três: a “música de protesto”, a Jovem Guarda e o Tropicalismo. Na década de 70, a Contracultura e a resistência à censura.

O quarto período parte do pluripartidarismo, em 1980, passa pelo movimento pelas eleições diretas, em 1984, e vai até a eleição de Fernando Collor, em 1989. Foi a época da explosão do chamado “pop rock” nacional.

O quinto e último período do “impeachment” de Collor às duas eleições de Fernando Henrique Cardoso, momento de muitas tendências musicais, em que muito se tem falado sobre Globalização. O encerramento se dá com a canção de Gilberto Gil, Pela Internet, que fecha o ciclo do século estabelecendo intertextualidade com a canção Pelo telefone, uma das primeiras do livro.

Page 5: Brasil  século XX  aO PÉ DA LETRA DA CANÇÃO POPULAR

Da República Velha ao fim do Estado Novo

⎯ MALDITO VIOLÃO ⎯ O objetivo maior deste primeiro capítulo é explicar a formação

do sentimento de nacionalidade brasileira, explícito na produção musical. A Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, que pôs fim ao governo das oligarquias, marca o início dessa formação. Vamos remontar ao começo do século para entender melhor o processo.

Em 1889, a República foi proclamada por meio da união dos

cafeicultores (classe dominante), militares (classe média), comerciantes e banqueiros (burguesia). A partir daí, esses grupos passaram a disputar os rumos do novo sistema, cada qual pautado por seus próprios interesses, sobretudo no campo da economia.

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Os dois primeiros Presidentes da república foram militares. O segundo deles, marechal Floriano Peixoto (1891-1894) defendia uma política voltada para o desenvolvimento da industrialização. Seu sucessor, Prudente de Morais (1894-1898), entretanto enfrentou a oposição dos militares florianistas e consolidou os interesses agrícolas. Assim, as oligarquias viram seu auge nos primeiros anos do século que se iniciava. Era a “República dos Fazendeiros”.

São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba (Feitiço da Vila ⎯ Noel Rosa e

Vadico) O século XX começou com o governo de Campos Sales (1898-

1902), que promoveu uma política de valorização da moeda brasileira perante a libra esterlina, moeda de referência internacional ⎯ 1 libra valia 48 mil-réis e passou a 14 mil-réis. Assim, reduziram-se os preços dos produtos estrangeiros e muitas indústrias nacionais que não agüentaram a concorrência acabaram fechando ou diminuindo a produção. A crescente exportação de café, por outro lado, só fez valorizar. Era a hegemonia econômica das oligarquias agrícolas.

Nesse período, era evidente a ausência do sentimento de nacionalidade. Não havia partidos políticos de âmbito nacional. Cada estado possuía seus próprios partidos. Os mais poderosos estavam nos estados mais ricos: PRP (Partido Republicano Paulista) e PRM (Partido Republicano Mineiro), que detiveram o poder até a Revolução de 30. Foi a chamada “política do café-com-leite”.

Apesar de a concentração populacional estar no campo, cidades como São Paulo e Rio de Janeiro já começavam a mostrar características de metrópole.

A capital do Brasil era o Rio de Janeiro. Desde 1892, funcionava no Rio o estabelecimento comercial do imigrante europeu Frederico Figner, a Casa Edison ⎯ homenagem a Thomas Edison, o inventor do gramofone e do grafofone ⎯, importadora dos aparelhos sonoros e dos cilindros de cera, com música estrangeira em princípio e sede da primeira gravadora nacional, a Odeon, com as gravações dos fonogramas das vozes pioneiras dos cantores Cadete (Antônio da Costa Moreira); Bahiano (Manuel Pedro dos Santos) e, um pouco mais tarde, Eduardo das Neves. Fred Figner deu início à profissionalização da música popular no Brasil.

Manuel Pedro dos Santos, o Bahiano, nascido em Santo Amaro

da Purificação, em 1887, foi o primeiro cantor a se profissionalizar no Brasil. Foi ele o intérprete do que até o final do século XX se acreditava ser o primeiro samba gravado no país ⎯ Pelo telefone de autoria duvidosa, registrado por Donga e Almeida, em 1917, na gravadora Odeon. A própria Odeon já havia lançado de 1912 a 1914 Descascando o Pessoal e Urubu Malandro, entre outras músicas, qualificadas como samba em seu catálogo1 .

                                                                                                                         1 “História do Samba” da Editora Globo

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De 1903 a 1906, a capital do país teve como prefeito o

engenheiro Francisco Pereira Passos, que estudara em Paris e lá presenciara a grande reurbanização do século XIX. Suas idéias arquitetônicas vieram ao encontro dos anseios do novo Presidente. Rodrigues Alves (1902-1906), no discurso de posse, afirmou que seus objetivos eram: “atrair mais imigrantes, remodelar o porto do Rio de Janeiro e reurbanizar a cidade”.

Em um trecho da atual Avenida Presidente Vargas, entre a estação de trem Central do Brasil e o Trevo dos Pracinhas, havia a Cidade Nova, criada pela prefeitura para os moradores que tiveram de ceder o espaço urbano à corte portuguesa a partir de 1808. Com incentivos fiscais por parte da prefeitura, construíram-se ali grandes residências assobradadas. Nos meados do século XIX, as mansões e belas chácaras foram trocadas por casas na Zona Sul. Em virtude disso, muitas dessas vastas construções se transformaram em moradia coletiva (cortiços) da população de baixa renda.

Com a reforma de Pereira Passos, que desmontou o sistema habitacional do centro do Rio ⎯ abriu avenidas, como as de Paris, e demoliu habitações coletivas ⎯, a população proletária do centro foi empurrada para a Zona Norte. Uma grande parcela refugiou-se na Cidade Nova. É o início também da ocupação dos morros da região, entre eles, o Morro da Favela, cujo nome se expandiu para designar o complexo habitacional de barracões que desde então foi adotado.

A Bahia Estação Primeira do Brasil... ...Que alegria não ter sido em vão que ela expediu

As Ciatas pra trazerem o samba pro Rio Pois o mito surgiu dessa maneira...

(Onde o Rio é mais Baiano ⎯ Caetano Veloso) Na Cidade Nova, à Rua Visconde de Itaúna, 117, situava-se a

casa de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, a mais famosa das “tias” baianas ⎯ herdeiras das tradições culturais africanas encarregadas de transmiti-las às gerações futuras. O marido de Tia Ciata, o também negro e baiano João Batista da Silva, havia cursado medicina em Salvador e por conta da formação ocupava bons empregos e contava com respeito da polícia. A casa da Tia Ciata exalava a cultura africana: dança, culinária, cultos religiosos (candomblé) e ritmo. Pode ser considerada um dos berços do samba.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

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O fundo de quintal No início do século XX, o samba era apenas ritmo. Não havia

letras. Alguns anos antes, a partir de 1880, surgira um gênero totalmente instrumental, o choro. Os primeiros grupos de chorões foram formados pelo flautista Calado (Joaquim da Silva Calado), músico negro de excelente formação. A maioria dos músicos que cercavam Calado morava na Cidade Nova e tocava ritmos estrangeiros nos bailes e saraus elegantes. Em suas reuniões, a polka da Boêmia, o schottische teuto-escocês ou a walsa da Alemanha ou da França ganhavam um sotaque totalmente brasileiro. Era o choro. Criatividade e improviso. Suas origens brancas o tornavam aceitável pela elite e, por conseguinte, pela polícia, que não se incomodava com o som das rodas de choro que se ouvia nas salas das residências da Cidade Nova.

Quem passasse à porta da casa da Tia Ciata também ouviria a música dos salões. O choro, porém, funcionava como disfarce para que no fundo se fizesse samba. Como declara Pixinguinha: “O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado nos terreiros, pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas e o samba, só no quintal, para os empregados”2.

Outro braço da política urbanizadora de Rodrigues Alves foi o cientista Osvaldo Cruz, discípulo do eminente sanitarista do Instituto Pasteur, em Paris, Émili Roux.

A reforma de Pereira Passos intensificou ainda mais a miséria no Rio de Janeiro ⎯ falta de abrigo, aumento do desemprego e dos aluguéis. Com isso, as epidemias, freqüentes no Rio, passaram a ter um alvo preferencial: o pobre. Combater as epidemias se confundiu com combater os pobres, não a pobreza.

Decidido a atacar a varíola e a peste bubônica, Osvaldo Cruz ⎯ indicado por Pereira Passos ⎯ ganhou carta branca do Presidente. Criou, em março de 1903, um “esquadrão” que entrava deliberadamente nas residências para caçar ratos e pagava 300 réis por roedor.

...Mas assim mesmo ando cavando... Na minha gaita vou tocando

Rato, rato, rato, rato, rato, rato... (Rato, Rato ⎯ Casemiro Rocha)

Em outubro de 1904, o Congresso aprovou uma lei que tornava

obrigatória a vacina contra varíola. Era a gota d’água. A revolta popular estourou. Aproveitando-se dela, militares afastados do poder desde a ascensão de Prudente de Moraes sublevaram as Escolas Militares da Praia Vermelha e do Realengo. Foram reprimidos, povo e militares, de forma competente pelo governo. A vacinação foi suspensa, mas as Escolas Militares foram fechadas e a polícia fiel a Rodrigues Alves invadiu cortiços e favelas prendendo não só quem havia participado do levante, como também os “desocupados” em geral.

                                                                                                                         2 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo, Rio de Janeiro, Codecri, 1970, p.20.

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“Paz e amor” do início do século Seis anos depois, e por vias legais, os militares retornaram ao

poder. A posse do marechal Hermes da Fonseca, empossado em novembro de 1910, foi resultado da primeira cisão entre São Paulo e Minas Gerais. A política do “café-com-leite” se desgastava e as oligarquias rurais foram obrigadas a também conquistar o apoio do eleitorado urbano.

Antes do Marechal, os Presidentes Afonso Pena (1906-1909) e Nilo Peçanha (1909-1910) buscaram a preservação da política agrária. O primeiro assinou inclusive o “Convênio de Taubaté”, que transferia para o governo ⎯ e, portanto, para o povo ⎯ o prejuízo dos cafeicultores que, desde 1895, viam a produção cafeeira crescer mais que o consumo. Com a política de valorização do produto o governo passaria a comprar o excedente e para isso faria um empréstimo no valor de 15 milhões de libras.

Nilo Peçanha procurou montar um ministério conciliador e governar sob o lema “paz e amor”. Porém, foi ao final de seu mandato que São Paulo rejeitou a candidatura do militar Hermes da Fonseca, lançado pelo governo com apoio de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Para enfrentar a poderosa campanha, São Paulo e Bahia iniciaram a “Campanha Civilista” com o lançamento de Rui Barbosa. Foi a primeira eleição competitiva da República.

Há muito tempo nas águas da Guanabara O Dragão do Mar reapareceu (...)

Salve o Almirante Negro Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais... (Mestre Sala dos Mares ⎯ João Bosco e Aldir Blanc)

Além da Revolta da Vacina, ainda no governo de Rodrigues

Alves, outra revolta de características urbanas aconteceu dias depois da posse de Hermes da Fonseca, a Revolta das Chibatas. Chefiada pelo marinheiro João Cândido, a tripulação do navio Minas Gerais se rebelou contra os maus-tratos ⎯ regulamentados pela marinha do século XVIII: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira...”. O recrutamento dos marinheiros era forçado, feito entre “indivíduos de má conduta”.

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O episódio lembrou a Revolta dos Jangadeiros no Ceará (1881), liderada por Francisco Nascimento ⎯ o “Dragão do Mar”⎯, que pedia o fim da escravidão.

Apesar de Hermes da Fonseca assinar decreto que suspendia as

chibatadas e anistiava os rebeldes, os oficiais da marinha, cuja autoridade foi posta em dúvida, vingaram-se. João Cândido foi preso por seis dias, com mais 17 homens, em uma cela minúscula banhada com cal virgem. Apenas dois sobreviveram. O “Almirante Negro” ⎯ título dado pelo jornalista Gilberto Amado graças às manobras elegantes da esquadra comandada por João Cândido ⎯ foi um deles. Libertado em 1914, o gaúcho morreu de câncer em uma favela do Rio de Janeiro aos 89 anos.

Mesmo tendo sido eleita pelo PRM, a candidatura de Hermes da Fonseca contou com o apoio das oligarquias menores, como a gaúcha e a pernambucana. O responsável por essa articulação foi o político brasileiro de maior relevância entre os anos de 1905 e 1914, o gaúcho Pinheiro Machado. Os bajuladores que o cercavam eram conhecidos como os “pega na chaleira”:

Neste século de progresso nesta terra interesseira

tem feito grande sucesso o tal ‘pega na chaleira’

(Pega na Chaleira ⎯ Eduardo das Neves) Os militares que apoiavam o marechal Hermes ambicionavam

obter importantes cargos e controlar a política federal. Pinheiro Machado percebeu a ameaça às oligarquias e, em dezembro de 1910, fundou um partido de âmbito nacional, o Partido Republicano Conservador (PRC), presidido por Quintino Bocaiúva. A função do novo partido era apoiar o Presidente ao mesmo tempo que o afastava dos correligionários militares. Em 1912, Bocaiúva morreu e Machado passou a presidir oficialmente o PRC, cargo que, na prática, já ocupava desde a fundação.

Na articulação da sucessão a Hermes da Fonseca, Pinheiro Machado se lançou candidato pelo PRC. Rui Barbosa novamente saiu candidato, mas ambos acabaram desistindo diante do veto de São Paulo e Minas Gerais. PRP e PRM lançaram o vice de Hermes, o mineiro Wenceslau Braz, candidato único eleito em 1914.

Com o fim de seu mandato, Hermes da Fonseca, apelidado pelo povo de “Seu Dudu”, passou a ser muito satirizado por sua fama de azarão, agourento:

Se o Dudu sai a cavalo O cavalo logo empaca

Só começa a andar Ao ouvir o corta-jaca

Ó, Filomena, se eu fosse como tu Tirava a urucubaca da careca do Dudu

(Ó Filomena ⎯ Tradicional e J.C. Bulhões, na voz de Bahiano).

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A canção faz referência ao último sarau durante o governo do

marechal no Palácio do Catete, sede do poder federal. A primeira-dama era Nair de Teffé, filha do Barão de Teffé. Cartunista colaboradora de vários veículos à época, chamou a atenção quando no sarau executou ao violão o Corta-Jaca, um maxixe de Chiquinha Gonzaga. Violão e maxixe, uma mistura polêmica demais. Rui Barbosa, no Senado, chegou a atacar esse ritmo, que definiu como a mais vulgar e mais grosseira manifestação musical do Brasil.

O maxixe é uma das últimas evoluções do batuque africano antes do samba. O ritmo sofre influência da polca européia e da habanera. O compasso rápido dois por quatro acabou gerando a primeira dança urbana brasileira. Percebe-se também influência do tango hispano-americano, sobretudo na sensualidade. Os preceitos morais da época levaram a classificá-lo como “a dança proibida”.

A compositora Chiquinha Gonzaga sempre teve uma postura revolucionária, não só em estética, como também em política. Participou ativamente do movimento abolicionista e do movimento republicano. Chegou a vender partituras suas nas ruas para arrecadar fundos pela libertação dos escravos. Na música, ela freqüentava as rodas de chorões desde os primórdios levada por seu amigo, o flautista Calado. Foi a primeira mulher a compor músicas para óperas e peças teatrais e também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Promoveu a anexação de ritmos negros, como o lundu e o maxixe, a consagrados ritmos brancos como valsa, polca e música sacra. Chiquinha também gerou protestos ao levar uma orquestra de violões ao teatro.

Portar um violão dava cadeia, como revelou o compositor Donga ao pesquisador Hermínio Bello de Carvalho: “O Fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido”.

O período do governo de Wenceslau Braz (1914-1918) marca a consolidação do samba. Batuque era o nome genérico dado pelos europeus aos ritmos e danças africanos. Depois, como nos ensina Mário de Andrade em sua Pequena História da Música e Renato de Almeida em seu Compêndio de História da Música Brasileira, a música brasileira em sua formação vai sofrendo influências hispano-americanas, hispano-africanas, européias e outras3. Daí vêm o choro (música brasileira com matizes brancas), o maxixe (a “dança proibida”) e o samba.

O samba com sotaque português Além de tocarem nos fundos de quintais, os sambistas se

encontravam na festa de outubro, em comemoração à Natividade de Nossa Senhora, organizada pela comunidade portuguesa do Rio desde o final do século XVIII ⎯ a Festa da Penha. Logo, os negros foram se incorporando à festa e como não poderia deixar de ser, a mistura cultural fundiu cultos católicos ao candomblé, à capoeira ⎯ o

                                                                                                                         3 CAMPOS, Augusto, Balanço da Bossa e outras Bossas, São Paulo, Ed. Perspectiva, 4E (1986) p. 25

Page 12: Brasil  século XX  aO PÉ DA LETRA DA CANÇÃO POPULAR

sincretismo. Tia Ciata era uma das baianas que montavam suas barracas com comidas e bebidas. Sempre à espreita estava a polícia à procura de algum motivo para reprimir o sambista.

“Naquele tempo não tinha rádio. A gente ia lançar música na Festa da Penha. A gente ficava tranqüilo quando a música era divulgada lá, que aí estava bem, que era o grande centro”4, afirma o compositor e artista plástico de motivos carnavalescos Heitor dos Prazeres. Os fins de semana de outubro funcionavam como um “grito de carnaval”, uma prévia do que aconteceria em fevereiro. Organizavam-se ali concursos musicais com prêmios que elegeriam as músicas do próximo carnaval.

O gramofone e o telefone A Casa Edison, de Fred Figner, não fica indiferente a esse

movimento e começa a incorporar sambas e sambistas a seu elenco. O selo Odeon lançou, entre 1912 e 1914, Descascando o pessoal e urubu malandro, classificados como sambas no catálogo da gravadora. Entretanto, a história “oficial” acabou registrando o ano de 1917 como o marco na história fonográfica da maior expressão cultural popular brasileira.

Data deste ano a gravação daquele que é oficialmente considerado “o primeiro samba em disco”: Pelo telefone, na voz de Manuel Pedro dos Santos (Bahiano). A autoria é polêmica. A partitura foi inicialmente registrada na Biblioteca Nacional em novembro de 1916 em nome de Ernesto dos Santos, o Donga. Trata-se, entretanto, de uma criação coletiva, feita de improviso no quintal da Tia Ciata5. Havia vários autores e várias versões para a letra. Sabe-se que da cantoria participavam Tia Ciata, seu genro Mestre Germano, Hilário Jovino, Donga, João da Mata, Mauro de Almeida ⎯ que depois de muita briga teve reconhecida sua co-autoria ⎯ e o polêmico sambista Sinhô. As várias versões de letras ironizavam a atuação do novo chefe de polícia do Rio de Janeiro, Aurelino Leal, que em 20 de outubro de 1916 determinou que os policiais notificassem os infratores por telefone antes de proceder à fiscalização de supostos pontos de jogos de azar:

O chefe da polícia Pelo telefone

Mandou avisar Que na Carioca tem uma roleta Para se jogar

A letra registrada por Donga e considerada a oficial diz assim:

O chefe da folia Pelo telefone Manda avisar

                                                                                                                         4 “História do Samba” da Editora Globo 5 “História do Samba” da Editora Globo

Page 13: Brasil  século XX  aO PÉ DA LETRA DA CANÇÃO POPULAR

Que com alegria Não se questione Para se brincar

Testemunhos de freqüentadores da casa de Tia Ciata creditam o

arranjo ao piano de Sinhô, nome que inevitavelmente vem à tona na história do samba quando o assunto é direito autoral.

José Barbosa da Silva, o Sinhô ⎯ que com aval de seu amigo José do Patrocínio Filho se auto-intitulou “O Rei do Samba” ⎯ apresentava suas músicas nos concursos promovidos pela Festa da Penha. Era assíduo freqüentador do clube de dança Kananga do Japão, participou de vários espetáculos de teatro de revista e, graças à sua enorme vaidade, envolveu-se em diversas polêmicas musicais. A primeira delas foi na casa da baiana tia Ciata, da qual também era freqüentador, e acabou se tornando seu primeiro grande sucesso em 1918. Para agredir Hilário Jovino, Donga e China, irmão de Pixinguinha, Sinhô cantava:

A Bahia é boa terra Ela lá e eu aqui...

(Quem são eles ⎯ Sinhô)

Cada um dos acusados compôs uma réplica: Fica calmo que aparece (Donga); Não és tão falado assim (Hilário Jovino) e a resposta dos irmãos:

Ele é alto, magro e feio e desdentado

Ele fala do mundo inteiro e já vive avacalhado

no Rio de Janeiro (Já te digo – Pixinguinha e China)

Esse momento pode ser entendido como o início de um

processo de ruptura entre os compositores de samba. De um lado, aqueles que faziam samba como manifestação folclórica das tradições culturais africanas e de outro, sintetizados na figura de Sinhô, os sambistas urbanos que buscavam a profissionalização6.

Sinhô foi um dos grandes vitoriosos dos concursos da Festa da Penha e tinha como principais adversários José Luiz de Moraes, o Caninha, e Heitor dos Prazeres. Além das farpas musicais que trocavam, Sinhô era acusado pelos dois de se apropriar de algumas composições. Certa vez, diante da acusação de Heitor ⎯ respeitado dançarino de samba e jogador de capoeira ⎯, Sinhô pronunciou a frase que entrou para a história: “Esse samba eu peguei no ar, Heitor.

                                                                                                                         6 ENCICLOPÉDIA da Música Brasileira: popular, erudita e folclórica – 2.ed. – São Paulo: Art. Editora: Publifolha, 1998.

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E samba é como passarinho. É de quem pegar". Paradoxalmente, Sinhô é pioneiro na exigência de reconhecimento de direitos autorais sobre suas partituras e discos.

Primeira Guerra Mundial A guerra de 1914 a 1918, justamente o período do governo de

Wenceslau Braz, afetou sensivelmente a economia brasileira. Aumentou a carestia, o desemprego cresceu e caíram os salários. Em contrapartida, as operações militares no Atlântico reduziram bastante as importações. Intensificou-se assim a indústria brasileira com a produção de inúmeros produtos antes importados. Ainda que secundário, o setor industrial já não podia mais ser ignorado pelo governo, que ainda era controlado pelas oligarquias agrícolas.

A modesta participação do Brasil na guerra ⎯ o envio à Europa de uma divisão naval e um corpo de saúde ⎯ inspirou Eduardo das Neves:

Cobriu de luto, de tristeza e dor Findou-se a guerra que o universo inteiro

Com ela (...) guerreiro Imperador e ser imperador

Quarenta anos, trabalho idiota Para sofrer a colossal derrota

(Fim de guerra ⎯ Eduardo das Neves) A sucessão de Wenceslau Braz foi preparada dentro do mais

perfeito esquema “café-com-leite”: Um paulista para Presidente e um mineiro para vice. Respectivamente, Rodrigues Alves ⎯ o único Presidente da República Velha a ser eleito duas vezes ⎯ e Delfim Moreira. O Presidente eleito não chegou sequer a tomar posse. Muito doente, morreu em 1919. O vice governou interinamente até que se escolhesse um novo Presidente. Desde Prudente de Morais, todos os Presidentes eram paulistas ou mineiros. A única exceção havia sido o alagoano Hermes da Fonseca. Agora, as oligarquias acabaram indicando o paraibano Epitácio Pessoa, chefe da delegação brasileira na conferência de Paz de Versalhes. Pela oposição, mais uma vez o baiano Rui Barbosa lançou-se candidato, mas, de volta da França, Epitácio tomou posse em 28 de julho de 1919.

A nova derrota de Rui Barbosa o deixou muito abatido e ele acabou se recolhendo a um longo silêncio. Foi o mote para que Sinhô compusesse um samba de partido alto, conforme o catálogo: Fala meu louro, gravado no primeiro disco de Francisco Alves. O outro lado do disco era O pé de anjo, também de Sinhô. O “rei do samba” lançava um cantor que posteriormente viria a ser considerado o “rei da voz”. A canção faz alusão às qualidades de tribuno de Rui Barbosa (bico dourado), à sua eminência intelectual (coco de respeito), satiriza-o politicamente (embrulhar o carioca) e questiona o silêncio, na depressão após a nova derrota eleitoral (Qual a razão que vives calado?).

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FALA MEU LOURO A Bahia não dá mais coco

Para botar na tapioca Pra fazer o bom mingau

Para embrulhar o carioca

Papagaio louro do bico dourado Tu falavas tanto

Qual a razão que vives calado?

Não tenhas medo Coco de respeito

Quem quer se fazer não pode Quem é bom já nasce feito

O começo do fim da República Velha A crescente industrialização do Brasil foi a mais significativa de

uma série de mudanças socioeconômicas lentas mas intensas que o Brasil sofreu ao longo de toda a República Velha.

ANO

NÚMERODE FÁBRICAS

NÚMERODE OPERÁRIOS

1889 1907 1914 1920 1930

900 3120 7430 13430 18800

54200 149000 154000 275000 450000

De 1889 (14 milhões de habitantes) a 1930 (37 milhões), a

população brasileira cresceu 164%. O perfil demográfico do Brasil mudou bastante também, pois o aumento da população do Sul do país (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) foi de 275%.

A produção para o mercado interno cresceu muito mais que a exportação. A indústria crescia mais rapidamente que a agricultura. A maioria das fábricas era de têxteis e alimentos e 55% delas concentravam-se em São Paulo e no Rio de Janeiro; Porto Alegre e Belo Horizonte ocupavam posição secundária. O governo federal era controlado pelos agricultores, sobretudo os cafeicultores. Com isso, a exportação era a prioridade nas grandes decisões. O setor da classe dominante agrária voltado para o consumo interno formava as chamadas oligarquias dissidentes.

A população urbana ainda era menor que a rural, mas algumas cidades cresceram e viram, além do desenvolvimento industrial, o de atividades comerciais, bancárias, serviços urbanos em geral e

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transportes. A rede ferroviária passou de 8 000 km, no início da República, para 32 000 km em 1930.

A sociedade urbana era formada pela burguesia industrial e financeira, pela classe média e pelo operariado.

Os imigrantes constituíam grande e importante parcela do operariado. Com os estrangeiros vieram as idéias anarquistas e socialistas e as reivindicações trabalhistas. Houve várias greves operárias entre 1891 e 1930, como a greve geral em São Paulo, em 1917, que durou mais de uma semana e foi violentamente reprimida. Em 1922, foi fundado o PCB (Partido Comunista do Brasil), inspirado na Revolução Bolchevique, de 1917, e na III Internacional de Lenin em Moscou (1919) ⎯ tal encontro consagrou o termo marxismo-leninismo e fez eclodir diversos partidos comunistas pelo mundo todo.

O rádio Além da Fundação do Partido Comunista, vários outros

acontecimentos merecem registro no ano de 1922, como, por exemplo, a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, também fruto de idéias estrangeiras em estética, trazidas da Europa por jovens intelectuais, os modernistas. Em apenas três dias agitaram intensamente a cultura brasileira. A preocupação dos modernistas neste momento foi romper com o passado e absorver as tendências vanguardistas da Europa. Com o Manifesto Pau Brasil de 1924, o movimento modernista se dedicou a “descobrir o Brasil”, buscar a identidade nacional brasileira.

Aos 7 de setembro de 1922, realizou-se a Exposição Internacional para comemorar o centenário da Independência. O discurso de abertura do Presidente Epitácio Pessoa inaugurou, em transmissão experimental, a radiodifusão no Brasil. Era o início do rádio que em breve se tornaria o maior meio de comunicação do país até o advento da televisão na segunda metade do século.

A radiocomunicação, possibilidade ⎯ descoberta pelo italiano Guglielmo Marconi e aperfeiçoada por vários outros inventores ⎯ de transmissão através do espaço de ondas eletromagnéticas capazes de produzir sons, começou no Brasil como brincadeira, como nos ensina José Ramos Tinhorão:

“Do momento em que a notícia dessa fabulosa possibilidade de transmitir os sons pelo espaço espalhou-se pelo país, começaram a surgir dezenas de curiosos resolvidos a praticar a radiodifusão como mais uma diversão tecnológica. Esse espírito de brinquedo e curiosidade de amadores ia revelar-se, desde logo, na organização de tais experiências com caráter de clubes, ⎯ os famosos radioclubes que acabariam dando nome a tantas emissoras de todo o Brasil.”7

Oficialmente, o rádio começou durante a exposição do centenário da Independência. As companhias norte-americanas Westinghouse e Western Eletric montaram estações no Corcovado e

                                                                                                                         7 TINHORÃO, José Ramos, Música Popular ⎯ do Gramofone ao Rádio e TV, São Paulo, Editora Ática, 1981

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na Praia Vermelha, respectivamente. Transmitiam, em caráter experimental, óperas, discursos políticos e palestras educativas.

Educação foi justamente a principal motivação da criação da primeira radiodifusora permanente no Brasil. Edgard Roquete-Pinto, médico, antropólogo e educador, deslumbrou-se com a invenção do rádio e logo a concebeu como instrumento educativo. Fundou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 20 de abril de 1923. Foi o estopim para que no mesmo ano fossem fundadas a Rádio Clube do Paraná e a Rádio Educadora Paulista. A segunda emissora carioca, a Rádio Clube do Brasil, veio em 1924 e daí em diante todo o espaço aéreo brasileiro passou a ser ocupado.

Seu Mé e Doutor Barbado O ano de 1922 marca também a atribulada sucessão de Epitácio

Pessoa, na segunda eleição efetivamente competitiva da Primeira República ⎯ a primeira fora a Campanha Civilista, em 1910, na primeira candidatura de Rui Barbosa. A eleição ocorreu no mês de março. Paulistas e mineiros indicaram o mineiro Artur Bernardes. A oposição, formada por Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro ⎯ estados intermediários ⎯, indicou Nilo Peçanha. Era a Reação Republicana.

O poder dominante prevaleceu, como sempre ocorreu no período, e Artur Bernardes foi eleito. Isso não significa que o processo tenha sido tranqüilo. Eventos violentos marcaram a sucessão.

A imprensa havia publicado uma série de cartas, cuja autoria era atribuída a Bernardes. Nelas, os militares eram alvo de ofensas. O marechal Hermes da Fonseca era denominado, entre outras coisas, de “sargentão sem compostura”. Foi o chamado episódio das “cartas falsas”.

A partir da Primeira Guerra Mundial, um movimento de militares liderado por jovens oficiais de baixa patente, com a participação de suboficiais, sargentos e cadetes, já vinha protestando inicialmente contra o abandono do exército. Posteriormente, além da questão militar, o movimento ganhou cunho político, reivindicando reformas políticas e sociais. Trata-se do chamado Tenentismo.

A revolta contra as “cartas falsas” foi tão grande que Epitácio Pessoa acabou fechando o Clube Militar ao enquadrá-lo em uma lei destinada a fechar associações de anarquistas e prostíbulos. Entre os tenentistas já se falava em revolução.

A primeira rebelião tenentista aconteceu logo após a eleição de Artur Bernardes. Foi a Revolta do Forte de Copacabana. Os líderes do movimento foram o capitão Euclides Hermes (filho do marechal Hermes) e o tenente Siqueira Campos. O capitão Euclides foi negociar com o Ministro da Guerra e acabou preso. Siqueira Campos decidiu que os rebeldes iriam sair da fortaleza e enfrentar as forças fiéis ao governo. Dos 301 militares rebeldes, a maioria se debandou logo à saída e apenas 18 marcharam pela Avenida Atlântica ⎯ os “18 do Forte” ⎯ e contaram com a adesão de um civil, o engenheiro Otávio

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Correia, para enfrentar os 3 mil soldados do governo. Ao tiroteio sobreviveram apenas os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes.

A música também testemunhou a sucessão de Epitácio Pessoa. Em 1921, uma marcha carnavalesca atacava Artur Bernardes, que tinha o apelido de “Seu Mé”: Ai, Seu Mé

Ai, Seu Mé Lá no Palácio das Águias

Olé Não hás de pôr o pé

Os autores, Freire Jr. e Careca, chegaram a ser presos. Em 22,

após a vitória de Bernardes, a letra da canção foi devidamente retificada e gravada em disco na voz de Francisco Alves:

Ai, Seu Mé Ai, Seu Mé

Se não fosse a Santa Cruz Olê-ré

Tu não tomavas pé Num período de quatro anos, Artur Bernardes governou quase

que totalmente sob estado de sítio. O Presidente agiu contra os políticos que se opuseram à sua candidatura, principalmente os ligados aos governadores Nilo Peçanha (RJ), José Joaquim Seabra (BA) e Borges de Medeiros (RS). Este último fora o grande articulador da Reação Republicana.

Em janeiro de 1923, depois de o governador gaúcho anunciar que vencera pela quinta vez as eleições, eclodiu no Rio Grande uma “revolução”, liderada por Joaquim Francisco de Assis Brasil. A favor do governo de Borges de Medeiros, enfileiravam-se alguns nomes de que a história futura do Brasil ainda ouviria falar: Flores da Cunha, Osvaldo Aranha e... Getúlio Vargas.

O conflito durou 10 meses e computou mais de mil mortes. O Presidente Artur Bernardes, apesar das tentativas de Assis

Brasil em convencê-lo a não reconhecer a vitória de Borges de Medeiros, sabia que uma intervenção no Rio Grande do Sul seria muito arriscada. Fez o contrário, aliou-se ao governador e forçou a bancada gaúcha a apoiar uma intervenção federal no Rio de Janeiro para derrubar Nilo Peçanha. Além disso, articulou-se uma reforma na Constituição Estadual proibindo a reeleição.

Em 1924, eclodiu a “Revolução Paulista”, sob a liderança do general Isidoro Dias Lopes. Em poucos dias os rebeldes tomaram São Paulo. O movimento contou com o apoio popular. Os operários queriam ser armados e participar da luta. Proposta rejeitada pelo general Lopes.

Depois do cerco do governo e do bombardeio com artilharia pesada, 6 mil rebeldes se retiraram em direção ao Mato Grosso e desceram o Rio Paraná. Essa foi a Coluna Paulista que permaneceu em Foz do Iguaçu de outubro de 1924 a abril de 1925.

No sul, a Coluna Riograndense, organizada pelo capitão Luís Carlos Prestes, pretendia insuflar a revolta nos quartéis e pôr fim ao pacto feito entre Artur Bernardes e Borges de Medeiros, ao final da

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“Revolução de 1923”. Desde dezembro de 1924, os rebeldes gaúchos receberam a instrução de que deveriam juntar-se aos paulistas.

A união dos rebeldes no Paraná, em 11 de abril, formou a Coluna Miguel Costa⎯Prestes, ou simplesmente, Coluna Prestes.

De abril de 1925 a fevereiro de 1927, a Coluna Prestes percorreu cerca de 25 mil quilômetros por praticamente todos os estados do Brasil com a intenção de propagar o ideal revolucionário. Apesar de não ter alcançado seu objetivo, o movimento jamais foi vencido em nenhuma das 20 batalhas contra as tropas do governo. Dos 1 500 homens que iniciaram o percurso, apenas 620 sobreviveram e se asilaram na Bolívia.

Poucos meses antes do refúgio de Prestes e seus homens, Artur Bernardes passou a faixa presidencial ao fluminense, da cidade de Macaé, Washington Luís, do PRP. Sete anos antes, em 1919, um congressista gaúcho enviara uma carta a Borges de Medeiros alertando para uma articulação de Artur Bernardes e Washington Luís, na época, governadores de Minas Gerais e São Paulo, respectivamente. A carta já anunciava a articulação de um revezamento entre ambos na Presidência da República.

Logo que tomou posse, Washington Luís suspendeu o estado de sítio. Havia a expectativa de que o próximo passo seria a anistia aos rebeldes de 22, 23, 24 e 25. Porém, a lealdade do Presidente ao governo anterior o impediu de perdoar aos revoltosos.

Em retribuição a Borges de Medeiros, que dessa vez não se opôs à candidatura de Washington Luís, o Presidente nomeou o deputado gaúcho Getúlio Vargas seu Ministro da Fazenda, cargo que ocupou de dezembro de 1926 a janeiro de 1928, quando se tornou Governador do Rio Grande do Sul.

Além de não aprovar a anistia, em 1927, foi aprovado um projeto de Aníbal de Toledo, apelidado de “Lei Celerada”, que restringia a liberdade de pensamento e expressão. Aqui começou, no Brasil, a “indústria do anticomunismo” ⎯ todo inimigo do governo é genericamente acusado de ser comunista, mesmo que jamais tenha defendido tal ideologia. Mais tarde, em 1937, Getúlio Vargas iria se valer desse mesmo discurso para decretar o Estado Novo.

Uma das marcas da administração de Washington Luís foi o lema “governar é abrir estradas”. O Presidente fez as rodovias Rio⎯Santos e Rio⎯Petrópolis.

A prioridade do governo Washington Luís foi a estabilização cambial e dos preços. Desde seu governo em São Paulo planejava uma reforma monetária assim como a do Presidente francês, Poincaré. Proibiu a emissão do dinheiro sem lastro em ouro, desvalorizou o mil-réis ⎯ 27 dinheiros por mil-réis passou a ser 6 dinheiros por mil-réis ⎯ e nomeou a nova moeda de “cruzeiro”.

Para pôr em prática o padrão ouro, os cofres nacionais precisavam de 30 milhões de libras. Fez-se, para isso, um empréstimo: 8 milhões de libras da Inglaterra e 41 milhões de dólares dos EUA.

As mudanças, embora aumentassem o custo de vida, foram bem aceitas pelos cafeicultores, pelos pecuaristas e industriais. Contudo, a Crise de 1929 desencadeada pelo “crash” da bolsa de Nova Iorque ⎯

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a superprodução de mercadorias causou falências, desemprego ⎯ fez com que os banqueiros estrangeiros pedissem de volta o dinheiro emprestado. Além disso, países como o Brasil, que viviam da exportação de matéria-prima foram bastante atingidos.

Ainda em 1929, o compositor Eduardo Souto satirizava Washington Luís ⎯ nascido no Estado do Rio, mas governador de São Paulo, pelo PRP ⎯ sua política de fazer estradas e a nova moeda, o cruzeiro ⎯ É Sim Senhor , na voz de Chico Alves:

Ele é Paulista? É sim senhor Falsificado? É sim senhor

Cabra farrista? É sim senhor Matriculado? É sim senhor

Ele é estradeiro? É sim senhor Habilitado? É sim senhor

Mas o cruzeiro? É sim senhor Ovo Gorado É sim senhor

Contrariando as expectativas do Pacto de Ouro Fino ⎯ que

estabelecia o revezamento no poder entre PRP e PRM, desde a eleição de Wenceslau Braz, em 1914 ⎯ Washington Luís, do PRP, não lançou a candidatura do governador de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada.

Para poder dar continuidade a sua política financeira, o Presidente precisava do apoio do PRP no Congresso, para a aprovação de suas medidas. Dessa forma, Washington Luís lançou a candidatura de Júlio Prestes, governador de São Paulo.

Em resposta, o governador de Minas Gerais, em julho de 1929, enviou um emissário para uma reunião com o líder da bancada gaúcha, João Neves. Informou que apoiaria Getúlio Vargas ou Borges de Medeiros para a Presidência da República. Dias depois, Getúlio Vargas mandou uma correspondência a Washington Luís comunicando-lhe a proposta de Minas Gerais. O Presidente respondeu que todos os governadores, com exceção de Antônio Carlos (MG), Getúlio Vargas (RS) e João Pessoa (PB), já haviam apoiado a candidatura Prestes.

Em setembro de 1929, formou-se a Aliança Liberal ⎯ Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba ⎯, que lançava Vargas para a presidência e , para vice, João Pessoa, governador paraibano e irmão de Epitácio Pessoa.

Para o carnaval de 1930, Eduardo Souto compôs a marchinha É Sopa, é sopa ⎯ gravada por Francisco Alves ⎯ , que falava dos candidatos à Presidência, em clima de partida de futebol:

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...Pra vencer o combinado Brasileiro Diz Getulinho

É sopa, é sopa, é sopa Paraibano, com gaúcho e com mineiro

Diz o Julinho É sopa, é sopa, é sopa...

A campanha de Getúlio Vargas foi inovadora. Até então os

discursos eram lidos pelos candidatos em banquetes para as elites políticas. Getúlio se comprometera com o Presidente a não sair do Rio Grande do Sul em campanha, mas a plataforma eleitoral da Aliança Liberal foi defendida em palanque para um agrupamento que se formou a fim de ouvir o discurso de Vargas no Rio de Janeiro. Propunha voto secreto, anistia aos rebeldes de 22 e 24 ⎯ para atrair a oposição paulista ⎯ e uma política trabalhista.

Todo o apelo popular ⎯ prenúncio do que estava em breve por vir ⎯ foi inútil. As eleições coincidiram com o primeiro dia de carnaval, em 1º de março de 1930, e Júlio Prestes venceu.

O samba de Sinhô, Eu ouço falar (“Seu Julinho”) ⎯ em resposta ao de Eduardo Souto, já citado, É sim senhor ⎯ ambos gravados pelo “Rei da Voz”, Francisco Alves ⎯ foi outro sucesso nesse carnaval:

Eu ouço falar Que para nosso bem

Jesus designou Que seu Julinho é que vem ...

A primeira Escola de Samba As críticas políticas e sociais nas músicas de carnaval já são

bastante freqüentes desde Eduardo das Neves, o Palhaço Dudu, cronista pioneiro da Casa Edison, passando por nomes de destaque, como Sinhô e o paulista Eduardo Souto. Além da voz de Francisco Alves.

Segundo o verbete carnaval da Enciclopédia de Música Brasileira, trata-se de uma “festa popular, de caráter coletivo, geralmente considerada como reminiscência das festas pagãs greco-romanas realizadas a 17 de dezembro (Saturnais) e 15 de fevereiro (Lupercais), quando se comemoravam as colheitas, comendo e bebendo desbragadamente, e se permitia inclusive aos escravos usar máscaras.”8

Começou no Brasil trazido pelos portugueses, na comemoração do entrudo (de introitus, “começo, entrada”), que festejava a entrada da primavera e abria as solenidades litúrgicas da Quaresma, período de abstinência de carne ⎯ palavra que designa o nome carnaval.

                                                                                                                         8 ENCICLOPÉDIA da Música Brasileira: popular, erudita e folclórica – 2.ed. – São Paulo: Art. Editora: Publifolha, 1998

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O entrudo era uma festa de rua, barulhenta e suja e, por vezes, violenta. A tradição portuguesa reproduzia um costume da região do Minho, segundo o qual homens tocavam zabombas à frente das festas e procissões da Igreja. Daí vem o mito do Zé Pereira no carnaval carioca. O nome provavelmente é uma variação de Zé Nogueira, inspirado no português José Nogueira de Azevedo Paredes, que se destacou tocando bombo nas ruas, no carnaval de 1850. Passaram a se chamar “zé-pereiras” os foliões que, em bloco ou sozinhos, tocam bombos e zabombas na festa de rua. Desde 1930, a cantiga E viva o zé-pereira/ Pois a ninguém faz mal/ E viva a bebedeira/ Nos dias de carnaval é música obrigatória na abertura dos bailes de carnaval.

A partir da segunda metade do século XIX, o entrudo nas ruas passou a conviver com o carnaval à moda européia ⎯ bailes de máscaras em teatros e clubes. Além disso, o escritor José de Alencar começou, em 1854, a patrocinar desfiles de carros alegóricos. No entrudo, camadas mais pobres ou de classe média, ao lado dos negros, dançavam ao som de instrumentos de percussão e cantavam curtas quadrinhas de autores anônimos. Nos salões, os bailes eram animados por bandas que tocavam os ritmos europeus da época, como polca, xótis, valsa e mazurca.

Aos poucos, os foliões foram se organizando em clubes e sociedades ⎯ que congregavam os mais ricos e promoviam bailes e luxuosos desfiles de carros alegóricos ⎯, cordões ⎯ que saíam às ruas e nos quais conviviam diferentes classes sociais ⎯ e ranchos e blocos ⎯ que também ganhavam as ruas, compostos pelas classes mais populares.

A primeira música feita exclusivamente para o carnaval é Ô Abre-alas, composta em 1899 por Chiquinha Gonzaga para o Cordão Rosa de Ouro.

Sinhô também pode ser considerado um pioneiro na mistura de classes sociais no carnaval. Um primeiro passo rumo à concepção atual dos desfiles de escolas de samba ⎯ marca internacional do carnaval brasileiro ⎯, que incorporam o luxo dos carros alegóricos dos ricos à dança, ao ritmo e ao canto do carnaval dos pobres.

Entre os anos 10 e 20 do século XX, o samba foi aos poucos se definindo, junto com a marcha, como o ritmo preferencial no carnaval. Letras muitas vezes recheadas de sátiras políticas e sociais. Além das partituras para que bandas executassem os sambas, os discos já contribuíam bastante com a divulgação do gênero. Sinhô é o primeiro sambista de que se tem notícia que pagou para que as bandas executassem sambas seus várias vezes. Sua música transitou das favelas aos palacetes e ele compôs sambas tanto para os clubes elegantes como para os blocos populares. No mesmo caminho seguiram Pixinguinha, Donga e o restante dOs Oito Batutas ⎯ conjunto de músicos refinados de música brasileira (choro, lundu, cateretê, samba) que, após tocar e impressionar nos finos clubes, chegou a excursionar por Paris e pela Argentina financiado pelo milionário Arnaldo Guinle. A opinião brasileira se dividiu entre os orgulhosos e os envergonhados em ver aquela música negra representando o país no exterior.

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O samba a essa época era ainda muito próximo do maxixe e mais apropriado para a dança de salão, a dois. A necessidade de uma música que orientasse os desfiles pelas ruas, com mais dança do que marcha, foi a grande responsável pela primeira revolução no samba, que o distinguiu de todos os ritmos ancestrais.

A solução estava no aperfeiçoamento dos instrumentos de percussão: surdo e tamborim. Credita-se a Alcebíades Barcelos, o Bide, a invenção do surdo. Bide também já tocava tamborim desde criança. Os dois instrumentos foram fundamentais para fazer a marcação. O desfile precisava caminhar organizado, com ginga, jogo de cintura e não somente marcha. A novidade, desde “Pelo telefone”, começou a aparecer com um movimento envolvendo os compositores do bairro do Estácio.

“A gente precisava de um samba para movimentar os braços para a frente e para trás. A gente precisava de um samba para sambar.”9 A definição é de Ismael Silva, comandante do “corpo docente” ⎯ Heitor dos Prazeres, Bide, Armando Marçal, Nilton Bastos e outros ⎯ da primeira escola de samba do Brasil: a Escola de Samba Deixa Falar, fundada em 12 de agosto de 1928. O termo escola é inspirado por uma Escola Normal que funcionava no Largo do Estácio, próximo à sede da Deixa Falar. A Escola Normal formava professores. A Escola de Samba iria formar professores de samba.

O nome Deixa Falar já refletia a rivalidade entre os grupos de samba. Já não se tratava somente de brincar o carnaval. O negócio estava ficando sério.

A novidade logo foi imitada e tanto a designação Escola de Samba, quanto a solução rítmica, surdo e tamborim, espalharam-se por blocos do Rio de Janeiro. Inclusive em São Paulo, os blocos carnavalescos ⎯ fundados por ex-escravos saídos do Rio, em bairros de imigrantes operários, como Barra Funda, Bela Vista e Lavapés ⎯ começaram a mudar o nome para escolas de samba.

Sinhô morria em 1930 e com ele, o samba bem amaxixado do início do século. Evoluir sem renegar as raízes. Desde o primeiro desfile da Deixa Falar, Ismael Silva exigiu que se formasse uma “ala das baianas”. Até hoje obrigatória em qualquer escola de samba, a ala das baianas impede que se esqueçam as origens afro-baianas do samba.

A invenção de Ismael Silva e seus companheiros do Estácio influiria decisivamente na fixação do samba. Importantes sambistas urbanos a partir da década de 30, como Ari Barroso e Noel Rosa iriam abandonar o estilo de Sinhô e aderir ao de Ismael.

A Revolução de 30 Não era apenas no samba que se processava uma revolução ao

fim dos primeiros trinta anos do século XX.

                                                                                                                         9 “História do Samba” da Editora Globo

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Apesar de, aparentemente, a Aliança Liberal se conformar com o resultado, os getulistas acusaram o governo federal de fraudar as eleições e começaram uma conspiração discreta.

Contribuiu para alimentar o clima de golpe de Estado o fato de Washington Luís proceder a uma perseguição aos políticos mineiros e paraibanos que se opuseram à candidatura Júlio Prestes. A classe média urbana, à espera de reformas, passou a defender uma solução armada.

O estopim da revolução foi o assassinato do governador paraibano João Pessoa. Na intenção de punir seu ex-aliado, o “coroné” José Pereira, o governador bloqueou a fronteira entre a Paraíba e Pernambuco, proibindo que os moradores da região da cidade de Princesa (hoje Princesa Isabel, no sul do Estado), chefiada por Pereira, comercializassem com Recife, salvo o pagamento de elevado imposto.

A questão se transformou em guerra civil e não contou com qualquer intervenção do governo federal. No dia 26 de julho de 1930, João Pessoa viajou até Recife. Enquanto tomava chá com políticos e amigos em uma confeitaria, o advogado João Dantas entrou, aproximou-se de sua mesa e disse: “Sou João Dantas, a quem tanto humilhastes e maltratrastes”. Disparou-lhe três tiros à queima roupa.

Para vingar-se do apoio que o advogado paraibano deu a José Pereira, os aliados de João Pessoa publicaram cartas que Dantas enviara para sua amante, Anaíde Beiriz. A professora primária caiu em desgraça e Dantas fugiu para Recife.

Mais uma vez, Eduardo Souto, em parceria com Oswaldo Santiago, fez a história em verso e canção. O Hino a João Pessoa foi registrado em disco na voz de Francisco Alves:

João Pessoa, João Pessoa Bravo filho do sertão

Toda a Pátria espera um dia A tua ressurreição

João Pessoa, João Pessoa

O teu vulto varonil Vive ainda, vive ainda No coração do Brasil

João Pessoa era contra a luta armada para impedir Júlio Prestes

de governar, mas, ironicamente, seu assassinato foi o pretexto ⎯ já que o governo federal nada fez para solucionar o conflito na Paraíba ⎯ para que os políticos ligados à Aliança Liberal ⎯ liderados por Getúlio Vargas ⎯ e os tenentistas derrubassem o Presidente. Em meio à comoção popular, começou um levante em 3 de outubro. No dia 31, Getúlio Vargas entrou triunfante no Rio de Janeiro. Chegava ao fim a política do “café-com-leite”.

Lamartine Babo compôs e Almirante gravou O Barbado foi-se. “Dr. Barbado” era o apelido de Washington Luís:

De sul a norte todos viram a intrepidez De um Brasil heróico e forte

A raiar no dia três

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A Paraíba, terra santa, terra boa Finalmente está vingada

Salve o grande João Pessoa

Dr. Barbado foi-se embora, deu o fora Não volta mais, não volta mais...

Em 3 de novembro de 1930, Vargas tomou posse do governo

“provisório”. Mesmo que a Revolução ⎯ ou contra-revolução como ele gostava de chamar ⎯ não tenha sido de caráter militar, ficou claro que com ela os militares, que conspiravam desde a queda de Floriano Peixoto, reconquistaram o poder. Notadamente os tenentistas.

Logo que assumiu o cargo de Presidente, Getúlio anistiou os rebeldes de 22 e 24; criou os ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Saúde e Educação; modificou o sistema eleitoral; fechou o Congresso Nacional e as Assembléias Estaduais e, com exceção de Minas Gerais, nomeou interventores federais nos estados ⎯ a maioria do movimento tenentista.

Mais tarde, a música de maior sucesso do carnaval de 32 faria uma alusão à política dos interventores (Fui nomeado teu tenente interventor). Teu cabelo não nega, composta por Lamartine Babo, em adaptação da marcha Mulata, dos Irmãos Valença, que, depois de uma disputa judicial, passaram a assinar a canção em parceria com Lamartine. A gravação foi de Castro Barbosa:

O teu cabelo não nega, mulata Porque és mulata na cor

Mas como a cor não pega, mulata Mulata, eu quero o teu amor

Tens o sabor

Bem do Brasil Tens a alma cor de anil

Mulata, mulatinha, meu amor Fui nomeado teu tenente interventor...

Durante o governo Getúlio, os novos grupos dominantes

adotaram o chamado populismo como linha política. Ou seja, a elite passou a fazer concessões ao povo, mas apenas até um limite que ela mesmo estabelecia.

Atendendo a reivindicações, oficializou-se a Previdência Social e legalizaram-se os sindicatos. Em contrapartida, a maioria das greves foi declarada ilegal.

Para desmotivar possíveis protestos, o novo governo concedeu várias vantagens trabalhistas, tais como: jornada de trabalho de 8 horas diárias, salário mínimo, férias pagas, proteção ao trabalho infantil e feminino, etc.

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Eu fui fazer um samba em homenagem

À nata da malandragem Que eu conheço de outros carnavais

(Homenagem ao malandro ⎯ Chico Buarque) Como se percebe, as reformas do novo governo vêm atender às

demandas de uma população urbana, sempre colocada em plano secundário pela “República dos fazendeiros” vigente até então. Eram especialmente contemplados os operários da indústria.

Trabalho não era exatamente o tema preferencial das letras do novo samba que estava nascendo no Estácio. O primeiro samba gravado em disco nesse ritmo, já completamente dissociado do maxixe, foi A malandragem, de Bide e Armando Marçal.

O Brasil já não era um país exclusivamente agrário. A principal cidade, capital do país, era o Rio de Janeiro. E estava ganhando contornos definidos no Distrito Federal a figura-síntese do brasileiro urbano: o malandro. E era preferencialmente nos morros que o samba da malandragem era produzido.

O samba original não tinha ligação com o morro, porém foi lá que ele se desenvolveu. O morro foi o refúgio dos sambistas e do samba. João da Baiana, em depoimento, diz que “O samba saiu da cidade. Nós fugíamos da polícia e íamos para os morros para fazer samba. Não havia essas favelas todas. Existiam a Favela dos Meus Amores e o Morro de São Carlos, mais conhecido como Chácara do Céu. Nós sambávamos nesses dois morros....Mas o samba não nasceu no morro, nós é que o levamos, para fugir da polícia que nos perseguia”.10

Ainda no final dos anos 20, Ismael Silva havia recebido uma proposta de Francisco Alves ⎯ já um grande divulgador. O cantor gravaria todos os seus sambas desde que lhe fosse concedida co-autoria. Vislumbrando o sucesso, Ismael aceitou com a condição de que seu companheiro de Estácio, Nilton Bastos, fosse incluído na parceria. Até que Ismael Silva rompesse o contrato, Chico Alves gravou e transformou em sucesso vários sambas assinados pelo trio. Em 1931, O que será de mim e Se você jurar são bastante ilustrativas dos temas predominantes nas letras de samba de então ⎯ a malandragem e a orgia.

O QUE SERÁ DE MIM Se eu precisar algum dia

De ir pro batente Não sei o que será

Pois vivo na malandragem

                                                                                                                         10 “História do Samba”, editora Globo

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E vida melhor não há... ...Deixa falar quem quiser Deixa quem quiser falar O trabalho não é bom Ninguém pode duvidar Trabalhar só obrigado

Por gosto ninguém vai lá

SE VOCÊ JURAR Se você jurar que me tem amor

Eu posso me regenerar Mas se é para fingir, mulher A orgia assim não vou deixar

Esta última canção foi gravada em dueto entre Francisco Alves e

Mário Reis. Ambos estrearam em disco com as composições de Sinhô, mas a esta altura estavam abandonando o velho samba e aderindo ao samba do Estácio. Os dois ainda viriam a gravar músicas de um novo compositor que estava desabrochando para o samba em função da invenção de Ismael Silva ⎯ Noel Rosa.

Nos seus 26 anos de vida, o poeta da Vila compôs quase 300 músicas e, numa delas, advertiu que batuque é um privilégio/ Ninguém aprende samba no colégio. Nem na Faculdade de Medicina... Em 1932, o boêmio, despreocupado com a própria saúde, abdicou do curso no segundo ano em favor do samba e não conseguiu aproveitá-lo direito nem para escrever a letra de Coração, “samba anatômico”, em que se atrapalha com a Fisiologia: Coração/ Grande órgão propulsor/ Transformador do sangue venoso em arterial.

Noel de Medeiros Rosa nasceu em Vila Isabel, bairro classe média do Rio, em 11 de dezembro de 1910, num parto difícil. O fórceps afundou-lhe o maxilar inferior. No colégio, chegou a ganhar o apelido de “Queixinho”, mas logo passou a ser reconhecido como o menino que tocava bandolim, instrumento aprendido com a mãe, depois substituído pelo violão.

Por ser bom violonista, foi convidado por Almirante, Braguinha (o João de Barro), Alvinho e Henrique Brito para com eles integrar o “Bando de Tangarás”. A moda no Rio de Janeiro dos anos 20 era a música sertaneja. Influência que veio do Recife em 1922 com os Turunas Pernambucanos ⎯ grupo que revelou nomes de destaque, como João Pernambuco e a dupla Jararaca e Ratinho. Em 1926, na mesma tendência, chegaram ao Rio os Turunas da Mauricéia. Os jovens de classe-média de Vila Isabel formaram o seu “Bando de Tangarás” e foram ao estúdio em 1929 gravar música sertaneja ⎯ toadas, cateretês e, principalmente, emboladas.

No mesmo ano, Noel compôs sua própria embolada, Minha Viola. Mas o contato com os sambistas do morro e com o professor Ismael Silva ⎯ de quem foi parceiro ⎯ ensinou-lhe o samba. Seu primeiro samba é Com que Roupa?, de 1930:

Agora vou mudar minha conduta Eu vou pra luta

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Pois eu quero me aprumar Vou tratar você na força bruta

Pra poder me reabilitar, Pois essa vida não está sopa

E eu pergunto: Com que roupa? Com que roupa eu vou

Pro samba que você me convidou...

Era um plágio distraído do hino nacional, problema resolvido com uma alteração no compasso da primeira frase. O plágio pode inclusive ter sido intencional, pois Noel teria revelado a seu tio Eduardo que fizera o samba para falar do “Brasil de tanga” diante da crise com a bolsa de Nova Iorque. Com que roupa? foi sucesso no carnaval e em inúmeros espetáculos de teatro de revista. Aprendido o samba, Noel não parou mais.

Nas palavras de Antônio Carlos Jobim: “Ninguém cantou melhor o Rio que ele. Não o Rio geográfico, de beleza sem par, mas a alma do Rio, a fala do Rio, os costumes, a malandragem, a graça, a delegacia policial, o revólver, o xadrez, o Tarzan, os bairros, o Estácio, Copacabana, Penha, Salgueiro, Mangueira, a Gamboa, o Mangue, a favela, e a sua querida Vila Isabel.”11

Compôs canções de amor, líricas e trágicas ⎯ flertando com o tango argentino ⎯, mas sem perder o humor. Fez críticas sociais e políticas. Introduziu a gíria e criticou o costume subdesenvolvido de se deslumbrar com modismos estrangeiros. O sotaque português do samba de Sinhô, definitivamente, estava substituído pelo sotaque brasileiro:

NÃO TEM TRADUÇÃO (ou O CINEMA FALADO)

... Essa gente hoje em dia Que tem a mania

De exibição Não se lembra que o samba não tem tradução

No idioma francês Tudo aquilo que o malandro pronuncia

Com voz macia É brasileiro: já passou de português...

O microfone Como acontecera com o gramofone, o rádio começou a custar

muito pouco e a se popularizar rapidamente. Noel Rosa percebeu o movimento e chegou a declarar em entrevista:

“O rádio começava a dominar. As meninas do bairro já não tinham como único assunto os galãs de cinema. Muitas já se esqueciam do Ramon Navarro, do John Gilbert e outros amantes da tela e falavam dos ‘ases’ do rádio. Compenetrei-me de que era preciso entrar para o rádio. E não me foi difícil. Fiz minha estréia na Rádio

                                                                                                                         11 encarte do CD “Songbook Noel” ⎯ Texto: “Noel era um gênio”

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Educadora, com o Bando de Tangarás. Era, enfim, um ‘astro’ do microfone. As mocinhas bonitas, e mesmo as feias, ouviam-me e, quando me encontravam, cravavam em mim um olho curioso. Mais tarde estive na Mayrink [Rádio Mayrink Veiga]. E, por último, no Programa Casé, onde me demorei por um largo período”.12

O pernambucano Ademar Casé é um pioneiro no rádio brasileiro. A intenção de Roquete-Pinto era de que o rádio fosse uma escola para analfabetos. Em seu programa, Casé substituiu a música erudita pela música popular e, beneficiado por um decreto-lei de 1932, iniciou a publicidade no rádio.

Noel Rosa participou de teatro de revistas e criou no rádio uma revista radiofônica. Tornou-se muito popular e viu vários sucessos explodirem a cada ano. Compunha muito. Teve vários parceiros, alguns problemas com direitos autorais. Mas a parceria mais perfeita foi com o paulista Osvaldo Gogliano, o Vadico, a quem Noel foi apresentado pelo também paulista Eduardo Souto. Noel escreveu versos que se encaixaram maravilhosamente às melodias do piano de Vadico, compondo eternos clássicos da música brasileira. Entre eles, um dos melhores retratos do malandro carioca, Conversa de botequim, gravada originalmente pelo próprio Noel.

Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa Uma boa média que não seja requentada, Um pão bem quente com manteiga à beça,

Um guardanapo e um copo d’água bem gelada

Feche a porta da direita com muito cuidado Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol

Vá perguntar ao seu freguês do lado Qual foi o resultado do futebol

Se você ficar limpando a mesa

Eu me levanto e nem pago a despesa Vá pedir ao seu patrão

Uma caneta, um tinteiro, um envelope e um cartão

Não se esqueça de me dar palito E um cigarro pra espantar mosquito

Vá dizer ao charuteiro que me empreste Uma revista, um cinzeiro e um isqueiro

Telefone ao menos uma vez para 34-4333

E ordene ao Seu Osório Que me mande um guarda-chuva

Aqui pro nosso escritório

Seu garçom, me empreste algum dinheiro Que eu deixei o meu com o bicheiro

Vá dizer ao seu gerente

                                                                                                                         12 Literatura Comentada, Noel Rosa, Editora Abril, p92

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Que pendure essa despesa No cabide ali em frente...

Ao samba de Noel aderiu Mário Reis. Além dele, destacam-se

como maiores intérpretes do poeta da Vila as cantoras Araci de Almeida ⎯ mais tarde banalizada como jurada de programa de calouros na televisão ⎯ e Marília Batista, a princesinha do samba. Segundo Noel, a pulsação das vozes das duas fazia samba de verdade e estava imune ao “mirandismo”, fenômeno que dominava as cantoras do rádio na época, por influência de Carmen Miranda, como se verá mais tarde.

A “Revolução” Paulista de 32 A reação ao fim da política do café-com-leite veio de São Paulo.

Na sede da principal oligarquia deposta e centro econômico do país, Vargas nomeou como interventor o pernambucano João Alberto e como chefe de polícia o general Miguel Costa, dois veteranos tenentistas.

O PRP uniu-se ao PD (Partido Democrático Paulista) ⎯ que apoiou a revolução, mas viu suas expectativas frustradas ao ser excluído da administração do Estado ⎯ para exigir um interventor paulista e civil e uma Assembléia Constituinte para o Brasil.

João Alberto renunciou em julho de 1931, mas, só em março de 1932, o paulista e civil Pedro de Toledo foi nomeado o interventor de São Paulo. Contudo, os comícios patrocinados pela oligarquia e pela classe média em prol da Constituinte continuaram na capital paulista. Em 23 de maio, no choque entre manifestantes e os soldados de Miguel Costa, morreram 4 estudantes: Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo. A sigla MMDC passou a designar o grupo que preparava a revolta armada.

Para apaziguar a situação, Vargas marcou para maio de 1933 as eleições para a Constituinte. Mesmo assim, a oligarquia paulista, na crença de que teria apoio das oligarquias mineira e gaúcha, passou a exigir a queda do governo provisório. A 9 de julho de 1932, iniciou-se o que ficou conhecido como “Revolução” Constitucionalista, comandada pelo general Isidoro Dias Lopes. Os operários não apoiaram o movimento, pois temiam que a vitória dos constitucionalistas anulassem as conquistas trabalhistas.

Após três meses de luta, os paulistas perderam. Sem o apoio dos mineiros e gaúchos, o estado de São Paulo ficou isolado e brigou sozinho contra o governo federal.

Em vez de punir a elite derrotada, Vargas foi hábil. Compôs aliança com os rebeldes paulistas e manteve a data das eleições para a Assembléia Constituinte em maio de 1933.

A Constituinte, que promulgou a Constituição de 16 de julho 1934, foi eleita de modo inovador. Pela primeira vez na nossa história o voto foi secreto e as mulheres também puderam escolher os deputados que a compuseram. No dia seguinte, a mesma Assembléia elegeu Getúlio Vargas o novo Presidente da República, para o período

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de 1934 a 1938. Pelas Disposições Transitórias da nova Constituição apenas o primeiro Presidente seria eleito indiretamente.

O Estado Novo As eleições para o substituto de Vargas foram marcadas para

janeiro de 1938. Um concurso musical do jornal A Noite “Quem será o homem?” foi vencido por uma música do cartunista Nássara em parceria com Cristóvão de Alencar, cantada por mais um cantor que havia estreado em disco com composições de Sinhô, Sílvio Caldas. A letra especula em torno dos nomes de Osvaldo Aranha (“Seu Vavá”) ⎯ pelo governo ⎯ e Armando Sales de Oliveira (“Seu Manduca”) ⎯ pela oposição. A brincadeira no final parecia prever o que estava por acontecer:

A MENINA PRESIDÊNCIA

O homem quem será? Será Seu Manduca ou será Seu Vavá?

Entre esses dois meu coração balança porque Na hora “h” quem vai ficar é Seu Gegê...

O candidato da presidência não foi o ex-ministro da justiça

Osvaldo Aranha. Foi o também ex-ministro José Américo de Almeida. Na oposição, o ex-interventor de São Paulo, Armando Sales Oliveira. Nenhum deles se elegeu. Em 10 de novembro de 1937, Vargas decretou o Estado Novo.

Entre a eleição indireta de 1934 e o Golpe de Estado de 1937, muita coisa aconteceu. A indústria cresceu, o café foi queimado ⎯ para proteger a cafeicultura, ainda a principal força econômica do Brasil (que gerava empregos, abastecia os armazéns, aquecia a indústria de ferramentas e sacarias, os bancos, os portos e ferrovias, as casas bancárias), o governo passou a comprar o excedente do café para depois queimá-lo e assim evitar a queda no preço ⎯, e já em 1933, o nosso mercado consumidor interno estava restabelecido.

O cenário político ganhava outros partidos: em 1934, todas as organizações de cunho nazifascista ⎯ inspiradas nas ditaduras européias ⎯ fundiram-se na Ação Integralista Brasileira, orientada pelo intelectual Plínio Salgado ⎯ tal nazismo tupiniquim, numa tentativa de gritar o “Hai Hitler” alemão, entoava com o braço erguido “Anauê”; em 1935 foi fundada a Aliança Nacional Libertadora, que agregava a esquerda nacional.

A ANL era uma frente ampla e, como toda frente, era composta por diversas ideologias: anarquista, socialista, social-democrata. Muitos elementos da classe média e do tenentismo também compuseram a aliança. Porém, ela foi apenas vista como uma continuação do Partido Comunista. Foi o pretexto ideal para que, logo depois da sua criação, Vargas conseguisse a aprovação de uma Lei de Segurança Nacional. No dia 11 de julho, a organização foi fechada.

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Agora na clandestinidade, a ANL passou a ser orientada pelos experientes clandestinos do PCB. Com o auxílio de agentes vindos de Moscou, Luís Carlos Prestes ⎯ que se filiou ao partido em 1934 e estava exilado na URSS ⎯ e a judia alemã Olga Benário entraram no Brasil para preparar um levante armado.

Vargas esperava por isso. Entre os dias 23 e 27 de novembro de 1935 ocorreu a tentativa de revolução que ficou conhecida como “Intentona (traição) Comunista”. As forças rebeldes foram rapidamente derrotadas. O governo decretou o estado de sítio e a Polícia Especial iniciou uma perseguição a todo e qualquer elemento que pudesse se opor eventualmente a Getúlio Vargas.

A Polícia Especial era uma polícia política e estava sob o

comando do capitão Fillinto Müller ⎯ ex-tenentista, fora expulso, em 1925, da Coluna Prestes acusado de trair seus companheiros. A PE era encarregada de reprimir violentamente a oposição. Importou métodos sofisticados de tortura das polícias de Hitler (Alemanha) e Stalin (URSS). Em fevereiro de 1936, Müller teve a chance de se vingar do comandante da Coluna que o acusou de desertor, covarde e indigno. Prometeu a Vargas que pegaria Luís Carlos Prestes. Cumpriu a promessa. Prestes e sua mulher Olga foram presos juntos, mas enviados para lugares diferentes. Nunca mais se viram. Meses depois, Olga ⎯ grávida de Anita Leocádia Prestes ⎯ foi entregue ao governo da Alemanha. Morreu fuzilada, em 1942, em um campo de concentração nazista.

Depois da tentativa revolucionária da ANL, em fins de 1935,

nenhum outro fato teve a relevância que Getúlio precisava para justificar um golpe final e cancelar as eleições marcadas para 1938.

Como o fato não aconteceu, foi criado. Em 30 de setembro de 1937, foi anunciado que o Estado-Maior do Exército havia descoberto um plano do Komintern (Sede da Internacional Comunista da URSS) para tomar o poder no Brasil. Trechos do documento foram lidos no programa radiofônico “A Hora do Brasil” ⎯ criado por Vargas e obrigatório, das 19 às 20 horas, em todas as emissoras ⎯ e publicados nos jornais governistas.

Anos depois, o verdadeiro autor do “Plano Cohen”, o capitão

integralista Olímpio Mourão Filho ⎯ o mesmo que, em 1964, sublevaria a guarnição de Belo Horizonte e daria início ao Golpe Militar ⎯, declarou em seu leito de morte que a redação que fizera, em 1937, fora apenas “um inocente exercício literário”.

O “Plano Cohen” foi o argumento final para que, a 10 de

novembro, fosse anunciado o “nascer da nova era”. Com a “nova” Constituição, outorgada, nas mãos, Getúlio leu um pequeno discurso e mergulhou o país na ditadura que duraria 8 anos. A ditadura do “Estado Novo”.

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A nova Constituição foi elaborada por Francisco Campos, o “Chico Ciência”. A Carta de 1937 teve o apelido de “A Polaca”, porque se baseava na Constituição autoritária da Polônia, de 1926, imposta pelo general Pilsudski. Legalmente, os poderes de Vargas tornaram-se ilimitados.

O malandro regenerado Além da PE (Polícia Especial), importante elemento de

sustentação da ditadura do Estado Novo ⎯ prendia, torturava e até assassinava qualquer pessoa que se opunha a Vargas ⎯, o governo contou com a criação, em dezembro de 1939, do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda).

Chefiado por Lourival Fontes o departamento foi encarregado de cuidar da imagem de Vargas e da censura a tudo o que atingisse o público. Era o DIP que preparava as grandes manifestações operárias nos comícios do Presidente em São Januário, especialmente no 1º de Maio (Dia do Trabalho).

Graças a concessões aos trabalhadores, como a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), Getúlio era chamado de o “pai dos pobres” e tinha amplo apoio das classes populares.

Noel Rosa não chegou a ver o Estado Novo. Morreu seis meses antes. Mas uma famosa polêmica musical em que ele se envolveu pode ajudar a explicar a estratégia adotada pelo DIP ao censurar e utilizar a música popular para promover o novo governo.

O elogio à malandragem, que o poeta de Vila Isabel herdou do novo samba do Estácio e tanto cantou, acabou sendo alvo de uma crítica ácida por parte de Noel. Explica-se: na Lapa, reduto dos malandros que tanto freqüentava, Noel se interessou por uma morena que acabou preferindo os galanteios de um jovem mulato aprendiz de malandro na área. Bastante enciumado, Noel foi tratar de saber quem era o desconhecido rival e lhe revelaram tratar-se de Wilson Batista, compositor de um samba gravado por Sílvio Caldas, mais um manifesto pela vadiagem:

LENÇO NO PESCOÇO Meu chapéu de lado Tamanco arrastando

Lenço no pescoço Navalha no bolso

Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho Em ser vadio ...

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Arma melhor que o samba Noel não conhecia para se vingar de Wilson e compôs uma resposta que desdenhava da malandragem esteriotipada:

RAPAZ FOLGADO

Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália Tira do pescoço o lenço branco

Compra sapato e gravata Joga fora essa navalha

Que te atrapalha

Com chapéu de lado deste rata Da polícia quero que escapes

Fazendo samba-canção Já te dei papel e lápis

Arranja um amor e um violão

Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar

Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar de malandro

E sim de rapaz folgado

A polêmica Noel Rosa X Wilson Batista Para Wilson Batista, praticamente um desconhecido, envolver-

se em uma polêmica com o já renomado Noel Rosa do rádio foi um grande negócio. Alimentar a polêmica só contribuiria para que Wilson ficasse mais conhecido. Muitas das músicas compostas em função da polêmica não foram gravadas à época de sua composição. Ficaram conhecidas apenas nas rodas de samba. Uma série de sambas da famosa polêmica foi reunida em disco anos mais tarde (1956) com Roberto Paiva interpretando as canções de Wilson e Francisco Egídio, as de Noel. A seguir, trecho da canção de Wilson Batista em resposta a Rapaz Folgado:

MOCINHO DA VILA

Você que é mocinho da Vila Fala muito em violão, barracão

E outros fricotes mais Se não quiser perder o nome

Cuide do seu microfone E deixe quem é malandro em paz

Noel Rosa acabou sendo apresentado a Wilson, ficaram amigos,

e deu a polêmica por encerrada. Compôs em 36 Feitiço da Vila, sobre

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a melodia de Vadico. O trecho que reproduzimos contém uma estrofe, depois cortada, que motivou a canção Conversa Fiada, de Wilson.

FEITIÇO DA VILA Quem nasce lá na Vila

Nem sequer vacila Ao abraçar o samba

Que faz dançar os galhos do arvoredo E faz a lua nascer mais cedo

Letra original de 1935

A zona mais tranqüila

É a nossa Vila O berço dos folgados

Não há um cadeado no portão Porque na Vila não tem ladrão

CONVERSA FIADA

É conversa fiada Dizerem que o samba

Na Vila tem feitiço Eu fui ver para crer E não vi nada disso A Vila é tranqüila

Porém é preciso cuidado Antes de irem dormir

Dêem duas voltas no cadeado...

Noel Rosa não se conteve e respondeu, magoado:

PALPITE INFELIZ Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz! Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira

Oswaldo Cruz e Matriz

Que sempre souberam muito bem Que a Vila não quer abafar ninguém

Só quer mostrar que faz samba também...

A partir daí, Wilson perdeu a elegância e explorou o defeito físico de Noel (Frankenstein da Vila), que não mais participaria da polêmica. Wilson ainda insistiria com outro samba (Terra de cego), mas era o fim.

FRANKENSTEIN DA VILA Boa impressão nunca se tem

Quando se encontra um certo alguém Que até parece o Frankenstein

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Mas como diz o refrão Por uma cara feia

Perde-se um bom coração...

TERRA DE CEGO Perca essa mania de bamba

Todos sabem qual é o teu diploma no samba És o abafa da Vila, bem sei

Mas em terra de cego, Quem tem um olho é rei...

Rapaz folgado foi composta em 1933, ficou muito conhecida

nas rodas de samba, mas só foi gravada por Araci de Almeida em 1938. E funcionou perfeitamente para as intenções do DIP após 39 (Malandro é palavra derrotista/ Que só serve pra tirar/ Todo o valor do sambista). Desde o início do governo revolucionário de 30, já havia forte repressão da polícia. Era proibido formar grupos nas ruas, a ordem era circular. Isso fica evidente na canção composta e gravada por Sílvio Caldas, ainda em 1930:

EU VOU ANDANDO

Não quer que eu pare, eu vou andando Vou andando devagar

Não quer que eu pare, eu vou andando Não vale a pena teimar

A Prosa de vadio, composta por Glauco Viana e gravada pelo

ex-Tangará Alvinho, promete resistência por parte dos malandros em 31:

A polícia me persegue

Mas não deixo a malandragem E embora ela me pegue

Para mim é uma bobagem A partir da criação da PE e do DIP, a repressão aumentou

bastante. E a questão do trabalho foi das mais caras ao novo regime. A legislação trabalhista era inspirada na Carta del Lavoro do fascista italiano Benito Mussolini. Diante da imensa popularidade que o rádio vinha alcançando na década de 30, o DIP utilizou-o e também à música para promover o trabalho.

Wilson Batista, em parceria com Ataulfo Alves, seria vítima da intervenção do DIP em 1940 com o samba O bonde de São de Januário, referência ao bairro onde ficava o estádio do Vasco da Gama, palco dos discursos de Getúlio Vargas, dirigidos aos “Trabalhadores do Brasil”. A letra original zombava dos sindicatos atrelados ao Estado: O Bonde São Januário/ Leva mais um sócio

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otário/ Sou eu que vou trabalhar. A canção, acusada pelo DIP de promover a vadiagem, só foi liberada para gravação de Ciro Monteiro, com uma alteração na letra que não atrapalhou a rima, mas mudou completamente o sentido. Tornou-se um hino ao trabalho:

O BONDE DE SÃO JANUÁRIO (1940)

Quem trabalha é que tem razão Eu digo e não tenho medo de errar

O Bonde São Januário Leva mais um operário [sócio otário]

Sou eu que vou trabalhar

Antigamente eu não tinha juízo Mas resolvi garantir meu futuro

Veja você: Sou feliz, vivo muito bem

A boemia não dá camisa a ninguém...

Uma das imitações da Carta del Lavoro italiana foi a taxação de solteiros e prêmio aos casados com quatro filhos ou mais. Alvo da censura um ano antes, Ataulfo Alves compõe em parceria com Felisberto Martins e grava, em 41, É negócio casar:

O Estado Novo veio para nos orientar No Brasil não falta nada mas precisa trabalhar

Tem café, petróleo e ouro E ninguém pode duvidar

E quem for pai de quatro filhos O Presidente manda premiar

É negócio casar... O DIP encontrou o caminho. Seria complicado reprimir a

simpática figura do malandro. Não era exatamente um mau elemento, nocivo à sociedade. Era avesso ao trabalho, mas sobrevivia no universo dos pequenos golpes: jogo de sinuca e baralho, além da exploração de prostitutas. Vivia na boêmia, trocando a noite pelo dia, jogava capoeira, portava navalha. Alguns faziam ⎯ e vendiam ⎯ sambas. O melhor a fazer era atrair o malandro, regenerá-lo. Mudou-se a mentalidade. A moda agora, em vez de exaltar, era regenerar o malandro por meio do amor e do trabalho.

A nova temática permaneceu por bom tempo em voga. O compositor mineiro Geraldo Pereira ⎯ que ficou famoso em 1940, pela sua parceria com Wilson Batista, Acertei no milhar, samba de breque que projetou o cantor Moreira da Silva, o “Kid Morengueira” ⎯ é autor de dois sambas que, lidos em seqüência, ilustram com perfeição o processo do malandro regenerado. O Escurinho, de 1954, e Pedro do Pedregulho, de 1950. A primeira gravada por Ciro Monteiro e a segunda pelo próprio autor:

ESCURINHO

O Escurinho era um escuro direitinho

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Agora tá com uma mania de brigão Parece praga de madrinha ou macumba

De alguma escurinha que ele fez ingratidão

Saiu de cana ainda não faz uma semana Já a mulher do Zé Pretinho carregou Botou abaixo o tabuleiro da baiana Porque pediu fiado e ela não fiou

Já foi no Morro da Formiga procurar intriga

Já foi no Morro do Macaco, já bateu num bamba Já foi no Morro do Cabrito provocar conflito Já foi no Morro do Pinto acabar com o samba

PEDRO DO PEDREGULHO

Pedro dos Santos vivia no Morro do Pedregulho Quebrando boteco, fazendo barulho

Até com a própria polícia brigou Vivia do jogo e quando perdia

Até mesmo muamba Rasgava pandeiro, acabava com o samba

Parece mentira, Pedro endireitou Estelinha, o orgulho do morro

Mulher disputada Que quando ia ao samba saía pancada

Ao Pedro dos Santos deu seu grande amor E ele trocou o revólver que usava

Fingindo embrulho Por uma marmita

E sobe o Pedregulho de noite Cansado do seu batedor

Eixo ou Aliados Na economia, a grande característica do governo de Getúlio

Vargas foi o intervencionismo. Diante da recusa dos industriais brasileiros em arriscarem seus capitais em produção de base, o próprio Estado fez o investimento.

E foi por causa da necessidade de empréstimo financiado para a construção da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), em Volta Redonda, que Getúlio Vargas, apesar de sua vocação fascista, oscilou entre apoiar o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) ou os Aliados ( Inglaterra, França e, posteriormente, EUA e URSS), na Segunda Guerra Mundial, que teve início em 1939.

Enquanto o mundo guerreava, o DIP propagava a tranqüilidade do Estado Novo. O Hino composto por Benedito Lacerda e Aldo Cabral, e gravado, em 1939, por Dalva de Oliveira e Francisco Alves é um dos exemplos:

BRASIL! Brasil, és do teu berço dourado

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O Índio civilizado E abençoado por Deus

Brasil, gigante de um continente

És terra de toda gente E orgulho dos filhos teus

Outro exemplo do discurso do DIP é a composição de Ari

Barroso, cantada pela primeira vez por Araci Cortes na Teatro Recreio, também em 1939. Veio a se tornar uma das músicas mais executadas do século XX no mundo:

AQUARELA DO BRASIL

Brasil Meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro

Vou cantar-te nos meus versos ...

Brasil, Brasil Pra mim. Pra mim

Realmente o alto escalão do governo estava dividido. Os

generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro; os chefes da PE e do DIP, respectivamente, Fillinto Müller e Lourival Fontes e o Ministro da Justiça Francisco de Campos eram explicitamente favoráveis ao apoio ao grupo de Hitler. Em contrapartida, Osvaldo Aranha, agora Ministro das Relações Exteriores, defendia a União Panamericana e, portanto, a aliança Brasil⎯EUA.

O impasse na verdade foi resolvido porque, seis meses antes da definição oficial e entrada dos EUA na Guerra, em fins de 1941 ⎯ depois do ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor, no Havaí ⎯, o empréstimo ao Brasil já havia sido aprovado.

Fora o dinheiro para a construção da CSN, Vargas conseguiu um fornecimento de armas norte-americanas. Em troca, rompeu relações com o Eixo, em 1942. Em 1944, as tropas brasileiras chegaram à Europa. O ditador brasileiro lutava contra as ditaduras européias.

A “embaixatriz da boa vizinhança” O ano de 1930, de tantas transformações, viu nascer um

fenômeno no carnaval. Taí, de Joubert de Carvalho, foi o primeiro sucesso de Carmem (nascida Maria do Carmo) Miranda (da Cunha). Os programas de auditório do rádio permitiram que o impacto visual da “pequena notável” criasse um mito. Ao interpretar O que é que a baiana tem?, de Dorival Caymmi, lançou o figurino que a tornaria símbolo internacional do Brasil, apesar de ser portuguesa de nascimento. Em 1939, com total apoio de Vargas, Carmem embarcou para Nova Iorque acompanhada de seu Bando da Lua para uma temporada na Broadway.

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De volta ao Brasil em 1940, foi recebida com frieza pelo público, já movido de um nacionalismo que a condenava. Deprimida, Carmem Miranda voltou aos Estados Unidos, desta vez para Los Angeles. Iria ser estrela de cinema em Hollywood, onde viveu até morrer em 1955. Antes de partir, em 1940, Carmem fez um show de despedida em que responde às acusações nacionalistas:

DISSERAM QUE EU VOLTEI AMERICANIZADA (1940) (Luiz Peixoto e Vicente Paiva)

Disseram que eu voltei americanizada Com o burro do dinheiro, que estou muito rica

Que não suporto mais o breque do pandeiro E fico arrepiada ouvindo uma cuíca

A pretensão do domínio norte-americano de todo o continente já havia sido sugerida em 1823 pela Doutrina Monroe (“América para os americanos”). Em 1904, o Presidente Theodore Roosevelt consolidou essa idéia ao definir que se algum país das Américas demonstrasse dificuldade em reconhecer os EUA como protetores dos interesses das nações americanas, sofreria intervenção militar em nome do bem-estar de toda comunidade continental. Essa política intervencionista ficou conhecida como Corolário Roosevelt: “Aqueles que aceitam a Doutrina Monroe devem aceitar (...) os direitos que ela nos confere.”( T. Roosevelt ⎯ 1904). A intervenção militar resultante desse discurso presidencial ficou conhecida como Big Stick (Grande Porrete). No decorrer dos anos, o Corolário Roosevelt teve vários nomes: Doutrina da Boa Parceria, Doutrina das Novas Fronteiras, Política da Boa Vizinhança.

Chegou o samba, minha gente

Lá da terra do Tio Sam com a novidade E ele trouxe uma cadência que é maluca

Pra mexer toda cidade É o boogie-woogie, boogie-woogie, boogie woogie

A nova dança que balança, mas não cansa A nova dança que faz parte da Política da Boa Vizinhança

(Dênis Brean ⎯ Boogie Woogie na Favela – 1945) A Guerra acabou em 1945 com a vitória dos Aliados. O Estado

Novo não tinha mais nenhum sentido. Manter uma ditadura aqui dentro seria uma contradição, afinal lutou-se contra a ditadura na Europa.

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No 13o aniversário da Revolução de 1930, o Manifesto dos Mineiros ⎯ com 78 assinaturas, entre elas as de Artur Bernardes, Pedro Aleixo, Afonso Arinos ⎯ deixava clara a oposição a Getúlio:

“Se lutamos contra o fascismo, ao lado das Nações Unidas, para

que a liberdade e a democracia sejam restituídas a todos os povos, certamente não pedimos demais reclamando para nós mesmos os direitos e as garantias que os caracterizam...Queremos liberdade de pensamento, sobretudo o pensamento político...” (Trecho do Manifesto dos Mineiros)

Em fevereiro de 1945, antes mesmo do desfecho completo do

conflito mundial, o Presidente assinou um Ato Adicional e convocou eleições para o fim do ano.

Oficialmente, o candidato de Getúlio era o general Eurico Gaspar Dutra, da coligação PSD (Partido Social Democrático) / PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). O primeiro representava os interesses dos industriais, dos grandes comerciantes, da classe média e incorporou antigos colaboradores de Vargas. O segundo vivia da imagem de Vargas ⎯ “pai dos pobres” ⎯ e tinha apoio de boa parte do operariado. Getúlio era o Presidente de honra dos dois.

Na oposição, pela também recém-criada UDN (União Democrática Nacional), foi lançado o brigadeiro Eduardo Gomes, um dos líderes dos “18 do forte”. Assim como o PSD, esse grupo representava os interesses dos industrias e da classe média.

O PCB, agora na legalidade, lançou seu candidato: Yedo Fiuza. Mesmo depois da apresentação dos candidatos, a 15 de julho,

em uma gigantesca manifestação em São Paulo, Luís Carlos Prestes lançou uma campanha para a permanência de Getúlio no poder. Em agosto surge o lema “Queremos Getúlio” entoado por grupos de esquerda e sindicalistas. Foi a campanha do “Queremismo”. O medo de um novo golpe do ditador fez com que os generais Dutra e Góis Monteiro ordenassem um cerco ao Palácio do Governo e dessem o golpe militar antes. Diante disso, Getúlio Vargas renunciou sem se exilar ou perder os direitos políticos:

“Já fiz minha parte na grande tarefa de mobilizar para o

engrandecimento comum as forças criadoras da nacionalidade. Ultimada a recomposição política e reajustados os quadros governamentais, retornarei às atividades de simples cidadão, recolhendo-me à atividade privada...”

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