brasÍlia 2018 - philarchive
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DE BRASIacuteLIAINSTITUTO DE CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIAPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
ADRIANO SOTERO BIN
A PHRONEcircSIS NA EacuteTICA A NICOcircMACO
BRASIacuteLIA 2018
ADRIANO SOTERO BIN
A PHRONEcircSIS NA EacuteTICA A NICOcircMACO
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes- Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade deBrasiacutelia como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia
Professor Orientador Dr Guy Hamelin
BRASIacuteLIA2018
ADRIANO SOTERO BIN
A PHRONEcircSIS NA EacuteTICA A NICOcircMACO
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof Dr Guy Hamelin (Orientador) Universidade de Brasiacutelia ndash UnB
___________________________________________
Prof Dr Marcos Aureacutelio FernandesUniversidade de Brasiacutelia ndash UnB
___________________________________________
Prof Dr Fernando Martins Mendonccedila Universidade Federal de Uberlacircndia - UFU
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a Deus por todos os desafios enfrentados
Agradeccedilo a todos que me incentivaram na realizaccedilatildeo deste trabalho
Se a felicidade eacute atividade conforme agrave virtude seraacute razoaacutevel que ela esteja tambeacutem emconcordacircncia com a mais alta virtude e essa seraacute a do que existe de melhor em noacutes Quer seja
a razatildeo quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guianatural tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas e quer seja ele mesmo divino quer
apenas o elemento mais divino que existe em noacutes sua atividade conforme agrave virtude que lhe eacuteproacutepria seraacute a perfeita felicidade Que essa atividade eacute contemplativa jaacute o dissemos
anteriormente(ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 1177a 13-18)
A virtude de um ser seja ordenada para o bem Logo a virtude humana que eacute um haacutebitoimperativo eacute um haacutebito bom e operativo do bem
(SANTO TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica Iordf seccedilatildeo IIordf parte Questatildeo 55 Art 3)
Natildeo te deixes levar por tuas paixotildees e refreia os teus desejos (ECLESIAacuteSTICO 18 30)
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo estudar a virtude intelectual da prudecircncia
(φρόνησις) em Aristoacuteteles e ver sua importacircncia para que o indiviacuteduo construa uma vida
feliz Este estudo concentra-se principalmente na Eacutetica a Nicocircmaco mas tambeacutem seraacute
utilizado a Eacutetica a Eudemo o outro tratado aristoteacutelico sobre a eacutetica como auxiacutelio para
compreensatildeo do pensamento do Estagirita sobre a prudecircncia Para tanto este estudo estaacute
dividido em trecircs capiacutetulos No primeiro analisamos a ideia de Supremo Bem como felicidade
(eu0daimonia) Vemos o que a caracteriza e porque ela eacute o fim mais desejado Tambeacutem eacute visto
qual o tipo de vida que melhor condiz com a funccedilatildeo (e2rgon) proacutepria do ser humano No
segundo capiacutetulo examinamos as virtudes intelectuais e morais Entretanto damos uma
ecircnfase maior nas virtudes morais porque satildeo o fundamento para que a phronecircsis possa se
sobressair Ademais analisamos a relaccedilatildeo entre a virtude moral e o prazer pois este uacuteltimo
possui um papel importante na busca da eudaimonia No terceiro capiacutetulo tratamos da virtude
intelectual da prudecircncia Vemos suas caracteriacutesticas suas partes integrantes como se
desenvolve e atua defronte agrave realidade Compreendemos o que eacute a deliberaccedilatildeo (bouleusij e
a escolha (proairesij) assim como estudamos quais satildeo as trecircs virtudes intelectuais
menores boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn)
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Virtudes Morais Felicidade Bem
ABSTRACT
The objective of the present work is to study the intellectual virtue of prudence (φρόνησις) in
Aristotle and to see its importance for the individual to build a happy life This study focuses
mainly on The Nichomachean Ethics but the The Eudemian Ethics the other Aristotelian
treatise on ethics will also be used as an aid to understand the Stagirites thinking on
prudence This study is divided into three chapters In the first one we analyze the idea of
Supreme Good as happiness (eu0daimonia) We see what characterizes it and why it is the
most desired We are also seing which type of life best fits with the function ( gἔρ ον) of the
human being In the second chapter we examine intellectual and moral virtues However we
emphasize size more on moral virtues because they are the foundation for phronesis to excel
In addition we analyze the relationship between moral virtue and pleasure for the latter has
an important role in the pursuit of eudaimonia In the third chapter we deal with the
intellectual virtue of prudence We examine its characteristics its parts whats is its
development and how it acts with reality We try to understand what is deliberation
(bouleusij and choice (proairesij) just as we study what are the three minor intellectual
virtues good deliberation (eu0bolia) intelligence (sunesij) and judgment (gnwmn)
Keywords Aristotle Prudence Moral Virtues Happiness Good
SUMAacuteRIO
RESUMO i
SUMAacuteRIOhellipii
INTRODUCcedilAtildeOhellipp 03
CAPIacuteTULO I ndash O BEM HUMANO E A EUDAIMONIAp 07
11 O CONCEITO DE BEMp 08
12 UMA POSSIacuteVEL FALAacuteCIA ARISTOTEacuteLICAp 14
13 FIM DOMINANTE OU INCLUSIVOp 19
14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
15 A EUDAIMONIA E TIPOS DE VIDAp 28
16 O ACASO NA VIDA HUMANAp 34
CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
21 DEFINICcedilAtildeO DAS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 38
22 A EDUCACcedilAtildeO DOS PRAZERES E AS VIRTUDES MORAIShelliphellipp 40
23 PRAZER E APERFEICcedilOAMENTO DE UMA ATIVIDADEhellipp 45
24 O HOMEM VIRTUOSOhelliphelliphelliphelliphelliphellipp 47
25 AS VIRTUDES MORAIS COMO MEDIANIAhelliphelliphelliphelliphellipp 49
CAPIacuteTULO III ndash A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICOhelliphelliphellipp 56
31 LINHAS GERAIS ACERCA DA PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphellipp 57
32 O CONCEITO DE PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 62
33 A RETA RAZAtildeO (o0rqoj logoj) E A EXPERIEcircNCIA (e0mpeiria)helliphelliphelliphelliphellipp 70
34 DESEJO (o1recij) DELIBERACcedilAtildeO (bouleusij E ESCOLHA (proairesij)hellipp 75
35 AS TREcircS VIRTUDES INTELECTUAIS MENORES BOA DELIBERACcedilAtildeO
(eu0boulia) INTELIGEcircNCIA (sunesij) PONDERACcedilAtildeO (gnwmh)helliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 82
36 A RAZAtildeO INTUITIVA (nou~j) E A PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 90
37 PRUDEcircNCIA VIRTUDES MORAIS E EUDAIMONIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 93
CONCLUSAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 96
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICASp 100
3
INTRODUCcedilAtildeO
No contexto da poacutes-modernidade a reflexatildeo eacutetica parece enfrentar um paradoxo Por um
lado a praacutetica social juriacutedica e poliacutetica bem como diversos setores da sociedade natildeo cessam de
clamar pelo valor da pessoa humana e seus direitos que se apresentam como norte da rota de
desenvolvimento civilizatoacuterio do Ocidente nesse momento da histoacuteria Todavia noutro sentido a
especulaccedilatildeo filosoacutefica parece cada vez menos propensa a adotar como paracircmetro a ideia de um
normativo moral calcado em determinadas regras de conduta generalizantes e universais e de certo
modo caracterizadas por uma rigidez que exigem uma conduta pautada principalmente pela noccedilatildeo
de dever
Essa desconfianccedila pode ter surgido a partir da experiecircncia dramaacutetica dos seacuteculos passados
nos quais alguns paradigmas ideoloacutegicos podem ter servido como molde para trageacutedias em larga
escala exigindo uma premente reflexatildeo acerca dos modelos intelectuais que tinham fundamentado
diretamente ou pelo menos tornado possiacuteveis alguns flagelos1
As circunstacircncias individuais e coletivas trazem uma enorme variedade de caminhos e
opccedilotildees a serem escolhidas e assumidas nas suas consequecircncias Nesse contexto a pergunta ldquoO que
eacute o melhor a ser feito diante dessa ou daquela situaccedilatildeordquo se impotildee de forma quase natural a cada
indiviacuteduo A virtude da prudecircncia fornece em Aristoacuteteles a medida adequada para que exista uma
accedilatildeo virtuosa diante das circunstacircncias Outro fato relacionado ao exerciacutecio da prudecircncia eacute que ela eacute
necessaacuteria para escolher corretamente os melhores meios para alcanccedilar os objetivos escolhidos
defronte as circunstacircncias que envolvem cada pessoa Essa eleiccedilatildeo dos meios deve ter como criteacuterio
a retidatildeo de comportamento2 Logo o homem prudente tambeacutem deve ser um indiviacuteduo que pratique
as virtudes morais
A phronecircsis eacute uma virtude de extrema importacircncia na consecuccedilatildeo do bem pois eacute ela que
auxilia o indiviacuteduo a tomar a melhor decisatildeo e por isso a agir da melhor maneira diante das
circunstacircncias Observa-se que eacute intriacutenseca a esta virtude a correta decisatildeo tomada e
operacionalizada no tempo correto Natildeo basta ao homem prudente discernir corretamente o que
fazer nas situaccedilotildees concretas Tambeacutem deve realizar a accedilatildeo preocupando-se com o kairoacutes
(kair joacutej ) ou seja o momento oportuno Assim a prudecircncia acarreta uma accedilatildeo virtuosa do
1 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo DiscursoEditorial Paulus 2008 p 72 Cf EacuteN 1143a 25-27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheimda versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de Eudoro de SouzaSeleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 112 (Col Os Pensadores)
4
indiviacuteduo na temporalidade a qual carrega consigo o contingencial o incerto onde estatildeo inseridos
os indiviacuteduos
O conceito de phronecircsis recorda que a busca pela vida feliz se encontra em bens factiacuteveis
dentro das peculiaridades humanas inseridas em um mundo imprevisiacutevel e marcado por diversas
contingecircncias Ao considerar a natureza humana com suas forccedilas e suas fraquezas a histoacuteria
mostra que eacute a virtude da prudecircncia juntamente com as virtudes morais que evitam a hybris
(u3brij) ou seja a desmesura Esse excesso ocasiona o apego exagerado agraves paixotildees o desprezo
pelos outros e que culmina em uma arrogacircncia absoluta do indiviacuteduo
O presente trabalho visa estudar a compreensatildeo da ideia de phronecircsis e sua importacircncia
dentro do sistema eacutetico aristoteacutelico caracterizado pela busca da eudaimonia por meio das virtudes
morais e intelectuais Eacute utilizada a Eacutetica a Nicocircmaco como base principal para o entendimento da
phronecircsis No entanto natildeo seratildeo desprezadas as demais obras de eacutetica como Eacutetica a Eudemo e
Magna Moralia podendo serem trazidas agrave luz como auxiacutelio a compreensatildeo da visatildeo eacutetica
aristoteacutelica
No primeiro capiacutetulo seraacute tratada a teoria geral do bem proposta na Eacutetica a Nicocircmaco a
partir da qual o estagirita realiza uma anaacutelise sobre o que significa o conceito de bem e como a ideia
de bem identifica-se com a finalidade das coisas Satildeo estudados os tipos de bens e qual o melhor
bem a ser conquistado Agrave luz desta anaacutelise eacute descrita a via mais efetiva para alcanccedilar este bem
considerado o mais perfeito de todos que eacute identificado com a eudaimonia Seratildeo abordadas duas
controvertidas questotildees acerca da eacutetica aristoteacutelica A primeira questatildeo versa sobre a possibilidade
de Aristoacuteteles ter cometido uma falaacutecia loacutegica ao expor o argumento sobre o Supremo Bem A
segunda questatildeo pergunta se o Supremo Bem deve ser entendido como um fim dominante ou um
fim inclusivo Em outros termos vemos se a eudaimonia se caracteriza somente por conter um
uacutenico bem superior a todos os demais bens ou se eacute composta por vaacuterios bens reunidos em um
conjunto Outro assunto tratado neste capiacutetulo diz respeito as caracteriacutesticas do Supremo Bem que
satildeo a autossuficiecircncia e a completude Outra anaacutelise a ser realizada eacute sobre a funccedilatildeo proacutepria dos
seres Esta funccedilatildeo consiste em cada ser possuir uma funccedilatildeo que lhe eacute particular pois eacute resultado da
finalidade para a qual fora criada Neste sentido a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada pela
racionalidade sendo necessaacuteria para a construccedilatildeo de uma vida feliz na perspectiva aristoteacutelica A
partir da identificaccedilatildeo do supremo bem com a felicidade passa-se a verificar qual eacute o tipo de vida
que conduz o homem agrave vida feliz Portanto neste primeiro capiacutetulo procuramos clarificar o
conceito de eudaimonia e saber porque eacute o elemento chave para a eacutetica aristoteacutelica visto que todos
os esforccedilos do homem virtuoso tendem para ela
5
No segundo capiacutetulo adentramos na divisatildeo das virtudes morais e intelectuais e vemos como
se relacionam frente agrave conduta humana e no processo decisoacuterio perante o mundo contingente Como
Aristoacuteteles claramente assinala que as virtudes satildeo essenciais para o alcance da eudaimonia eacute
necessaacuterio o estudo da natureza das virtudes morais e como contribuem para o desenvolvimento e a
correta aplicaccedilatildeo da phronecircsis Destacar-se-aacute uma atenccedilatildeo agraves virtudes morais uma vez que estas
dizem respeito a uma reta orientaccedilatildeo dos desejos e como esta moldagem dos anseios e dos prazeres
a serem buscados promovem um alicerce para o cultivo da virtude intelectual da prudecircncia Os
prazeres e as dores satildeo intrinsecamente ligados agrave natureza humana e agraves accedilotildees do indiviacuteduo O ser
humano busca o prazer e procura se afastar da dor Diante deste quadro eacute de grande importacircncia na
eacutetica aristoteacutelica o indiviacuteduo aprender a fundamentar sua conduta moral em prazeres provenientes
de accedilotildees nobres Pois o homem virtuoso tambeacutem sente prazer na retidatildeo moral Tambeacutem seraacute
abordada uma caracteriacutestica essencial das virtudes a mediania ou o meio-termo O conceito de
mediania eacute um pressuposto importante no contexto da eacutetica aristoteacutelica Por isso eacute necessaacuteria a
compreensatildeo do que seja ela e seu viacutenculo com as virtudes morais Estas satildeo intimamente ligadas agrave
virtude intelectual da prudecircncia Ocorre um processo simultacircneo A praacutetica das virtudes morais
prepara o exerciacutecio da prudecircncia natildeo permitindo que o indiviacuteduo cometa viacutecios por excessos ou por
insuficiecircncias e esta virtude intelectual fornece os melhores meios para alcanccedilar a accedilatildeo virtuosa
Essa relaccedilatildeo eacute descrita por Aristoacuteteles ao assinalar a figura do spoudaios (σπουδαῖος) como modelo
de homens de virtude Em suma o segundo capiacutetulo versaraacute principalmente sobre como as
virtudes morais e intelectuais satildeo imperativas para que o indiviacuteduo alcance uma vida feliz
No terceiro capiacutetulo seraacute feita a anaacutelise da proacutepria virtude da phronecircsis enquanto virtude
intelectual mas que objetiva um conhecimento praacutetico A sua funccedilatildeo primordial eacute de efetivar a
melhor decisatildeo possiacutevel a ser tomada pelo indiviacuteduo defronte agraves inuacutemeras circunstacircncias
encontradas Analisaremos a natureza da virtude da phronecircsis de que maneira esta virtude
intelectual se relaciona com as demais virtudes morais e como ela se desenvolve em vista de um
aperfeiccediloamento do indiviacuteduo Pois a phronecircsis eacute um dos pilares para a aquisiccedilatildeo e correta praacutetica
das demais virtudes morais As virtudes morais propiciam que o indiviacuteduo possa progredir na
praacutetica da virtude intelectual da prudecircncia Eacute a virtude da prudecircncia somada as virtudes morais que
conferem ldquopeso e medidardquo aos atos do indiviacuteduo e determina sobre o momento correto que estes
atos devem ser realizados para que a accedilatildeo humana possa ser considerada virtuosa Seraacute estudada a
noccedilatildeo de reta razatildeo como guia para as virtudes morais sendo a base da virtude da prudecircncia
Tambeacutem vemos qual o seu papel especiacutefico para alcanccedilar a felicidade Para uma melhor
compreensatildeo da virtude da prudecircncia e das virtudes morais analisaremos a relaccedilatildeo entre desejo
(o2recij) escolha (proairesij) e deliberaccedilatildeo (bouleusij A relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos
6
promove a accedilatildeo virtuosa Veremos como o homem virtuoso que exerce a virtude da prudecircncia em
um grau elevado a ponto de ser considerado como um verdadeiro homem prudente torna-se a
proacutepria medida da phronecircsis Por isto examinaremos o que eacute a reta razatildeo e a sua importacircncia para a
prudecircncia Tambeacutem seraacute visto o papel da experiecircncia no desenvolvimento da prudecircncia Uma vez
que este indiviacuteduo possui tanto as virtudes morais quanto agrave virtude da prudecircncia fortalecida pode
ser estimado como um homem que estaacute proacuteximo de ser plenamente feliz Analisamos as partes
integrantes da prudecircncia que satildeo as trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia)
inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn) Portanto o terceiro capiacutetulo eacute dedicado a examinar a
virtude intelectual da prudecircncia e sua importacircncia para a felicidade
Como objetivo final desta pesquisa esperamos demonstrar como a phronecircsis aristoteacutelica
simultaneamente com as virtudes morais contribui para a correta consecuccedilatildeo de uma accedilatildeo moral
virtuosa dentro da imprevisibilidade e contingecircncia do campo da praacutexis pra~~cij Pois esta virtude
proporciona a correta maneira de agir diante de uma situaccedilatildeo ao estabelecer a medida correta para
todas as accedilotildees virtuosas realizadas pelo indiviacuteduo Portanto a phronecircsis e as virtudes morais
possuem um papel central para que o indiviacuteduo alcance uma vida plena O caminho a ser percorrido
neste estudo acerca da virtude da prudecircncia se inicia na compreensatildeo dos conceitos de bem e
finalidade decorrentes da ideia de funccedilatildeo proacutepria do ser humano A anaacutelise destes trecircs conceitos
conduz ao estudo do Supremo Bem que eacute identificado como sendo a eudaimonia Uma vez que as
virtudes satildeo o meio privilegiado para atingir a felicidade torna-se imperativo o entendimento da
natureza das virtudes morais e intelectual E para compreendecirc-las eacute necessaacuterio compreender o que eacute
a mediania e a reta razatildeo Nesta linha de raciociacutenio demonstraremos a relaccedilatildeo entre as virtudes
morais e a virtude intelectual da prudecircncia e como cada uma contribui para o fortalecimento da
outra Por fim natildeo se pode perder de vista que o escopo desta pesquisa eacute a compreensatildeo da natureza
da virtude intelectual da prudecircncia e como esta virtude auxilia o ser humano na construccedilatildeo de uma
vida feliz
7
CAPIacuteTULO I
O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
A eudaimonia e sua relaccedilatildeo com os conceitos de bem finalidade e funccedilatildeo eacute o objeto de
anaacutelise deste primeiro capiacutetulo O conceito de eudaimonia tradicionalmente entendido como
felicidade vida feliz ou plenitude de vida estaacute condicionado a alguns fatores que satildeo desenvolvidos
ao longo do livro I da Eacutetica a Nicocircmaco Deste modo embora sejam feitas referecircncias aos demais
livros que compotildeem o mencionado tratado de Aristoacuteteles visto que estatildeo em parte interligados
entre si o livro I se constitui como o alicerce principal de estudo deste capiacutetulo
O conceito de bem eacute basilar para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica cunhada por Aristoacuteteles Sua
importacircncia reside no fato do conceito de bem ser identificado com o conceito de fim ou de
finalidade dos seres O conceito de finalidade identifica-se com a ideia de funccedilatildeo proacutepria dos seres
O cumprimento desta funccedilatildeo permite que algo ou algueacutem possa alcanccedilar sua finalidade ou seja
realizar o fim para o qual fora criado
Haacute uma distinccedilatildeo entre os bens existentes natildeo sendo todos equivalentes na valoraccedilatildeo que
lhes eacute conferida o que causa uma diferenciaccedilatildeo no seu grau de importacircncia Esta variedade de bens
acarreta uma variedade de fins sendo os mesmos categorizados como fins definitivos e fins
intermediaacuterios A argumentaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre a existecircncia de uma variedade de fins faz o
filoacutesofo de Estagira afastar-se da tese do seu mestre Platatildeo A tese deste uacuteltimo preconiza a
existecircncia de um uacutenico fim que eacute o Bem em si ao qual participam todas as coisas particulares Para
o Estagirita existem vaacuterios tipos de bens que visam o bem uacuteltimo que eacute a felicidade Diante desta
diferenccedila de concepccedilotildees acerca dos fins veremos as criacuteticas de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave filosofia
platocircnica
A vida feliz eacute o fim uacuteltimo a ser buscado Por isso neste capiacutetulo eacute analisada a natureza da
felicidade e suas propriedades Examinamos sobre quais fundamentos Aristoacuteteles forja sua ideia de
felicidade e qual a causa a considerar como o sumo bem Deste modo estudamos qual eacute o tipo de
vida que melhor corresponde agrave ideia de felicidade na visatildeo aristoteacutelica
8
11 O Conceito de Bem
Aristoacuteteles inaugura o seu tratado Eacutetica a Nicocircmaco com a afirmaccedilatildeo de que todas as
atividades humanas nas quais estatildeo inclusas a arte a inquiriccedilatildeo e as escolhas deliberadas visam um
bem Devido a este fato todas as coisas possuem a capacidade para alcanccedilar o seu proacuteprio bem
Como existem diferentes espeacutecies de artes ciecircncias e accedilotildees cada uma possui um tipo de bem
especiacutefico que eacute caracteriacutestico a partir daquela determinada atividade Deste modo as atividades
possuem finalidades distintas umas das outras como afirma Aristoacuteteles
Admite-se geralmente que toda arte (texnh) e toda investigaccedilatildeo (meqodoj) assimcomo toda accedilatildeo pra~~cije toda escolha (proairesij) tecircm em mira um bemqualquer e por isso foi dito com muito acerto que o bem (ta0gaqon) eacute aquilo aque todas as coisas tendem Mas observa-se entre os fins uma certa diferenccedilaalguns satildeo atividades outros satildeo produtos distintos das atividades que osproduzem Onde existem fins distintos das accedilotildees satildeo eles por natureza maisexcelentes do que estas 3
Aristoacuteteles continua sua anaacutelise acerca do bem percorrendo um caminho de reflexatildeo que se
propotildee em primeiro lugar apreender o conceito de bem e em seguida determinar qual eacute o bem
mais proveitoso e por fim determinar o mais importante a ser buscado pelo ser humano Para
cumprir com o objetivo de sua investigaccedilatildeo o filoacutesofo de Estagira procura analisar que tipo de bem
pode ser considerado como o mais essencial e quais os tipos de vida existentes podem ser
candidatos a serem representantes desta ideia de bem essencial ou o sumo bem Do mesmo modo
estabelece uma reflexatildeo sobre o ponto de vista platocircnico de Bem e como essa concepccedilatildeo estaacute
equivocada natildeo sendo possiacutevel adotaacute-la para alcanccedilar a eudaimonia Tambeacutem procura utilizar o
exemplo das diversas ciecircncias para averiguar como pode ser apreendido este sumo bem Por fim
Aristoacuteteles traccedila quais caracteriacutesticas deve possuir este bem para que possa ser estimado como o
mais essencial ao ser humano
Qual eacute o bem supremo E que espeacutecie de vida deve ser vivida para que o atinjamos
Embora de imediato no Livro I do tratado Eacutetica a Nicocircmaco4 haja uma insinuaccedilatildeo de que a
eudaimonia ou seja a felicidade possa ser este bem supremo Aristoacuteteles natildeo concede de modo
faacutecil o posto de bem supremo agrave eudaimonia Ao contraacuterio procura fundamentar no decorrer dos
capiacutetulos do Livro I porque a felicidade deve ser considerada como o bem supremo E discorre
3 EacuteN I 1094a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 Para fins de abreviaccedilatildeo do tiacutetulo da obra Eacuteticaa Nicocircmaco doravante seraacute utilizada a descriccedilatildeo EacuteN nas notas de rodapeacute4 Cf EacuteN I 1095a 15-20 Ibidem p 11
9
sobre quais satildeo as caracteriacutesticas que uma vida deve possuir para que seja considerada uma vida de
plenitude
Eacute importante perceber que no contexto da Eacutetica a Nicocircmaco a ideia de bem (to a0gaqon)
equivale agrave finalidade ao teacutelos (telojque cada coisa possui em decorrecircncia da sua natureza Cada
arte (texnh) investigaccedilatildeo (meqodoj) ou accedilatildeo pra~~cij possui seu teacutelos especiacutefico Aristoacuteteles cita
que a sauacutede eacute a finalidade da medicina o navio eacute a finalidade da construccedilatildeo naval a vitoacuteria eacute a
finalidade da estrateacutegia a riqueza eacute a finalidade da economia5 Logo isso significa que cada coisa
tem uma finalidade e os fins satildeo fatores determinantes tanto para a compreensatildeo da natureza dos
seres quanto para a das accedilotildees humanas
Assim em que consiste o bem aristoteacutelico Aristoacuteteles defende a tese de que natildeo existe um
uacutenico bem em si mesmo que todas as coisas tendam para este uacutenico Bem Conforme visto
anteriormente seu argumento eacute radicalmente oposto agrave ideia concebida por Platatildeo Para Aristoacuteteles
os bens estatildeo conectados intimamente agrave imensa variedade de seres existentes pois constituem suas
proacuteprias finalidades Cada ser tende para seu fim para seu teacutelos (teloj) especiacutefico O ser humano
tambeacutem possui uma finalidade proacutepria Logo o Supremo Bem deve ser encontrado tendo em vista o
que eacute proacuteprio do ser humano
O Supremo Bem serve como paracircmetro para a vida humana e consequentemente para as
accedilotildees do agente Por isso deve ser factiacutevel de ser alcanccedilado pela accedilatildeo humana E para se constituir
como paracircmetro para a vida humana deve ser absoluto e autossuficiente porque natildeo eacute possiacutevel ser
paracircmetro se natildeo possui estabilidade Eacute neste momento da Eacutetica a Nicocircmaco que Aristoacuteteles
conclui que o Supremo Bem eacute a proacutepria eudaimonia A felicidade eacute o uacutenico bem que possui as
propriedades descritas de ser absoluta e de ser autossuficiente aleacutem de conferir sentido agraves
atividades realizadas ou seja eacute a finalidade uacuteltima da accedilatildeo de cada pessoa6
Ora esse eacute o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade (eu0daimonia)Eacute ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa ao passoque agrave honra ao prazer agrave razatildeo e a todas as virtudes noacutes de fato escolhemos por simesmos (pois ainda que nada resultasse daiacute continuariacuteamos a escolher cada umdeles) mas tambeacutem os escolhemos no interesse da felicidade pensando que aposse deles nos tornaraacute felizes A felicidade todavia ningueacutem a escolhe tendo emvista algum destes nem em geral qualquer coisa que natildeo seja ela proacutepria [] Afelicidade eacute portanto algo absoluto (teleion) e auto-suficiente (au1tarkej) sendotambeacutem a finalidade da accedilatildeo (praktw~~n ou]sa teloj)7
5 Cf EacuteN I 1094a 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 6 A eudaimonia tambeacutem se constitui como criteacuterio para todas as accedilotildees da sociedade poliacutetica A felicidade na poacutelis eacute umdos temas tratados na Poliacutetica Por natildeo ser o escopo do presente trabalho natildeo seraacute visto de forma minuciosa pois aEacutetica a Nicocircmaco natildeo adentra nesta questatildeo de modo direto e aprofundado Mas eacute interessante perceber a iacutentimaconexatildeo entre as accedilotildees de cada agente enquanto cidadatildeo e a forma de conviacutevio em uma poacutelis que eacute analisada porAristoacuteteles no tratado da Poliacutetica7 EacuteN I 1097b 1-7 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15
10
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles continua a exposiccedilatildeo de sua ideia acerca dos bens de cada
arte mas cita que as artes com as caracteriacutesticas intriacutensecas a cada uma delas se subordinam a uma
finalidade uacutenica anaacuteloga agrave fabricaccedilatildeo de utensiacutelios diversos como reacutedeas e selas para a montaria
em cavalos estaacute subordinada agrave arte da equitaccedilatildeo Esta situaccedilatildeo tambeacutem ocorre com as atividades
militares em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia de guerra e assim ocorre com diversas artes que se subordinam a
outras artes Neste caso de subordinaccedilatildeo das artes em relaccedilatildeo a uma determinada arte mais
abrangente conforme os exemplos da equitaccedilatildeo e da estrateacutegia Aristoacuteteles avalia que os fins destas
artes mais abrangentes satildeo mais importantes que os fins das artes subordinadas Isso ocorre porque
os fins das artes principais satildeo os fins almejados enquanto os fins das artes subordinadas tornam-se
apenas meios para a consecuccedilatildeo dos fins principais8
O que estaacute exposto nesta primeira parte do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco eacute a divisatildeo entre
fins (bens) primaacuterios e fins secundaacuterios9 haja vista a multiplicidade de fins em decorrecircncia da
variedade de seres e de accedilotildees A existecircncia desta hierarquia de fins culmina em um fim uacuteltimo que eacute
a eudaimonia Aristoacuteteles assinala que eacute necessaacuterio haver um fim derradeiro porque sem este fim a
sequecircncia de fins seria infinita o que tornaria inuacutetil a busca pela felicidade10
Na Eacutetica a Eudemo Aristoacuteteles descreve em que consiste esta multiplicidade dos bens11 O ser
(to o1n pode ser apreendido sob diversas formas conforme as Categorias12 a substacircncia (ou0sia13
a qualidade (poion a quantidade (poson) o tempo (pote) espaccedilo (pouetc Tendo em vista que
natildeo existe uma ciecircncia uacutenica de todos os seres mas vaacuterias ciecircncias que desvendam os seres dos
entes segue-se que natildeo pode existir um bem uacutenico imediato em relaccedilatildeo a todos dos seres Deste
modo haacute vaacuterios bens tanto quanto existem vaacuterios seres Aristoacuteteles ainda exemplifica os vaacuterios
bens existentes em algumas categorias traccedilando um paralelo entre estas categorias e determinados
8 Cf EacuteN I 1094a 15 Ibidem p 99 No que tange a nomenclatura dos bens (fins) de cada atividade haacute outros termos que podem ser usados para se referira estes fins tais como fins principais fins intermediaacuterios fins preciacutepuos fins subordinados etc Tambeacutem eacute possiacutevelsubstituir o termo ldquobemrdquo ou ldquofimrdquo por ldquofinalidaderdquo Eventualmente todos estes termos seratildeo usados no decorrer dotexto como sinocircnimos A questatildeo essencial eacute a compreensatildeo de que haacute uma relaccedilatildeo de hierarquia entre os fins de cadaarte accedilatildeo ou ciecircncia ou seja dos fins em geral em vistas a um fim mais amplo 10 Cf EacuteN I 1094a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 911 Cf EacuteE I 1217b 27 Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 2015 p 5912 A lista completa de dez categorias eacute descrita por Aristoacuteteles em Categorias 41b 25 2a 1-10 Cf ARISTOacuteTELESOacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas(Seacuterie Claacutessicos Edipro) Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edson Bini Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev 2010 p41-42 13 O termo ousia eacute melhor entendido a partir dos conceitos em latim de essentia substantia Haacute uma diferenccedila entre otermo ousia no qual adota-se a palavra ldquoessecircnciardquo de tograve tiacute esti ( que significa o ldquoser de uma coisarsquo comoldquoessencialidaderdquo ou ldquosubstacircnciardquo Entendemos que os dois termos podem ser utilizados como sinocircnimos para o presenteestudo visto que natildeo eacute o objetivo deste trabalho proceder a uma anaacutelise da filosofia primeira cunhada por AristoacutetelesTambeacutem entendemos que os dois termos conseguem expressar de modo geral a ideia da pergunta ldquoo que eacute istordquoreferindo-se agravequilo que necessariamente eacute e faz um ente ser o que eacute de fato Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles TradRoberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 147
11
predicados relacionados agrave eacutetica Por exemplo o bem eacute predicado de Deus e do intelecto na categoria
de substacircncia na categoria da qualidade eacute o justo na categoria da quantidade eacute a moderaccedilatildeo na
categoria do tempo eacute o momento oportuno14
Ao postular a tese da multiplicidade de bens Aristoacuteteles estabelece uma posiccedilatildeo diferente da
tese defendida por seu mestre e antecessor Platatildeo o qual assevera a existecircncia de uma uacutenica Forma
de Bem Para Platatildeo o Bem em si possui algumas propriedades que o qualificam como o bem
fundamental o Bem pelo qual satildeo subordinados e participam todas as coisas boas As coisas
participam desta Forma de Bem por derivaccedilatildeo pois Esta fornece os atributos necessaacuterios para a
existecircncia e constituiccedilatildeo destes bens derivados15 Esta Forma de Bem eacute imutaacutevel e eterna sua
essecircncia permanece a mesma o que natildeo permite sua alteraccedilatildeo com o tempo Aristoacuteteles assevera
que natildeo eacute possiacutevel existir um uacutenico Bem em si um determinado tipo de bem que seja ldquogeralrdquo para
todos e dissociados dos seres Antes o estagirita afirma que cada ser possui e consequentemente
deseja o bem que lhe eacute especiacutefico pertencente a sua particularidade conforme descrito na Eacutetica a
Eudemo ldquoAdemais a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas existentes desejam um bem uacutenico eacute falsa
cada coisa anseia pelo bem que lhe eacute particular o olho a visatildeo o corpo a sauacutede e analogamente
outros bens []rdquo16 Deste modo a diferenccedila fundamental entre a visatildeo do bem aristoteacutelico e do Bem
platocircnico eacute que Aristoacuteteles advoga a ideia que existe um bem uacuteltimo para qual se dirigem os seres
Enquanto na perspectiva de Platatildeo haacute uma uacutenica Forma de Bem que eacute causa dos outros bens os
quais apenas satildeo bons por participaccedilatildeo e semelhanccedila agravequela Forma17
Na Eacutetica a Nicocircmaco tambeacutem se encontra a criacutetica de Aristoacuteteles agrave doutrina platocircnica da
Forma do Bem e a descriccedilatildeo da tese da pluralidade de bens18 Nesta parte o Estagirita postula que
natildeo pode existir uma uacutenica Forma de Bem pois a proacutepria palavra ldquobemrdquo eacute utilizada para se referir a
diversas categorias A substacircncia significa a proacutepria essecircncia daquilo que eacute o ser da coisa
naturalmente eacute anterior agrave categoria de relaccedilatildeo Sendo assim uma uacutenica Forma natildeo pode abranger
todos estes tipos de bens O termo ldquobemrdquo pode ter diversos significados referentes agrave variedade de
sentidos que comporta o ser Ou seja os bens satildeo pertinentes ao nuacutemero de seres existentes E como
os bens satildeo caracterizados conforme as categorias natildeo eacute possiacutevel que o bem possa ser uniacutevoco e
inteiramente presente em um uacutenico ser Por conseguinte o Bem platocircnico natildeo poderia ser predicado
em cada uma das categorias Como estaacute descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
14 Cf EacuteE I 1217b 16-34 Eacutetica a Eudemo Op cit p 5915 Cf EacuteE I 1217b 1-15 Ibidem p 5716 EacuteE I 1217b 30-33 Ibidem p 5917 Cf EacuteE I 1217b 5-15 Ibidem p 5818 Cf EacuteN1096a 16-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 13
12
Aleacutem disso como a palavra ldquobemrdquo (ta0gaqon) tem tantos sentidos quantos ldquoserrdquo(o1nti) (visto que eacute predicada tanto na categoria de substacircncia como na de Deus(qeoj) e da razatildeo (nou=j) quanto na de qualidade (poiw~~) isto eacute das virtudes(a0retai) na de quantidade (ποσῷ) isto eacute daquilo que eacute moderado (metrion) nade relaccedilatildeo isto eacute do uacutetil (xrhimon) na de tempo (χρόνῳ) isto eacute da oportunidadeapropriada (kairoj) na de espaccedilo (τόπῳ) isto eacute do lugar apropriado etc) estaacuteclaro que o bem natildeo pode ser algo uacutenico e universalmente (kaqolou) presente poisse assim fosse natildeo poderia ser predicado em todas as categorias (kathgoriaj)mas somente numa19
Por este motivo Aristoacuteteles tambeacutem natildeo concorda com que o ldquomelhor bem de todosrdquo possa
ser entendido como um bem uacutenico pois isto seria irrealizaacutevel Para demonstrar a impossibilidade da
existecircncia de um Bem em si para todos os seres o Estagirita utiliza o caso das ciecircncias pois se
houvesse uma uacutenica Forma de Bem deveria existir uma uacutenica ciecircncia de todos os bens A realidade
prova que isso natildeo existe tendo em vista a variedade de ciecircncias que estuda cada tipo de ser20 Uma
ciecircncia especiacutefica natildeo procura um objeto em geral mas um objeto especiacutefico ligado ao seu estudo
conforme exemplifica Aristoacuteteles A medicina busca alcanccedilar a sauacutede natildeo visa alcanccedilar um bem
em geral que sirva como modelo para qualquer outra coisa 21
Para Aristoacuteteles o Supremo Bem tem de ser alcanccedilaacutevel pela accedilatildeo humana A vida feliz estaacute
no acircmbito da praacutexis De modo geral a ideia de praacutexis pode se referir a uma accedilatildeo ligada agrave razatildeo
vinculada a uma conduta a um modo de proceder da pessoa Por isso fala-se em ldquoagenterdquo desta
accedilatildeo pois o agente eacute a pessoa que realiza a accedilatildeo de maneira racional jaacute que um animal tido como
irracional natildeo pode agir no sentido aqui proposto
De tal maneira o Estagirita desfavorece o conceito de um fim que esteja longe da accedilatildeo do
indiviacuteduo que assevera que mesmo que houvesse uma uacutenica Forma de Bem conforme advogava
seu mestre antecessor esta ideia uacutenica de bem de nada serviria para a eacutetica O fim buscado tem de
estar necessariamente ligado agrave accedilatildeo humana Aristoacuteteles eacute expressivo ao afirmar que cada accedilatildeo
cada propoacutesito eacute realizado em funccedilatildeo da finalidade daquela atividade Por isso caso haja uma
finalidade geral (um ldquofim maiorrdquo) a ser buscado pelo agente este bem eacute executaacutevel pela accedilatildeo E se
existir mais de um bem eles devem ser alcanccedilados por meio das accedilotildees humanas22 Portanto sendo
ligado agrave accedilatildeo humana este soberano bem natildeo poderia ser algo inexequiacutevel para os seres humanos
Conforme Aristoacuteteles nos mostra na Eacutetica a Eudemo
19 EacuteN I1096a 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1220 Cf EacuteN I1096a 30 Ibidem p 1321 Cf EacuteE I1218b 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Eudemo Op cit p 61-6222 Cf EacuteN I1097a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 14
13
Fica evidente portanto que o bem em si objeto de nossa busca natildeo eacute a Forma dobem como tambeacutem natildeo eacute o bem como universal (posto que a primeira eacute imutaacutevel einexequiacutevel enquanto o segundo embora mutaacutevel eacute inexequiacutevel) Entretanto oobjeto visado como fim eacute o melhor aleacutem de ser a causa daqueles que lhe estatildeosubordinados e o primeiro de todos os bens esse bem consequentemente seria obem em si ou seja o fim exequiacutevel humano Trata-se do bem que se enquadranaquele que eacute soberana entre todas as ciecircncias [praacuteticas] nomeadamente a poliacuteticaassociada agrave economia e agrave sabedoria praacutetica 23
O Supremo Bem tem de estar ao alcance da realizaccedilatildeo humana Aristoacuteteles ao traccedilar a
criacutetica agrave ideia platocircnica de uma Forma de Bem alega que mesmo que existisse essa forma ideal de
bem ela em nada auxiliaria as atividades humanas Primeiro ela seria inatingiacutevel Segundo ela natildeo
contribuiria em nada para o exerciacutecio de qualquer ofiacutecio Eis o questionamento de Aristoacuteteles acerca
da Forma do Bem em que conhecer a Forma de Bem faria um meacutedico exercer melhor a medicina e
curar seus pacientes Ou em que este conhecimento da Forma de Bem tornaria excelente um
general em estrateacutegias de batalhas levando-o agrave vitoacuteria24 Mesmo que houvesse algueacutem que
argumente que o conhecimento da Forma do Bem auxilie o agente conseguir os bens que podem ser
alcanccedilados pela accedilatildeo pois serve como um paracircmetro o estagirita afirma que este argumento natildeo
procede visto que todas as ciecircncias visam bens especiacuteficos e natildeo um bem geral
Na busca para desvendar em que consiste este ldquobem maiorrdquo em uma perspectiva diferente da
concepccedilatildeo platocircnica Aristoacuteteles cita duas propriedades A primeira eacute que este tipo de bem deve ser
absoluto completo acabado (τέλειον25 O conceito de completo significa que este bem natildeo eacute
buscado como intermediaacuterio para alcanccedilar outro bem O ldquobem maiorrdquo eacute procurado como um fim em
si mesmo natildeo sendo condiccedilatildeo para qualquer outro tipo de fim Ou seja este bem tem de ser
incondicional e final e natildeo pode ser um bem intermediaacuterio A segunda propriedade deste bem eacute a de
ser autossuficiente A autossuficiecircncia (αὐτάρκειαdo ldquobem maiorrdquo consiste em prover somente
por si mesmo uma vida agradaacutevel e que natildeo falte nada26 Mas esta autossuficiecircncia natildeo pode ser
entendida sob um prisma individual como se o indiviacuteduo natildeo dependesse de nada ou de ningueacutem
Ao contraacuterio a autarkeia deve ser compreendida a partir de um prisma coletivo Esta perspectiva
23 EacuteE I 1218b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 6224 Cf EacuteN I 1097a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1425 Na Metafiacutesica 1021b 30 o termo teacuteleion eacute descrito do seguinte modo ldquoPortanto as coisas como se dizem perfeitaspor si em todos esses sentidos algumas porque relativamente a seu bem natildeo carecem de nada ou natildeo satildeo superadospor outras e natildeo tecircm nenhuma de suas partes fora de si outras em geral porque natildeo satildeo superadas por outra e natildeo tecircmnenhuma parte fora de si no acircmbito do seu gecircnerordquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego comtraduccedilatildeo e comentaacuterios de Giovanni Reale) Vol II Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ed 2005p 24126 Cf EacuteN I 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 15
14
comunitaacuteria eacute perceptiacutevel quando Aristoacuteteles remete ao fato que deve ser observada a suficiecircncia
em funccedilatildeo tambeacutem dos pais esposa amigos e cidadatildeos da poacutelis27
Ao considerarmos a relaccedilatildeo entre fins preciacutepuos que satildeo buscados em si mesmos e fins
subordinados de caraacuteter instrumental que servem como fins para alcanccedilar um fim maior essa
relaccedilatildeo de hierarquia traz alguns questionamentos a serem considerados De modo sucinto
expomos estes questionamentos uma vez que estatildeo inseridas na histoacuteria dos estudos acerca da eacutetica
aristoteacutelica A primeira questatildeo versa acerca da possibilidade de Aristoacuteteles ter cometido uma
falaacutecia chamada de ldquomenino e meninardquo A segunda questatildeo diz respeito ao bem supremo ser
compreendido como um fim dominante ou um fim inclusivo
12 Uma possiacutevel falaacutecia aristoteacutelica
A ideia de um fim uacuteltimo a ser alcanccedilado por meio de fins instrumentais eacute posta por
Aristoacuteteles no iniacutecio Eacutetica a Nicocircmaco A forma que eacute descrita esta relaccedilatildeo no tratado aristoteacutelico
entre o Supremo Bem que eacute buscado por si proacuteprio e demais fins que satildeo subordinados a ele gerou
o debate apresentado neste toacutepico Sobre o tema se Aristoacuteteles cometeu ou natildeo a falaacutecia
argumentativa sobre o argumento do fim expomos as perspectivas de Peter Thomas Geach e Peter
Vranas O primeiro considera que o estagirita incorreu em uma falaacutecia o segundo defende a ideia
que natildeo foi cometida nenhuma falaacutecia no argumento aristoteacutelico Neste sentido segue o trecho a ser
comentado
Se pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo etudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisadesejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito einuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem ou antes osumo bem28
27 Cf EacuteN I 1097b 10-13 Ibidem p 15 Entendemos tambeacutem que a ideia de autossuficiecircncia natildeo pode sercompreendida somente de modo individual tendo em vista o fato que o conceito de autarkeia tambeacutem eacute fundamentalpara a concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo poliacutetica da Cidade-estado grega Uma vez que a poacutelis eacute construiacuteda com a finalidade deser autocircnoma com todos os meios de prover a si proacutepria e propiciar o melhor ambiente para que os cidadatildeos alcancemuma vida feliz Conforme Aristoacuteteles aponta na obra Poliacutetica I 1252b 30-1253a 1-5 a vida feliz eacute a finalidade naturalda comunidade poliacutetica e todo ser estaacute plenamente integrado na natureza quando atinge seu pleno desenvolvimento ouseja estaacute completo com perfeiccedilatildeo Deste modo uma vez que o ser humano possui uma natureza social ela somente serealiza plenamente no contexto da poacutelis Outro fator que consideramos que a autossuficiecircncia eacute compreendida dentro deuma visatildeo coletiva refere-se agrave virtude da justiccedila De acordo com o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco V 1130a 1-5 elasomente pode ser exercida dentro de uma sociedade pois visa o bem alheio Eacute uma virtude que natildeo pode ser praticadade modo solitaacuterio pelo agente mas deve realizaacute-la em funccedilatildeo dos outros Disto decorre que a vida feliz de um indiviacuteduotambeacutem estaacute em parte relacionada agrave felicidade das pessoas que o cercam de modo mais proacuteximo e da comunidade emgeral 28 EacuteN I 1094a 18-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 9
15
Assim sendo abordemos a questatildeo da dita falaacutecia aristoteacutelica Segundo o comentador
Geach29 seria um erro de loacutegica formal Eacute perceptiacutevel que existe uma diferenccedila entre as expressotildees
(i)Todo menino ama alguma meninardquo e (ii) ldquoHaacute alguma menina que todo menino amardquo30 Se
tomarmos a expressatildeo ldquoTodo menino ama alguma meninardquo natildeo eacute possiacutevel inferir que ldquoHaacute alguma
menina que todo menino amardquo sem fazer uma falaacutecia Ou seja (i) natildeo implica em (ii)
Agrave luz do exemplo de Geach o deslize argumentativo manifesta-se no fato de afirmar que
Todo menino ama alguma meninardquo natildeo implica necessariamente que exista alguma menina ou
seja uma uacutenica menina que todo menino ama Em termos teacutecnicos da loacutegica moderna a falaacutecia
cometida por Aristoacuteteles eacute denominada como uma falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores31
Na falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores eacute realizada uma passagem interdita entre um
conjunto de relaccedilotildees dispersas32 de fins para um conjunto de relaccedilotildees convergentes33 para um uacutenico
fim Isso se traduz da seguinte forma Se imaginarmos um conjunto de meninas e um outro conjunto
de meninos com o mesmo nuacutemero de elementos em cada conjunto Uma primeira possibilidade de
interaccedilatildeo entre os elementos de cada grupo seria cada rapaz amar uma garota que nenhum outro
garoto do grupo dos meninos ame tambeacutem Neste caso os dois conjuntos estatildeo dispersos natildeo haacute
uma convergecircncia entre os elementos dos respectivos grupos devido ao fato que um garoto
somente ama uma garota Na segunda possibilidade todos os garotos amam uma exclusiva e mesma
garota entatildeo existe uma convergecircncia total de todos os elementos do conjunto dos meninos
direcionados para uma uacutenica garota do grupo das meninas34 Deste modo essa inversatildeo de
quantificadores aplicada ao argumento aristoteacutelico significa afirmar que podem haver diferentes fins
a serem buscados tendo em vista a variedade de coisas e desejos humanos Eacute o caso mesmo que
natildeo desejemos uma seacuterie infinita de coisas a serem buscadas com vistas em outra pois este fato
acarreta uma seacuterie infinita de desejos Isto natildeo implica necessariamente que exista um uacutenico e
melhor fim que desejemos e todos os outros fins sejam buscados em funccedilatildeo dele
Eacute preciso observar no caso em questatildeo que Geach natildeo analisa especificamente agrave Eacutetica a
Nicocircmaco e nem o argumento aristoteacutelico por si mesmo Ele apenas o utiliza como exemplo
29 Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972 p 1-1330 No dizer de Geach ldquoAnybody can see that from lsquoEvery boy loves some girlrsquo we cannot infer lsquoThere is some girl thatevery boy lovesrsquo that from lsquoIt is obligatory that somebody should gorsquo it does not follow that lsquoThere is somebody who itis obligatory should gorsquo[] rdquo Ibidem p 131ldquoOperator-shift fallacy ldquoou ldquoquantifier-shift fallacyrdquo Cf Ibidem p 132 A dispersatildeo significa que cada elemento pertencente a um grupo x busca os outros elementos do grupo y Natildeo existea busca dos elementos do grupo x para um uacutenico elemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees dispersassignificam que todos os garotos buscam todas as garotas Ou seja cada garoto procura conquistar a sua garota Natildeo haacuteuma busca do grupo dos garotos para alcanccedilar uma uacutenica e mesma garota 33 A convergecircncia significa a orientaccedilatildeo para um mesmo objetivo Todos os elementos do grupo x buscam um uacutenicoelemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees convergentes significam que todos os garotos convergem ouseja todos se orientam para buscar uma uacutenica e mesma garota34 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia aristoteacutelica Tese deDoutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas p 78
16
juntamente com trechos de escritos de outros filoacutesofos famosos35 para demonstrar os requisitos
necessaacuterios de uma teoria da quantificaccedilatildeo na loacutegica moderna E tambeacutem utiliza estes escritos para
mostrar como pode ser uma ocorrecircncia comum cometer este tipo de falaacutecia de inversatildeo de
quantificadores36
A questatildeo da validade loacutegica expressa no referido trecho da Eacutetica a Nicocircmaco citado acima
natildeo eacute o escopo principal deste trabalho Mas eacute interessante apontar de maneira miacutenima um
possiacutevel caminho de superaccedilatildeo que este impasse trouxe agrave leitura do argumento aristoteacutelico haja
vista ser um dos argumentos centrais acerca da eudaimonia pois ela eacute o fim que natildeo se busca leva a
nenhum outro Para tanto seguimos dois enfoques descritos a seguir
Na primeira abordagem consideremos somente o aspecto da validade formal do argumento
aristoteacutelico Um possiacutevel caminho eacute realizar uma interpretaccedilatildeo do argumento aristoteacutelico que una as
proposiccedilotildees (a) ldquoSe pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo
e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim [] rdquo e (b) ldquo[]se eacute verdade que nem toda coisa
desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo
seria o nosso desejar) []rdquo como duas premissas que fundamentam a conclusatildeo (c) ldquo[] tal fim
seraacute o bem ou antes o sumo bemrdquo Isso eacute possiacutevel devido a utilizaccedilatildeo do termo ldquoerdquo (kai)37 no texto
aristoteacutelico que introduz a proposiccedilatildeo (a) e faz a ligaccedilatildeo com a proposiccedilatildeo (b) Logo haacute uma
indicaccedilatildeo hipoteacutetica da existecircncia de um fim desejado por si um fim uacuteltimo (fim universal) que
subordina os demais fins que satildeo instrumentais
Esta interpretaccedilatildeo literal do argumento aristoteacutelico eacute defendida por Peter Vranas38 que
retoma a mesma linha de raciociacutenio anteriormente defendida por Michael Wendin39 segundo a qual
Aristoacuteteles natildeo cometeu uma falaacutecia E natildeo incorreu em uma falaacutecia porque as duas proposiccedilotildees (a)
e (b) devem ser entendidas como uma conjunccedilatildeo No entender de Vranas caso consideremos que
existam dois fins uacuteltimos implicados se (a) eacute um fim universal e (b) eacute um fim natildeo-instrumental
procede que existe um uacutenico fim natildeo-instrumental40 que eacute equivalente a um fim uacutenico universal41
Logo esta conjunccedilatildeo implica que o fim proposto por Aristoacuteteles eacute um fim de caraacuteter natildeo-
instrumental o que significa que eacute um fim uacutenico universal42
35 Geach utiliza trechos de obras de Platatildeo Berkeley Spinoza Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Op cit p 2-536 Ibidem p 237 A junccedilatildeo das duas proposiccedilotildees eacute admissiacutevel tendo em vista o uso do termo καί que eacute o equivalente na liacutenguaportuguesa agrave conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo38 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo Phronesis Vol 50Nordm 2 2005 p 116-128 39 Cf WEDIN M ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981 p243-262 40 Fim natildeo-instrumental significa que este natildeo eacute perseguido por causa de nenhum outro fim41 Fim uacutenico universal equivale ao fim uacuteltimo42 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best goodrdquo Op cit p 118
17
Nesta linha de raciociacutenio caso as proposiccedilotildees (a) e (b) sejam verdadeiras sendo (a) um fim
uacutenico universal todos os outros fins tornam-se intermediaacuterios (fins ldquoxrdquo) instrumentos para alcanccedilar
(a) Inclusive o fim (b) assume nesta hipoacutetese um caraacuteter instrumental Mas a situaccedilatildeo pode ser
invertida pois caso (b) seja o fim a ser buscado torna-se o fim uacutenico universal com os fins
intermediaacuterios (fins ldquoyrdquo) como instrumentos para alcanccedilar (b) Neste caso (a) passa a ser
instrumental Portanto mesmo que um indiviacuteduo siga qualquer um dos fins (a) ou (b) como estatildeo
mutuamente relacionados entre si de todos os modos sua busca recai sobre o fim uacutenico universal43
A interpretaccedilatildeo de Vranas eacute interessante do ponto de vista da loacutegica formal e tenta inocentar
Aristoacuteteles de ter cometido a mencionada falaacutecia Este esforccedilo possui o seu meacuterito tendo em vista
ser uma denuacutencia que tem durado ao longo do tempo e defendida por diversos estudiosos da obra do
Estagirita Ainda assim haacute em nosso entender uma fragilidade no argumento exposto pelo citado
comentador A interpretaccedilatildeo literal estaacute baseada em uma leitura que aparentemente procura forccedilar
um limite de explicaccedilatildeo que natildeo encontra respaldo no texto aristoteacutelico Ao considerar o tratado da
Eacutetica a Nicocircmaco como um todo natildeo nos parece que haja dois fins uacuteltimos um de caraacuteter universal
e outro natildeo-instrumental de que possuam relaccedilotildees reciacuteprocas entre si Este fim universal e uacutenico eacute
asseverado pelo Estagirita quando afirma a existecircncia de apenas um fim absoluto e incondicional
Se porventura existir mais de um fim o mais absoluto de todos torna-se o objetivo a ser alcanccedilado
Este fim absoluto e incondicional eacute a proacutepria eudaimonia visto que todos os outros fins
intermediaacuterios satildeo buscados como meios para alcanccedilar uma vida feliz44 Assim sendo o texto de
Aristoacuteteles leva ao entendimento que exista somente um fim que eacute universal e uacutenico e os demais
fins possuem um caraacuteter instrumental de subordinaccedilatildeo a este fim universal
Em relaccedilatildeo ao argumento de Geach no qual ele afirma que natildeo eacute possiacutevel inferir a partir da
proposiccedilatildeo Todo menino ama alguma meninardquo que exista ldquoHaacute alguma menina que todo menino
amardquo O problema eacute que esta afirmaccedilatildeo natildeo considera a questatildeo da hierarquia de fins mencionada
no texto aristoteacutelico Ao desconsiderar esta hierarquia de fins haacute a eliminaccedilatildeo de qualquer
possibilidade de convergecircncia entre o Sumo Bem e outros fins A hierarquia entre fins subordinados
e os fins principais das variadas artes ciecircncias e atividades eacute descrita por Aristoacuteteles ao enumerar
alguns exemplos o fim da arte meacutedica eacute a sauacutede o fim da construccedilatildeo naval eacute a fabricaccedilatildeo do navio
o fim da estrateacutegia eacute a vitoacuteria o fim da economia eacute a riqueza o fim da selaria eacute a equitaccedilatildeo Os fins
uacuteltimos de cada arte satildeo preferiacuteveis por serem mais importantes por isso devem ser buscados por
meio dos fins subordinados45 O texto aristoteacutelico eacute claro ao afirmar a existecircncia de uma hierarquia
de fins em si que se encaminha agravequele fim uacuteltimo que eacute perseguido por todo ser humano em sua
43 Ibid p 11944 Cf EacuteN 1097a 25-30 a 1097b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1545 Cf EacuteN 1094a 7-15 Ibidem p 9
18
vida Eacute um raciociacutenio de cunho arquitetocircnico o qual mostra que os vaacuterios fins subordinados satildeo
etapas para alcanccedilar o fim uacuteltimo de determinada arte Deste modo como o objeto da eacutetica
aristoteacutelica eacute a felicidade humana Aristoacuteteles descreve a ldquoarquiteturardquo de construccedilatildeo de uma vida
feliz na qual cada fim eacute buscado com vistas a alcanccedilar esta plena realizaccedilatildeo que eacute a felicidade (fim
supremo)
O argumento de Geach parece natildeo contemplar esta arquitetura proveniente desta
convergecircncia do fim uacuteltimo e os fins subordinados Para uma melhor compreensatildeo desta
convergecircncia dos diversos fins um bom exemplo seria pensar em uma bacia hidrograacutefica46 Existem
rios secundaacuterios que satildeo diferentes entre si cada um com sua foz individual mas todos convergem
para o rio principal que desemboca no mar ou em um lago Cada rio secundaacuterio converge para um
fim maior mais abrangente que eacute o rio principal que desemboca no mar ou no lago que neste caso
representa o fim supremo Tal como a medicina busca a sauacutede a estrateacutegia busca agrave vitoacuteria agrave selaria
busca a equitaccedilatildeo etc e todas satildeo realizadas em vista da eudaimonia Logo a rede hidrograacutefica
como um todo eacute convergente e natildeo somente um uacutenico rio
A segunda abordagem visa examinar o domiacutenio referencial no qual o argumento aristoteacutelico
estaacute fundamentado em um aspecto praacutetico ou teoacuterico Para esta linha de pensamento a referecircncia
principal do argumento aristoteacutelico se encontra no universo da accedilatildeo O raciociacutenio do fim uacuteltimo
pode ser analisado sob dois prismas e cada um deles conduz agrave uma conclusatildeo diferente O primeiro
prisma eacute o de validade loacutegica o qual descrevemos acima ao examinar a criacutetica de Geach ao texto
aristoteacutelico O segundo prisma eacute analisar o argumento aristoteacutelico inserido no campo das accedilotildees
humanas Caso o argumento aristoteacutelico seja examinado sob o ponto de vista da loacutegica formal
apenas resta tentar estabelecer formas de evitar o julgamento de Geach por meio dos instrumentos
cabiacuteveis da loacutegica formal ou simplesmente aceitar o fato que houve o cometimento de uma falaacutecia
pelo Filoacutesofo Mas caso seja escolhido o prisma referencial que coloca o argumento aristoteacutelico no
acircmbito da praacutexis humana talvez seja possiacutevel sobrepujar o desafio imposto por Geach Portanto
procederemos agrave anaacutelise do argumento aristoteacutelico sob a oacutetica da dimensatildeo praacutetica
O domiacutenio referencial no qual se insere o argumento aristoteacutelico eacute a accedilatildeo humana Natildeo se
trata somente de considerar a validade loacutegica das proposiccedilotildees como verdadeiras ou falsas mas
tambeacutem como devem ser entendidos conceitos importantes para a anaacutelise da conduta dos
indiviacuteduos tais como a felicidade o bem humano as virtudes etc Neste sentido haacute um
deslocamento para o domiacutenio praacutetico do argumento aristoteacutelico evitando seu uso somente no
domiacutenio teoacuterico no qual Geach realiza sua anaacutelise O domiacutenio teoacuterico e o domiacutenio praacutetico satildeo
compreendidos a partir da conceituaccedilatildeo de Aristoacuteteles O aspecto teoacuterico desenvolve as operaccedilotildees
46 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Op cit p 89
19
intelectuais da bios theorethikoacutes da verdade e da falsidade dos postulados do raciociacutenio47 enquanto
o aspecto praacutetico tem por objeto natildeo somente a validade das proposiccedilotildees mas orientar a conduta do
homem em funccedilatildeo da verdade Logo este uacuteltimo aspecto cuida para que a verdade permaneccedila em
concordacircncia com a retidatildeo no desejo e possa orientar a racionalidade praacutetica para a consecuccedilatildeo de
um fim nobre48
13 Fim dominante ou fim inclusivo
Neste ponto pode surgir um questionamento acerca da relaccedilatildeo entre fins e o supremo bem
uma vez que possa haver uma convergecircncia entre fins em prol de um fim supremo Quais fins
devem ser buscados pelo indiviacuteduo para que atinja uma vida feliz A resposta a esta pergunta
inspira duas perspectivas diferentes sobre o Supremo Bem e qual eacute a sua relaccedilatildeo com os fins
subordinados a ele Neste sentido existem duas visotildees sobre o Supremo Bem A primeira eacute vista
sob o prisma de um fim uacuteltimo dominante a segunda como um fim uacuteltimo inclusivo Deste modo
abordaremos estes dois pontos de vista acerca deste Bem maior
Uma vez que o sumo bem eacute a eudaimonia esta eacute identificada com a vida teoacuterico-
contemplativa ou pelo menos haacute uma grande ecircnfase neste tipo de vida como sendo uma vida
feliz49 Logo a pergunta central eacute saber se a vida feliz eacute somente caracterizada pela contemplaccedilatildeo
ou tambeacutem inclui outros tipos de bens
Na anaacutelise acerca do fim aristoteacutelico ser dominante ou inclusivo os principais estudiosos satildeo
William Francis Ross Hardie e John Lloyd Ackrill O primeiro comentador W F R Hardie defende
o ponto de vista de um fim dominante Enquanto o segundo estudioso advoga que o fim descrito por
Aristoacuteteles deve ser observado a partir de uma perspectiva inclusivista
No caminho de anaacutelise acerca da eudaimonia ser um fim dominante ou inclusivo WFR
Hardie50 iniciou esta discussatildeo ao afirmar que existiria uma falta de precisatildeo de Aristoacuteteles ao expor
o argumento que a eudaimonia eacute o fim uacuteltimo a ser alcanccedilado pelos indiviacuteduos Esta imprecisatildeo eacute
causada pelo fato do Estagirita natildeo ter explicitado de modo claro e contundente que espeacutecie de fim
uacuteltimo eacute o Supremo Bem A insuficiecircncia na explicaccedilatildeo aristoteacutelica permite a especulaccedilatildeo sob qual
prisma deve ser entendido o Bem maior como fim dominante ou inclusivo A desordem reside no
seguinte ponto Ao buscar a felicidade os indiviacuteduos elaboram o seu planejamento de vida que
inclui alcanccedilar determinados fins para satisfazer desejos que os levaratildeo a ter uma vida feliz Ao
47Cf EacuteN VI 1139a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10248Cf EacuteN VI 1139a 35-1139b 4 Ibidem p 10249Cf EacuteN X 1177a 11-15 ndash 1178a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 188-18950Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacuteticanicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
20
fazer este planejamento a duacutevida recai sobre qual eacute a ecircnfase colocada em um determinado fim para
que este se torne o seu fim predominante para que este fim se transforme no eixo central da vida
Este eixo central que eacute um objeto uacutenico desejado na vida do indiviacuteduo pode ser a riqueza a fama
a ciecircncia para ficarmos com alguns exemplos citados na Eacutetica a Nicocircmaco Ao planejar sua vida
qualquer indiviacuteduo sabe que possui variados interesses e desejos Percebe que alguns desejos satildeo
mais importantes que outros Ou percebe que alguns desejos satildeo mais difiacuteceis de serem realizados
enquanto outros satildeo mais faacuteceis E que a busca de um desejo escolhido pode auxiliar atrapalhar ou
tornar irrealizaacutevel a satisfaccedilatildeo de outros desejos Desta forma o indiviacuteduo que reflete acerca dos
seus desejos dentro do seu plano de vida procura traccedilar um caminho que permita a conquista do
modo mais completo possiacutevel dos desejos elencados como os mais importantes e satisfatoacuterios Sob
esta perspectiva o desejo pela felicidade consiste em satisfazer vaacuterios desejos de maneira
harmoniosa e ordenada
Na compreensatildeo de Hardie51 a concepccedilatildeo de fim inclusivo como sendo um conjunto de
fins pode ser constatado na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles ao dizer que uma ciecircncia ldquoarquitetocircnicardquo52 se
constitui com um fim preciacutepuo53 A felicidade eacute considerada como a coisa mais desejada perante
todas as outras sem que seja contada entre elas pois continua a ser a mais desejada mesmo com a
adiccedilatildeo do menor dos bens54 Para o mencionado comentador o estagirita deveria conceituar a
felicidade como um fim de segunda ordem55 no qual se incluiriam os fins de primeira ordem em
uma plena realizaccedilatildeo harmoniosa Mas ele natildeo o faz Diante deste quadro no entender de Hardie o
filoacutesofo grego ao tentar definir o bem final aproxima-se de uma concepccedilatildeo inclusivista mas
termina por construir uma concepccedilatildeo dominante sobre o supremo bem
A tese que compreende a eudaimonia como fim dominante descreve que o Sumo Bem
possui um cunho superior mais elevado que os outros fins Se a eudaimonia estaacute acima de outros
fins como por exemplo a honra o prazer a riqueza ou o conhecimento e se para alcanccedilar uma
vida feliz eacute necessaacuterio alcanccedilar um determinado tipo de fim pois este fim identifica-se com a
eudaimonia entatildeo este fim passa a ser o mais importante e superior de todos os outros fins juntos
A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo isso significa dizer que caso a eudaimonia seja identificada com a riqueza
esse fim torna-se essencial e deve ser buscado por qualquer indiviacuteduo que queira uma vida feliz Haacute
uma preponderacircncia deste fim essencial sobre outros fins os quais se tornam suplementares Todas
51Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo Op cit p 44 52Cf EacuteN 1094a 26-27 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4453Um exemplo utilizado eacute caso da poliacutetica Esta ciecircncia possui a caracteriacutestica de comportar vaacuterios outros fins CfEacuteN 1094b 6-7 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4454Cf EacuteN 1097b 16-20 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4455A felicidade eacute um fim de segunda ordem por ser considerada o fim uacuteltimo o fim mais desejado O fim de segundaordem eacute decorrente da consecuccedilatildeo de fins de primeira ordem que satildeo conquistados por meio das accedilotildees do indiviacuteduo
21
as accedilotildees do indiviacuteduo convergem para atingir este fim considerado o mais importante porque ele eacute
o proacuteprio nuacutecleo da eudaimonia
A criacutetica da concepccedilatildeo dominante eacute feita por JL Ackrill56 Este uacuteltimo concorda com
Hardie que natildeo eacute clara a posiccedilatildeo aristoteacutelica sobre a eudaimonia possuir uma tendecircncia inclusiva
ou dominante Mas Ackrill57 defende que conceito de eudaimonia exposto por Aristoacuteteles eacute
fundamentalmente de cunho inclusivo No argumento de Ackrill o conceito de fim inclusivo pode
ser entendido de duas formas A primeira forma de compreensatildeo eacute enxergar o fim como algo que
inclua dois ou mais objetivos valores atividades ou bens os quais possuem um mesmo valor natildeo
havendo uma diferenccedila de importacircncia entre estes elementos A segunda forma eacute compreender o
fim como algo que englobe os mesmos elementos (objetivos valores etc) mas que possuem um
valor aproximadamente igual entre si Ou seja nenhum elemento eacute muito superior a qualquer um
dos outros elementos inclusos no fim O conceito de fim dominante tambeacutem pode ser entendido de
duas formas58 A primeira forma entende o fim dominante com sendo um ldquofim monoliacuteticordquo que
consiste em somente uma atividade ou um bem mais valoroso Na segunda forma o fim conteacutem dois
ou mais elementos que satildeo valorosos em si mesmos mas somente um destes elementos eacute
considerado o mais importante de todos sendo o elemento que possui a preponderacircncia ou
supremacia frente a todos os demais elementos Logo este eacute o bem dominante dentro do fim uacuteltimo
Ackrill continua a argumentar que o fim uacuteltimo eacute uma reuniatildeo de fins que podem ser
agradaacuteveis e dignos em si mesmos natildeo havendo um uacutenico fim que seja superior aos demais fins59
A analogia que Ackrill utiliza eacute comparar o Supremo Bem com um cafeacute da manhatilde com trecircs
elementos bacon ovos e tomates Em uma leitura inclusiva bacon natildeo eacute superior aos ovos e aos
tomates Os trecircs juntos satildeo melhores que apenas o bacon A combinaccedilatildeo dos trecircs elementos forma
um conjunto superior em relaccedilatildeo a um fim uacuteltimo que eacute baseado somente em um uacutenico elemento
Na interpretaccedilatildeo de Zingano 60 o Supremo Bem natildeo eacute um uacutenico bem que estaacute acima de
todos os outros bens Consiste em uma reuniatildeo de todos os bens buscados pelo indiviacuteduo Eacute um
bem formalmente uacutenico mas materialmente diversificado61 Pois a tese que compreende a
56Cf ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteiade Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-12557Cf ACKRILL JL Ibidem p 10558 Em relaccedilatildeo ao fim dominante este pode ser interpretado em uma chave de leitura ldquoforterdquo ou ldquofracardquo O ponto devista ldquoforterdquo como um ldquofim monoliacuteticordquo aparece quando Hardie afirma que o fim supremo aristoteacutelico eacute dominanteporque eacute identificado com um uacutenico objeto de desejo principal que eacute a proacutepria filosofia (entendida como sabedoriacontemplativa) O ponto de vista ldquofracordquo surge no momento que Hardie assevera que dentre alguns fins combinadosexiste um fim dominante Segundo Ackrill a chave de leitura ldquoforterdquo eacute a adotada por Hardie Por isso natildeo pode seraceita porque um fim dominante ldquomonoliacuteticordquo seria restritivo demais para ser elencado como o Supremo Bem a serconquistado59 Cf ACKRILL JL rdquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo Op cit p 10860 Cf ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 73-11061 Cf Ibidem p 103
22
eudaimonia como um fim inclusivo descreve que a felicidade possui uma pluralidade de fins em si
que satildeo independentes mas satildeo buscados de forma harmocircnica Nesta pluralidade de fins existem
fins que satildeo desejados por si mesmos e fins instrumentais (subordinados) a estes fins preciacutepuos que
somente servem para atingir os fins em si Mas todos eles satildeo buscados tendo em vista a
eudaimonia Deste modo a eudaimonia inclui todos os fins desejaacuteveis que podem ser buscados em
vista do Sumo Bem
Esta eacute a posiccedilatildeo de Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar a ideia de bem aristoteacutelica Eacute o
ldquobem geralrdquo que delimita a atividade especiacutefica de cada ciecircncia em particular Igualmente ocorre
com as accedilotildees humanas em geral o homem realiza diversas accedilotildees particulares que conteacutem seus fins
particulares mas todas estas accedilotildees satildeo feitas em vistas de alguma concepccedilatildeo de Sumo Bem
Conforme mostra o Aquinate nas Sententia Libri Ethicorum
Assim quando Aristoacuteteles diz-se (sic) que o bem eacute o que todos apetecem natildeo sedeve entender apenas para os que tecircm conhecimento que apreendem o bem mastambeacutem para os que carecem do conhecimento que tendem ao bem por um apetitenatural natildeo enquanto conheccedilam o bem mas porque satildeo movidos ao bem poralgum cognoscente a saber pela ordenaccedilatildeo do intelecto divino ao modo como aflecha tende ao alvo pela direccedilatildeo do arqueiro Mas o proacuteprio tender ao bem eacuteapetecer o bem e por isso disse que o ato apetece ao bem enquanto tende ao bemNatildeo eacute poreacutem um uacutenico bem ao qual todas as coisas tendem como foi dito acimaE portanto natildeo se descreve aqui um uacutenico bem mas um bem considerado emcomum Porque nada eacute bom a natildeo ser quanto eacute certa semelhanccedila e participaccedilatildeo dosumo Bem o mesmo sumo Bem que eacute de algum modo apetecido em todo bem Eassim pode-se dizer que eacute um uacutenico bem o que todos apetecem62
Natildeo eacute objetivo principal deste trabalho responder plenamente agrave questatildeo da eudaimonia ser
um fim dominante ou um fim inclusivo Mas pensamos ser interessante apresentar um breve parecer
acerca deste tema relacionado a vida feliz A questatildeo de como interpretar a eudaimonia como um
fim dominante ou fim inclusivo decorre da forma que Aristoacuteteles apresenta a vida teoacuterico-
contemplativa (βίος θεωρητικός) no Livro X da Eacutetica a Nicocircmaco Sob a perspectiva de fim
62 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes Vol IEdiccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015 p27 A citaccedilatildeo em latim vemdas Sententia Libri Ethicorum liber 1 lectio 1 n 11 ldquoQuod autem dicit quod omnia appetunt non est intelligendumsolum de habentibus cognitionem quae apprehendunt bonum sed etiam de rebus carentibus cognitione quae naturaliappetitu tendunt in bonum non quasi cognoscant bonum sed quia ab aliquo cognoscente moventur ad bonum scilicetex ordinatione divini intellectus ad modum quo sagitta tendit ad signum ex directione sagittantis Ipsum autem tenderein bonum est appetere bonum unde et actum dixit appetere bonum in quantum tendit in bonum Non autem est unumbonum in quod omnia tendunt ut infra dicetur Et ideo non describitur hic aliquod unum bonum sed bonumcommuniter sumptum Quia autem nihil est bonum nisi inquantum est quaedam similitudo et participatio summi boniipsum summum bonum quodammodo appetitur in quolibet bono et sic potest dici quod unum bonum est quod omniaappetuntrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Sententia libri Ethicorum liber I a lectio I ad IIIDisponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc0101htmlgt Acesso em 23 de junho de 2017
23
dominante todas as virtudes bens externos e a conduta do indiviacuteduo estatildeo subordinados a um fim
uacutenico e determinado que consiste na vida teoacuterico-contemplativa Aristoacuteteles natildeo poupa elogios agrave
vida teoacuterico-contemplativa ao descrever que esta eacute a melhor a mais duraacutevel a mais completa
autossuficiente e a mais amada de todas as atividades63 A contemplaccedilatildeo em outras palavras a
sabedoria filosoacutefica (σοφία) eacute o fim mais desejaacutevel entre todos os outros fins Por outro lado o
Estagirita destaca o papel das virtudes morais juntamente com a virtude intelectual da prudecircncia no
Livro VI da EacuteN Na eacutetica aristoteacutelica haacute uma grande importacircncia conferida agrave vida praacutetica Desta
maneira resta saber como a contemplaccedilatildeo interage com as virtudes morais a virtude da prudecircncia e
os demais fins
Em que consiste a vida teoacuterico-contemplativa Consiste em um estilo de vida que busca o
conhecimento da verdade64 e a nobreza de conduta como fundamento principal porque a verdade e
a nobreza de conduta adquirida por meio da praacutetica das virtudes morais satildeo pilares da eudaimonia
A faculdade da razatildeo eacute o que haacute de mais caracteriacutestico no ser humano Por isso pautar-se por ela
traz a certeza de uma vida feliz65 E aliado a esta racionalidade encontram-se as accedilotildees virtuosas66
Logo a vida contemplativa eacute uma vida proveniente da uniatildeo do exerciacutecio do intelecto com a retidatildeo
moral
A vida teoacuterico-contemplativa pode ser chamada de dominante por ser a meta a ser
perseguida como tipo de vida ideal para o indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida de plenitude
Uma vez identificada com a eudaimonia passa a ser o fim uacuteltimo e supremo Mas essa dominacircncia
da vida contemplativa para que possa ser efetiva inclui outros tipos de fins que satildeo as virtudes
morais e poucos bens externos67 Deste modo existe uma mescla entre as vertentes dominante e
inclusiva na compreensatildeo do Supremo Bem aristoteacutelico
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos questionamentos levantados ao longo do tempo sobre o caraacuteter
dominante ou inclusivo do fim aristoteacutelico no proacuteximo toacutepico analisaremos os conceitos basilares
de ldquofunccedilatildeordquo e de ldquofinalidaderdquo utilizados na filosofia moral de Aristoacuteteles
63 Cf EacuteN X 1177a20-30 e X 1177b1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 190-19164 Cf EacuteN1177b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p19065 Cf EacuteN1178a 5-8 Ibidem p19066 Cf EacuteN 1178a 10 Ibidem p19067 CF EacuteN 1179a 5-7 Ibidem p191
24
14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres
Acerca do conceito de finalidade (ές existe uma outra significaccedilatildeo possiacutevel deste termo
que eacute a de ldquoplenituderdquo (τέλειον) Assim ao afirmar que os seres tendem agrave sua finalidade pode-se
entender que os seres procuram ou tendem a serem plenos completos por realizarem seus fins
especiacuteficos
O conceito de finalidade eacute dotado de grande importacircncia para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica de
Aristoacuteteles Sua filosofia moral eacute baseada na finalidade caracteriacutestica do ser humano Toda a accedilatildeo
humana eacute realizada em funccedilatildeo de um determinado fim seja este considerado em si mesmo seja este
visto como meio para obtenccedilatildeo de outros fins Do mesmo modo o ser humano tende a uma
finalidade propriamente sua que deriva de sua proacutepria natureza Essa finalidade proacutepria ultrapassa
os fins especiacuteficos das accedilotildees humanas como por exemplo ser artesatildeo ser poliacutetico ser pedagogo ou
quaisquer outras accedilotildees exercidas Eacute um tipo de fim mais abrangente e duradouro ao qual os outros
fins estatildeo subordinados Neste sentido a plena realizaccedilatildeo do ser humano encontra-se no
aperfeiccediloamento de todas as suas caracteriacutesticas e em especial no uso da razatildeo (λόγος)
Ao dizer que a eudaimonia eacute o ldquomelhor bem de todosrdquo e o mais procurado68 Aristoacuteteles
procurar fundamentar o alcance de uma vida plena na ideia de ergon (ἔργονdos seres Este termo
eacute tradicionalmente traduzido por ldquofunccedilatildeordquo mas tambeacutem pode ser entendido como ldquotrabalhordquo
ldquoocupaccedilatildeordquo ldquotarefardquo69 Optamos por utilizar o termo tradicional de funccedilatildeo uma vez que
acreditamos ser o termo adequado para o entendimento da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as
funccedilotildees e virtudes que cada ser possui e que no contexto eacutetico culmina com a funccedilatildeo e virtude do
ser humano O que significa essa funccedilatildeo exclusiva das coisas Significa dizer que cada ser possui
uma funccedilatildeo que lhe eacute caracteriacutestica em decorrecircncia daquela finalidade para a qual fora criada Ou
seja a finalidade eacute inerente aos seres Por exemplo um navio eacute criado para navegar este objeto foi
criado para isso sua finalidade preciacutepua eacute a navegaccedilatildeo Caso o navio seja utilizado para outros fins
que natildeo agravequele ao qual foi originalmente fabricado haacute um desvirtuamento do seu fim original Ou
entatildeo o navio esteja com um casco fendido o que impossibilita uma boa navegaccedilatildeo a embarcaccedilatildeo
natildeo cumpre ou cumpre de modo pouco eficaz o fim para o qual foi designado Logo tanto na
situaccedilatildeo de desvirtuamento para o uso de outras funccedilotildees que natildeo aquela para o qual foi criado o
navio quanto na situaccedilatildeo em que haacute um casco ruim este objeto natildeo desempenha plenamente a sua
funccedilatildeo
68CF EacuteN 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p1569PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles Op cit p32
25
O navio ao natildeo desempenhar plenamente a sua funccedilatildeo perde a possibilidade de alcanccedilar a
excelecircncia na accedilatildeo de navegar Esta excelecircncia eacute a virtude (ἀρετήde cada ser eacute a plena realizaccedilatildeo
da sua funccedilatildeo atingida por qualquer ser E esta plenitude eacute atingida quando haacute (1) o cumprimento
exato da sua finalidade e (2) quando a accedilatildeo realizada eacute feita de forma maximamente eficaz Esta
ideia de virtude das coisas ao exercerem a sua funccedilatildeo de um ldquobom modordquo e de uma maneira eficaz
eacute o bem desta coisa Assim sendo Aristoacuteteles busca a funccedilatildeo inerente ao ser humano aquilo que lhe
eacute mais essencial Pois a vida plena a eudaimonia de um ser humano estaacute associada agrave realizaccedilatildeo
daquilo que lhe eacute mais proacuteprio ou seja do seu ergon mais distintivo conforme descrito na Eacutetica a
Nicocircmaco
Mas dizer que a felicidade eacute o sumo bem talvez pareccedila uma banalidade e faltaainda explicar mais claramente o que ela seja Tal explicaccedilatildeo natildeo ofereceria grandedificuldade se pudeacutessemos determinar primeiro a funccedilatildeo do homem Pois assimcomo para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisasque tecircm uma funccedilatildeo ou atividade considera-se que o bem e o ldquobem feitordquo residemna funccedilatildeo o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo Dar-se-aacute ocaso entatildeo de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funccedilotildees e atividades eo homem natildeo tenha nenhuma Ou assim como o olho a matildeo o peacute e em geral cadaparte do corpo tecircm evidentemente uma funccedilatildeo proacutepria poderemos assentar que ohomem do mesmo modo tem uma funccedilatildeo agrave parte de todas essas Qual poderaacute serela70
Cada oacutergatildeo do corpo humano possui sua funccedilatildeo especiacutefica e quando esta funccedilatildeo eacute exercida
da sua melhor maneira encontra-se em sua plena virtude O carpinteiro ou curtidor tem sua
atividade preciacutepua ao exercer sua respectiva funccedilatildeo de moldar a madeira e preparar o couro da
melhor maneira exerce suas atividades de modo virtuoso Em outras palavras assume seu grau de
excelecircncia Neste sentido o ser humano realiza plenamente sua funccedilatildeo proacutepria quando escolhe
atingir a excelecircncia naquilo que o diferencia de outros seres que eacute a racionalidade
Para responder a esta questatildeo acerca da funccedilatildeo proacutepria do ser humano Aristoacuteteles recorre agrave
divisatildeo da alma ( exposta na obra De Anima na qual eacute demonstrada a ideia de que a alma
possui trecircs partes ou faculdades distintas as quais satildeo intituladas de nutritiva (vegetativa) sensitiva
(perceptiva) e intelectiva (racional) A faculdade nutritiva eacute responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo dos seres vivos Eacute a faculdade nutritiva que primeiramente proporciona que haja vida
nos seres sendo comum a todos os seres vivos71 A faculdade sensitiva eacute a parte da alma que possui
a finalidade de percepcionar os sensiacuteveis e possui a funccedilatildeo de captar os estiacutemulos sensoriais
provenientes dos entes externos ao corpo e a alma Estes sensiacuteveis satildeo captados pelos cinco
70 EacuteN I 1097b 25-37 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15-1671 Cf De Anima II 415a 22 ARISTOacuteTELES De Anima Op cit p 50
26
sentidos visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar tato72 A faculdade intelectiva eacute a parte da alma com
capacidade para conhecer as formas inteligiacuteveis sendo responsaacutevel pelas funccedilotildees operativas do
entendimento tais como raciocinar deliberar escolher etc73
Na Eacutetica a Nicocircmaco esta divisatildeo da alma tambeacutem aparece ldquoPor exemplo que a alma tem
uma parte racional e outra privada de razatildeo []rdquo74Aristoacuteteles expotildee de modo sinteacutetico como a parte
irracional e racional da alma se comportam em relaccedilatildeo uma com a outra75 As faculdades nutritiva e
sensitiva fazem parte irracional E naturalmente a parte racional eacute a proacutepria faculdade intelectiva
A caracteriacutestica essencial do ser humano eacute a racionalidade Por isso deve submeter seus anseios e
desejos que fazem parte da faculdade sensitiva aos ditames da razatildeo para que possa realizar
plenamente sua finalidade e consequentemente ter uma vida feliz Mas para que o homem virtuoso
possa viver em funccedilatildeo do intelecto eacute necessaacuterio o cultivo das virtudes morais Pois satildeo as virtudes
morais que controlam os desejos do indiviacuteduo Aqui se encontra o ponto de confluecircncia entre a
faculdade sensitiva e a faculdade racional sem as virtudes morais ligadas agrave faculdade sensitiva natildeo
eacute possiacutevel agrave submissatildeo dos desejos agrave razatildeo Sem a faculdade racional natildeo eacute possiacutevel adquirir agraves
virtudes morais Esta intersecccedilatildeo entre a faculdade sensitiva e a faculdade racional pode ser
denominado como razatildeo desiderativa ou desejo racional76 Isso significa que os desejos se originam
na faculdade sensitiva mas uma vez que satildeo orientados pelo intelecto haacute uma influecircncia da
faculdade racional na parte sensitiva da alma Deste modo eacute nesta relaccedilatildeo entre o domiacutenio dos
desejos controlados por meio das virtudes morais e a racionalidade que se encontra a formaccedilatildeo do
homem virtuoso
No que tange agrave formaccedilatildeo moral do homem virtuoso a faculdade nutritiva eacute imediatamente
descartada por Aristoacuteteles pois ela eacute uma faculdade comum a todos os seres vivos e natildeo somente ao
homem Haja vista a funccedilatildeo da faculdade nutritiva ser apenas a nutriccedilatildeo e crescimento de um ser
vivo natildeo pode contribuir em nenhum aspecto na aquisiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das virtudes morais A
faculdade sensitiva deve atender aos comandos da faculdade racional Pois a parte sensitiva conteacutem
os desejos e estes nem sempre estatildeo de acordo com os princiacutepios determinados pela faculdade
racional Logo procede que natildeo haacute uma harmonia natural entre as duas faculdades mas o homem
virtuoso precisa proceder de modo que haja a prevalecircncia da razatildeo sobre os desejos para que
possam ser guiados de forma a contribuiacuterem para a eudaimonia Conforme descreve o texto
72 Cf De Anima II 424b 23 Ibidem p 8373 Cf De Anima III 429a 10 Ibidem p 9774 Cf EacuteN I 1102a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p2375Cf EacuteN I 1102b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24 76Cf EacuteN I 1103a 1-4 Ibidem p 24
27
Por exemplo que a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razatildeo []Do elemento irracional uma subdivisatildeo parece estar largamente difundida e ser denatureza vegetativa Refiro-me agrave que eacute causa da nutriccedilatildeo e do crescimento []Parece haver na alma ainda outro elemento irracional mas que em certo sentidoparticipa da razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional do homem continentee do incontinente () assim como a parte de sua alma quepossui tal princiacutepio porquanto ela nos impele na direccedilatildeo certa e para os melhoresobjetivos mas ao mesmo tempo encontra-se neles um outro elementonaturalmente oposto ao princiacutepio racional lutando contra este a resistindo-lhe []os impulsos dos incontinentes movem-se em direccedilotildees contraacuterias[] Apesar dissodevemos admitir que tambeacutem na alma existe qualquer coisa contraacuteria ao princiacutepioracional qualquer coisa que lhe resiste e se opotildee a ele [] seja como for nohomem continente ele obedece ao referido princiacutepio racional e eacute de presumir queno temperante e no bravo seja mais obediente ainda pois em tais homens ele fala arespeito de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racional77
Exposta a ideia acerca da divisatildeo da alma e sendo caracterizado que a faculdade racional eacute a
uacutenica inteiramente humana segue-se que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada com um tipo
de vida conduzida pela racionalidade Mas aleacutem de ser marcada pelo uso da razatildeo a funccedilatildeo do ser
humano tambeacutem consiste em ser realizada de maneira adequada e de modo digno A accedilatildeo virtuosa eacute
pautada nestes dois pressupostos (1) baseada na razatildeo e (2) feita de maneira adequada e digna
Neste ponto eacute importante perceber uma distinccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre uma accedilatildeo virtuosa e uma
accedilatildeo boa Natildeo eacute qualquer tipo de accedilatildeo que pode ser considerada como uma accedilatildeo virtuosa A accedilatildeo
virtuosa eacute caracterizada por ser uma accedilatildeo que proveacutem da virtude O homem virtuoso ao realizar
uma accedilatildeo virtuosa age com os meios corretos e com um fim nobre Isso fica claro quando
Aristoacuteteles assevera que o indiviacuteduo deve conhecer a accedilatildeo que realiza e deve escolher fazer a accedilatildeo
pela virtude78 A accedilatildeo deve ser feita do mesmo modo que os homens virtuosos fazem79 A accedilatildeo
meramente boa eacute uma accedilatildeo que pode ter um fim nobre mas o agente natildeo possui o conhecimento
das razotildees corretas de sua accedilatildeo Eacute uma accedilatildeo que possui uma aparecircncia de virtude mas natildeo eacute
verdadeiramente uma virtude porque carece de um caraacuteter intriacutenseco ao agente que realiza a accedilatildeo
Somado aos pressupostos da razatildeo e da virtude existe um terceiro pressuposto que completa as
caracteriacutesticas de uma accedilatildeo virtuosa que eacute (3) a praacutetica constante destas accedilotildees Esta praacutetica
constante de atos virtuosos eacute mostrada na comparaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre a constacircncia
necessaacuteria de accedilotildees virtuosas e uma andorinha solitaacuteria que em um dia somente natildeo faz um veratildeo
Ou seja um curto e passageiro periacuteodo de felicidade natildeo sustenta uma vida de plenitude80 Em
siacutentese a vida feliz eacute a vivecircncia desta faculdade racional que se sobrepotildee as demais estaacute em
77 EacuteN I 1102a 30 ndash 1102b 5-25 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23-2478 Cf EacuteN II 1105a 30-35 Ibidem p 3079 Cf EacuteN II 1105b 5 Ibidem p 31 80 Cf EacuteN I 1098a 17-20 Ibidem p 16
28
consonacircncia com a virtude moral e se manifesta de modo prolongado por toda a vida e natildeo somente
em ocasiotildees esparsas
Conforme exposto eacute necessaacuterio agir com a funccedilatildeo proacutepria do ser humano para alcanccedilar a
eudaimonia Para atingir sua plenitude de vida eacute imperioso que o indiviacuteduo aperfeiccediloe sua
racionalidade desenvolva as virtudes morais e pratique firmemente accedilotildees virtuosas Com isto o
percurso para construir a felicidade estaacute traccedilado na perspectiva eacutetica aristoteacutelica Uma vez definidas
as condiccedilotildees para uma vida feliz ainda resta saber qual o melhor tipo de vida que se enquadre nos
criteacuterios estabelecidos No proacuteximo toacutepico analisaremos esta questatildeo
15 A Eudaimonia e tipos de vida
O termo ldquoSumo Bemrdquo deriva da expressatildeo latina Summum Bonum a qual traz em seu bojo a
ideia de ser o bem mais elevado o melhor dos bens o bem supremo Conforme exposto nos itens
anteriores Aristoacuteteles considera que este bem mais elevado eacute a eudaimonia81 Ele descreve as
caracteriacutesticas que um bem deve ter para ser considerado justamente como o Sumo Bem
autossuficiente ser completo e baseado na razatildeo pois esta eacute o que haacute de mais proacuteprio no ser
humano Mas ao descrever as propriedades do Sumo Bem ou seja da eudaimonia falta ainda
determinar de modo mais preciso qual o ldquocaminhordquo para alcanccedilaacute-la Afinal como se trata de um
estudo no campo da eacutetica eacute necessaacuterio determinar como alcanccedilar esta eudaimonia em termos de
comportamento durante a vida humana Isto consiste em questionar qual eacute o melhor tipo de bem a
ser conquistado e consequentemente qual o tipo de vida que melhor se adequa agrave busca deste bem
No entender de Otfried Houmlffe a eudaimonia eacute considerada por Aristoacuteteles como o τέλος
τελειoτατoacuteν cujo significado eacute o de ser o ldquofim maacuteximordquo o ldquofim mais finalrdquo o fim uacuteltimo que natildeo
pode ser ultrapassado eacute a finalidade de todos os fins82 A eudaimonia eacute o fim geral que serve como
paracircmetro de orientaccedilatildeo para a busca de outros fins Por isso a partir dela criteacuterios satildeo delimitados
para que o indiviacuteduo escolha uma maneira de viver que realmente o conduza agrave felicidade Uma vez
que alguns tipos de vida natildeo atendem estes criteacuterios nem todos podem conduzir o indiviacuteduo ao
Sumo Bem que eacute a verdadeira eudaimonia Somente aquele tipo de vida que mais condiz com a
natureza humana e verdadeiramente pode ser considerado como um caminho seguro e consistente
para alcanccedilar uma vida feliz Neste sentido eacute necessaacuterio proceder a uma anaacutelise dos tipos de vida e
qual eacute a que pode ser considerada condizente com a eudaimonia
81 Cf EacuteN I 1097b 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1582 HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 196
29
Para a anaacutelise dos tipos de bens principais que dizem respeito a diferentes tipos de vidas
Aristoacuteteles natildeo desconsidera a endoxa (ἔνδοξα)83 ou seja a opiniatildeo comum Ele tambeacutem observa a
tradiccedilatildeo filosoacutefica anterior84 para proceder a uma avaliaccedilatildeo mais acurada acerca de qual vida eacute a
melhor e por conseguinte qual o tipo de vida torna o ser humano feliz Mas a partir da endoxa
avalia se cada tipo de vida pode de fato corresponder agraves caracteriacutesticas jaacute traccediladas para que um
bem qualquer possa receber o tiacutetulo de Sumo Bem
Na linha de raciociacutenio conduzida na Eacutetica a Nicocircmaco85 Aristoacuteteles apresenta uma siacutentese
dos trecircs tipos de vida a serem analisadas decorrentes dos bens considerados ldquofinaisrdquo os mais
importantes a serem procurados dentro daquele tipo de vida Pode-se verificar trecircs espeacutecies
principais de vida que representam os tipos de bens que as fundamentam Para algumas pessoas a
eudaimonia eacute identificada com uma vida de gozo dos prazeres mais mundanos86Outro contingente
de pessoas a identificam com as honras provenientes de uma vida pautada pela poliacutetica87 Enfim
outros a identificam com uma vida baseada na contemplaccedilatildeo (teoacuterico-contemplativa)88 Uma vida
de riquezas eacute desconsiderada por Aristoacuteteles como o tipo de vida ideal porque o acuacutemulo de
riquezas eacute apenas um meio para obtenccedilatildeo de outro bem89 Quanto agrave vida de honrarias que eacute
particularmente vinculada agrave vida poliacutetica ela traz em seu bojo uma instabilidade ao indiviacuteduo pois
as honras dependem mais de quem as concede do que a pessoa que as recebe Tampouco os
prazeres mundanos podem ser tidos como o tipo de vida a ser buscado porque satildeo contraacuterios agraves
virtudes morais Assim o modelo de vida mais adequado ao bem supremo deve ser vinculado de
modo mais iacutentimo ao homem e por isso deve ser mais estaacutevel Em relaccedilatildeo agrave vida teoacuterico-
contemplativa Aristoacuteteles a analisa de modo mais detalhado mais agrave frente no Livro X da Eacutetica a
Nicocircmaco Por isso natildeo analisaremos as propriedades da vida teoacuterico-contemplativa neste
momento
83 Conforme Aristoacuteteles aponta nas suas obras Toacutepicos I 1100a 18-25 e Retoacuterica I 1356b 33-36 a endoxa eacute umaopiniatildeo geralmente aceita acerca de qualquer tema que seja objeto de anaacutelise ora para leigos ora para os saacutebios (nosentido de especialistas em uma determinada aacuterea do conhecimento) Parte-se de premissas que satildeo consideradasprovaacuteveis e aparentemente verdadeiras para iniciar a anaacutelise e ocorrer o aprofundamento do estudo sobre o objetoescolhido Eacute o que faz Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando observa as diversas opiniotildees correntes agrave eacutepoca acerca doque seria a felicidade tanto na visatildeo comum quanto na visatildeo dos filoacutesofos Confiram-se os textos Toacutepicos I 1100a 18-25 ldquoNosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo deopiniotildees geralmente aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto [] rdquo Retoacuterica I 1356b 33-36 ldquo[] tatildeopouco a retoacuterica teorizaraacute sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo ndash por exemplo para Soacutecrates ou Hiacutepias ndash mas sobre o queparece verdade para pessoas de uma certa condiccedilatildeo como tambeacutem faz a dialeacutetica[] rdquo84 Cf EacuteN I 1098b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1785 Cf EacuteN I 1095b 15 - 1096a 10 Ibidem p 11-1286 Cf EacuteN I 1095b 15-20 Ibidem p 1187 Cf EacuteN I 1095b 25-30 Ibidem p 1288 Cf EacuteN I 1096a 5 Ibidem p 1289 Cf EacuteN I 1096a 8-10 Ibidem p 12
30
Uma vez que o Sumo Bem deve ser autossuficiente e completo os casos dos prazeres
mundanos da honra e das riquezas satildeo eliminados Assim os prazeres mundanos satildeo buscados por
aqueles que se entregam agraves paixotildees mais indignas natildeo sendo proacuteprios de homens que almejam a
nobreza de alma pois a estes homens compete agrave razatildeo comandar as suas accedilotildees As honrarias sendo
uma caracteriacutestica mais apropriada agrave vida poliacutetica ainda dependem de fatores externos ao indiviacuteduo
considerado honrado na poacutelis O reconhecimento de uma vida honrada depende de quem confere
este tiacutetulo ao indiviacuteduo Desta maneira natildeo eacute autossuficiente nem completa Em relaccedilatildeo agraves riquezas
satildeo a princiacutepio somente um bem instrumental dispostas apenas para alcanccedilar outros fins natildeo
possuindo nenhum caraacuteter de autossuficiecircncia e completude Deste modo nem os prazeres
mundanos nem a honra nem a riqueza podem ser alccediladas agrave categoria de Sumo Bem 90
Conforme descrito anteriormente os candidatos ao tiacutetulo de Sumo Bem satildeo os prazeres
corporais e espirituais a honra e a contemplaccedilatildeo com seus consequentes tipos de vida Aristoacuteteles
continua sua anaacutelise na Eacutetica a Nicocircmaco 91 acerca do tipo de vida adequada agrave verdadeira
eudaimonia Este filoacutesofo retoma uma determinada linha de pensamento filosoacutefico que preconiza a
divisatildeo dos bens em trecircs classes distintas os bens externos os bens do corpo e os bens da alma Os
uacutenicos bens externos e os bens do corpo natildeo podem ser considerados os bens mais adequados agrave
eudaimonia Os bens da alma devem ser postos em primeiro plano pois satildeo considerados os mais
elevados e plenos Para o estagirita eacute o exerciacutecio ativo das faculdades interiores da alma em
conformidade com a razatildeo que eacute o fundamento de uma vida feliz Logo um dos criteacuterios apontados
por Aristoacuteteles eacute que uma vida plena deve estar vinculada aos bens da alma e natildeo apenas aos bens
externos
Ora os bens tecircm sido divididos em trecircs classes e alguns foram descritos comoexteriores outros como relativos agrave alma ou ao corpo Noacutes outros consideramoscomo mais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com a almae como tais classificamos as accedilotildees e atividades psiacutequicas Logo o nosso ponto devista deve ser correto pelo menos de acordo com esta antiga opiniatildeo com a qualconcordam muitos filoacutesofos Eacute tambeacutem correto pelo fato de identificarmos o fimcom certas accedilotildees e atividades pois desse modo ele vem incluir-se entre os bens daalma e natildeo entre os bens exteriores92
Devemos recordar que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano aquela que melhor o caracteriza eacute
agir conforme a faculdade racional da alma Eacute a atividade racional do ser humano que estabelece a
90 Cf EacuteN I 1095b 15-30 - 1096a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1291 Cf EacuteN I 1098b 10 - 1099b 5 Ibidem p 1892 EacuteN I 1098a 15-19 Ibidem p 17
31
via mais adequada para alcanccedilar uma vida plena Por conseguinte a eudaimonia estaacute no uso ativo
da razatildeo e natildeo nas paixotildees que residem na faculdade sensitiva e claro muito menos na faculdade
nutritiva uma vez que esta diz respeito somente a sobrevivecircncia bioloacutegica93
Para Aristoacuteteles eacute preciso agir de modo correto visando sua maacutexima performance pois
nisso consiste alcanccedilar a excelecircncia de uma coisa ou de uma accedilatildeo A tiacutetulo de exemplo um escritor
quando realiza adequadamente e em um grau elevado a accedilatildeo de escrever exerce esta funccedilatildeo de
modo virtuoso Do mesmo modo um violinista ao tocar adequadamente um violino exerce o ato de
tocar seu instrumento de modo virtuoso A excelecircncia de algo ou de uma accedilatildeo eacute o modo mais
adequado a maacutexima performance da realizaccedilatildeo de sua proacutepria funccedilatildeo Conforme nos mostra o
Estagirita
Ora se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica umprinciacutepio racional e se dizemos que ldquoum tal-e-talrdquo e ldquoum bom tal-e-talrdquo tecircm umafunccedilatildeo que eacute a mesma espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocadorde lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentadaao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade - pois a funccedilatildeo de umtocador de lira eacute tocar lira e de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) serealmente assim eacute [e afirmamos ser a funccedilatildeo do homem uma certa espeacutecie de vidae esta vida uma atividade ou accedilotildees da alma que implicam um princiacutepio racional eacrescentamos que a funccedilatildeo de um bom homem eacute uma boa e nobre realizaccedilatildeo dasmesmas e se qualquer accedilatildeo eacute bem realizada quando estaacute de acordo com aexcelecircncia que lhe eacute proacutepria se realmente assim eacute] o bem do homem nos aparececomo uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de umavirtude com a melhor e a mais completa94
Conforme podemos ver no texto de Aristoacuteteles intitular uma accedilatildeo de virtuosa significa
afirmar que eacute uma accedilatildeo que atingiu a excelecircncia Pode-se dizer que eacute uma accedilatildeo que se tornou
sublime Utilizando novamente os exemplos citados existem escritores e violinistas medianos mas
existem escritores e violinistas sublimes Estes virtuosos escritores e violinistas satildeo os ldquoilustres
escritores e ilustres violinistasrdquo de acordo com o Estagirita Portanto satildeo os modelos a serem
seguidos por todos que desejem alcanccedilar a excelecircncia nestas artes
Mas a eudaimonia consiste somente em bens da alma tais como a virtude e a razatildeo Na
concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a virtude e a razatildeo possuem uma grande importacircncia na definiccedilatildeo de uma
vida feliz mas eacute necessaacuterio algo a mais Outra caracteriacutestica da eudaimonia encontra-se nos bens
externos manifestados na necessidade do ser humano de possuir uma certa prosperidade que natildeo
depende exclusivamente do indiviacuteduo Na compreensatildeo do filoacutesofo de Estagira a prosperidade
nestes bens externos facilita a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Estes bens externos considerados
93 EacuteN 1098a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1694 EacuteN 1098a 10-15 Ibidem p 16
32
pertinentes a uma vida feliz satildeo de vaacuterios tipos amigos riqueza influecircncia poliacutetica Outros bens
externos fortalecem a posse de uma vida feliz tornando-a mais acessiacutevel aos mais afortunados e a
falta destes torna mais difiacutecil ter uma vida feliz aos indiviacuteduos desafortunados Estes bens satildeo a
beleza fiacutesica ter nascido em uma boa famiacutelia e ter bons filhos Nos diz Aristoacuteteles
A felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do mundo eesses atributos natildeo se acham separados como na inscriccedilatildeo em Delos Das coisas amais nobre eacute a mais justa e a melhor eacute a sauacutede mas a mais doce eacute alcanccedilar o queamamos Com efeito todos eles pertencem agraves mais excelentes atividades e estasou entatildeo uma delas ndash a melhor ndash noacutes a identificamos com a felicidade E noentanto como dissemos ela necessita igualmente dos bens exteriores pois eacuteimpossiacutevel ou pelo menos natildeo eacute faacutecil realizar atos nobres sem os devidos meiosEm muitas accedilotildees utilizamos como instrumentos os amigos a riqueza e o poderpoliacutetico e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza denascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feiaaparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidadesde ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossemvisceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigosComo dissemos pois o homem feliz parece necessitar tambeacutem dessa espeacutecie deprosperidade e por essa razatildeo alguns identificam a felicidade com a boa fortunaembora outros a identifiquem com a virtude95
Observa-se no decorrer da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles que natildeo basta somente as virtudes
morais para que o homem virtuoso seja feliz Parece que haacute duas opiniotildees correntes em sua eacutepoca
Uma atribui agrave boa fortuna o alicerce principal da eudaimonia e a outra atribui agrave virtude o meio
fundamental para alcanccedilar a felicidade O estagirita realiza uma siacutentese entre as duas perspectivas
mas considera os bens da alma e os bens externos em patamares diferentes Determinados bens
como os bens da alma satildeo considerados essenciais agrave eudaimonia Estes satildeo a virtude e a razatildeo
Outros como os bens externos satildeo acessoacuterios e sua inexistecircncia natildeo acarreta necessariamente uma
vida infeliz mas a torne mais difiacutecil de ser suportada Devemos recordar que o Sumo Bem possui
duas propriedades que satildeo a autossuficiecircncia e a completude Portanto os bens externos como
acessoacuterios natildeo satildeo considerados autossuficientes e natildeo satildeo completos por serem bens
instrumentais Satildeo um meio para um fim e dependem de circunstacircncias externas ao indiviacuteduo
A eudaimonia eacute constituiacuteda de caracteriacutesticas essenciais e acessoacuterias96 Neste sentido
fazendo uma analogia com a engenharia de construccedilatildeo de edificaccedilotildees prediais Eacute possiacutevel um
entendimento de que a felicidade eacute construiacuteda por camadas Haacute um nuacutecleo essencial composto
pelos bens da alma ndash virtude e razatildeo ndash que estaacute na posse do indiviacuteduo ou seja sua
operacionalizaccedilatildeo depende unicamente dele e natildeo de fatores extriacutensecos A partir deste nuacutecleo
95EacuteN I 1099a 30 - 1099b 1-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1896 Cf EacuteN I 1099b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 19
33
essencial haacute os bens acessoacuterios ndash amigos riqueza influecircncia poliacutetica ndash que podem compor uma
vida feliz mas natildeo necessariamente satildeo indispensaacuteveis para que algueacutem seja feliz sua perda ou natildeo
obtenccedilatildeo natildeo acarretam uma vida infeliz para o indiviacuteduo O que deve ser evitado eacute a inversatildeo entre
aquilo que eacute essencial e aquilo que eacute acessoacuterio Os bens externos natildeo podem ser considerados como
um fundamento seguro para a felicidade porque satildeo instaacuteveis ou seja eacute possiacutevel perdecirc-los ou natildeo
corresponder agraves expectativas do indiviacuteduo Deste modo o indiviacuteduo para alcanccedilar a eudaimonia
necessita da virtude da prudecircncia e das virtudes morais para que possa conseguir realizar boas
escolhas durante sua vida e natildeo proceder a uma inversatildeo daquilo que eacute essencial ou acessoacuterio na
busca pela felicidade
Eacute interessante notar uma sutil divisatildeo dos bens externos Um primeiro subconjunto seriam
bens externos que ainda se encontram na esfera de accedilatildeo do indiviacuteduo Afinal caso seja uma escolha
do indiviacuteduo este por meio de sua accedilatildeo pode conquistar amigos riqueza e influecircncia poliacutetica Mas
o segundo subconjunto os outros bens externos citados por Aristoacuteteles que contribuem para a
felicidade como o nascimento em uma boa famiacutelia bons filhos e ter uma bela aparecircncia natildeo
pertencem a esfera de escolha e consequente accedilatildeo do indiviacuteduo O tipo de famiacutelia a vida dos filhos
e beleza fiacutesica estatildeo completamente fora do campo de deliberaccedilatildeo de algueacutem natildeo dependem do
indiviacuteduo tatildeo somente dependem de uma boa sorte
A harmonia entre os bens da alma e os bens externos eacute a linha que Aristoacuteteles segue ao
realizar sua anaacutelise acerca da eudaimonia O exerciacutecio ativo das virtudes morais e viver sob os
ditames da razatildeo satildeo o fundamento de uma vida feliz Qualquer homem virtuoso deve viver
segundo as virtudes Natildeo obstante a grande importacircncia da racionalidade e das virtudes na
construccedilatildeo da felicidade o Estagirita concede espaccedilo para as aspiraccedilotildees ldquonormaisrdquo de um homem
que vive o cotidiano da poacutelis Natildeo eacute uma perspectiva de felicidade cunhada para um eremita ou para
um monge que decide se abster de determinados bens externos A posiccedilatildeo de WD Ross ilustra bem
esta visatildeo de harmonia entre os bens da alma e os bens externos
Esta definiccedilatildeo (de felicidade) eacute confirmada por pontos de vista comuns acerca dobem-estar e ao mesmo tempo corrige-os Alguns afirmam que o bem-estar eacute avirtude Noacutes dizemos ser uma espeacutecie de acccedilatildeo para a qual tende a virtude Algunsafirmam ser o prazer Noacutes dizemos ser acompanhada necessariamente pelo prazerAlguns afirmam ser a prosperidade externa Noacutes dizemos que sem uma certa dosede prosperidade um homem natildeo pode exercitar esta boa atividade que eacute o bem-estar Assim os elementos principais que figuram na noccedilatildeo comum de bem-estartambeacutem entram na nossa definiccedilatildeo A virtude constitui a raiz donde descola a acccedilatildeoconforme o bem o prazer eacute o seu acompanhamento natural e a prosperidade suacondiccedilatildeo preacutevia normal97
97 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198 Na traduccedilatildeo portuguesa feita pela Publicaccedilotildees Dom Quixote a partir daediccedilatildeo inglesa publicada por Methuen amp Cu Ltd Londres o termo utilizado para se referir a eudaimonia eacute ldquobem-
34
A eacutetica aristoteacutelica tambeacutem eacute muito realista ao considerar o fato de que existe uma desordem
interna no indiviacuteduo Este conflito eacute caracterizado pela discrepacircncia entre a faculdade racional e os
desejos provindos da faculdade sensitiva Caso esta dissonacircncia natildeo seja resolvida com os desejos
submetidos ao ordenamento da racionalidade natildeo haacute a possibilidade do homem tornar-se virtuoso
Portanto o filoacutesofo de Estagira forja uma concepccedilatildeo eacutetica bastante equilibrada que evita excessos
de conduta decorrentes de determinados comportamentos morais muito comuns nos dias atuais
baseadas no hedonismo e no relativismo moral que consideram os desejos como os pilares da
felicidade
O Sumo Bem eacute a eudaimonia eacute aquilo que existe de mais nobre e confere mais prazer ao ser
humano Eacute a melhor atividade dentre as mais excelentes que pode ser realizada por algueacutem A
eudaimonia eacute uma espeacutecie de atividade da alma conforme a virtude E somado a isto a eudaimonia
tambeacutem eacute composta tanto por bens que satildeo indispensaacuteveis quanto bens que satildeo acessoacuterios agrave
felicidade98Assim a eudaimonia pode ser apreendida por meio de um treinamento Ou pode ser
desenvolvida de algum outro modo Ou eacute uma daacutediva divina A resposta eacute que a virtude natildeo eacute algo
natural no ser humano Por isso necessita de um constante esforccedilo do indiviacuteduo para adquiri-la e
aperfeiccediloaacute-la Conforme nos mostra Aristoacuteteles
[] pois aquilo que constitui o precircmio e a finalidade da virtude se nos afigura o quede melhor existe no mundo algo de divino e abenccediloado Dentro desta concepccedilatildeotambeacutem deve ela ser partilhada por grande nuacutemero de pessoas pois quem quer quenatildeo esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistaacute-la medianteuma certa espeacutecie de estudo e diligecircncia Mas se eacute preferiacutevel ser feliz dessamaneira a secirc-lo por acaso eacute razoaacutevel que os fatos sejam assim uma vez que quetudo aquilo que depende da accedilatildeo natural eacute por natureza tatildeo bom quanto poderiaser e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racionalespecialmente se depende da melhor de todas as causas Confiar ao acaso o que haacutede melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito99
Uma questatildeo que surge no estudo da eudaimonia e da virtude da prudecircncia diz respeito ao
papel que o acaso possui na busca por uma vida feliz O acaso constitui todas as situaccedilotildees que estatildeo
fora do controle imediato do indiviacuteduo Satildeo as contingecircncias que aparecem no decorrer da vida do
estarrdquo O proacuteprio WD Ross explica que prefere utilizar o termo ldquobem-estarrdquo para definir eudaimonia pelo fato destaser um certo tipo de atividade e natildeo um certo tipo de prazer embora este uacuteltimo a acompanhe Ross interpreta que otermo ldquofelicidaderdquo eacute inapropriado para traduzir a palavra grega eudaimonia por considerar que esse termo ldquofelicidaderdquose refere a um sentimento que apenas se diferencia do prazer por uma questatildeo de perdurar mais tempo ser maisprofundo e ser mais sereno que o prazer No presente trabalho optamos por usar o termo ldquofelicidaderdquo por esta traduccedilatildeoser a mais tradicional e consagrada nos textos que versam acerca da eacutetica em Aristoacuteteles 98 Cf EacuteN I 1099a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1899 EacuteN I 1099b 17-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 19
35
homem e que devem ser enfrentadas para que se alcance a felicidade Por isso examinaremos o
acaso na vida humana
16 O acaso na vida humana
O acaso na vida humana natildeo eacute um fator provaacutevel de trazer uma vida feliz ao indiviacuteduo O
acaso pode trazer tanto uma maacute quanto uma boa sorte e o indiviacuteduo que deixa sua vida ao acaso
tem pouca chance de alcanccedilar a eudaimonia A ordem natural das coisas indica que o indiviacuteduo
para atingir a excelecircncia nas suas accedilotildees seja em sua conduta seja em qualquer coisa que produza
deve se empenhar para que isso ocorra Portanto para cumprir sua funccedilatildeo proacutepria de ser racional
todo indiviacuteduo deve se empenhar em se tornar virtuoso e alcanccedilar sua excelecircncia como ser humano
porque isso natildeo ocorre de modo natural
O acaso pode trazer uma maacute sorte e vaacuterios infortuacutenios Um indiviacuteduo desafortunado pode ser
considerado feliz Aristoacuteteles considera que sim mesmo que uma pessoa sofra ao longo da sua vida
diversos desventuras ele pode ser feliz Pois a estabilidade encontra-se em uma vida virtuosa e natildeo
nas circunstacircncias que mudam a cada momento100 Naturalmente eventos agradaacuteveis acrescentam
alegrias e tornam mais agradaacuteveis uma vida virtuosa Mas eventos desagradaacuteveis trazem dores e
tornam mais sofrida uma vida mesmo que virtuosa Mesmo que o indiviacuteduo seja acometido por
uma sucessatildeo de eventos desagradaacuteveis sabe enfrentaacute-los de maneira digna Visto que a
eudaimonia eacute um exerciacutecio ativo do homem em conformidade com a virtude o sujeito que esteja
empenhado em agir conforme as virtudes natildeo depende da sorte para ser feliz Deste modo o homem
virtuoso sabe aproveitar as circunstacircncias e extrair o melhor delas para alcanccedilar uma vida
feliz101Acerca do acaso e de uma vida feliz esta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco eacute significativa
Ora muitas coisas acontecem por acaso e coisas diferentes quanto agrave importacircnciaEacute claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes natildeo pesam muito nabalanccedila mas uma multidatildeo de grandes acontecimentos se nos forem favoraacuteveistornaraacute nossa vida mais venturosa (pois natildeo apenas satildeo em si mesmos de feitio aaumentar a beleza da vida mas a proacutepria maneira como um homem os recebe podeser nobre e boa) e se se voltarem contra noacutes poderatildeo esmagar e mutilar afelicidade pois que aleacutem de serem acompanhados de dor impedem muitasatividades Todavia mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver quandoaceita com resignaccedilatildeo muitos grandes infortuacutenios natildeo por insensibilidade agrave dormas por nobreza e grandeza de alma102
100 Cf EacuteN I 1100b 13-20 Ibidem p 20101 Cf EacuteN I 1101a 35-37 Ibidem p 21102 EacuteN I 1100b 25-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 20-21
36
Decorrente do texto da Eacutetica a Nicocircmaco descrito acima podemos notar que o tamanho dos
acontecimentos pode afetar o indiviacuteduo tanto para a felicidade quanto agrave infelicidade Deste modo a
fortuna e o infortuacutenio podem ter uma determinada influecircncia na consecuccedilatildeo de uma vida feliz
embora o homem virtuoso consegue conviver com estes infortuacutenios e extrair o melhor de cada
situaccedilatildeo
A eudaimonia por ser autossuficiente e completa natildeo depende de nenhum fator externo
mas sobretudo das accedilotildees virtuosas praticadas pelo indiviacuteduo Por isso possui a caracteriacutestica de ser
estaacutevel Esta estabilidade perpassa a vida virtuosa do indiviacuteduo Por conseguinte as virtudes satildeo a
base para a estabilidade da eudaimonia
Na anaacutelise acerca da eudaimonia Aristoacuteteles tambeacutem questiona se porventura os
infortuacutenios de pessoas proacuteximas e queridas tais como os amigos e os descendentes podem afetar a
estabilidade de um indiviacuteduo virtuoso que possui uma vida feliz A resposta eacute que estes infortuacutenios
dos amigos ou descendentes natildeo tecircm forccedila suficiente para afetar um indiviacuteduo que jaacute deteacutem a
felicidade Os infortuacutenios podem ser em graus diversos e natildeo afetam substancialmente o homem
virtuoso 103 Do mesmo modo as adversidades enfrentadas pelos amigos e descendentes natildeo retiram
a felicidade do indiviacuteduo bem-aventurado nem a acrescentam em nada104
Observa-se que na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a eudaimonia para ser alcanccedilada possui uma
condicionante que consiste em agir baseado nas virtudes para obter uma nobreza de alma Se o
indiviacuteduo rejeitar esta condicionante natildeo teraacute uma vida plena A felicidade eacute um exerciacutecio ativo do
homem conforme a virtude perfeita sendo estaacutevel defronte agraves variadas circunstacircncias posto que eacute
autossuficiente e plena em si mesma Eacute o fim uacuteltimo que orienta toda a vida humana E este fim
uacuteltimo se constitui em cumprir a funccedilatildeo proacutepria do ser humano que eacute o uso da racionalidade e a
partir dele atingir um alto grau de virtudes Neste sentido o proacuteximo passo de Aristoacuteteles eacute analisar
a natureza das virtudes haja vista a grande importacircncia que estas possuem na composiccedilatildeo da
eudaimonia
103 Nas palavras de Ross para Aristoacuteteles a ldquo[] a finura de caraacuteter pode lsquobrilhar atraveacutesrsquo de circunstacircncias adversasrdquoROSS WD Aristoacuteteles opcit p 198104 Cf EacuteN I 1101b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 22
37
CAPIacuteTULO II
AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
Neste capiacutetulo eacute feito um estudo acerca da concepccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as virtudes e de
como satildeo fundamentais para a consecuccedilatildeo da eudaimonia Tambeacutem eacute vista a relaccedilatildeo entre as
virtudes e a educaccedilatildeo dos prazeres pois todo ser humano procura se aproximar daquilo que
ocasiona prazer e fugir daquilo que provoca dor Assim o prazer e a dor satildeo importantes para a
busca das virtudes e rejeiccedilatildeo dos viacutecios morais Nem todos os prazeres contribuem para uma correta
formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo O indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida feliz deve saber cultivar
os prazeres moralmente bons e rejeitar os prazeres moralmente ruins Por conseguinte deve ter um
conhecimento de quais prazeres satildeo bons para serem usufruiacutedos e quais natildeo satildeo para praticar accedilotildees
nobres e consequentemente ter uma vida em plenitude
Tal como as virtudes satildeo um componente essencial para uma vida feliz o prazer tambeacutem eacute
uma parte importante da eudaimonia O prazer tem um duplo caraacuteter aperfeiccediloamento e resultado
Como aperfeiccediloamento o prazer auxilia no refinamento das habilidades do indiviacuteduo e
naturalmente ajuda a aprimorar as virtudes105 Como resultado o prazer eacute fruto das proacuteprias accedilotildees
virtuosas que causam uma satisfaccedilatildeo no indiviacuteduo que as pratica106 Deste modo o prazer eacute inerente
agrave eudaimonia pois as virtudes satildeo um pressuposto baacutesico da vida feliz
As virtudes satildeo diferenciadas entre virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) e virtudes morais
(eacuteticas) As virtudes morais satildeo necessaacuterias para que haja o autodomiacutenio do indiviacuteduo sobre suas
paixotildees Satildeo as virtudes morais que permitem um melhor florescimento das virtudes intelectuais e
em especial a virtude da prudecircncia Para que o indiviacuteduo desenvolva corretamente as virtudes
morais eacute necessaacuterio conhecer qual eacute a natureza destas virtudes Assim eacute necessaacuteria a compreensatildeo
do conceito de mediania que eacute uma das caracteriacutesticas das virtudes
Em siacutentese no presente capiacutetulo analisaremos os seguintes pontos as virtudes morais os prazeres
e o seu papel na formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo o homem virtuoso (σπουδαῖος) o conceito de mediania
(μεσότης) e a necessidade das virtudes morais para o desenvolvimento da virtude intelectual da
prudecircncia (φρόνησις)
105Cf EacuteN X 1175a 30-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 185106Cf EacuteN X 1175a 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184
38
21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais
A definiccedilatildeo de eudaimonia eacute ser uma atividade da alma conforme a virtude perfeita107 Neste
sentido as virtudes satildeo uma peccedila central no sistema eacutetico aristoteacutelico Satildeo elas que ao serem
praticadas conduzem ao aprimoramento do indiviacuteduo tanto em conhecimento adquirido pelas
virtudes intelectuais quanto em proporcionar um caraacuteter mais nobre por causa da robustez das
virtudes morais
As virtudes satildeo divididas em conformidade com esta divisatildeo da alma entre uma parte
racional e outra irracional As virtudes que dizem respeito agrave parte intelectual satildeo as virtudes
intelectuais e as relacionadas agrave parte irracional mas propriamente ao elemento desiderativo satildeo as
virtudes morais A parte irracional da alma possui uma subdivisatildeo em dois elementos O primeiro
elemento natildeo pode ser submetido agrave razatildeo pois satildeo as proacuteprias atividades da faculdade vegetativa O
segundo elemento possui a capacidade de ser orientado pela razatildeo sendo este o elemento
desiderativo contido na faculdade sensitiva Por isso nota-se um detalhe importante em relaccedilatildeo ao
indiviacuteduo virtuoso ele escolhe submeter seus desejos e paixotildees agrave racionalidade e tambeacutem aprende
a desejar o que a racionalidade determina como correto
Conforme citamos no capiacutetulo anterior para uma melhor compreensatildeo das propriedades das
virtudes intelectuais e das virtudes morais eacute necessaacuterio recordar a obra De Anima na qual
Aristoacuteteles estabelece a divisatildeo da alma (ψυχή) humana em trecircs partes ou faculdades intituladas de
nutritiva (vegetativa) sensitiva (perceptiva) e racional (intelectiva) Estabelecida a divisatildeo da alma
em uma parte racional (faculdade intelectiva) e uma parte irracional (faculdades sensitiva e
nutritiva) deve-se observar que existe uma relaccedilatildeo entre estas duas partes Uma espeacutecie de
interaccedilatildeo entre a racionalidade e os apetites correspondentes agrave parte irracional Estas duas
dimensotildees da psicheacute natildeo satildeo naturalmente harmocircnicas entre si A faculdade sensitiva comporta os
desejos (o1recij) do ser humano Neste ponto eacute importante notar que Aristoacuteteles divide os desejos
em trecircs espeacutecies apetite () impulso () e vontade ()108
Por conter o elemento desiderativo a faculdade sensitiva eacute em parte responsaacutevel pelas
accedilotildees humanas Em parte porque a proacutepria faculdade sensitiva carece de racionalidade mas de
107 Cf EacuteN I 1102a 5-7 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23108 Cf De anima 414a 30 - 414b 3 Aristoacuteteles De anima Op cit p46-47 Segue-se o texto ldquoDas faculdades da almaque referimos a uns seres como dissemos pertencem todas umas delas a outros e a alguns seres pertence apenas umasoacute faculdade Chamamos entatildeo faculdades agraves partes nutritiva perceptiva desiderativa de deslocaccedilatildeo e discursiva Oraagraves plantas pertence apenas a faculdade nutritiva ao passo que aos outros seres pertencem esta faculdade e tambeacutem aperceptiva E se esses dispotildeem da faculdade perceptiva possuem igualmente a desiderativa pois o desejo eacute de fatoapetite impulso e vontade Todos os animais entatildeo possuem um dos sentidos o tato e ao ser a que a sensibilidadepertencem igualmente o prazer e a dor (isto eacute o apraziacutevel e o doloroso) Mais agravequeles a que estes pertencem pertence(sic) tambeacutem o apetite isto eacute o proacuteprio desejo do apraziacutevel []rdquo
39
uma certa forma o elemento desiderativo participa da faculdade racional Pois tanto o indiviacuteduo
considerado continente (e0gkrath~~j109 quanto o indiviacuteduo incontinente (a0krathj)110 possuem a
faculdade racional Mas haacute uma diferenccedila entre estes dois tipos de indiviacuteduos O indiviacuteduo
continente age conforme agrave razatildeo ele submete seus desejos e paixotildees agrave racionalidade O indiviacuteduo
incontinente foge dos ditames da razatildeo seus desejos e paixotildees prevalecem sobre o ordenamento
racional Aristoacuteteles afirma que o indiviacuteduo continente obedece agrave parte racional e no indiviacuteduo
temperante e no corajoso esta obediecircncia eacute ainda maior111 Este fato implica a utilizaccedilatildeo da razatildeo e
um autodomiacutenio perseverante que resultam em uma disposiccedilatildeo firme e habitual do indiviacuteduo para
que o elemento desiderativo contido na parte irracional possa estar submetido agrave parte racional
As virtudes satildeo divididas em duas espeacutecies correspondentes agrave divisatildeo da alma em parte
racional e irracional As virtudes intelectuais satildeo relacionadas agrave racionalidade e as virtudes morais
ao elemento desiderativo contido na parte irracional Ross classifica este elemento desiderativo
como sendo um elemento intermeacutedio pois embora pertenccedila agrave parte irracional possui uma ligaccedilatildeo
com a razatildeo Eacute esta parte do desejo que obedece aos princiacutepios e regras de vida que o indiviacuteduo
continente traccedilou para si mesmo Enquanto o indiviacuteduo incontinente natildeo consegue submeter o
desejo ao controle da faculdade racional112 Uma vez que esta parte desiderativa obedeccedila agrave
racionalidade pode-se entender o uso da razatildeo em dois momentos distintos que conferem dois
tipos de sentido O primeiro sentido eacute relacionado aos desejos e paixotildees nos quais estes se
submetem agrave racionalidade Neste caso eacute a razatildeo praacutetica que opera por meio da prudecircncia e das
virtudes morais O outro sentido eacute o uso da razatildeo para conhecer e verificar pressupostos teoacutericos
que natildeo dizem respeito agrave accedilatildeo humana como por exemplo um teorema matemaacutetico As virtudes
intelectuais referem-se a este campo de aplicaccedilatildeo da racionalidade113 No livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco114 satildeo listadas cinco virtudes intelectuais que satildeo a arte (τέχνη) o conhecimento
cientiacutefico (ἐπιστήμη) a sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) a razatildeo intuitiva
(νοῦς)115 No livro I haacute exemplos de virtudes morais116 a liberalidade (e0leuqeriothj) e a
temperanccedila (σωφροσύνη) Em relaccedilatildeo agrave sabedoria filosoacutefica (σοφία) sendo esta uma virtude
dianoeacutetica trata-se de uma sabedoria contemplativa dedicada agravequilo que eacute imutaacutevel A sophia
109 O indiviacuteduo continente domina seus desejos e os submete agrave razatildeo110 O indiviacuteduo incontinente natildeo domina seus desejos por isso natildeo consegue submetecirc-los agrave razatildeo 111 Cf EacuteN 1102b 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24112 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198113 SPINELLI Priscilla Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaacutequea Opcit p 42114 Cf EacuteN 1139b 15-18 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101115 Noucircs eacute traduzido de vaacuterias maneiras nas traduccedilotildees portuguesas da Eacutetica a Nicocircmaco entendimento (E Bini 2013p 194) perspicaacutecia (M Zingano 2008 p 40) razatildeo intuitiva (P T Spinelli 2007 p137 e L Vallandro e GBornheim 1987 p 110) ldquointuicioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) e ldquointelligencerdquo (H Rackham 1996 p 156) 116 Em EacuteN I 1103a 5-10 satildeo citadas somente estas duas virtudes morais como forma de exemplo mas Aristoacutetelesdescreve outras virtudes no decorrer de sua obra
40
possui uma natureza calcada na epiacutesteme e no nous pois visa aquilo que natildeo sofre alteraccedilotildees em
nenhuma circunstacircncia Por seu lado a phronecircsis se caracteriza por visar a praacutexis ao lidar com as
diversas situaccedilotildees que mudam constantemente
As virtudes intelectuais podem ser adquiridas e apuradas pela instruccedilatildeo enquanto as
virtudes morais satildeo robustecidas por meio do haacutebito117 Visto que nascemos dotados com elas em
potecircncia para que alcancem sua plenitude torna-se imperioso a sua solidificaccedilatildeo por meio de um
permanente esforccedilo do homem Se as virtudes morais e intelectuais jaacute estivessem plenamente
desenvolvidas no nosso caraacuteter natildeo seria necessaacuterio aprimoraacute-las pela repeticcedilatildeo das mesmas Neste
sentido eacute necessaacuterio desenvolver as virtudes uma vez que natildeo satildeo desenvolvidas na natureza
humana como satildeo por exemplo as faculdades da visatildeo ou da audiccedilatildeo que se encontram tanto em
um estado de potecircncia quanto em estado de ato118
Pode-se afirmar que uma parcela da conquista da eudaimonia consiste em harmonizar
corretamente a razatildeo e o desejo para que sejam conduzidos ao mesmo objetivo A adequada
harmonia consiste na proeminecircncia da racionalidade sobre os desejos e paixotildees A virtude moral
consiste nesta condiccedilatildeo estaacutevel do indiviacuteduo resultante de uma escolha que se transforma em um
haacutebito por ser repetida inuacutemeras vezes ao longo do tempo fazendo com que exerccedila bem sua funccedilatildeo
Mas para ser operacionalizada eacute fundamental a atuaccedilatildeo da razatildeo para escolher um fim razoaacutevel ao
qual o indiviacuteduo possa seguir por meio de sua vontade
Na formaccedilatildeo moral do homem para que este adquira uma nobreza de conduta e alcance uma
vida feliz vimos a importacircncia das virtudes morais para controlar os desejos provenientes da
faculdade sensitiva A felicidade eacute obtida pela primazia do intelecto sobre os desejos Neste
contexto de construccedilatildeo da eudaimonia haacute um componente a ser considerado que eacute o prazer ou a
dor proveniente das accedilotildees humanas Este eacute o assunto a ser abordado no proacuteximo toacutepico
22 A educaccedilatildeo dos prazeres e a eudaimonia
Uma percepccedilatildeo aristoteacutelica bastante interessante eacute assinalar a importacircncia de um treino
constante como sendo essencial para o robustecimento das virtudes morais pelo indiviacuteduo frente aos
acontecimentos Afinal ningueacutem eacute capaz de arrogar para si proacuteprio ou mesmo ser verdadeiramente
elogiado como sendo algueacutem virtuoso se natildeo se habituou a praticar as virtudes ao longo do tempo e
enfrentar as circunstacircncias concretas da vida Em outras palavras pode-se dizer que uma virtude eacute
conquistada quando for provada em vaacuterios casos e durante um periacuteodo de tempo prolongado Por
117 CF EacuteN II 1103a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 27118 CF EacuteN II 1103a 30 Ibidem p 27
41
isso eacute imprescindiacutevel desde a mais tenra idade estabelecer uma paideacuteia (παιδεία)119voltada para a
praacutetica das virtudes conforme mostra Aristoacuteteles ao seguir a mesma linha de raciociacutenio de Platatildeo
sobre a importacircncia de uma boa educaccedilatildeo Esta boa educaccedilatildeo consiste em aprender a apreciar
aquilo que eacute desejaacutevel e rejeitar aquilo que eacute indesejaacutevel120
No que tange agrave educaccedilatildeo para orientar a pessoa a gostar daquilo que eacute desejaacutevel um dos
pontos fundamentais da filosofia moral aristoteacutelica eacute a questatildeo do prazer O fenocircmeno do prazer eacute
um tema corrente na tradiccedilatildeo filosoacutefica grega antiga sendo ele considerado uma das fontes acerca
da moralidade e conduccedilatildeo agrave uma vida feliz O pensamento eacutetico aristoteacutelico segue esta tradiccedilatildeo e
insere uma teoria do prazer uma vez que este eacute um dos elementos essenciais para a realizaccedilatildeo
humana O prazer eacute algo completamente inserido na vida humana a ponto de natildeo se concebecirc-la sem
a perspectiva do acompanhamento ou a ausecircncia dele Conforme assevera Aristoacuteteles ldquoAcresce que
o agradaacutevel e o doloroso cresceram conosco desde a nossa infacircncia e por isso eacute difiacutecil conter essas
paixotildees enraizadas como estatildeo em nossa vida E alguns mais e outros menos medimos nossas
proacuteprias accedilotildees pelo estalatildeo do prazer e da dorrdquo121 O filoacutesofo de Estagira cita que Eudoxo122
identificava o bem com o prazer pois observava que todos os seres racionais e irracionais tendiam
para esse sentimento123 Platatildeo tambeacutem se posiciona acerca do fenocircmeno do prazer no seu diaacutelogo
Filebo no qual o mestre de Aristoacuteteles argumenta que tanto o homem intemperante quanto o
temperante provam do prazer o intemperante com prazeres depravados o temperante com prazeres
mais elevados e o saacutebio tem prazer na sua praacutetica da sabedoria124 Posto que o fenocircmeno do prazer e
da dor satildeo intriacutensecos agrave natureza humana naturalmente tambeacutem satildeo inerentes agrave conduta humana e
este fato os torna fatores educativos para o ser humano A eudaimonia tambeacutem se traduz em uma
adequada escolha dos prazeres uma vez que o ser humano natildeo eacute somente razatildeo mas tambeacutem eacute
dotado de sentidos Por conseguinte uma orientaccedilatildeo adequada do ser humano consiste em levaacute-lo
ao deleite prazeroso das coisas nobres sendo fundamental um estiacutemulo para a praacutetica das virtudes
intelectuais e morais
As virtudes morais possuem como uma de suas caracteriacutesticas serem ligadas aos prazeres
ou agraves dores resultantes de nossos atos Assim prazer e dor tornam-se indicativos do caraacuteter virtuoso
ou natildeo virtuoso de uma pessoa Caso realize uma accedilatildeo virtuosa e esta traga sofrimento ao agente
este natildeo poderaacute ser tido como virtuoso Para ilustrar esta ideia tem-se o exemplo de um homem que
119 O termo paideacuteia eacute traduzido como educaccedilatildeo ensinamento instruccedilatildeo treinamento120 Cf EacuteN II 1104b 10-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29121 EacuteN II 1105a 1-5 Ibidem p 30122 Foi um disciacutepulo de Platatildeo123 Cf EacuteN X 1172a 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 174124 Cf Filebo 11d-12d PLATOacuteN Diaacutelogos VI Filebo Timeo Critias Traducciones Introducciones y Notas porMaria Angeles Duraacuten y Francisco List Madrid Gredos 1992 p 22-24
42
pratica a abstinecircncia dos prazeres do corpo para fins de adquirir a virtude da temperanccedila A pessoa eacute
tida como temperante se o esforccedilo da abstinecircncia lhe eacute prazeroso caso natildeo seja e ocasionar um
sofrimento este seraacute um homem destemperante ou seja que natildeo possui moderaccedilatildeo nas suas
accedilotildees125 A virtude moral refere-se em como saber lidar com os prazeres e dores para uma
apropriada formaccedilatildeo do caraacuteter pois o prazer pode induzir o indiviacuteduo a realizar accedilotildees vis e a dor
dificulta a realizar accedilotildees nobres126 O prazer eacute um fator indutor das accedilotildees humanas seja para o bem
ou para o mal porque o prazer eacute vinculado agrave natureza humana sendo objeto dos nossos desejos
Afinal espera-se alcanccedilar o prazer nas atividades que exercemos e natildeo que estas resultem em
tristezas ou dores as quais o ser humano tende a evitaacute-los Aristoacuteteles eacute enfaacutetico ao afirmar que na
educaccedilatildeo dos jovens o prazer e a dor encontram-se presentes sendo ldquoguiasrdquo dos caminhos a serem
seguidos Eacute de extrema importacircncia escolher bem e comprazer-se com as coisas certas aquelas que
se deve apreciar e se afastar das coisas inapropriadas que devem ser evitadas natildeo se permitindo o
deleite com aquilo que eacute peacuterfido Por isso esta escolha tem uma grande influecircncia na formaccedilatildeo de
uma pessoa virtuosa127
O homem eacute um ser racional Agrave luz deste fato nota-se como o desejo pode e deve ser
moldado agrave luz da razatildeo O desejo impele o indiviacuteduo a buscar aquilo que eacute mais prazeroso No dizer
de Otfried Houmlffe o prazer eacute um elemento integrante da felicidade mas uma vida de puro prazer natildeo
oferece um fundamento seguro para encontrar a eudaimonia128 Para Aristoacuteteles os prazeres do
intelecto superam os prazeres dos sentidos129 Por isso a parte racional deve orientar o desejo para
que tenha prazer no empenho necessaacuterio para adquirir e manter a virtude e obter a satisfaccedilatildeo com o
exerciacutecio das atividades do intelecto130
Essa eacute uma opccedilatildeo de fundamental importacircncia a ser feita e a qual ningueacutem pode ser furtar
consciente ou natildeo da existecircncia dessa escolha Uma vez que os desejos satildeo intriacutensecos agrave natureza
humana sendo uma parcela deles pertencentes a sua parte irracional eacute imperioso escolher quais
espeacutecies de prazeres seratildeo objeto de agrado os prazeres mais sublimes que resIbidem na vivecircncia
das virtudes morais e no intelecto aprimorado pelas virtudes intelectuais ou os prazeres mais
rasteiros que satisfazem apenas os apetites da alma humana
125 Neste ponto surge uma questatildeo interessante o virtuoso temperante pode frear sentimentos prazerosos parapermanecer no meio-termo No nosso entender a resposta eacute positiva O homem temperante para alcanccedilar o meio-termoe executar uma accedilatildeo virtuosa pode reprimir os sentimentos prazerosos principalmente se forem prazeres torpes Emesmo que sejam prazeres nobres o temperante pode escolher dominaacute-los caso natildeo o conduza a uma accedilatildeo virtuosa 126 Cf EacuteN II 1104b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29127 Cf EacuteN X 1172a 20-25 Ibidem p 179128 Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Op cit p 193129 EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186130 Cf EacuteN X 1177a 1- 27 e 1178a 1-8
43
Aristoacuteteles utiliza pessoas concretas para exemplificar e identificar quais prazeres satildeo os
melhores e por conseguinte mais aspiraacuteveis a todos os homens131 O paracircmetro dos prazeres eacute
fornecido pela proacutepria accedilatildeo das pessoas virtuosas e natildeo por aquelas que possuem uma deformaccedilatildeo
em seu caraacuteter moral As pessoas virtuosas satildeo a proacutepria concretizaccedilatildeo do que se constitui o criteacuterio
dos prazeres considerados bons e dignos Elas satildeo consideradas modelos por se deliciarem com
prazeres que satildeo frutos da parte racional do ser humano e tambeacutem por terem os desejos
controlados pelas virtudes morais Por isso estes indiviacuteduos elevam a patamares superiores a
conduta humana Portanto os prazeres que as pessoas virtuosas buscam e desfrutam isso eacute o que
devem ser procurados porque satildeo estes prazeres que tanto estimulam a praacutetica das virtudes quanto
resultam destas mesmas virtudes praticadas no dia-a-dia
As pessoas viciosas corrompidas moralmente natildeo podem ser tomadas como modelo de
uma vida feliz devido ao fato de optarem por buscar os prazeres torpes que satisfazem apenas os
sentidos proacuteprios da parte irracional esquecendo-se da satisfaccedilatildeo do intelecto da parte racional
Com isso afastam-se da racionalidade que eacute a parte mais ilustre e mais humana e aproximam-se de
um modo de vida mais animalesco pois como diz Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquo[] tais prazeres satildeo
muitos desejados pelas bestas mas natildeo o devem ser pelos homensrdquo132 A torpeza na conduta
fatalmente afasta o homem de uma vida virtuosa que eacute proacutepria da eudaimonia Logo na sordidez
encontra-se a infelicidade embora muitas vezes tenha a aparecircncia de uma vida feliz
O homem bom eacute o proacuteprio homem virtuoso Ele eacute o padratildeo de referecircncia acerca dos
prazeres que podem ser apreciados O que se afigura como prazeroso ao homem virtuoso pode ser
deduzido como um prazer correto e agradaacutevel sendo liacutecito o estiacutemulo para ser usufruiacutedo por outras
pessoas Um homem virtuoso natildeo se deliciaraacute com coisas ou accedilatildeo desonrosas Somente homens
pervertidos moralmente podem se comprazer com aquilo que eacute vergonhoso natildeo existindo
possibilidade de serem erigidos ao patamar de modelos de prazeres a serem vividos Aristoacuteteles eacute
enfaacutetico ao afirmar que os prazeres reconhecidamente ignoacutebeis natildeo devem ser apreciados como
prazeres sob nenhuma condiccedilatildeo pois satildeo indignos de homens com nobreza moral sendo apenas
131Cf EacuteN VI 1140b 10 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Aristoacuteteles tambeacutem aponta para os homensconsiderados prudentes para exemplificar a virtude da phronecircsis em atuaccedilatildeo e tentar demonstrar os criteacuterios utilizadospara uma accedilatildeo virtuosa O Estagirita cita o estadista Peacutericles e ldquohomens como elerdquo como exemplo de indiviacuteduos quepossuiacuteam a virtude da prudecircncia porque percebiam o que era bom para si mesmos e para os homens em geral Por issoeram considerados bons administradores de casas e de Estados No caso dos prazeres Aristoacuteteles tambeacutem aponta que oshomens virtuosos satildeo o modelo de quais espeacutecies de prazeres podem ser usufruiacutedos Satildeo os prazeres provenientes dasaccedilotildees virtuosas 132 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles TradTiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 p 38 A citaccedilatildeo em latim vem das Sententia Libri Ethicorumliber 10 lectio 4 n 3 ldquo[] Et similiter delectationes bestiales bestiis quIbidem sunt appetibiles non autemhominibusrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017 O Aquinate sintetiza a visatildeoaristoteacutelica referente a EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-15
44
apreciados por homens degenerados em seu caraacuteter Mas mesmo dentro da categoria dos prazeres
dignos e honrosos a questatildeo que surge eacute a acerca de quais destes prazeres satildeo mais adequados ao
ser humano Novamente eacute o homem dotado de virtudes que se torna o proacuteprio criteacuterio De acordo
com o Estagirita
Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado comosendo realmente talSe isto eacute correto como se afiacutegura ser e a virtude e o homembom como tais satildeo a medida de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os quelhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitarSe as coisas que ele acha enfadonhas parecem agradaacuteveis a outros natildeo haacute nada desurpreendente nisso pois os homens podem ser pervertidos e estragados de muitosmodos e tais coisas natildeo satildeo realmente agradaacuteveis mas soacute o satildeo para essaspessoas e outras nas mesmas condiccedilotildees Das que reconhecidamente satildeovergonhosas evidentemente natildeo se deveria dizer que satildeo prazeressalvo para umgosto pervertido133
O prazer (h9donh) natildeo eacute um bem em si mesmo natildeo eacute autossuficiente posto que esteja
sempre atrelado em alguma coisa boa ou maacute Por isso natildeo eacute o bem supremo pois variam conforme
as diversas espeacutecies de prazer aleacutem de serem alguns resultantes de boas obras e outras de obras
torpes Assim o prazer natildeo pode ser considerado universalmente bom nem como o uacutenico criteacuterio
de bem Como siacutentese desta premissa Satildeo Tomaacutes de Aquino aponta trecircs aspectos acerca dos
prazeres pelos quais Aristoacuteteles natildeo considera o prazer universalmente bom134 Primeiro o prazer
possui muitas espeacutecies e muitas vezes pode ser maleacutefico Este fato pode ser ilustrado citando a
diferenccedila entre um amigo e um adulador Com o amigo com o qual existe uma verdadeira amizade
o conviacutevio eacute pautado pelo bem que traz Em relaccedilatildeo ao adulador o conviacutevio tem por fundamento
somente o prazer Prontamente o amigo eacute louvado pelo bem que traz agrave amizade enquanto o
adulador eacute repreendido Segundo uma crianccedila concede uma maacutexima relevacircncia aos prazeres da
infacircncia e ningueacutem deseja continuar vivendo nesta etapa da vida mesmo que o crescimento e
amadurecimento signifiquem assumir as tristezas inerentes agrave vida adulta Terceiro existem
atividades que satildeo desejadas mas natildeo trazem nenhum tipo de prazer tais como o ato de recordar
adquirir conhecimento e possuir virtudes Estas atividades se concretizam sem necessariamente
terem um prazer como consequecircncia Neste sentido sendo as virtudes e o conhecimento
relacionados agrave eudaimonia Aristoacuteteles recomenda que mesmo que hipoteticamente natildeo houvesse
133 Cf EacuteN X 1176a 15-23 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186134 Cf Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 39 e Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 4 n 4 a8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017
45
nenhum prazer na praacutetica destas atividades elas deveriam continuar a serem escolhidas pelo bem
que carregam consigo135
Em siacutentese o prazer eacute como um ldquomotorrdquo que impele o indiviacuteduo a buscar o objeto
apropriado do desejo seja este um bom ou mau desejo Estes desejos geram prazeres considerados
nobres ou torpes O homem virtuoso para alcanccedilar a eudaimonia procura os prazeres originados
pelas accedilotildees virtuosas porque geram prazeres dignos
Aleacutem de ser uma fonte indutora das atividades humanas o prazer tambeacutem possui o papel de
aperfeiccediloar estas mesmas atividades Eacute esta funccedilatildeo de aperfeiccediloamento que seraacute estudada no
proacuteximo toacutepico
23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
Uma outra funccedilatildeo distintiva do prazer eacute o aperfeiccediloamento da atividade Esta relaccedilatildeo de
prazer e perfeiccedilatildeo se refere agrave dois pontos importantes que satildeo o aprimoramento da atividade e o
resultado da perfeiccedilatildeo atingida na accedilatildeo
Na concepccedilatildeo aristoteacutelica todas as pessoas buscam o prazer porque aspiram agrave vida136 Uma
vez que a vida eacute uma atividade cada indiviacuteduo exerce sua atividade sobre os objetos e com as
faculdades que mais lhe apraz o prazer inerente a essas accedilotildees estimula repetir continuamente esta
mesma accedilatildeo Por exemplo um muacutesico sente prazer na audiccedilatildeo e no estudo das melodias ou um
intelectual se deleita com o uso da razatildeo nas questotildees filosoacuteficas Por isso o prazer eacute um
complemento de uma atividade bem exercida137 Deste modo haacute um aprimoramento das accedilotildees
realizadas o que leva um aperfeiccediloamento da proacutepria vida pois esta conteacutem todas as atividades
Conforme descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
Dir-ser-ia que todos os homens desejam o prazer porque todos aspiram agrave vida Avida eacute uma atividade e cada um eacute ativo em relaccedilatildeo agraves coisas e com as faculdadesque mais ama por exemplo o muacutesico eacute ativo com o ouvido em referecircncia agravesmelodias o estudioso como o intelecto em referecircncia a questotildees teoacutericas e da
135 Usando o proacuteprio exemplo de Aristoacuteteles na EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-10 Devemos notar que determinadasatividades como a visatildeo a memoacuteria o conhecimento a posse das virtudes etc podem gerar prazer ou natildeo Mas devemser buscadas mesmo que gerem dor Na referida passagem da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apenas afirma que devemser escolhidas independentemente de serem prazerosas ou natildeo Em nosso entender estas atividades podem emalgumas ocasiotildees natildeo serem prazerosas Mas natildeo significam necessariamente que gerem dor por isso deve-se optarpor elas tal como preconizado pelo Estagirita 136 A vida de um ser humano conteacutem prazeres e dores Todos os indiviacuteduos procuram ter uma vida prazerosa o quesignifica maximizar as atividades que trazem prazer e diminuir aquelas que provocam dor Logo dizer que um homembusca agrave vida significa que ele procura exercer as atividades que trazem alegria para si para que sua vida seja feliz137 Uma questatildeo que pode advir eacute se necessariamente uma atividade bem feita gera prazer Na nossa visatildeo entendemosque sim Porque o prazer eacute intriacutenseco agrave atividade ou seja acompanha cada accedilatildeo realizada de modo correto Oindiviacuteduo tem satisfaccedilatildeo ao final da accedilatildeo corretamente realizada
46
mesma forma nos outros casos Ora o prazer completa as atividades e portanto avida que eles desejam Eacute muito justo pois que aspirem tambeacutem ao prazer vistoque para cada um este completa a vida que lhe eacute desejaacutevel Mas quanto a saber seescolhemos a vida com vistas no prazer ou o prazer com vistas na vida eacute umaquestatildeo que podemos deixar de parte por ora Com efeito os dois parecem estarintimamente ligados entre si e natildeo admitir separaccedilatildeo jaacute que sem atividade natildeosurge o prazer e cada atividade eacute completada pelo prazer que a acompanha 138
Para Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquoPortanto o prazer eacute a perfeiccedilatildeo da operaccedilatildeordquo139 Ou seja a
proacutepria atividade eacute completada pelo prazer O prazer em si depende da operacionalizaccedilatildeo da
atividade140 seja esta uma atividade atinente aos sentidos ou ao intelecto Mas pode-se dizer que
existe uma escala de prazeres pois os prazeres satildeo de diversos tipos e vinculados a diversas
atividades que tambeacutem podem ser subdividas em uma escala Logo uma atividade bem-feita eacute
prazerosa e uma atividade perfeita eacute prazerosiacutessima
Tatildeo diversas quanto agraves atividades tambeacutem satildeo os prazeres Existem prazeres vinculados
aos sentidos e outros vinculados ao intelecto sendo estes uacuteltimos considerados mais sublimes e
puros141 Ao existir uma variedade de atividades com diferentes prazeres haacute uma consequente
valoraccedilatildeo moral diversificada para cada prazer O criteacuterio adotado por Aristoacuteteles para a aplicaccedilatildeo
de um juiacutezo moral correto que possa identificar um prazer considerado moralmente bom ou mau eacute
o proacuteprio exemplo do homem bom142
No que tange agrave observaccedilatildeo aristoteacutelica acerca da ligaccedilatildeo entre as atividades realizadas e
os prazeres resultantes que trazem um aperfeiccediloamento da mesma accedilatildeo o adaacutegio popular que
afirma que ldquoa praacutetica leva agrave perfeiccedilatildeordquo resume bem neste quesito a posiccedilatildeo aristoteacutelica A
constacircncia nas virtudes morais conduz agrave excelecircncia do caraacuteter assim como a perseveranccedila nas
virtudes intelectuais acarretam uma maestria com o conhecimento tanto pelo aumento de
conhecimento quanto pelo manejo deste Isso traz ao homem virtuoso a alegria o prazer em duas
formas o primeiro de percorrer o caminho da virtude o segundo de alcanccedilar cada vez mais uma
nobreza de conduta que o faz ser um indiviacuteduo feliz
138 Cf EacuteN X 1175a 10-20 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184139 Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 51 Eacute interessante conferir esta liccedilatildeo na iacutentegra por issocoloco a citaccedilatildeo inteira em latim das Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 6 n 5 ldquoEt inter huiusmodi operationessensus et intellectus illa est delectabilissima quae est perfectissima Perfectissima autem operatio est quae est sensusvel intellectus bene dispositi in comparatione ad optimum eorum quae subiacent sensui vel intellectui Si igitur operatioperfecta est delectabilis perfectissima autem delectabilissima consequens est quod operatio inquantum est perfecta sitdelectabilis Delectatio ergo est operationis perfectiordquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017140 Embora existam prazeres sem atos como algumas deleitaccedilotildees141 Cf EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186142 Cf EacuteN X 1176b 25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 187
47
24 O homem virtuoso
O indiviacuteduo que alcanccedilou a excelecircncia moral eacute denominado na visatildeo grega antiga de
spoudaios (σπουδαῖος) Conforme Aristoacuteteles assinala as virtudes morais estatildeo estritamente ligadas
agrave prudecircncia porque os princiacutepios que balizam a accedilatildeo humana satildeo fornecidos pela virtude intelectual
da prudecircncia A prudecircncia confere o paracircmetro correto para as virtudes morais143 O homem
prudente (φρόνιμος) aponta a melhor escolha a ser seguida O spoudaios eacute o indiviacuteduo que possui as
melhores condiccedilotildees para emitir um julgamento prudente acerca de quais prazeres satildeo liacutecitos em
serem gozados ou a correta medida das virtudes em cada caso especiacutefico O spoudaios torna-se o
proacuteprio criteacuterio de um bom julgamento dos princiacutepios morais prazeres e desejos perante as
circunstacircncias Na compreensatildeo de Pierre Aubenque para Platatildeo o homem saacutebio fixa seu
paracircmetro na Ideia de Bem ou seja em uma ordem ou norma transcendente a ele proacuteprio
Aristoacuteteles ao desconsiderar a existecircncia de um Mundo das Formas ideais transfere o paracircmetro de
sabedoria e retidatildeo a serem observadas para o proacuteprio phronimos Para sermos homens de retidatildeo
moral natildeo devemos ter como paracircmetro a Ideia de Bem e sim termos como paracircmetro o proacuteprio
homem de bem No entender de Pierre Aubenque inicialmente a palavra σπουδαῖος significava um
indiviacuteduo que tinha ldquozelordquo em suas faccedilanhas possuiacutea um ardor no combate sendo esta noccedilatildeo
aplicada ao ideal arcaico do heroacutei grego Depois passou a significar somente uma atividade
realizada de modo crediacutevel O spoudaios por ser zeloso na sua conduta inspira confianccedila visto que
eacute digno e honrado em suas accedilotildees Aristoacuteteles teria recuperado este antigo ideal heroacuteico mas
transmutado no homem que possui uma qualidade em seu julgamento por ser valoroso
moralmente144 Nota-se como o homem prudente o phronimos que possui uma excelecircncia na
virtude intelectual da prudecircncia se coaduna com o homem possuidor de excelecircncia moral o
spoudaios145
A vida virtuosa eacute uma vida prazerosa O spoudaios eacute o modelo do que deve ser feito e isso
inclui os prazeres considerados nobres e provenientes da virtude porque sabe discerni-los e pesaacute-los
bem146 O bem verdadeiro e por consequecircncia o prazer verdadeiramente bom eacute posto em relaccedilatildeo a
este indiviacuteduo considerado valoroso O spoudaios ilumina as situaccedilotildees e distingue aquilo que eacute
143 Cf EacuteN X 1178a 15-18 Ibidem p 190144 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 77-78145 Pierre Aubenque aponta a traduccedilatildeo de outros comentadores de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo ao termo σπουδαῖος ParaTricot eacute oldquohomem virtuosordquo para Voilquin eacute o ldquohomem de bemrdquo para Gauthier eacute o ldquovirtuosordquo para Ross eacute o ldquo thegood manrdquo Aubenque prefere chamar de ldquovalorosordquo Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p78 Independente da melhor forma de traduzir o termo σπουδαῖος o nuacutecleo central do conceito identifica-se com umaexcelecircncia de virtudes morais nobreza de conduta retidatildeo moral etc sendo contraacuterio agrave devassidatildeo ou condutapermeada de viacutecios 146 Cf EacuteN I 1099a 22-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 18
48
apenas aparecircncia ou nefasto daquilo eacute que autecircntico e benfazejo em cada categoria de coisas Um
indiviacuteduo pode considerar boa alguma coisa a ser feita ou buscada sem que aquilo seja
verdadeiramente bom devido a uma falsa percepccedilatildeo do que realmente eacute o bem em cada coisa Isto
tambeacutem ocorre com os prazeres inerentes agraves coisas que fazemos ou desejamos A princiacutepio podem
parecer prazeres edificantes mas tirados seus veacuteus conduzem apenas agrave ruiacutena Por isso eacute
imprescindiacutevel saber escolher corretamente os prazeres considerados bons e se habituar a desejaacute-
los Esta perspectiva do indiviacuteduo valoroso moralmente como regra e medida eacute subentendida desde
o Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco e se torna mais clara ao longo desta mesma obra Aristoacuteteles
assevera claramente este papel de criteacuterio ao spoudaios ao afirmar que
Com efeito o homem bom (σπουδαῖος) aquilata toda a classe de coisas comacerto e em cada uma delas a verdade lhe aparece com clareza mas cadadisposiccedilatildeo de caraacuteter tem suas ideacuteias proacuteprias sobre o nobre e o agradaacutevel e amaior diferenccedila entre o bom e os outros consiste talvez em perceber a verdade emcada classe de coisas como quem eacute delas a norma e a medida Na maioria doscasos o engano deve-se ao prazer que parece bom se realmente secirc-lo e por issoescolhemos o agradaacutevel como um bem e evitamos a dor como um malrdquo147
Podemos afirmar que na linha de raciociacutenio aristoteacutelica eacute necessaacuterio ser bom para decidir
bem O ato de discernir sopesar as coisas com acerto eacute uma accedilatildeo caracteriacutestica de um julgamento
correto acerca das coisas A retidatildeo de julgamento eacute uma qualidade distintiva do phronimos Por
isso Aristoacuteteles atribui ao homem prudente o exerciacutecio de estabelecer o criteacuterio para o julgamento
de cada classe de coisas O spoudaios eacute um homem nobre de conduta por ser virtuoso moralmente
mas ser um indiviacuteduo valoroso natildeo significa automaticamente ser um indiviacuteduo com um bom
discernimento acerca das circunstacircncias e da melhor accedilatildeo a ser operacionalizada Ser um homem de
virtudes morais eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para ser um homem com a virtude intelectual da prudecircncia 148
Por exemplo um indiviacuteduo incontinente que busque somente prazeres corporais natildeo consegue
julgar corretamente Todo phronimos eacute um indiviacuteduo valoroso moralmente natildeo sendo possiacutevel
algueacutem ser prudente se natildeo tiver se habituado a praacutetica das virtudes morais Uma vez que
Aristoacuteteles adere a posiccedilatildeo de imanecircncia dos criteacuterios de julgamento das coisas ao rejeitar a
transcendecircncia do Mundo das Formas traccedilada na filosofia platocircnica a reta razatildeo passar a ser
fundamentada no proacuteprio phronimos O homem prudente personifica a recta ratio porque ele se
torna aquele que possui a habilidade de julgar
O phronimos julga bem porque conhece aquilo que julga Conforme Aristoacuteteles assevera na
Eacutetica a Nicocircmaco que apenas julga bem quem foi instruiacutedo naquele assunto e julga bem as coisas
147 EacuteN III 1113a 30-39 Ibidem p 47148 Cf EacuteN VI 1143b 15- 23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 112
49
em geral por possuir uma instruccedilatildeo geral acerca de diversas coisas149 Tambeacutem natildeo basta somente
ser instruiacutedo sobre qualquer assunto na sua dimensatildeo teoacuterica mas eacute necessaacuterio ter ldquoexperiecircncia de
vidardquo para saber julgar corretamente as coisas e suas circunstacircncias Esta junccedilatildeo entre o
conhecimento teoacuterico dos princiacutepios e como aplicaacute-los nas diversas situaccedilotildees proporciona que o
indiviacuteduo seja considerado prudente A necessidade da maturidade como um dos fatores
fundamentais para a prudecircncia eacute posta por Aristoacuteteles quando explica que jovens natildeo satildeo bons
ouvintes para as instruccedilotildees acerca da vida poliacutetica pois natildeo possuem vivecircncia suficiente dos fatos
da vida150 Normalmente eles satildeo dados a seguirem suas paixotildees o que gera uma imaturidade que
atrapalha a accedilatildeo correta Vale frisar que na perspectiva aristoteacutelica indiviacuteduos adultos que natildeo satildeo
considerados jovens tambeacutem podem ser imaturos porque a maturidade depende de uma escolha do
modo de vida151 Desta maneira a aquisiccedilatildeo da virtude da prudecircncia vem de uma escolha que
envolve uma conduta de vida pautada pela racionalidade pelas virtudes morais e pela educaccedilatildeo
para desejar os prazeres corretos
25 As virtudes morais como mediania
Eacute notaacutevel a didaacutetica que Aristoacuteteles usa para explicar alguns conceitos descritos na Eacutetica a
Nicocircmaco Eacute frequente a comparaccedilatildeo que estabelece com as artes para expressar sua filosofia
moral Por exemplo ao argumentar sobre o bem das coisas usa a arte da navegaccedilatildeo a medicina a
equitaccedilatildeo a arqueria dentre outras Ao falar das virtudes recorre agrave figura dos construtores e
muacutesicos Esse recurso comparativo tambeacutem eacute usado para explicar as virtudes morais e o conceito de
mesoacutetes (152 Ao descrever a ideia de mediania como fundamental para uma conduta
virtuosa o Estagirita mostra que um mestre de ofiacutecio para atingir a excelecircncia na feitura de um
objeto busca a mediania por meio da qual evita o exagero ou uma deficiecircncia Logo o meio-termo
preserva a obra e os extremos a destroem A analogia confere clareza ao argumento aristoteacutelico
Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo (e escolhendo-o ndash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamentea noacutes Se assim pois que cada arte realiza bem o seu trabalho ndash tendo diante dosolhos o meio-termo e julgando suas obras por esse padratildeo e por isso dizemosmuitas vezes que agraves boas obras de arte natildeo eacute possiacutevel tirar nem acrescentar nada
149 Cf EacuteN 1094b 27 Ibidem p 10150 Cf EacuteN 1095a 3-5 Ibidem p 10 A relaccedilatildeo entre prudecircncia e experiecircncia seraacute estudada com mais detalhes noCapiacutetulo III 151 Cf EacuteN 1095a 6-13 Ibidem p 10152 O termo mesoacutetes pode ser traduzido por mediania meio-termo termo meacutedio mediedade
50
subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelecircncia dessas obrasenquanto o meio-termo a preserva e para este como dissemos se voltam osartistas no seu trabalho - e se ademais disso a virtude eacute mais exata e melhor quequalquer arte como tambeacutem o eacute a natureza segue-se que a virtude deve ter oatributo de visar ao meio-termo Refiro-me agrave virtude moral pois eacute ela que dizrespeito agraves paixotildees e accedilotildees nas quais existe excesso carecircncia e meio-termo153
O artesatildeo visa a mediania para realizar uma obra-prima Nesta nada eacute ausente tampouco eacute
possiacutevel acrescentar algo A excelecircncia da obra consiste na medida correta De modo anaacutelogo a
virtude moral se encontra na mediania O indiviacuteduo com virtudes morais eacute aquele que sabe constatar
nas situaccedilotildees qual eacute a proporccedilatildeo certa de seus afetos e accedilotildees para construir a si proacuteprio como ldquoobrardquo
de sua vida e alcanccedilar a eudaimonia
A virtude moral eacute caracterizada pela ideia de medianiaAmesoacutetes eacute o meio-termo entre
dois extremos de conduta Eacute o que nos mostra o Estagirita ao afirmar que ldquoPelas mesmas razotildees o
excesso e a falta satildeo caracteriacutesticos do viacutecio e a mediania da virtude pois os homens satildeo bons de
um modo soacute e maus de muitos modosrdquo154 Estes extremos satildeo considerados como viacutecios por
Aristoacuteteles Uma conduta virtuosa consiste em agir entre estes dois extremos Quais satildeo estas duas
formas de accedilatildeo ou emoccedilotildees que devem ser evitadas Satildeo dois tipos de viacutecios que denotam um
excesso ou uma carecircncia no sentir e no agir Deste modo a virtude eacute a proporccedilatildeo correta que evita
que o indiviacuteduo incorra em condutas que satildeo viciosas
A mediania natildeo deve ser entendida como um caacutelculo matemaacutetico exato e rigoroso Na
aritmeacutetica entre os nuacutemeros zero e dez a metade deste conjunto de numeraccedilatildeo eacute cinco Este
resultado eacute sempre o mesmo natildeo existe uma dependecircncia das situaccedilotildees para que isto ocorra Mas
esta exatidatildeo numeacuterica natildeo se aplica agrave conduta humana visto que a mediania deve ser observada
em relaccedilatildeo a noacutes examinando as situaccedilotildees pertinentes nas quais estamos inseridos Um exemplo
que ilustra o meio-termo eacute a alimentaccedilatildeo necessaacuteria de um atleta em comparaccedilatildeo a uma pessoa
sedentaacuteria que permanece o dia inteiro em um escritoacuterio O atleta necessita de uma alimentaccedilatildeo
mais rica em nutrientes e em quantidade maior enquanto o indiviacuteduo sedentaacuterio natildeo precisa de uma
nutriccedilatildeo diferenciada Ambos devem ter a alimentaccedilatildeo adequada agraves suas necessidades para que
possam cumprir sua funccedilatildeo e se manterem saudaacuteveis O mesmo ocorre com o exerciacutecio fiacutesico Por
isso o meio-termo preserva a sauacutede do corpo pois esta pode ser destruiacuteda tanto pelo excesso de
exerciacutecios alimentaccedilatildeo e bebida quanto pela sua total ausecircncia
153 EacuteN II 1106b 5-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32154 Cf EacuteN II 1106b 34-35 Ibidem p 33 Aleacutem da traduccedilatildeo utilizada neste trecho ldquopois os homens satildeo bons de ummodo soacute e maus de muitos modosrdquo feita por L Vallandro e G Bornheim 1987 indicamos a traduccedilatildeo feita por EdsonBini (2013 p 77) referente ao mesmo trecho ldquoSimples eacute a bondade muacuteltipla a maldaderdquo E a traduccedilatildeo realizada porMarco Zingano (2008 p 51) ldquoBravos pois de um soacute modo mas maus de muitos modosrdquo
51
No campo das virtudes morais esta mesma ideia de evitar o excesso ou carecircncia eacute aplicada
O indiviacuteduo que foge diante de quaisquer perigos ou natildeo enfrenta os desafios transforma-se em um
covarde Mas ao enfrentar todas as situaccedilotildees sem nenhum temor torna-se um temeraacuterio A coragem
consiste em natildeo ser um covarde nem ser um afoito que natildeo calcula os riscos Da mesma forma o
homem que cede a todos os prazeres natildeo praticando a temperanccedila assume a postura de um
libertino Entretanto se escolhe natildeo usufruir de nenhum tipo de prazer se converte em uma pessoa
insensiacutevel A temperanccedila estaacute na moderaccedilatildeo dos prazeres Tal como a sauacutede eacute adquirida e se
manteacutem pelo haacutebito de uma boa alimentaccedilatildeo e exerciacutecios fiacutesicos as virtudes satildeo adquiridas por
meio de uma boa praacutetica habitual Tornamo-nos temperantes evitando os extremos o que nos
capacita a sermos moderados O mesmo ocorre com a coragem ao confrontar aquilo que nos causa
medo nos tornamos corajosos Portanto as virtudes satildeo preservadas pela mediania mas satildeo
extinguidas pelo exagero ou pela deficiecircncia que impedem a execuccedilatildeo de uma accedilatildeo virtuosa
Eacute importante ressaltar que a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que proporciona um
proceder correto da conduta do indiviacuteduo A virtude diz respeito agraves paixotildees e as accedilotildees Em relaccedilatildeo
aos afetos significa que as paixotildees possam ser experimentadas da forma correta155 As paixotildees satildeo
corretamente vivenciadas quando atendem os requisitos de serem experimentadas no momento
oportuno quando se referem agraves pessoas certas visa o propoacutesito certo pelo motivo certo e da
maneira correta156 Os mesmos requisitos descritos acerca das emoccedilotildees satildeo aplicados agraves accedilotildees do
indiviacuteduo Estas tambeacutem devem ser realizadas do modo certo para serem consideradas virtuosas157
Satildeo as virtudes morais que permitem que o indiviacuteduo possa adquirir a excelecircncia ao lidar com as
paixotildees e consequentemente com as accedilotildees Diante dessas condiccedilotildees relacionadas tanto agraves paixotildees
quanto agraves accedilotildees o Estagirita assevera que eacute um desafio ser um homem bom porque eacute faacutecil errar de
muitos modos enquanto a conduta certa possui somente um uacutenico modo de agir158
Todas as accedilotildees e paixotildees possuem um meio-termo Aristoacuteteles afirma que determinadas
condutas natildeo satildeo passiacuteveis de aplicaccedilatildeo do conceito de mesoacutetes devido ao fato que estas satildeo maacutes
por si proacuteprias Natildeo satildeo os excessos ou as carecircncias que transformam estas condutas em accedilotildees ou
paixotildees agrave serem evitadas mas as suas proacuteprias essecircncias satildeo maldosas O Estagirita elenca alguns
exemplos referentes aos afetos como a malevolecircncia o despudor a inveja quanto agraves accedilotildees cita o
adulteacuterio o furto e o homiciacutedio Outro argumento exposto por Aristoacuteteles para natildeo aplicar a ideia de
mediania nas condutas mencionadas eacute que seria uma insensatez pensar a existecircncia de um meio-
termo em algo que por si mesmo jaacute eacute um excesso ou uma carecircncia Natildeo pode haver a ldquodemasiardquo de
155 Cf EacuteN II 1106b 15-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32-33156 Cf EacuteN II 1106b 20-24 Ibidem p 33157 Cf EacuteN II 1106b 26-29 Ibidem p 33158 Cf EacuteN II 1106b 35 Ibidem p 33
52
um excesso ou a ldquocarecircnciardquo de uma insuficiecircncia cerca das maacutes condutas descritas outro
exemplo que demonstra a clareza da ideia consiste no fato de que natildeo eacute possiacutevel existir uma
mediania quando as proacuteprias essecircncias das accedilotildees ou paixotildees satildeo perversas A tiacutetulo de exemplo eacute
absurdo imaginar que um indiviacuteduo que comete adulteacuterio com a frequecircncia de ser ldquomeramenterdquo
uma vez por ano durante um evento determinado com uma pessoa considerada bondosa e com a
duraccedilatildeo do encontro por apenas alguns minutos pode estar justificada moralmente Natildeo eacute
moderaccedilatildeo deste tipo de conduta que a faz ser boa ela sempre seraacute perniciosa A mesma ilustraccedilatildeo
pode ser aplicada agraves demais accedilotildees maacutes Logo de qualquer forma que estas accedilotildees sejam cometidas
estatildeo sempre erradas conforme nos mostra Aristoacuteteles
Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes quejaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito () o despudor() a inveja (θόνος) e no campo das accedilotildees o adulteacuterio (μοιχεία) ofurto (κλοπή) o assassiacutenio () Todas essas coisas e outras semelhantesimplicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso oudeficiecircncia Todas essas coisas e outas semelhantes implicam nos proacuteprios nomesque satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais podehaver retidatildeo mas unicamente o erro E no que se refere a essas coisas tampoucoa bondade ou maldade dependem de cometer adulteacuterio com a mulher apropriadana ocasiatildeo e da maneira convenientes mas fazer simplesmente qualquer delas eacute ummalIgualmente absurdo seria buscar um meio-termo (um excesso e umafalta em atos injustos covardes ou libidinosos porque assim haveria um meio-termo do excesso e da carecircncia um excesso do excesso e uma carecircncia da carecircnciaMas do mesmo modo que natildeo existe excesso nem carecircncia de temperanccedila ecoragem pois o que eacute intermediaacuterio tambeacutem eacute noutro sentido um extremotambeacutem das accedilotildees que mencionamos natildeo haacute meio-termo nem excesso nem faltaporque de qualquer forma que sejam praticadas satildeo maacutes Em suma do excesso eda falta natildeo haacute um meio-termo como tambeacutem natildeo haacute excesso ou falta de meio-termo159
Nas diversas situaccedilotildees que o homem se depara Aristoacuteteles descreve que um dos
aspectos160que deve ser observado para que a virtude moral possa atuar eacute a noccedilatildeo de
ldquoquantidaderdquo161 Lidar com os afetos significa experimentaacute-los na proporccedilatildeo correta dentro da
situaccedilatildeo enfrentada pelo indiviacuteduo162 Neste sentido uma observaccedilatildeo menos cuidadosa das
caracteriacutesticas da virtude pode levar agrave interpretaccedilatildeo equivocada que a mediania consistiria somente
em ter sentimentos moderados de uma forma inflexiacutevel sem atentar para os demais requisitos Para
159 EacuteN II 1107a 10-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33160 Cf EacuteN II 1106b 20-24 ARISTOacuteTELES Ibidem p 33 Outros elementos satildeo a ocasiatildeo apropriada os objetosapropriados as pessoas apropriadas o motivo correto e a maneira conveniente 161 A ldquoquantidaderdquo pode ser entendida como intensidade das emoccedilotildees162 Cf EacuteN II 1106b 18-19 Ibidem p 33
53
exemplificar esta perspectiva imaginemos o caso de um indiviacuteduo que seja viacutetima de um assalto a
ldquomatildeo armadardquo Ele deve sentir brandamente raiva do meliante natildeo se exaltando diante da
ocorrecircncia Outro exemplo seria a pessoa que natildeo se alegra nos eventos prazerosos Portanto a
virtude como accedilatildeo e paixatildeo corretas seria baseada no aspecto quantitativo de afeto
Esta interpretaccedilatildeo acima descrita natildeo condiz com o argumento aristoteacutelico acerca da
virtude moral163 Primeiro porque desconsidera os outros aspectos que devem ser observados pelo
indiviacuteduo para que a accedilatildeo possa ser tido como moralmente virtuosa Estes aspectos satildeo o tipo de
pessoa qual o momento em que ocorreu a accedilatildeo se o motivo foi correto ou errocircneo se a maneira de
agir foi adequada ou natildeo Esta interpretaccedilatildeo equivocada determina a ldquoquantidade meacutediardquo de afetos
que o indiviacuteduo deve vivenciar independente de qual seja as circunstacircncias O problema estaacute no
fato que esta vivecircncia se baseia em pressupostos abstratos Segundo porque a avaliaccedilatildeo das paixotildees
e accedilotildees eacute realizada a partir das circunstacircncias concretas nas quais o indiviacuteduo estaacute inserido
Terceiro a virtude moral se encontra no campo da razatildeo praacutetica natildeo eacute possiacutevel estabelecer um
comportamento que tenha uma ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo dotada de uma precisatildeo matematicamente
exata e imutaacutevel164 Na visatildeo aristoteacutelica o exame correto da conduta visa agraves particularidades de
cada situaccedilatildeo e evita qualquer abstraccedilatildeo relacionada as emoccedilotildees A ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo deve
ser adequada em cada situaccedilatildeo enfrentada A anaacutelise se o homem teve ou natildeo os afetos apropriados
deve considerar quem eacute a pessoa seus motivos o que estava ocorrendo naquele contexto etc
Portanto o aspecto quantitativo natildeo deve ser dispensado totalmente no exame da virtude visto que
ele tambeacutem compotildeem a accedilatildeo correta mas deve ser observado juntamente com os demais aspectos
relacionadas agrave accedilatildeo pautada pela virtude moral
Eacute importante ficar claro que o indiviacuteduo que busca atingir a mediania e por consequecircncia
uma accedilatildeo virtuosa precisa atentar para todos os aspectos envolvidos na virtude moral intensidade
correta dos afetos momento oportuno a pessoa visada o propoacutesito a maneira adequada de agir
Com frequecircncia erra-se em um requisito ou outro o que ocasiona um erro ou acerto parcial na
conduta Entretanto o equiacutevoco cometido em todos os aspectos acarreta uma accedilatildeo viciosa e por
isso uma maacute conduta Uma accedilatildeo virtuosa que prima pela excelecircncia cumpre todos as condiccedilotildees da
virtude moral Contudo Aristoacuteteles adverte que todos estes requisitos necessitam estar em
consonacircncia com a reta razatildeo165
Ao orientar a mediania a reta razatildeo implica que cada situaccedilatildeo necessita de uma accedilatildeo
apropriada O homem virtuoso pode agir de uma maneira ou de outra conforme a necessidade de
cada ocasiatildeo mas sempre com a finalidade de que sua accedilatildeo seja moralmente virtuosa Citamos um
163 Cf EacuteN II 1104b 20-29 Ibidem p 29164 Cf EacuteN II 1104a 3-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 28165 Cf EacuteN II 1103b 33-35 Ibidem p 28
54
exemplo para clarificar esta ideia em uma circunstacircncia ldquoxrdquo eacute imperioso que tenha muita ira e que
aja de acordo com este afeto Na circunstacircncia ldquoyrdquo apenas eacute necessaacuteria uma ira branda para que a
melhor accedilatildeo se realize Nota-se que a mediania que estaacute em concordacircncia com a reta razatildeo
estabelece que a accedilatildeo virtuosa eacute aquela que se adequa agrave situaccedilatildeo na qual o indiviacuteduo estaacute inserido
No entender de Martin Rhonheimer o meio-termo da virtude eacute o melhor e o maacuteximo que se deve
fazer em cada ocasiatildeo e isso eacute o bem determinado pela razatildeo166 As paixotildees e as accedilotildees satildeo avaliadas
agrave luz da racionalidade Eacute a razatildeo que examina se houve uma demasia ou uma insuficiecircncia E quem
define da melhor forma possiacutevel a reta razatildeo eacute a pessoa dotada de sabedoria praacutetica ou seja o
homem prudente (φρόνιμος) Por isso a virtude moral como mediania entre duas accedilotildees ruins estaacute
intimamente conectada agrave prudecircncia como mostra Aristoacuteteles
A virtude (ἀρετή) eacute pois uma disposiccedilatildeo (ἕξις) de caraacuteter relacionada com aescolha ( e consistente numa mediania ( isto eacute a medianiarelativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional proacuteprio do homemdotado de sabedoria praacutetica (φρόνιμος) E eacute um meio-termo (entre doisviacutecios ( um por excesso ( e outro por falta ( pois queenquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente notocante agraves accedilotildees ( e paixotildees ( a virtude encontra e escolhe omeio-termo E assim no que toca agrave sua substacircncia (ou0sian) e agrave definiccedilatildeo (l gonoacutej )que lhe estabelece a essecircncia (e0stin) a virtude eacute uma mediania com referecircncia aosumo bem ( e ao mais justo eacute poreacutem um extremo (167
Estabelecer a mesoacutetes em uma situaccedilatildeo concreta natildeo eacute uma tarefa faacutecil uma vez que eacute
imprescindiacutevel atentar para vaacuterios aspectos relacionados agrave virtude moral168 Diante deste fato
Aristoacuteteles propotildee trecircs criteacuterios que auxiliam na obtenccedilatildeo da mediania O primeiro eacute evitar o
extremo que mais se afasta do meio-termo Ao considerar a existecircncia de duas accedilotildees extremadas
(viacutecios) normalmente uma delas eacute mais grave e a outra menos Devemos escolher o menor dos
166 Cf RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda edicioacutenTrad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007 p 212 A obra original foi escrita na liacutengua alematildecom o tiacutetulo Die Perspecktive der Moral Grundlagen der philosphischen Ethik167 EacuteN II 1107a 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33 Uma observaccedilatildeo importante eacute sobre a traduccedilatildeo dotermo pela palavra ldquoextremordquo escolhida pelos tradutores Leonel Vallandro e Gerd Bornheim cuja obrausamos como base nesta pesquisa O uso do termo ldquoextremordquo pode ser confundido com o viacutecio pois este eacute uma condutaextremada E natildeo com algo que eacute excelente Acreditamos que o conceito seria mais compreensiacutevel nocontexto desta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco se fossem usados alguns termos como ldquoaacutepicerdquo ldquoelevadordquo ldquoaugerdquoPorque a virtude moral eacute a postura de excelecircncia que o indiviacuteduo possa ter ela permite atingir o bem humano Nestalinha de raciociacutenio Marco Zingano transcreve este trecho do seguinte modo ldquoA virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo deescolher por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo isto eacute comoa delimitaria o prudente Eacute uma mediedade entre dois males o mal por excesso e o mal por falta Ainda pelo fato deas disposiccedilotildees faltarem umas outras excederem no que se deve tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude descobree toma o meio-termo Por isso por essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlididade a virtude eacute uma mediedade massegundo o melhor e o bem eacute um aacutepicerdquo ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado davirtude moral Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008 p 51168 Cf EacuteN II 1109a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37
55
extremos169 O segundo eacute conhecer quais erros somos mais propensos a cometer Isso pode ser
reconhecido pelo prazer ou dor que experimentamos ao cometecirc-los Apoacutes esta observaccedilatildeo de
tendecircncias que atraem ao erro eacute necessaacuterio caminhar na direccedilatildeo oposta para nos aproximar da
mediania170 O terceiro eacute ter uma atitude de cautela diante das coisas prazerosas porque estas
podem ser enganosas171 Deste modo o indiviacuteduo que observar estas precauccedilotildees pode atingir o
meio-termo e ser virtuoso nas circunstacircncias nas quais estaacute envolvido
Conforme exposto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter referente agraves escolhas que o
indiviacuteduo realiza A escolha correta estaacute na mediania Esta consiste em uma proporccedilatildeo correta de
paixotildees e accedilotildees entre dois extremos que satildeo considerados como viacutecios de conduta Um destes viacutecios
eacute caracterizado pela demasia e o outro pela insuficiente A percepccedilatildeo deste termo meacutedio eacute
delimitada pela reta razatildeo que atua nas circunstacircncias concretas A recta ratio eacute o proacuteprio homem
prudente Ele eacute quem deteacutem o melhor juiacutezo acerca das situaccedilotildees e realiza as melhores opccedilotildees eacute o
homem que possui a virtude intelectual da prudecircncia Portanto adentraremos na anaacutelise da
phronecircsis visto que haacute uma relaccedilatildeo desta com as virtudes morais e por ser importantiacutessima para a
obtenccedilatildeo da eudaimonia
169 Cf EacuteN II 1109a 30 Ibidem p 37170 Cf EacuteN II 1109a 35-1109b 5-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37171 Cf EacuteN II 1109b 8-10 Ibidem p 37
56
CAPIacuteTULO III
A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICO
Neste capiacutetulo examinamos o conceito de prudecircncia Com este intento estudamos a
diferenccedila entre o saber teoacuterico o saber poieacutetico e o saber praacutetico A prudecircncia eacute uma virtude
intelectual aplicada agraves coisas contingentes Ela eacute a excelecircncia do ato de decidir e de como dirigir a
proacutepria vida Portanto o homem prudente eacute aquele que sabe decidir bem
Para decidir da melhor maneira possiacutevel o phronimos sabe como deliberar bem e escolher
bem Neste sentido eacute necessaacuterio examinar no que consiste a deliberaccedilatildeo (bouleusij) e a escolha
(proairesij) O ato de deliberar e o ato de escolher satildeo aperfeiccediloados pela prudecircncia Tambeacutem
analisamos o que eacute a reta razatildeo (o0rqoj logoj) e sua funccedilatildeo para que uma accedilatildeo seja julgada
moralmente virtuosa Outro fator a ser examinado devido a sua importacircncia para o
desenvolvimento da virtude da prudecircncia eacute o fenocircmeno da experiecircncia (e0mpeiria) pois a
phronecircsis somente pode aparecer com o transcorrer do tempo
Ademais analisamos as partes integrantes da virtude da prudecircncia Satildeo as denominadas trecircs
virtudes intelectuais menores a boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) a inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo
(gnwmn) Por fim estabelecemos a relaccedilatildeo de como a phronecircsis contribui para que o homem seja
feliz
57
31 Linhas gerais acerca da prudecircncia
No decorrer da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles trata no livro I sobre a eudaimonia como fim
uacuteltimo do homem e no que consiste a felicidade humana Esta eacute conceituada como uma atividade
conforme a virtude Para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio a praacutetica das virtudes morais A definiccedilatildeo de
virtude moral eacute a de ser uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel quase permanente e adquirida que se
caracteriza pelo domiacutenio das paixotildees Este controle racional das paixotildees impele o homem a escolher
bem qual accedilatildeo a realizar pois o auxilia a alcanccedilar a mediania necessaacuteria entre dois viacutecios para que
seja uma accedilatildeo virtuosa defronte as circunstacircncias O paracircmetro deste termo meacutedio eacute percebido e
consequentemente fornecido pelo homem prudente que se orienta pela reta razatildeo
O Estagirita analisa de modo mais detalhado o papel do intelecto para a consecuccedilatildeo de uma
accedilatildeo moral virtuosa no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco Eacute nesta parte da obra que eacute estudada de modo
mais especiacutefico a virtude intelectual da prudecircncia Por isso neste toacutepico eacute analisado em que
constitui esta virtude e suas principais caracteriacutesticas
Para uma melhor compreensatildeo da phronecircsis faccedilamos uma breve retomada da divisatildeo da
alma examinada anteriormente no capiacutetulo II As virtudes da alma satildeo referentes agraves faculdades
sensitiva e intelectiva Em relaccedilatildeo agrave primeira as virtudes morais (eacuteticas) moldam os desejos agrave luz da
razatildeo orientando-os para o bem Na segunda as virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) servem para
atingir a verdade As virtudes satildeo estados de excelecircncia vinculadas agraves funccedilotildees desempenhadas
Conforme escreve Aristoacuteteles ldquo[hellip] a obra (e2rgon) de ambas as partes intelectuais eacute a verdade
Logo as virtudes de ambas seratildeo aquelas disposiccedilotildees (e3ceij) segundo as quais cada uma delas
alcanccedilaraacute a verdade (a0lhqeuampsei) em sumo graurdquo172
Na faculdade intelectiva existem duas partes racionais referentes a dois tipos de raciociacutenios
ou conhecimentos Estes satildeo diferentes devido ao fato que visam realidades distintas com
caracteriacutesticas proacuteprias em cada uma O primeiro eacute o conhecimento cientiacutefico o qual objetiva
estudar agraves coisas que possuem causas imutaacuteveis por isso satildeo invariaacuteveis Esta parte do intelecto
tambeacutem eacute chamada de razatildeo teoacuterica que resulta na sabedoria contemplativa O segundo eacute
conhecimento calculativo ou deliberativo que analisa agraves coisas mutaacuteveis que variam com o tempo e
as circunstacircncias173 Este conhecimento visa orientar agrave accedilatildeo humana E esta pode ser feita de um
modo ou de outro Uma vez que lida com a praacutexis eacute chamada de razatildeo praacutetica ou sabedoria praacutetica
Neste sentido comeccedila-se a delinear o que seja a virtude da prudecircncia Ela eacute a proacutepria razatildeo praacutetica
que atua em um patamar de excelecircncia Conforme nos aponta Aristoacuteteles
172 EacuteN VI 1139b 12-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102173 Cf EacuteN VI 1139a 5-10 Ibidem p 101
58
Dividimos as virtudes da alma (yuxh~~j a0retaj) dizendo que algumas satildeo virtudesdo caraacuteter e outras do intelecto [hellip] Dissemos anteriormente que esta [alma] temduas partes a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeoFaccedilamos uma distinccedilatildeo simples no interior da primeira admitindo que sejam duasas partes que conceberam um princiacutepio racional uma pela qual contemplamos ascoisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamosas coisas variaacuteveis porque quando dois objetos diferem e espeacutecie as partes daalma que correspondem a cada um deles tambeacutem diferem em espeacutecie visto ser poruma certa semelhanccedila e afinidade com os seus objetos que elas os conhecemChamemos cientiacutefica a uma dessas partes e calculativas agrave outra pois o mesmo satildeodeliberar (bouleuestai) e calcular (logizesqai) mas ningueacutem delibera sobre oinvariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe umprinciacutepio racional Devemos assim investigar qual seja o melhor estado de cadauma dessas duas partes pois nele reside a virtude de cada uma174
A virtude da prudecircncia eacute diferente da ciecircncia (e0pisthampmh) O conhecimento cientiacutefico possui
como objeto de estudo aquilo que existe necessariamente Eacute um objeto eterno Por isso nunca se
altera natildeo perece nem eacute nascido ou criado Devido agraves qualidades mencionadas as coisas
invariaacuteveis podem ser consideradas como fundamentos seguros para prover um conhecimento
indubitaacutevel Este eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo podendo ser transmitido por meio da instruccedilatildeo A
ciecircncia visa o conhecimento dos universais Isto permite que haja um convencimento baseado
nestes primeiros princiacutepios Deste modo adquirimos um conhecimento seguro que permite alcanccedilar
a verdade quando se trata de uma realidade constante e perene Por isso a ciecircncia eacute uma espeacutecie de
saber diferente da prudecircncia Acerca do conhecimento cientiacutefico Aristoacuteteles nos diz que
Todos noacutes supomos que aquilo que sabemos natildeo eacute capaz de ser de outra forma[hellip]Por conseguinte o objeto de conhecimento cientiacutefico existe necessariamentedonde se segue que eacute eterno pois todas as coisas que existem por necessidade nosentido absoluto do termo satildeo eternas e as coisas eternas satildeo ingecircnitas eimpereciacuteveis Por outro lado julga-se que toda a ciecircncia pode ser ensinada e seuobjeto aprendido [hellip] Em suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nostorna capazes de demonstrar e possui as outras caracteriacutesticas limitativas queespecificamos nos Analiacuteticos pois eacute quando um homem tem certa espeacutecie deconvicccedilatildeo aleacutem de conhecer os pontos de partida que possui conhecimentocientiacutefico E se estes natildeo lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusatildeo suaciecircncia seraacute puramente acidental Com isto damos por terminada nossa exposiccedilatildeodo conhecimento cientiacutefico175
A virtude da prudecircncia tambeacutem eacute diferente da arte (texnh) Aristoacuteteles argumenta que no
mundo das coisas possiacuteveis de alteraccedilatildeo existe uma diferenccedila entre aquelas fabricadas e as accedilotildees
174 EacuteN VI 1139a 1-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101175 EacuteN VI 1139b 18-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103
59
realizadas A arte eacute a capacidade de produzir um objeto por meio de um raciociacutenio correto176 A
coisa criada passa a existir somente apoacutes a fabricaccedilatildeo humana Esta fabricaccedilatildeo varia conforme o
utensiacutelio a ser produzido uma vez que natildeo eacute algo necessaacuterio nem eacute natural a sua existecircncia pois
pode variar de acordo com as situaccedilotildees A arte como a prudecircncia tambeacutem eacute produzido pelo
intelecto e ambas versam acerca das coisas variaacuteveis A arte e a prudecircncia tratam do contingencial
ou seja do que pode ser ou natildeo ser de uma maneira ou de outra conforme eacute requerido pelas
circunstacircncias Mas as duas formas do intelecto natildeo se confundem porque a razatildeo poieacutetica trata da
produccedilatildeo de utensiacutelios em geral e a razatildeo praacutetica atua sobre as accedilotildees humanas Logo estes dois
tipos de raciociacutenios satildeo distintos entre si porque miram em realidades diacutespares que possuem
caracteriacutesticas proacuteprias
O tipo de razatildeo usada para fabricar (poihsij) natildeo eacute o mesmo quando o objetivo eacute agir
(pra=cij Os dois modos de operaccedilatildeo da racionalidade satildeo baseados em um modo correto de
raciocinar para atingirem suas finalidades Mas o que significa este raciociacutenio verdadeiro no caso do
ato de produzir O proacuteprio Aristoacuteteles responde claramente a esta pergunta
Na classe do variaacutevel incluem-se tanto coisas produzidas como coisas praticadasHaacute uma diferenccedila entre produzir e agir (poihsij kai pra=cij)[hellip] de sorte que acapacidade raciocinada de agir (meta logou e3cij prarktikh) difere dacapacidade raciocinada de produzir (meta logou poihtikh=j) Daiacute tambeacutem o natildeose incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir Oracomo a arquitetura eacute uma arte sendo essencialmente uma capacidade raciocinadade produzir e nem existe arte alguma que natildeo seja uma capacidade desta espeacutecienem capacidade desta espeacutecie que natildeo seja uma arte segue-se que a arte eacute idecircnticaa uma capacidade de produzir que envolve o reto raciociacutenio Toda arte visa agravegeraccedilatildeo e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir algumacoisa que tanto pode ser como natildeo ser e cuja origem estaacute no que produz e natildeo noque eacute produzido Com efeito a arte natildeo se ocupa nem com as coisas que satildeo ou quese gerem por necessidade nem com as que o fazem de acordo com a natureza (poisessas tecircm sua origem e si mesmas) Diferindo pois o produzir e o agir a arte deveser uma questatildeo de produzir e natildeo de agir [hellip] Logo como jaacute dissemos a arte eacuteuma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacutenio e acarecircncia de arte pelo contraacuterio eacute tal disposiccedilatildeo acompanhada de falso raciociacutenioE ambas dizem respeito agraves coisas que podem ser diferentemente177
176 Cf EacuteN VI 1140a 10 Ibidem p 103 177 EacuteN VI 1140a 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 Em relaccedilatildeo agrave frase traduzida porVallandro e Bornheim na citada passagem ldquoDaiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacuteproduzir nem produzir eacute agir (grifo nosso)rdquo Acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 181) seja maisesclarecedora ldquo[hellip] nem eacute um deles uma parte do outro pois fazer natildeo eacute uma forma de criar e nem um criar uma formade fazer (grifo nosso)rdquo Afinal natildeo eacute uma questatildeo de inclusatildeo de um tipo de raciociacutenio no outro mas de uma diferenccedilaclara que existe entre estes dois modos de operaccedilatildeo do intelecto
60
No caso da fabricaccedilatildeo ou produccedilatildeo de um objeto a razatildeo correta significa seguir as ldquoregras
de produccedilatildeo certasrdquo que permitem o artesatildeo produzir qualquer coisa de modo adequado Assim ao
realizar da maneira certa a manufatura do objeto este cumpre com a finalidade para a qual foi
projetado pelo artesatildeo Sem seguir as regras de produccedilatildeo o artesatildeo natildeo consegue fabricar o objeto
para que cumpra com a finalidade escolhida Como exemplo o proacuteprio Aristoacuteteles cita a arte da
arquitetura uma casa projetada por um arquiteto possui uma finalidade proacutepria que somente eacute
atingida se a casa for construiacuteda corretamente Podemos citar outras inuacutemeras artes como ilustraccedilatildeo
desta relaccedilatildeo entre as normas corretas de produccedilatildeo de um objeto para atender uma finalidade A
tiacutetulo de ilustraccedilatildeo basta imaginar um cuteleiro ao criar uma faca ou um curtidor ao preparar o
couro A criaccedilatildeo destes utensiacutelios deve respeitar determinadas regras ndash o modo correto de produzi-
los ndash para que a faca e o couro possam ser existir e serem usados com eficaacutecia cumprindo as
finalidades para as quais foram feitas
No que se refere agrave distinccedilatildeo entra a arte e a prudecircncia o comentador Guy Hamelin descreve
bem as caracteriacutesticas dos dois saberes Embora ambos sejam raciociacutenios praacuteticos a habilidade de
produzir um artefato exige um tipo de raciociacutenio diferente do utilizado para discernir a accedilatildeo a ser
realizada No caso da produccedilatildeo de um objeto o artesatildeo possui escolhas mais restritas Para o
artefato ser produzido de modo correto deve ser feito seguindo prescriccedilotildees precisas de fabricaccedilatildeo
Enquanto no discernimento de uma accedilatildeo a prudecircncia natildeo pode seguir regras estabelecidas Natildeo haacute
um ldquomanualrdquo de como agir em cada situaccedilatildeo A forma correta de agir eacute determinada pela
deliberaccedilatildeo apropriada a cada circunstacircncia Citamos o texto do mencionado exegeta
O Estagirita estima ser necessaacuterio diferenciar a habilidade da prudecircncia ou dodiscernimento por que o raciociacutenio praacutetico usado na habilidade difere em pelomenos dois aspectos importantes do raciociacutenio praacutetico usado na accedilatildeo Primeiro aspossibilidades de escolha resultando da habilidade satildeo muito mais restritas do queas oferecidas pela razatildeo praacutetica ligada agrave accedilatildeo Eacute manifesto que existem maneirasmais limitadas de construir um bom navio por exemplo do que viver bem a suaproacutepria vida e alcanccedilar a felicidade Por conseguinte o indiviacuteduo que age na esferada habilidade (texnh) estaacute mais restrito nas suas escolhas do que a pessoa que estaacutedecidindo a maneira de viver a sua vida A segunda distinccedilatildeo entre a habilidade e aprudecircncia em Aristoacuteteles diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do saber necessaacuteria para agir emcada uma dessas duas esferas Adquirir uma habilidade teacutecnica consisteessencialmente em conhecer como produzir um artefato e esse conhecimentoreduz-se em boa parte a um conjunto de preceitos (paraggeliai) deixados peloshabilidosos aos aprendizes Aristoacuteteles natildeo pode aceitar que seja possiacutevel adquiriruma virtude a partir de regras preestabelecidas pois cada situaccedilatildeo concreta danossa vida implica tantas possibilidades que apenas uma deliberaccedilatildeo adequada agravecircunstacircncia pode nos indicar a accedilatildeo a cumprir178
178 HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista ArchaiBrasiacutelia n 04 jan 2010 p 110-111
61
Em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana esta possui um fim em si proacutepria O ato de agir natildeo transcende a
si mesmo como os objetos criados pelo artesatildeo Como nos afirma o Estagirita ldquoCom efeito ao
passo que o produzir tem uma finalidade diferente de si mesmo isso natildeo acontece com o agir pois
que a boa accedilatildeo eacute o seu proacuteprio fimrdquo179 Diante deste fato referente agrave natureza da accedilatildeo podemos
pensar que o homem tem por ldquotarefardquo impelido pela sua funccedilatildeo proacutepria (ἔργον)180 de aperfeiccediloar a
si mesmo para alcanccedilar a eudaimonia Para isso deve aprimorar sua racionalidade para atingir a
verdade e orientar os seus iacutempetos ndash dominar suas paixotildees educar seus desejos e prazeres ndash por
meio das virtudes morais para aquilo que eacute bom digno e nobre Neste sentido podemos dizer que a
ldquoobra-primardquo a ser realizada atraveacutes das nossas boas accedilotildees somos noacutes mesmos
A criaccedilatildeo (produccedilatildeo fabricaccedilatildeo) de um artefato pertence a um gecircnero diferente da accedilatildeo O
ato de criar possui uma finalidade que transcende o homem que cria O objeto fabricado eacute distinto
do criador Por exemplo a fabricaccedilatildeo de um vaso de argila por um artesatildeo Por outro lado a accedilatildeo eacute
imanente ao proacuteprio homem pois eacute realizada pelo proacuteprio agente Natildeo haacute um objeto produzido que
eacute exterior ao homem O phronimos ao escolher a melhor accedilatildeo a ser realizada natildeo cria um produto
tangiacutevel algo corpoacutereo que possa ser tocado Deste modo ao ser referir agrave accedilatildeo humana esta eacute
compreendida como um ato de agir e natildeo como um ato de criaccedilatildeo O ato de criar eacute referente a quem
produz alguma coisa
Da mesma forma que na Eacutetica a Nicocircmaco a distinccedilatildeo entre o saber teoacuterico e saber praacutetico
tambeacutem eacute assinalada na Metafiacutesica Nela Aristoacuteteles descreve que a busca da verdade eacute a finalidade
principal tanto para a parte cientiacutefica quanto para a calculativa do intelecto Tambeacutem satildeo
delimitados os campos de aplicaccedilatildeo dos respectivos saberes embora a verdade como finalidade do
saber praacutetico eacute expresso de modo mais contundente no tratado sobre a eacutetica Na Metafiacutesica o
Estagirita assevera que o conhecimento cientiacutefico tem o objetivo de conhecer a verdade enquanto o
conhecimento praacutetico visa a accedilatildeo Cita-se a passagem desta obra
E tambeacutem eacute justo chamar a filosofia da ciecircncia da verdade porque o fim da ciecircnciateoreacutetica eacute a verdade enquanto o fim da praacutetica eacute a accedilatildeo (com efeito os que visamagrave accedilatildeo mesmo que observem como estatildeo as coisas natildeo tendem ao conhecimentodo que eacute eterno mas soacute do que eacute relativo a determinada circunstacircncia e numdeterminado momento) Ora natildeo conhecemos a verdade sem conhecer a causa181
Eacute interessante notar que Aristoacuteteles natildeo considera o intelecto apenas algo meramente
instrumental embora em um determinado sentido a racionalidade possa ser compreendida como
179 EacuteN VI 1140b 6-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 180 Conforme visto no capiacutetulo I no item 14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres181 Metafiacutesica 993b 20-23 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 73
62
instrumento para atingir um fim que satildeo as causas imutaacuteveis no caso do saber teoacuterico Na
produccedilatildeo de um objeto haacute a razatildeo poieacutetica E ainda haacute a deliberaccedilatildeo nas situaccedilotildees que dizem
respeito agrave razatildeo praacutetica A racionalidade tambeacutem pode ser entendida como um fim que ultrapassa a
perspectiva de mera instrumentalidade Natildeo eacute somente uma ferramenta para alcanccedilar fins desejados
Uma vez que o homem anseia pela verdade das coisas o desejo de conhecer eacute imanente a noacutes 182
Conhecer as coisas para alcanccedilar a verdade eacute uma funccedilatildeo proacutepria da razatildeo humana Logo a
atividade racional tambeacutem eacute desejada pelo homem pois permite que esta conheccedila a verdade e ao
conhececirc-la possa alcanccedilar a eudaimonia Em outros termos o proacuteprio exerciacutecio da razatildeo nos seus
distintos saberes torna o homem mais pleno e realizado e por isso mais feliz
Em suma o intelecto eacute parte da alma que busca compreender o mundo Para isso possui as
funccedilotildees de escolher ordenar hierarquizar especular O intelecto opera de formas distintas de
acordo como o tipo de finalidade exigida Em outros termos a razatildeo humana utiliza diferentes tipos
de raciociacutenios A sabedoria praacutetica natildeo eacute ciecircncia nem arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque
este se baseia em princiacutepios imutaacuteveis e por isso passiacuteveis de demonstraccedilatildeo Natildeo precisa utilizar
da deliberaccedilatildeo pois esta serve somente no caso de situaccedilotildees que variam e podem gerar diversos
resultados Tambeacutem natildeo eacute arte porque esta natildeo visa a accedilatildeo proacutepria do homem O conhecimento
produtivo cria coisas que possuem uma existecircncia concreta que diferem do artesatildeo que as produz
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos diferentes tipos de saberes (e0pisthmh texnh fronhsij) com suas
respectivas finalidades resta expor de modo mais detalhado a proacutepria prudecircncia Neste sentido
abordaremos esta virtude intelectual no proacuteximo toacutepico
32 O conceito de prudecircncia
A virtude intelectual da prudecircncia tem como papel operar o saber praacutetico em niacutevel de
excelecircncia A prudecircncia eacute a areteacute da razatildeo praacutetica Isso significa que nas diversas circunstacircncias
enfrentadas pelo homem tanto em situaccedilotildees corriqueiras no seu cotidiano quanto naquelas mais
importantes que definem a vida como um todo eacute necessaacuterio decidir entre vaacuterias opccedilotildees que podem
ser tomadas A prudecircncia eacute o conhecimento da boa deliberaccedilatildeo e decisatildeo E decisotildees corretas
facilitam alcanccedilar a eudaimonia Dificilmente um homem pode ser feliz se a maior parte das
decisotildees que tomou foram errocircneas Neste sentido o homem prudente conhece a melhor forma de
tomar uma decisatildeo o que acarreta saber que accedilatildeo realizar perante as situaccedilotildees nas quais estaacute
envolvido
182 Cf Metafiacutesica 980a 22 Op cit p 04 Conforme descrito neste trecho da obra ldquoTodos os homens tendem aosaberrdquo Ibidem p 4
63
A prudecircncia eacute o raciociacutenio correto e verdadeiro que permite o homem deliberar sobre o que
eacute bom e apropriado para si mesmo e para os outros A partir desta percepccedilatildeo esta virtude possui a
funccedilatildeo de escolher a melhor accedilatildeo para atingir o fim escolhido A phronecircsis vislumbra os meios
mais eficazes para que a accedilatildeo seja eficaz O homem prudente eacute efetivo em suas accedilotildees porque decide
de modo correto age da forma certa ao escolher os melhores meios para alcanccedilar os fins e sua accedilatildeo
eacute nobre Portanto o phronimos eacute o homem que delibera com acerto e por isso decide bem agrave luz
das variadas situaccedilotildees Eacute o que nos mostra Aristoacuteteles
Ora julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacuteticao poder deliberar bem (kalw~v bouleusasqai) sobre o que eacute bom eacute conveniente(a)gaqa kai sumfeampronta) para ele natildeo sob um aspecto particular como porexemplo sobre as espeacutecies de coisas que contribuem para a sauacutede e o vigor massobre aquelas que contribuem para a vida boa em geral Bem o mostra o fato deatribuirmos sabedoria praacutetica a um homem sob um aspecto particular quando elecalculou bem com vistas em alguma finalidade boa que natildeo se inclui entre aquelasque satildeo objeto de alguma arte Segue-se daiacute que num sentido geral tambeacutem o homem que eacute capaz de deliberarsobre coisas que natildeo podem ser de outro modo (ou0k e1sti bouleusasqai per tw~~nigrave tw~~ne0c a0nagkhj ontwn) [hellip] Resta pois a alternativa de ser ela uma capacidade(e3cin) verdadeira (a0leqou~~j) e raciocinada de agir (meta logou praktinken) comrespeito agraves coisas que satildeo boas ou maacutes para o homem ( qr p a)gaqa kaiἀν ώpῳ a)gaqa kai ῳkaka0)183
A partir desta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles nota-se que a prudecircncia possui dois aspectos O
primeiro trata da sabedoria praacutetica aplicada agrave vida particular do homem O segundo versa sobre agrave
vida coletiva No acircmbito privado o homem prudente discerne sobre os melhores meios para atingir
os fins particulares que o levam agrave eudaimonia Mas na perspectiva aristoteacutelica o homem natildeo pode
ser feliz sozinho pois sua natureza eacute poliacutetica184 O bem humano tambeacutem eacute a finalidade da poliacutetica185
Uma vez que o homem vive com outros eacute necessaacuterio discernir os caminhos da comunidade para
que esta atinja a felicidade O acircmbito comunitaacuterio diz respeito agrave vida na poacutelis Sem a eudaimonia na
cidade-Estado o homem natildeo poderaacute ser completamente feliz Logo o phronimos ao visar a vida
feliz sabe que esta eacute composta pelo que eacute bom e nobre tanto para ele quanto para os outros que o
cercam Acerca da poacutelis como incentivadora da eudaimonia temos na Eacutetica a Nicocircmaco
183 EacuteN VI 1140a 26 a 1140b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Tambeacutem conferir EacuteN VI1141a 9-12 p 106184 Cf Poliacutetica I 1253a 5 A expressatildeo ldquoanimal poliacuteticordquo (politikon zw~~on) deve ser entendida no sentido denatureza social ou sociaacutevel Eacute natural dos indiviacuteduos serem gregaacuterios 185 Sobre a eudaimonia como finalidade da poacutelis eacute proveitosa a leitura das passagens na Poliacutetica III 1278a 23-301280a 32-40 agrave 1280b 1-10 1283a 15-20 Ademais devemos recordar que a virtude moral da justiccedila somente pode serefetivada na comunidade Esta virtude eacute a ldquojoiardquo que permite a vida feliz na poacutelis
64
Ningueacutem duvidaraacute de que o seu estudo [do sumo bem] pertenccedila agrave arte maisprestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra Ora apoliacutetica (politikh) mostra ser dessa natureza pois eacute ela que determina quaisciecircncias que devem ser estudadas num Estado quais satildeo as que cada cidadatildeo deveaprender e ateacute que ponto e vemos que ateacute as faculdades tidas em maior apreccedilocomo a estrateacutegia a economia e a retoacuterica estatildeo sujeitas a ela Ora como a poliacuteticautiliza as demais ciecircncias e por outro lado legisla sobre o que devemos e o quenatildeo devemos fazer a finalidade dessa ciecircncia deve abranger as das outras de modoque essa finalidade seraacute o bem humano (a0gaqon) Com efeito ainda que tal fimseja o mesmo tanto para o indiviacuteduo como para o Estado (polei) o deste uacuteltimoparece ser algo maior e mais completo quer a atingir quer a preservar Emboravalha bem a pena atingir esse fim para um indiviacuteduo soacute eacute mais belo (kallion) emais divino (qeioteron) alcanccedilaacute-lo para uma naccedilatildeo ou para as cidades-Estado(e1qnei kai polesin) 186
A prudecircncia particular estaacute atrelada agrave prudecircncia coletiva Esta ideia eacute importante porque
recorda que Aristoacuteteles nunca perde de vista que a felicidade do homem estaacute inserida na poacutelis grega
Embora o Estagirita assevere que a genuiacutena felicidade individual esteja na sabedoria
contemplativa187 esta eacute mais facilmente atingida em um ambiente de felicidade comunitaacuteria A
prudecircncia deve ser entendida como sendo uma virtude intelectual que propicia uma correta escolha
que permite tomar boas decisotildees direcionadas para os fins nobres Devemos recordar que o
phronimos eacute um homem que tem a prudecircncia consolidada em seu caraacuteter Deste modo ele possui
uma visatildeo clara sobre o que eacute bom justo e nobre para si e para a comunidade em que vive
Nesta linha de raciociacutenio basta imaginarmos uma cidade bairro ou qualquer outro ambiente
coletivo Se nestes imperam os viacutecios e natildeo as virtudes existiratildeo dificuldades maiores para o
homem ser feliz No caso contraacuterio nos lugares onde as virtudes se sobressaem o homem teraacute sua
busca pela felicidade facilitada E aleacutem disso em uma sociedade virtuosa desde a infacircncia o
homem eacute educado para as virtudes Isto gera um ciclo beneacutefico a cidade auxilia o cidadatildeo a ser
virtuoso e consequentemente a ser feliz e este ajuda a cidade a ser mais virtuosa Enfim eacute a antiga
liccedilatildeo que assim como satildeo os cidadatildeos tal seraacute a cidade
Como exemplo dessa prudecircncia que estabelece uma ligaccedilatildeo entre os fins particulares e os
coletivos Aristoacuteteles cita como modelo de homem prudente o estadista ateniense Peacutericles e outros
como ele188 Este eacute considerado o maior liacuteder ateniense ou pelo menos um dos seus maiores gecircnios
poliacuteticos Sua grandeza proveacutem do fato que ele discernia bem sobre estas duas aplicaccedilotildees da
prudecircncia Julgava com acerto os rumos que Atenas deveria seguir pois visava o que era bom para
os cidadatildeos atenienses O Estagirita tambeacutem coloca como detentores da prudecircncia os bons
186 EacuteN I 1094a 27 a 1094b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10187 EacuteN X 1178b 28-33 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 191188 Cf EacuteN VI 1140b 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104
65
ecocircnomos (oikonomikouj) e os bons estadistas (politikouj) porque visam a felicidade da poacutelis189
Sobre o fim uacuteltimo da cidade grega e sua organizaccedilatildeo mais uma vez podemos observar uma
diferenccedila entre o filoacutesofo de Estagira e Platatildeo O pensamento aristoteacutelico considera que a
eudaimonia coletiva eacute um fim alcanccedilado por meio da forma que a poacutelis se organiza e a filosofia
moral que a direciona O bem da cidade-Estado estaacute no estiacutemulo agrave racionalidade e virtudes morais
dos cidadatildeos Enquanto para o seu antecessor o mundo das Ideias eacute a referecircncia para a cidade-
estado O comentaacuterio de Pierre Aubenque expressa bem este entrelaccedilamento entre o acircmbito
particular e o coletivo e a distinccedilatildeo com o pensamento platocircnico ao dizer que
ldquoOra a vida feliz (que ser trate da cidade ou da casa como indiviacuteduo) eacute atotalidade que transcende os fins particulares O prudente natildeo eacute entatildeo o puroempiacuterico que vive o dia-a-dia sem princiacutepios e sem perspectivas mas eacute o homemde visatildeo de conjunto E permanece a seu modo o herdeiro do sunoptikojplatocircnico embora veja uma totalidade concreta ndash o bem total da comunidade ou doindiviacuteduo - e natildeo essa Totalidade abstrata e segundo Aristoacuteteles irreal que era omundo platocircnico das Ideiasrdquo190
O homem prudente eacute uma espeacutecie de visionaacuterio Natildeo no sentido contemplativo mas como
um homem que vecirc ou mesmo prevecirc a conjuntura presente ou futura e consegue escolher o melhor
caminho a ser tomado Isto tanto na esfera privada quanto na coletiva Ele eacute detentor de um
importante tipo de conhecimento o de perceber as sutilezas do que se passa a sua volta e consigo
mesmo para tomar boas decisotildees que resultam em accedilotildees corretas Enfim accedilotildees que geram
resultados positivos conduzem o homem e o grupo em que vive para mais perto da eudaimonia
Essa percepccedilatildeo de conjuntura que propicia a decisatildeo correta eacute a marca do homem
prudente191 Mas como o phronimos consegue ter esta avaliaccedilatildeo acertada das coisas Isto ocorre
devido ao fato que o prudente conhece os princiacutepios universais (gerais) mas tambeacutem observa as
particularidades de cada situaccedilatildeo192 Ele consegue relacionar de modo efetivo os universais e os
particulares na accedilatildeo pois a accedilatildeo se encontra nos particulares O exemplo que Aristoacuteteles utiliza eacute o
do homem que possui o conhecimento de que carnes leves satildeo de faacutecil digestatildeo Estas auxiliam na
manutenccedilatildeo da sauacutede Mas ter somente esta informaccedilatildeo natildeo lhe auxiliaraacute em nada Pois ao ignorar
quais satildeos os tipos de carnes consideradas leves natildeo poderaacute reestabelecer sua sauacutede A situaccedilatildeo eacute
semelhante para vaacuterios casos Um meacutedico pode saber os princiacutepios da sauacutede em geral mas se nunca
teve experiecircncia das particularidades no atendimento de cada paciente dificilmente poderaacute curaacute-
los Ou capitatildeo de navio que conhece os princiacutepios da navegaccedilatildeo mas nunca navegou natildeo estaraacute
189 Cf EacuteN VI 1140b 10 Idem p 104190 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit 95-96 O sunoptikoacutes platocircnico eacute o homem que possuiuma visatildeo abrangente das circunstacircncias 191 Cf EacuteN VI 1141a 23-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106192 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 96
66
apto para comandar uma embarcaccedilatildeo Em suma o accedilougueiro o enfermeiro e o velho marujo
devido agraves experiecircncias (e0mpeiria) adquiridas muitas vezes atingem melhores resultados que o
homem puramente teoacuterico Nos diz Aristoacuteteles
Tampouco a sabedoria praacutetica se ocupa apenas com universais (kaqolou) Devetambeacutem reconhecer os particulares pois ela eacute praacutetica e a accedilatildeo versa sobre osparticulares Eacute por isso que alguns que natildeo sabem e especialmente os que possuemexperiecircncia satildeo mais praacuteticos do que os outros que sabem porque se um homemsoubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse queespeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutedepoderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinha193
No quesito referente ao conhecimento dos universais e dos particulares eacute importante
delimitar a distinccedilatildeo entre o saber filosoacutefico (sofia)194 e o saber praacutetico (qronesij) Anteriormente
citamos as cinco virtudes intelectuais descritas por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco195
Jaacute descrevemos com mais detalhes o saber cientiacutefico (ἐπιστήμη) e a arte (τέχνη) resta-nos discorrer
sobre o saber filosoacutefico e a razatildeo intuitiva (nou~~j) No decorrer da sua exposiccedilatildeo sobre os tipos de
saberes o noucircs eacute descrito como sendo um tipo de conhecimento que permite a imediata apreensatildeo
dos primeiros princiacutepios196 Natildeo utiliza a demonstraccedilatildeo racional para conhecer como necessitam os
saberes cientiacutefico e filosoacutefico Neste sentido o noucircs natildeo realiza determinadas operaccedilotildees mediatas
do intelecto como a deliberaccedilatildeo ou o caacutelculo E o que satildeo estes princiacutepios captados pelo noucircs Satildeo
os princiacutepios mais universais que natildeo podem mais serem deduzidos de outros princiacutepios Mas
formam a base sobre a qual a ciecircncia pode operar partindo de princiacutepios gerais para os mais
especiacuteficos Eacute o que explica a comentadora Ursula Wolf ldquo[] E visto que nem todos os princiacutepios
podem ser deduzidos de princiacutepios mais gerais e que nem todos os conceitos podem ser definidos
por meio de conceitos mais conhecidos os conceitos mais elevados da ciecircncia jaacute natildeo podem ser
explicitados discursivamente mediante princiacutepios mas apenas apreendidosrdquo197 Logo o nocircus eacute uma
captaccedilatildeo de cunho ldquointuitivordquo dos primeiros princiacutepios utilizados pela ciecircncia demonstrativa198
193 EacuteN VI 1141b 15-20 Ibidem p 106-107194 Tambeacutem chamada de ldquosapiecircnciardquo por alguns autores como REALE (Metafiacutesica Vol II 2005 p 06) eABBAGNANO (Dicionaacuterio de Filosofia 2012 p 1025-1026)195 Conferir o capiacutetulo II no toacutepico 21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais As cinco virtudes intelectuaissatildeo arte (τέχνη) conhecimento cientiacutefico (ἐπιστήμη) sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) razatildeointuitiva (νοῦς)196 EacuteN VI 1141a 16-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Em relaccedilatildeo as possiacuteveis traduccedilotildeesdo termo noucircs remetemos agrave nota de rodapeacute nordm 115197 WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p149 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)198 Cf EacuteN VI 1141a 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105
67
A sabedoria filosoacutefica eacute a perfeita forma de conhecimento Ela eacute a uniatildeo do conhecimento
cientiacutefico e do noucircs A combinaccedilatildeo destes dois tipos de saberes permite que ela contemple e
conheccedila as coisas mais sublimes Aristoacuteteles inicia sua explicaccedilatildeo sobre o saber filosoacutefico a partir
de uma noccedilatildeo mais usual aplicada ao campo das artes Neste caso o saacutebio seria o artista
consagrado como o melhor naquele tipo de arte Como exemplo seriam os mais elevados expoentes
nas artes da cutelaria da pintura da escultura da arquitetura etc Poreacutem o Estagirita vai aleacutem deste
esclarecimento inicial Para ele uma vez que existem pessoas que satildeo saacutebias de um modo geral e
natildeo em alguma arte ou ciecircncia especiacutefica estes satildeo os saacutebios em um sentido filosoacutefico Estes
homens compreendem verdadeiramente estes primeiros princiacutepios e conseguem demonstrar as
conclusotildees que se inferem a partir deles Neste sentido este eacute o perfil do homem que pode ser
chamado de filoacutesofo (filosofoj) ele maneja as teorias ou seja ldquodominardquo o saber teoacuterico
Segundo o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
A sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos(a0kribestatoij) expoentes por exemplo a Fiacutedias como escultor e Policleto comoretratista em pedra e por sabedoria aqui natildeo entendemos outra coisa senatildeo aexcelecircncia na arte (a0reth texnhj) Mas a certas pessoas consideramos saacutebias demodo geral e natildeo em algum campo particular ou sob qualquer outro aspectolimitado [hellip] Eacute pois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas deconhecimento a mais perfeita Donde se segue que o homem saacutebio natildeo apenasconheceraacute o que decorre dos primeiros princiacutepios (a0rxw~~n) senatildeo que tambeacutempossuiraacute a verdade a respeito desses princiacutepios (a0rxaj a0lhqeuein) Logo asabedoria deve ser a razatildeo intuitiva combinada com o conhecimento cientiacutefico(soqia nou=j kai e0pisthmh)ndash uma ciecircncia dos mais elevados objetos que recebeupor assim dizer a perfeiccedilatildeo que lhe eacute proacutepriardquo199
No sentido aqui exposto a teoria (qewria) eacute um saber puro desvinculado da teacutecnica
aplicada agrave produccedilatildeo de uma coisa corpoacuterea Tambeacutem natildeo estaacute ligada aos assuntos referentes agrave accedilatildeo
humana objetivo do saber praacutetico Seu campo de estudo eacute aquilo que eacute inacessiacutevel agrave experiecircncia
sensiacutevel alcanccedilaacutevel apenas pela especulaccedilatildeo Este conhecimento especulativo natildeo eacute subordinado a
nenhum outro200 Antes se constitui como fundamento dos outros tipos de saberes Por ser mais
199 EacuteN VI 1141a 10-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Eacute interessante fazer uma ressalvanas expressotildees ldquoA sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos expoentes []rdquo e ldquoEacutepois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais perfeitardquo No texto da Eacutetica aNicocircmaco satildeo usadas as palavras a0kribestatoij e a0kribestath respectivamente na primeira e segunda fraseEmbora tenham sido traduzidas como ldquoperfeitosrdquo e ldquoperfeiccedilatildeordquo o termo ἀκριβής significa ldquoprecisatildeordquo ldquoacuradordquoldquoexatidatildeordquo ldquorigorosordquo ldquoestritordquo No texto em questatildeo eacute cabiacutevel o uso do termo ldquoperfeiccedilatildeordquo pois este engloba todos osoutros conceitos citados Entretanto acreditamos que a compreensatildeo desta passagem do texto pode ser melhorentendida do seguinte modo ldquoA sabedoria nas artes eacute atribuiacuteda aos seus mais acurados expoentes []rdquo e ldquoEacute poisevidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais exatardquo 200 Cf Metafiacutesica I 981b 26-30 agrave 982a 4 e 15-17 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 6 - 9
68
afastada do mundo empiacuterico (sensiacutevel) acaba por se tornar um saber buscado por si mesmo natildeo
visando outro resultado diferentemente da epiacutesteme da poieacutesis e da praacutexis
Existe uma niacutetida distinccedilatildeo entre a sabedoria filosoacutefica e a sabedoria praacutetica Vimos que o
saber filosoacutefico visa os princiacutepios universais que satildeo imutaacuteveis necessaacuterios e eternos A prudecircncia
versa sobre o mundo contingente que muda a cada momento Por isso esta uacuteltima trata daquilo que
pode ser objeto de deliberaccedilatildeo Eacute importante observar que Aristoacuteteles demarca duas caracteriacutesticas
importantes sobre o ato de deliberar i) somente ocorre com as situaccedilotildees que satildeo mutaacuteveis e ii) a
deliberaccedilatildeo visa as coisas que possuem finalidades especiacuteficas e estas devem ser possiacuteveis de serem
obtidas pelas accedilotildees Logo o homem prudente delibera bem porque defronte das circunstacircncias faz
um caacutelculo para escolher os melhores meios para alcanccedilar o bem para o homem dentro da
conjuntura em que se encontra naquele momento De acordo com o Estagirita
A sabedoria praacutetica (fronhsij) pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas(a0nqpwpina) e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos queessa eacute acima de tudo a obra (e1rgon) do homem dotado de sabedoria praacutetica (fronimou) deliberar bem (bouleusesqai) Mas ningueacutem delibera (bouleueqai) arespeito de coisas invariaacuteveis nem sobre coisas que natildeo tenham uma finalidade(teloj) e essa finalidade um bem que se possa alcanccedilar pela accedilatildeo (praktona0gaqon) De modo que delibera bem (eu1bouloj) no sentido irrestrito da palavraaquele que baseando-se no caacutelculo eacute capaz de visar agrave melhor (a0ristou) para ohomem (a0nqpwpw|) das coisas alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo (praktw~~n)201
Apoacutes a descriccedilatildeo das caracteriacutesticas da sabedoria praacutetica e da filosoacutefica eacute possiacutevel
perguntar qual desses dois saberes eacute mais importante Aristoacuteteles responde que o homem prudente
necessita das duas formas de saber Pois a melhor accedilatildeo a ser realizada eacute o foco da virtude da
prudecircncia Esta conforme visto pressupotildee o conhecimento dos universais e dos particulares de
cada situaccedilatildeo Entretanto nem sempre eacute possiacutevel ter o domiacutenio destes dois saberes Neste caso
aplica-se o conselho aristoteacutelico ldquoOra a sabedoria praacutetica diz respeito agrave accedilatildeo Portanto deveriacuteamos
possuir ambas as espeacutecies de sabedoria ou a segunda [sabedoria praacutetica] de preferecircncia agrave primeira
[sabedoria filosoacutefica] Mas tanto da sabedoria praacutetica como da filosoacutefica deve haver uma espeacutecie
controladorardquo202 Afinal frequentemente o ato de agir perante uma conjuntura eacute feito somente com
a percepccedilatildeo dos fatos particulares e ainda apenas baseada na experiecircncia Muitas vezes estes dois
elementos da accedilatildeo atingem resultados satisfatoacuterios Deste modo tendo em vista agrave accedilatildeo humana a
preferecircncia eacute possuir a sabedoria praacutetica
201 EacuteN VI 1141b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106 Na expressatildeo ldquo[] um bem que sepossa alcanccedilar pela accedilatildeordquo visto que os termos utilizados em grego satildeo prakton a0gaqon acreditamos que a melhorforma de compreender a frase eacute ldquo[hellip] um bem que se possa alcanccedilar pela melhor accedilatildeordquo ou ldquopela correta accedilatildeordquo Istodevido ao fato que a palavra agathon a depender do uso significa ldquomelhorrdquo ldquobomrdquo ldquohonraacutevelrdquo ldquonobrerdquo ldquocorretardquoldquoconvenienterdquo ldquoefetivardquo dentre outros significados 202 EacuteN VI 1141b 22-23 Ibidem p107
69
Eacute importante observar que Aristoacuteteles traccedila uma outra caracteriacutestica da prudecircncia Esta
virtude intelectual deve focar em fins nobres A escolha dos meios natildeo pode ser voltada para
objetivos soacuterdidos O homem prudente eacute antes de tudo uma pessoa que possui um soacutelido caraacuteter
moral baseado nas virtudes morais Conforme visto anteriormente eacute considerado como um
spoudaios203 Seria contraditoacuterio que optasse por buscar fins que natildeo condizem com sua conduta
Ora o phronimos consegue visualizar as diversas nuances das circunstacircncias em que estaacute inserido
sejam individuais ou coletivas Por isso eacute perspicaz (deinothj)204 ou seja consegue encontrar as
melhores soluccedilotildees para os problemas Entretanto existe um outro tipo de pessoa que igualmente
possui perspicaacutecia diante das situaccedilotildees Eacute o homem vigarista (panou=pgoj) Este natildeo pode ser
considerado possuidor da virtude da prudecircncia por ser um homem eivado de viacutecios que busca fins
errocircneos Logo a prudecircncia somente eacute reservada para homens com nobreza de alma Eacute o que
Aristoacuteteles nos assevera
Existe uma faculdade que se chama habilidade (deinothta) e tal eacute a sua naturezaque tem o poder de fazer as coisas que conduzem ao fim proposto e alcanccedilaacute-loOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau ahabilidade seraacute simples astuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos osproacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj) Esta natildeo eacute afaculdade poreacutem natildeo existe sem ela e esse olho da alma natildeo atinge o seu perfeitodesenvolvimento sem o auxiacutelio da virtude como jaacute dissemos e como aliaacutes eacuteevidente E a razatildeo disto eacute que os silogismos em torno do que se deve fazercomeccedilam assim ldquovisto que o fim isto eacute o que eacute melhor eacute de tal naturezardquoAdmitamos no interesse do argumento que ela seja qual for mas soacute o homembom a conhece verdadeiramente porquanto a maldade nos perverte e nos leva aenganar-nos a respeito dos princiacutepios da accedilatildeo Donde estaacute claro que natildeo eacute possiacutevelpossuir sabedoria praacutetica quem natildeo seja bom205
Nota-se que a prudecircncia natildeo consiste somente na habilidade de escolher os meios para
atingir determinados fins Ela tambeacutem inclui este tipo de deliberaccedilatildeo de fins mais concretos Mas
satildeo apenas fins instrumentais que servem para atingir a eudaimonia O ato de deliberar e escolher os
meios devem ser compreendidos dentro de um panorama maior Eacute uma visatildeo geral da proacutepria vida
que acarreta em um ldquobom agirrdquo (eu0pracia) ou boa conduta constante O homem prudente delibera
203 Cf Capiacutetulo 2 item 24 O homem virtuoso204 Tambeacutem pode ser entendida como ldquohabilidaderdquo ldquoengenhosidaderdquo ldquoastuacuteciardquo ldquodestrezardquo Neste ponto eacute importanteressaltar que a moralidade maacute ou boa desta desenvoltura para resolver os problemas eacute definida pelos fins almejados Ohomem prudente a usa para alcanccedilar os fins nobres enquanto o vigarista a usa para fins errocircneos Neste sentido o termoldquoastuacuteciardquo na traduccedilatildeo citada eacute utilizado para descrever esta desenvoltura que tanto homens bons e maus possuem Naexpressatildeo ldquoOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau a habilidade seraacute simplesastuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos os proacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj)Esta natildeo eacute a faculdade poreacutem natildeo existe sem ela[]rdquo acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 197) permiteuma clareza melhor da ideia transmitida por Aristoacuteteles ldquoSe o objetivo for nobre revelar-se-aacute uma faculdade louvaacutevelse for vil revelar-se-aacute mera patifaria razatildeo pela qual nos referimos tanto a homens prudentes quanto a biltres comoengenhosos Ora ainda que essa faculdade natildeo seja idecircntica agrave prudecircncia esta a implicardquo205 EacuteN VI 1144a 25-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p112
70
natildeo somente sobre accedilotildees imediatas mas tambeacutem sobre aquilo que eacute essencial para a vida Em
uacuteltima instacircncia o homem prudente escolhe os meios tendo em vista o Supremo Bem que eacute a
proacutepria felicidade
Para o comentador Martin Rhonreimer uma vez que a verdadeira virtude da prudecircncia eacute a
ldquosabedoria das coisas humanasrdquo ela aponta para aquilo que possui uma relevacircncia para a vida como
um todo Essas ldquocoisas humanasrdquo dizem respeito a um fim geral da vida humana que passa a ser
uma referecircncia para o homem dirigir todas as suas tendecircncias206
Por fim apoacutes as descriccedilotildees feitas podemos sintetizar o conceito de prudecircncia Ela eacute uma
virtude pertencente agrave parte racional da alma que versa sobre a realidade das coisas variaacuteveis Eacute
distinta da ciecircncia e da arte pois especificamente refere-se agrave accedilatildeo humana Eacute a excelecircncia do ato
de deliberar O homem prudente conhece os princiacutepios universais e sobretudo os fatos particulares
de cada circunstacircncia Logo esta virtude permite que o homem escolha corretamente o que eacute bom
para si mesmo e para a comunidade tendo em vista os fins nobres
Dito isso passemos ao proacuteximo toacutepico que trata sobre a relaccedilatildeo entre a prudecircncia a reta
razatildeo e a experiecircncia Seraacute estudada como o homem prudente aprende esta virtude com o passar do
tempo Aleacutem disto examinaremos como a reta razatildeo atua para que o homem prudente possar
realizar uma boa escolha
33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
A prudecircncia eacute a virtude que permite a escolha correta dos meios para atingir determinados
fins Eacute a excelecircncia do ato de decidir Uma vez que natildeo nascemos com esta virtude eacute necessaacuterio
desenvolvecirc-la ao longo da vida Entatildeo como o homem torna-se prudente
A resposta a esta pergunta consiste na aquisiccedilatildeo das virtudes morais da experiecircncia
adquirida com o tempo e o estudo das chamadas virtudes intelectuais menores Visto que as virtudes
morais foram estudadas anteriormente e as virtudes intelectuais menores seraacute objeto de estudo
posterior nos concentraremos na experiecircncia e como ela auxilia na formaccedilatildeo da reta razatildeo
Conforme descrito no item anterior a phronecircsis eacute o conhecimento dos princiacutepios gerais
somada agrave deliberaccedilatildeo dos fatos particulares O homem que natildeo possui o senso das peculiaridades
inerentes a cada situaccedilatildeo natildeo poderaacute ser prudente Caso detenha somente o entendimento dos
primeiros princiacutepios ou como proceder em uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica seraacute um homem versado
no saber teoacuterico Este tipo de conhecimento pode ser aprendido por meio do estudo207 Com a
prudecircncia somente eacute possiacutevel ter este tipo de ensino de modo parcial Uma vez que ela abarca as
206 RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Op cit p 240 207 O melhor exemplo disto satildeo as diversas ciecircncias ensinadas nas instituiccedilotildees de ensino formal universidadesescolas cursos etc
71
particularidades de cada caso esta virtude somente pode ser adquirida com a vivecircncia das mais
variadas situaccedilotildees ao longo da vida A importacircncia do conhecimento dos detalhes eacute asseverada por
Aristoacuteteles ao dizer que os jovens podem ser muitos bons nas ciecircncias mas somente os homens
experientes possuem a virtude da prudecircncia Conforme nos diz o Estagirita
[hellip] embora os moccedilos possam tornar-se geocircmetras (gewmetrikoi) matemaacuteticos(maqhmatikoi) saacutebios em mateacuterias que tais natildeo se acredita que exista um jovemdotado de sabedoria praacutetica (fronimoj) O motivo eacute que essa espeacutecie de sabedoriadiz respeito natildeo soacute aos universais mas tambeacutem aos particulares que se tornamconhecidos pela experiecircncia (e0mpeiriaj) Ora um jovem carece de experiecircnciaque soacute o tempo pode dar (neoj d e1mpeiroj ou0k e1stinrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] Que a sabedoriapraacutetica natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico eacute evidente porque ela seocupa como jaacute se disse com o fato particular imediato visto que a coisa a fazer eacutedesta naturezardquo208
Um exemplo claro da importacircncia da empeiria (e0mpeiria) refere-se agrave poliacutetica A realidade
do comando da poacutelis para direcionaacute-la agrave sua plenitude talvez seja o maior desafio para o homem
prudente Afinal existe uma imensa variedade de circunstacircncias a serem enfrentadas que exigem
decisotildees acertadas para natildeo levarem a cidade-estado agrave derrocada Diante deste contexto natildeo eacute
prudente deixar os rumos da poliacutetica estatal sob o comando de homens inexperientes Por isso
Aristoacuteteles afirma que os negoacutecios puacuteblicos natildeo satildeo para os jovens pois estes ainda natildeo possuem
competecircncia suficiente para este tipo de lideranccedila devido agrave sua falta de conhecimento praacutetico209 Na
visatildeo aristoteacutelica a poliacutetica necessita tanto do saber teoacuterico para determinar os fins quanto do saber
praacutetico para alcanccedilar estes fins atraveacutes das contingecircncias com as quais a poacutelis se defronta
Naturalmente o conhecimento das peculiaridades do mundo poliacutetico natildeo eacute a uacutenica realidade que
serve como ilustraccedilatildeo da importacircncia da empeiria Logo o que se deseja exemplificar eacute que a
funccedilatildeo da empeiria consiste em harmonizar estes dois saberes
Na Metafiacutesica Aristoacuteteles tambeacutem descreve esta relaccedilatildeo entre a experiecircncia e o saber
teoacuterico Seu argumento eacute ilustrado com uma comparaccedilatildeo com as artes A experiecircncia eacute uma etapa
do ato de produzir um objeto qualquer Mas a maestria eacute alcanccedilada somente apoacutes a aprendizagem
do conhecimento da teoria por traacutes da produccedilatildeo Eacute o aprendiz que fabrica algo sem necessariamente
saber a causa da peccedila ser feita daquele jeito O mestre a produz e tambeacutem conhece o porquecirc da
208 EacuteN VI 1142a 12-15 e 22-23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106-107209 Cf EacuteN VI 1095a 3-5 Ibidem p 10
72
peccedila ser feita de uma determinada forma e natildeo de outra para que seja perfeita 210 De acordo como o
Estagirita
A experiecircncia (e0mpeiria) parece um pouco semelhante agrave ciecircncia e a arte Comefeito os homens adquirem ciecircncia (e0pisthmh) e arte (texnh) por meio daexperiecircncia A experiecircncia como diz Polo produz a arte enquanto a inexperiecircncia[falta de experiecircncia] produz o puro acaso [sorte] A arte se produz quando demuitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral (kaqolou genhtai) euacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantes Por exemplo o ato dejulgar que determinado remeacutedio fez bem a Caacutelias que sofria de certa enfermidadee que tambeacutem fez bem a Soacutecrates e a muitos outros indiviacuteduos eacute proacuteprio daexperiecircncia ao contraacuterio o ato de julgar que a todos esses indiviacuteduos reduzidos agraveunidade segundo a espeacutecie que padeciam de certa enfermidade determinadoremeacutedio fez bem (por exemplo aos fleumaacuteticos aos biliosos e aos febris) eacute proacuteprioda arteOra em vista da atividade praacutetica a experiecircncia em nada parece diferir da arteantes os empiacutericos tecircm mas sucesso do que os que possuem a teoria sem praacutetica Ea razatildeo disso eacute a seguinte a experiecircncia eacute conhecimento dos particulares enquantoa arte eacute conhecimento dos universais ora todas as accedilotildees e as produccedilotildees referem-seao particular De fato o meacutedico natildeo cura o homem a natildeo ser acidentalmente mascura Caacutelias ou Soacutecrates ou qualquer outro indiviacuteduo que leva um nome como elesao qual ocorra ser homem Portanto se algueacutem possui a teoria sem experiecircncia econhece o universal mas natildeo conhece o particular que nele estaacute contido muitasvezes erraraacute o tratamento porque o tratamento se dirige justamente ao indiviacuteduoparticularTodavia consideramos que o saber e o entender sejam mais proacuteprios da arte do queda experiecircncia e julgamos os que possuem a arte mais saacutebios do que os que soacutepossuem a experiecircncia na medida em que estamos convencidos de que a sapiecircnciaem cada um dos homens corresponda agrave sua capacidade de conhecer E isso porqueos primeiros conhecem a causa enquanto os outros natildeo a conhecem Os empiacutericosconhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outrosconhecem o porquecirc e a causa211
A prudecircncia eacute o equiliacutebrio entre a razatildeo teoacuterica e a razatildeo praacutetica Este equiliacutebrio somente eacute
ganho por meio da experiecircncia Esta uacuteltima eacute o ponto intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte A
experiecircncia eacute o uacutenico caminho para o aprendizado de como aplicar corretamente os princiacutepios
gerais traccedilados ou apreendidos pelo saber teoacuterico nas situaccedilotildees particulares Ou seja a sabedoria
praacutetica somente pode ser treinada e com isso aprendida no proacuteprio exerciacutecio de decidir qual a
melhor opccedilatildeo sob variadas condiccedilotildees A natureza da prudecircncia natildeo permite que ela seja ensinada
como um conteuacutedo de matemaacutetica A vivecircncia (experiecircncia) das situaccedilotildees eacute que forja o homem para
210 Como exemplo desta relaccedilatildeo entre saber teoacuterico saber praacutetico e experiecircncia pode-se imaginar um engenheiroautomotivo e um teacutecnico em mecacircnica de automoacuteveis O primeiro conhece a ldquociecircnciardquo por traacutes da teacutecnica enquanto osegundo apenas sabe a proacutepria teacutecnica em si Mas caso o engenheiro apenas conheccedila a ldquociecircnciardquo mas natildeo possua aexperiecircncia em consertar automoacuteveis sua accedilatildeo ficaraacute defasada Natildeo atingiraacute nenhum resultado posto que eacute inoacutecua suaaccedilatildeo 211 Metafiacutesica 981a 1-30 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 5
73
que consiga sopesar seus atos e escolhas ao considerar todos os elementos envolvidos no conjunto
das circunstacircncias212 Aliaacutes eacute um fato da vida humana que em geral a ldquoforccedilardquo eacute a caracteriacutestica
marcante nos jovens enquanto a sabedoria praacutetica pertence aos mais velhos Sobre esta
constataccedilatildeo Aristoacuteteles a sintetiza na Poliacutetica ldquo[hellip] A natureza daacute vigor agrave juventude e a prudecircncia
a uma idade mais avanccedilada [hellip]rdquo213 Dessa forma eacute a ldquoexperiecircncia de vidardquo - o confronto com as
situaccedilotildees - que faz o homem adquirir a virtude da prudecircncia Isto porque ele torna-se mais apto a
realizar deduccedilotildees e decidir melhor para chegar a conclusotildees (imperativos) de como agir melhor nas
diversas situaccedilotildees
Pierre Aubenque descreve que a experiecircncia aristoteacutelica eacute intermediaacuteria entre a sensaccedilatildeo e a
ciecircncia Ela jaacute eacute um tipo de conhecimento baseado na observaccedilatildeo dos particulares Ademais existe
uma caracteriacutestica importante na sabedoria praacutetica adquirida pela experiecircncia a de ser singular e
insubstituiacutevel214 Eacute a partir deste olhar atento sobre os detalhes acerca das coisas e pessoas e em
especial o exemplo de homens prudentes eacute que o jovem vai delineando sua vida de forma
prudente
A partir desta anaacutelise sobre a relaccedilatildeo entre saber teoacuterico o saber praacutetico e a experiecircncia eacute
possiacutevel vislumbrar o que eacute a orthos loacutegos (o0rqoj logoj) A reta razatildeo tambeacutem chamada de justa
razatildeo razatildeo correta ou regra correta eacute o paracircmetro correto da accedilatildeo a ser seguida pelo homem em
qualquer situaccedilatildeo para atingir um fim moralmente bom A mediania das virtudes morais eacute
determinada por esta razatildeo Conforme nos mostra Aristoacuteteles quando se trata da accedilatildeo humana o
cerne da razatildeo praacutetica eacute a concordacircncia entre o desejo correto e o raciociacutenio verdadeiro215Isso
significa que a recta ratio a partir da compreensatildeo dos primeiros princiacutepios consegue deduzir de
modo certo e coerente proposiccedilotildees no campo da ciecircncia e da eacutetica Deste modo eacute possiacutevel perceber
a ldquocorreta medida das coisasrdquo discernir corretamente e agir conforme o bom entendimento das
situaccedilotildees
A empeiria eacute essencial para o aprimoramento da reta razatildeo Por isso o desenvolvimento da
prudecircncia necessita de tempo A experiecircncia aperfeiccediloa o aprendizado de decidir e eacute fundamental
para a consolidaccedilatildeo das virtudes morais Conforme vimos o homem prudente reuacutene estas
condiccedilotildees ele deveria ser considerado como o homem dotado de virtudes morais216 Tambeacutem
conhece os princiacutepios universais para serem aplicados em cada caso Com a experiecircncia adquirida
com o tempo ele consegue rapidamente identificar no decorrer das circunstacircncias dois elementos
212 Cf EacuteN VI 1109a 26-29 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37 Estes elementos a serem observadosforam citados por Aristoacuteteles as pessoas envolvidas o momento a medida (quantidadeintensidade) e a maneira certa 213 Poliacutetica VII 1329a 16 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Op Cit p 156214 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 97- 98215 Cf EacuteN VI 1139a 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102216 Cf Capiacutetulo II item 24 O homem virtuoso
74
i) os meios para atingir os resultados (fins) e ii) quais os meios e os fins moralmente corretos Natildeo
pode haver uma dissonacircncia entre atos e fins na conduta Eacute interessante recordar que os fins satildeo
provenientes do desejo Por isso as virtudes morais satildeo necessaacuterias para fomentar os desejos nobres
para que o homem tenha apreccedilo por fins corretos A prudecircncia atuaraacute nos meios certos para alcanccedilar
estes fins Neste sentido o homem prudente por ter as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter
desejaraacute o que eacute bom e por ter a virtude intelectual da prudecircncia desenvolvida saberaacute discernir os
melhores meios para atingir os fins nobres Dessa forma ele estaacute mais apto que os outros para agir
em consonacircncia com a reta razatildeo
Sobre a empeiria o comentaacuterio de Satildeo Tomaacutes de Aquino reafirma a posiccedilatildeo aristoteacutelica que
somente o tempo a experiecircncia e o ensino permitem o florescimento da virtude intelectual da
prudecircncia De acordo com o descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] o Filoacutesofo diz que ldquoa virtude nasce e cresce principalmente pelo ensinamentoeacute por isso que ela requer experiecircncia e tempordquo Ora a prudecircncia eacute uma virtudeintelectual como se explicou anteriormente Logo natildeo somos prudentesnaturalmente mas graccedilas ao ensinamento e agrave experiecircncia Respondo Como estaacute claro pelo que foi dito antes a prudecircncia inclui oconhecimento dos universais e tambeacutem dos singulares que se devem fazer aosquais aplica os princiacutepios universais[ hellip] e como diz o Filoacutesofo ldquoA vidaespeculativa eacute melhor que a humanardquo Mas os princiacutepios universais posterioresseja da razatildeo especulativa seja da razatildeo praacutetica natildeo satildeo naturais Satildeo descobertospela experiecircncia ou pela instruccedilatildeo217
Diante do exposto a pergunta inicial de como um homem se torna prudente eacute respondida A
virtude da prudecircncia eacute adquirida ao longo do tempo por meio da empeiria e do aprendizado de
como aplicar este saber praacutetico no mundo contingente A prudecircncia permite ao homem apreender agrave
justa razatildeo E esta eacute a proacutepria prudecircncia em relaccedilatildeo agrave conduta218As palavras de W D Ross
sintetizam bem o conceito da reta razatildeo ldquoA regra correcta consiste numa regra obtida por uma
anaacutelise deliberativa do homem prudente a qual o informa de que o fim da vida humana seraacute melhor
atingido a partir de certas accedilccedilotildees intermeacutedias entres os extremos A virtude moral consiste na
217 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed SatildeoPaulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 610 Summa Theologiae II-II q 47 a15 ldquo[] quod philosophus dicit in II Ethicquod virtus intellectualis plurimum ex doctrina habet et generationem et augmentum ideo experimento indiget ettempore Sed prudentia est virtus intellectualis ut supra habitum est Ergo prudentia non inest nobis a natura sed exdoctrina et experimento Sed alia principia universalia posteriora sive sint rationis speculativae sive practicae nonhabentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti vel per disciplinam Respondeo dicendum quod sicut ex praemissis patet prudentia includit cognitionem et universalium et singulariumoperabilium ad quae prudens universalia principia applicat Quantum igitur ad universalem cognitionem eadem ratioest de prudentia et de scientia speculativa [] ut enim philosophus dicit in X Ethic vita quae est secundumspeculationem est melior quam quae est secundum hominem Sed alia principia universalia posteriora sive sintrationis speculativae sive practicae non habentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti velper disciplinam[hellip]rdquo 218 Cf EacuteN VI 1144b 25-27 Ibidem p 113
75
obediecircncia a uma tal regrardquo219 Em suma ela eacute a referecircncia raciocinada que indica que algumas
accedilotildees nos conduzem de modo mais acertado agrave eudaimonia enquanto outras natildeo
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia do ato de deliberar e decidir Mas a decisatildeo
eacute composta por elementos que se corretamente observados fazem o homem realizar uma boa
decisatildeo Estes elementos estatildeo relacionados entre si e satildeo o desejo a escolha e a deliberaccedilatildeo No
proacuteximo toacutepico os estudaremos de forma mais detalhada
34 Desejo (o1recij) Deliberaccedilatildeo (bouleusij e Escolha (proairesij)
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a razatildeo praacutetica que direciona a accedilatildeo humana para o bem
Para que este direcionamento seja correto e consiga ser efetivo na conduccedilatildeo da accedilatildeo o homem
prudente deve fazer uma deliberaccedilatildeo (bouleusij) que o permite realizar uma escolha
(proairesij) a fim de que sua accedilatildeo seja adequada agrave situaccedilatildeo Logo o processo decisoacuterio inicia-se
no ato de deliberar depois na escolha e finda com a accedilatildeo propriamente dita220
O que eacute a deliberaccedilatildeo Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles faz uma descriccedilatildeo das
caracteriacutesticas da bouacuteleusis Ao final o conceito torna-se claro A deliberaccedilatildeo somente eacute exercida
naquilo que eacute mutaacutevel Ningueacutem delibera sobre o que eacute necessaacuterio eterno e invariaacutevel As coisas
que possuem estas qualidades natildeo satildeo objeto de deliberaccedilatildeo Visto que natildeo satildeo factiacuteveis de
mudanccedila natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo humana O ato de deliberar somente visa aquilo que eacute
possiacutevel de ser atingido pela accedilatildeo do proacuteprio homem E tudo o que eacute realizado por meio da accedilatildeo
pode ter resultados incertos Afinal lidar com as contingecircncias eacute ldquomanejarrdquo as probabilidades de
erro ou acerto pois as variaacuteveis das situaccedilotildees podem mudar a cada momento Observa-se por
exemplo o campo da poliacutetica da economia da medicina dentre inuacutemeros outros Cada decisatildeo
deve ser tomada a partir das vaacuterias mudanccedilas circunstancias visando atingir o fim determinado
Neste quadro de incerteza parte do resultado por oacutebvio natildeo todo depende da accedilatildeo realizada a
partir da boa ou maacute deliberaccedilatildeo Dessa forma a deliberaccedilatildeo eacute a razatildeo praacutetica que tem de ponderar
perante o incerto com a maacutexima exatidatildeo possiacutevel Conforme nos mostra Aristoacuteteles
219 ROSS W D Aristoacuteteles Op cit p 226220 A bouacuteleusis e proairesis satildeo descritas por Aristoacuteteles tanto no livro III quanto no livro VI da Eacutetica a NicocircmacoNo decorrer da explicaccedilatildeo sobre estas duas fases da decisatildeo citaremos os dois livros Eacute interessante notar que o livroVI muitas vezes resume aspectos sobre a deliberaccedilatildeo e a escolha estudados anteriormente no livro III Este fatoocorre porque ao analisar a prudecircncia no livro VI o Estagirita coloca a deliberaccedilatildeo e a escolha em um patamar deexcelecircncia O homem prudente eacute aquele que delibera bem e escolhe bem
76
Eacute de presumir que devamos chamar objeto de deliberaccedilatildeo natildeo agravequilo que umneacutescio ou um louco deliberaria mas agravequilo sobre o que pode deliberar um homemsensato (nou~~n e1xwn) Ora sobre coisas eternas ningueacutem delibera por exemplosobre o universo material ou sobre a incomensurabilidade da diagonal com o ladodo quadrado [] Deliberamos sobre as coisas que estatildeo ao nosso alcance e podemser realizadas e essas satildeo efetivamente as que restam Porque como causasadmitimos a natureza a necessidade o acaso e tambeacutem a razatildeo e tudo quedepende do homem Ora cada classe de homem delibera sobre as coisas quepodem ser realizadas pelos seus esforccedilos [] as coisas que satildeo realizadas pelosnossos esforccedilos mas nem sempre do mesmo modo essas satildeo objetos dedeliberaccedilatildeo os problemas de tratamento meacutedico e de comeacutercio por exemplo221
O ato de deliberar envolve a observaccedilatildeo de coisas que ocorrem normalmente de uma certa
maneira Estas situaccedilotildees costumeiras favorecem o acerto quando deliberamos e agimos sobre elas
Entretanto natildeo significa que os resultados seratildeo necessariamente os esperados De acordo com
Aristoacuteteles ldquoDelibera-se a respeito de coisas que comumente acontecem de certo modo mas cujo
resultado eacute obscuro e daquelas em que este eacute indeterminado E nas coisas de grande monta
tomamos conselheiros por natildeo termos confianccedila em nossa capacidade de decidirrdquo222 A tiacutetulo de
ilustraccedilatildeo um meacutedico pode atender vaacuterios pacientes com a mesma doenccedila e receitar o remeacutedio
apropriado que comprovadamente curou a muitos Mas nada certifica que o remeacutedio poderaacute curar
sempre todos os pacientes Um raciociacutenio anaacutelogo pode ser aplicado a um time de basquete ou
nataccedilatildeo As accedilotildees satildeo realizadas com base em deliberaccedilotildees derivadas de observaccedilotildees do histoacuterico
do proacuteprio time e dos adversaacuterios As chances podem ser maximizadas para a vitoacuteria ainda assim o
resultado eacute indeterminado Por isso o Estagirita adverte que determinados assuntos devem ser
deliberados em conjunto para que haja uma anaacutelise mais acurada dos fatos
A deliberaccedilatildeo eacute a escolha dos meios para atingir os fins Caso haja vaacuterios meios que levam a
um mesmo resultado seraacute escolhido o meio mais eficaz Isso significa que em cada situaccedilatildeo o
homem prudente delibera sobre quais os melhores meios e como utilizaacute-los da melhor maneira
Cita-se o texto da Eacutetica a Nicocircmaco
Natildeo deliberamos acerca dos fins mas a respeito de meios (proj ta telh) Ummeacutedico por exemplo natildeo delibera (bouleuetai) se haacute de curar ou natildeo nem umorador se haacute de persuadir nem um estadista (politikoj) se haacute de implantar aordem puacuteblica nem qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade Datildeo afinalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcanccedilaacute-la e separece poder ser alcanccedilada por vaacuterios meios procuram o mais faacutecil e o mais eficazse for um soacute examinam como seraacute alcanccedilada por ele e por que outro meioalcanccedilar esse primeiro ateacute chegar ao primeiro princiacutepio que na ordem dedescobrimento eacute o uacuteltimo223
221 EacuteN III 1112a 20-35 e 1112b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45222 EacuteN III 1112b 8-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46223 EacuteN III 1112b 13-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46
77
Na dimensatildeo moral o aprimoramento do homem prudente eacute realizado pela consolidaccedilatildeo das
virtudes morais Na dimensatildeo da racionalidade praacutetica se traduz na sua capacidade de decidir cada
vez melhor ao passar pelas etapas da deliberaccedilatildeo e da escolha Quanto melhor for a deliberaccedilatildeo e a
escolha mais aperfeiccediloada seraacute a virtude da prudecircncia Neste sentido apoacutes a exposiccedilatildeo do ato de
deliberar estudaremos a escolha
Para uma melhor compreensatildeo do ato de escolher eacute preciso descrever brevemente a ideia de
voluntariedade e involuntariedade das accedilotildees humanas De modo geral Aristoacuteteles distingue o ato
voluntaacuterio e o involuntaacuterio O primeiro consiste na accedilatildeo como resultado de uma escolha do homem
Na accedilatildeo voluntaacuteria o homem deve estar consciente das particularidades de cada circunstacircncia224 e
no domiacutenio de suas paixotildees para sua accedilatildeo ser tida como voluntaacuteria225 O segundo ocorre quando o
homem ignora todos ou alguns aspectos das circunstacircncias aleacutem de natildeo possuir o controle de suas
paixotildees A ignoracircncia e falta de autodomiacutenio (a0krasia) o impede de alcanccedilar o fim esperado
Desta forma uma accedilatildeo para ser declarada voluntaacuteria ou involuntaacuteria depende do momento que eacute
realizada226 sob qual circunstacircncia ocorreu o ato o grau de conhecimento das particularidades e se
houve ou natildeo o controle dos paixotildees
Conforme exposto o domiacutenio de si ou a falta dele afeta as deliberaccedilotildees e as escolhas que
um homem pode fazer Por isso o controle dos desejos eacute fundamental para a consecuccedilatildeo de uma
boa escolha Isto porque o desejo faz parte da faculdade sensitiva do homem Eacute um indutor da accedilatildeo
humana que nos impele para a busca de diversos fins e entre eles o fim uacuteltimo a eudaimonia
Cada desejo varia de acordo com o tipo o apetite () eacute atraiacutedo por um determinado objeto e
o impulso ()227 por outro Devido a esta realidade inerente agrave natureza humana Aristoacuteteles
descreve que a accedilatildeo e a verdade satildeo regidas pela sensaccedilatildeo (ai1sqhsij) intelecto (nou~~j)228 e desejo
(o1recij) embora a sensaccedilatildeo natildeo seja o princiacutepio da accedilatildeo por natildeo ser fruto de nenhum tipo de
processo racional Conforme diz Aristoacuteteles
ldquoA virtude de um coisa eacute relativa ao seu funcionamento (e1rgon) apropriado Orana alma existem trecircs coisas que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo(ai1sqhsij) razatildeo (nou~~j) e desejo (o1recij) Destas trecircs a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepiode nenhuma accedilatildeo bem o mostra o fato de os animais inferiores possuiacuteremsensaccedilatildeo mas natildeo participarem da accedilatildeordquo229
224 Cf EacuteN III 1111a 21-25 Ibidem p 43225 Cf EacuteN III 1110a 1-4 Ibidem p 41226 Cf EacuteN III 1110a 15 Ibidem p 41227 O thumos tambeacutem eacute traduzido pelo termos ldquoirardquo ldquofuacuteriardquo ldquocoacutelerardquo De todo modo eacute um intenso descontentamentoprovocado por algo que faz o homem reagir a esse fato desencadeador 228 Acerca da dificuldade de traduccedilatildeo deste termo grego conferir nota de rodapeacute nordm 115229 EacuteN VI 1139a 17-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102
78
O desejo eacute uma atraccedilatildeo que alguma coisa causa em noacutes Podemos ser atraiacutedos por qualquer
coisa o que implica que podemos querer coisas que podem ser boas ou ruins aleacutem de nos
impulsionar a realizarmos accedilotildees moralmente boas ou maacutes para conseguir o objeto desejado Daiacute a
importacircncia das virtudes morais para ordenar os diversos desejos para que sejam orientados para a
retidatildeo moral Desta maneira os retos desejos facilitam que o homem prudente realize escolhas
voltadas para o bem
Esta relaccedilatildeo entre desejo escolha e virtude eacute percebida quando Aristoacuteteles conceitua a
virtude moral como uma disposiccedilatildeo para uma escolha (e3cij proairetikh) de accedilotildees e paixotildees
pautadas pela mediania230 A virtude moral predispotildee de forma beneacutefica o homem agrave fazer boas
escolhas relacionadas agrave vida de forma geral ou seja ao fins mais importantes No sentido aqui
descrito as escolhas bem feitas satildeo o resultado de uma clareza de visatildeo que as virtudes morais
proporcionam ao homem prudente que sabiamente escolhe os melhores meios para atingir os fins
Isto tambeacutem eacute apontado na Eacutetica a Eudemo ao mostrar que a escolha eacute realizada visando o bem
viver A nobreza de conduta eacute o fator orientador de todas as escolhas De acordo com a Eacutetica a
Eudemo
Uma vez definido em relaccedilatildeo a isso que todos os capacitados a viver de acordocom a preacutevia escolha deveriam visar algo a favor de viver bem e nobremente seja ahonra a reputaccedilatildeo a riqueza ou a cultura em funccedilatildeo do que orientariam toda a suaconduta (pois natildeo ter a proacutepria vida organizada em vista de algum fim eacute um clarosinal de grande loucura) conclui-se que eacute maximamente necessaacuterio comeccedilar por sedecidir pessoalmente nisso natildeo agindo nem apressada nem negligentemente emqual das coisas que nos dizem respeito estaacute encerrada a vida boa e quais satildeo ascondiccedilotildees imprescindiacuteveis que possibilitam a noacutes seres humanos entrarmos deposse dessa vida 231
Vimos que o homem deve orientar a sua vida para a eudaimonia sendo esta o fim uacuteltimo
que eacute desejado por todos Para que este desejo de felicidade natildeo permaneccedila no campo da
imaginaccedilatildeo satildeo necessaacuterias fazer escolhas concretas O ato de escolher eacute uma etapa do processo de
decisatildeo realizado por cada homem O homem prudente realiza este ato com maestria pois o ato de
escolher eacute de fundamental importacircncia para a consecuccedilatildeo de uma vida feliz Aquele que escolhe
mal dificilmente seraacute feliz Assim sendo devido a sua importacircncia para a formaccedilatildeo do phronimos
adentraremos na ideia aristoteacutelica de proairesis (proairesij)
230 Cf EacuteN II 1106b 36 Ibidem p 33231 EacuteE I 1214b 7-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 47
79
O que eacute a proiaresis A proiaresis eacute um ato de livre escolha232 Poreacutem nem todos os atos
voluntaacuterios satildeo decorrentes de uma escolha As crianccedilas e os animais satildeo capazes de realizarem atos
voluntaacuterios mas natildeo de realizar escolhas233pois satildeo atos efetivados sem o uso da razatildeo No livro III
da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a proiaacuteresis como uma accedilatildeo voluntaacuteria que envolve o
raciociacutenio e algum processo do intelecto sendo precedida pela deliberaccedilatildeo234 Logo a escolha
pressupotildee o uso da razatildeo que controla o desejo e eacute feita com um processo de raciociacutenio que procura
analisar as melhores opccedilotildees
Por envolver a razatildeo a proairesis difere do apetite () do impulso () da
vontade () e da opiniatildeo (doca) O apetite e o impulso natildeo envolvem nenhum tipo de
processo racional por isso natildeo podem ser considerados como escolhas Aleacutem disto o apetite
envolve o que eacute agradaacutevel (prazeroso) e o desagradaacutevel (doloroso) A proairesis natildeo depende destes
dois fatores Afinal o homem pode escolher tanto um quanto outro destes aspectos conforme o
resultado a ser obtido Em relaccedilatildeo agrave vontade por ser uma espeacutecie de desejo mais aproximada da
racionalidade nos fazendo tender para o bem auxilia nas aspiraccedilotildees humanas mais elevadas
Entretanto muitas vezes a vontade quer agravequilo que eacute maior que a capacidade do homem de
alcanccedilaacute-la Satildeo aspiraccedilotildees irrealistas O exemplo utilizado por Aristoacuteteles eacute a imortalidade Pode-se
desejar ser imortal mas isto eacute inantingiacutevel pela accedilatildeo humana A vontade tambeacutem pode nos levar a
desejar algo fora do nosso poder decisoacuterio Como desejar que o time desportivo que torcemos ganhe
o campeonato Assim os desejos provenientes da vontade podem aspirar a qualquer coisa poreacutem
para serem atingiacuteveis devem ser realistas As escolhas para serem plausiacuteveis devem estar estar no
acircmbito do que a accedilatildeo humana pode realizar Outras aspiraccedilotildees mais tangiacuteveis como ter sauacutede ter
paz ser feliz etc satildeo o fins (objetivos) gerais que podem ser plenamente alcanccedilados Mas para
atingiacute-los eacute necessaacuterio escolher os meios Essa eacute a funccedilatildeo do ato de escolher propriamente dito
Logo a proairesis visa os meios a serem utilizados e natildeo os fins
A proairesis natildeo eacute opiniatildeo Primeiro eacute possiacutevel opinar acerca de quaisquer coisas que
estejam em nosso poder alcanccedilaacute-las e tambeacutem sobre o que estaacute longe disto Segundo a opiniatildeo eacute
uma etapa inicial do processo de conhecimento sendo classificada como verdadeira ou falsa em
suas assertivas Por seu lado a proairesis refere-se agrave accedilatildeo humana podendo ser adjetivada como
boa ou maacute Esta diferenccedila pode ser notada quando observamos homens que opinam corretamente
acerca de vaacuterios assuntos poreacutem fazem peacutessimas escolhas ao agirem ou homens que escolhem
bem mas erram em suas opiniotildees Normalmente as escolhas ruins satildeo feitas devido aos viacutecios
232 Cf EacuteN III 1111b 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 44 Conferir tambeacutem EacuteE II 1225b 1-18Eacutetica a Eudemo Op cit p 95233 A praacutexis humana eacute caracterizada pela accedilatildeo composta por um princiacutepio racional O raciociacutenio deve estar semprepresente Por isso animais natildeo ldquoagemrdquo no sentido aqui descrito 234 Cf EacuteN III 1111b 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45
80
Uma conduta viciosa influencia negativamente o raciociacutenio necessaacuterio para realizar uma boa
escolha Afinal os viacutecios satildeo desejados pelos homens incontinentes e pelos maldosos Observa-se
que a proairesis estaacute no campo da sabedoria praacutetica Em suma a opiniatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo pouco
cuidadosa dos fatos enquanto a proairesis eacute um ato que compotildee a accedilatildeo De acordo com
Aristoacuteteles
Ora com a opiniatildeo em geral natildeo haacute ningueacutem que a identifique [] Com efeito porescolher o que eacute bom ou mau somos homens de um determinado caraacuteter mas natildeo osomos por sustentar esta ou aquela opiniatildeo [] E tambeacutem escolhemos o quesabemos ser melhor (proairoumeqa men a4 malista i1smen a0gaqa o1nta) tantoquanto nos eacute dado sabecirc-lo mas opinamos sobre o que natildeo sabemos exatamente(docazomen de a4 ou0 panu i1smen) e natildeo satildeo as mesmas pessoas que passam porfazer as melhores escolhas e sustentar as melhores opiniotildees mas de algumas se dizque tecircm excelentes opiniotildees e no entanto padecem de um viacutecio (kakian) qualquerque as impede de escolher bem (kakian d airei=sqai ou0x a4 deirsquo e1mpeiroj ou0k e1stin =) 235
O Estagirita na sua obra Eacutetica a Eudemo assevera que a opiniatildeo e a vontade dizem respeito
aos fins enquanto a escolha refere-se aos meios236 A escolha eacute uma opccedilatildeo preferencial de uma
coisa e natildeo de outra Esta opccedilatildeo somente pode ser feita a partir da anaacutelise e deliberaccedilatildeo Por isso o
ato de escolher comeccedila na opiniatildeo deliberada (d chj bouleutikh=joacutej )237 Neste caso a opiniatildeo
significa o iniacutecio do exame das circunstacircncias sendo uma fase da deliberaccedilatildeo Contudo a escolha
natildeo eacute somente a opiniatildeo deliberada mas tambeacutem eacute composto pela vontade238 Por isso o filoacutesofo de
Estagira assevera que a escolha tambeacutem eacute um desejo deliberativo Esta uacuteltima noccedilatildeo de desejo e
deliberaccedilatildeo eacute destacada na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] a escolha ou eacute raciociacutenio desiderativo ou desejo
raciocinativo e a origem de uma accedilatildeo dessa espeacutecie eacute um homemrdquo239 Deste modo a escolha eacute
resultado do desejo deliberado ou envolve algum procedimento intelectual240
Descritas as caracteriacutesticas de cada uma entatildeo qual a diferenccedila entre proiaresis (escolha) e a
bouacuteleusis (deliberaccedilatildeo) Ambas se referem aos meios mas natildeo aos fins A distinccedilatildeo estaacute na
amplitude de visatildeo sobre o que deve ser feito A escolha diz respeito agravequilo que eacute mais imediato e
ldquoconcretordquo ou seja o plenamente operacionalizaacutevel em um dado instante Eacute a finalizaccedilatildeo da
deliberaccedilatildeo Pierre Aubenque define bem este caraacuteter da escolha eacute o momento da decisatildeo do voto
ela torna funcional a deliberaccedilatildeo e por isso pode pocircr-lhe um fim241 A deliberaccedilatildeo eacute o ato anterior agrave
escolha eacute a inteligecircncia ponderando e definindo qual o rumo a ser seguido A escolha eacute o desejo
235 EacuteN III 1112a 1-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45 236 Cf EacuteE II 1226a 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 97237 Cf EacuteE II 1226b 1-10 Idem p 98238 Cf EacuteE II 1226b 20-25 Ibidem p 99239 EacuteN VI 1139b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102 240 Cf nota de rodapeacute nordm 232241 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 196
81
deliberado das coisas Ou seja eacute o desejo ldquofiltradordquo pela razatildeo adquirindo a medida correta para
que possa ser alcanccedilado pela nossa proacutepria accedilatildeo No processo decisoacuterio a sequecircncia seguida eacute que
primeiro deliberamos depois escolhemos os meios de acordo com o que foi deliberado Neste ato
de escolher o desejo passa a estar em consonacircncia com a deliberaccedilatildeo De acordo com Aristoacuteteles
Eacute a mesma coisa aquela sobre que deliberamos e a que escolhemos (bouleuton dekai poraireton to au0to) salvo estar o objeto de escolha jaacute determinado jaacute queaquilo por que nos decidimos em resultado da deliberaccedilatildeo eacute o objeto da escolha (togar e0k th=j boulh=j kriqen proaireton e0stin) Efetivamente todos cessam deindagar como devem agir depois que fizeram voltar o princiacutepio motor a si mesmose agrave parte dirigente de si mesmos pois eacute essa que escolhe[]Sendo pois o objetoda escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes adeliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcanceporque apoacutes decidir em resultado de uma deliberaccedilatildeo desejamos de acordo com oque deliberamos (bouleutikh o1recij tw~~n e0f0 h9mi~~n) Consideremos pois comodescrita em linhas gerais a escolha estabelecida a natureza dos seus objetos e ofato de que ela diz respeito aos meios (poi=a e0sti kai o3ti tw~~n ta telh) 242
Como exemplo simples imaginemos esta cena eu tenho o desejo de cursar um mestrado
strictu sensu em outro paiacutes Este curso estaacute condizente com a felicidade (fim uacuteltimo) que almejo
Apoacutes uma deliberaccedilatildeo iacutentima e consultiva com outras pessoas procuro analisar os melhores meios
para me deslocar para outro paiacutes e me matricular no curso almejado Quais meios para chegar em
outro paiacutes O aviatildeo o trem o automoacutevel a peacute Qual o meio para me matricular e manter a estadia
A bolsa de estudos economias bancaacuterias etc E assim por diante a boa escolha indicaraacute os
melhores meios Portanto nota-se que a escolha deriva de um objetivo determinado pelo desejo em
seguida haacute a deliberaccedilatildeo para analisar os meios (natildeo eacute possiacutevel deliberar sem termos um propoacutesito
uma meta)243 e finalmente eacute realizada a escolha de qual eacute o melhor meio para operacionalizar a
consecuccedilatildeo do mestrado
Eacute possiacutevel haver erro na deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles responde afirmativamente que eacute possiacutevel o
homem incorrer em equiacutevocos no ato de deliberar A deliberaccedilatildeo envolve o conhecimento dos
universais e dos fatos particulares que satildeo adquiridos respectivamente por meio do ensino e da
experiecircncia244 O erro deliberativo ocorre quando haacute ignoracircncia dos dois aspectos ou de apenas um
deles Utilizamos o proacuteprio exemplo citado na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] o erro na deliberaccedilatildeo pode
versar tanto sobre o universal como sobre o particular isto eacute tanto eacute possiacutevel ignorar que toda a
aacutegua pesada eacute maacute como esta aacutegua aqui presente eacute pesadardquo245
242 EacuteN III 1113a 1-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46 Conferir tambeacutem EacuteE I 1226b 20-25ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99243 Cf EacuteE I 1226b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99244 Cf EacuteN VI 1141b 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106245 EacuteN VI 1142a 20-22 Idem p 108
82
A escolha e a deliberaccedilatildeo satildeo dois procedimentos fundamentais para que haja uma accedilatildeo
correta O homem prudente deve sempre atentar para fazer do melhor modo possiacutevel as
mencionadas operaccedilotildees do intelecto O bom exerciacutecio destes dois estaacutegios proporcionam uma
capacidade superior de decidir Por conseguinte as boas decisotildees contribuem para uma vida feliz
Dito isto passamos a analisar no proacuteximo toacutepico as chamadas trecircs virtudes intelectuais
menores Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia Portanto conveacutem a anaacutelise para
entendermos como se forma a excelecircncia do ato de decidir ou seja a proacutepria virtude da prudecircncia
35 As trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia (sunesij)
ponderaccedilatildeo (gnwmn)
As trecircs virtudes intelectuais menores satildeo a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia
(sunesij)246e ponderaccedilatildeo (gnwmn)247 Para se tornar prudente o homem precisa adquirir o domiacutenio
destas capacidades intelectuais Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia que possuem
trecircs funccedilotildees distintas A distinccedilatildeo ocorre conforme o segmento de realidade de prudecircncia a ser
examinado e discernido Deste modo estas virtudes satildeo tipos de operaccedilotildees intelectuais (raciociacutenios)
que consistem em estaacutegios do processo de anaacutelise das circunstacircncias
A primeira virtude intelectual eacute a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) Esta eacute o aperfeiccediloamento da
deliberaccedilatildeo No livro VI Aristoacuteteles nos mostra que a boa deliberaccedilatildeo consiste em uma
investigaccedilatildeo sobre um assunto em particular Ela envolve uma espeacutecie de caacutelculo consciente que
objetiva atingir o melhor resultado possiacutevel Deste modo a boa deliberaccedilatildeo eacute uma ponderaccedilatildeo que
atinge um alto grau de exatidatildeo porque analisa todas as variaacuteveis envolvidas em uma determinada
situaccedilatildeo tendo em vista uma finalidade boa
Ressalta-se que a boa deliberaccedilatildeo envolve uma ponderaccedilatildeo correta somada a um fim bom
Pois um homem pode acertar sua anaacutelise dos fatos e escolher corretamente os meios para atingir
um fim proveniente de um desejo que natildeo eacute bom Eacute o que ocorre com os homens incontinentes ou
maldosos Outro caso eacute o de desejar um fim bom mas natildeo alcanccedilaacute-lo por causa de um raciociacutenio
246 As traduccedilotildees do termo grego synesis satildeo variadas Alguns tradutores utilizam as palavras ldquodiscernimentordquo (E Bini2013 p 192) ldquoentendimientordquo (J Marias 1959 p 97) ldquointeligecircnciardquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p 109)ldquounderstandingrdquo (H Rackham 1996 p 155) Preferimos o termo ldquointeligecircnciardquo porque nos parece expressar melhor oconceito de synesis que significa a capacidade de aprender bem e por isso julgar bem as particularidades das diversassituaccedilotildees 247 As traduccedilotildees do termo grego gnome tambeacutem divergem entre si Alguns tradutores usam as palavras ldquoponderaccedilatildeordquo(E Bini 2013 p 192) ldquocomprensioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) ldquodiscernimentordquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p110) ldquoconsiderationrdquo (H Rackham 1996 p 156) Acreditamos que o termo ldquoponderaccedilatildeordquo traduz melhor o conceito degnome por este ser um ato de sopesar a situaccedilatildeo com o fim de atingir a equidade
83
errado Ambos os tipos natildeo satildeo consideradas como boas deliberaccedilotildees Desta forma a deliberaccedilatildeo
ideal eacute feita de uma anaacutelise correta visando fins corretos De acordo com Aristoacuteteles
Mas por outro lado a excelecircncia da deliberaccedilatildeo (eu0boulia boulh=j) envolveraciociacutenio [hellip] Mas a excelecircncia da deliberaccedilatildeo eacute certamente a deliberaccedilatildeocorreta [hellip] o homem incontinente (a0krathj) e o homem mau (fau=loj) seforem haacutebeis alcanccedilaratildeo como resultado do seu caacutelculo (logismou=) o quepropuseram a si mesmos de forma que teratildeo deliberado corretamente mas o queteratildeo alcanccedilado eacute um grande mal para eles (o0rqw~~j e1stai bebouleumenoj kakonde mega ei0lhfwj) Ora ter deliberado bem eacute considerado uma boa coisa pois eacuteessa espeacutecie de deliberaccedilatildeo correta que constitui a excelecircncia da deliberaccedilatildeo ndash istoeacute aquela que tende a alcanccedilar um bem (o0rqothj boulh=j eu0bouliampampa h9 a0gaqou=teuktikh)248
A boa deliberaccedilatildeo pode ser feita de forma mais lenta ou mais raacutepida Alguns assuntos
levaratildeo mais tempo de deliberaccedilatildeo outros necessitam de menos duraccedilatildeo Com a experiecircncia de
vida a deliberaccedilatildeo em muitos casos torna-se mais veloz Mas essencialmente a boa deliberaccedilatildeo
feita em um periacuteodo razoaacutevel para obter a melhor decisatildeo Devemos recordar que o homem
prudente percebe e aproveita o momento oportuno (kairoj) para agir Por isso uma deliberaccedilatildeo
muito lenta eacute um indicativo que ainda natildeo se atingiu a excelecircncia para atingir o bem Eacute o que o
Estagirita nos mostra ldquo[hellip] eacute possiacutevel alcanccedilaacute-lo [o bem] por uma longa deliberaccedilatildeo enquanto um
outro homem chega a ele rapidamente Por conseguinte no primeiro caso natildeo possuiacutemos ainda a
excelecircncia no deliberar que eacute a correccedilatildeo tanto no que toca ao fim como ao meio e ao tempordquo249
Logo a boa deliberaccedilatildeo requer o tempo correto para ser feita de forma cuidadosa para a escolha do
meio correto mas sem procrastinaccedilatildeo
Observa-se que a deliberaccedilatildeo natildeo eacute conhecimento cientiacutefico (e0pisthmh) E tambeacutem natildeo eacute
mera opiniatildeo (doca)250 A epiacutesteme versa sobre o necessaacuterio e o inalteraacutevel A doacutexa eacute uma
afirmaccedilatildeo referente aos fatos enquanto a deliberaccedilatildeo ainda eacute uma anaacutelise Agraves vezes a opiniatildeo eacute
correta na interpretaccedilatildeo de um fato De qualquer modo ao falarmos que a deliberaccedilatildeo pressupotildee
uma anaacutelise dos fatos estaacute impliacutecito um raciociacutenio analiacutetico sobre uma fato particular
Eacute interessante observar que a bouleacute (boulh) na histoacuteria da Greacutecia Antiga significa o
ldquoconselhordquo reunido Era uma reuniatildeo de cidadatildeos em cada cidade-estado grega para deliberar
sobre assuntos puacuteblicos relativos agrave poacutelis Na eacutepoca homeacuterica era a reuniatildeo de um rei com seus
248 EacuteN VI 1142b 16-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109 Conferir tambeacutem EacuteE II 1226b 10-12 Eacutetica a Eudemo Op cit p 98 (E Bini 2015) ldquoNingueacutem delibera quanto ao fim o qual estaacute fixado para todosDelibera-se contudo sobre o que conduz a ele se isto ou aquilo conduz a ele e supondo estar decidido se isto ouaquilo como seraacute produzidordquo Cf Magna Moralia 1199a 5-9 The Works of Aristotle Magna Moralia EthicaEudemia De Virtutibus et Vitiis Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford ClarendonPress 1915 (sem paacutegina)249 EacuteN VI 1142b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109250 EacuteN VI 1142b 8-10 Ibidem p 109
84
conselheiros Eacute desta noccedilatildeo de ldquoconselhordquo que Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar Aristoacuteteles
utiliza o vocaacutebulo eubulia251 e a considera uma virtude intriacutenseca agrave prudecircncia como o Estagirita
Conforme exposto na Suma Teoloacutegica
Em sentido contraacuterio a eubulia como diz o Filoacutesofo lsquoeacute a retidatildeo na deliberaccedilatildeorsquoMas a reta razatildeo aperfeiccediloa a virtude Logo a eubulia eacute virtude Como jaacute foi dito eacuteda razatildeo da virtude humana tornar bom o ato humano Entre os demais atos eacuteproacuteprio do homem deliberar porque implica uma busca conduzida pela razatildeorelativamente agrave accedilatildeo no que consiste a vida humana pois a via especulativa estaacuteacima do homem segundo o Filoacutesofo Ora a eubulia requer a bondade dadeliberaccedilatildeo De fato esta palavra eacute formada de eu que significa bem e de bouleacuteque significa conselho ou deliberaccedilatildeo como se dissesse o ato de bem deliberar ouantes o que aconselha bem Eacute pois evidente que a eubulia eacute uma virtudehumana252
Face ao exposto a boa deliberaccedilatildeo consiste em buscar compreender a realidade com todas
as suas variaacuteveis Esta compreensatildeo tem como objetivo alcanccedilar o maior grau de exatidatildeo possiacutevel
para aumentar a probabilidade de realizar uma escolha correta dos meios para atingir o fim
determinado O homem prudente ao realizar uma boa deliberaccedilatildeo analisa o conjunto das
circunstacircncias sempre com vistas a um fim nobre A boa deliberaccedilatildeo seleciona os meios que podem
ser alcanccedilados pela accedilatildeo Portanto a euboulia eacute o primeiro passo racional para obter a virtude da
prudecircncia
A inteligecircncia (sunesij) eacute a segunda virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles Eacute definida
como uma capacidade de aprender algo rapidamente O homem detentor desta virtude eacute algueacutem que
consegue assimilar e entender de modo ceacutelere o que satildeo as coisas e as relaccedilotildees entre estas Por
isso o homem inteligente possui uma maior propensatildeo a julgar corretamente qualquer conjuntura
No contexto do saber praacutetico a inteligecircncia assemelha-se agrave perspicaacutecia porque versa sobre a
habilidade de compreender com presteza o mundo que nos cerca Logo um homem perspicaz eacute um
homem inteligente
No acircmbito da accedilatildeo esta capacidade de aprender eacute referente aos assuntos possiacuteveis de
deliberaccedilatildeo e por isso pode gerar diversas visotildees diferentes Natildeo se trata de um aprendizado que se
refere agraves ciecircncias ou agravequilo que eacute necessaacuterio e eterno Natildeo se refere ao saber teoacuterico Tambeacutem eacute
251 A boa deliberaccedilatildeo tambeacutem eacute chamada de ldquobom conselhordquo na tradiccedilatildeo cristatilde252 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 637Summa Theologiae II-II q 51 a1 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoSed contra est quod eubulia estrectitudo consilii ut philosophus dicit in VI Ethic Sed recta ratio perficit rationem virtutis Ergo eubulia est virtusRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est de ratione virtutis humanae est quod faciat actum hominis bonumInter ceteros autem actus hominis proprium est ei consiliari quia hoc importat quandam rationis inquisitionem circaagenda in quibus consistit vita humana nam vita speculativa est supra hominem ut dicitur in X Ethic Eubulia autemimportat bonitatem consilii dicitur enim ab eu quod est bonum et boule quod est consilium quasi bona consiliatiovel potius bene consiliativa Unde manifestum est quod eubulia est virtus humanardquo
85
distinta de uma mera opiniatildeo dado que a synesis eacute uma inteligecircncia voltada para os aspectos
praacuteticos Ou seja ela diz respeito ao ldquoterritoacuteriordquo da accedilatildeo Esta virtude eacute a inteligecircncia em um grau
elevado que permite um aprendizado dos elementos envolvidos nas circunstacircncias Este fato auxilia
um julgamento correto de cada situaccedilatildeo
A synesis possui uma uacutenica funccedilatildeo que eacute o ato de julgar Poreacutem natildeo pode ser confundida
com a virtude da prudecircncia Na visatildeo aristoteacutelica a virtude da prudecircncia possui a funccedilatildeo de
comandar a maneira como o homem agiraacute visto que discerne o certo e o errado em relaccedilatildeo aos
meios A inteligecircncia restringe-se apenas a julgar do melhor modo possiacutevel os elementos
relacionados a cada situaccedilatildeo Com a compreensatildeo destes elementos a prudecircncia determinaraacute qual a
accedilatildeo a ser realizada Eacute o que nos diz Aristoacuteteles
Com efeito a inteligecircncia (sunesij) nem versa sobre as coisas eternas e imutaacuteveisnem sobre toda e qualquer coisa que vem a ser mas apenas sobre aquelas quepodem tornar-se assunto de duacutevidas e deliberaccedilatildeo (bouleusaito) Portanto osseus objetos satildeo os mesmos que os da sabedoria praacutetica (fronhsij) masinteligecircncia e sabedoria praacutetica natildeo satildeo a mesma coisa Esta uacuteltima emite ordensvisto que o seu fim eacute o que se deve ou natildeo se deve fazer (ti gar dei= prattein h9mh to teloj au0th=j e0stin) a inteligecircncia pelo contraacuterio limita-se a julgar(kritikh) Inteligecircncia eacute o mesmo que perspicaacutecia (eu0sunesia) e os homensinteligentes (sunetoi) o mesmo que homens perspicazes (eu0sunetoi)253
Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a virtude da synesis diz que ela eacute um juiacutezo reto
das accedilotildees particulares algo que tambeacutem faz a prudecircncia Mas esta uacuteltima comanda as accedilotildees para
que sejam feitas de modo ordenado para o bem254 A inteligecircncia por ser apenas uma correto juiacutezo
dos elementos particulares pode ser usada para fins ruins (maus) A inteligecircncia diferencia-se da
boa deliberaccedilatildeo e do saber teoacuterico Um homem pode deliberar bem ou dominar uma determinada
ciecircncia especulativa poreacutem isso natildeo significa ser um homem inteligente Deste modo o Aquinate
considera que o homem inteligente possui um bom senso das situaccedilotildees porque apreende as coisas
como satildeo em si mesmas Vejamos na Suma Teoloacutegica
Respondo A synesis implica um juiacutezo reto natildeo nas coisas de ordem especulativamas nas accedilotildees particulares que satildeo tambeacutem objeto da prudecircncia Tambeacutem comrelaccedilatildeo a esta palavra se diz em grego que alguns satildeo syneti isto eacute sensatos oueusyneti quer dizer homens de bom senso Ao contraacuterio satildeo chamados asynetiinsensatos aos que satildeo privados desta virtude Ora a diversidade de virtudes devecorresponder agrave diferenccedila de atos que natildeo se reduzem agrave mesma causa Com efeito eacuteevidente que a bondade da deliberaccedilatildeo e a bondade de juiacutezo natildeo se reduzem agrave
253 EacuteN VI 1143a 5-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109254 Cf TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642Summa Theologiae II-II q 51 a 3
86
mesma causa porque muitos satildeo de boa deliberaccedilatildeo mas natildeo satildeo de bom sensoisto eacute dotados de um julgamento reto Na ordem especulativa alguns investigambem pelo fato de terem uma razatildeo capaz de discorrer sobre coisas diversas o queparece proceder das disposiccedilotildees da imaginaccedilatildeo que pode formar facilmentediversas representaccedilotildees imaginaacuterias e no entanto agraves vezes natildeo sabem julgar bempor deficiecircncia do intelecto o que procede sobretudo da maacute disposiccedilatildeo do sensocomum que natildeo julga bem Por tudo isso se necessita aleacutem da eubulia de outravirtude que julgue bem a qual se chama synesis255
Essa apreensatildeo eacute melhor feita por um homem de virtudes morais Os viacutecios dificultam e agraves
vezes impedem compreender as coisas particulares da maneira correta Tomaacutes de Aquino compara
este homem virtuoso e inteligente a um espelho que reflete perfeitamente as coisas como satildeo O
intelecto natildeo sofre distorccedilatildeo no momento de apreender o que satildeo as coisas em si Isso ocorre
porque as virtudes morais favorecem um juiacutezo correto sobre o que eacute o melhor a ser desejado pelo
homem Logo providenciam que o intelecto acerte no julgamento das coisas pois um homem
viciado deseja aquilo que eacute errado o que o faz interpretar as coisas conforme seus viacutecios Nos diz
Satildeo Tomaacutes na Suma Teoloacutegica
Quanto ao 1ordm portanto deve-se dizer que o juiacutezo reto consiste em que a potecircnciacognoscitiva apreenda as coisas tais como satildeo em si mesmas Isto se daacute quandoestaacute bem disposta como um espelho em boas condiccedilotildees reproduz as imagens doscorpos como satildeo em si mesmos Mas se for um espelho mal disposto as imagensaparecem distorcidas e disformes A boa disposiccedilatildeo da potecircncia cognoscitiva parareceber as coisas como satildeo em si mesmas proveacutem radicalmente da natureza equanto agrave sua perfeiccedilatildeo depende do exerciacutecio do dom ou da graccedila E isso pode sedar de dois modos diretamente por parte da proacutepria potecircncia cognoscitiva que natildeoestaacute imbuiacuteda de concepccedilotildees depravadas mas verdadeiras e retas tal eacute a funccedilatildeoproacutepria da synesis como virtude especial E indiretamente pela boa disposiccedilatildeo dapotecircncia apetitiva em virtude da qual o homem emite um juiacutezo reto sobre o que eacutedesejaacutevel E assim os haacutebitos das virtudes morais influem sobre um bomjulgamento virtuoso a respeito dos fins enquanto que a synesis se ocupa mais dosmeios Quanto ao 2ordm deve-se dizer que nos maus pode se encontrar um juiacutezo reto somenteno plano universal poreacutem com respeito agrave accedilatildeo singular seu juiacutezo eacute sempredefeituoso como acima foi dito256
255 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 640-641Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodsynesis importat iudicium rectum non quIbidem circa speculabilia sed circa particularia operabilia circa quae etiamest prudentia Unde secundum synesim dicuntur in Graeco aliqui syneti idest sensati vel eusyneti idest homines bonisensus sicut e contrario qui carent hac virtute dicuntur asyneti idest insensati Oportet autem quod secundumdifferentiam actuum qui non reducuntur in eandem causam sit etiam diversitas virtutum Manifestum est autem quodbonitas consilii et bonitas iudicii non reducuntur in eandem causam multi enim sunt bene consiliativi qui tamen nonsunt bene sensati quasi recte iudicantes Sicut etiam in speculativis aliqui sunt bene inquirentes propter hoc quodratio eorum prompta est ad discurrendum per diversa quod videtur provenire ex dispositione imaginativae virtutisquae de facili potest formare diversa phantasmata et tamen huiusmodi quandoque non sunt boni iudicii quod estpropter defectum intellectus qui maxime contingit ex mala dispositione communis sensus non bene iudicantis Et ideooportet praeter eubuliam esse aliam virtutem quae est bene iudicativa Et haec dicitur synesisrdquo 256 Ibidem p 640-641 Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoAdprimum ergo dicendum quod rectum iudicium in hoc consistit quod vis cognoscitiva apprehendat rem aliquam
87
Aristoacuteteles natildeo cita nenhum exemplo ilustrativo sobre a synesis limita-se somente em
descrever suas caracteriacutesticas Neste sentido pensamos ser oportuno fazecirc-lo para facilitar a
compreensatildeo desta virtude intelectual menor A inteligecircncia permite o ceacutelere aprendizado sobre os
elementos envolvidos em uma dada situaccedilatildeo Isto favorece o discernimento prudencial porque haacute
um conhecimento mais acurado das particularidades do caso Assim imaginemos uma conjuntura
do paiacutes no qual exista uma crise generalizada no transporte de insumos devida agrave falta de
abastecimento de combustiacuteveis Este eacute o panorama Para emitir um juiacutezo correto eacute indispensaacutevel
entender cada elemento que compotildeem a situaccedilatildeo Cada elemento deve ser entendido no seu
funcionamento proacuteprio e na sua relaccedilatildeo com os outros O homem prudente sendo possuidor da
synesis estudaraacute e aprenderaacute os vaacuterios elementos na circunstacircncia descrita por exemplo a
paralisaccedilatildeo dos transportadores e seu papel na logiacutestica de bens materiais o refinamento e
comercializaccedilatildeo dos derivados do petroacuteleo etc A compreensatildeo de cada parte que promove a
compreensatildeo do todo Logo para emitir um parecer correto ou seja sensato sobre a conjuntura e
decidir a melhor accedilatildeo a ser realizada o prudente utiliza a inteligecircncia para aprender os elementos
particulares e em que consiste cada um deles
Em suma a synesis eacute a capacidade de resolver situaccedilotildees novas de maneira ceacutelere e com
sucesso adaptando-se a elas por meio do conhecimento adquirido Esta virtude permite que se faccedila
um bom juiacutezo das coisas Deste modo o homem adquire um bom senso que interpreta com
razoaacutevel grau de acerto o que ocorre em cada caso
A ponderaccedilatildeo (gnwmn) eacute a terceira virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles De acordo
com o filoacutesofo de Estagira eacute definida como ldquoO que se chama discernimento e em virtude do qual
se diz que os homens satildeo lsquojuiacutezes humanosrsquo e que lsquopossuem discernimentorsquo eacute a reta discriminaccedilatildeo
do equumlitativordquo257 O conceito de equidade significa julgar de uma foma justa uma determinada
demanda Para que este julgamento equitativo ocorra eacute necessaacuterio que o julgador possua a virtude
secundum quod in se est Quod quidem provenit ex recta dispositione virtutis apprehensivae sicut in speculo si fueritbene dispositum imprimuntur formae corporum secundum quod sunt si vero fuerit speculum male dispositumapparent ibi imagines distortae et prave se habentes Quod autem virtus cognoscitiva sit bene disposita ad recipiendumres secundum quod sunt contingit quidem radicaliter ex natura consummative autem ex exercitio vel ex muneregratiae Et hoc dupliciter Uno modo directe ex parte ipsius cognoscitivae virtutis puta quia non est imbuta pravisconceptionibus sed veris et rectis et hoc pertinet ad synesim secundum quod est specialis virtus Alio modo indirecteex bona dispositione appetitivae virtutis ex qua sequitur quod homo bene iudicet de appetibilibus Et sic bonum virtutisiudicium consequitur habitus virtutum moralium sed circa fines synesis autem est magis circa ea quae sunt ad finemAd secundum dicendum quod in malis potest quidem iudicium rectum esse in universali sed in particulari agibilisemper eorum iudicium corrumpitur ut supra habitum estrdquo Na presente citaccedilatildeo Satildeo Tomaacutes estaacute discutindo na questatildeo51 artigo 3 (1) se a synesis natildeo eacute virtude e (2) se os homens maus possuem ou natildeo a synesis257 EacuteN VI 1143a 19-21 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Conforme apontamos na nota derodapeacute nordm 245 a ediccedilatildeo em portuguecircs que usamos da EacuteN usa a palavra ldquodiscernimentordquo para traduzir o gnome (LVallandro e G Bornheim 1987 p 110) No presente trabalho preferimos chamar de ldquoponderaccedilatildeordquo pelos motivosexpostos na referida nota
88
moral da justiccedila O bom julgador eacute aquele que tem consideraccedilatildeo pelos outros Ou seja ele pensa nos
outros ao ponderar o que eacute mais justo para todos Em outros termos a gnome nasce na estima que o
julgador tem pelas outras pessoas Nos mostra Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco
Mostra-o o fato de dizermos que o homem equumlitativo (gnwmhn) eacute acima de tudoum homem de discernimento humano (suggnwmonaj) e de (sic) identificarmos aequidade com o discernimento humano a respeito de certos fatos E essediscernimento eacute aquele que discrimina corretamente o que eacute equitativo sendo odiscernimento correto (e0pieikou~~j o0rqh) aquele que julga com a verdade (o0rqh d h9rsquo e1mpeiroj ou0k e1stintou~~ a0lhqou~~j)258
Nota-se a vital importacircncia das virtudes morais para que exista a gnome Sem a solidez das
virtudes no caraacuteter do homem dificilmente poderaacute haver um julgamento justo quando a equidade
se fizer necessaacuteria A gnome e as virtudes morais satildeo imprescindiacuteveis para o exerciacutecio da justiccedila em
sociedade Deste modo natildeo existe nenhuma poacutelis ou naccedilatildeo que continue agregada de modo
civilizado sem a equidade
A Magna Moralia descreve que a esfera em que atua a gnome eacute aquela dos direitos legais
Onde as leis natildeo satildeo claras a equidade deve aparecer para esclarecer o que deve ser feito uma vez
que eacute impossiacutevel os legisladores preverem todos os tipos de situaccedilotildees em detalhes Logo cabe ao
bom julgador (eu0gnwmwn) clarear as questotildees que natildeo satildeo resolvidas prontamente pelas leis 259
Neste sentido a gnome eacute uma virtude intelectual que auxilia no conviacutevio muacutetuo Ela
promove a harmonia nas relaccedilotildees cotidianas entre os cidadatildeos Mas eacute indispensaacutevel para
governantes legisladores e magistrados haja vista o grande nuacutemero de pessoas que suas decisotildees
afetam260 Os governantes devem praticar este reto juiacutezo equitativo para que sua administraccedilatildeo
considere as necessidades de todos os cidadatildeos e natildeo apenas de uma parcela deles O juiacutezo
equitativo eacute ainda mais requisitado quando as leis satildeo inexistentes obtusas ou natildeo se aplicam ao
caso demandado Nesta situaccedilatildeo exige-se que o magistrado possua uma conduta moral iacutentegra para
que possa ponderar de forma correta e aplicar a justiccedila (dikh) Um magistrado que tenha viacutecios de
caraacuteter incorreraacute em dois efeitos maleacuteficos O primeiro eacute que natildeo julgaraacute de modo equitativo Por
ter viacutecios corruptiacuteveis natildeo poderaacute estabelecer a dike porque tenderaacute a proteger um dos querelantes
258 EacuteN VI 1143a 22-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 A suggnome eacute a qualidade do homemaltruiacutesta indulgente Este homem pondera as situaccedilotildees visando o que eacute o mais justo para todos os envolvidos nasituaccedilatildeo Deste modo ele profere um reto julgamento 259 Cf Magna Moralia 1198b 24-34 The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et VitiisOp Cit sem paacutegina260 Devemos recordar que na filosofia moral aristoteacutelica o objetivo principal dos liacutederes da poacutelis eacute promover aeudaimonia na poacutelis Em vista disto a virtude intelectual da gnome tem uma fundamental importacircncia Cf EacuteN VI1142a 9-10 Poliacutetica I 1252a 5 1323b 22-35 1324a 5-35
89
em detrimento do outro O segundo eacute que o magistrado ao atingir o niacutevel de corrupccedilatildeo moral seus
viacutecios o impediratildeo de ponderar corretamente a querela Em vista disto no momento de proferir sua
sentenccedila inadvertidamente ao aplicar a lei o faraacute de modo que natildeo atende ao que eacute mais justo na
situaccedilatildeo
O juiacutezo equitativo eacute necessaacuterio para os legisladores porque sua missatildeo eacute promulgar leis
justas Estas leis auxiliam que a poacutelis atinja a vida feliz e estimulam os cidadatildeos a serem virtuosos
Os legisladores corrompidos por viacutecios de caraacuteter natildeo possuem condiccedilotildees para estabelecer uma
sociedade justa Ao contraacuterio as leis seratildeo promulgadas para fins errocircneos e incentivaratildeo os viacutecios
nos cidadatildeos O bom legislador possui a capacidade de ponderar de forma equitativa porque eacute
detentor de um caraacuteter virtuoso moral e intelectual Por conseguinte faraacute leis que preconizem as
relaccedilotildees justas entre os cidadatildeos
Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a gnome argumenta que o juiacutezo equitativo eacute
aplicado nos casos insoacutelitos nos quais as regras comuns natildeo podem ser usadas como padratildeo de
referecircncia Satildeo casos de exceccedilatildeo ou extraordinaacuterios nos quais usar o padratildeo comum de julgamento
faria o julgador cometer um erro de juiacutezo e consequentemente uma injusticcedila Satildeo nestas situaccedilotildees
que o bom julgador pondera acertadamente sobre o mais justo a ser feito O Doutor Angeacutelico
assinala a diferenccedila entre synesis e gnome A primeira compreende as regras comuns que orientam
as accedilotildees nos casos ordinaacuterios e frequentes A segunda julga as situaccedilotildees excepcionais estas natildeo
podem ser solucionadas de acordo com o normativo regular e costumeiro Em vista disto a gnome
julga o que eacute mais justo a partir dos princiacutepios mais elevados que os aplicados nos casos ordinaacuterios
Conforme descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] Os haacutebitos cognoscitivos distinguem-se segundo princiacutepios mais ou menoselevados como a sabedoria considera os princiacutepios mais elevados no acircmbitoespeculativo do que a ciecircncia Por isso se distinguem entre si O mesmo deve sedar nas accedilotildees Eacute evidente que as coisas que estatildeo fora da ordem de um princiacutepio oude uma causa inferior cai agraves vezes sob a ordem de um princiacutepio mais elevado [hellip]Acontece agraves vezes haver a necessidade de fazer algo agrave margem das regras comunsda accedilatildeo Por exemplo natildeo devolver um depoacutesito ao inimigo da paacutetria e outrascoisas semelhantes Por isso se deve julgar a respeito desses casos segundoprinciacutepios mais elevados do que as regras comuns segundo as quais a synesisjulga E segundo estes princiacutepios mais elevados exige-se tambeacutem uma potecircnciajustificativa mais elevada esta chama-se gnome e ela implica certa perspicaacutecia nojulgamento[hellip] portanto deve-se dizer que a synesis julga bem todos os casos que caem sob asregras comuns Mas outras accedilotildees devem ser julgadas agrave margem das regras comunscomo se acabou de dizer [hellip] deve-se dizer que considerar tudo o que pode suceder agrave margem do cursonormal da natureza pertence somente agrave providecircncia divina mas entre os homens o
90
que for mais perspicaz pode conhecer por sua razatildeo muitas delas A isso se ordenaa gnome que implica certa perspicaacutecia no julgamento 261
Observa-se que as fronteiras entre a synesis e a gnome nem sempre satildeo muitos distinguiacuteveis
Ambas analisam as particularidades de cada situaccedilatildeo Mas se as funccedilotildees de cada uma destas
virtudes especiais nem sempre satildeo niacutetidas deve-se ao fato de que elas operam juntas e estatildeo
atreladas uma agrave outra O bom juiz somente consegue ponderar bem e promover a equidade em cada
situaccedilatildeo se conseguir ser inteligente o suficiente para aprender sobre os elementos particulares
envolvidos em cada circunstacircncia A partir daiacute consegue extrair regras comuns Justamente por
apreender as regras comuns com base nos fatos o homem prudente pode sopesar de modo correto
Diante disto as situaccedilotildees excepcionais podem ser julgadas agrave luz de princiacutepios mais elevados que as
regras comuns podem fazecirc-lo
Apoacutes a descriccedilatildeo das trecircs virtudes intelectuais menores e como elas interagem entre si para a
realizaccedilatildeo de uma boa decisatildeo pelo homem prudente julgamos oportuno descrever brevemente
sobre a razatildeo intuitiva (nou=j) Aristoacuteteles faz referecircncia sobre esta operaccedilatildeo do intelecto no mesmo
Livro VI no qual disserta sobre a prudecircncia e as demais virtudes menores Dito isto passamos ao
proacuteximo toacutepico acerca do noucircs (nou=j)
36 A razatildeo intuitiva (nou=j) e a prudecircncia
O noucircs (nou=j)262complementa as virtudes intelectuais No campo do saber teoacuterico eacute
conceituado como a capacidade que o intelecto possui de apreender os primeiros princiacutepios que
261 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642-643Summa Theologiae II-II q 51 a 4 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodhabitus cognoscitivi distinguuntur secundum altiora vel inferiora principia sicut sapientia in speculativis altioraprincipia considerat quam scientia et ideo ab ea distinguitur Et ita etiam oportet esse in activis Manifestum est autemquod illa quae sunt praeter ordinem inferioris principii sive causae reducuntur quandoque in ordinem altioris principiisicut monstruosi partus animalium sunt praeter ordinem virtutis activae in semine tamen cadunt sub ordine altiorisprincipii scilicet caelestis corporis vel ulterius providentiae divinae Unde ille qui consideraret virtutem activam insemine non posset iudicium certum ferre de huiusmodi monstris de quibus tamen potest iudicari secundumconsiderationem divinae providentiae Contingit autem quandoque aliquid esse faciendum praeter communes regulasagendorum puta cum impugnatori patriae non est depositum reddendum vel aliquid aliud huiusmodi Et ideo oportetde huiusmodi iudicare secundum aliqua altiora principia quam sint regulae communes secundum quas iudicat synesisEt secundum illa altiora principia exigitur altior virtus iudicativa quae vocatur gnome quae importat quandamperspicacitatem iudicii [] dicendum quod synesis est vere iudicativa de omnibus quae secundum communes regulas fiunt Sed praetercommunes regulas sunt quaedam alia diiudicanda ut iam dictum est [] dicendum quod omnia illa quae praeter communem cursum contingere possunt considerare pertinet ad solamprovidentiam divinam sed inter homines ille qui est magis perspicax potest plura horum sua ratione diiudicare Et adhoc pertinet gnome quae importat quandam perspicacitatem iudiciirdquo 262 Jaacute apontamos a dificuldade de traduccedilatildeo do termo grego noucircs (cf nota de rodapeacute nordm 115) Optamos pelo termoldquointuiccedilatildeordquo ou ldquorazatildeo intuitivardquo por julgarmos serem mais adequados para expressar o tipo de operaccedilatildeo intelectualdescrita por Aristoacuteteles
91
servem de fundamento para as ciecircncias Ele capta aquilo que natildeo eacute possiacutevel ser demonstrado por
meio de deduccedilotildees ou induccedilotildees Contudo o noucircs tambeacutem atua no campo do saber praacutetico Neste
aspecto o noucircs capta os fatos particulares que variam a cada situaccedilatildeo A partir dos particulares
realiza uma induccedilatildeo para chegar as premissas universais Por consequecircncia o noucircs auxilia o homem
prudente a perceber de modo imediato a melhor accedilatildeo a ser realizada sob quaisquer circunstacircncias
De acordo com Aristoacuteteles
A razatildeo intuitiva (nou=j) por sua vez ocupa-se com coisas imediatas em ambos ossentidos pois tanto os primeiros termos como os uacuteltimos satildeo objetos da razatildeointuitiva e natildeo do raciociacutenio e a razatildeo intuitiva pressuposta pelas demonstraccedilotildeesapreende os termos primeiros e imutaacuteveis enquanto a razatildeo intuitiva requerida peloraciociacutenio praacutetico apreende o fato uacuteltimo e variaacutevel isto eacute a premissa menor Eesses fatos variaacuteveis servem como pontos de partida para a apreensatildeo do fim[conclusatildeo do silogismo] visto que chegamos aos universais (kaqolou) pelosparticulares eacute mister por conseguinte que tenhamos percepccedilatildeo destes uacuteltimos etal percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva (toutwn ou]n e1xein dei= ai1sqhsin au3th d e0stirsquo e1mpeiroj ou0k e1stinnou=j)263
O noucircs natildeo eacute uma deliberaccedilatildeo nem opiniatildeo nem ciecircncia Podemos caracterizaacute-lo como uma
espeacutecie de ldquogolpe de vistardquo Eacute uma percepccedilatildeo imediata de tudo o que envolve uma situaccedilatildeo
qualquer e que ocorre sem a necessidade da deliberaccedilatildeo Pelo menos eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo
tatildeo veloz que mal pode ser definida como tal Eacute o homem que diante de uma ocorrecircncia sabe
rapidamente qual a accedilatildeo a ser realizada e com boas chances de acerto O comentador Pierre
Aubenque descreve esta atuaccedilatildeo do noucircs como um resultado abrupto que ocorre ao final da
reflexatildeo
Se se entende por nou~~j a apreensatildeo imediata dos princiacutepios da demonstraccedilatildeo tantoa prudecircncia quanto a sabedoria se encontram igualmente distantes disso emborapor razotildees diferentes a sabedoria porque eacute feita de demonstraccedilotildees a prudecircnciaporque natildeo concerne nem ao demonstraacutevel nem a seu princiacutepio Mas se se entendepor nou~~j a apreensatildeo imediata das ldquocoisas uacuteltimas e particularesrdquo264 seraacute precisoatribuir tal intuiccedilatildeo ao homem prudente ao mesmo tempo homem de pensamento eaccedilatildeo herdeiro dos heroacuteis da tradiccedilatildeo o phronimos une nele a lenta reflexatildeo e aimediatez do golpe de vista que natildeo eacute senatildeo a brusca eclosatildeo da primeira ele unea minuacutecia e a inspiraccedilatildeo o espiacuterito de previsatildeo e o espiacuterito de decisatildeo265
Este senso imediato sobre as circunstacircncias eacute resultado da atuaccedilatildeo conjunta das trecircs virtudes
intelectuais menores somada agrave empeiria Por isto o homem prudente eacute algueacutem que possui e exerce
263 EacuteN VI 1143a 35 ndash 1143b 7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110264 Pierre Aubenque assinala esta passagem na EacuteN VI 1143a 28265 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 237-238
92
muito bem a euboulia a synesis a gnome A velocidade de saber o que fazer em certas situaccedilotildees eacute
fruto da experiecircncia adquirida com o passar do tempo que aperfeiccediloa as trecircs virtudes intelectuais
menores Afinal no decorrer do tempo quantas circunstacircncias foram deliberadas Quantos casos
foram julgados Quantas escolhas foram feitas dia apoacutes dia Devido a isto quando comparado a
outros homens o phronimos sabe do modo mais raacutepido e certeiro entender o que se passa a sua
volta e realizar as accedilotildees mais corretas266
Devido agrave empeiria e ao tempo que ajudam a desenvolver as virtudes intelectuais menores
Aristoacuteteles elogia os homens com mais idade e maior experiecircncia A sabedoria destes expressa em
suas opiniotildees maacuteximas e proveacuterbios merecem tanto respeito e atenccedilatildeo quanto a devida a
renomados cientistas ou especialistas em alguma ciecircncia Os homens prudentes satildeo os saacutebios os
ldquoespecialistasrdquo na arte de viver Conforme nos mostra Aristoacuteteles
Eis aiacute por que tais disposiccedilotildees [euboulia synesis noucircs] satildeo consideradas comodotes naturais e enquanto de ningueacutem se diz que eacute filoacutesofo (sofoj) por natureza amuitos se atribui um discernimento inteligecircncia e uma razatildeo intuitiva inatos (gnwmhn d e1xein kai sunesin kai nou=nrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] dizendo que uma determinada idade trazconsigo a razatildeo intuitiva e o discernimento isto implica que a causa eacute natural[Donde se segue que a razatildeo intuitiva eacute tanto um comeccedilo como um fim (a0rxh kaiteloj nou=j) pois as demonstraccedilotildees partem deste e sobre estes versam] Por issodevemos acatar natildeo menos que as demonstraccedilotildees os aforismos e opiniotildees(docaij) natildeo demonstradas (a0podeiceij) de pessoas experientes (e0mpeirwn) emais velhas assim como das pessoas dotadas de sabedoria praacutetica Com efeitoessas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olho(e0mpeiriaj o1mma o9rw~~sin o0rqw~~j)267
Vimos como o aperfeiccediloamento das virtudes intelectuais menores eacute fundamental para a
aquisiccedilatildeo da prudecircncia O entrelaccedilamento destas trecircs capacidades do intelecto permite uma
interpretaccedilatildeo correta dos fatos Esta por sua vez auxilia para que haja uma boa anaacutelise de
conjuntura ou seja condizente com a realidade dos fatos No que lhe concerne esta averiguaccedilatildeo
certeira favorece a boa deliberaccedilatildeo Logo o homem prudente eacute aquele que realiza um bom exame
das circunstacircncias porque conhece os fatos particulares e os fins aos quais se destinam agrave accedilatildeo
humana
Apoacutes o exame das partes integrantes da prudecircncia resta uma questatildeo a ser tratada como a
prudecircncia nos conduz agrave eudaimonia A elucidaccedilatildeo desta pergunta estaacute exposta ao longo de toda a
266 Recordamos que uma accedilatildeo correta precisa ser moralmente nobre e eficaz para atingir o resultado previsto 267 EacuteN VI 1143b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Referente a expressatildeo ldquo[hellip] Comefeito essas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olhordquo Acreditamos que seja melhorcompreensiacutevel transcrevendo-a da seguinte forma ldquo[hellip] pois a experiecircncia lhes transmitiu uma visatildeo com a qualenxergam as coisas com acertordquo (E Bini 2013 p 195) Outra traduccedilatildeo [hellip] for experience has given them an eye forthings and so they see correctlyrdquo (H Rackham 1996 p 157)
93
explanaccedilatildeo feita Mas pensamos ser interessante esclarecer melhor a resposta Dito isto passemos
ao proacuteximo toacutepico
37 Prudecircncia virtudes morais e eudaimonia
No final do livro VI268 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles responde a alguns questionamentos
especiacuteficos sobre a prudecircncia Provavelmente seriam questotildees feitas por homens natildeo afeiccediloados agraves
reflexotildees mais profundas sobre a sophia e a phronecircsis De modo geral as perguntas versam sobre a
utilidade das virtudes intelectuais Estes questionamentos possuem o seu valor porque vatildeo no
acircmago de um aspecto que natildeo pode ser esquecido no estudo sobre o saber teoacuterico e o saber praacutetico
Estes saberes satildeo apenas um mero exerciacutecio intelectual sem viacutenculo com o cotidiano do homem
comum Apenas seriam uma espeacutecie de jogo para exercitar o raciociacutenio Algo sem importacircncia para
a construccedilatildeo de uma vida feliz Naturalmente que natildeo A sophia e a phronecircsis satildeo fundamentais
para a felicidade Eacute o que o Estagirita tentaraacute demonstrar
O filoacutesofo de Estagira comeccedila se interrogando acerca do aparente fato de que a sophia natildeo
pode auxiliar na busca da eudaimonia porque natildeo diz respeito agraves coisas contingenciais nem agraves que
foram geradas Apenas trata das coisas eternas e necessaacuterias Ao contraacuterio do saber teoacuterico a
phronecircsis versa sobre aquilo que nos faz agir de modo justo e nobre Entretanto uma vez que ser
justo e nobre satildeo qualidades do homem bom natildeo faz sentido desenvolver estes dois saberes
porque em tese o homem virtuoso jaacute possui qualidades boas E para um homem que natildeo eacute
virtuoso natildeo faria nenhuma diferenccedila basta ele viver sem prudecircncia ou acatar os conselhos dos
prudentes Entatildeo qual a necessidade de aprender e aprimorar a sophia e a phronecircsis Citamos o
texto
Mas algueacutem poderia perguntar de que servem essas faculdades da mente jaacute que (1)a sabedoria filosoacutefica (sofia) natildeo considera nenhuma das coisas que tornam umhomem feliz (pois natildeo diz respeito agraves coisas que se geram) e quanto agrave sabedoriapraacutetica embora trate dessas coisas para que necessitamos dela A sabedoriapraacutetica eacute a disposiccedilatildeo da mente que se ocupa com as coisas justas nobres e boaspara o homem (fronesij e0stin peri ta dikaia kai kala kai a0gaqaa0nqrwpw) mas essas satildeo coisas cuja praacutetica eacute caracteriacutestica de um homem bom(agaqou= e0stin a0ndroj) e natildeo nos tornamos mais capazes de agir pelo fato deconhececirc-las se as virtudes satildeo disposiccedilotildees do caraacuteter (e3ceij ai9 a0retai ei0sin)[hellip]269
268 Cf EacuteN VI 1143b 20 - 1144a 35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111-112 EacuteE I 1143b 20 -1144a 35 Eacutetica a Eudemo Op cit p 198-200269 EacuteN VI 1143b 18-28 Ibidem p 111
94
Decorrente do questionamento anterior surge outra questatildeo que Aristoacuteteles se defronta a
saber se a phronecircsis seria superior agrave sophia para construir uma vida feliz Ele faz uma comparaccedilatildeo
com a medicina e a sauacutede Pode-se pensar que natildeo necessariamente precisamos dominar a medicina
para termos sauacutede Basta praticar atos saudaacuteveis e teremos a sauacutede Poreacutem ao seguirmos esta linha
de raciociacutenio haacute uma estranheza a phronecircsis torna-se superior agrave sophia Ou seja a sabedoria
praacutetica que se refere aos meios torna-se mais importante que a sabedoria teoacuterica que compreende
as coisas mais elevadas Logo como a prudecircncia seria superior e mais importante que a sabedoria
teoacuterica De acordo com Aristoacuteteles
Mas (2) se dissermos que um homem deve possuir sabedoria praacutetica natildeo paraconhecer as verdades morais mas para tornar-se bom a sabedoria praacutetica nenhumautilidade teraacute para os que jaacute satildeo bons e por outro lado de nada serve ela para osque natildeo possuem virtude Com efeito nenhuma diferenccedila faz que eles proacutepriostenham sabedoria praacutetica ou que obedeccedilam (peiqesqai) a outros que a tecircm e seriasuficiente fazer o que costumamos fazer com respeito agrave sauacutede (u9gieian) emboradesejemos gozar sauacutede natildeo nos dispomos por isso a aprender a arte da medicina(3) Por outro pareceria estranho que a sabedoria praacutetica sendo inferior agrave filosoacutefica(sofiaj) tivesse autoridade (kuriwtera) sobre ela como parece implicar o fatode que a arte que produz uma coisa qualquer exerce o mando e o governorelativamente a essa coisa270
A resposta eacute que a sophia e a phronecircsis por serem virtudes correspondem agrave excelecircncia das
respectivas partes intelectuais da alma Elas satildeo o aacutepice das operaccedilotildees do intelecto que atuam nos
seus campos especiacuteficos a teoria e a accedilatildeo Portanto por serem a perfeiccedilatildeo daquilo que existe de
melhor em noacutes mesmos ndash a razatildeo ndash elas devem ser almejadas por si proacuteprias mesmo que
aparentemente natildeo produzam nenhum tipo de resultado
O detalhe eacute que as virtudes intelectuais e morais produzem efeitos reais Elas resultam na
eudaimonia Ao usar a razatildeo de maneira sublime o homem se torna mais feliz E quanto a
phronecircsis e as virtudes morais A prudecircncia e a virtude moral atuam juntas para que o homem
cumpra plenamente sua funccedilatildeo Ao cumpri-la o homem eacute feliz A prudecircncia garante a reta escolha
dos meios A virtude moral assegura a retidatildeo dos fins nobres pelos quais o homem orienta a sua
vida Portanto a conquista e o aprimoramento das virtudes intelectuais e morais satildeo indispensaacuteveis
para a eudaimonia Conforme nos expotildee Aristoacuteteles
270 EacuteN VI 1143b 29-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111
95
(1)Antes de tudo diremos que essas disposiccedilotildees de caraacuteter devem ser dignas deescolha porque satildeo as virtudes das duas partes da alma respectivamente e o seriamainda que nenhuma delas produzisse o que quer fosse (2) Em segundo lugar elasde fato produzem alguma coisa ndash natildeo poreacutem como a arte meacutedica produz sauacutedemas como a sauacutede (sic) produz sauacutede Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produzfelicidade (sofia eu0daimonian) porque sendo ela uma parte da virtude inteira [davirtude como um todo] (o3lhj a0reth=j) torna um homem feliz pelo fato de estar nasua posse e atualizar-se (e0nergei=n eu0daimona)271
A prudecircncia eacute relevante para tornar os homens melhores Certamente que sim Porque a
accedilatildeo virtuosa eacute resultado de uma escolha consciente do homem Os fins e os meios devem ser
corretos Somente quem for prudente realiza a correta escolha dos meios para alcanccedilar o fim
escolhido Unicamente opta pelos fins corretos quem for moralmente virtuoso O homem prudente
reuacutene em si todas as virtudes morais Desta maneira o Supremo Bem (eudaimonia) apenas pode ser
ldquovisualizadordquo pelo homem virtuoso e natildeo por aquele que tem viacutecios (kakoi) pois estes uacuteltimos
pervertem a visatildeo correta do que eacute o bem para o homem e dificultam a sua escolha De acordo com
Aristoacuteteles
(3) Por outro lado a obra (e1rgon) de um homem soacute eacute perfeita (a0potelei=tai)quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica (fponesij) e com a virtude moral(h0qikhn a0rethn) esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito (proairesin o0rqhnpoiei= h9 a0reth) aquela com que escolhamos os devidos meios [hellip] Assim comodizemos que algumas pessoas que praticam atos justos natildeo satildeo necessariamentejustas por isso ndash referimo-nos agraves que praticam os atos prescritos pela lei querinvoluntariamente quer devido agrave ignoracircncia ou por alguma outra razatildeo mas natildeo nointeresse dos proacuteprios atos embora seja certo que tais pessoas fazem o que deveme todas as coisas que o homem bem (sic) deve fazer - parece que do mesmo modopara algueacutem ser bom eacute preciso encontrar-se em determinada disposiccedilatildeo quandopratica cada um desses atos numa palavra eacute preciso praticaacute-los em resultado deuma escolha e no interesse dos proacuteprios atos 272
Assim a resposta agrave pergunta inicial do porque desenvolver as virtudes intelectuais e morais
para ser feliz pode ser respondida de modo satisfatoacuterio Eacute a consolidaccedilatildeo da virtude intelectual da
prudecircncia e das virtudes morais que o fazem se tornar um phronimos Deste modo ele consegue
discernir o bem em qualquer situaccedilatildeo e escolher os meios adequados para atingiacute-lo
271 EacuteN VI 1144a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111 Na expressatildeo ldquo[hellip] mas como a sauacutedeproduz sauacutederdquo entendemos que a ideia que se quer transmitir eacute mais compreensiacutevel na traduccedilatildeo de Edson Bini ldquo[hellip]mas naquele segundo o qual o sadio eacute a causa da sauacutederdquo (E Bini 2013 p 196) Tambeacutem pode ser entendido como oldquosaudaacutevelrdquo em vez de o ldquosadiordquo272 EacuteN VI 1144a 9-22 Ibidem p 111-112
96
CONCLUSAtildeO
Nas consideraccedilotildees finais deste estudo sobre a phronecircsis retomamos brevemente o caminho
percorrido Como fio condutor trata-se de compreender no que consiste a virtude intelectual da
prudecircncia e como esta auxilia na obtenccedilatildeo da eudaimonia A Eacutetica a Nicocircmaco eacute um tratado sobre
as virtudes e a felicidade Nesta obra o objetivo de Aristoacuteteles eacute indicar o que eacute a verdadeira vida
feliz e traccedilar um itineraacuterio para alcanccedilaacute-la ou melhor construiacute-la A vida feliz natildeo eacute fruto do acaso
mas eacute resultado de uma escolha baseada nas virtudes E se eacute uma escolha o homem deve estar
consciente desta ldquoescolha de vidardquo e arcar com as responsabilidades que esta acarreta Se a
felicidade consiste em parte em tomar boas decisotildees a razatildeo praacutetica deve atuar A virtude
intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia da razatildeo praacutetica no que se refere ao aspecto decisoacuterio Do
mesmo modo que um construtor que conhece o que deve fazer para construir uma casa e escolhe os
melhores meios para fazecirc-la certamente a construiraacute da forma correta Ele atingiu a meta
determinada que eacute a proacutepria casa Assim tambeacutem eacute a construccedilatildeo de uma vida feliz Logo quanto
mais o homem se exercitar na virtude intelectual da prudecircncia melhores seratildeo suas decisotildees o que
aumentaraacute as suas chances de ter uma vida feliz
Eacute importante compreender como o Estagirita descreve a relaccedilatildeo entre os bens e os fins ateacute
chegar ao conceito de Supremo Bem que eacute a proacutepria felicidade Uma vez que o ser humano possui
uma funccedilatildeo proacutepria caraterizada pela racionalidade satildeo as virtudes morais que promovem o
domiacutenio dos desejos e permitem que o indiviacuteduo siga os ditames da razatildeo Isso significa que existe
uma interaccedilatildeo entre a virtude intelectual da prudecircncia e as virtudes morais Para que a prudecircncia
apareccedila eacute necessaacuterio que as virtudes morais tambeacutem se desenvolvam Por isto a aquisiccedilatildeo das
virtudes morais eacute imprescindiacutevel para que o homem atinja a excelecircncia moral e conquiste a
plenitude de vida Entretanto para que haja o florescimento dessas virtudes e sua consolidaccedilatildeo no
homem virtuoso a prudecircncia precisa atuar Neste contexto a phronecircsis delimita o paracircmetro
correto para que o homem possa exercer uma accedilatildeo virtuosa dentro das circunstacircncias mutaacuteveis com
as quais se depara constantemente Esta virtude intelectual aplica-se no domiacutenio do contingente e
natildeo trata das coisas que nunca se alteram Seu acircmbito de aplicaccedilatildeo eacute o mundo das atividades
humanas pois eacute a prudecircncia que sopesa e julga as situaccedilotildees Assim a prudecircncia orienta o indiviacuteduo
a perceber os melhores meios para atingir os fins escolhidos E principalmente permite escolher os
meios para alcanccedilar o fim mais elevado de todos que eacute a proacutepria eudaimonia Logo esta virtude
intelectual possui uma funccedilatildeo basilar para que o homem se torne virtuoso e obtenha a felicidade
O motivo de desenvolver as virtudes intelectuais e morais para obter uma vida feliz pode ser
compreendido de modo clariacutessimo A necessidade de desenvolvecirc-las reside na proacutepria natureza
97
humana O ser humano eacute dotado de racionalidade A razatildeo eacute a mais sublime parte de sua alma Ela
permite que cumpramos nossa funccedilatildeo proacutepria plenamente Por isto quanto mais exercitamos a
razatildeo mais aprimoramos as virtudes intelectuais Em relaccedilatildeo agraves virtudes morais a praacutetica habitual
acarreta um controle maior dos nossos desejos Esse aperfeiccediloamento intelectual nos torna cada vez
mais felizes Primeiro pelo proacuteprio ato de raciocinar que eacute uma atividade que causa um prazer
nobre Segundo porque a sophia auxilia na contemplaccedilatildeo da beleza proveniente daquilo que eacute
eterno e por isto completamente estaacutevel A phronecircsis porque sendo o saber da boa decisatildeo ajuda
a vivermos em mundo instaacutevel e por consequecircncia incerto A prudecircncia ao ser aprendida e
exercitada torna o homem mais confiante em si proacuteprio pois desenvolve a capacidade de lidar com
as contingecircncias da vida e agir da maneira mais correta diante destas Portanto saber decidir bem
maximiza as chances de construir uma vida feliz porque os ldquoventos do acasordquo dificilmente
promovem a felicidade humana
Na formaccedilatildeo moral do homem o prazer possui um papel de muita importacircncia pois eacute um
indutor para a realizaccedilatildeo de accedilotildees boas ou maacutes Por isto desde a tenra idade o homem tem de ser
educado para sentir prazer na praacutetica de accedilotildees nobres e se deleitar com a praacutetica das virtudes morais
e intelectuais O homem virtuoso deve se afastar dos prazeres moralmente ruins Estes prazeres
torpes satildeo aqueles que natildeo estimulam o homem a torna-se mais virtuoso antes o afasta de uma
conduta moralmente elevada O prazer tem duas funccedilotildees importantes que auxiliam a atingir a
eudaimonia A primeira eacute o aprimoramento das atividades realizadas quanto mais prazer haacute
envolvido em uma accedilatildeo mais estiacutemulo existe para praticaacute-la o que ocasiona a melhora a atividade
exercida Um exemplo eacute o violinista que sente prazer ao tocar o seu violino isto o induz a treinar
mais e consequentemente a ser um muacutesico melhor Este aperfeiccediloamento causado pelo prazer
tambeacutem ocorre com a accedilatildeo humana quanto mais o homem se esforccedila para habituar-se agrave praacuteticas das
virtudes mais prazer ele sente em realizar accedilotildees corretas e nobres A segunda funccedilatildeo estaacute associada
ao resultado por exemplo ao tocar o instrumento musical de forma sublime o violinista teraacute mais
prazer O homem ao praticar as accedilotildees nobres torna-se cada vez mais excelente Deste modo o
resultado alcanccedilado pela conduta virtuosa moral e intelectual eacute a proacutepria felicidade
A importacircncia das virtudes morais para a felicidade eacute muito niacutetida Elas satildeo os fundamentos
a base para a virtude da prudecircncia Satildeo as virtudes morais que orientam os nossos desejos para o
bem Sem elas afundamos sobre o proacuteprio peso de aspiraccedilotildees incoerentes ou nefastas Afinal pode-
se desejar qualquer coisa inclusive o que nos faz mal Com isto nos afastamos da razatildeo e perdemos
a ideia da verdadeira felicidade E ainda arruinamos a capacidade de construiacute-la Sem a prudecircncia
que eacute a reta razatildeo no agir e sem a virtude moral que eacute o justo meio da accedilatildeo natildeo conseguimos definir
os fins que temos que atingir Tampouco conseguimos descobrir que accedilatildeo realizar para alcanccedilar
98
estes fins Ou pode-se ter um vislumbre da meta e da accedilatildeo mas natildeo haacute forccedila interior suficiente para
operacionalizar este intento Deste modo o homem perde a noccedilatildeo do fim uacuteltimo e frequentemente
dos fins particulares pois os viacutecios o arrastam para longe do Supremo Bem Tal fato o leva a fazer
escolhas ruins com consequecircncias infelizes
O ponto central para a realizaccedilatildeo das virtudes morais eacute a ideia de mediania A virtude moral
eacute um meio-termo entre dois tipos de condutas perniciosas para o homem Uma accedilatildeo ruim eacute marcada
pelo exagero a outra accedilatildeo eacute marcada pela carecircncia O spoudaios ou seja o homem virtuoso
moralmente aplica a mediania nas suas accedilotildees Neste sentido a mediania constitui a excelecircncia da
accedilatildeo
Ao longo desta pesquisa vimos como a virtude intelectual da prudecircncia se relaciona com as
virtudes morais Todo homem prudente possui as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter Satildeo
as virtudes morais que orientam os desejos para aquilo que eacute correto o que permite que a prudecircncia
decida quais satildeo os melhores meios para alcanccedilar os fins nobres desejados O homem prudente eacute
dotado de um domiacutenio sobre suas paixotildees e possui uma anaacutelise racional acertada das circunstacircncias
o que permite a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo correta Deste modo a prudecircncia indica como alcanccedilar o
fim mais desejado de todos que eacute a felicidade
A prudecircncia eacute o saber intelectual aplicado ao mundo contingente Ele sabe discernir a
intensidade o momento e a quem se aplica as suas accedilotildees Eacute a virtude da boa decisatildeo perante as
inuacutemeras circunstacircncias que surgem no decorrer da vida O homem prudente sabe deliberar
compreender e julgar de modo acurado as situaccedilotildees Existem trecircs fatores que auxiliam o
refinamento destes atos do intelecto que satildeo o tempo a experiecircncia e a instruccedilatildeo Deste modo a
virtude intelectual da prudecircncia pode ser aperfeiccediloada a cada decisatildeo realizada perante as
circunstacircncias
Eacute importante recordar que eacute a virtude da prudecircncia que preserva a consciecircncia dos limites do
possiacutevel para o homem Eacute o conhecimento dos seus limites que impede a desmesura (u3brij) ou
seja a arrogacircncia fatal que natildeo reconhece o que pode ou natildeo ser realizado e com isso acarreta na
infelicidade humana Neste sentido coadunamos com o pensamento de Pierre Aubenque ao trazer a
peccedila teatral Antiacutegona como exemplo ilustrativo da prudecircncia Nesta peccedila o coro diz ao vaidoso
Creonte que despreza o pensar prudencial acerca dos seus atos ldquoa (sic) prudecircncia (to fronei=n) eacute
de longe a primeira condiccedilatildeo da felicidade Nunca se deve cometer impiedade contra os deuses Os
orgulhosos vecircem suas grandes palavras pagas pelos grandes golpes da sorte e eacute apenas com os anos
que aprendem a prudecircnciardquo273 A prudecircncia se forja com o raciociacutenio aplicado agraves circunstacircncias nas
tentativas de realizar as melhores decisotildees possiacuteveis Com o passar do tempo as inuacutemeras
273 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op citp 260
99
experiecircncias vividas pelo homem permitem que suas decisotildees nas diversas situaccedilotildees tornem-se mais
apuradas Com este aprimoramento o homem prudente passa a ldquopersonificarrdquo a proacutepria reta razatildeo
Neste sentido a prudecircncia eacute a percepccedilatildeo salutar da ldquomedida das coisasrdquo que auxilia o bem viver
humano porque evita que desejos irreais e ideias absurdas que natildeo passaram no crivo da realidade
faccedilam o homem ser obstinado com fantasias que o conduziratildeo a uma trageacutedia individual ou coletiva
e natildeo a uma vida feliz
Diante do exposto acreditamos que eacute demonstrada a grande importacircncia que a virtude
intelectual da prudecircncia possui na vida do homem A eudaimonia que eacute o Supremo Bem desejado
por todas as pessoas somente pode ser atingida se houver boas decisotildees que nos conduzam ateacute uma
vida feliz O homem que seguidas vezes realiza decisotildees ruins ao longo de sua vida dificilmente
construiraacute uma vida feliz Somente eacute venturoso o homem que realiza o seu ergon ou seja alcanccedila a
sua plenitude a partir de dois atos extremamente importantes O primeiro ato eacute orientar os seus
desejos por meio das virtudes morais para os fins nobres e a ter prazer nas accedilotildees virtuosas sem
atitudes indignas de um homem valoroso O segundo ato eacute aprender a usar o intelecto para agir
corretamente ou seja a desenvolver a virtude da prudecircncia Afinal o homem prudente ao moderar
suas paixotildees e direcionar corretamente seus desejos para aquilo que eacute bom consegue decidir
corretamente o caminho a ser seguido dentro das diversas circunstacircncias
Em suma o homem sem prudecircncia e com os viacutecios que dominam o seu caraacuteter eacute como um
naacuteufrago sem mapa desorientado nos mares da vida Por outro lado o homem prudente sabe para
onde vai e possui a firmeza necessaacuteria para navegar ateacute laacute Logo nas incertezas da vida o
phronimos aristoteacutelico torna-se o seu proacuteprio porto seguro Isto o faz feliz
100
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de Filosofia Trad da primeira ediccedilatildeo brasileira coord e rev
por Alfredo Bosi rev e trad dos novos textos por Ivone Castilho Benedetti 6ordm ed Satildeo Paulo
WMF Martins Fontes 2012
ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica
nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-125
ARISTOTLE The Nicomachean Ethics Translated with Notes by Harris Rackham with a
Introduction by Stephen Watt Wordswhorth Classics of World Literature 1996
______________ Nicomachean Ethics Translated by WD Ross Batoche Books Kitchener 1999
______________ The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et Vitiis
Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford Clarendon Press 1915
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea I 13 ndashIII 8 Tratado da Virtude Moral Trad Marco Zingano
Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008
______________ Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro2015
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 3ordf Ediccedilatildeo 1ordm
reimp 2013
______________ Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Maria Arauacutejo y Juliacutean Marias Ed Biliacutengue CEPC
Diretor Antonio Truyol Serra 2002
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da
versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de
Eudoro de Souza Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural
1987 (Col Os Pensadores)
______________ Fiacutesica I-II Trad Lucas Angioni Campinas Editora Unicamp 2009
______________ Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterios de
Giovanni Reale) Volumes I II III Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ediccedilatildeo
2005
101
______________ Oacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edison Bini
Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev2010 p 41-42 (Seacuterie Claacutessicos Edipro)
______________ Poliacutetica Trad Nestor Silveira 1ordm ed Satildeo Paulo Folha de Satildeo Paulo 2010
______________ Retoacuterica Traduccedilatildeo textos adicionais e notas de Edson Bini Satildeo Paulo Edipro
2011
______________ Sobre a Alma Trad de Ana Maria Loacuteio revisatildeo cientiacutefica de Tomaacutes Calvo
Martiacutenez adaptado para o portuguecircs do Brasil por Luiza Aparecida dos Santos Satildeo Paulo WMF
Martins Fontes 2013 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles coord Antoacutenio Pedro Mesquita)
______________ Toacutepicos Dos argumentos sofiacutesticos seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta
Pessanha traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de WA Pickard mdash
Satildeo Paulo Nova Cultural 1987
ARISTOTELES Graece Ex recensione Immanuelis Bekkeri Volumen Alterum Berolini apud
Georgium Reimerum Academia Regia Borussica 1831
ARISTOTELIS Ethica Nicomachea Franciscus Susemihl Editio Altera Curavit Otto Apelt
Lipisiae In Aedibus B G Teubneri MCMIII
AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo
Discurso Editorial Paulus 2008
BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bertolini Satildeo Paulo Paulus 2012 (Coleccedilatildeo
Filosofia)
BRUumlLLMAN Phillip A Teoria do Bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo
Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 (Coleccedilatildeo Aristoteacutelica)
CARVALHO Helder Buenos Aires A phroacutenesis aristoteacutelica Breve comparaccedilatildeo das leituras de
Alasdair MacIntyre e Paul Ricoeur Hypnos Satildeo Paulo Nuacutemero 27 2ordm semestre 2011 p 260-283
ETICHE DI ARISTOTELE Etica Eudemea Etica Nicomachea Grande Etica A cura di Lucia
Caiani Introduzione di Francesco Adorno Torino Unione Tipografico-Editrice Torinese 1996
(Classici della Filosofia)
102
GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia
aristoteacutelica Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas
GEACH PT ldquoHistory of Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972
HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista
Archai Brasiacutelia n 04 pp 109-119 jan 2010
HERMANN Nadja Phronesis a especificidade da compreensatildeo moral Educaccedilatildeo Porto Alegre
Rio Grande do Sul ano XXX n 2(62) p 365-376 maioagosto 2007
HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a
eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
HOumlOFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008
JAEGER Werner Wilhelm Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Trad Artur M Parreira
adaptaccedilatildeo para versatildeo brasileira Mocircnica Stahel revisatildeo do texto grego Gilson Cesar Cardoso de
Souza 3ordm ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994
MACINTYRE Alasdair Justiccedila de quem Qual racionalidade Satildeo Paulo Loyola 1991
PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles a passagem da eacutetica agrave
dianoeacutetica aristoteacutelica no problema da felicidade Rio de Janeiro Poacutes Moderno 2002
PERINE Marcelo Quatro Liccedilotildees sobre a Eacutetica de Aristoacuteteles Ed Loyola Satildeo Paulo Brasil 2006
PLATAtildeO Teeteto Cratilo Traduccedilatildeo direta do grego Carlos Alberto Nunes Coordenaccedilatildeo Benedito
Nunes 3bull Ediccedilatildeo Revisada Beleacutem- Paraacute 2001
RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda
edicioacuten Trad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007
SPINELLI Priscila Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles Satildeo Leopoldo
Editora Unisinos 2007 (Col Precircmio ANPOF)
TOMAacuteS DE AQUINO Santo A prudecircncia a virtude da decisatildeo certa Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e
notas Jean Lauand 2ed Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014
103
__________________ Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes
Vol I Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015
p27
__________________Sententia Libri Ethicorum Disponiacutevel em
lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt
__________________ Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles
Trad Tiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013
__________________ Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed
Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004
VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo
Phronesis Vol 50 Nordm 2 2005 p 116-128
WEDIN Michael ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981
p243-262
WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de AristoacutetelesTrad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2010 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)
ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado da virtude moral Satildeo
Paulo Odysseus Editora 2008
ZINGANO Marco Estudo de Eacutetica Antiga 2edSatildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009
ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo
Paulo Ed Odysseus 2010
- BRASIacuteLIA
-
- 14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
- CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
- O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
-
- 16 O acaso na vida humana
- CAPIacuteTULO II
-
- AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
-
- 23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
- 24 O homem virtuoso
- 25 As virtudes morais como mediania
- 33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
-
ADRIANO SOTERO BIN
A PHRONEcircSIS NA EacuteTICA A NICOcircMACO
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes- Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade deBrasiacutelia como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia
Professor Orientador Dr Guy Hamelin
BRASIacuteLIA2018
ADRIANO SOTERO BIN
A PHRONEcircSIS NA EacuteTICA A NICOcircMACO
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof Dr Guy Hamelin (Orientador) Universidade de Brasiacutelia ndash UnB
___________________________________________
Prof Dr Marcos Aureacutelio FernandesUniversidade de Brasiacutelia ndash UnB
___________________________________________
Prof Dr Fernando Martins Mendonccedila Universidade Federal de Uberlacircndia - UFU
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a Deus por todos os desafios enfrentados
Agradeccedilo a todos que me incentivaram na realizaccedilatildeo deste trabalho
Se a felicidade eacute atividade conforme agrave virtude seraacute razoaacutevel que ela esteja tambeacutem emconcordacircncia com a mais alta virtude e essa seraacute a do que existe de melhor em noacutes Quer seja
a razatildeo quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guianatural tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas e quer seja ele mesmo divino quer
apenas o elemento mais divino que existe em noacutes sua atividade conforme agrave virtude que lhe eacuteproacutepria seraacute a perfeita felicidade Que essa atividade eacute contemplativa jaacute o dissemos
anteriormente(ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 1177a 13-18)
A virtude de um ser seja ordenada para o bem Logo a virtude humana que eacute um haacutebitoimperativo eacute um haacutebito bom e operativo do bem
(SANTO TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica Iordf seccedilatildeo IIordf parte Questatildeo 55 Art 3)
Natildeo te deixes levar por tuas paixotildees e refreia os teus desejos (ECLESIAacuteSTICO 18 30)
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo estudar a virtude intelectual da prudecircncia
(φρόνησις) em Aristoacuteteles e ver sua importacircncia para que o indiviacuteduo construa uma vida
feliz Este estudo concentra-se principalmente na Eacutetica a Nicocircmaco mas tambeacutem seraacute
utilizado a Eacutetica a Eudemo o outro tratado aristoteacutelico sobre a eacutetica como auxiacutelio para
compreensatildeo do pensamento do Estagirita sobre a prudecircncia Para tanto este estudo estaacute
dividido em trecircs capiacutetulos No primeiro analisamos a ideia de Supremo Bem como felicidade
(eu0daimonia) Vemos o que a caracteriza e porque ela eacute o fim mais desejado Tambeacutem eacute visto
qual o tipo de vida que melhor condiz com a funccedilatildeo (e2rgon) proacutepria do ser humano No
segundo capiacutetulo examinamos as virtudes intelectuais e morais Entretanto damos uma
ecircnfase maior nas virtudes morais porque satildeo o fundamento para que a phronecircsis possa se
sobressair Ademais analisamos a relaccedilatildeo entre a virtude moral e o prazer pois este uacuteltimo
possui um papel importante na busca da eudaimonia No terceiro capiacutetulo tratamos da virtude
intelectual da prudecircncia Vemos suas caracteriacutesticas suas partes integrantes como se
desenvolve e atua defronte agrave realidade Compreendemos o que eacute a deliberaccedilatildeo (bouleusij e
a escolha (proairesij) assim como estudamos quais satildeo as trecircs virtudes intelectuais
menores boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn)
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Virtudes Morais Felicidade Bem
ABSTRACT
The objective of the present work is to study the intellectual virtue of prudence (φρόνησις) in
Aristotle and to see its importance for the individual to build a happy life This study focuses
mainly on The Nichomachean Ethics but the The Eudemian Ethics the other Aristotelian
treatise on ethics will also be used as an aid to understand the Stagirites thinking on
prudence This study is divided into three chapters In the first one we analyze the idea of
Supreme Good as happiness (eu0daimonia) We see what characterizes it and why it is the
most desired We are also seing which type of life best fits with the function ( gἔρ ον) of the
human being In the second chapter we examine intellectual and moral virtues However we
emphasize size more on moral virtues because they are the foundation for phronesis to excel
In addition we analyze the relationship between moral virtue and pleasure for the latter has
an important role in the pursuit of eudaimonia In the third chapter we deal with the
intellectual virtue of prudence We examine its characteristics its parts whats is its
development and how it acts with reality We try to understand what is deliberation
(bouleusij and choice (proairesij) just as we study what are the three minor intellectual
virtues good deliberation (eu0bolia) intelligence (sunesij) and judgment (gnwmn)
Keywords Aristotle Prudence Moral Virtues Happiness Good
SUMAacuteRIO
RESUMO i
SUMAacuteRIOhellipii
INTRODUCcedilAtildeOhellipp 03
CAPIacuteTULO I ndash O BEM HUMANO E A EUDAIMONIAp 07
11 O CONCEITO DE BEMp 08
12 UMA POSSIacuteVEL FALAacuteCIA ARISTOTEacuteLICAp 14
13 FIM DOMINANTE OU INCLUSIVOp 19
14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
15 A EUDAIMONIA E TIPOS DE VIDAp 28
16 O ACASO NA VIDA HUMANAp 34
CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
21 DEFINICcedilAtildeO DAS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 38
22 A EDUCACcedilAtildeO DOS PRAZERES E AS VIRTUDES MORAIShelliphellipp 40
23 PRAZER E APERFEICcedilOAMENTO DE UMA ATIVIDADEhellipp 45
24 O HOMEM VIRTUOSOhelliphelliphelliphelliphelliphellipp 47
25 AS VIRTUDES MORAIS COMO MEDIANIAhelliphelliphelliphelliphellipp 49
CAPIacuteTULO III ndash A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICOhelliphelliphellipp 56
31 LINHAS GERAIS ACERCA DA PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphellipp 57
32 O CONCEITO DE PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 62
33 A RETA RAZAtildeO (o0rqoj logoj) E A EXPERIEcircNCIA (e0mpeiria)helliphelliphelliphelliphellipp 70
34 DESEJO (o1recij) DELIBERACcedilAtildeO (bouleusij E ESCOLHA (proairesij)hellipp 75
35 AS TREcircS VIRTUDES INTELECTUAIS MENORES BOA DELIBERACcedilAtildeO
(eu0boulia) INTELIGEcircNCIA (sunesij) PONDERACcedilAtildeO (gnwmh)helliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 82
36 A RAZAtildeO INTUITIVA (nou~j) E A PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 90
37 PRUDEcircNCIA VIRTUDES MORAIS E EUDAIMONIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 93
CONCLUSAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 96
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICASp 100
3
INTRODUCcedilAtildeO
No contexto da poacutes-modernidade a reflexatildeo eacutetica parece enfrentar um paradoxo Por um
lado a praacutetica social juriacutedica e poliacutetica bem como diversos setores da sociedade natildeo cessam de
clamar pelo valor da pessoa humana e seus direitos que se apresentam como norte da rota de
desenvolvimento civilizatoacuterio do Ocidente nesse momento da histoacuteria Todavia noutro sentido a
especulaccedilatildeo filosoacutefica parece cada vez menos propensa a adotar como paracircmetro a ideia de um
normativo moral calcado em determinadas regras de conduta generalizantes e universais e de certo
modo caracterizadas por uma rigidez que exigem uma conduta pautada principalmente pela noccedilatildeo
de dever
Essa desconfianccedila pode ter surgido a partir da experiecircncia dramaacutetica dos seacuteculos passados
nos quais alguns paradigmas ideoloacutegicos podem ter servido como molde para trageacutedias em larga
escala exigindo uma premente reflexatildeo acerca dos modelos intelectuais que tinham fundamentado
diretamente ou pelo menos tornado possiacuteveis alguns flagelos1
As circunstacircncias individuais e coletivas trazem uma enorme variedade de caminhos e
opccedilotildees a serem escolhidas e assumidas nas suas consequecircncias Nesse contexto a pergunta ldquoO que
eacute o melhor a ser feito diante dessa ou daquela situaccedilatildeordquo se impotildee de forma quase natural a cada
indiviacuteduo A virtude da prudecircncia fornece em Aristoacuteteles a medida adequada para que exista uma
accedilatildeo virtuosa diante das circunstacircncias Outro fato relacionado ao exerciacutecio da prudecircncia eacute que ela eacute
necessaacuteria para escolher corretamente os melhores meios para alcanccedilar os objetivos escolhidos
defronte as circunstacircncias que envolvem cada pessoa Essa eleiccedilatildeo dos meios deve ter como criteacuterio
a retidatildeo de comportamento2 Logo o homem prudente tambeacutem deve ser um indiviacuteduo que pratique
as virtudes morais
A phronecircsis eacute uma virtude de extrema importacircncia na consecuccedilatildeo do bem pois eacute ela que
auxilia o indiviacuteduo a tomar a melhor decisatildeo e por isso a agir da melhor maneira diante das
circunstacircncias Observa-se que eacute intriacutenseca a esta virtude a correta decisatildeo tomada e
operacionalizada no tempo correto Natildeo basta ao homem prudente discernir corretamente o que
fazer nas situaccedilotildees concretas Tambeacutem deve realizar a accedilatildeo preocupando-se com o kairoacutes
(kair joacutej ) ou seja o momento oportuno Assim a prudecircncia acarreta uma accedilatildeo virtuosa do
1 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo DiscursoEditorial Paulus 2008 p 72 Cf EacuteN 1143a 25-27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheimda versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de Eudoro de SouzaSeleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 112 (Col Os Pensadores)
4
indiviacuteduo na temporalidade a qual carrega consigo o contingencial o incerto onde estatildeo inseridos
os indiviacuteduos
O conceito de phronecircsis recorda que a busca pela vida feliz se encontra em bens factiacuteveis
dentro das peculiaridades humanas inseridas em um mundo imprevisiacutevel e marcado por diversas
contingecircncias Ao considerar a natureza humana com suas forccedilas e suas fraquezas a histoacuteria
mostra que eacute a virtude da prudecircncia juntamente com as virtudes morais que evitam a hybris
(u3brij) ou seja a desmesura Esse excesso ocasiona o apego exagerado agraves paixotildees o desprezo
pelos outros e que culmina em uma arrogacircncia absoluta do indiviacuteduo
O presente trabalho visa estudar a compreensatildeo da ideia de phronecircsis e sua importacircncia
dentro do sistema eacutetico aristoteacutelico caracterizado pela busca da eudaimonia por meio das virtudes
morais e intelectuais Eacute utilizada a Eacutetica a Nicocircmaco como base principal para o entendimento da
phronecircsis No entanto natildeo seratildeo desprezadas as demais obras de eacutetica como Eacutetica a Eudemo e
Magna Moralia podendo serem trazidas agrave luz como auxiacutelio a compreensatildeo da visatildeo eacutetica
aristoteacutelica
No primeiro capiacutetulo seraacute tratada a teoria geral do bem proposta na Eacutetica a Nicocircmaco a
partir da qual o estagirita realiza uma anaacutelise sobre o que significa o conceito de bem e como a ideia
de bem identifica-se com a finalidade das coisas Satildeo estudados os tipos de bens e qual o melhor
bem a ser conquistado Agrave luz desta anaacutelise eacute descrita a via mais efetiva para alcanccedilar este bem
considerado o mais perfeito de todos que eacute identificado com a eudaimonia Seratildeo abordadas duas
controvertidas questotildees acerca da eacutetica aristoteacutelica A primeira questatildeo versa sobre a possibilidade
de Aristoacuteteles ter cometido uma falaacutecia loacutegica ao expor o argumento sobre o Supremo Bem A
segunda questatildeo pergunta se o Supremo Bem deve ser entendido como um fim dominante ou um
fim inclusivo Em outros termos vemos se a eudaimonia se caracteriza somente por conter um
uacutenico bem superior a todos os demais bens ou se eacute composta por vaacuterios bens reunidos em um
conjunto Outro assunto tratado neste capiacutetulo diz respeito as caracteriacutesticas do Supremo Bem que
satildeo a autossuficiecircncia e a completude Outra anaacutelise a ser realizada eacute sobre a funccedilatildeo proacutepria dos
seres Esta funccedilatildeo consiste em cada ser possuir uma funccedilatildeo que lhe eacute particular pois eacute resultado da
finalidade para a qual fora criada Neste sentido a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada pela
racionalidade sendo necessaacuteria para a construccedilatildeo de uma vida feliz na perspectiva aristoteacutelica A
partir da identificaccedilatildeo do supremo bem com a felicidade passa-se a verificar qual eacute o tipo de vida
que conduz o homem agrave vida feliz Portanto neste primeiro capiacutetulo procuramos clarificar o
conceito de eudaimonia e saber porque eacute o elemento chave para a eacutetica aristoteacutelica visto que todos
os esforccedilos do homem virtuoso tendem para ela
5
No segundo capiacutetulo adentramos na divisatildeo das virtudes morais e intelectuais e vemos como
se relacionam frente agrave conduta humana e no processo decisoacuterio perante o mundo contingente Como
Aristoacuteteles claramente assinala que as virtudes satildeo essenciais para o alcance da eudaimonia eacute
necessaacuterio o estudo da natureza das virtudes morais e como contribuem para o desenvolvimento e a
correta aplicaccedilatildeo da phronecircsis Destacar-se-aacute uma atenccedilatildeo agraves virtudes morais uma vez que estas
dizem respeito a uma reta orientaccedilatildeo dos desejos e como esta moldagem dos anseios e dos prazeres
a serem buscados promovem um alicerce para o cultivo da virtude intelectual da prudecircncia Os
prazeres e as dores satildeo intrinsecamente ligados agrave natureza humana e agraves accedilotildees do indiviacuteduo O ser
humano busca o prazer e procura se afastar da dor Diante deste quadro eacute de grande importacircncia na
eacutetica aristoteacutelica o indiviacuteduo aprender a fundamentar sua conduta moral em prazeres provenientes
de accedilotildees nobres Pois o homem virtuoso tambeacutem sente prazer na retidatildeo moral Tambeacutem seraacute
abordada uma caracteriacutestica essencial das virtudes a mediania ou o meio-termo O conceito de
mediania eacute um pressuposto importante no contexto da eacutetica aristoteacutelica Por isso eacute necessaacuteria a
compreensatildeo do que seja ela e seu viacutenculo com as virtudes morais Estas satildeo intimamente ligadas agrave
virtude intelectual da prudecircncia Ocorre um processo simultacircneo A praacutetica das virtudes morais
prepara o exerciacutecio da prudecircncia natildeo permitindo que o indiviacuteduo cometa viacutecios por excessos ou por
insuficiecircncias e esta virtude intelectual fornece os melhores meios para alcanccedilar a accedilatildeo virtuosa
Essa relaccedilatildeo eacute descrita por Aristoacuteteles ao assinalar a figura do spoudaios (σπουδαῖος) como modelo
de homens de virtude Em suma o segundo capiacutetulo versaraacute principalmente sobre como as
virtudes morais e intelectuais satildeo imperativas para que o indiviacuteduo alcance uma vida feliz
No terceiro capiacutetulo seraacute feita a anaacutelise da proacutepria virtude da phronecircsis enquanto virtude
intelectual mas que objetiva um conhecimento praacutetico A sua funccedilatildeo primordial eacute de efetivar a
melhor decisatildeo possiacutevel a ser tomada pelo indiviacuteduo defronte agraves inuacutemeras circunstacircncias
encontradas Analisaremos a natureza da virtude da phronecircsis de que maneira esta virtude
intelectual se relaciona com as demais virtudes morais e como ela se desenvolve em vista de um
aperfeiccediloamento do indiviacuteduo Pois a phronecircsis eacute um dos pilares para a aquisiccedilatildeo e correta praacutetica
das demais virtudes morais As virtudes morais propiciam que o indiviacuteduo possa progredir na
praacutetica da virtude intelectual da prudecircncia Eacute a virtude da prudecircncia somada as virtudes morais que
conferem ldquopeso e medidardquo aos atos do indiviacuteduo e determina sobre o momento correto que estes
atos devem ser realizados para que a accedilatildeo humana possa ser considerada virtuosa Seraacute estudada a
noccedilatildeo de reta razatildeo como guia para as virtudes morais sendo a base da virtude da prudecircncia
Tambeacutem vemos qual o seu papel especiacutefico para alcanccedilar a felicidade Para uma melhor
compreensatildeo da virtude da prudecircncia e das virtudes morais analisaremos a relaccedilatildeo entre desejo
(o2recij) escolha (proairesij) e deliberaccedilatildeo (bouleusij A relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos
6
promove a accedilatildeo virtuosa Veremos como o homem virtuoso que exerce a virtude da prudecircncia em
um grau elevado a ponto de ser considerado como um verdadeiro homem prudente torna-se a
proacutepria medida da phronecircsis Por isto examinaremos o que eacute a reta razatildeo e a sua importacircncia para a
prudecircncia Tambeacutem seraacute visto o papel da experiecircncia no desenvolvimento da prudecircncia Uma vez
que este indiviacuteduo possui tanto as virtudes morais quanto agrave virtude da prudecircncia fortalecida pode
ser estimado como um homem que estaacute proacuteximo de ser plenamente feliz Analisamos as partes
integrantes da prudecircncia que satildeo as trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia)
inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn) Portanto o terceiro capiacutetulo eacute dedicado a examinar a
virtude intelectual da prudecircncia e sua importacircncia para a felicidade
Como objetivo final desta pesquisa esperamos demonstrar como a phronecircsis aristoteacutelica
simultaneamente com as virtudes morais contribui para a correta consecuccedilatildeo de uma accedilatildeo moral
virtuosa dentro da imprevisibilidade e contingecircncia do campo da praacutexis pra~~cij Pois esta virtude
proporciona a correta maneira de agir diante de uma situaccedilatildeo ao estabelecer a medida correta para
todas as accedilotildees virtuosas realizadas pelo indiviacuteduo Portanto a phronecircsis e as virtudes morais
possuem um papel central para que o indiviacuteduo alcance uma vida plena O caminho a ser percorrido
neste estudo acerca da virtude da prudecircncia se inicia na compreensatildeo dos conceitos de bem e
finalidade decorrentes da ideia de funccedilatildeo proacutepria do ser humano A anaacutelise destes trecircs conceitos
conduz ao estudo do Supremo Bem que eacute identificado como sendo a eudaimonia Uma vez que as
virtudes satildeo o meio privilegiado para atingir a felicidade torna-se imperativo o entendimento da
natureza das virtudes morais e intelectual E para compreendecirc-las eacute necessaacuterio compreender o que eacute
a mediania e a reta razatildeo Nesta linha de raciociacutenio demonstraremos a relaccedilatildeo entre as virtudes
morais e a virtude intelectual da prudecircncia e como cada uma contribui para o fortalecimento da
outra Por fim natildeo se pode perder de vista que o escopo desta pesquisa eacute a compreensatildeo da natureza
da virtude intelectual da prudecircncia e como esta virtude auxilia o ser humano na construccedilatildeo de uma
vida feliz
7
CAPIacuteTULO I
O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
A eudaimonia e sua relaccedilatildeo com os conceitos de bem finalidade e funccedilatildeo eacute o objeto de
anaacutelise deste primeiro capiacutetulo O conceito de eudaimonia tradicionalmente entendido como
felicidade vida feliz ou plenitude de vida estaacute condicionado a alguns fatores que satildeo desenvolvidos
ao longo do livro I da Eacutetica a Nicocircmaco Deste modo embora sejam feitas referecircncias aos demais
livros que compotildeem o mencionado tratado de Aristoacuteteles visto que estatildeo em parte interligados
entre si o livro I se constitui como o alicerce principal de estudo deste capiacutetulo
O conceito de bem eacute basilar para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica cunhada por Aristoacuteteles Sua
importacircncia reside no fato do conceito de bem ser identificado com o conceito de fim ou de
finalidade dos seres O conceito de finalidade identifica-se com a ideia de funccedilatildeo proacutepria dos seres
O cumprimento desta funccedilatildeo permite que algo ou algueacutem possa alcanccedilar sua finalidade ou seja
realizar o fim para o qual fora criado
Haacute uma distinccedilatildeo entre os bens existentes natildeo sendo todos equivalentes na valoraccedilatildeo que
lhes eacute conferida o que causa uma diferenciaccedilatildeo no seu grau de importacircncia Esta variedade de bens
acarreta uma variedade de fins sendo os mesmos categorizados como fins definitivos e fins
intermediaacuterios A argumentaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre a existecircncia de uma variedade de fins faz o
filoacutesofo de Estagira afastar-se da tese do seu mestre Platatildeo A tese deste uacuteltimo preconiza a
existecircncia de um uacutenico fim que eacute o Bem em si ao qual participam todas as coisas particulares Para
o Estagirita existem vaacuterios tipos de bens que visam o bem uacuteltimo que eacute a felicidade Diante desta
diferenccedila de concepccedilotildees acerca dos fins veremos as criacuteticas de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave filosofia
platocircnica
A vida feliz eacute o fim uacuteltimo a ser buscado Por isso neste capiacutetulo eacute analisada a natureza da
felicidade e suas propriedades Examinamos sobre quais fundamentos Aristoacuteteles forja sua ideia de
felicidade e qual a causa a considerar como o sumo bem Deste modo estudamos qual eacute o tipo de
vida que melhor corresponde agrave ideia de felicidade na visatildeo aristoteacutelica
8
11 O Conceito de Bem
Aristoacuteteles inaugura o seu tratado Eacutetica a Nicocircmaco com a afirmaccedilatildeo de que todas as
atividades humanas nas quais estatildeo inclusas a arte a inquiriccedilatildeo e as escolhas deliberadas visam um
bem Devido a este fato todas as coisas possuem a capacidade para alcanccedilar o seu proacuteprio bem
Como existem diferentes espeacutecies de artes ciecircncias e accedilotildees cada uma possui um tipo de bem
especiacutefico que eacute caracteriacutestico a partir daquela determinada atividade Deste modo as atividades
possuem finalidades distintas umas das outras como afirma Aristoacuteteles
Admite-se geralmente que toda arte (texnh) e toda investigaccedilatildeo (meqodoj) assimcomo toda accedilatildeo pra~~cije toda escolha (proairesij) tecircm em mira um bemqualquer e por isso foi dito com muito acerto que o bem (ta0gaqon) eacute aquilo aque todas as coisas tendem Mas observa-se entre os fins uma certa diferenccedilaalguns satildeo atividades outros satildeo produtos distintos das atividades que osproduzem Onde existem fins distintos das accedilotildees satildeo eles por natureza maisexcelentes do que estas 3
Aristoacuteteles continua sua anaacutelise acerca do bem percorrendo um caminho de reflexatildeo que se
propotildee em primeiro lugar apreender o conceito de bem e em seguida determinar qual eacute o bem
mais proveitoso e por fim determinar o mais importante a ser buscado pelo ser humano Para
cumprir com o objetivo de sua investigaccedilatildeo o filoacutesofo de Estagira procura analisar que tipo de bem
pode ser considerado como o mais essencial e quais os tipos de vida existentes podem ser
candidatos a serem representantes desta ideia de bem essencial ou o sumo bem Do mesmo modo
estabelece uma reflexatildeo sobre o ponto de vista platocircnico de Bem e como essa concepccedilatildeo estaacute
equivocada natildeo sendo possiacutevel adotaacute-la para alcanccedilar a eudaimonia Tambeacutem procura utilizar o
exemplo das diversas ciecircncias para averiguar como pode ser apreendido este sumo bem Por fim
Aristoacuteteles traccedila quais caracteriacutesticas deve possuir este bem para que possa ser estimado como o
mais essencial ao ser humano
Qual eacute o bem supremo E que espeacutecie de vida deve ser vivida para que o atinjamos
Embora de imediato no Livro I do tratado Eacutetica a Nicocircmaco4 haja uma insinuaccedilatildeo de que a
eudaimonia ou seja a felicidade possa ser este bem supremo Aristoacuteteles natildeo concede de modo
faacutecil o posto de bem supremo agrave eudaimonia Ao contraacuterio procura fundamentar no decorrer dos
capiacutetulos do Livro I porque a felicidade deve ser considerada como o bem supremo E discorre
3 EacuteN I 1094a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 Para fins de abreviaccedilatildeo do tiacutetulo da obra Eacuteticaa Nicocircmaco doravante seraacute utilizada a descriccedilatildeo EacuteN nas notas de rodapeacute4 Cf EacuteN I 1095a 15-20 Ibidem p 11
9
sobre quais satildeo as caracteriacutesticas que uma vida deve possuir para que seja considerada uma vida de
plenitude
Eacute importante perceber que no contexto da Eacutetica a Nicocircmaco a ideia de bem (to a0gaqon)
equivale agrave finalidade ao teacutelos (telojque cada coisa possui em decorrecircncia da sua natureza Cada
arte (texnh) investigaccedilatildeo (meqodoj) ou accedilatildeo pra~~cij possui seu teacutelos especiacutefico Aristoacuteteles cita
que a sauacutede eacute a finalidade da medicina o navio eacute a finalidade da construccedilatildeo naval a vitoacuteria eacute a
finalidade da estrateacutegia a riqueza eacute a finalidade da economia5 Logo isso significa que cada coisa
tem uma finalidade e os fins satildeo fatores determinantes tanto para a compreensatildeo da natureza dos
seres quanto para a das accedilotildees humanas
Assim em que consiste o bem aristoteacutelico Aristoacuteteles defende a tese de que natildeo existe um
uacutenico bem em si mesmo que todas as coisas tendam para este uacutenico Bem Conforme visto
anteriormente seu argumento eacute radicalmente oposto agrave ideia concebida por Platatildeo Para Aristoacuteteles
os bens estatildeo conectados intimamente agrave imensa variedade de seres existentes pois constituem suas
proacuteprias finalidades Cada ser tende para seu fim para seu teacutelos (teloj) especiacutefico O ser humano
tambeacutem possui uma finalidade proacutepria Logo o Supremo Bem deve ser encontrado tendo em vista o
que eacute proacuteprio do ser humano
O Supremo Bem serve como paracircmetro para a vida humana e consequentemente para as
accedilotildees do agente Por isso deve ser factiacutevel de ser alcanccedilado pela accedilatildeo humana E para se constituir
como paracircmetro para a vida humana deve ser absoluto e autossuficiente porque natildeo eacute possiacutevel ser
paracircmetro se natildeo possui estabilidade Eacute neste momento da Eacutetica a Nicocircmaco que Aristoacuteteles
conclui que o Supremo Bem eacute a proacutepria eudaimonia A felicidade eacute o uacutenico bem que possui as
propriedades descritas de ser absoluta e de ser autossuficiente aleacutem de conferir sentido agraves
atividades realizadas ou seja eacute a finalidade uacuteltima da accedilatildeo de cada pessoa6
Ora esse eacute o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade (eu0daimonia)Eacute ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa ao passoque agrave honra ao prazer agrave razatildeo e a todas as virtudes noacutes de fato escolhemos por simesmos (pois ainda que nada resultasse daiacute continuariacuteamos a escolher cada umdeles) mas tambeacutem os escolhemos no interesse da felicidade pensando que aposse deles nos tornaraacute felizes A felicidade todavia ningueacutem a escolhe tendo emvista algum destes nem em geral qualquer coisa que natildeo seja ela proacutepria [] Afelicidade eacute portanto algo absoluto (teleion) e auto-suficiente (au1tarkej) sendotambeacutem a finalidade da accedilatildeo (praktw~~n ou]sa teloj)7
5 Cf EacuteN I 1094a 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 6 A eudaimonia tambeacutem se constitui como criteacuterio para todas as accedilotildees da sociedade poliacutetica A felicidade na poacutelis eacute umdos temas tratados na Poliacutetica Por natildeo ser o escopo do presente trabalho natildeo seraacute visto de forma minuciosa pois aEacutetica a Nicocircmaco natildeo adentra nesta questatildeo de modo direto e aprofundado Mas eacute interessante perceber a iacutentimaconexatildeo entre as accedilotildees de cada agente enquanto cidadatildeo e a forma de conviacutevio em uma poacutelis que eacute analisada porAristoacuteteles no tratado da Poliacutetica7 EacuteN I 1097b 1-7 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15
10
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles continua a exposiccedilatildeo de sua ideia acerca dos bens de cada
arte mas cita que as artes com as caracteriacutesticas intriacutensecas a cada uma delas se subordinam a uma
finalidade uacutenica anaacuteloga agrave fabricaccedilatildeo de utensiacutelios diversos como reacutedeas e selas para a montaria
em cavalos estaacute subordinada agrave arte da equitaccedilatildeo Esta situaccedilatildeo tambeacutem ocorre com as atividades
militares em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia de guerra e assim ocorre com diversas artes que se subordinam a
outras artes Neste caso de subordinaccedilatildeo das artes em relaccedilatildeo a uma determinada arte mais
abrangente conforme os exemplos da equitaccedilatildeo e da estrateacutegia Aristoacuteteles avalia que os fins destas
artes mais abrangentes satildeo mais importantes que os fins das artes subordinadas Isso ocorre porque
os fins das artes principais satildeo os fins almejados enquanto os fins das artes subordinadas tornam-se
apenas meios para a consecuccedilatildeo dos fins principais8
O que estaacute exposto nesta primeira parte do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco eacute a divisatildeo entre
fins (bens) primaacuterios e fins secundaacuterios9 haja vista a multiplicidade de fins em decorrecircncia da
variedade de seres e de accedilotildees A existecircncia desta hierarquia de fins culmina em um fim uacuteltimo que eacute
a eudaimonia Aristoacuteteles assinala que eacute necessaacuterio haver um fim derradeiro porque sem este fim a
sequecircncia de fins seria infinita o que tornaria inuacutetil a busca pela felicidade10
Na Eacutetica a Eudemo Aristoacuteteles descreve em que consiste esta multiplicidade dos bens11 O ser
(to o1n pode ser apreendido sob diversas formas conforme as Categorias12 a substacircncia (ou0sia13
a qualidade (poion a quantidade (poson) o tempo (pote) espaccedilo (pouetc Tendo em vista que
natildeo existe uma ciecircncia uacutenica de todos os seres mas vaacuterias ciecircncias que desvendam os seres dos
entes segue-se que natildeo pode existir um bem uacutenico imediato em relaccedilatildeo a todos dos seres Deste
modo haacute vaacuterios bens tanto quanto existem vaacuterios seres Aristoacuteteles ainda exemplifica os vaacuterios
bens existentes em algumas categorias traccedilando um paralelo entre estas categorias e determinados
8 Cf EacuteN I 1094a 15 Ibidem p 99 No que tange a nomenclatura dos bens (fins) de cada atividade haacute outros termos que podem ser usados para se referira estes fins tais como fins principais fins intermediaacuterios fins preciacutepuos fins subordinados etc Tambeacutem eacute possiacutevelsubstituir o termo ldquobemrdquo ou ldquofimrdquo por ldquofinalidaderdquo Eventualmente todos estes termos seratildeo usados no decorrer dotexto como sinocircnimos A questatildeo essencial eacute a compreensatildeo de que haacute uma relaccedilatildeo de hierarquia entre os fins de cadaarte accedilatildeo ou ciecircncia ou seja dos fins em geral em vistas a um fim mais amplo 10 Cf EacuteN I 1094a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 911 Cf EacuteE I 1217b 27 Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 2015 p 5912 A lista completa de dez categorias eacute descrita por Aristoacuteteles em Categorias 41b 25 2a 1-10 Cf ARISTOacuteTELESOacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas(Seacuterie Claacutessicos Edipro) Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edson Bini Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev 2010 p41-42 13 O termo ousia eacute melhor entendido a partir dos conceitos em latim de essentia substantia Haacute uma diferenccedila entre otermo ousia no qual adota-se a palavra ldquoessecircnciardquo de tograve tiacute esti ( que significa o ldquoser de uma coisarsquo comoldquoessencialidaderdquo ou ldquosubstacircnciardquo Entendemos que os dois termos podem ser utilizados como sinocircnimos para o presenteestudo visto que natildeo eacute o objetivo deste trabalho proceder a uma anaacutelise da filosofia primeira cunhada por AristoacutetelesTambeacutem entendemos que os dois termos conseguem expressar de modo geral a ideia da pergunta ldquoo que eacute istordquoreferindo-se agravequilo que necessariamente eacute e faz um ente ser o que eacute de fato Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles TradRoberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 147
11
predicados relacionados agrave eacutetica Por exemplo o bem eacute predicado de Deus e do intelecto na categoria
de substacircncia na categoria da qualidade eacute o justo na categoria da quantidade eacute a moderaccedilatildeo na
categoria do tempo eacute o momento oportuno14
Ao postular a tese da multiplicidade de bens Aristoacuteteles estabelece uma posiccedilatildeo diferente da
tese defendida por seu mestre e antecessor Platatildeo o qual assevera a existecircncia de uma uacutenica Forma
de Bem Para Platatildeo o Bem em si possui algumas propriedades que o qualificam como o bem
fundamental o Bem pelo qual satildeo subordinados e participam todas as coisas boas As coisas
participam desta Forma de Bem por derivaccedilatildeo pois Esta fornece os atributos necessaacuterios para a
existecircncia e constituiccedilatildeo destes bens derivados15 Esta Forma de Bem eacute imutaacutevel e eterna sua
essecircncia permanece a mesma o que natildeo permite sua alteraccedilatildeo com o tempo Aristoacuteteles assevera
que natildeo eacute possiacutevel existir um uacutenico Bem em si um determinado tipo de bem que seja ldquogeralrdquo para
todos e dissociados dos seres Antes o estagirita afirma que cada ser possui e consequentemente
deseja o bem que lhe eacute especiacutefico pertencente a sua particularidade conforme descrito na Eacutetica a
Eudemo ldquoAdemais a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas existentes desejam um bem uacutenico eacute falsa
cada coisa anseia pelo bem que lhe eacute particular o olho a visatildeo o corpo a sauacutede e analogamente
outros bens []rdquo16 Deste modo a diferenccedila fundamental entre a visatildeo do bem aristoteacutelico e do Bem
platocircnico eacute que Aristoacuteteles advoga a ideia que existe um bem uacuteltimo para qual se dirigem os seres
Enquanto na perspectiva de Platatildeo haacute uma uacutenica Forma de Bem que eacute causa dos outros bens os
quais apenas satildeo bons por participaccedilatildeo e semelhanccedila agravequela Forma17
Na Eacutetica a Nicocircmaco tambeacutem se encontra a criacutetica de Aristoacuteteles agrave doutrina platocircnica da
Forma do Bem e a descriccedilatildeo da tese da pluralidade de bens18 Nesta parte o Estagirita postula que
natildeo pode existir uma uacutenica Forma de Bem pois a proacutepria palavra ldquobemrdquo eacute utilizada para se referir a
diversas categorias A substacircncia significa a proacutepria essecircncia daquilo que eacute o ser da coisa
naturalmente eacute anterior agrave categoria de relaccedilatildeo Sendo assim uma uacutenica Forma natildeo pode abranger
todos estes tipos de bens O termo ldquobemrdquo pode ter diversos significados referentes agrave variedade de
sentidos que comporta o ser Ou seja os bens satildeo pertinentes ao nuacutemero de seres existentes E como
os bens satildeo caracterizados conforme as categorias natildeo eacute possiacutevel que o bem possa ser uniacutevoco e
inteiramente presente em um uacutenico ser Por conseguinte o Bem platocircnico natildeo poderia ser predicado
em cada uma das categorias Como estaacute descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
14 Cf EacuteE I 1217b 16-34 Eacutetica a Eudemo Op cit p 5915 Cf EacuteE I 1217b 1-15 Ibidem p 5716 EacuteE I 1217b 30-33 Ibidem p 5917 Cf EacuteE I 1217b 5-15 Ibidem p 5818 Cf EacuteN1096a 16-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 13
12
Aleacutem disso como a palavra ldquobemrdquo (ta0gaqon) tem tantos sentidos quantos ldquoserrdquo(o1nti) (visto que eacute predicada tanto na categoria de substacircncia como na de Deus(qeoj) e da razatildeo (nou=j) quanto na de qualidade (poiw~~) isto eacute das virtudes(a0retai) na de quantidade (ποσῷ) isto eacute daquilo que eacute moderado (metrion) nade relaccedilatildeo isto eacute do uacutetil (xrhimon) na de tempo (χρόνῳ) isto eacute da oportunidadeapropriada (kairoj) na de espaccedilo (τόπῳ) isto eacute do lugar apropriado etc) estaacuteclaro que o bem natildeo pode ser algo uacutenico e universalmente (kaqolou) presente poisse assim fosse natildeo poderia ser predicado em todas as categorias (kathgoriaj)mas somente numa19
Por este motivo Aristoacuteteles tambeacutem natildeo concorda com que o ldquomelhor bem de todosrdquo possa
ser entendido como um bem uacutenico pois isto seria irrealizaacutevel Para demonstrar a impossibilidade da
existecircncia de um Bem em si para todos os seres o Estagirita utiliza o caso das ciecircncias pois se
houvesse uma uacutenica Forma de Bem deveria existir uma uacutenica ciecircncia de todos os bens A realidade
prova que isso natildeo existe tendo em vista a variedade de ciecircncias que estuda cada tipo de ser20 Uma
ciecircncia especiacutefica natildeo procura um objeto em geral mas um objeto especiacutefico ligado ao seu estudo
conforme exemplifica Aristoacuteteles A medicina busca alcanccedilar a sauacutede natildeo visa alcanccedilar um bem
em geral que sirva como modelo para qualquer outra coisa 21
Para Aristoacuteteles o Supremo Bem tem de ser alcanccedilaacutevel pela accedilatildeo humana A vida feliz estaacute
no acircmbito da praacutexis De modo geral a ideia de praacutexis pode se referir a uma accedilatildeo ligada agrave razatildeo
vinculada a uma conduta a um modo de proceder da pessoa Por isso fala-se em ldquoagenterdquo desta
accedilatildeo pois o agente eacute a pessoa que realiza a accedilatildeo de maneira racional jaacute que um animal tido como
irracional natildeo pode agir no sentido aqui proposto
De tal maneira o Estagirita desfavorece o conceito de um fim que esteja longe da accedilatildeo do
indiviacuteduo que assevera que mesmo que houvesse uma uacutenica Forma de Bem conforme advogava
seu mestre antecessor esta ideia uacutenica de bem de nada serviria para a eacutetica O fim buscado tem de
estar necessariamente ligado agrave accedilatildeo humana Aristoacuteteles eacute expressivo ao afirmar que cada accedilatildeo
cada propoacutesito eacute realizado em funccedilatildeo da finalidade daquela atividade Por isso caso haja uma
finalidade geral (um ldquofim maiorrdquo) a ser buscado pelo agente este bem eacute executaacutevel pela accedilatildeo E se
existir mais de um bem eles devem ser alcanccedilados por meio das accedilotildees humanas22 Portanto sendo
ligado agrave accedilatildeo humana este soberano bem natildeo poderia ser algo inexequiacutevel para os seres humanos
Conforme Aristoacuteteles nos mostra na Eacutetica a Eudemo
19 EacuteN I1096a 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1220 Cf EacuteN I1096a 30 Ibidem p 1321 Cf EacuteE I1218b 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Eudemo Op cit p 61-6222 Cf EacuteN I1097a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 14
13
Fica evidente portanto que o bem em si objeto de nossa busca natildeo eacute a Forma dobem como tambeacutem natildeo eacute o bem como universal (posto que a primeira eacute imutaacutevel einexequiacutevel enquanto o segundo embora mutaacutevel eacute inexequiacutevel) Entretanto oobjeto visado como fim eacute o melhor aleacutem de ser a causa daqueles que lhe estatildeosubordinados e o primeiro de todos os bens esse bem consequentemente seria obem em si ou seja o fim exequiacutevel humano Trata-se do bem que se enquadranaquele que eacute soberana entre todas as ciecircncias [praacuteticas] nomeadamente a poliacuteticaassociada agrave economia e agrave sabedoria praacutetica 23
O Supremo Bem tem de estar ao alcance da realizaccedilatildeo humana Aristoacuteteles ao traccedilar a
criacutetica agrave ideia platocircnica de uma Forma de Bem alega que mesmo que existisse essa forma ideal de
bem ela em nada auxiliaria as atividades humanas Primeiro ela seria inatingiacutevel Segundo ela natildeo
contribuiria em nada para o exerciacutecio de qualquer ofiacutecio Eis o questionamento de Aristoacuteteles acerca
da Forma do Bem em que conhecer a Forma de Bem faria um meacutedico exercer melhor a medicina e
curar seus pacientes Ou em que este conhecimento da Forma de Bem tornaria excelente um
general em estrateacutegias de batalhas levando-o agrave vitoacuteria24 Mesmo que houvesse algueacutem que
argumente que o conhecimento da Forma do Bem auxilie o agente conseguir os bens que podem ser
alcanccedilados pela accedilatildeo pois serve como um paracircmetro o estagirita afirma que este argumento natildeo
procede visto que todas as ciecircncias visam bens especiacuteficos e natildeo um bem geral
Na busca para desvendar em que consiste este ldquobem maiorrdquo em uma perspectiva diferente da
concepccedilatildeo platocircnica Aristoacuteteles cita duas propriedades A primeira eacute que este tipo de bem deve ser
absoluto completo acabado (τέλειον25 O conceito de completo significa que este bem natildeo eacute
buscado como intermediaacuterio para alcanccedilar outro bem O ldquobem maiorrdquo eacute procurado como um fim em
si mesmo natildeo sendo condiccedilatildeo para qualquer outro tipo de fim Ou seja este bem tem de ser
incondicional e final e natildeo pode ser um bem intermediaacuterio A segunda propriedade deste bem eacute a de
ser autossuficiente A autossuficiecircncia (αὐτάρκειαdo ldquobem maiorrdquo consiste em prover somente
por si mesmo uma vida agradaacutevel e que natildeo falte nada26 Mas esta autossuficiecircncia natildeo pode ser
entendida sob um prisma individual como se o indiviacuteduo natildeo dependesse de nada ou de ningueacutem
Ao contraacuterio a autarkeia deve ser compreendida a partir de um prisma coletivo Esta perspectiva
23 EacuteE I 1218b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 6224 Cf EacuteN I 1097a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1425 Na Metafiacutesica 1021b 30 o termo teacuteleion eacute descrito do seguinte modo ldquoPortanto as coisas como se dizem perfeitaspor si em todos esses sentidos algumas porque relativamente a seu bem natildeo carecem de nada ou natildeo satildeo superadospor outras e natildeo tecircm nenhuma de suas partes fora de si outras em geral porque natildeo satildeo superadas por outra e natildeo tecircmnenhuma parte fora de si no acircmbito do seu gecircnerordquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego comtraduccedilatildeo e comentaacuterios de Giovanni Reale) Vol II Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ed 2005p 24126 Cf EacuteN I 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 15
14
comunitaacuteria eacute perceptiacutevel quando Aristoacuteteles remete ao fato que deve ser observada a suficiecircncia
em funccedilatildeo tambeacutem dos pais esposa amigos e cidadatildeos da poacutelis27
Ao considerarmos a relaccedilatildeo entre fins preciacutepuos que satildeo buscados em si mesmos e fins
subordinados de caraacuteter instrumental que servem como fins para alcanccedilar um fim maior essa
relaccedilatildeo de hierarquia traz alguns questionamentos a serem considerados De modo sucinto
expomos estes questionamentos uma vez que estatildeo inseridas na histoacuteria dos estudos acerca da eacutetica
aristoteacutelica A primeira questatildeo versa acerca da possibilidade de Aristoacuteteles ter cometido uma
falaacutecia chamada de ldquomenino e meninardquo A segunda questatildeo diz respeito ao bem supremo ser
compreendido como um fim dominante ou um fim inclusivo
12 Uma possiacutevel falaacutecia aristoteacutelica
A ideia de um fim uacuteltimo a ser alcanccedilado por meio de fins instrumentais eacute posta por
Aristoacuteteles no iniacutecio Eacutetica a Nicocircmaco A forma que eacute descrita esta relaccedilatildeo no tratado aristoteacutelico
entre o Supremo Bem que eacute buscado por si proacuteprio e demais fins que satildeo subordinados a ele gerou
o debate apresentado neste toacutepico Sobre o tema se Aristoacuteteles cometeu ou natildeo a falaacutecia
argumentativa sobre o argumento do fim expomos as perspectivas de Peter Thomas Geach e Peter
Vranas O primeiro considera que o estagirita incorreu em uma falaacutecia o segundo defende a ideia
que natildeo foi cometida nenhuma falaacutecia no argumento aristoteacutelico Neste sentido segue o trecho a ser
comentado
Se pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo etudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisadesejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito einuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem ou antes osumo bem28
27 Cf EacuteN I 1097b 10-13 Ibidem p 15 Entendemos tambeacutem que a ideia de autossuficiecircncia natildeo pode sercompreendida somente de modo individual tendo em vista o fato que o conceito de autarkeia tambeacutem eacute fundamentalpara a concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo poliacutetica da Cidade-estado grega Uma vez que a poacutelis eacute construiacuteda com a finalidade deser autocircnoma com todos os meios de prover a si proacutepria e propiciar o melhor ambiente para que os cidadatildeos alcancemuma vida feliz Conforme Aristoacuteteles aponta na obra Poliacutetica I 1252b 30-1253a 1-5 a vida feliz eacute a finalidade naturalda comunidade poliacutetica e todo ser estaacute plenamente integrado na natureza quando atinge seu pleno desenvolvimento ouseja estaacute completo com perfeiccedilatildeo Deste modo uma vez que o ser humano possui uma natureza social ela somente serealiza plenamente no contexto da poacutelis Outro fator que consideramos que a autossuficiecircncia eacute compreendida dentro deuma visatildeo coletiva refere-se agrave virtude da justiccedila De acordo com o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco V 1130a 1-5 elasomente pode ser exercida dentro de uma sociedade pois visa o bem alheio Eacute uma virtude que natildeo pode ser praticadade modo solitaacuterio pelo agente mas deve realizaacute-la em funccedilatildeo dos outros Disto decorre que a vida feliz de um indiviacuteduotambeacutem estaacute em parte relacionada agrave felicidade das pessoas que o cercam de modo mais proacuteximo e da comunidade emgeral 28 EacuteN I 1094a 18-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 9
15
Assim sendo abordemos a questatildeo da dita falaacutecia aristoteacutelica Segundo o comentador
Geach29 seria um erro de loacutegica formal Eacute perceptiacutevel que existe uma diferenccedila entre as expressotildees
(i)Todo menino ama alguma meninardquo e (ii) ldquoHaacute alguma menina que todo menino amardquo30 Se
tomarmos a expressatildeo ldquoTodo menino ama alguma meninardquo natildeo eacute possiacutevel inferir que ldquoHaacute alguma
menina que todo menino amardquo sem fazer uma falaacutecia Ou seja (i) natildeo implica em (ii)
Agrave luz do exemplo de Geach o deslize argumentativo manifesta-se no fato de afirmar que
Todo menino ama alguma meninardquo natildeo implica necessariamente que exista alguma menina ou
seja uma uacutenica menina que todo menino ama Em termos teacutecnicos da loacutegica moderna a falaacutecia
cometida por Aristoacuteteles eacute denominada como uma falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores31
Na falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores eacute realizada uma passagem interdita entre um
conjunto de relaccedilotildees dispersas32 de fins para um conjunto de relaccedilotildees convergentes33 para um uacutenico
fim Isso se traduz da seguinte forma Se imaginarmos um conjunto de meninas e um outro conjunto
de meninos com o mesmo nuacutemero de elementos em cada conjunto Uma primeira possibilidade de
interaccedilatildeo entre os elementos de cada grupo seria cada rapaz amar uma garota que nenhum outro
garoto do grupo dos meninos ame tambeacutem Neste caso os dois conjuntos estatildeo dispersos natildeo haacute
uma convergecircncia entre os elementos dos respectivos grupos devido ao fato que um garoto
somente ama uma garota Na segunda possibilidade todos os garotos amam uma exclusiva e mesma
garota entatildeo existe uma convergecircncia total de todos os elementos do conjunto dos meninos
direcionados para uma uacutenica garota do grupo das meninas34 Deste modo essa inversatildeo de
quantificadores aplicada ao argumento aristoteacutelico significa afirmar que podem haver diferentes fins
a serem buscados tendo em vista a variedade de coisas e desejos humanos Eacute o caso mesmo que
natildeo desejemos uma seacuterie infinita de coisas a serem buscadas com vistas em outra pois este fato
acarreta uma seacuterie infinita de desejos Isto natildeo implica necessariamente que exista um uacutenico e
melhor fim que desejemos e todos os outros fins sejam buscados em funccedilatildeo dele
Eacute preciso observar no caso em questatildeo que Geach natildeo analisa especificamente agrave Eacutetica a
Nicocircmaco e nem o argumento aristoteacutelico por si mesmo Ele apenas o utiliza como exemplo
29 Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972 p 1-1330 No dizer de Geach ldquoAnybody can see that from lsquoEvery boy loves some girlrsquo we cannot infer lsquoThere is some girl thatevery boy lovesrsquo that from lsquoIt is obligatory that somebody should gorsquo it does not follow that lsquoThere is somebody who itis obligatory should gorsquo[] rdquo Ibidem p 131ldquoOperator-shift fallacy ldquoou ldquoquantifier-shift fallacyrdquo Cf Ibidem p 132 A dispersatildeo significa que cada elemento pertencente a um grupo x busca os outros elementos do grupo y Natildeo existea busca dos elementos do grupo x para um uacutenico elemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees dispersassignificam que todos os garotos buscam todas as garotas Ou seja cada garoto procura conquistar a sua garota Natildeo haacuteuma busca do grupo dos garotos para alcanccedilar uma uacutenica e mesma garota 33 A convergecircncia significa a orientaccedilatildeo para um mesmo objetivo Todos os elementos do grupo x buscam um uacutenicoelemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees convergentes significam que todos os garotos convergem ouseja todos se orientam para buscar uma uacutenica e mesma garota34 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia aristoteacutelica Tese deDoutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas p 78
16
juntamente com trechos de escritos de outros filoacutesofos famosos35 para demonstrar os requisitos
necessaacuterios de uma teoria da quantificaccedilatildeo na loacutegica moderna E tambeacutem utiliza estes escritos para
mostrar como pode ser uma ocorrecircncia comum cometer este tipo de falaacutecia de inversatildeo de
quantificadores36
A questatildeo da validade loacutegica expressa no referido trecho da Eacutetica a Nicocircmaco citado acima
natildeo eacute o escopo principal deste trabalho Mas eacute interessante apontar de maneira miacutenima um
possiacutevel caminho de superaccedilatildeo que este impasse trouxe agrave leitura do argumento aristoteacutelico haja
vista ser um dos argumentos centrais acerca da eudaimonia pois ela eacute o fim que natildeo se busca leva a
nenhum outro Para tanto seguimos dois enfoques descritos a seguir
Na primeira abordagem consideremos somente o aspecto da validade formal do argumento
aristoteacutelico Um possiacutevel caminho eacute realizar uma interpretaccedilatildeo do argumento aristoteacutelico que una as
proposiccedilotildees (a) ldquoSe pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo
e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim [] rdquo e (b) ldquo[]se eacute verdade que nem toda coisa
desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo
seria o nosso desejar) []rdquo como duas premissas que fundamentam a conclusatildeo (c) ldquo[] tal fim
seraacute o bem ou antes o sumo bemrdquo Isso eacute possiacutevel devido a utilizaccedilatildeo do termo ldquoerdquo (kai)37 no texto
aristoteacutelico que introduz a proposiccedilatildeo (a) e faz a ligaccedilatildeo com a proposiccedilatildeo (b) Logo haacute uma
indicaccedilatildeo hipoteacutetica da existecircncia de um fim desejado por si um fim uacuteltimo (fim universal) que
subordina os demais fins que satildeo instrumentais
Esta interpretaccedilatildeo literal do argumento aristoteacutelico eacute defendida por Peter Vranas38 que
retoma a mesma linha de raciociacutenio anteriormente defendida por Michael Wendin39 segundo a qual
Aristoacuteteles natildeo cometeu uma falaacutecia E natildeo incorreu em uma falaacutecia porque as duas proposiccedilotildees (a)
e (b) devem ser entendidas como uma conjunccedilatildeo No entender de Vranas caso consideremos que
existam dois fins uacuteltimos implicados se (a) eacute um fim universal e (b) eacute um fim natildeo-instrumental
procede que existe um uacutenico fim natildeo-instrumental40 que eacute equivalente a um fim uacutenico universal41
Logo esta conjunccedilatildeo implica que o fim proposto por Aristoacuteteles eacute um fim de caraacuteter natildeo-
instrumental o que significa que eacute um fim uacutenico universal42
35 Geach utiliza trechos de obras de Platatildeo Berkeley Spinoza Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Op cit p 2-536 Ibidem p 237 A junccedilatildeo das duas proposiccedilotildees eacute admissiacutevel tendo em vista o uso do termo καί que eacute o equivalente na liacutenguaportuguesa agrave conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo38 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo Phronesis Vol 50Nordm 2 2005 p 116-128 39 Cf WEDIN M ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981 p243-262 40 Fim natildeo-instrumental significa que este natildeo eacute perseguido por causa de nenhum outro fim41 Fim uacutenico universal equivale ao fim uacuteltimo42 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best goodrdquo Op cit p 118
17
Nesta linha de raciociacutenio caso as proposiccedilotildees (a) e (b) sejam verdadeiras sendo (a) um fim
uacutenico universal todos os outros fins tornam-se intermediaacuterios (fins ldquoxrdquo) instrumentos para alcanccedilar
(a) Inclusive o fim (b) assume nesta hipoacutetese um caraacuteter instrumental Mas a situaccedilatildeo pode ser
invertida pois caso (b) seja o fim a ser buscado torna-se o fim uacutenico universal com os fins
intermediaacuterios (fins ldquoyrdquo) como instrumentos para alcanccedilar (b) Neste caso (a) passa a ser
instrumental Portanto mesmo que um indiviacuteduo siga qualquer um dos fins (a) ou (b) como estatildeo
mutuamente relacionados entre si de todos os modos sua busca recai sobre o fim uacutenico universal43
A interpretaccedilatildeo de Vranas eacute interessante do ponto de vista da loacutegica formal e tenta inocentar
Aristoacuteteles de ter cometido a mencionada falaacutecia Este esforccedilo possui o seu meacuterito tendo em vista
ser uma denuacutencia que tem durado ao longo do tempo e defendida por diversos estudiosos da obra do
Estagirita Ainda assim haacute em nosso entender uma fragilidade no argumento exposto pelo citado
comentador A interpretaccedilatildeo literal estaacute baseada em uma leitura que aparentemente procura forccedilar
um limite de explicaccedilatildeo que natildeo encontra respaldo no texto aristoteacutelico Ao considerar o tratado da
Eacutetica a Nicocircmaco como um todo natildeo nos parece que haja dois fins uacuteltimos um de caraacuteter universal
e outro natildeo-instrumental de que possuam relaccedilotildees reciacuteprocas entre si Este fim universal e uacutenico eacute
asseverado pelo Estagirita quando afirma a existecircncia de apenas um fim absoluto e incondicional
Se porventura existir mais de um fim o mais absoluto de todos torna-se o objetivo a ser alcanccedilado
Este fim absoluto e incondicional eacute a proacutepria eudaimonia visto que todos os outros fins
intermediaacuterios satildeo buscados como meios para alcanccedilar uma vida feliz44 Assim sendo o texto de
Aristoacuteteles leva ao entendimento que exista somente um fim que eacute universal e uacutenico e os demais
fins possuem um caraacuteter instrumental de subordinaccedilatildeo a este fim universal
Em relaccedilatildeo ao argumento de Geach no qual ele afirma que natildeo eacute possiacutevel inferir a partir da
proposiccedilatildeo Todo menino ama alguma meninardquo que exista ldquoHaacute alguma menina que todo menino
amardquo O problema eacute que esta afirmaccedilatildeo natildeo considera a questatildeo da hierarquia de fins mencionada
no texto aristoteacutelico Ao desconsiderar esta hierarquia de fins haacute a eliminaccedilatildeo de qualquer
possibilidade de convergecircncia entre o Sumo Bem e outros fins A hierarquia entre fins subordinados
e os fins principais das variadas artes ciecircncias e atividades eacute descrita por Aristoacuteteles ao enumerar
alguns exemplos o fim da arte meacutedica eacute a sauacutede o fim da construccedilatildeo naval eacute a fabricaccedilatildeo do navio
o fim da estrateacutegia eacute a vitoacuteria o fim da economia eacute a riqueza o fim da selaria eacute a equitaccedilatildeo Os fins
uacuteltimos de cada arte satildeo preferiacuteveis por serem mais importantes por isso devem ser buscados por
meio dos fins subordinados45 O texto aristoteacutelico eacute claro ao afirmar a existecircncia de uma hierarquia
de fins em si que se encaminha agravequele fim uacuteltimo que eacute perseguido por todo ser humano em sua
43 Ibid p 11944 Cf EacuteN 1097a 25-30 a 1097b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1545 Cf EacuteN 1094a 7-15 Ibidem p 9
18
vida Eacute um raciociacutenio de cunho arquitetocircnico o qual mostra que os vaacuterios fins subordinados satildeo
etapas para alcanccedilar o fim uacuteltimo de determinada arte Deste modo como o objeto da eacutetica
aristoteacutelica eacute a felicidade humana Aristoacuteteles descreve a ldquoarquiteturardquo de construccedilatildeo de uma vida
feliz na qual cada fim eacute buscado com vistas a alcanccedilar esta plena realizaccedilatildeo que eacute a felicidade (fim
supremo)
O argumento de Geach parece natildeo contemplar esta arquitetura proveniente desta
convergecircncia do fim uacuteltimo e os fins subordinados Para uma melhor compreensatildeo desta
convergecircncia dos diversos fins um bom exemplo seria pensar em uma bacia hidrograacutefica46 Existem
rios secundaacuterios que satildeo diferentes entre si cada um com sua foz individual mas todos convergem
para o rio principal que desemboca no mar ou em um lago Cada rio secundaacuterio converge para um
fim maior mais abrangente que eacute o rio principal que desemboca no mar ou no lago que neste caso
representa o fim supremo Tal como a medicina busca a sauacutede a estrateacutegia busca agrave vitoacuteria agrave selaria
busca a equitaccedilatildeo etc e todas satildeo realizadas em vista da eudaimonia Logo a rede hidrograacutefica
como um todo eacute convergente e natildeo somente um uacutenico rio
A segunda abordagem visa examinar o domiacutenio referencial no qual o argumento aristoteacutelico
estaacute fundamentado em um aspecto praacutetico ou teoacuterico Para esta linha de pensamento a referecircncia
principal do argumento aristoteacutelico se encontra no universo da accedilatildeo O raciociacutenio do fim uacuteltimo
pode ser analisado sob dois prismas e cada um deles conduz agrave uma conclusatildeo diferente O primeiro
prisma eacute o de validade loacutegica o qual descrevemos acima ao examinar a criacutetica de Geach ao texto
aristoteacutelico O segundo prisma eacute analisar o argumento aristoteacutelico inserido no campo das accedilotildees
humanas Caso o argumento aristoteacutelico seja examinado sob o ponto de vista da loacutegica formal
apenas resta tentar estabelecer formas de evitar o julgamento de Geach por meio dos instrumentos
cabiacuteveis da loacutegica formal ou simplesmente aceitar o fato que houve o cometimento de uma falaacutecia
pelo Filoacutesofo Mas caso seja escolhido o prisma referencial que coloca o argumento aristoteacutelico no
acircmbito da praacutexis humana talvez seja possiacutevel sobrepujar o desafio imposto por Geach Portanto
procederemos agrave anaacutelise do argumento aristoteacutelico sob a oacutetica da dimensatildeo praacutetica
O domiacutenio referencial no qual se insere o argumento aristoteacutelico eacute a accedilatildeo humana Natildeo se
trata somente de considerar a validade loacutegica das proposiccedilotildees como verdadeiras ou falsas mas
tambeacutem como devem ser entendidos conceitos importantes para a anaacutelise da conduta dos
indiviacuteduos tais como a felicidade o bem humano as virtudes etc Neste sentido haacute um
deslocamento para o domiacutenio praacutetico do argumento aristoteacutelico evitando seu uso somente no
domiacutenio teoacuterico no qual Geach realiza sua anaacutelise O domiacutenio teoacuterico e o domiacutenio praacutetico satildeo
compreendidos a partir da conceituaccedilatildeo de Aristoacuteteles O aspecto teoacuterico desenvolve as operaccedilotildees
46 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Op cit p 89
19
intelectuais da bios theorethikoacutes da verdade e da falsidade dos postulados do raciociacutenio47 enquanto
o aspecto praacutetico tem por objeto natildeo somente a validade das proposiccedilotildees mas orientar a conduta do
homem em funccedilatildeo da verdade Logo este uacuteltimo aspecto cuida para que a verdade permaneccedila em
concordacircncia com a retidatildeo no desejo e possa orientar a racionalidade praacutetica para a consecuccedilatildeo de
um fim nobre48
13 Fim dominante ou fim inclusivo
Neste ponto pode surgir um questionamento acerca da relaccedilatildeo entre fins e o supremo bem
uma vez que possa haver uma convergecircncia entre fins em prol de um fim supremo Quais fins
devem ser buscados pelo indiviacuteduo para que atinja uma vida feliz A resposta a esta pergunta
inspira duas perspectivas diferentes sobre o Supremo Bem e qual eacute a sua relaccedilatildeo com os fins
subordinados a ele Neste sentido existem duas visotildees sobre o Supremo Bem A primeira eacute vista
sob o prisma de um fim uacuteltimo dominante a segunda como um fim uacuteltimo inclusivo Deste modo
abordaremos estes dois pontos de vista acerca deste Bem maior
Uma vez que o sumo bem eacute a eudaimonia esta eacute identificada com a vida teoacuterico-
contemplativa ou pelo menos haacute uma grande ecircnfase neste tipo de vida como sendo uma vida
feliz49 Logo a pergunta central eacute saber se a vida feliz eacute somente caracterizada pela contemplaccedilatildeo
ou tambeacutem inclui outros tipos de bens
Na anaacutelise acerca do fim aristoteacutelico ser dominante ou inclusivo os principais estudiosos satildeo
William Francis Ross Hardie e John Lloyd Ackrill O primeiro comentador W F R Hardie defende
o ponto de vista de um fim dominante Enquanto o segundo estudioso advoga que o fim descrito por
Aristoacuteteles deve ser observado a partir de uma perspectiva inclusivista
No caminho de anaacutelise acerca da eudaimonia ser um fim dominante ou inclusivo WFR
Hardie50 iniciou esta discussatildeo ao afirmar que existiria uma falta de precisatildeo de Aristoacuteteles ao expor
o argumento que a eudaimonia eacute o fim uacuteltimo a ser alcanccedilado pelos indiviacuteduos Esta imprecisatildeo eacute
causada pelo fato do Estagirita natildeo ter explicitado de modo claro e contundente que espeacutecie de fim
uacuteltimo eacute o Supremo Bem A insuficiecircncia na explicaccedilatildeo aristoteacutelica permite a especulaccedilatildeo sob qual
prisma deve ser entendido o Bem maior como fim dominante ou inclusivo A desordem reside no
seguinte ponto Ao buscar a felicidade os indiviacuteduos elaboram o seu planejamento de vida que
inclui alcanccedilar determinados fins para satisfazer desejos que os levaratildeo a ter uma vida feliz Ao
47Cf EacuteN VI 1139a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10248Cf EacuteN VI 1139a 35-1139b 4 Ibidem p 10249Cf EacuteN X 1177a 11-15 ndash 1178a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 188-18950Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacuteticanicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
20
fazer este planejamento a duacutevida recai sobre qual eacute a ecircnfase colocada em um determinado fim para
que este se torne o seu fim predominante para que este fim se transforme no eixo central da vida
Este eixo central que eacute um objeto uacutenico desejado na vida do indiviacuteduo pode ser a riqueza a fama
a ciecircncia para ficarmos com alguns exemplos citados na Eacutetica a Nicocircmaco Ao planejar sua vida
qualquer indiviacuteduo sabe que possui variados interesses e desejos Percebe que alguns desejos satildeo
mais importantes que outros Ou percebe que alguns desejos satildeo mais difiacuteceis de serem realizados
enquanto outros satildeo mais faacuteceis E que a busca de um desejo escolhido pode auxiliar atrapalhar ou
tornar irrealizaacutevel a satisfaccedilatildeo de outros desejos Desta forma o indiviacuteduo que reflete acerca dos
seus desejos dentro do seu plano de vida procura traccedilar um caminho que permita a conquista do
modo mais completo possiacutevel dos desejos elencados como os mais importantes e satisfatoacuterios Sob
esta perspectiva o desejo pela felicidade consiste em satisfazer vaacuterios desejos de maneira
harmoniosa e ordenada
Na compreensatildeo de Hardie51 a concepccedilatildeo de fim inclusivo como sendo um conjunto de
fins pode ser constatado na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles ao dizer que uma ciecircncia ldquoarquitetocircnicardquo52 se
constitui com um fim preciacutepuo53 A felicidade eacute considerada como a coisa mais desejada perante
todas as outras sem que seja contada entre elas pois continua a ser a mais desejada mesmo com a
adiccedilatildeo do menor dos bens54 Para o mencionado comentador o estagirita deveria conceituar a
felicidade como um fim de segunda ordem55 no qual se incluiriam os fins de primeira ordem em
uma plena realizaccedilatildeo harmoniosa Mas ele natildeo o faz Diante deste quadro no entender de Hardie o
filoacutesofo grego ao tentar definir o bem final aproxima-se de uma concepccedilatildeo inclusivista mas
termina por construir uma concepccedilatildeo dominante sobre o supremo bem
A tese que compreende a eudaimonia como fim dominante descreve que o Sumo Bem
possui um cunho superior mais elevado que os outros fins Se a eudaimonia estaacute acima de outros
fins como por exemplo a honra o prazer a riqueza ou o conhecimento e se para alcanccedilar uma
vida feliz eacute necessaacuterio alcanccedilar um determinado tipo de fim pois este fim identifica-se com a
eudaimonia entatildeo este fim passa a ser o mais importante e superior de todos os outros fins juntos
A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo isso significa dizer que caso a eudaimonia seja identificada com a riqueza
esse fim torna-se essencial e deve ser buscado por qualquer indiviacuteduo que queira uma vida feliz Haacute
uma preponderacircncia deste fim essencial sobre outros fins os quais se tornam suplementares Todas
51Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo Op cit p 44 52Cf EacuteN 1094a 26-27 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4453Um exemplo utilizado eacute caso da poliacutetica Esta ciecircncia possui a caracteriacutestica de comportar vaacuterios outros fins CfEacuteN 1094b 6-7 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4454Cf EacuteN 1097b 16-20 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4455A felicidade eacute um fim de segunda ordem por ser considerada o fim uacuteltimo o fim mais desejado O fim de segundaordem eacute decorrente da consecuccedilatildeo de fins de primeira ordem que satildeo conquistados por meio das accedilotildees do indiviacuteduo
21
as accedilotildees do indiviacuteduo convergem para atingir este fim considerado o mais importante porque ele eacute
o proacuteprio nuacutecleo da eudaimonia
A criacutetica da concepccedilatildeo dominante eacute feita por JL Ackrill56 Este uacuteltimo concorda com
Hardie que natildeo eacute clara a posiccedilatildeo aristoteacutelica sobre a eudaimonia possuir uma tendecircncia inclusiva
ou dominante Mas Ackrill57 defende que conceito de eudaimonia exposto por Aristoacuteteles eacute
fundamentalmente de cunho inclusivo No argumento de Ackrill o conceito de fim inclusivo pode
ser entendido de duas formas A primeira forma de compreensatildeo eacute enxergar o fim como algo que
inclua dois ou mais objetivos valores atividades ou bens os quais possuem um mesmo valor natildeo
havendo uma diferenccedila de importacircncia entre estes elementos A segunda forma eacute compreender o
fim como algo que englobe os mesmos elementos (objetivos valores etc) mas que possuem um
valor aproximadamente igual entre si Ou seja nenhum elemento eacute muito superior a qualquer um
dos outros elementos inclusos no fim O conceito de fim dominante tambeacutem pode ser entendido de
duas formas58 A primeira forma entende o fim dominante com sendo um ldquofim monoliacuteticordquo que
consiste em somente uma atividade ou um bem mais valoroso Na segunda forma o fim conteacutem dois
ou mais elementos que satildeo valorosos em si mesmos mas somente um destes elementos eacute
considerado o mais importante de todos sendo o elemento que possui a preponderacircncia ou
supremacia frente a todos os demais elementos Logo este eacute o bem dominante dentro do fim uacuteltimo
Ackrill continua a argumentar que o fim uacuteltimo eacute uma reuniatildeo de fins que podem ser
agradaacuteveis e dignos em si mesmos natildeo havendo um uacutenico fim que seja superior aos demais fins59
A analogia que Ackrill utiliza eacute comparar o Supremo Bem com um cafeacute da manhatilde com trecircs
elementos bacon ovos e tomates Em uma leitura inclusiva bacon natildeo eacute superior aos ovos e aos
tomates Os trecircs juntos satildeo melhores que apenas o bacon A combinaccedilatildeo dos trecircs elementos forma
um conjunto superior em relaccedilatildeo a um fim uacuteltimo que eacute baseado somente em um uacutenico elemento
Na interpretaccedilatildeo de Zingano 60 o Supremo Bem natildeo eacute um uacutenico bem que estaacute acima de
todos os outros bens Consiste em uma reuniatildeo de todos os bens buscados pelo indiviacuteduo Eacute um
bem formalmente uacutenico mas materialmente diversificado61 Pois a tese que compreende a
56Cf ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteiade Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-12557Cf ACKRILL JL Ibidem p 10558 Em relaccedilatildeo ao fim dominante este pode ser interpretado em uma chave de leitura ldquoforterdquo ou ldquofracardquo O ponto devista ldquoforterdquo como um ldquofim monoliacuteticordquo aparece quando Hardie afirma que o fim supremo aristoteacutelico eacute dominanteporque eacute identificado com um uacutenico objeto de desejo principal que eacute a proacutepria filosofia (entendida como sabedoriacontemplativa) O ponto de vista ldquofracordquo surge no momento que Hardie assevera que dentre alguns fins combinadosexiste um fim dominante Segundo Ackrill a chave de leitura ldquoforterdquo eacute a adotada por Hardie Por isso natildeo pode seraceita porque um fim dominante ldquomonoliacuteticordquo seria restritivo demais para ser elencado como o Supremo Bem a serconquistado59 Cf ACKRILL JL rdquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo Op cit p 10860 Cf ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 73-11061 Cf Ibidem p 103
22
eudaimonia como um fim inclusivo descreve que a felicidade possui uma pluralidade de fins em si
que satildeo independentes mas satildeo buscados de forma harmocircnica Nesta pluralidade de fins existem
fins que satildeo desejados por si mesmos e fins instrumentais (subordinados) a estes fins preciacutepuos que
somente servem para atingir os fins em si Mas todos eles satildeo buscados tendo em vista a
eudaimonia Deste modo a eudaimonia inclui todos os fins desejaacuteveis que podem ser buscados em
vista do Sumo Bem
Esta eacute a posiccedilatildeo de Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar a ideia de bem aristoteacutelica Eacute o
ldquobem geralrdquo que delimita a atividade especiacutefica de cada ciecircncia em particular Igualmente ocorre
com as accedilotildees humanas em geral o homem realiza diversas accedilotildees particulares que conteacutem seus fins
particulares mas todas estas accedilotildees satildeo feitas em vistas de alguma concepccedilatildeo de Sumo Bem
Conforme mostra o Aquinate nas Sententia Libri Ethicorum
Assim quando Aristoacuteteles diz-se (sic) que o bem eacute o que todos apetecem natildeo sedeve entender apenas para os que tecircm conhecimento que apreendem o bem mastambeacutem para os que carecem do conhecimento que tendem ao bem por um apetitenatural natildeo enquanto conheccedilam o bem mas porque satildeo movidos ao bem poralgum cognoscente a saber pela ordenaccedilatildeo do intelecto divino ao modo como aflecha tende ao alvo pela direccedilatildeo do arqueiro Mas o proacuteprio tender ao bem eacuteapetecer o bem e por isso disse que o ato apetece ao bem enquanto tende ao bemNatildeo eacute poreacutem um uacutenico bem ao qual todas as coisas tendem como foi dito acimaE portanto natildeo se descreve aqui um uacutenico bem mas um bem considerado emcomum Porque nada eacute bom a natildeo ser quanto eacute certa semelhanccedila e participaccedilatildeo dosumo Bem o mesmo sumo Bem que eacute de algum modo apetecido em todo bem Eassim pode-se dizer que eacute um uacutenico bem o que todos apetecem62
Natildeo eacute objetivo principal deste trabalho responder plenamente agrave questatildeo da eudaimonia ser
um fim dominante ou um fim inclusivo Mas pensamos ser interessante apresentar um breve parecer
acerca deste tema relacionado a vida feliz A questatildeo de como interpretar a eudaimonia como um
fim dominante ou fim inclusivo decorre da forma que Aristoacuteteles apresenta a vida teoacuterico-
contemplativa (βίος θεωρητικός) no Livro X da Eacutetica a Nicocircmaco Sob a perspectiva de fim
62 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes Vol IEdiccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015 p27 A citaccedilatildeo em latim vemdas Sententia Libri Ethicorum liber 1 lectio 1 n 11 ldquoQuod autem dicit quod omnia appetunt non est intelligendumsolum de habentibus cognitionem quae apprehendunt bonum sed etiam de rebus carentibus cognitione quae naturaliappetitu tendunt in bonum non quasi cognoscant bonum sed quia ab aliquo cognoscente moventur ad bonum scilicetex ordinatione divini intellectus ad modum quo sagitta tendit ad signum ex directione sagittantis Ipsum autem tenderein bonum est appetere bonum unde et actum dixit appetere bonum in quantum tendit in bonum Non autem est unumbonum in quod omnia tendunt ut infra dicetur Et ideo non describitur hic aliquod unum bonum sed bonumcommuniter sumptum Quia autem nihil est bonum nisi inquantum est quaedam similitudo et participatio summi boniipsum summum bonum quodammodo appetitur in quolibet bono et sic potest dici quod unum bonum est quod omniaappetuntrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Sententia libri Ethicorum liber I a lectio I ad IIIDisponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc0101htmlgt Acesso em 23 de junho de 2017
23
dominante todas as virtudes bens externos e a conduta do indiviacuteduo estatildeo subordinados a um fim
uacutenico e determinado que consiste na vida teoacuterico-contemplativa Aristoacuteteles natildeo poupa elogios agrave
vida teoacuterico-contemplativa ao descrever que esta eacute a melhor a mais duraacutevel a mais completa
autossuficiente e a mais amada de todas as atividades63 A contemplaccedilatildeo em outras palavras a
sabedoria filosoacutefica (σοφία) eacute o fim mais desejaacutevel entre todos os outros fins Por outro lado o
Estagirita destaca o papel das virtudes morais juntamente com a virtude intelectual da prudecircncia no
Livro VI da EacuteN Na eacutetica aristoteacutelica haacute uma grande importacircncia conferida agrave vida praacutetica Desta
maneira resta saber como a contemplaccedilatildeo interage com as virtudes morais a virtude da prudecircncia e
os demais fins
Em que consiste a vida teoacuterico-contemplativa Consiste em um estilo de vida que busca o
conhecimento da verdade64 e a nobreza de conduta como fundamento principal porque a verdade e
a nobreza de conduta adquirida por meio da praacutetica das virtudes morais satildeo pilares da eudaimonia
A faculdade da razatildeo eacute o que haacute de mais caracteriacutestico no ser humano Por isso pautar-se por ela
traz a certeza de uma vida feliz65 E aliado a esta racionalidade encontram-se as accedilotildees virtuosas66
Logo a vida contemplativa eacute uma vida proveniente da uniatildeo do exerciacutecio do intelecto com a retidatildeo
moral
A vida teoacuterico-contemplativa pode ser chamada de dominante por ser a meta a ser
perseguida como tipo de vida ideal para o indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida de plenitude
Uma vez identificada com a eudaimonia passa a ser o fim uacuteltimo e supremo Mas essa dominacircncia
da vida contemplativa para que possa ser efetiva inclui outros tipos de fins que satildeo as virtudes
morais e poucos bens externos67 Deste modo existe uma mescla entre as vertentes dominante e
inclusiva na compreensatildeo do Supremo Bem aristoteacutelico
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos questionamentos levantados ao longo do tempo sobre o caraacuteter
dominante ou inclusivo do fim aristoteacutelico no proacuteximo toacutepico analisaremos os conceitos basilares
de ldquofunccedilatildeordquo e de ldquofinalidaderdquo utilizados na filosofia moral de Aristoacuteteles
63 Cf EacuteN X 1177a20-30 e X 1177b1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 190-19164 Cf EacuteN1177b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p19065 Cf EacuteN1178a 5-8 Ibidem p19066 Cf EacuteN 1178a 10 Ibidem p19067 CF EacuteN 1179a 5-7 Ibidem p191
24
14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres
Acerca do conceito de finalidade (ές existe uma outra significaccedilatildeo possiacutevel deste termo
que eacute a de ldquoplenituderdquo (τέλειον) Assim ao afirmar que os seres tendem agrave sua finalidade pode-se
entender que os seres procuram ou tendem a serem plenos completos por realizarem seus fins
especiacuteficos
O conceito de finalidade eacute dotado de grande importacircncia para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica de
Aristoacuteteles Sua filosofia moral eacute baseada na finalidade caracteriacutestica do ser humano Toda a accedilatildeo
humana eacute realizada em funccedilatildeo de um determinado fim seja este considerado em si mesmo seja este
visto como meio para obtenccedilatildeo de outros fins Do mesmo modo o ser humano tende a uma
finalidade propriamente sua que deriva de sua proacutepria natureza Essa finalidade proacutepria ultrapassa
os fins especiacuteficos das accedilotildees humanas como por exemplo ser artesatildeo ser poliacutetico ser pedagogo ou
quaisquer outras accedilotildees exercidas Eacute um tipo de fim mais abrangente e duradouro ao qual os outros
fins estatildeo subordinados Neste sentido a plena realizaccedilatildeo do ser humano encontra-se no
aperfeiccediloamento de todas as suas caracteriacutesticas e em especial no uso da razatildeo (λόγος)
Ao dizer que a eudaimonia eacute o ldquomelhor bem de todosrdquo e o mais procurado68 Aristoacuteteles
procurar fundamentar o alcance de uma vida plena na ideia de ergon (ἔργονdos seres Este termo
eacute tradicionalmente traduzido por ldquofunccedilatildeordquo mas tambeacutem pode ser entendido como ldquotrabalhordquo
ldquoocupaccedilatildeordquo ldquotarefardquo69 Optamos por utilizar o termo tradicional de funccedilatildeo uma vez que
acreditamos ser o termo adequado para o entendimento da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as
funccedilotildees e virtudes que cada ser possui e que no contexto eacutetico culmina com a funccedilatildeo e virtude do
ser humano O que significa essa funccedilatildeo exclusiva das coisas Significa dizer que cada ser possui
uma funccedilatildeo que lhe eacute caracteriacutestica em decorrecircncia daquela finalidade para a qual fora criada Ou
seja a finalidade eacute inerente aos seres Por exemplo um navio eacute criado para navegar este objeto foi
criado para isso sua finalidade preciacutepua eacute a navegaccedilatildeo Caso o navio seja utilizado para outros fins
que natildeo agravequele ao qual foi originalmente fabricado haacute um desvirtuamento do seu fim original Ou
entatildeo o navio esteja com um casco fendido o que impossibilita uma boa navegaccedilatildeo a embarcaccedilatildeo
natildeo cumpre ou cumpre de modo pouco eficaz o fim para o qual foi designado Logo tanto na
situaccedilatildeo de desvirtuamento para o uso de outras funccedilotildees que natildeo aquela para o qual foi criado o
navio quanto na situaccedilatildeo em que haacute um casco ruim este objeto natildeo desempenha plenamente a sua
funccedilatildeo
68CF EacuteN 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p1569PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles Op cit p32
25
O navio ao natildeo desempenhar plenamente a sua funccedilatildeo perde a possibilidade de alcanccedilar a
excelecircncia na accedilatildeo de navegar Esta excelecircncia eacute a virtude (ἀρετήde cada ser eacute a plena realizaccedilatildeo
da sua funccedilatildeo atingida por qualquer ser E esta plenitude eacute atingida quando haacute (1) o cumprimento
exato da sua finalidade e (2) quando a accedilatildeo realizada eacute feita de forma maximamente eficaz Esta
ideia de virtude das coisas ao exercerem a sua funccedilatildeo de um ldquobom modordquo e de uma maneira eficaz
eacute o bem desta coisa Assim sendo Aristoacuteteles busca a funccedilatildeo inerente ao ser humano aquilo que lhe
eacute mais essencial Pois a vida plena a eudaimonia de um ser humano estaacute associada agrave realizaccedilatildeo
daquilo que lhe eacute mais proacuteprio ou seja do seu ergon mais distintivo conforme descrito na Eacutetica a
Nicocircmaco
Mas dizer que a felicidade eacute o sumo bem talvez pareccedila uma banalidade e faltaainda explicar mais claramente o que ela seja Tal explicaccedilatildeo natildeo ofereceria grandedificuldade se pudeacutessemos determinar primeiro a funccedilatildeo do homem Pois assimcomo para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisasque tecircm uma funccedilatildeo ou atividade considera-se que o bem e o ldquobem feitordquo residemna funccedilatildeo o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo Dar-se-aacute ocaso entatildeo de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funccedilotildees e atividades eo homem natildeo tenha nenhuma Ou assim como o olho a matildeo o peacute e em geral cadaparte do corpo tecircm evidentemente uma funccedilatildeo proacutepria poderemos assentar que ohomem do mesmo modo tem uma funccedilatildeo agrave parte de todas essas Qual poderaacute serela70
Cada oacutergatildeo do corpo humano possui sua funccedilatildeo especiacutefica e quando esta funccedilatildeo eacute exercida
da sua melhor maneira encontra-se em sua plena virtude O carpinteiro ou curtidor tem sua
atividade preciacutepua ao exercer sua respectiva funccedilatildeo de moldar a madeira e preparar o couro da
melhor maneira exerce suas atividades de modo virtuoso Em outras palavras assume seu grau de
excelecircncia Neste sentido o ser humano realiza plenamente sua funccedilatildeo proacutepria quando escolhe
atingir a excelecircncia naquilo que o diferencia de outros seres que eacute a racionalidade
Para responder a esta questatildeo acerca da funccedilatildeo proacutepria do ser humano Aristoacuteteles recorre agrave
divisatildeo da alma ( exposta na obra De Anima na qual eacute demonstrada a ideia de que a alma
possui trecircs partes ou faculdades distintas as quais satildeo intituladas de nutritiva (vegetativa) sensitiva
(perceptiva) e intelectiva (racional) A faculdade nutritiva eacute responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo dos seres vivos Eacute a faculdade nutritiva que primeiramente proporciona que haja vida
nos seres sendo comum a todos os seres vivos71 A faculdade sensitiva eacute a parte da alma que possui
a finalidade de percepcionar os sensiacuteveis e possui a funccedilatildeo de captar os estiacutemulos sensoriais
provenientes dos entes externos ao corpo e a alma Estes sensiacuteveis satildeo captados pelos cinco
70 EacuteN I 1097b 25-37 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15-1671 Cf De Anima II 415a 22 ARISTOacuteTELES De Anima Op cit p 50
26
sentidos visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar tato72 A faculdade intelectiva eacute a parte da alma com
capacidade para conhecer as formas inteligiacuteveis sendo responsaacutevel pelas funccedilotildees operativas do
entendimento tais como raciocinar deliberar escolher etc73
Na Eacutetica a Nicocircmaco esta divisatildeo da alma tambeacutem aparece ldquoPor exemplo que a alma tem
uma parte racional e outra privada de razatildeo []rdquo74Aristoacuteteles expotildee de modo sinteacutetico como a parte
irracional e racional da alma se comportam em relaccedilatildeo uma com a outra75 As faculdades nutritiva e
sensitiva fazem parte irracional E naturalmente a parte racional eacute a proacutepria faculdade intelectiva
A caracteriacutestica essencial do ser humano eacute a racionalidade Por isso deve submeter seus anseios e
desejos que fazem parte da faculdade sensitiva aos ditames da razatildeo para que possa realizar
plenamente sua finalidade e consequentemente ter uma vida feliz Mas para que o homem virtuoso
possa viver em funccedilatildeo do intelecto eacute necessaacuterio o cultivo das virtudes morais Pois satildeo as virtudes
morais que controlam os desejos do indiviacuteduo Aqui se encontra o ponto de confluecircncia entre a
faculdade sensitiva e a faculdade racional sem as virtudes morais ligadas agrave faculdade sensitiva natildeo
eacute possiacutevel agrave submissatildeo dos desejos agrave razatildeo Sem a faculdade racional natildeo eacute possiacutevel adquirir agraves
virtudes morais Esta intersecccedilatildeo entre a faculdade sensitiva e a faculdade racional pode ser
denominado como razatildeo desiderativa ou desejo racional76 Isso significa que os desejos se originam
na faculdade sensitiva mas uma vez que satildeo orientados pelo intelecto haacute uma influecircncia da
faculdade racional na parte sensitiva da alma Deste modo eacute nesta relaccedilatildeo entre o domiacutenio dos
desejos controlados por meio das virtudes morais e a racionalidade que se encontra a formaccedilatildeo do
homem virtuoso
No que tange agrave formaccedilatildeo moral do homem virtuoso a faculdade nutritiva eacute imediatamente
descartada por Aristoacuteteles pois ela eacute uma faculdade comum a todos os seres vivos e natildeo somente ao
homem Haja vista a funccedilatildeo da faculdade nutritiva ser apenas a nutriccedilatildeo e crescimento de um ser
vivo natildeo pode contribuir em nenhum aspecto na aquisiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das virtudes morais A
faculdade sensitiva deve atender aos comandos da faculdade racional Pois a parte sensitiva conteacutem
os desejos e estes nem sempre estatildeo de acordo com os princiacutepios determinados pela faculdade
racional Logo procede que natildeo haacute uma harmonia natural entre as duas faculdades mas o homem
virtuoso precisa proceder de modo que haja a prevalecircncia da razatildeo sobre os desejos para que
possam ser guiados de forma a contribuiacuterem para a eudaimonia Conforme descreve o texto
72 Cf De Anima II 424b 23 Ibidem p 8373 Cf De Anima III 429a 10 Ibidem p 9774 Cf EacuteN I 1102a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p2375Cf EacuteN I 1102b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24 76Cf EacuteN I 1103a 1-4 Ibidem p 24
27
Por exemplo que a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razatildeo []Do elemento irracional uma subdivisatildeo parece estar largamente difundida e ser denatureza vegetativa Refiro-me agrave que eacute causa da nutriccedilatildeo e do crescimento []Parece haver na alma ainda outro elemento irracional mas que em certo sentidoparticipa da razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional do homem continentee do incontinente () assim como a parte de sua alma quepossui tal princiacutepio porquanto ela nos impele na direccedilatildeo certa e para os melhoresobjetivos mas ao mesmo tempo encontra-se neles um outro elementonaturalmente oposto ao princiacutepio racional lutando contra este a resistindo-lhe []os impulsos dos incontinentes movem-se em direccedilotildees contraacuterias[] Apesar dissodevemos admitir que tambeacutem na alma existe qualquer coisa contraacuteria ao princiacutepioracional qualquer coisa que lhe resiste e se opotildee a ele [] seja como for nohomem continente ele obedece ao referido princiacutepio racional e eacute de presumir queno temperante e no bravo seja mais obediente ainda pois em tais homens ele fala arespeito de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racional77
Exposta a ideia acerca da divisatildeo da alma e sendo caracterizado que a faculdade racional eacute a
uacutenica inteiramente humana segue-se que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada com um tipo
de vida conduzida pela racionalidade Mas aleacutem de ser marcada pelo uso da razatildeo a funccedilatildeo do ser
humano tambeacutem consiste em ser realizada de maneira adequada e de modo digno A accedilatildeo virtuosa eacute
pautada nestes dois pressupostos (1) baseada na razatildeo e (2) feita de maneira adequada e digna
Neste ponto eacute importante perceber uma distinccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre uma accedilatildeo virtuosa e uma
accedilatildeo boa Natildeo eacute qualquer tipo de accedilatildeo que pode ser considerada como uma accedilatildeo virtuosa A accedilatildeo
virtuosa eacute caracterizada por ser uma accedilatildeo que proveacutem da virtude O homem virtuoso ao realizar
uma accedilatildeo virtuosa age com os meios corretos e com um fim nobre Isso fica claro quando
Aristoacuteteles assevera que o indiviacuteduo deve conhecer a accedilatildeo que realiza e deve escolher fazer a accedilatildeo
pela virtude78 A accedilatildeo deve ser feita do mesmo modo que os homens virtuosos fazem79 A accedilatildeo
meramente boa eacute uma accedilatildeo que pode ter um fim nobre mas o agente natildeo possui o conhecimento
das razotildees corretas de sua accedilatildeo Eacute uma accedilatildeo que possui uma aparecircncia de virtude mas natildeo eacute
verdadeiramente uma virtude porque carece de um caraacuteter intriacutenseco ao agente que realiza a accedilatildeo
Somado aos pressupostos da razatildeo e da virtude existe um terceiro pressuposto que completa as
caracteriacutesticas de uma accedilatildeo virtuosa que eacute (3) a praacutetica constante destas accedilotildees Esta praacutetica
constante de atos virtuosos eacute mostrada na comparaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre a constacircncia
necessaacuteria de accedilotildees virtuosas e uma andorinha solitaacuteria que em um dia somente natildeo faz um veratildeo
Ou seja um curto e passageiro periacuteodo de felicidade natildeo sustenta uma vida de plenitude80 Em
siacutentese a vida feliz eacute a vivecircncia desta faculdade racional que se sobrepotildee as demais estaacute em
77 EacuteN I 1102a 30 ndash 1102b 5-25 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23-2478 Cf EacuteN II 1105a 30-35 Ibidem p 3079 Cf EacuteN II 1105b 5 Ibidem p 31 80 Cf EacuteN I 1098a 17-20 Ibidem p 16
28
consonacircncia com a virtude moral e se manifesta de modo prolongado por toda a vida e natildeo somente
em ocasiotildees esparsas
Conforme exposto eacute necessaacuterio agir com a funccedilatildeo proacutepria do ser humano para alcanccedilar a
eudaimonia Para atingir sua plenitude de vida eacute imperioso que o indiviacuteduo aperfeiccediloe sua
racionalidade desenvolva as virtudes morais e pratique firmemente accedilotildees virtuosas Com isto o
percurso para construir a felicidade estaacute traccedilado na perspectiva eacutetica aristoteacutelica Uma vez definidas
as condiccedilotildees para uma vida feliz ainda resta saber qual o melhor tipo de vida que se enquadre nos
criteacuterios estabelecidos No proacuteximo toacutepico analisaremos esta questatildeo
15 A Eudaimonia e tipos de vida
O termo ldquoSumo Bemrdquo deriva da expressatildeo latina Summum Bonum a qual traz em seu bojo a
ideia de ser o bem mais elevado o melhor dos bens o bem supremo Conforme exposto nos itens
anteriores Aristoacuteteles considera que este bem mais elevado eacute a eudaimonia81 Ele descreve as
caracteriacutesticas que um bem deve ter para ser considerado justamente como o Sumo Bem
autossuficiente ser completo e baseado na razatildeo pois esta eacute o que haacute de mais proacuteprio no ser
humano Mas ao descrever as propriedades do Sumo Bem ou seja da eudaimonia falta ainda
determinar de modo mais preciso qual o ldquocaminhordquo para alcanccedilaacute-la Afinal como se trata de um
estudo no campo da eacutetica eacute necessaacuterio determinar como alcanccedilar esta eudaimonia em termos de
comportamento durante a vida humana Isto consiste em questionar qual eacute o melhor tipo de bem a
ser conquistado e consequentemente qual o tipo de vida que melhor se adequa agrave busca deste bem
No entender de Otfried Houmlffe a eudaimonia eacute considerada por Aristoacuteteles como o τέλος
τελειoτατoacuteν cujo significado eacute o de ser o ldquofim maacuteximordquo o ldquofim mais finalrdquo o fim uacuteltimo que natildeo
pode ser ultrapassado eacute a finalidade de todos os fins82 A eudaimonia eacute o fim geral que serve como
paracircmetro de orientaccedilatildeo para a busca de outros fins Por isso a partir dela criteacuterios satildeo delimitados
para que o indiviacuteduo escolha uma maneira de viver que realmente o conduza agrave felicidade Uma vez
que alguns tipos de vida natildeo atendem estes criteacuterios nem todos podem conduzir o indiviacuteduo ao
Sumo Bem que eacute a verdadeira eudaimonia Somente aquele tipo de vida que mais condiz com a
natureza humana e verdadeiramente pode ser considerado como um caminho seguro e consistente
para alcanccedilar uma vida feliz Neste sentido eacute necessaacuterio proceder a uma anaacutelise dos tipos de vida e
qual eacute a que pode ser considerada condizente com a eudaimonia
81 Cf EacuteN I 1097b 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1582 HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 196
29
Para a anaacutelise dos tipos de bens principais que dizem respeito a diferentes tipos de vidas
Aristoacuteteles natildeo desconsidera a endoxa (ἔνδοξα)83 ou seja a opiniatildeo comum Ele tambeacutem observa a
tradiccedilatildeo filosoacutefica anterior84 para proceder a uma avaliaccedilatildeo mais acurada acerca de qual vida eacute a
melhor e por conseguinte qual o tipo de vida torna o ser humano feliz Mas a partir da endoxa
avalia se cada tipo de vida pode de fato corresponder agraves caracteriacutesticas jaacute traccediladas para que um
bem qualquer possa receber o tiacutetulo de Sumo Bem
Na linha de raciociacutenio conduzida na Eacutetica a Nicocircmaco85 Aristoacuteteles apresenta uma siacutentese
dos trecircs tipos de vida a serem analisadas decorrentes dos bens considerados ldquofinaisrdquo os mais
importantes a serem procurados dentro daquele tipo de vida Pode-se verificar trecircs espeacutecies
principais de vida que representam os tipos de bens que as fundamentam Para algumas pessoas a
eudaimonia eacute identificada com uma vida de gozo dos prazeres mais mundanos86Outro contingente
de pessoas a identificam com as honras provenientes de uma vida pautada pela poliacutetica87 Enfim
outros a identificam com uma vida baseada na contemplaccedilatildeo (teoacuterico-contemplativa)88 Uma vida
de riquezas eacute desconsiderada por Aristoacuteteles como o tipo de vida ideal porque o acuacutemulo de
riquezas eacute apenas um meio para obtenccedilatildeo de outro bem89 Quanto agrave vida de honrarias que eacute
particularmente vinculada agrave vida poliacutetica ela traz em seu bojo uma instabilidade ao indiviacuteduo pois
as honras dependem mais de quem as concede do que a pessoa que as recebe Tampouco os
prazeres mundanos podem ser tidos como o tipo de vida a ser buscado porque satildeo contraacuterios agraves
virtudes morais Assim o modelo de vida mais adequado ao bem supremo deve ser vinculado de
modo mais iacutentimo ao homem e por isso deve ser mais estaacutevel Em relaccedilatildeo agrave vida teoacuterico-
contemplativa Aristoacuteteles a analisa de modo mais detalhado mais agrave frente no Livro X da Eacutetica a
Nicocircmaco Por isso natildeo analisaremos as propriedades da vida teoacuterico-contemplativa neste
momento
83 Conforme Aristoacuteteles aponta nas suas obras Toacutepicos I 1100a 18-25 e Retoacuterica I 1356b 33-36 a endoxa eacute umaopiniatildeo geralmente aceita acerca de qualquer tema que seja objeto de anaacutelise ora para leigos ora para os saacutebios (nosentido de especialistas em uma determinada aacuterea do conhecimento) Parte-se de premissas que satildeo consideradasprovaacuteveis e aparentemente verdadeiras para iniciar a anaacutelise e ocorrer o aprofundamento do estudo sobre o objetoescolhido Eacute o que faz Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando observa as diversas opiniotildees correntes agrave eacutepoca acerca doque seria a felicidade tanto na visatildeo comum quanto na visatildeo dos filoacutesofos Confiram-se os textos Toacutepicos I 1100a 18-25 ldquoNosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo deopiniotildees geralmente aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto [] rdquo Retoacuterica I 1356b 33-36 ldquo[] tatildeopouco a retoacuterica teorizaraacute sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo ndash por exemplo para Soacutecrates ou Hiacutepias ndash mas sobre o queparece verdade para pessoas de uma certa condiccedilatildeo como tambeacutem faz a dialeacutetica[] rdquo84 Cf EacuteN I 1098b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1785 Cf EacuteN I 1095b 15 - 1096a 10 Ibidem p 11-1286 Cf EacuteN I 1095b 15-20 Ibidem p 1187 Cf EacuteN I 1095b 25-30 Ibidem p 1288 Cf EacuteN I 1096a 5 Ibidem p 1289 Cf EacuteN I 1096a 8-10 Ibidem p 12
30
Uma vez que o Sumo Bem deve ser autossuficiente e completo os casos dos prazeres
mundanos da honra e das riquezas satildeo eliminados Assim os prazeres mundanos satildeo buscados por
aqueles que se entregam agraves paixotildees mais indignas natildeo sendo proacuteprios de homens que almejam a
nobreza de alma pois a estes homens compete agrave razatildeo comandar as suas accedilotildees As honrarias sendo
uma caracteriacutestica mais apropriada agrave vida poliacutetica ainda dependem de fatores externos ao indiviacuteduo
considerado honrado na poacutelis O reconhecimento de uma vida honrada depende de quem confere
este tiacutetulo ao indiviacuteduo Desta maneira natildeo eacute autossuficiente nem completa Em relaccedilatildeo agraves riquezas
satildeo a princiacutepio somente um bem instrumental dispostas apenas para alcanccedilar outros fins natildeo
possuindo nenhum caraacuteter de autossuficiecircncia e completude Deste modo nem os prazeres
mundanos nem a honra nem a riqueza podem ser alccediladas agrave categoria de Sumo Bem 90
Conforme descrito anteriormente os candidatos ao tiacutetulo de Sumo Bem satildeo os prazeres
corporais e espirituais a honra e a contemplaccedilatildeo com seus consequentes tipos de vida Aristoacuteteles
continua sua anaacutelise na Eacutetica a Nicocircmaco 91 acerca do tipo de vida adequada agrave verdadeira
eudaimonia Este filoacutesofo retoma uma determinada linha de pensamento filosoacutefico que preconiza a
divisatildeo dos bens em trecircs classes distintas os bens externos os bens do corpo e os bens da alma Os
uacutenicos bens externos e os bens do corpo natildeo podem ser considerados os bens mais adequados agrave
eudaimonia Os bens da alma devem ser postos em primeiro plano pois satildeo considerados os mais
elevados e plenos Para o estagirita eacute o exerciacutecio ativo das faculdades interiores da alma em
conformidade com a razatildeo que eacute o fundamento de uma vida feliz Logo um dos criteacuterios apontados
por Aristoacuteteles eacute que uma vida plena deve estar vinculada aos bens da alma e natildeo apenas aos bens
externos
Ora os bens tecircm sido divididos em trecircs classes e alguns foram descritos comoexteriores outros como relativos agrave alma ou ao corpo Noacutes outros consideramoscomo mais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com a almae como tais classificamos as accedilotildees e atividades psiacutequicas Logo o nosso ponto devista deve ser correto pelo menos de acordo com esta antiga opiniatildeo com a qualconcordam muitos filoacutesofos Eacute tambeacutem correto pelo fato de identificarmos o fimcom certas accedilotildees e atividades pois desse modo ele vem incluir-se entre os bens daalma e natildeo entre os bens exteriores92
Devemos recordar que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano aquela que melhor o caracteriza eacute
agir conforme a faculdade racional da alma Eacute a atividade racional do ser humano que estabelece a
90 Cf EacuteN I 1095b 15-30 - 1096a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1291 Cf EacuteN I 1098b 10 - 1099b 5 Ibidem p 1892 EacuteN I 1098a 15-19 Ibidem p 17
31
via mais adequada para alcanccedilar uma vida plena Por conseguinte a eudaimonia estaacute no uso ativo
da razatildeo e natildeo nas paixotildees que residem na faculdade sensitiva e claro muito menos na faculdade
nutritiva uma vez que esta diz respeito somente a sobrevivecircncia bioloacutegica93
Para Aristoacuteteles eacute preciso agir de modo correto visando sua maacutexima performance pois
nisso consiste alcanccedilar a excelecircncia de uma coisa ou de uma accedilatildeo A tiacutetulo de exemplo um escritor
quando realiza adequadamente e em um grau elevado a accedilatildeo de escrever exerce esta funccedilatildeo de
modo virtuoso Do mesmo modo um violinista ao tocar adequadamente um violino exerce o ato de
tocar seu instrumento de modo virtuoso A excelecircncia de algo ou de uma accedilatildeo eacute o modo mais
adequado a maacutexima performance da realizaccedilatildeo de sua proacutepria funccedilatildeo Conforme nos mostra o
Estagirita
Ora se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica umprinciacutepio racional e se dizemos que ldquoum tal-e-talrdquo e ldquoum bom tal-e-talrdquo tecircm umafunccedilatildeo que eacute a mesma espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocadorde lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentadaao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade - pois a funccedilatildeo de umtocador de lira eacute tocar lira e de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) serealmente assim eacute [e afirmamos ser a funccedilatildeo do homem uma certa espeacutecie de vidae esta vida uma atividade ou accedilotildees da alma que implicam um princiacutepio racional eacrescentamos que a funccedilatildeo de um bom homem eacute uma boa e nobre realizaccedilatildeo dasmesmas e se qualquer accedilatildeo eacute bem realizada quando estaacute de acordo com aexcelecircncia que lhe eacute proacutepria se realmente assim eacute] o bem do homem nos aparececomo uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de umavirtude com a melhor e a mais completa94
Conforme podemos ver no texto de Aristoacuteteles intitular uma accedilatildeo de virtuosa significa
afirmar que eacute uma accedilatildeo que atingiu a excelecircncia Pode-se dizer que eacute uma accedilatildeo que se tornou
sublime Utilizando novamente os exemplos citados existem escritores e violinistas medianos mas
existem escritores e violinistas sublimes Estes virtuosos escritores e violinistas satildeo os ldquoilustres
escritores e ilustres violinistasrdquo de acordo com o Estagirita Portanto satildeo os modelos a serem
seguidos por todos que desejem alcanccedilar a excelecircncia nestas artes
Mas a eudaimonia consiste somente em bens da alma tais como a virtude e a razatildeo Na
concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a virtude e a razatildeo possuem uma grande importacircncia na definiccedilatildeo de uma
vida feliz mas eacute necessaacuterio algo a mais Outra caracteriacutestica da eudaimonia encontra-se nos bens
externos manifestados na necessidade do ser humano de possuir uma certa prosperidade que natildeo
depende exclusivamente do indiviacuteduo Na compreensatildeo do filoacutesofo de Estagira a prosperidade
nestes bens externos facilita a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Estes bens externos considerados
93 EacuteN 1098a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1694 EacuteN 1098a 10-15 Ibidem p 16
32
pertinentes a uma vida feliz satildeo de vaacuterios tipos amigos riqueza influecircncia poliacutetica Outros bens
externos fortalecem a posse de uma vida feliz tornando-a mais acessiacutevel aos mais afortunados e a
falta destes torna mais difiacutecil ter uma vida feliz aos indiviacuteduos desafortunados Estes bens satildeo a
beleza fiacutesica ter nascido em uma boa famiacutelia e ter bons filhos Nos diz Aristoacuteteles
A felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do mundo eesses atributos natildeo se acham separados como na inscriccedilatildeo em Delos Das coisas amais nobre eacute a mais justa e a melhor eacute a sauacutede mas a mais doce eacute alcanccedilar o queamamos Com efeito todos eles pertencem agraves mais excelentes atividades e estasou entatildeo uma delas ndash a melhor ndash noacutes a identificamos com a felicidade E noentanto como dissemos ela necessita igualmente dos bens exteriores pois eacuteimpossiacutevel ou pelo menos natildeo eacute faacutecil realizar atos nobres sem os devidos meiosEm muitas accedilotildees utilizamos como instrumentos os amigos a riqueza e o poderpoliacutetico e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza denascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feiaaparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidadesde ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossemvisceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigosComo dissemos pois o homem feliz parece necessitar tambeacutem dessa espeacutecie deprosperidade e por essa razatildeo alguns identificam a felicidade com a boa fortunaembora outros a identifiquem com a virtude95
Observa-se no decorrer da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles que natildeo basta somente as virtudes
morais para que o homem virtuoso seja feliz Parece que haacute duas opiniotildees correntes em sua eacutepoca
Uma atribui agrave boa fortuna o alicerce principal da eudaimonia e a outra atribui agrave virtude o meio
fundamental para alcanccedilar a felicidade O estagirita realiza uma siacutentese entre as duas perspectivas
mas considera os bens da alma e os bens externos em patamares diferentes Determinados bens
como os bens da alma satildeo considerados essenciais agrave eudaimonia Estes satildeo a virtude e a razatildeo
Outros como os bens externos satildeo acessoacuterios e sua inexistecircncia natildeo acarreta necessariamente uma
vida infeliz mas a torne mais difiacutecil de ser suportada Devemos recordar que o Sumo Bem possui
duas propriedades que satildeo a autossuficiecircncia e a completude Portanto os bens externos como
acessoacuterios natildeo satildeo considerados autossuficientes e natildeo satildeo completos por serem bens
instrumentais Satildeo um meio para um fim e dependem de circunstacircncias externas ao indiviacuteduo
A eudaimonia eacute constituiacuteda de caracteriacutesticas essenciais e acessoacuterias96 Neste sentido
fazendo uma analogia com a engenharia de construccedilatildeo de edificaccedilotildees prediais Eacute possiacutevel um
entendimento de que a felicidade eacute construiacuteda por camadas Haacute um nuacutecleo essencial composto
pelos bens da alma ndash virtude e razatildeo ndash que estaacute na posse do indiviacuteduo ou seja sua
operacionalizaccedilatildeo depende unicamente dele e natildeo de fatores extriacutensecos A partir deste nuacutecleo
95EacuteN I 1099a 30 - 1099b 1-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1896 Cf EacuteN I 1099b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 19
33
essencial haacute os bens acessoacuterios ndash amigos riqueza influecircncia poliacutetica ndash que podem compor uma
vida feliz mas natildeo necessariamente satildeo indispensaacuteveis para que algueacutem seja feliz sua perda ou natildeo
obtenccedilatildeo natildeo acarretam uma vida infeliz para o indiviacuteduo O que deve ser evitado eacute a inversatildeo entre
aquilo que eacute essencial e aquilo que eacute acessoacuterio Os bens externos natildeo podem ser considerados como
um fundamento seguro para a felicidade porque satildeo instaacuteveis ou seja eacute possiacutevel perdecirc-los ou natildeo
corresponder agraves expectativas do indiviacuteduo Deste modo o indiviacuteduo para alcanccedilar a eudaimonia
necessita da virtude da prudecircncia e das virtudes morais para que possa conseguir realizar boas
escolhas durante sua vida e natildeo proceder a uma inversatildeo daquilo que eacute essencial ou acessoacuterio na
busca pela felicidade
Eacute interessante notar uma sutil divisatildeo dos bens externos Um primeiro subconjunto seriam
bens externos que ainda se encontram na esfera de accedilatildeo do indiviacuteduo Afinal caso seja uma escolha
do indiviacuteduo este por meio de sua accedilatildeo pode conquistar amigos riqueza e influecircncia poliacutetica Mas
o segundo subconjunto os outros bens externos citados por Aristoacuteteles que contribuem para a
felicidade como o nascimento em uma boa famiacutelia bons filhos e ter uma bela aparecircncia natildeo
pertencem a esfera de escolha e consequente accedilatildeo do indiviacuteduo O tipo de famiacutelia a vida dos filhos
e beleza fiacutesica estatildeo completamente fora do campo de deliberaccedilatildeo de algueacutem natildeo dependem do
indiviacuteduo tatildeo somente dependem de uma boa sorte
A harmonia entre os bens da alma e os bens externos eacute a linha que Aristoacuteteles segue ao
realizar sua anaacutelise acerca da eudaimonia O exerciacutecio ativo das virtudes morais e viver sob os
ditames da razatildeo satildeo o fundamento de uma vida feliz Qualquer homem virtuoso deve viver
segundo as virtudes Natildeo obstante a grande importacircncia da racionalidade e das virtudes na
construccedilatildeo da felicidade o Estagirita concede espaccedilo para as aspiraccedilotildees ldquonormaisrdquo de um homem
que vive o cotidiano da poacutelis Natildeo eacute uma perspectiva de felicidade cunhada para um eremita ou para
um monge que decide se abster de determinados bens externos A posiccedilatildeo de WD Ross ilustra bem
esta visatildeo de harmonia entre os bens da alma e os bens externos
Esta definiccedilatildeo (de felicidade) eacute confirmada por pontos de vista comuns acerca dobem-estar e ao mesmo tempo corrige-os Alguns afirmam que o bem-estar eacute avirtude Noacutes dizemos ser uma espeacutecie de acccedilatildeo para a qual tende a virtude Algunsafirmam ser o prazer Noacutes dizemos ser acompanhada necessariamente pelo prazerAlguns afirmam ser a prosperidade externa Noacutes dizemos que sem uma certa dosede prosperidade um homem natildeo pode exercitar esta boa atividade que eacute o bem-estar Assim os elementos principais que figuram na noccedilatildeo comum de bem-estartambeacutem entram na nossa definiccedilatildeo A virtude constitui a raiz donde descola a acccedilatildeoconforme o bem o prazer eacute o seu acompanhamento natural e a prosperidade suacondiccedilatildeo preacutevia normal97
97 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198 Na traduccedilatildeo portuguesa feita pela Publicaccedilotildees Dom Quixote a partir daediccedilatildeo inglesa publicada por Methuen amp Cu Ltd Londres o termo utilizado para se referir a eudaimonia eacute ldquobem-
34
A eacutetica aristoteacutelica tambeacutem eacute muito realista ao considerar o fato de que existe uma desordem
interna no indiviacuteduo Este conflito eacute caracterizado pela discrepacircncia entre a faculdade racional e os
desejos provindos da faculdade sensitiva Caso esta dissonacircncia natildeo seja resolvida com os desejos
submetidos ao ordenamento da racionalidade natildeo haacute a possibilidade do homem tornar-se virtuoso
Portanto o filoacutesofo de Estagira forja uma concepccedilatildeo eacutetica bastante equilibrada que evita excessos
de conduta decorrentes de determinados comportamentos morais muito comuns nos dias atuais
baseadas no hedonismo e no relativismo moral que consideram os desejos como os pilares da
felicidade
O Sumo Bem eacute a eudaimonia eacute aquilo que existe de mais nobre e confere mais prazer ao ser
humano Eacute a melhor atividade dentre as mais excelentes que pode ser realizada por algueacutem A
eudaimonia eacute uma espeacutecie de atividade da alma conforme a virtude E somado a isto a eudaimonia
tambeacutem eacute composta tanto por bens que satildeo indispensaacuteveis quanto bens que satildeo acessoacuterios agrave
felicidade98Assim a eudaimonia pode ser apreendida por meio de um treinamento Ou pode ser
desenvolvida de algum outro modo Ou eacute uma daacutediva divina A resposta eacute que a virtude natildeo eacute algo
natural no ser humano Por isso necessita de um constante esforccedilo do indiviacuteduo para adquiri-la e
aperfeiccediloaacute-la Conforme nos mostra Aristoacuteteles
[] pois aquilo que constitui o precircmio e a finalidade da virtude se nos afigura o quede melhor existe no mundo algo de divino e abenccediloado Dentro desta concepccedilatildeotambeacutem deve ela ser partilhada por grande nuacutemero de pessoas pois quem quer quenatildeo esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistaacute-la medianteuma certa espeacutecie de estudo e diligecircncia Mas se eacute preferiacutevel ser feliz dessamaneira a secirc-lo por acaso eacute razoaacutevel que os fatos sejam assim uma vez que quetudo aquilo que depende da accedilatildeo natural eacute por natureza tatildeo bom quanto poderiaser e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racionalespecialmente se depende da melhor de todas as causas Confiar ao acaso o que haacutede melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito99
Uma questatildeo que surge no estudo da eudaimonia e da virtude da prudecircncia diz respeito ao
papel que o acaso possui na busca por uma vida feliz O acaso constitui todas as situaccedilotildees que estatildeo
fora do controle imediato do indiviacuteduo Satildeo as contingecircncias que aparecem no decorrer da vida do
estarrdquo O proacuteprio WD Ross explica que prefere utilizar o termo ldquobem-estarrdquo para definir eudaimonia pelo fato destaser um certo tipo de atividade e natildeo um certo tipo de prazer embora este uacuteltimo a acompanhe Ross interpreta que otermo ldquofelicidaderdquo eacute inapropriado para traduzir a palavra grega eudaimonia por considerar que esse termo ldquofelicidaderdquose refere a um sentimento que apenas se diferencia do prazer por uma questatildeo de perdurar mais tempo ser maisprofundo e ser mais sereno que o prazer No presente trabalho optamos por usar o termo ldquofelicidaderdquo por esta traduccedilatildeoser a mais tradicional e consagrada nos textos que versam acerca da eacutetica em Aristoacuteteles 98 Cf EacuteN I 1099a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1899 EacuteN I 1099b 17-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 19
35
homem e que devem ser enfrentadas para que se alcance a felicidade Por isso examinaremos o
acaso na vida humana
16 O acaso na vida humana
O acaso na vida humana natildeo eacute um fator provaacutevel de trazer uma vida feliz ao indiviacuteduo O
acaso pode trazer tanto uma maacute quanto uma boa sorte e o indiviacuteduo que deixa sua vida ao acaso
tem pouca chance de alcanccedilar a eudaimonia A ordem natural das coisas indica que o indiviacuteduo
para atingir a excelecircncia nas suas accedilotildees seja em sua conduta seja em qualquer coisa que produza
deve se empenhar para que isso ocorra Portanto para cumprir sua funccedilatildeo proacutepria de ser racional
todo indiviacuteduo deve se empenhar em se tornar virtuoso e alcanccedilar sua excelecircncia como ser humano
porque isso natildeo ocorre de modo natural
O acaso pode trazer uma maacute sorte e vaacuterios infortuacutenios Um indiviacuteduo desafortunado pode ser
considerado feliz Aristoacuteteles considera que sim mesmo que uma pessoa sofra ao longo da sua vida
diversos desventuras ele pode ser feliz Pois a estabilidade encontra-se em uma vida virtuosa e natildeo
nas circunstacircncias que mudam a cada momento100 Naturalmente eventos agradaacuteveis acrescentam
alegrias e tornam mais agradaacuteveis uma vida virtuosa Mas eventos desagradaacuteveis trazem dores e
tornam mais sofrida uma vida mesmo que virtuosa Mesmo que o indiviacuteduo seja acometido por
uma sucessatildeo de eventos desagradaacuteveis sabe enfrentaacute-los de maneira digna Visto que a
eudaimonia eacute um exerciacutecio ativo do homem em conformidade com a virtude o sujeito que esteja
empenhado em agir conforme as virtudes natildeo depende da sorte para ser feliz Deste modo o homem
virtuoso sabe aproveitar as circunstacircncias e extrair o melhor delas para alcanccedilar uma vida
feliz101Acerca do acaso e de uma vida feliz esta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco eacute significativa
Ora muitas coisas acontecem por acaso e coisas diferentes quanto agrave importacircnciaEacute claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes natildeo pesam muito nabalanccedila mas uma multidatildeo de grandes acontecimentos se nos forem favoraacuteveistornaraacute nossa vida mais venturosa (pois natildeo apenas satildeo em si mesmos de feitio aaumentar a beleza da vida mas a proacutepria maneira como um homem os recebe podeser nobre e boa) e se se voltarem contra noacutes poderatildeo esmagar e mutilar afelicidade pois que aleacutem de serem acompanhados de dor impedem muitasatividades Todavia mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver quandoaceita com resignaccedilatildeo muitos grandes infortuacutenios natildeo por insensibilidade agrave dormas por nobreza e grandeza de alma102
100 Cf EacuteN I 1100b 13-20 Ibidem p 20101 Cf EacuteN I 1101a 35-37 Ibidem p 21102 EacuteN I 1100b 25-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 20-21
36
Decorrente do texto da Eacutetica a Nicocircmaco descrito acima podemos notar que o tamanho dos
acontecimentos pode afetar o indiviacuteduo tanto para a felicidade quanto agrave infelicidade Deste modo a
fortuna e o infortuacutenio podem ter uma determinada influecircncia na consecuccedilatildeo de uma vida feliz
embora o homem virtuoso consegue conviver com estes infortuacutenios e extrair o melhor de cada
situaccedilatildeo
A eudaimonia por ser autossuficiente e completa natildeo depende de nenhum fator externo
mas sobretudo das accedilotildees virtuosas praticadas pelo indiviacuteduo Por isso possui a caracteriacutestica de ser
estaacutevel Esta estabilidade perpassa a vida virtuosa do indiviacuteduo Por conseguinte as virtudes satildeo a
base para a estabilidade da eudaimonia
Na anaacutelise acerca da eudaimonia Aristoacuteteles tambeacutem questiona se porventura os
infortuacutenios de pessoas proacuteximas e queridas tais como os amigos e os descendentes podem afetar a
estabilidade de um indiviacuteduo virtuoso que possui uma vida feliz A resposta eacute que estes infortuacutenios
dos amigos ou descendentes natildeo tecircm forccedila suficiente para afetar um indiviacuteduo que jaacute deteacutem a
felicidade Os infortuacutenios podem ser em graus diversos e natildeo afetam substancialmente o homem
virtuoso 103 Do mesmo modo as adversidades enfrentadas pelos amigos e descendentes natildeo retiram
a felicidade do indiviacuteduo bem-aventurado nem a acrescentam em nada104
Observa-se que na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a eudaimonia para ser alcanccedilada possui uma
condicionante que consiste em agir baseado nas virtudes para obter uma nobreza de alma Se o
indiviacuteduo rejeitar esta condicionante natildeo teraacute uma vida plena A felicidade eacute um exerciacutecio ativo do
homem conforme a virtude perfeita sendo estaacutevel defronte agraves variadas circunstacircncias posto que eacute
autossuficiente e plena em si mesma Eacute o fim uacuteltimo que orienta toda a vida humana E este fim
uacuteltimo se constitui em cumprir a funccedilatildeo proacutepria do ser humano que eacute o uso da racionalidade e a
partir dele atingir um alto grau de virtudes Neste sentido o proacuteximo passo de Aristoacuteteles eacute analisar
a natureza das virtudes haja vista a grande importacircncia que estas possuem na composiccedilatildeo da
eudaimonia
103 Nas palavras de Ross para Aristoacuteteles a ldquo[] a finura de caraacuteter pode lsquobrilhar atraveacutesrsquo de circunstacircncias adversasrdquoROSS WD Aristoacuteteles opcit p 198104 Cf EacuteN I 1101b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 22
37
CAPIacuteTULO II
AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
Neste capiacutetulo eacute feito um estudo acerca da concepccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as virtudes e de
como satildeo fundamentais para a consecuccedilatildeo da eudaimonia Tambeacutem eacute vista a relaccedilatildeo entre as
virtudes e a educaccedilatildeo dos prazeres pois todo ser humano procura se aproximar daquilo que
ocasiona prazer e fugir daquilo que provoca dor Assim o prazer e a dor satildeo importantes para a
busca das virtudes e rejeiccedilatildeo dos viacutecios morais Nem todos os prazeres contribuem para uma correta
formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo O indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida feliz deve saber cultivar
os prazeres moralmente bons e rejeitar os prazeres moralmente ruins Por conseguinte deve ter um
conhecimento de quais prazeres satildeo bons para serem usufruiacutedos e quais natildeo satildeo para praticar accedilotildees
nobres e consequentemente ter uma vida em plenitude
Tal como as virtudes satildeo um componente essencial para uma vida feliz o prazer tambeacutem eacute
uma parte importante da eudaimonia O prazer tem um duplo caraacuteter aperfeiccediloamento e resultado
Como aperfeiccediloamento o prazer auxilia no refinamento das habilidades do indiviacuteduo e
naturalmente ajuda a aprimorar as virtudes105 Como resultado o prazer eacute fruto das proacuteprias accedilotildees
virtuosas que causam uma satisfaccedilatildeo no indiviacuteduo que as pratica106 Deste modo o prazer eacute inerente
agrave eudaimonia pois as virtudes satildeo um pressuposto baacutesico da vida feliz
As virtudes satildeo diferenciadas entre virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) e virtudes morais
(eacuteticas) As virtudes morais satildeo necessaacuterias para que haja o autodomiacutenio do indiviacuteduo sobre suas
paixotildees Satildeo as virtudes morais que permitem um melhor florescimento das virtudes intelectuais e
em especial a virtude da prudecircncia Para que o indiviacuteduo desenvolva corretamente as virtudes
morais eacute necessaacuterio conhecer qual eacute a natureza destas virtudes Assim eacute necessaacuteria a compreensatildeo
do conceito de mediania que eacute uma das caracteriacutesticas das virtudes
Em siacutentese no presente capiacutetulo analisaremos os seguintes pontos as virtudes morais os prazeres
e o seu papel na formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo o homem virtuoso (σπουδαῖος) o conceito de mediania
(μεσότης) e a necessidade das virtudes morais para o desenvolvimento da virtude intelectual da
prudecircncia (φρόνησις)
105Cf EacuteN X 1175a 30-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 185106Cf EacuteN X 1175a 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184
38
21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais
A definiccedilatildeo de eudaimonia eacute ser uma atividade da alma conforme a virtude perfeita107 Neste
sentido as virtudes satildeo uma peccedila central no sistema eacutetico aristoteacutelico Satildeo elas que ao serem
praticadas conduzem ao aprimoramento do indiviacuteduo tanto em conhecimento adquirido pelas
virtudes intelectuais quanto em proporcionar um caraacuteter mais nobre por causa da robustez das
virtudes morais
As virtudes satildeo divididas em conformidade com esta divisatildeo da alma entre uma parte
racional e outra irracional As virtudes que dizem respeito agrave parte intelectual satildeo as virtudes
intelectuais e as relacionadas agrave parte irracional mas propriamente ao elemento desiderativo satildeo as
virtudes morais A parte irracional da alma possui uma subdivisatildeo em dois elementos O primeiro
elemento natildeo pode ser submetido agrave razatildeo pois satildeo as proacuteprias atividades da faculdade vegetativa O
segundo elemento possui a capacidade de ser orientado pela razatildeo sendo este o elemento
desiderativo contido na faculdade sensitiva Por isso nota-se um detalhe importante em relaccedilatildeo ao
indiviacuteduo virtuoso ele escolhe submeter seus desejos e paixotildees agrave racionalidade e tambeacutem aprende
a desejar o que a racionalidade determina como correto
Conforme citamos no capiacutetulo anterior para uma melhor compreensatildeo das propriedades das
virtudes intelectuais e das virtudes morais eacute necessaacuterio recordar a obra De Anima na qual
Aristoacuteteles estabelece a divisatildeo da alma (ψυχή) humana em trecircs partes ou faculdades intituladas de
nutritiva (vegetativa) sensitiva (perceptiva) e racional (intelectiva) Estabelecida a divisatildeo da alma
em uma parte racional (faculdade intelectiva) e uma parte irracional (faculdades sensitiva e
nutritiva) deve-se observar que existe uma relaccedilatildeo entre estas duas partes Uma espeacutecie de
interaccedilatildeo entre a racionalidade e os apetites correspondentes agrave parte irracional Estas duas
dimensotildees da psicheacute natildeo satildeo naturalmente harmocircnicas entre si A faculdade sensitiva comporta os
desejos (o1recij) do ser humano Neste ponto eacute importante notar que Aristoacuteteles divide os desejos
em trecircs espeacutecies apetite () impulso () e vontade ()108
Por conter o elemento desiderativo a faculdade sensitiva eacute em parte responsaacutevel pelas
accedilotildees humanas Em parte porque a proacutepria faculdade sensitiva carece de racionalidade mas de
107 Cf EacuteN I 1102a 5-7 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23108 Cf De anima 414a 30 - 414b 3 Aristoacuteteles De anima Op cit p46-47 Segue-se o texto ldquoDas faculdades da almaque referimos a uns seres como dissemos pertencem todas umas delas a outros e a alguns seres pertence apenas umasoacute faculdade Chamamos entatildeo faculdades agraves partes nutritiva perceptiva desiderativa de deslocaccedilatildeo e discursiva Oraagraves plantas pertence apenas a faculdade nutritiva ao passo que aos outros seres pertencem esta faculdade e tambeacutem aperceptiva E se esses dispotildeem da faculdade perceptiva possuem igualmente a desiderativa pois o desejo eacute de fatoapetite impulso e vontade Todos os animais entatildeo possuem um dos sentidos o tato e ao ser a que a sensibilidadepertencem igualmente o prazer e a dor (isto eacute o apraziacutevel e o doloroso) Mais agravequeles a que estes pertencem pertence(sic) tambeacutem o apetite isto eacute o proacuteprio desejo do apraziacutevel []rdquo
39
uma certa forma o elemento desiderativo participa da faculdade racional Pois tanto o indiviacuteduo
considerado continente (e0gkrath~~j109 quanto o indiviacuteduo incontinente (a0krathj)110 possuem a
faculdade racional Mas haacute uma diferenccedila entre estes dois tipos de indiviacuteduos O indiviacuteduo
continente age conforme agrave razatildeo ele submete seus desejos e paixotildees agrave racionalidade O indiviacuteduo
incontinente foge dos ditames da razatildeo seus desejos e paixotildees prevalecem sobre o ordenamento
racional Aristoacuteteles afirma que o indiviacuteduo continente obedece agrave parte racional e no indiviacuteduo
temperante e no corajoso esta obediecircncia eacute ainda maior111 Este fato implica a utilizaccedilatildeo da razatildeo e
um autodomiacutenio perseverante que resultam em uma disposiccedilatildeo firme e habitual do indiviacuteduo para
que o elemento desiderativo contido na parte irracional possa estar submetido agrave parte racional
As virtudes satildeo divididas em duas espeacutecies correspondentes agrave divisatildeo da alma em parte
racional e irracional As virtudes intelectuais satildeo relacionadas agrave racionalidade e as virtudes morais
ao elemento desiderativo contido na parte irracional Ross classifica este elemento desiderativo
como sendo um elemento intermeacutedio pois embora pertenccedila agrave parte irracional possui uma ligaccedilatildeo
com a razatildeo Eacute esta parte do desejo que obedece aos princiacutepios e regras de vida que o indiviacuteduo
continente traccedilou para si mesmo Enquanto o indiviacuteduo incontinente natildeo consegue submeter o
desejo ao controle da faculdade racional112 Uma vez que esta parte desiderativa obedeccedila agrave
racionalidade pode-se entender o uso da razatildeo em dois momentos distintos que conferem dois
tipos de sentido O primeiro sentido eacute relacionado aos desejos e paixotildees nos quais estes se
submetem agrave racionalidade Neste caso eacute a razatildeo praacutetica que opera por meio da prudecircncia e das
virtudes morais O outro sentido eacute o uso da razatildeo para conhecer e verificar pressupostos teoacutericos
que natildeo dizem respeito agrave accedilatildeo humana como por exemplo um teorema matemaacutetico As virtudes
intelectuais referem-se a este campo de aplicaccedilatildeo da racionalidade113 No livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco114 satildeo listadas cinco virtudes intelectuais que satildeo a arte (τέχνη) o conhecimento
cientiacutefico (ἐπιστήμη) a sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) a razatildeo intuitiva
(νοῦς)115 No livro I haacute exemplos de virtudes morais116 a liberalidade (e0leuqeriothj) e a
temperanccedila (σωφροσύνη) Em relaccedilatildeo agrave sabedoria filosoacutefica (σοφία) sendo esta uma virtude
dianoeacutetica trata-se de uma sabedoria contemplativa dedicada agravequilo que eacute imutaacutevel A sophia
109 O indiviacuteduo continente domina seus desejos e os submete agrave razatildeo110 O indiviacuteduo incontinente natildeo domina seus desejos por isso natildeo consegue submetecirc-los agrave razatildeo 111 Cf EacuteN 1102b 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24112 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198113 SPINELLI Priscilla Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaacutequea Opcit p 42114 Cf EacuteN 1139b 15-18 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101115 Noucircs eacute traduzido de vaacuterias maneiras nas traduccedilotildees portuguesas da Eacutetica a Nicocircmaco entendimento (E Bini 2013p 194) perspicaacutecia (M Zingano 2008 p 40) razatildeo intuitiva (P T Spinelli 2007 p137 e L Vallandro e GBornheim 1987 p 110) ldquointuicioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) e ldquointelligencerdquo (H Rackham 1996 p 156) 116 Em EacuteN I 1103a 5-10 satildeo citadas somente estas duas virtudes morais como forma de exemplo mas Aristoacutetelesdescreve outras virtudes no decorrer de sua obra
40
possui uma natureza calcada na epiacutesteme e no nous pois visa aquilo que natildeo sofre alteraccedilotildees em
nenhuma circunstacircncia Por seu lado a phronecircsis se caracteriza por visar a praacutexis ao lidar com as
diversas situaccedilotildees que mudam constantemente
As virtudes intelectuais podem ser adquiridas e apuradas pela instruccedilatildeo enquanto as
virtudes morais satildeo robustecidas por meio do haacutebito117 Visto que nascemos dotados com elas em
potecircncia para que alcancem sua plenitude torna-se imperioso a sua solidificaccedilatildeo por meio de um
permanente esforccedilo do homem Se as virtudes morais e intelectuais jaacute estivessem plenamente
desenvolvidas no nosso caraacuteter natildeo seria necessaacuterio aprimoraacute-las pela repeticcedilatildeo das mesmas Neste
sentido eacute necessaacuterio desenvolver as virtudes uma vez que natildeo satildeo desenvolvidas na natureza
humana como satildeo por exemplo as faculdades da visatildeo ou da audiccedilatildeo que se encontram tanto em
um estado de potecircncia quanto em estado de ato118
Pode-se afirmar que uma parcela da conquista da eudaimonia consiste em harmonizar
corretamente a razatildeo e o desejo para que sejam conduzidos ao mesmo objetivo A adequada
harmonia consiste na proeminecircncia da racionalidade sobre os desejos e paixotildees A virtude moral
consiste nesta condiccedilatildeo estaacutevel do indiviacuteduo resultante de uma escolha que se transforma em um
haacutebito por ser repetida inuacutemeras vezes ao longo do tempo fazendo com que exerccedila bem sua funccedilatildeo
Mas para ser operacionalizada eacute fundamental a atuaccedilatildeo da razatildeo para escolher um fim razoaacutevel ao
qual o indiviacuteduo possa seguir por meio de sua vontade
Na formaccedilatildeo moral do homem para que este adquira uma nobreza de conduta e alcance uma
vida feliz vimos a importacircncia das virtudes morais para controlar os desejos provenientes da
faculdade sensitiva A felicidade eacute obtida pela primazia do intelecto sobre os desejos Neste
contexto de construccedilatildeo da eudaimonia haacute um componente a ser considerado que eacute o prazer ou a
dor proveniente das accedilotildees humanas Este eacute o assunto a ser abordado no proacuteximo toacutepico
22 A educaccedilatildeo dos prazeres e a eudaimonia
Uma percepccedilatildeo aristoteacutelica bastante interessante eacute assinalar a importacircncia de um treino
constante como sendo essencial para o robustecimento das virtudes morais pelo indiviacuteduo frente aos
acontecimentos Afinal ningueacutem eacute capaz de arrogar para si proacuteprio ou mesmo ser verdadeiramente
elogiado como sendo algueacutem virtuoso se natildeo se habituou a praticar as virtudes ao longo do tempo e
enfrentar as circunstacircncias concretas da vida Em outras palavras pode-se dizer que uma virtude eacute
conquistada quando for provada em vaacuterios casos e durante um periacuteodo de tempo prolongado Por
117 CF EacuteN II 1103a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 27118 CF EacuteN II 1103a 30 Ibidem p 27
41
isso eacute imprescindiacutevel desde a mais tenra idade estabelecer uma paideacuteia (παιδεία)119voltada para a
praacutetica das virtudes conforme mostra Aristoacuteteles ao seguir a mesma linha de raciociacutenio de Platatildeo
sobre a importacircncia de uma boa educaccedilatildeo Esta boa educaccedilatildeo consiste em aprender a apreciar
aquilo que eacute desejaacutevel e rejeitar aquilo que eacute indesejaacutevel120
No que tange agrave educaccedilatildeo para orientar a pessoa a gostar daquilo que eacute desejaacutevel um dos
pontos fundamentais da filosofia moral aristoteacutelica eacute a questatildeo do prazer O fenocircmeno do prazer eacute
um tema corrente na tradiccedilatildeo filosoacutefica grega antiga sendo ele considerado uma das fontes acerca
da moralidade e conduccedilatildeo agrave uma vida feliz O pensamento eacutetico aristoteacutelico segue esta tradiccedilatildeo e
insere uma teoria do prazer uma vez que este eacute um dos elementos essenciais para a realizaccedilatildeo
humana O prazer eacute algo completamente inserido na vida humana a ponto de natildeo se concebecirc-la sem
a perspectiva do acompanhamento ou a ausecircncia dele Conforme assevera Aristoacuteteles ldquoAcresce que
o agradaacutevel e o doloroso cresceram conosco desde a nossa infacircncia e por isso eacute difiacutecil conter essas
paixotildees enraizadas como estatildeo em nossa vida E alguns mais e outros menos medimos nossas
proacuteprias accedilotildees pelo estalatildeo do prazer e da dorrdquo121 O filoacutesofo de Estagira cita que Eudoxo122
identificava o bem com o prazer pois observava que todos os seres racionais e irracionais tendiam
para esse sentimento123 Platatildeo tambeacutem se posiciona acerca do fenocircmeno do prazer no seu diaacutelogo
Filebo no qual o mestre de Aristoacuteteles argumenta que tanto o homem intemperante quanto o
temperante provam do prazer o intemperante com prazeres depravados o temperante com prazeres
mais elevados e o saacutebio tem prazer na sua praacutetica da sabedoria124 Posto que o fenocircmeno do prazer e
da dor satildeo intriacutensecos agrave natureza humana naturalmente tambeacutem satildeo inerentes agrave conduta humana e
este fato os torna fatores educativos para o ser humano A eudaimonia tambeacutem se traduz em uma
adequada escolha dos prazeres uma vez que o ser humano natildeo eacute somente razatildeo mas tambeacutem eacute
dotado de sentidos Por conseguinte uma orientaccedilatildeo adequada do ser humano consiste em levaacute-lo
ao deleite prazeroso das coisas nobres sendo fundamental um estiacutemulo para a praacutetica das virtudes
intelectuais e morais
As virtudes morais possuem como uma de suas caracteriacutesticas serem ligadas aos prazeres
ou agraves dores resultantes de nossos atos Assim prazer e dor tornam-se indicativos do caraacuteter virtuoso
ou natildeo virtuoso de uma pessoa Caso realize uma accedilatildeo virtuosa e esta traga sofrimento ao agente
este natildeo poderaacute ser tido como virtuoso Para ilustrar esta ideia tem-se o exemplo de um homem que
119 O termo paideacuteia eacute traduzido como educaccedilatildeo ensinamento instruccedilatildeo treinamento120 Cf EacuteN II 1104b 10-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29121 EacuteN II 1105a 1-5 Ibidem p 30122 Foi um disciacutepulo de Platatildeo123 Cf EacuteN X 1172a 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 174124 Cf Filebo 11d-12d PLATOacuteN Diaacutelogos VI Filebo Timeo Critias Traducciones Introducciones y Notas porMaria Angeles Duraacuten y Francisco List Madrid Gredos 1992 p 22-24
42
pratica a abstinecircncia dos prazeres do corpo para fins de adquirir a virtude da temperanccedila A pessoa eacute
tida como temperante se o esforccedilo da abstinecircncia lhe eacute prazeroso caso natildeo seja e ocasionar um
sofrimento este seraacute um homem destemperante ou seja que natildeo possui moderaccedilatildeo nas suas
accedilotildees125 A virtude moral refere-se em como saber lidar com os prazeres e dores para uma
apropriada formaccedilatildeo do caraacuteter pois o prazer pode induzir o indiviacuteduo a realizar accedilotildees vis e a dor
dificulta a realizar accedilotildees nobres126 O prazer eacute um fator indutor das accedilotildees humanas seja para o bem
ou para o mal porque o prazer eacute vinculado agrave natureza humana sendo objeto dos nossos desejos
Afinal espera-se alcanccedilar o prazer nas atividades que exercemos e natildeo que estas resultem em
tristezas ou dores as quais o ser humano tende a evitaacute-los Aristoacuteteles eacute enfaacutetico ao afirmar que na
educaccedilatildeo dos jovens o prazer e a dor encontram-se presentes sendo ldquoguiasrdquo dos caminhos a serem
seguidos Eacute de extrema importacircncia escolher bem e comprazer-se com as coisas certas aquelas que
se deve apreciar e se afastar das coisas inapropriadas que devem ser evitadas natildeo se permitindo o
deleite com aquilo que eacute peacuterfido Por isso esta escolha tem uma grande influecircncia na formaccedilatildeo de
uma pessoa virtuosa127
O homem eacute um ser racional Agrave luz deste fato nota-se como o desejo pode e deve ser
moldado agrave luz da razatildeo O desejo impele o indiviacuteduo a buscar aquilo que eacute mais prazeroso No dizer
de Otfried Houmlffe o prazer eacute um elemento integrante da felicidade mas uma vida de puro prazer natildeo
oferece um fundamento seguro para encontrar a eudaimonia128 Para Aristoacuteteles os prazeres do
intelecto superam os prazeres dos sentidos129 Por isso a parte racional deve orientar o desejo para
que tenha prazer no empenho necessaacuterio para adquirir e manter a virtude e obter a satisfaccedilatildeo com o
exerciacutecio das atividades do intelecto130
Essa eacute uma opccedilatildeo de fundamental importacircncia a ser feita e a qual ningueacutem pode ser furtar
consciente ou natildeo da existecircncia dessa escolha Uma vez que os desejos satildeo intriacutensecos agrave natureza
humana sendo uma parcela deles pertencentes a sua parte irracional eacute imperioso escolher quais
espeacutecies de prazeres seratildeo objeto de agrado os prazeres mais sublimes que resIbidem na vivecircncia
das virtudes morais e no intelecto aprimorado pelas virtudes intelectuais ou os prazeres mais
rasteiros que satisfazem apenas os apetites da alma humana
125 Neste ponto surge uma questatildeo interessante o virtuoso temperante pode frear sentimentos prazerosos parapermanecer no meio-termo No nosso entender a resposta eacute positiva O homem temperante para alcanccedilar o meio-termoe executar uma accedilatildeo virtuosa pode reprimir os sentimentos prazerosos principalmente se forem prazeres torpes Emesmo que sejam prazeres nobres o temperante pode escolher dominaacute-los caso natildeo o conduza a uma accedilatildeo virtuosa 126 Cf EacuteN II 1104b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29127 Cf EacuteN X 1172a 20-25 Ibidem p 179128 Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Op cit p 193129 EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186130 Cf EacuteN X 1177a 1- 27 e 1178a 1-8
43
Aristoacuteteles utiliza pessoas concretas para exemplificar e identificar quais prazeres satildeo os
melhores e por conseguinte mais aspiraacuteveis a todos os homens131 O paracircmetro dos prazeres eacute
fornecido pela proacutepria accedilatildeo das pessoas virtuosas e natildeo por aquelas que possuem uma deformaccedilatildeo
em seu caraacuteter moral As pessoas virtuosas satildeo a proacutepria concretizaccedilatildeo do que se constitui o criteacuterio
dos prazeres considerados bons e dignos Elas satildeo consideradas modelos por se deliciarem com
prazeres que satildeo frutos da parte racional do ser humano e tambeacutem por terem os desejos
controlados pelas virtudes morais Por isso estes indiviacuteduos elevam a patamares superiores a
conduta humana Portanto os prazeres que as pessoas virtuosas buscam e desfrutam isso eacute o que
devem ser procurados porque satildeo estes prazeres que tanto estimulam a praacutetica das virtudes quanto
resultam destas mesmas virtudes praticadas no dia-a-dia
As pessoas viciosas corrompidas moralmente natildeo podem ser tomadas como modelo de
uma vida feliz devido ao fato de optarem por buscar os prazeres torpes que satisfazem apenas os
sentidos proacuteprios da parte irracional esquecendo-se da satisfaccedilatildeo do intelecto da parte racional
Com isso afastam-se da racionalidade que eacute a parte mais ilustre e mais humana e aproximam-se de
um modo de vida mais animalesco pois como diz Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquo[] tais prazeres satildeo
muitos desejados pelas bestas mas natildeo o devem ser pelos homensrdquo132 A torpeza na conduta
fatalmente afasta o homem de uma vida virtuosa que eacute proacutepria da eudaimonia Logo na sordidez
encontra-se a infelicidade embora muitas vezes tenha a aparecircncia de uma vida feliz
O homem bom eacute o proacuteprio homem virtuoso Ele eacute o padratildeo de referecircncia acerca dos
prazeres que podem ser apreciados O que se afigura como prazeroso ao homem virtuoso pode ser
deduzido como um prazer correto e agradaacutevel sendo liacutecito o estiacutemulo para ser usufruiacutedo por outras
pessoas Um homem virtuoso natildeo se deliciaraacute com coisas ou accedilatildeo desonrosas Somente homens
pervertidos moralmente podem se comprazer com aquilo que eacute vergonhoso natildeo existindo
possibilidade de serem erigidos ao patamar de modelos de prazeres a serem vividos Aristoacuteteles eacute
enfaacutetico ao afirmar que os prazeres reconhecidamente ignoacutebeis natildeo devem ser apreciados como
prazeres sob nenhuma condiccedilatildeo pois satildeo indignos de homens com nobreza moral sendo apenas
131Cf EacuteN VI 1140b 10 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Aristoacuteteles tambeacutem aponta para os homensconsiderados prudentes para exemplificar a virtude da phronecircsis em atuaccedilatildeo e tentar demonstrar os criteacuterios utilizadospara uma accedilatildeo virtuosa O Estagirita cita o estadista Peacutericles e ldquohomens como elerdquo como exemplo de indiviacuteduos quepossuiacuteam a virtude da prudecircncia porque percebiam o que era bom para si mesmos e para os homens em geral Por issoeram considerados bons administradores de casas e de Estados No caso dos prazeres Aristoacuteteles tambeacutem aponta que oshomens virtuosos satildeo o modelo de quais espeacutecies de prazeres podem ser usufruiacutedos Satildeo os prazeres provenientes dasaccedilotildees virtuosas 132 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles TradTiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 p 38 A citaccedilatildeo em latim vem das Sententia Libri Ethicorumliber 10 lectio 4 n 3 ldquo[] Et similiter delectationes bestiales bestiis quIbidem sunt appetibiles non autemhominibusrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017 O Aquinate sintetiza a visatildeoaristoteacutelica referente a EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-15
44
apreciados por homens degenerados em seu caraacuteter Mas mesmo dentro da categoria dos prazeres
dignos e honrosos a questatildeo que surge eacute a acerca de quais destes prazeres satildeo mais adequados ao
ser humano Novamente eacute o homem dotado de virtudes que se torna o proacuteprio criteacuterio De acordo
com o Estagirita
Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado comosendo realmente talSe isto eacute correto como se afiacutegura ser e a virtude e o homembom como tais satildeo a medida de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os quelhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitarSe as coisas que ele acha enfadonhas parecem agradaacuteveis a outros natildeo haacute nada desurpreendente nisso pois os homens podem ser pervertidos e estragados de muitosmodos e tais coisas natildeo satildeo realmente agradaacuteveis mas soacute o satildeo para essaspessoas e outras nas mesmas condiccedilotildees Das que reconhecidamente satildeovergonhosas evidentemente natildeo se deveria dizer que satildeo prazeressalvo para umgosto pervertido133
O prazer (h9donh) natildeo eacute um bem em si mesmo natildeo eacute autossuficiente posto que esteja
sempre atrelado em alguma coisa boa ou maacute Por isso natildeo eacute o bem supremo pois variam conforme
as diversas espeacutecies de prazer aleacutem de serem alguns resultantes de boas obras e outras de obras
torpes Assim o prazer natildeo pode ser considerado universalmente bom nem como o uacutenico criteacuterio
de bem Como siacutentese desta premissa Satildeo Tomaacutes de Aquino aponta trecircs aspectos acerca dos
prazeres pelos quais Aristoacuteteles natildeo considera o prazer universalmente bom134 Primeiro o prazer
possui muitas espeacutecies e muitas vezes pode ser maleacutefico Este fato pode ser ilustrado citando a
diferenccedila entre um amigo e um adulador Com o amigo com o qual existe uma verdadeira amizade
o conviacutevio eacute pautado pelo bem que traz Em relaccedilatildeo ao adulador o conviacutevio tem por fundamento
somente o prazer Prontamente o amigo eacute louvado pelo bem que traz agrave amizade enquanto o
adulador eacute repreendido Segundo uma crianccedila concede uma maacutexima relevacircncia aos prazeres da
infacircncia e ningueacutem deseja continuar vivendo nesta etapa da vida mesmo que o crescimento e
amadurecimento signifiquem assumir as tristezas inerentes agrave vida adulta Terceiro existem
atividades que satildeo desejadas mas natildeo trazem nenhum tipo de prazer tais como o ato de recordar
adquirir conhecimento e possuir virtudes Estas atividades se concretizam sem necessariamente
terem um prazer como consequecircncia Neste sentido sendo as virtudes e o conhecimento
relacionados agrave eudaimonia Aristoacuteteles recomenda que mesmo que hipoteticamente natildeo houvesse
133 Cf EacuteN X 1176a 15-23 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186134 Cf Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 39 e Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 4 n 4 a8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017
45
nenhum prazer na praacutetica destas atividades elas deveriam continuar a serem escolhidas pelo bem
que carregam consigo135
Em siacutentese o prazer eacute como um ldquomotorrdquo que impele o indiviacuteduo a buscar o objeto
apropriado do desejo seja este um bom ou mau desejo Estes desejos geram prazeres considerados
nobres ou torpes O homem virtuoso para alcanccedilar a eudaimonia procura os prazeres originados
pelas accedilotildees virtuosas porque geram prazeres dignos
Aleacutem de ser uma fonte indutora das atividades humanas o prazer tambeacutem possui o papel de
aperfeiccediloar estas mesmas atividades Eacute esta funccedilatildeo de aperfeiccediloamento que seraacute estudada no
proacuteximo toacutepico
23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
Uma outra funccedilatildeo distintiva do prazer eacute o aperfeiccediloamento da atividade Esta relaccedilatildeo de
prazer e perfeiccedilatildeo se refere agrave dois pontos importantes que satildeo o aprimoramento da atividade e o
resultado da perfeiccedilatildeo atingida na accedilatildeo
Na concepccedilatildeo aristoteacutelica todas as pessoas buscam o prazer porque aspiram agrave vida136 Uma
vez que a vida eacute uma atividade cada indiviacuteduo exerce sua atividade sobre os objetos e com as
faculdades que mais lhe apraz o prazer inerente a essas accedilotildees estimula repetir continuamente esta
mesma accedilatildeo Por exemplo um muacutesico sente prazer na audiccedilatildeo e no estudo das melodias ou um
intelectual se deleita com o uso da razatildeo nas questotildees filosoacuteficas Por isso o prazer eacute um
complemento de uma atividade bem exercida137 Deste modo haacute um aprimoramento das accedilotildees
realizadas o que leva um aperfeiccediloamento da proacutepria vida pois esta conteacutem todas as atividades
Conforme descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
Dir-ser-ia que todos os homens desejam o prazer porque todos aspiram agrave vida Avida eacute uma atividade e cada um eacute ativo em relaccedilatildeo agraves coisas e com as faculdadesque mais ama por exemplo o muacutesico eacute ativo com o ouvido em referecircncia agravesmelodias o estudioso como o intelecto em referecircncia a questotildees teoacutericas e da
135 Usando o proacuteprio exemplo de Aristoacuteteles na EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-10 Devemos notar que determinadasatividades como a visatildeo a memoacuteria o conhecimento a posse das virtudes etc podem gerar prazer ou natildeo Mas devemser buscadas mesmo que gerem dor Na referida passagem da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apenas afirma que devemser escolhidas independentemente de serem prazerosas ou natildeo Em nosso entender estas atividades podem emalgumas ocasiotildees natildeo serem prazerosas Mas natildeo significam necessariamente que gerem dor por isso deve-se optarpor elas tal como preconizado pelo Estagirita 136 A vida de um ser humano conteacutem prazeres e dores Todos os indiviacuteduos procuram ter uma vida prazerosa o quesignifica maximizar as atividades que trazem prazer e diminuir aquelas que provocam dor Logo dizer que um homembusca agrave vida significa que ele procura exercer as atividades que trazem alegria para si para que sua vida seja feliz137 Uma questatildeo que pode advir eacute se necessariamente uma atividade bem feita gera prazer Na nossa visatildeo entendemosque sim Porque o prazer eacute intriacutenseco agrave atividade ou seja acompanha cada accedilatildeo realizada de modo correto Oindiviacuteduo tem satisfaccedilatildeo ao final da accedilatildeo corretamente realizada
46
mesma forma nos outros casos Ora o prazer completa as atividades e portanto avida que eles desejam Eacute muito justo pois que aspirem tambeacutem ao prazer vistoque para cada um este completa a vida que lhe eacute desejaacutevel Mas quanto a saber seescolhemos a vida com vistas no prazer ou o prazer com vistas na vida eacute umaquestatildeo que podemos deixar de parte por ora Com efeito os dois parecem estarintimamente ligados entre si e natildeo admitir separaccedilatildeo jaacute que sem atividade natildeosurge o prazer e cada atividade eacute completada pelo prazer que a acompanha 138
Para Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquoPortanto o prazer eacute a perfeiccedilatildeo da operaccedilatildeordquo139 Ou seja a
proacutepria atividade eacute completada pelo prazer O prazer em si depende da operacionalizaccedilatildeo da
atividade140 seja esta uma atividade atinente aos sentidos ou ao intelecto Mas pode-se dizer que
existe uma escala de prazeres pois os prazeres satildeo de diversos tipos e vinculados a diversas
atividades que tambeacutem podem ser subdividas em uma escala Logo uma atividade bem-feita eacute
prazerosa e uma atividade perfeita eacute prazerosiacutessima
Tatildeo diversas quanto agraves atividades tambeacutem satildeo os prazeres Existem prazeres vinculados
aos sentidos e outros vinculados ao intelecto sendo estes uacuteltimos considerados mais sublimes e
puros141 Ao existir uma variedade de atividades com diferentes prazeres haacute uma consequente
valoraccedilatildeo moral diversificada para cada prazer O criteacuterio adotado por Aristoacuteteles para a aplicaccedilatildeo
de um juiacutezo moral correto que possa identificar um prazer considerado moralmente bom ou mau eacute
o proacuteprio exemplo do homem bom142
No que tange agrave observaccedilatildeo aristoteacutelica acerca da ligaccedilatildeo entre as atividades realizadas e
os prazeres resultantes que trazem um aperfeiccediloamento da mesma accedilatildeo o adaacutegio popular que
afirma que ldquoa praacutetica leva agrave perfeiccedilatildeordquo resume bem neste quesito a posiccedilatildeo aristoteacutelica A
constacircncia nas virtudes morais conduz agrave excelecircncia do caraacuteter assim como a perseveranccedila nas
virtudes intelectuais acarretam uma maestria com o conhecimento tanto pelo aumento de
conhecimento quanto pelo manejo deste Isso traz ao homem virtuoso a alegria o prazer em duas
formas o primeiro de percorrer o caminho da virtude o segundo de alcanccedilar cada vez mais uma
nobreza de conduta que o faz ser um indiviacuteduo feliz
138 Cf EacuteN X 1175a 10-20 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184139 Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 51 Eacute interessante conferir esta liccedilatildeo na iacutentegra por issocoloco a citaccedilatildeo inteira em latim das Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 6 n 5 ldquoEt inter huiusmodi operationessensus et intellectus illa est delectabilissima quae est perfectissima Perfectissima autem operatio est quae est sensusvel intellectus bene dispositi in comparatione ad optimum eorum quae subiacent sensui vel intellectui Si igitur operatioperfecta est delectabilis perfectissima autem delectabilissima consequens est quod operatio inquantum est perfecta sitdelectabilis Delectatio ergo est operationis perfectiordquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017140 Embora existam prazeres sem atos como algumas deleitaccedilotildees141 Cf EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186142 Cf EacuteN X 1176b 25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 187
47
24 O homem virtuoso
O indiviacuteduo que alcanccedilou a excelecircncia moral eacute denominado na visatildeo grega antiga de
spoudaios (σπουδαῖος) Conforme Aristoacuteteles assinala as virtudes morais estatildeo estritamente ligadas
agrave prudecircncia porque os princiacutepios que balizam a accedilatildeo humana satildeo fornecidos pela virtude intelectual
da prudecircncia A prudecircncia confere o paracircmetro correto para as virtudes morais143 O homem
prudente (φρόνιμος) aponta a melhor escolha a ser seguida O spoudaios eacute o indiviacuteduo que possui as
melhores condiccedilotildees para emitir um julgamento prudente acerca de quais prazeres satildeo liacutecitos em
serem gozados ou a correta medida das virtudes em cada caso especiacutefico O spoudaios torna-se o
proacuteprio criteacuterio de um bom julgamento dos princiacutepios morais prazeres e desejos perante as
circunstacircncias Na compreensatildeo de Pierre Aubenque para Platatildeo o homem saacutebio fixa seu
paracircmetro na Ideia de Bem ou seja em uma ordem ou norma transcendente a ele proacuteprio
Aristoacuteteles ao desconsiderar a existecircncia de um Mundo das Formas ideais transfere o paracircmetro de
sabedoria e retidatildeo a serem observadas para o proacuteprio phronimos Para sermos homens de retidatildeo
moral natildeo devemos ter como paracircmetro a Ideia de Bem e sim termos como paracircmetro o proacuteprio
homem de bem No entender de Pierre Aubenque inicialmente a palavra σπουδαῖος significava um
indiviacuteduo que tinha ldquozelordquo em suas faccedilanhas possuiacutea um ardor no combate sendo esta noccedilatildeo
aplicada ao ideal arcaico do heroacutei grego Depois passou a significar somente uma atividade
realizada de modo crediacutevel O spoudaios por ser zeloso na sua conduta inspira confianccedila visto que
eacute digno e honrado em suas accedilotildees Aristoacuteteles teria recuperado este antigo ideal heroacuteico mas
transmutado no homem que possui uma qualidade em seu julgamento por ser valoroso
moralmente144 Nota-se como o homem prudente o phronimos que possui uma excelecircncia na
virtude intelectual da prudecircncia se coaduna com o homem possuidor de excelecircncia moral o
spoudaios145
A vida virtuosa eacute uma vida prazerosa O spoudaios eacute o modelo do que deve ser feito e isso
inclui os prazeres considerados nobres e provenientes da virtude porque sabe discerni-los e pesaacute-los
bem146 O bem verdadeiro e por consequecircncia o prazer verdadeiramente bom eacute posto em relaccedilatildeo a
este indiviacuteduo considerado valoroso O spoudaios ilumina as situaccedilotildees e distingue aquilo que eacute
143 Cf EacuteN X 1178a 15-18 Ibidem p 190144 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 77-78145 Pierre Aubenque aponta a traduccedilatildeo de outros comentadores de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo ao termo σπουδαῖος ParaTricot eacute oldquohomem virtuosordquo para Voilquin eacute o ldquohomem de bemrdquo para Gauthier eacute o ldquovirtuosordquo para Ross eacute o ldquo thegood manrdquo Aubenque prefere chamar de ldquovalorosordquo Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p78 Independente da melhor forma de traduzir o termo σπουδαῖος o nuacutecleo central do conceito identifica-se com umaexcelecircncia de virtudes morais nobreza de conduta retidatildeo moral etc sendo contraacuterio agrave devassidatildeo ou condutapermeada de viacutecios 146 Cf EacuteN I 1099a 22-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 18
48
apenas aparecircncia ou nefasto daquilo eacute que autecircntico e benfazejo em cada categoria de coisas Um
indiviacuteduo pode considerar boa alguma coisa a ser feita ou buscada sem que aquilo seja
verdadeiramente bom devido a uma falsa percepccedilatildeo do que realmente eacute o bem em cada coisa Isto
tambeacutem ocorre com os prazeres inerentes agraves coisas que fazemos ou desejamos A princiacutepio podem
parecer prazeres edificantes mas tirados seus veacuteus conduzem apenas agrave ruiacutena Por isso eacute
imprescindiacutevel saber escolher corretamente os prazeres considerados bons e se habituar a desejaacute-
los Esta perspectiva do indiviacuteduo valoroso moralmente como regra e medida eacute subentendida desde
o Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco e se torna mais clara ao longo desta mesma obra Aristoacuteteles
assevera claramente este papel de criteacuterio ao spoudaios ao afirmar que
Com efeito o homem bom (σπουδαῖος) aquilata toda a classe de coisas comacerto e em cada uma delas a verdade lhe aparece com clareza mas cadadisposiccedilatildeo de caraacuteter tem suas ideacuteias proacuteprias sobre o nobre e o agradaacutevel e amaior diferenccedila entre o bom e os outros consiste talvez em perceber a verdade emcada classe de coisas como quem eacute delas a norma e a medida Na maioria doscasos o engano deve-se ao prazer que parece bom se realmente secirc-lo e por issoescolhemos o agradaacutevel como um bem e evitamos a dor como um malrdquo147
Podemos afirmar que na linha de raciociacutenio aristoteacutelica eacute necessaacuterio ser bom para decidir
bem O ato de discernir sopesar as coisas com acerto eacute uma accedilatildeo caracteriacutestica de um julgamento
correto acerca das coisas A retidatildeo de julgamento eacute uma qualidade distintiva do phronimos Por
isso Aristoacuteteles atribui ao homem prudente o exerciacutecio de estabelecer o criteacuterio para o julgamento
de cada classe de coisas O spoudaios eacute um homem nobre de conduta por ser virtuoso moralmente
mas ser um indiviacuteduo valoroso natildeo significa automaticamente ser um indiviacuteduo com um bom
discernimento acerca das circunstacircncias e da melhor accedilatildeo a ser operacionalizada Ser um homem de
virtudes morais eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para ser um homem com a virtude intelectual da prudecircncia 148
Por exemplo um indiviacuteduo incontinente que busque somente prazeres corporais natildeo consegue
julgar corretamente Todo phronimos eacute um indiviacuteduo valoroso moralmente natildeo sendo possiacutevel
algueacutem ser prudente se natildeo tiver se habituado a praacutetica das virtudes morais Uma vez que
Aristoacuteteles adere a posiccedilatildeo de imanecircncia dos criteacuterios de julgamento das coisas ao rejeitar a
transcendecircncia do Mundo das Formas traccedilada na filosofia platocircnica a reta razatildeo passar a ser
fundamentada no proacuteprio phronimos O homem prudente personifica a recta ratio porque ele se
torna aquele que possui a habilidade de julgar
O phronimos julga bem porque conhece aquilo que julga Conforme Aristoacuteteles assevera na
Eacutetica a Nicocircmaco que apenas julga bem quem foi instruiacutedo naquele assunto e julga bem as coisas
147 EacuteN III 1113a 30-39 Ibidem p 47148 Cf EacuteN VI 1143b 15- 23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 112
49
em geral por possuir uma instruccedilatildeo geral acerca de diversas coisas149 Tambeacutem natildeo basta somente
ser instruiacutedo sobre qualquer assunto na sua dimensatildeo teoacuterica mas eacute necessaacuterio ter ldquoexperiecircncia de
vidardquo para saber julgar corretamente as coisas e suas circunstacircncias Esta junccedilatildeo entre o
conhecimento teoacuterico dos princiacutepios e como aplicaacute-los nas diversas situaccedilotildees proporciona que o
indiviacuteduo seja considerado prudente A necessidade da maturidade como um dos fatores
fundamentais para a prudecircncia eacute posta por Aristoacuteteles quando explica que jovens natildeo satildeo bons
ouvintes para as instruccedilotildees acerca da vida poliacutetica pois natildeo possuem vivecircncia suficiente dos fatos
da vida150 Normalmente eles satildeo dados a seguirem suas paixotildees o que gera uma imaturidade que
atrapalha a accedilatildeo correta Vale frisar que na perspectiva aristoteacutelica indiviacuteduos adultos que natildeo satildeo
considerados jovens tambeacutem podem ser imaturos porque a maturidade depende de uma escolha do
modo de vida151 Desta maneira a aquisiccedilatildeo da virtude da prudecircncia vem de uma escolha que
envolve uma conduta de vida pautada pela racionalidade pelas virtudes morais e pela educaccedilatildeo
para desejar os prazeres corretos
25 As virtudes morais como mediania
Eacute notaacutevel a didaacutetica que Aristoacuteteles usa para explicar alguns conceitos descritos na Eacutetica a
Nicocircmaco Eacute frequente a comparaccedilatildeo que estabelece com as artes para expressar sua filosofia
moral Por exemplo ao argumentar sobre o bem das coisas usa a arte da navegaccedilatildeo a medicina a
equitaccedilatildeo a arqueria dentre outras Ao falar das virtudes recorre agrave figura dos construtores e
muacutesicos Esse recurso comparativo tambeacutem eacute usado para explicar as virtudes morais e o conceito de
mesoacutetes (152 Ao descrever a ideia de mediania como fundamental para uma conduta
virtuosa o Estagirita mostra que um mestre de ofiacutecio para atingir a excelecircncia na feitura de um
objeto busca a mediania por meio da qual evita o exagero ou uma deficiecircncia Logo o meio-termo
preserva a obra e os extremos a destroem A analogia confere clareza ao argumento aristoteacutelico
Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo (e escolhendo-o ndash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamentea noacutes Se assim pois que cada arte realiza bem o seu trabalho ndash tendo diante dosolhos o meio-termo e julgando suas obras por esse padratildeo e por isso dizemosmuitas vezes que agraves boas obras de arte natildeo eacute possiacutevel tirar nem acrescentar nada
149 Cf EacuteN 1094b 27 Ibidem p 10150 Cf EacuteN 1095a 3-5 Ibidem p 10 A relaccedilatildeo entre prudecircncia e experiecircncia seraacute estudada com mais detalhes noCapiacutetulo III 151 Cf EacuteN 1095a 6-13 Ibidem p 10152 O termo mesoacutetes pode ser traduzido por mediania meio-termo termo meacutedio mediedade
50
subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelecircncia dessas obrasenquanto o meio-termo a preserva e para este como dissemos se voltam osartistas no seu trabalho - e se ademais disso a virtude eacute mais exata e melhor quequalquer arte como tambeacutem o eacute a natureza segue-se que a virtude deve ter oatributo de visar ao meio-termo Refiro-me agrave virtude moral pois eacute ela que dizrespeito agraves paixotildees e accedilotildees nas quais existe excesso carecircncia e meio-termo153
O artesatildeo visa a mediania para realizar uma obra-prima Nesta nada eacute ausente tampouco eacute
possiacutevel acrescentar algo A excelecircncia da obra consiste na medida correta De modo anaacutelogo a
virtude moral se encontra na mediania O indiviacuteduo com virtudes morais eacute aquele que sabe constatar
nas situaccedilotildees qual eacute a proporccedilatildeo certa de seus afetos e accedilotildees para construir a si proacuteprio como ldquoobrardquo
de sua vida e alcanccedilar a eudaimonia
A virtude moral eacute caracterizada pela ideia de medianiaAmesoacutetes eacute o meio-termo entre
dois extremos de conduta Eacute o que nos mostra o Estagirita ao afirmar que ldquoPelas mesmas razotildees o
excesso e a falta satildeo caracteriacutesticos do viacutecio e a mediania da virtude pois os homens satildeo bons de
um modo soacute e maus de muitos modosrdquo154 Estes extremos satildeo considerados como viacutecios por
Aristoacuteteles Uma conduta virtuosa consiste em agir entre estes dois extremos Quais satildeo estas duas
formas de accedilatildeo ou emoccedilotildees que devem ser evitadas Satildeo dois tipos de viacutecios que denotam um
excesso ou uma carecircncia no sentir e no agir Deste modo a virtude eacute a proporccedilatildeo correta que evita
que o indiviacuteduo incorra em condutas que satildeo viciosas
A mediania natildeo deve ser entendida como um caacutelculo matemaacutetico exato e rigoroso Na
aritmeacutetica entre os nuacutemeros zero e dez a metade deste conjunto de numeraccedilatildeo eacute cinco Este
resultado eacute sempre o mesmo natildeo existe uma dependecircncia das situaccedilotildees para que isto ocorra Mas
esta exatidatildeo numeacuterica natildeo se aplica agrave conduta humana visto que a mediania deve ser observada
em relaccedilatildeo a noacutes examinando as situaccedilotildees pertinentes nas quais estamos inseridos Um exemplo
que ilustra o meio-termo eacute a alimentaccedilatildeo necessaacuteria de um atleta em comparaccedilatildeo a uma pessoa
sedentaacuteria que permanece o dia inteiro em um escritoacuterio O atleta necessita de uma alimentaccedilatildeo
mais rica em nutrientes e em quantidade maior enquanto o indiviacuteduo sedentaacuterio natildeo precisa de uma
nutriccedilatildeo diferenciada Ambos devem ter a alimentaccedilatildeo adequada agraves suas necessidades para que
possam cumprir sua funccedilatildeo e se manterem saudaacuteveis O mesmo ocorre com o exerciacutecio fiacutesico Por
isso o meio-termo preserva a sauacutede do corpo pois esta pode ser destruiacuteda tanto pelo excesso de
exerciacutecios alimentaccedilatildeo e bebida quanto pela sua total ausecircncia
153 EacuteN II 1106b 5-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32154 Cf EacuteN II 1106b 34-35 Ibidem p 33 Aleacutem da traduccedilatildeo utilizada neste trecho ldquopois os homens satildeo bons de ummodo soacute e maus de muitos modosrdquo feita por L Vallandro e G Bornheim 1987 indicamos a traduccedilatildeo feita por EdsonBini (2013 p 77) referente ao mesmo trecho ldquoSimples eacute a bondade muacuteltipla a maldaderdquo E a traduccedilatildeo realizada porMarco Zingano (2008 p 51) ldquoBravos pois de um soacute modo mas maus de muitos modosrdquo
51
No campo das virtudes morais esta mesma ideia de evitar o excesso ou carecircncia eacute aplicada
O indiviacuteduo que foge diante de quaisquer perigos ou natildeo enfrenta os desafios transforma-se em um
covarde Mas ao enfrentar todas as situaccedilotildees sem nenhum temor torna-se um temeraacuterio A coragem
consiste em natildeo ser um covarde nem ser um afoito que natildeo calcula os riscos Da mesma forma o
homem que cede a todos os prazeres natildeo praticando a temperanccedila assume a postura de um
libertino Entretanto se escolhe natildeo usufruir de nenhum tipo de prazer se converte em uma pessoa
insensiacutevel A temperanccedila estaacute na moderaccedilatildeo dos prazeres Tal como a sauacutede eacute adquirida e se
manteacutem pelo haacutebito de uma boa alimentaccedilatildeo e exerciacutecios fiacutesicos as virtudes satildeo adquiridas por
meio de uma boa praacutetica habitual Tornamo-nos temperantes evitando os extremos o que nos
capacita a sermos moderados O mesmo ocorre com a coragem ao confrontar aquilo que nos causa
medo nos tornamos corajosos Portanto as virtudes satildeo preservadas pela mediania mas satildeo
extinguidas pelo exagero ou pela deficiecircncia que impedem a execuccedilatildeo de uma accedilatildeo virtuosa
Eacute importante ressaltar que a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que proporciona um
proceder correto da conduta do indiviacuteduo A virtude diz respeito agraves paixotildees e as accedilotildees Em relaccedilatildeo
aos afetos significa que as paixotildees possam ser experimentadas da forma correta155 As paixotildees satildeo
corretamente vivenciadas quando atendem os requisitos de serem experimentadas no momento
oportuno quando se referem agraves pessoas certas visa o propoacutesito certo pelo motivo certo e da
maneira correta156 Os mesmos requisitos descritos acerca das emoccedilotildees satildeo aplicados agraves accedilotildees do
indiviacuteduo Estas tambeacutem devem ser realizadas do modo certo para serem consideradas virtuosas157
Satildeo as virtudes morais que permitem que o indiviacuteduo possa adquirir a excelecircncia ao lidar com as
paixotildees e consequentemente com as accedilotildees Diante dessas condiccedilotildees relacionadas tanto agraves paixotildees
quanto agraves accedilotildees o Estagirita assevera que eacute um desafio ser um homem bom porque eacute faacutecil errar de
muitos modos enquanto a conduta certa possui somente um uacutenico modo de agir158
Todas as accedilotildees e paixotildees possuem um meio-termo Aristoacuteteles afirma que determinadas
condutas natildeo satildeo passiacuteveis de aplicaccedilatildeo do conceito de mesoacutetes devido ao fato que estas satildeo maacutes
por si proacuteprias Natildeo satildeo os excessos ou as carecircncias que transformam estas condutas em accedilotildees ou
paixotildees agrave serem evitadas mas as suas proacuteprias essecircncias satildeo maldosas O Estagirita elenca alguns
exemplos referentes aos afetos como a malevolecircncia o despudor a inveja quanto agraves accedilotildees cita o
adulteacuterio o furto e o homiciacutedio Outro argumento exposto por Aristoacuteteles para natildeo aplicar a ideia de
mediania nas condutas mencionadas eacute que seria uma insensatez pensar a existecircncia de um meio-
termo em algo que por si mesmo jaacute eacute um excesso ou uma carecircncia Natildeo pode haver a ldquodemasiardquo de
155 Cf EacuteN II 1106b 15-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32-33156 Cf EacuteN II 1106b 20-24 Ibidem p 33157 Cf EacuteN II 1106b 26-29 Ibidem p 33158 Cf EacuteN II 1106b 35 Ibidem p 33
52
um excesso ou a ldquocarecircnciardquo de uma insuficiecircncia cerca das maacutes condutas descritas outro
exemplo que demonstra a clareza da ideia consiste no fato de que natildeo eacute possiacutevel existir uma
mediania quando as proacuteprias essecircncias das accedilotildees ou paixotildees satildeo perversas A tiacutetulo de exemplo eacute
absurdo imaginar que um indiviacuteduo que comete adulteacuterio com a frequecircncia de ser ldquomeramenterdquo
uma vez por ano durante um evento determinado com uma pessoa considerada bondosa e com a
duraccedilatildeo do encontro por apenas alguns minutos pode estar justificada moralmente Natildeo eacute
moderaccedilatildeo deste tipo de conduta que a faz ser boa ela sempre seraacute perniciosa A mesma ilustraccedilatildeo
pode ser aplicada agraves demais accedilotildees maacutes Logo de qualquer forma que estas accedilotildees sejam cometidas
estatildeo sempre erradas conforme nos mostra Aristoacuteteles
Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes quejaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito () o despudor() a inveja (θόνος) e no campo das accedilotildees o adulteacuterio (μοιχεία) ofurto (κλοπή) o assassiacutenio () Todas essas coisas e outras semelhantesimplicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso oudeficiecircncia Todas essas coisas e outas semelhantes implicam nos proacuteprios nomesque satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais podehaver retidatildeo mas unicamente o erro E no que se refere a essas coisas tampoucoa bondade ou maldade dependem de cometer adulteacuterio com a mulher apropriadana ocasiatildeo e da maneira convenientes mas fazer simplesmente qualquer delas eacute ummalIgualmente absurdo seria buscar um meio-termo (um excesso e umafalta em atos injustos covardes ou libidinosos porque assim haveria um meio-termo do excesso e da carecircncia um excesso do excesso e uma carecircncia da carecircnciaMas do mesmo modo que natildeo existe excesso nem carecircncia de temperanccedila ecoragem pois o que eacute intermediaacuterio tambeacutem eacute noutro sentido um extremotambeacutem das accedilotildees que mencionamos natildeo haacute meio-termo nem excesso nem faltaporque de qualquer forma que sejam praticadas satildeo maacutes Em suma do excesso eda falta natildeo haacute um meio-termo como tambeacutem natildeo haacute excesso ou falta de meio-termo159
Nas diversas situaccedilotildees que o homem se depara Aristoacuteteles descreve que um dos
aspectos160que deve ser observado para que a virtude moral possa atuar eacute a noccedilatildeo de
ldquoquantidaderdquo161 Lidar com os afetos significa experimentaacute-los na proporccedilatildeo correta dentro da
situaccedilatildeo enfrentada pelo indiviacuteduo162 Neste sentido uma observaccedilatildeo menos cuidadosa das
caracteriacutesticas da virtude pode levar agrave interpretaccedilatildeo equivocada que a mediania consistiria somente
em ter sentimentos moderados de uma forma inflexiacutevel sem atentar para os demais requisitos Para
159 EacuteN II 1107a 10-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33160 Cf EacuteN II 1106b 20-24 ARISTOacuteTELES Ibidem p 33 Outros elementos satildeo a ocasiatildeo apropriada os objetosapropriados as pessoas apropriadas o motivo correto e a maneira conveniente 161 A ldquoquantidaderdquo pode ser entendida como intensidade das emoccedilotildees162 Cf EacuteN II 1106b 18-19 Ibidem p 33
53
exemplificar esta perspectiva imaginemos o caso de um indiviacuteduo que seja viacutetima de um assalto a
ldquomatildeo armadardquo Ele deve sentir brandamente raiva do meliante natildeo se exaltando diante da
ocorrecircncia Outro exemplo seria a pessoa que natildeo se alegra nos eventos prazerosos Portanto a
virtude como accedilatildeo e paixatildeo corretas seria baseada no aspecto quantitativo de afeto
Esta interpretaccedilatildeo acima descrita natildeo condiz com o argumento aristoteacutelico acerca da
virtude moral163 Primeiro porque desconsidera os outros aspectos que devem ser observados pelo
indiviacuteduo para que a accedilatildeo possa ser tido como moralmente virtuosa Estes aspectos satildeo o tipo de
pessoa qual o momento em que ocorreu a accedilatildeo se o motivo foi correto ou errocircneo se a maneira de
agir foi adequada ou natildeo Esta interpretaccedilatildeo equivocada determina a ldquoquantidade meacutediardquo de afetos
que o indiviacuteduo deve vivenciar independente de qual seja as circunstacircncias O problema estaacute no
fato que esta vivecircncia se baseia em pressupostos abstratos Segundo porque a avaliaccedilatildeo das paixotildees
e accedilotildees eacute realizada a partir das circunstacircncias concretas nas quais o indiviacuteduo estaacute inserido
Terceiro a virtude moral se encontra no campo da razatildeo praacutetica natildeo eacute possiacutevel estabelecer um
comportamento que tenha uma ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo dotada de uma precisatildeo matematicamente
exata e imutaacutevel164 Na visatildeo aristoteacutelica o exame correto da conduta visa agraves particularidades de
cada situaccedilatildeo e evita qualquer abstraccedilatildeo relacionada as emoccedilotildees A ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo deve
ser adequada em cada situaccedilatildeo enfrentada A anaacutelise se o homem teve ou natildeo os afetos apropriados
deve considerar quem eacute a pessoa seus motivos o que estava ocorrendo naquele contexto etc
Portanto o aspecto quantitativo natildeo deve ser dispensado totalmente no exame da virtude visto que
ele tambeacutem compotildeem a accedilatildeo correta mas deve ser observado juntamente com os demais aspectos
relacionadas agrave accedilatildeo pautada pela virtude moral
Eacute importante ficar claro que o indiviacuteduo que busca atingir a mediania e por consequecircncia
uma accedilatildeo virtuosa precisa atentar para todos os aspectos envolvidos na virtude moral intensidade
correta dos afetos momento oportuno a pessoa visada o propoacutesito a maneira adequada de agir
Com frequecircncia erra-se em um requisito ou outro o que ocasiona um erro ou acerto parcial na
conduta Entretanto o equiacutevoco cometido em todos os aspectos acarreta uma accedilatildeo viciosa e por
isso uma maacute conduta Uma accedilatildeo virtuosa que prima pela excelecircncia cumpre todos as condiccedilotildees da
virtude moral Contudo Aristoacuteteles adverte que todos estes requisitos necessitam estar em
consonacircncia com a reta razatildeo165
Ao orientar a mediania a reta razatildeo implica que cada situaccedilatildeo necessita de uma accedilatildeo
apropriada O homem virtuoso pode agir de uma maneira ou de outra conforme a necessidade de
cada ocasiatildeo mas sempre com a finalidade de que sua accedilatildeo seja moralmente virtuosa Citamos um
163 Cf EacuteN II 1104b 20-29 Ibidem p 29164 Cf EacuteN II 1104a 3-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 28165 Cf EacuteN II 1103b 33-35 Ibidem p 28
54
exemplo para clarificar esta ideia em uma circunstacircncia ldquoxrdquo eacute imperioso que tenha muita ira e que
aja de acordo com este afeto Na circunstacircncia ldquoyrdquo apenas eacute necessaacuteria uma ira branda para que a
melhor accedilatildeo se realize Nota-se que a mediania que estaacute em concordacircncia com a reta razatildeo
estabelece que a accedilatildeo virtuosa eacute aquela que se adequa agrave situaccedilatildeo na qual o indiviacuteduo estaacute inserido
No entender de Martin Rhonheimer o meio-termo da virtude eacute o melhor e o maacuteximo que se deve
fazer em cada ocasiatildeo e isso eacute o bem determinado pela razatildeo166 As paixotildees e as accedilotildees satildeo avaliadas
agrave luz da racionalidade Eacute a razatildeo que examina se houve uma demasia ou uma insuficiecircncia E quem
define da melhor forma possiacutevel a reta razatildeo eacute a pessoa dotada de sabedoria praacutetica ou seja o
homem prudente (φρόνιμος) Por isso a virtude moral como mediania entre duas accedilotildees ruins estaacute
intimamente conectada agrave prudecircncia como mostra Aristoacuteteles
A virtude (ἀρετή) eacute pois uma disposiccedilatildeo (ἕξις) de caraacuteter relacionada com aescolha ( e consistente numa mediania ( isto eacute a medianiarelativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional proacuteprio do homemdotado de sabedoria praacutetica (φρόνιμος) E eacute um meio-termo (entre doisviacutecios ( um por excesso ( e outro por falta ( pois queenquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente notocante agraves accedilotildees ( e paixotildees ( a virtude encontra e escolhe omeio-termo E assim no que toca agrave sua substacircncia (ou0sian) e agrave definiccedilatildeo (l gonoacutej )que lhe estabelece a essecircncia (e0stin) a virtude eacute uma mediania com referecircncia aosumo bem ( e ao mais justo eacute poreacutem um extremo (167
Estabelecer a mesoacutetes em uma situaccedilatildeo concreta natildeo eacute uma tarefa faacutecil uma vez que eacute
imprescindiacutevel atentar para vaacuterios aspectos relacionados agrave virtude moral168 Diante deste fato
Aristoacuteteles propotildee trecircs criteacuterios que auxiliam na obtenccedilatildeo da mediania O primeiro eacute evitar o
extremo que mais se afasta do meio-termo Ao considerar a existecircncia de duas accedilotildees extremadas
(viacutecios) normalmente uma delas eacute mais grave e a outra menos Devemos escolher o menor dos
166 Cf RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda edicioacutenTrad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007 p 212 A obra original foi escrita na liacutengua alematildecom o tiacutetulo Die Perspecktive der Moral Grundlagen der philosphischen Ethik167 EacuteN II 1107a 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33 Uma observaccedilatildeo importante eacute sobre a traduccedilatildeo dotermo pela palavra ldquoextremordquo escolhida pelos tradutores Leonel Vallandro e Gerd Bornheim cuja obrausamos como base nesta pesquisa O uso do termo ldquoextremordquo pode ser confundido com o viacutecio pois este eacute uma condutaextremada E natildeo com algo que eacute excelente Acreditamos que o conceito seria mais compreensiacutevel nocontexto desta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco se fossem usados alguns termos como ldquoaacutepicerdquo ldquoelevadordquo ldquoaugerdquoPorque a virtude moral eacute a postura de excelecircncia que o indiviacuteduo possa ter ela permite atingir o bem humano Nestalinha de raciociacutenio Marco Zingano transcreve este trecho do seguinte modo ldquoA virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo deescolher por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo isto eacute comoa delimitaria o prudente Eacute uma mediedade entre dois males o mal por excesso e o mal por falta Ainda pelo fato deas disposiccedilotildees faltarem umas outras excederem no que se deve tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude descobree toma o meio-termo Por isso por essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlididade a virtude eacute uma mediedade massegundo o melhor e o bem eacute um aacutepicerdquo ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado davirtude moral Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008 p 51168 Cf EacuteN II 1109a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37
55
extremos169 O segundo eacute conhecer quais erros somos mais propensos a cometer Isso pode ser
reconhecido pelo prazer ou dor que experimentamos ao cometecirc-los Apoacutes esta observaccedilatildeo de
tendecircncias que atraem ao erro eacute necessaacuterio caminhar na direccedilatildeo oposta para nos aproximar da
mediania170 O terceiro eacute ter uma atitude de cautela diante das coisas prazerosas porque estas
podem ser enganosas171 Deste modo o indiviacuteduo que observar estas precauccedilotildees pode atingir o
meio-termo e ser virtuoso nas circunstacircncias nas quais estaacute envolvido
Conforme exposto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter referente agraves escolhas que o
indiviacuteduo realiza A escolha correta estaacute na mediania Esta consiste em uma proporccedilatildeo correta de
paixotildees e accedilotildees entre dois extremos que satildeo considerados como viacutecios de conduta Um destes viacutecios
eacute caracterizado pela demasia e o outro pela insuficiente A percepccedilatildeo deste termo meacutedio eacute
delimitada pela reta razatildeo que atua nas circunstacircncias concretas A recta ratio eacute o proacuteprio homem
prudente Ele eacute quem deteacutem o melhor juiacutezo acerca das situaccedilotildees e realiza as melhores opccedilotildees eacute o
homem que possui a virtude intelectual da prudecircncia Portanto adentraremos na anaacutelise da
phronecircsis visto que haacute uma relaccedilatildeo desta com as virtudes morais e por ser importantiacutessima para a
obtenccedilatildeo da eudaimonia
169 Cf EacuteN II 1109a 30 Ibidem p 37170 Cf EacuteN II 1109a 35-1109b 5-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37171 Cf EacuteN II 1109b 8-10 Ibidem p 37
56
CAPIacuteTULO III
A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICO
Neste capiacutetulo examinamos o conceito de prudecircncia Com este intento estudamos a
diferenccedila entre o saber teoacuterico o saber poieacutetico e o saber praacutetico A prudecircncia eacute uma virtude
intelectual aplicada agraves coisas contingentes Ela eacute a excelecircncia do ato de decidir e de como dirigir a
proacutepria vida Portanto o homem prudente eacute aquele que sabe decidir bem
Para decidir da melhor maneira possiacutevel o phronimos sabe como deliberar bem e escolher
bem Neste sentido eacute necessaacuterio examinar no que consiste a deliberaccedilatildeo (bouleusij) e a escolha
(proairesij) O ato de deliberar e o ato de escolher satildeo aperfeiccediloados pela prudecircncia Tambeacutem
analisamos o que eacute a reta razatildeo (o0rqoj logoj) e sua funccedilatildeo para que uma accedilatildeo seja julgada
moralmente virtuosa Outro fator a ser examinado devido a sua importacircncia para o
desenvolvimento da virtude da prudecircncia eacute o fenocircmeno da experiecircncia (e0mpeiria) pois a
phronecircsis somente pode aparecer com o transcorrer do tempo
Ademais analisamos as partes integrantes da virtude da prudecircncia Satildeo as denominadas trecircs
virtudes intelectuais menores a boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) a inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo
(gnwmn) Por fim estabelecemos a relaccedilatildeo de como a phronecircsis contribui para que o homem seja
feliz
57
31 Linhas gerais acerca da prudecircncia
No decorrer da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles trata no livro I sobre a eudaimonia como fim
uacuteltimo do homem e no que consiste a felicidade humana Esta eacute conceituada como uma atividade
conforme a virtude Para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio a praacutetica das virtudes morais A definiccedilatildeo de
virtude moral eacute a de ser uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel quase permanente e adquirida que se
caracteriza pelo domiacutenio das paixotildees Este controle racional das paixotildees impele o homem a escolher
bem qual accedilatildeo a realizar pois o auxilia a alcanccedilar a mediania necessaacuteria entre dois viacutecios para que
seja uma accedilatildeo virtuosa defronte as circunstacircncias O paracircmetro deste termo meacutedio eacute percebido e
consequentemente fornecido pelo homem prudente que se orienta pela reta razatildeo
O Estagirita analisa de modo mais detalhado o papel do intelecto para a consecuccedilatildeo de uma
accedilatildeo moral virtuosa no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco Eacute nesta parte da obra que eacute estudada de modo
mais especiacutefico a virtude intelectual da prudecircncia Por isso neste toacutepico eacute analisado em que
constitui esta virtude e suas principais caracteriacutesticas
Para uma melhor compreensatildeo da phronecircsis faccedilamos uma breve retomada da divisatildeo da
alma examinada anteriormente no capiacutetulo II As virtudes da alma satildeo referentes agraves faculdades
sensitiva e intelectiva Em relaccedilatildeo agrave primeira as virtudes morais (eacuteticas) moldam os desejos agrave luz da
razatildeo orientando-os para o bem Na segunda as virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) servem para
atingir a verdade As virtudes satildeo estados de excelecircncia vinculadas agraves funccedilotildees desempenhadas
Conforme escreve Aristoacuteteles ldquo[hellip] a obra (e2rgon) de ambas as partes intelectuais eacute a verdade
Logo as virtudes de ambas seratildeo aquelas disposiccedilotildees (e3ceij) segundo as quais cada uma delas
alcanccedilaraacute a verdade (a0lhqeuampsei) em sumo graurdquo172
Na faculdade intelectiva existem duas partes racionais referentes a dois tipos de raciociacutenios
ou conhecimentos Estes satildeo diferentes devido ao fato que visam realidades distintas com
caracteriacutesticas proacuteprias em cada uma O primeiro eacute o conhecimento cientiacutefico o qual objetiva
estudar agraves coisas que possuem causas imutaacuteveis por isso satildeo invariaacuteveis Esta parte do intelecto
tambeacutem eacute chamada de razatildeo teoacuterica que resulta na sabedoria contemplativa O segundo eacute
conhecimento calculativo ou deliberativo que analisa agraves coisas mutaacuteveis que variam com o tempo e
as circunstacircncias173 Este conhecimento visa orientar agrave accedilatildeo humana E esta pode ser feita de um
modo ou de outro Uma vez que lida com a praacutexis eacute chamada de razatildeo praacutetica ou sabedoria praacutetica
Neste sentido comeccedila-se a delinear o que seja a virtude da prudecircncia Ela eacute a proacutepria razatildeo praacutetica
que atua em um patamar de excelecircncia Conforme nos aponta Aristoacuteteles
172 EacuteN VI 1139b 12-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102173 Cf EacuteN VI 1139a 5-10 Ibidem p 101
58
Dividimos as virtudes da alma (yuxh~~j a0retaj) dizendo que algumas satildeo virtudesdo caraacuteter e outras do intelecto [hellip] Dissemos anteriormente que esta [alma] temduas partes a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeoFaccedilamos uma distinccedilatildeo simples no interior da primeira admitindo que sejam duasas partes que conceberam um princiacutepio racional uma pela qual contemplamos ascoisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamosas coisas variaacuteveis porque quando dois objetos diferem e espeacutecie as partes daalma que correspondem a cada um deles tambeacutem diferem em espeacutecie visto ser poruma certa semelhanccedila e afinidade com os seus objetos que elas os conhecemChamemos cientiacutefica a uma dessas partes e calculativas agrave outra pois o mesmo satildeodeliberar (bouleuestai) e calcular (logizesqai) mas ningueacutem delibera sobre oinvariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe umprinciacutepio racional Devemos assim investigar qual seja o melhor estado de cadauma dessas duas partes pois nele reside a virtude de cada uma174
A virtude da prudecircncia eacute diferente da ciecircncia (e0pisthampmh) O conhecimento cientiacutefico possui
como objeto de estudo aquilo que existe necessariamente Eacute um objeto eterno Por isso nunca se
altera natildeo perece nem eacute nascido ou criado Devido agraves qualidades mencionadas as coisas
invariaacuteveis podem ser consideradas como fundamentos seguros para prover um conhecimento
indubitaacutevel Este eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo podendo ser transmitido por meio da instruccedilatildeo A
ciecircncia visa o conhecimento dos universais Isto permite que haja um convencimento baseado
nestes primeiros princiacutepios Deste modo adquirimos um conhecimento seguro que permite alcanccedilar
a verdade quando se trata de uma realidade constante e perene Por isso a ciecircncia eacute uma espeacutecie de
saber diferente da prudecircncia Acerca do conhecimento cientiacutefico Aristoacuteteles nos diz que
Todos noacutes supomos que aquilo que sabemos natildeo eacute capaz de ser de outra forma[hellip]Por conseguinte o objeto de conhecimento cientiacutefico existe necessariamentedonde se segue que eacute eterno pois todas as coisas que existem por necessidade nosentido absoluto do termo satildeo eternas e as coisas eternas satildeo ingecircnitas eimpereciacuteveis Por outro lado julga-se que toda a ciecircncia pode ser ensinada e seuobjeto aprendido [hellip] Em suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nostorna capazes de demonstrar e possui as outras caracteriacutesticas limitativas queespecificamos nos Analiacuteticos pois eacute quando um homem tem certa espeacutecie deconvicccedilatildeo aleacutem de conhecer os pontos de partida que possui conhecimentocientiacutefico E se estes natildeo lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusatildeo suaciecircncia seraacute puramente acidental Com isto damos por terminada nossa exposiccedilatildeodo conhecimento cientiacutefico175
A virtude da prudecircncia tambeacutem eacute diferente da arte (texnh) Aristoacuteteles argumenta que no
mundo das coisas possiacuteveis de alteraccedilatildeo existe uma diferenccedila entre aquelas fabricadas e as accedilotildees
174 EacuteN VI 1139a 1-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101175 EacuteN VI 1139b 18-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103
59
realizadas A arte eacute a capacidade de produzir um objeto por meio de um raciociacutenio correto176 A
coisa criada passa a existir somente apoacutes a fabricaccedilatildeo humana Esta fabricaccedilatildeo varia conforme o
utensiacutelio a ser produzido uma vez que natildeo eacute algo necessaacuterio nem eacute natural a sua existecircncia pois
pode variar de acordo com as situaccedilotildees A arte como a prudecircncia tambeacutem eacute produzido pelo
intelecto e ambas versam acerca das coisas variaacuteveis A arte e a prudecircncia tratam do contingencial
ou seja do que pode ser ou natildeo ser de uma maneira ou de outra conforme eacute requerido pelas
circunstacircncias Mas as duas formas do intelecto natildeo se confundem porque a razatildeo poieacutetica trata da
produccedilatildeo de utensiacutelios em geral e a razatildeo praacutetica atua sobre as accedilotildees humanas Logo estes dois
tipos de raciociacutenios satildeo distintos entre si porque miram em realidades diacutespares que possuem
caracteriacutesticas proacuteprias
O tipo de razatildeo usada para fabricar (poihsij) natildeo eacute o mesmo quando o objetivo eacute agir
(pra=cij Os dois modos de operaccedilatildeo da racionalidade satildeo baseados em um modo correto de
raciocinar para atingirem suas finalidades Mas o que significa este raciociacutenio verdadeiro no caso do
ato de produzir O proacuteprio Aristoacuteteles responde claramente a esta pergunta
Na classe do variaacutevel incluem-se tanto coisas produzidas como coisas praticadasHaacute uma diferenccedila entre produzir e agir (poihsij kai pra=cij)[hellip] de sorte que acapacidade raciocinada de agir (meta logou e3cij prarktikh) difere dacapacidade raciocinada de produzir (meta logou poihtikh=j) Daiacute tambeacutem o natildeose incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir Oracomo a arquitetura eacute uma arte sendo essencialmente uma capacidade raciocinadade produzir e nem existe arte alguma que natildeo seja uma capacidade desta espeacutecienem capacidade desta espeacutecie que natildeo seja uma arte segue-se que a arte eacute idecircnticaa uma capacidade de produzir que envolve o reto raciociacutenio Toda arte visa agravegeraccedilatildeo e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir algumacoisa que tanto pode ser como natildeo ser e cuja origem estaacute no que produz e natildeo noque eacute produzido Com efeito a arte natildeo se ocupa nem com as coisas que satildeo ou quese gerem por necessidade nem com as que o fazem de acordo com a natureza (poisessas tecircm sua origem e si mesmas) Diferindo pois o produzir e o agir a arte deveser uma questatildeo de produzir e natildeo de agir [hellip] Logo como jaacute dissemos a arte eacuteuma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacutenio e acarecircncia de arte pelo contraacuterio eacute tal disposiccedilatildeo acompanhada de falso raciociacutenioE ambas dizem respeito agraves coisas que podem ser diferentemente177
176 Cf EacuteN VI 1140a 10 Ibidem p 103 177 EacuteN VI 1140a 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 Em relaccedilatildeo agrave frase traduzida porVallandro e Bornheim na citada passagem ldquoDaiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacuteproduzir nem produzir eacute agir (grifo nosso)rdquo Acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 181) seja maisesclarecedora ldquo[hellip] nem eacute um deles uma parte do outro pois fazer natildeo eacute uma forma de criar e nem um criar uma formade fazer (grifo nosso)rdquo Afinal natildeo eacute uma questatildeo de inclusatildeo de um tipo de raciociacutenio no outro mas de uma diferenccedilaclara que existe entre estes dois modos de operaccedilatildeo do intelecto
60
No caso da fabricaccedilatildeo ou produccedilatildeo de um objeto a razatildeo correta significa seguir as ldquoregras
de produccedilatildeo certasrdquo que permitem o artesatildeo produzir qualquer coisa de modo adequado Assim ao
realizar da maneira certa a manufatura do objeto este cumpre com a finalidade para a qual foi
projetado pelo artesatildeo Sem seguir as regras de produccedilatildeo o artesatildeo natildeo consegue fabricar o objeto
para que cumpra com a finalidade escolhida Como exemplo o proacuteprio Aristoacuteteles cita a arte da
arquitetura uma casa projetada por um arquiteto possui uma finalidade proacutepria que somente eacute
atingida se a casa for construiacuteda corretamente Podemos citar outras inuacutemeras artes como ilustraccedilatildeo
desta relaccedilatildeo entre as normas corretas de produccedilatildeo de um objeto para atender uma finalidade A
tiacutetulo de ilustraccedilatildeo basta imaginar um cuteleiro ao criar uma faca ou um curtidor ao preparar o
couro A criaccedilatildeo destes utensiacutelios deve respeitar determinadas regras ndash o modo correto de produzi-
los ndash para que a faca e o couro possam ser existir e serem usados com eficaacutecia cumprindo as
finalidades para as quais foram feitas
No que se refere agrave distinccedilatildeo entra a arte e a prudecircncia o comentador Guy Hamelin descreve
bem as caracteriacutesticas dos dois saberes Embora ambos sejam raciociacutenios praacuteticos a habilidade de
produzir um artefato exige um tipo de raciociacutenio diferente do utilizado para discernir a accedilatildeo a ser
realizada No caso da produccedilatildeo de um objeto o artesatildeo possui escolhas mais restritas Para o
artefato ser produzido de modo correto deve ser feito seguindo prescriccedilotildees precisas de fabricaccedilatildeo
Enquanto no discernimento de uma accedilatildeo a prudecircncia natildeo pode seguir regras estabelecidas Natildeo haacute
um ldquomanualrdquo de como agir em cada situaccedilatildeo A forma correta de agir eacute determinada pela
deliberaccedilatildeo apropriada a cada circunstacircncia Citamos o texto do mencionado exegeta
O Estagirita estima ser necessaacuterio diferenciar a habilidade da prudecircncia ou dodiscernimento por que o raciociacutenio praacutetico usado na habilidade difere em pelomenos dois aspectos importantes do raciociacutenio praacutetico usado na accedilatildeo Primeiro aspossibilidades de escolha resultando da habilidade satildeo muito mais restritas do queas oferecidas pela razatildeo praacutetica ligada agrave accedilatildeo Eacute manifesto que existem maneirasmais limitadas de construir um bom navio por exemplo do que viver bem a suaproacutepria vida e alcanccedilar a felicidade Por conseguinte o indiviacuteduo que age na esferada habilidade (texnh) estaacute mais restrito nas suas escolhas do que a pessoa que estaacutedecidindo a maneira de viver a sua vida A segunda distinccedilatildeo entre a habilidade e aprudecircncia em Aristoacuteteles diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do saber necessaacuteria para agir emcada uma dessas duas esferas Adquirir uma habilidade teacutecnica consisteessencialmente em conhecer como produzir um artefato e esse conhecimentoreduz-se em boa parte a um conjunto de preceitos (paraggeliai) deixados peloshabilidosos aos aprendizes Aristoacuteteles natildeo pode aceitar que seja possiacutevel adquiriruma virtude a partir de regras preestabelecidas pois cada situaccedilatildeo concreta danossa vida implica tantas possibilidades que apenas uma deliberaccedilatildeo adequada agravecircunstacircncia pode nos indicar a accedilatildeo a cumprir178
178 HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista ArchaiBrasiacutelia n 04 jan 2010 p 110-111
61
Em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana esta possui um fim em si proacutepria O ato de agir natildeo transcende a
si mesmo como os objetos criados pelo artesatildeo Como nos afirma o Estagirita ldquoCom efeito ao
passo que o produzir tem uma finalidade diferente de si mesmo isso natildeo acontece com o agir pois
que a boa accedilatildeo eacute o seu proacuteprio fimrdquo179 Diante deste fato referente agrave natureza da accedilatildeo podemos
pensar que o homem tem por ldquotarefardquo impelido pela sua funccedilatildeo proacutepria (ἔργον)180 de aperfeiccediloar a
si mesmo para alcanccedilar a eudaimonia Para isso deve aprimorar sua racionalidade para atingir a
verdade e orientar os seus iacutempetos ndash dominar suas paixotildees educar seus desejos e prazeres ndash por
meio das virtudes morais para aquilo que eacute bom digno e nobre Neste sentido podemos dizer que a
ldquoobra-primardquo a ser realizada atraveacutes das nossas boas accedilotildees somos noacutes mesmos
A criaccedilatildeo (produccedilatildeo fabricaccedilatildeo) de um artefato pertence a um gecircnero diferente da accedilatildeo O
ato de criar possui uma finalidade que transcende o homem que cria O objeto fabricado eacute distinto
do criador Por exemplo a fabricaccedilatildeo de um vaso de argila por um artesatildeo Por outro lado a accedilatildeo eacute
imanente ao proacuteprio homem pois eacute realizada pelo proacuteprio agente Natildeo haacute um objeto produzido que
eacute exterior ao homem O phronimos ao escolher a melhor accedilatildeo a ser realizada natildeo cria um produto
tangiacutevel algo corpoacutereo que possa ser tocado Deste modo ao ser referir agrave accedilatildeo humana esta eacute
compreendida como um ato de agir e natildeo como um ato de criaccedilatildeo O ato de criar eacute referente a quem
produz alguma coisa
Da mesma forma que na Eacutetica a Nicocircmaco a distinccedilatildeo entre o saber teoacuterico e saber praacutetico
tambeacutem eacute assinalada na Metafiacutesica Nela Aristoacuteteles descreve que a busca da verdade eacute a finalidade
principal tanto para a parte cientiacutefica quanto para a calculativa do intelecto Tambeacutem satildeo
delimitados os campos de aplicaccedilatildeo dos respectivos saberes embora a verdade como finalidade do
saber praacutetico eacute expresso de modo mais contundente no tratado sobre a eacutetica Na Metafiacutesica o
Estagirita assevera que o conhecimento cientiacutefico tem o objetivo de conhecer a verdade enquanto o
conhecimento praacutetico visa a accedilatildeo Cita-se a passagem desta obra
E tambeacutem eacute justo chamar a filosofia da ciecircncia da verdade porque o fim da ciecircnciateoreacutetica eacute a verdade enquanto o fim da praacutetica eacute a accedilatildeo (com efeito os que visamagrave accedilatildeo mesmo que observem como estatildeo as coisas natildeo tendem ao conhecimentodo que eacute eterno mas soacute do que eacute relativo a determinada circunstacircncia e numdeterminado momento) Ora natildeo conhecemos a verdade sem conhecer a causa181
Eacute interessante notar que Aristoacuteteles natildeo considera o intelecto apenas algo meramente
instrumental embora em um determinado sentido a racionalidade possa ser compreendida como
179 EacuteN VI 1140b 6-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 180 Conforme visto no capiacutetulo I no item 14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres181 Metafiacutesica 993b 20-23 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 73
62
instrumento para atingir um fim que satildeo as causas imutaacuteveis no caso do saber teoacuterico Na
produccedilatildeo de um objeto haacute a razatildeo poieacutetica E ainda haacute a deliberaccedilatildeo nas situaccedilotildees que dizem
respeito agrave razatildeo praacutetica A racionalidade tambeacutem pode ser entendida como um fim que ultrapassa a
perspectiva de mera instrumentalidade Natildeo eacute somente uma ferramenta para alcanccedilar fins desejados
Uma vez que o homem anseia pela verdade das coisas o desejo de conhecer eacute imanente a noacutes 182
Conhecer as coisas para alcanccedilar a verdade eacute uma funccedilatildeo proacutepria da razatildeo humana Logo a
atividade racional tambeacutem eacute desejada pelo homem pois permite que esta conheccedila a verdade e ao
conhececirc-la possa alcanccedilar a eudaimonia Em outros termos o proacuteprio exerciacutecio da razatildeo nos seus
distintos saberes torna o homem mais pleno e realizado e por isso mais feliz
Em suma o intelecto eacute parte da alma que busca compreender o mundo Para isso possui as
funccedilotildees de escolher ordenar hierarquizar especular O intelecto opera de formas distintas de
acordo como o tipo de finalidade exigida Em outros termos a razatildeo humana utiliza diferentes tipos
de raciociacutenios A sabedoria praacutetica natildeo eacute ciecircncia nem arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque
este se baseia em princiacutepios imutaacuteveis e por isso passiacuteveis de demonstraccedilatildeo Natildeo precisa utilizar
da deliberaccedilatildeo pois esta serve somente no caso de situaccedilotildees que variam e podem gerar diversos
resultados Tambeacutem natildeo eacute arte porque esta natildeo visa a accedilatildeo proacutepria do homem O conhecimento
produtivo cria coisas que possuem uma existecircncia concreta que diferem do artesatildeo que as produz
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos diferentes tipos de saberes (e0pisthmh texnh fronhsij) com suas
respectivas finalidades resta expor de modo mais detalhado a proacutepria prudecircncia Neste sentido
abordaremos esta virtude intelectual no proacuteximo toacutepico
32 O conceito de prudecircncia
A virtude intelectual da prudecircncia tem como papel operar o saber praacutetico em niacutevel de
excelecircncia A prudecircncia eacute a areteacute da razatildeo praacutetica Isso significa que nas diversas circunstacircncias
enfrentadas pelo homem tanto em situaccedilotildees corriqueiras no seu cotidiano quanto naquelas mais
importantes que definem a vida como um todo eacute necessaacuterio decidir entre vaacuterias opccedilotildees que podem
ser tomadas A prudecircncia eacute o conhecimento da boa deliberaccedilatildeo e decisatildeo E decisotildees corretas
facilitam alcanccedilar a eudaimonia Dificilmente um homem pode ser feliz se a maior parte das
decisotildees que tomou foram errocircneas Neste sentido o homem prudente conhece a melhor forma de
tomar uma decisatildeo o que acarreta saber que accedilatildeo realizar perante as situaccedilotildees nas quais estaacute
envolvido
182 Cf Metafiacutesica 980a 22 Op cit p 04 Conforme descrito neste trecho da obra ldquoTodos os homens tendem aosaberrdquo Ibidem p 4
63
A prudecircncia eacute o raciociacutenio correto e verdadeiro que permite o homem deliberar sobre o que
eacute bom e apropriado para si mesmo e para os outros A partir desta percepccedilatildeo esta virtude possui a
funccedilatildeo de escolher a melhor accedilatildeo para atingir o fim escolhido A phronecircsis vislumbra os meios
mais eficazes para que a accedilatildeo seja eficaz O homem prudente eacute efetivo em suas accedilotildees porque decide
de modo correto age da forma certa ao escolher os melhores meios para alcanccedilar os fins e sua accedilatildeo
eacute nobre Portanto o phronimos eacute o homem que delibera com acerto e por isso decide bem agrave luz
das variadas situaccedilotildees Eacute o que nos mostra Aristoacuteteles
Ora julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacuteticao poder deliberar bem (kalw~v bouleusasqai) sobre o que eacute bom eacute conveniente(a)gaqa kai sumfeampronta) para ele natildeo sob um aspecto particular como porexemplo sobre as espeacutecies de coisas que contribuem para a sauacutede e o vigor massobre aquelas que contribuem para a vida boa em geral Bem o mostra o fato deatribuirmos sabedoria praacutetica a um homem sob um aspecto particular quando elecalculou bem com vistas em alguma finalidade boa que natildeo se inclui entre aquelasque satildeo objeto de alguma arte Segue-se daiacute que num sentido geral tambeacutem o homem que eacute capaz de deliberarsobre coisas que natildeo podem ser de outro modo (ou0k e1sti bouleusasqai per tw~~nigrave tw~~ne0c a0nagkhj ontwn) [hellip] Resta pois a alternativa de ser ela uma capacidade(e3cin) verdadeira (a0leqou~~j) e raciocinada de agir (meta logou praktinken) comrespeito agraves coisas que satildeo boas ou maacutes para o homem ( qr p a)gaqa kaiἀν ώpῳ a)gaqa kai ῳkaka0)183
A partir desta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles nota-se que a prudecircncia possui dois aspectos O
primeiro trata da sabedoria praacutetica aplicada agrave vida particular do homem O segundo versa sobre agrave
vida coletiva No acircmbito privado o homem prudente discerne sobre os melhores meios para atingir
os fins particulares que o levam agrave eudaimonia Mas na perspectiva aristoteacutelica o homem natildeo pode
ser feliz sozinho pois sua natureza eacute poliacutetica184 O bem humano tambeacutem eacute a finalidade da poliacutetica185
Uma vez que o homem vive com outros eacute necessaacuterio discernir os caminhos da comunidade para
que esta atinja a felicidade O acircmbito comunitaacuterio diz respeito agrave vida na poacutelis Sem a eudaimonia na
cidade-Estado o homem natildeo poderaacute ser completamente feliz Logo o phronimos ao visar a vida
feliz sabe que esta eacute composta pelo que eacute bom e nobre tanto para ele quanto para os outros que o
cercam Acerca da poacutelis como incentivadora da eudaimonia temos na Eacutetica a Nicocircmaco
183 EacuteN VI 1140a 26 a 1140b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Tambeacutem conferir EacuteN VI1141a 9-12 p 106184 Cf Poliacutetica I 1253a 5 A expressatildeo ldquoanimal poliacuteticordquo (politikon zw~~on) deve ser entendida no sentido denatureza social ou sociaacutevel Eacute natural dos indiviacuteduos serem gregaacuterios 185 Sobre a eudaimonia como finalidade da poacutelis eacute proveitosa a leitura das passagens na Poliacutetica III 1278a 23-301280a 32-40 agrave 1280b 1-10 1283a 15-20 Ademais devemos recordar que a virtude moral da justiccedila somente pode serefetivada na comunidade Esta virtude eacute a ldquojoiardquo que permite a vida feliz na poacutelis
64
Ningueacutem duvidaraacute de que o seu estudo [do sumo bem] pertenccedila agrave arte maisprestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra Ora apoliacutetica (politikh) mostra ser dessa natureza pois eacute ela que determina quaisciecircncias que devem ser estudadas num Estado quais satildeo as que cada cidadatildeo deveaprender e ateacute que ponto e vemos que ateacute as faculdades tidas em maior apreccedilocomo a estrateacutegia a economia e a retoacuterica estatildeo sujeitas a ela Ora como a poliacuteticautiliza as demais ciecircncias e por outro lado legisla sobre o que devemos e o quenatildeo devemos fazer a finalidade dessa ciecircncia deve abranger as das outras de modoque essa finalidade seraacute o bem humano (a0gaqon) Com efeito ainda que tal fimseja o mesmo tanto para o indiviacuteduo como para o Estado (polei) o deste uacuteltimoparece ser algo maior e mais completo quer a atingir quer a preservar Emboravalha bem a pena atingir esse fim para um indiviacuteduo soacute eacute mais belo (kallion) emais divino (qeioteron) alcanccedilaacute-lo para uma naccedilatildeo ou para as cidades-Estado(e1qnei kai polesin) 186
A prudecircncia particular estaacute atrelada agrave prudecircncia coletiva Esta ideia eacute importante porque
recorda que Aristoacuteteles nunca perde de vista que a felicidade do homem estaacute inserida na poacutelis grega
Embora o Estagirita assevere que a genuiacutena felicidade individual esteja na sabedoria
contemplativa187 esta eacute mais facilmente atingida em um ambiente de felicidade comunitaacuteria A
prudecircncia deve ser entendida como sendo uma virtude intelectual que propicia uma correta escolha
que permite tomar boas decisotildees direcionadas para os fins nobres Devemos recordar que o
phronimos eacute um homem que tem a prudecircncia consolidada em seu caraacuteter Deste modo ele possui
uma visatildeo clara sobre o que eacute bom justo e nobre para si e para a comunidade em que vive
Nesta linha de raciociacutenio basta imaginarmos uma cidade bairro ou qualquer outro ambiente
coletivo Se nestes imperam os viacutecios e natildeo as virtudes existiratildeo dificuldades maiores para o
homem ser feliz No caso contraacuterio nos lugares onde as virtudes se sobressaem o homem teraacute sua
busca pela felicidade facilitada E aleacutem disso em uma sociedade virtuosa desde a infacircncia o
homem eacute educado para as virtudes Isto gera um ciclo beneacutefico a cidade auxilia o cidadatildeo a ser
virtuoso e consequentemente a ser feliz e este ajuda a cidade a ser mais virtuosa Enfim eacute a antiga
liccedilatildeo que assim como satildeo os cidadatildeos tal seraacute a cidade
Como exemplo dessa prudecircncia que estabelece uma ligaccedilatildeo entre os fins particulares e os
coletivos Aristoacuteteles cita como modelo de homem prudente o estadista ateniense Peacutericles e outros
como ele188 Este eacute considerado o maior liacuteder ateniense ou pelo menos um dos seus maiores gecircnios
poliacuteticos Sua grandeza proveacutem do fato que ele discernia bem sobre estas duas aplicaccedilotildees da
prudecircncia Julgava com acerto os rumos que Atenas deveria seguir pois visava o que era bom para
os cidadatildeos atenienses O Estagirita tambeacutem coloca como detentores da prudecircncia os bons
186 EacuteN I 1094a 27 a 1094b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10187 EacuteN X 1178b 28-33 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 191188 Cf EacuteN VI 1140b 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104
65
ecocircnomos (oikonomikouj) e os bons estadistas (politikouj) porque visam a felicidade da poacutelis189
Sobre o fim uacuteltimo da cidade grega e sua organizaccedilatildeo mais uma vez podemos observar uma
diferenccedila entre o filoacutesofo de Estagira e Platatildeo O pensamento aristoteacutelico considera que a
eudaimonia coletiva eacute um fim alcanccedilado por meio da forma que a poacutelis se organiza e a filosofia
moral que a direciona O bem da cidade-Estado estaacute no estiacutemulo agrave racionalidade e virtudes morais
dos cidadatildeos Enquanto para o seu antecessor o mundo das Ideias eacute a referecircncia para a cidade-
estado O comentaacuterio de Pierre Aubenque expressa bem este entrelaccedilamento entre o acircmbito
particular e o coletivo e a distinccedilatildeo com o pensamento platocircnico ao dizer que
ldquoOra a vida feliz (que ser trate da cidade ou da casa como indiviacuteduo) eacute atotalidade que transcende os fins particulares O prudente natildeo eacute entatildeo o puroempiacuterico que vive o dia-a-dia sem princiacutepios e sem perspectivas mas eacute o homemde visatildeo de conjunto E permanece a seu modo o herdeiro do sunoptikojplatocircnico embora veja uma totalidade concreta ndash o bem total da comunidade ou doindiviacuteduo - e natildeo essa Totalidade abstrata e segundo Aristoacuteteles irreal que era omundo platocircnico das Ideiasrdquo190
O homem prudente eacute uma espeacutecie de visionaacuterio Natildeo no sentido contemplativo mas como
um homem que vecirc ou mesmo prevecirc a conjuntura presente ou futura e consegue escolher o melhor
caminho a ser tomado Isto tanto na esfera privada quanto na coletiva Ele eacute detentor de um
importante tipo de conhecimento o de perceber as sutilezas do que se passa a sua volta e consigo
mesmo para tomar boas decisotildees que resultam em accedilotildees corretas Enfim accedilotildees que geram
resultados positivos conduzem o homem e o grupo em que vive para mais perto da eudaimonia
Essa percepccedilatildeo de conjuntura que propicia a decisatildeo correta eacute a marca do homem
prudente191 Mas como o phronimos consegue ter esta avaliaccedilatildeo acertada das coisas Isto ocorre
devido ao fato que o prudente conhece os princiacutepios universais (gerais) mas tambeacutem observa as
particularidades de cada situaccedilatildeo192 Ele consegue relacionar de modo efetivo os universais e os
particulares na accedilatildeo pois a accedilatildeo se encontra nos particulares O exemplo que Aristoacuteteles utiliza eacute o
do homem que possui o conhecimento de que carnes leves satildeo de faacutecil digestatildeo Estas auxiliam na
manutenccedilatildeo da sauacutede Mas ter somente esta informaccedilatildeo natildeo lhe auxiliaraacute em nada Pois ao ignorar
quais satildeos os tipos de carnes consideradas leves natildeo poderaacute reestabelecer sua sauacutede A situaccedilatildeo eacute
semelhante para vaacuterios casos Um meacutedico pode saber os princiacutepios da sauacutede em geral mas se nunca
teve experiecircncia das particularidades no atendimento de cada paciente dificilmente poderaacute curaacute-
los Ou capitatildeo de navio que conhece os princiacutepios da navegaccedilatildeo mas nunca navegou natildeo estaraacute
189 Cf EacuteN VI 1140b 10 Idem p 104190 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit 95-96 O sunoptikoacutes platocircnico eacute o homem que possuiuma visatildeo abrangente das circunstacircncias 191 Cf EacuteN VI 1141a 23-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106192 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 96
66
apto para comandar uma embarcaccedilatildeo Em suma o accedilougueiro o enfermeiro e o velho marujo
devido agraves experiecircncias (e0mpeiria) adquiridas muitas vezes atingem melhores resultados que o
homem puramente teoacuterico Nos diz Aristoacuteteles
Tampouco a sabedoria praacutetica se ocupa apenas com universais (kaqolou) Devetambeacutem reconhecer os particulares pois ela eacute praacutetica e a accedilatildeo versa sobre osparticulares Eacute por isso que alguns que natildeo sabem e especialmente os que possuemexperiecircncia satildeo mais praacuteticos do que os outros que sabem porque se um homemsoubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse queespeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutedepoderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinha193
No quesito referente ao conhecimento dos universais e dos particulares eacute importante
delimitar a distinccedilatildeo entre o saber filosoacutefico (sofia)194 e o saber praacutetico (qronesij) Anteriormente
citamos as cinco virtudes intelectuais descritas por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco195
Jaacute descrevemos com mais detalhes o saber cientiacutefico (ἐπιστήμη) e a arte (τέχνη) resta-nos discorrer
sobre o saber filosoacutefico e a razatildeo intuitiva (nou~~j) No decorrer da sua exposiccedilatildeo sobre os tipos de
saberes o noucircs eacute descrito como sendo um tipo de conhecimento que permite a imediata apreensatildeo
dos primeiros princiacutepios196 Natildeo utiliza a demonstraccedilatildeo racional para conhecer como necessitam os
saberes cientiacutefico e filosoacutefico Neste sentido o noucircs natildeo realiza determinadas operaccedilotildees mediatas
do intelecto como a deliberaccedilatildeo ou o caacutelculo E o que satildeo estes princiacutepios captados pelo noucircs Satildeo
os princiacutepios mais universais que natildeo podem mais serem deduzidos de outros princiacutepios Mas
formam a base sobre a qual a ciecircncia pode operar partindo de princiacutepios gerais para os mais
especiacuteficos Eacute o que explica a comentadora Ursula Wolf ldquo[] E visto que nem todos os princiacutepios
podem ser deduzidos de princiacutepios mais gerais e que nem todos os conceitos podem ser definidos
por meio de conceitos mais conhecidos os conceitos mais elevados da ciecircncia jaacute natildeo podem ser
explicitados discursivamente mediante princiacutepios mas apenas apreendidosrdquo197 Logo o nocircus eacute uma
captaccedilatildeo de cunho ldquointuitivordquo dos primeiros princiacutepios utilizados pela ciecircncia demonstrativa198
193 EacuteN VI 1141b 15-20 Ibidem p 106-107194 Tambeacutem chamada de ldquosapiecircnciardquo por alguns autores como REALE (Metafiacutesica Vol II 2005 p 06) eABBAGNANO (Dicionaacuterio de Filosofia 2012 p 1025-1026)195 Conferir o capiacutetulo II no toacutepico 21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais As cinco virtudes intelectuaissatildeo arte (τέχνη) conhecimento cientiacutefico (ἐπιστήμη) sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) razatildeointuitiva (νοῦς)196 EacuteN VI 1141a 16-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Em relaccedilatildeo as possiacuteveis traduccedilotildeesdo termo noucircs remetemos agrave nota de rodapeacute nordm 115197 WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p149 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)198 Cf EacuteN VI 1141a 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105
67
A sabedoria filosoacutefica eacute a perfeita forma de conhecimento Ela eacute a uniatildeo do conhecimento
cientiacutefico e do noucircs A combinaccedilatildeo destes dois tipos de saberes permite que ela contemple e
conheccedila as coisas mais sublimes Aristoacuteteles inicia sua explicaccedilatildeo sobre o saber filosoacutefico a partir
de uma noccedilatildeo mais usual aplicada ao campo das artes Neste caso o saacutebio seria o artista
consagrado como o melhor naquele tipo de arte Como exemplo seriam os mais elevados expoentes
nas artes da cutelaria da pintura da escultura da arquitetura etc Poreacutem o Estagirita vai aleacutem deste
esclarecimento inicial Para ele uma vez que existem pessoas que satildeo saacutebias de um modo geral e
natildeo em alguma arte ou ciecircncia especiacutefica estes satildeo os saacutebios em um sentido filosoacutefico Estes
homens compreendem verdadeiramente estes primeiros princiacutepios e conseguem demonstrar as
conclusotildees que se inferem a partir deles Neste sentido este eacute o perfil do homem que pode ser
chamado de filoacutesofo (filosofoj) ele maneja as teorias ou seja ldquodominardquo o saber teoacuterico
Segundo o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
A sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos(a0kribestatoij) expoentes por exemplo a Fiacutedias como escultor e Policleto comoretratista em pedra e por sabedoria aqui natildeo entendemos outra coisa senatildeo aexcelecircncia na arte (a0reth texnhj) Mas a certas pessoas consideramos saacutebias demodo geral e natildeo em algum campo particular ou sob qualquer outro aspectolimitado [hellip] Eacute pois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas deconhecimento a mais perfeita Donde se segue que o homem saacutebio natildeo apenasconheceraacute o que decorre dos primeiros princiacutepios (a0rxw~~n) senatildeo que tambeacutempossuiraacute a verdade a respeito desses princiacutepios (a0rxaj a0lhqeuein) Logo asabedoria deve ser a razatildeo intuitiva combinada com o conhecimento cientiacutefico(soqia nou=j kai e0pisthmh)ndash uma ciecircncia dos mais elevados objetos que recebeupor assim dizer a perfeiccedilatildeo que lhe eacute proacutepriardquo199
No sentido aqui exposto a teoria (qewria) eacute um saber puro desvinculado da teacutecnica
aplicada agrave produccedilatildeo de uma coisa corpoacuterea Tambeacutem natildeo estaacute ligada aos assuntos referentes agrave accedilatildeo
humana objetivo do saber praacutetico Seu campo de estudo eacute aquilo que eacute inacessiacutevel agrave experiecircncia
sensiacutevel alcanccedilaacutevel apenas pela especulaccedilatildeo Este conhecimento especulativo natildeo eacute subordinado a
nenhum outro200 Antes se constitui como fundamento dos outros tipos de saberes Por ser mais
199 EacuteN VI 1141a 10-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Eacute interessante fazer uma ressalvanas expressotildees ldquoA sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos expoentes []rdquo e ldquoEacutepois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais perfeitardquo No texto da Eacutetica aNicocircmaco satildeo usadas as palavras a0kribestatoij e a0kribestath respectivamente na primeira e segunda fraseEmbora tenham sido traduzidas como ldquoperfeitosrdquo e ldquoperfeiccedilatildeordquo o termo ἀκριβής significa ldquoprecisatildeordquo ldquoacuradordquoldquoexatidatildeordquo ldquorigorosordquo ldquoestritordquo No texto em questatildeo eacute cabiacutevel o uso do termo ldquoperfeiccedilatildeordquo pois este engloba todos osoutros conceitos citados Entretanto acreditamos que a compreensatildeo desta passagem do texto pode ser melhorentendida do seguinte modo ldquoA sabedoria nas artes eacute atribuiacuteda aos seus mais acurados expoentes []rdquo e ldquoEacute poisevidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais exatardquo 200 Cf Metafiacutesica I 981b 26-30 agrave 982a 4 e 15-17 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 6 - 9
68
afastada do mundo empiacuterico (sensiacutevel) acaba por se tornar um saber buscado por si mesmo natildeo
visando outro resultado diferentemente da epiacutesteme da poieacutesis e da praacutexis
Existe uma niacutetida distinccedilatildeo entre a sabedoria filosoacutefica e a sabedoria praacutetica Vimos que o
saber filosoacutefico visa os princiacutepios universais que satildeo imutaacuteveis necessaacuterios e eternos A prudecircncia
versa sobre o mundo contingente que muda a cada momento Por isso esta uacuteltima trata daquilo que
pode ser objeto de deliberaccedilatildeo Eacute importante observar que Aristoacuteteles demarca duas caracteriacutesticas
importantes sobre o ato de deliberar i) somente ocorre com as situaccedilotildees que satildeo mutaacuteveis e ii) a
deliberaccedilatildeo visa as coisas que possuem finalidades especiacuteficas e estas devem ser possiacuteveis de serem
obtidas pelas accedilotildees Logo o homem prudente delibera bem porque defronte das circunstacircncias faz
um caacutelculo para escolher os melhores meios para alcanccedilar o bem para o homem dentro da
conjuntura em que se encontra naquele momento De acordo com o Estagirita
A sabedoria praacutetica (fronhsij) pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas(a0nqpwpina) e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos queessa eacute acima de tudo a obra (e1rgon) do homem dotado de sabedoria praacutetica (fronimou) deliberar bem (bouleusesqai) Mas ningueacutem delibera (bouleueqai) arespeito de coisas invariaacuteveis nem sobre coisas que natildeo tenham uma finalidade(teloj) e essa finalidade um bem que se possa alcanccedilar pela accedilatildeo (praktona0gaqon) De modo que delibera bem (eu1bouloj) no sentido irrestrito da palavraaquele que baseando-se no caacutelculo eacute capaz de visar agrave melhor (a0ristou) para ohomem (a0nqpwpw|) das coisas alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo (praktw~~n)201
Apoacutes a descriccedilatildeo das caracteriacutesticas da sabedoria praacutetica e da filosoacutefica eacute possiacutevel
perguntar qual desses dois saberes eacute mais importante Aristoacuteteles responde que o homem prudente
necessita das duas formas de saber Pois a melhor accedilatildeo a ser realizada eacute o foco da virtude da
prudecircncia Esta conforme visto pressupotildee o conhecimento dos universais e dos particulares de
cada situaccedilatildeo Entretanto nem sempre eacute possiacutevel ter o domiacutenio destes dois saberes Neste caso
aplica-se o conselho aristoteacutelico ldquoOra a sabedoria praacutetica diz respeito agrave accedilatildeo Portanto deveriacuteamos
possuir ambas as espeacutecies de sabedoria ou a segunda [sabedoria praacutetica] de preferecircncia agrave primeira
[sabedoria filosoacutefica] Mas tanto da sabedoria praacutetica como da filosoacutefica deve haver uma espeacutecie
controladorardquo202 Afinal frequentemente o ato de agir perante uma conjuntura eacute feito somente com
a percepccedilatildeo dos fatos particulares e ainda apenas baseada na experiecircncia Muitas vezes estes dois
elementos da accedilatildeo atingem resultados satisfatoacuterios Deste modo tendo em vista agrave accedilatildeo humana a
preferecircncia eacute possuir a sabedoria praacutetica
201 EacuteN VI 1141b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106 Na expressatildeo ldquo[] um bem que sepossa alcanccedilar pela accedilatildeordquo visto que os termos utilizados em grego satildeo prakton a0gaqon acreditamos que a melhorforma de compreender a frase eacute ldquo[hellip] um bem que se possa alcanccedilar pela melhor accedilatildeordquo ou ldquopela correta accedilatildeordquo Istodevido ao fato que a palavra agathon a depender do uso significa ldquomelhorrdquo ldquobomrdquo ldquohonraacutevelrdquo ldquonobrerdquo ldquocorretardquoldquoconvenienterdquo ldquoefetivardquo dentre outros significados 202 EacuteN VI 1141b 22-23 Ibidem p107
69
Eacute importante observar que Aristoacuteteles traccedila uma outra caracteriacutestica da prudecircncia Esta
virtude intelectual deve focar em fins nobres A escolha dos meios natildeo pode ser voltada para
objetivos soacuterdidos O homem prudente eacute antes de tudo uma pessoa que possui um soacutelido caraacuteter
moral baseado nas virtudes morais Conforme visto anteriormente eacute considerado como um
spoudaios203 Seria contraditoacuterio que optasse por buscar fins que natildeo condizem com sua conduta
Ora o phronimos consegue visualizar as diversas nuances das circunstacircncias em que estaacute inserido
sejam individuais ou coletivas Por isso eacute perspicaz (deinothj)204 ou seja consegue encontrar as
melhores soluccedilotildees para os problemas Entretanto existe um outro tipo de pessoa que igualmente
possui perspicaacutecia diante das situaccedilotildees Eacute o homem vigarista (panou=pgoj) Este natildeo pode ser
considerado possuidor da virtude da prudecircncia por ser um homem eivado de viacutecios que busca fins
errocircneos Logo a prudecircncia somente eacute reservada para homens com nobreza de alma Eacute o que
Aristoacuteteles nos assevera
Existe uma faculdade que se chama habilidade (deinothta) e tal eacute a sua naturezaque tem o poder de fazer as coisas que conduzem ao fim proposto e alcanccedilaacute-loOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau ahabilidade seraacute simples astuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos osproacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj) Esta natildeo eacute afaculdade poreacutem natildeo existe sem ela e esse olho da alma natildeo atinge o seu perfeitodesenvolvimento sem o auxiacutelio da virtude como jaacute dissemos e como aliaacutes eacuteevidente E a razatildeo disto eacute que os silogismos em torno do que se deve fazercomeccedilam assim ldquovisto que o fim isto eacute o que eacute melhor eacute de tal naturezardquoAdmitamos no interesse do argumento que ela seja qual for mas soacute o homembom a conhece verdadeiramente porquanto a maldade nos perverte e nos leva aenganar-nos a respeito dos princiacutepios da accedilatildeo Donde estaacute claro que natildeo eacute possiacutevelpossuir sabedoria praacutetica quem natildeo seja bom205
Nota-se que a prudecircncia natildeo consiste somente na habilidade de escolher os meios para
atingir determinados fins Ela tambeacutem inclui este tipo de deliberaccedilatildeo de fins mais concretos Mas
satildeo apenas fins instrumentais que servem para atingir a eudaimonia O ato de deliberar e escolher os
meios devem ser compreendidos dentro de um panorama maior Eacute uma visatildeo geral da proacutepria vida
que acarreta em um ldquobom agirrdquo (eu0pracia) ou boa conduta constante O homem prudente delibera
203 Cf Capiacutetulo 2 item 24 O homem virtuoso204 Tambeacutem pode ser entendida como ldquohabilidaderdquo ldquoengenhosidaderdquo ldquoastuacuteciardquo ldquodestrezardquo Neste ponto eacute importanteressaltar que a moralidade maacute ou boa desta desenvoltura para resolver os problemas eacute definida pelos fins almejados Ohomem prudente a usa para alcanccedilar os fins nobres enquanto o vigarista a usa para fins errocircneos Neste sentido o termoldquoastuacuteciardquo na traduccedilatildeo citada eacute utilizado para descrever esta desenvoltura que tanto homens bons e maus possuem Naexpressatildeo ldquoOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau a habilidade seraacute simplesastuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos os proacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj)Esta natildeo eacute a faculdade poreacutem natildeo existe sem ela[]rdquo acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 197) permiteuma clareza melhor da ideia transmitida por Aristoacuteteles ldquoSe o objetivo for nobre revelar-se-aacute uma faculdade louvaacutevelse for vil revelar-se-aacute mera patifaria razatildeo pela qual nos referimos tanto a homens prudentes quanto a biltres comoengenhosos Ora ainda que essa faculdade natildeo seja idecircntica agrave prudecircncia esta a implicardquo205 EacuteN VI 1144a 25-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p112
70
natildeo somente sobre accedilotildees imediatas mas tambeacutem sobre aquilo que eacute essencial para a vida Em
uacuteltima instacircncia o homem prudente escolhe os meios tendo em vista o Supremo Bem que eacute a
proacutepria felicidade
Para o comentador Martin Rhonreimer uma vez que a verdadeira virtude da prudecircncia eacute a
ldquosabedoria das coisas humanasrdquo ela aponta para aquilo que possui uma relevacircncia para a vida como
um todo Essas ldquocoisas humanasrdquo dizem respeito a um fim geral da vida humana que passa a ser
uma referecircncia para o homem dirigir todas as suas tendecircncias206
Por fim apoacutes as descriccedilotildees feitas podemos sintetizar o conceito de prudecircncia Ela eacute uma
virtude pertencente agrave parte racional da alma que versa sobre a realidade das coisas variaacuteveis Eacute
distinta da ciecircncia e da arte pois especificamente refere-se agrave accedilatildeo humana Eacute a excelecircncia do ato
de deliberar O homem prudente conhece os princiacutepios universais e sobretudo os fatos particulares
de cada circunstacircncia Logo esta virtude permite que o homem escolha corretamente o que eacute bom
para si mesmo e para a comunidade tendo em vista os fins nobres
Dito isso passemos ao proacuteximo toacutepico que trata sobre a relaccedilatildeo entre a prudecircncia a reta
razatildeo e a experiecircncia Seraacute estudada como o homem prudente aprende esta virtude com o passar do
tempo Aleacutem disto examinaremos como a reta razatildeo atua para que o homem prudente possar
realizar uma boa escolha
33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
A prudecircncia eacute a virtude que permite a escolha correta dos meios para atingir determinados
fins Eacute a excelecircncia do ato de decidir Uma vez que natildeo nascemos com esta virtude eacute necessaacuterio
desenvolvecirc-la ao longo da vida Entatildeo como o homem torna-se prudente
A resposta a esta pergunta consiste na aquisiccedilatildeo das virtudes morais da experiecircncia
adquirida com o tempo e o estudo das chamadas virtudes intelectuais menores Visto que as virtudes
morais foram estudadas anteriormente e as virtudes intelectuais menores seraacute objeto de estudo
posterior nos concentraremos na experiecircncia e como ela auxilia na formaccedilatildeo da reta razatildeo
Conforme descrito no item anterior a phronecircsis eacute o conhecimento dos princiacutepios gerais
somada agrave deliberaccedilatildeo dos fatos particulares O homem que natildeo possui o senso das peculiaridades
inerentes a cada situaccedilatildeo natildeo poderaacute ser prudente Caso detenha somente o entendimento dos
primeiros princiacutepios ou como proceder em uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica seraacute um homem versado
no saber teoacuterico Este tipo de conhecimento pode ser aprendido por meio do estudo207 Com a
prudecircncia somente eacute possiacutevel ter este tipo de ensino de modo parcial Uma vez que ela abarca as
206 RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Op cit p 240 207 O melhor exemplo disto satildeo as diversas ciecircncias ensinadas nas instituiccedilotildees de ensino formal universidadesescolas cursos etc
71
particularidades de cada caso esta virtude somente pode ser adquirida com a vivecircncia das mais
variadas situaccedilotildees ao longo da vida A importacircncia do conhecimento dos detalhes eacute asseverada por
Aristoacuteteles ao dizer que os jovens podem ser muitos bons nas ciecircncias mas somente os homens
experientes possuem a virtude da prudecircncia Conforme nos diz o Estagirita
[hellip] embora os moccedilos possam tornar-se geocircmetras (gewmetrikoi) matemaacuteticos(maqhmatikoi) saacutebios em mateacuterias que tais natildeo se acredita que exista um jovemdotado de sabedoria praacutetica (fronimoj) O motivo eacute que essa espeacutecie de sabedoriadiz respeito natildeo soacute aos universais mas tambeacutem aos particulares que se tornamconhecidos pela experiecircncia (e0mpeiriaj) Ora um jovem carece de experiecircnciaque soacute o tempo pode dar (neoj d e1mpeiroj ou0k e1stinrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] Que a sabedoriapraacutetica natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico eacute evidente porque ela seocupa como jaacute se disse com o fato particular imediato visto que a coisa a fazer eacutedesta naturezardquo208
Um exemplo claro da importacircncia da empeiria (e0mpeiria) refere-se agrave poliacutetica A realidade
do comando da poacutelis para direcionaacute-la agrave sua plenitude talvez seja o maior desafio para o homem
prudente Afinal existe uma imensa variedade de circunstacircncias a serem enfrentadas que exigem
decisotildees acertadas para natildeo levarem a cidade-estado agrave derrocada Diante deste contexto natildeo eacute
prudente deixar os rumos da poliacutetica estatal sob o comando de homens inexperientes Por isso
Aristoacuteteles afirma que os negoacutecios puacuteblicos natildeo satildeo para os jovens pois estes ainda natildeo possuem
competecircncia suficiente para este tipo de lideranccedila devido agrave sua falta de conhecimento praacutetico209 Na
visatildeo aristoteacutelica a poliacutetica necessita tanto do saber teoacuterico para determinar os fins quanto do saber
praacutetico para alcanccedilar estes fins atraveacutes das contingecircncias com as quais a poacutelis se defronta
Naturalmente o conhecimento das peculiaridades do mundo poliacutetico natildeo eacute a uacutenica realidade que
serve como ilustraccedilatildeo da importacircncia da empeiria Logo o que se deseja exemplificar eacute que a
funccedilatildeo da empeiria consiste em harmonizar estes dois saberes
Na Metafiacutesica Aristoacuteteles tambeacutem descreve esta relaccedilatildeo entre a experiecircncia e o saber
teoacuterico Seu argumento eacute ilustrado com uma comparaccedilatildeo com as artes A experiecircncia eacute uma etapa
do ato de produzir um objeto qualquer Mas a maestria eacute alcanccedilada somente apoacutes a aprendizagem
do conhecimento da teoria por traacutes da produccedilatildeo Eacute o aprendiz que fabrica algo sem necessariamente
saber a causa da peccedila ser feita daquele jeito O mestre a produz e tambeacutem conhece o porquecirc da
208 EacuteN VI 1142a 12-15 e 22-23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106-107209 Cf EacuteN VI 1095a 3-5 Ibidem p 10
72
peccedila ser feita de uma determinada forma e natildeo de outra para que seja perfeita 210 De acordo como o
Estagirita
A experiecircncia (e0mpeiria) parece um pouco semelhante agrave ciecircncia e a arte Comefeito os homens adquirem ciecircncia (e0pisthmh) e arte (texnh) por meio daexperiecircncia A experiecircncia como diz Polo produz a arte enquanto a inexperiecircncia[falta de experiecircncia] produz o puro acaso [sorte] A arte se produz quando demuitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral (kaqolou genhtai) euacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantes Por exemplo o ato dejulgar que determinado remeacutedio fez bem a Caacutelias que sofria de certa enfermidadee que tambeacutem fez bem a Soacutecrates e a muitos outros indiviacuteduos eacute proacuteprio daexperiecircncia ao contraacuterio o ato de julgar que a todos esses indiviacuteduos reduzidos agraveunidade segundo a espeacutecie que padeciam de certa enfermidade determinadoremeacutedio fez bem (por exemplo aos fleumaacuteticos aos biliosos e aos febris) eacute proacuteprioda arteOra em vista da atividade praacutetica a experiecircncia em nada parece diferir da arteantes os empiacutericos tecircm mas sucesso do que os que possuem a teoria sem praacutetica Ea razatildeo disso eacute a seguinte a experiecircncia eacute conhecimento dos particulares enquantoa arte eacute conhecimento dos universais ora todas as accedilotildees e as produccedilotildees referem-seao particular De fato o meacutedico natildeo cura o homem a natildeo ser acidentalmente mascura Caacutelias ou Soacutecrates ou qualquer outro indiviacuteduo que leva um nome como elesao qual ocorra ser homem Portanto se algueacutem possui a teoria sem experiecircncia econhece o universal mas natildeo conhece o particular que nele estaacute contido muitasvezes erraraacute o tratamento porque o tratamento se dirige justamente ao indiviacuteduoparticularTodavia consideramos que o saber e o entender sejam mais proacuteprios da arte do queda experiecircncia e julgamos os que possuem a arte mais saacutebios do que os que soacutepossuem a experiecircncia na medida em que estamos convencidos de que a sapiecircnciaem cada um dos homens corresponda agrave sua capacidade de conhecer E isso porqueos primeiros conhecem a causa enquanto os outros natildeo a conhecem Os empiacutericosconhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outrosconhecem o porquecirc e a causa211
A prudecircncia eacute o equiliacutebrio entre a razatildeo teoacuterica e a razatildeo praacutetica Este equiliacutebrio somente eacute
ganho por meio da experiecircncia Esta uacuteltima eacute o ponto intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte A
experiecircncia eacute o uacutenico caminho para o aprendizado de como aplicar corretamente os princiacutepios
gerais traccedilados ou apreendidos pelo saber teoacuterico nas situaccedilotildees particulares Ou seja a sabedoria
praacutetica somente pode ser treinada e com isso aprendida no proacuteprio exerciacutecio de decidir qual a
melhor opccedilatildeo sob variadas condiccedilotildees A natureza da prudecircncia natildeo permite que ela seja ensinada
como um conteuacutedo de matemaacutetica A vivecircncia (experiecircncia) das situaccedilotildees eacute que forja o homem para
210 Como exemplo desta relaccedilatildeo entre saber teoacuterico saber praacutetico e experiecircncia pode-se imaginar um engenheiroautomotivo e um teacutecnico em mecacircnica de automoacuteveis O primeiro conhece a ldquociecircnciardquo por traacutes da teacutecnica enquanto osegundo apenas sabe a proacutepria teacutecnica em si Mas caso o engenheiro apenas conheccedila a ldquociecircnciardquo mas natildeo possua aexperiecircncia em consertar automoacuteveis sua accedilatildeo ficaraacute defasada Natildeo atingiraacute nenhum resultado posto que eacute inoacutecua suaaccedilatildeo 211 Metafiacutesica 981a 1-30 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 5
73
que consiga sopesar seus atos e escolhas ao considerar todos os elementos envolvidos no conjunto
das circunstacircncias212 Aliaacutes eacute um fato da vida humana que em geral a ldquoforccedilardquo eacute a caracteriacutestica
marcante nos jovens enquanto a sabedoria praacutetica pertence aos mais velhos Sobre esta
constataccedilatildeo Aristoacuteteles a sintetiza na Poliacutetica ldquo[hellip] A natureza daacute vigor agrave juventude e a prudecircncia
a uma idade mais avanccedilada [hellip]rdquo213 Dessa forma eacute a ldquoexperiecircncia de vidardquo - o confronto com as
situaccedilotildees - que faz o homem adquirir a virtude da prudecircncia Isto porque ele torna-se mais apto a
realizar deduccedilotildees e decidir melhor para chegar a conclusotildees (imperativos) de como agir melhor nas
diversas situaccedilotildees
Pierre Aubenque descreve que a experiecircncia aristoteacutelica eacute intermediaacuteria entre a sensaccedilatildeo e a
ciecircncia Ela jaacute eacute um tipo de conhecimento baseado na observaccedilatildeo dos particulares Ademais existe
uma caracteriacutestica importante na sabedoria praacutetica adquirida pela experiecircncia a de ser singular e
insubstituiacutevel214 Eacute a partir deste olhar atento sobre os detalhes acerca das coisas e pessoas e em
especial o exemplo de homens prudentes eacute que o jovem vai delineando sua vida de forma
prudente
A partir desta anaacutelise sobre a relaccedilatildeo entre saber teoacuterico o saber praacutetico e a experiecircncia eacute
possiacutevel vislumbrar o que eacute a orthos loacutegos (o0rqoj logoj) A reta razatildeo tambeacutem chamada de justa
razatildeo razatildeo correta ou regra correta eacute o paracircmetro correto da accedilatildeo a ser seguida pelo homem em
qualquer situaccedilatildeo para atingir um fim moralmente bom A mediania das virtudes morais eacute
determinada por esta razatildeo Conforme nos mostra Aristoacuteteles quando se trata da accedilatildeo humana o
cerne da razatildeo praacutetica eacute a concordacircncia entre o desejo correto e o raciociacutenio verdadeiro215Isso
significa que a recta ratio a partir da compreensatildeo dos primeiros princiacutepios consegue deduzir de
modo certo e coerente proposiccedilotildees no campo da ciecircncia e da eacutetica Deste modo eacute possiacutevel perceber
a ldquocorreta medida das coisasrdquo discernir corretamente e agir conforme o bom entendimento das
situaccedilotildees
A empeiria eacute essencial para o aprimoramento da reta razatildeo Por isso o desenvolvimento da
prudecircncia necessita de tempo A experiecircncia aperfeiccediloa o aprendizado de decidir e eacute fundamental
para a consolidaccedilatildeo das virtudes morais Conforme vimos o homem prudente reuacutene estas
condiccedilotildees ele deveria ser considerado como o homem dotado de virtudes morais216 Tambeacutem
conhece os princiacutepios universais para serem aplicados em cada caso Com a experiecircncia adquirida
com o tempo ele consegue rapidamente identificar no decorrer das circunstacircncias dois elementos
212 Cf EacuteN VI 1109a 26-29 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37 Estes elementos a serem observadosforam citados por Aristoacuteteles as pessoas envolvidas o momento a medida (quantidadeintensidade) e a maneira certa 213 Poliacutetica VII 1329a 16 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Op Cit p 156214 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 97- 98215 Cf EacuteN VI 1139a 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102216 Cf Capiacutetulo II item 24 O homem virtuoso
74
i) os meios para atingir os resultados (fins) e ii) quais os meios e os fins moralmente corretos Natildeo
pode haver uma dissonacircncia entre atos e fins na conduta Eacute interessante recordar que os fins satildeo
provenientes do desejo Por isso as virtudes morais satildeo necessaacuterias para fomentar os desejos nobres
para que o homem tenha apreccedilo por fins corretos A prudecircncia atuaraacute nos meios certos para alcanccedilar
estes fins Neste sentido o homem prudente por ter as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter
desejaraacute o que eacute bom e por ter a virtude intelectual da prudecircncia desenvolvida saberaacute discernir os
melhores meios para atingir os fins nobres Dessa forma ele estaacute mais apto que os outros para agir
em consonacircncia com a reta razatildeo
Sobre a empeiria o comentaacuterio de Satildeo Tomaacutes de Aquino reafirma a posiccedilatildeo aristoteacutelica que
somente o tempo a experiecircncia e o ensino permitem o florescimento da virtude intelectual da
prudecircncia De acordo com o descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] o Filoacutesofo diz que ldquoa virtude nasce e cresce principalmente pelo ensinamentoeacute por isso que ela requer experiecircncia e tempordquo Ora a prudecircncia eacute uma virtudeintelectual como se explicou anteriormente Logo natildeo somos prudentesnaturalmente mas graccedilas ao ensinamento e agrave experiecircncia Respondo Como estaacute claro pelo que foi dito antes a prudecircncia inclui oconhecimento dos universais e tambeacutem dos singulares que se devem fazer aosquais aplica os princiacutepios universais[ hellip] e como diz o Filoacutesofo ldquoA vidaespeculativa eacute melhor que a humanardquo Mas os princiacutepios universais posterioresseja da razatildeo especulativa seja da razatildeo praacutetica natildeo satildeo naturais Satildeo descobertospela experiecircncia ou pela instruccedilatildeo217
Diante do exposto a pergunta inicial de como um homem se torna prudente eacute respondida A
virtude da prudecircncia eacute adquirida ao longo do tempo por meio da empeiria e do aprendizado de
como aplicar este saber praacutetico no mundo contingente A prudecircncia permite ao homem apreender agrave
justa razatildeo E esta eacute a proacutepria prudecircncia em relaccedilatildeo agrave conduta218As palavras de W D Ross
sintetizam bem o conceito da reta razatildeo ldquoA regra correcta consiste numa regra obtida por uma
anaacutelise deliberativa do homem prudente a qual o informa de que o fim da vida humana seraacute melhor
atingido a partir de certas accedilccedilotildees intermeacutedias entres os extremos A virtude moral consiste na
217 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed SatildeoPaulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 610 Summa Theologiae II-II q 47 a15 ldquo[] quod philosophus dicit in II Ethicquod virtus intellectualis plurimum ex doctrina habet et generationem et augmentum ideo experimento indiget ettempore Sed prudentia est virtus intellectualis ut supra habitum est Ergo prudentia non inest nobis a natura sed exdoctrina et experimento Sed alia principia universalia posteriora sive sint rationis speculativae sive practicae nonhabentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti vel per disciplinam Respondeo dicendum quod sicut ex praemissis patet prudentia includit cognitionem et universalium et singulariumoperabilium ad quae prudens universalia principia applicat Quantum igitur ad universalem cognitionem eadem ratioest de prudentia et de scientia speculativa [] ut enim philosophus dicit in X Ethic vita quae est secundumspeculationem est melior quam quae est secundum hominem Sed alia principia universalia posteriora sive sintrationis speculativae sive practicae non habentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti velper disciplinam[hellip]rdquo 218 Cf EacuteN VI 1144b 25-27 Ibidem p 113
75
obediecircncia a uma tal regrardquo219 Em suma ela eacute a referecircncia raciocinada que indica que algumas
accedilotildees nos conduzem de modo mais acertado agrave eudaimonia enquanto outras natildeo
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia do ato de deliberar e decidir Mas a decisatildeo
eacute composta por elementos que se corretamente observados fazem o homem realizar uma boa
decisatildeo Estes elementos estatildeo relacionados entre si e satildeo o desejo a escolha e a deliberaccedilatildeo No
proacuteximo toacutepico os estudaremos de forma mais detalhada
34 Desejo (o1recij) Deliberaccedilatildeo (bouleusij e Escolha (proairesij)
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a razatildeo praacutetica que direciona a accedilatildeo humana para o bem
Para que este direcionamento seja correto e consiga ser efetivo na conduccedilatildeo da accedilatildeo o homem
prudente deve fazer uma deliberaccedilatildeo (bouleusij) que o permite realizar uma escolha
(proairesij) a fim de que sua accedilatildeo seja adequada agrave situaccedilatildeo Logo o processo decisoacuterio inicia-se
no ato de deliberar depois na escolha e finda com a accedilatildeo propriamente dita220
O que eacute a deliberaccedilatildeo Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles faz uma descriccedilatildeo das
caracteriacutesticas da bouacuteleusis Ao final o conceito torna-se claro A deliberaccedilatildeo somente eacute exercida
naquilo que eacute mutaacutevel Ningueacutem delibera sobre o que eacute necessaacuterio eterno e invariaacutevel As coisas
que possuem estas qualidades natildeo satildeo objeto de deliberaccedilatildeo Visto que natildeo satildeo factiacuteveis de
mudanccedila natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo humana O ato de deliberar somente visa aquilo que eacute
possiacutevel de ser atingido pela accedilatildeo do proacuteprio homem E tudo o que eacute realizado por meio da accedilatildeo
pode ter resultados incertos Afinal lidar com as contingecircncias eacute ldquomanejarrdquo as probabilidades de
erro ou acerto pois as variaacuteveis das situaccedilotildees podem mudar a cada momento Observa-se por
exemplo o campo da poliacutetica da economia da medicina dentre inuacutemeros outros Cada decisatildeo
deve ser tomada a partir das vaacuterias mudanccedilas circunstancias visando atingir o fim determinado
Neste quadro de incerteza parte do resultado por oacutebvio natildeo todo depende da accedilatildeo realizada a
partir da boa ou maacute deliberaccedilatildeo Dessa forma a deliberaccedilatildeo eacute a razatildeo praacutetica que tem de ponderar
perante o incerto com a maacutexima exatidatildeo possiacutevel Conforme nos mostra Aristoacuteteles
219 ROSS W D Aristoacuteteles Op cit p 226220 A bouacuteleusis e proairesis satildeo descritas por Aristoacuteteles tanto no livro III quanto no livro VI da Eacutetica a NicocircmacoNo decorrer da explicaccedilatildeo sobre estas duas fases da decisatildeo citaremos os dois livros Eacute interessante notar que o livroVI muitas vezes resume aspectos sobre a deliberaccedilatildeo e a escolha estudados anteriormente no livro III Este fatoocorre porque ao analisar a prudecircncia no livro VI o Estagirita coloca a deliberaccedilatildeo e a escolha em um patamar deexcelecircncia O homem prudente eacute aquele que delibera bem e escolhe bem
76
Eacute de presumir que devamos chamar objeto de deliberaccedilatildeo natildeo agravequilo que umneacutescio ou um louco deliberaria mas agravequilo sobre o que pode deliberar um homemsensato (nou~~n e1xwn) Ora sobre coisas eternas ningueacutem delibera por exemplosobre o universo material ou sobre a incomensurabilidade da diagonal com o ladodo quadrado [] Deliberamos sobre as coisas que estatildeo ao nosso alcance e podemser realizadas e essas satildeo efetivamente as que restam Porque como causasadmitimos a natureza a necessidade o acaso e tambeacutem a razatildeo e tudo quedepende do homem Ora cada classe de homem delibera sobre as coisas quepodem ser realizadas pelos seus esforccedilos [] as coisas que satildeo realizadas pelosnossos esforccedilos mas nem sempre do mesmo modo essas satildeo objetos dedeliberaccedilatildeo os problemas de tratamento meacutedico e de comeacutercio por exemplo221
O ato de deliberar envolve a observaccedilatildeo de coisas que ocorrem normalmente de uma certa
maneira Estas situaccedilotildees costumeiras favorecem o acerto quando deliberamos e agimos sobre elas
Entretanto natildeo significa que os resultados seratildeo necessariamente os esperados De acordo com
Aristoacuteteles ldquoDelibera-se a respeito de coisas que comumente acontecem de certo modo mas cujo
resultado eacute obscuro e daquelas em que este eacute indeterminado E nas coisas de grande monta
tomamos conselheiros por natildeo termos confianccedila em nossa capacidade de decidirrdquo222 A tiacutetulo de
ilustraccedilatildeo um meacutedico pode atender vaacuterios pacientes com a mesma doenccedila e receitar o remeacutedio
apropriado que comprovadamente curou a muitos Mas nada certifica que o remeacutedio poderaacute curar
sempre todos os pacientes Um raciociacutenio anaacutelogo pode ser aplicado a um time de basquete ou
nataccedilatildeo As accedilotildees satildeo realizadas com base em deliberaccedilotildees derivadas de observaccedilotildees do histoacuterico
do proacuteprio time e dos adversaacuterios As chances podem ser maximizadas para a vitoacuteria ainda assim o
resultado eacute indeterminado Por isso o Estagirita adverte que determinados assuntos devem ser
deliberados em conjunto para que haja uma anaacutelise mais acurada dos fatos
A deliberaccedilatildeo eacute a escolha dos meios para atingir os fins Caso haja vaacuterios meios que levam a
um mesmo resultado seraacute escolhido o meio mais eficaz Isso significa que em cada situaccedilatildeo o
homem prudente delibera sobre quais os melhores meios e como utilizaacute-los da melhor maneira
Cita-se o texto da Eacutetica a Nicocircmaco
Natildeo deliberamos acerca dos fins mas a respeito de meios (proj ta telh) Ummeacutedico por exemplo natildeo delibera (bouleuetai) se haacute de curar ou natildeo nem umorador se haacute de persuadir nem um estadista (politikoj) se haacute de implantar aordem puacuteblica nem qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade Datildeo afinalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcanccedilaacute-la e separece poder ser alcanccedilada por vaacuterios meios procuram o mais faacutecil e o mais eficazse for um soacute examinam como seraacute alcanccedilada por ele e por que outro meioalcanccedilar esse primeiro ateacute chegar ao primeiro princiacutepio que na ordem dedescobrimento eacute o uacuteltimo223
221 EacuteN III 1112a 20-35 e 1112b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45222 EacuteN III 1112b 8-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46223 EacuteN III 1112b 13-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46
77
Na dimensatildeo moral o aprimoramento do homem prudente eacute realizado pela consolidaccedilatildeo das
virtudes morais Na dimensatildeo da racionalidade praacutetica se traduz na sua capacidade de decidir cada
vez melhor ao passar pelas etapas da deliberaccedilatildeo e da escolha Quanto melhor for a deliberaccedilatildeo e a
escolha mais aperfeiccediloada seraacute a virtude da prudecircncia Neste sentido apoacutes a exposiccedilatildeo do ato de
deliberar estudaremos a escolha
Para uma melhor compreensatildeo do ato de escolher eacute preciso descrever brevemente a ideia de
voluntariedade e involuntariedade das accedilotildees humanas De modo geral Aristoacuteteles distingue o ato
voluntaacuterio e o involuntaacuterio O primeiro consiste na accedilatildeo como resultado de uma escolha do homem
Na accedilatildeo voluntaacuteria o homem deve estar consciente das particularidades de cada circunstacircncia224 e
no domiacutenio de suas paixotildees para sua accedilatildeo ser tida como voluntaacuteria225 O segundo ocorre quando o
homem ignora todos ou alguns aspectos das circunstacircncias aleacutem de natildeo possuir o controle de suas
paixotildees A ignoracircncia e falta de autodomiacutenio (a0krasia) o impede de alcanccedilar o fim esperado
Desta forma uma accedilatildeo para ser declarada voluntaacuteria ou involuntaacuteria depende do momento que eacute
realizada226 sob qual circunstacircncia ocorreu o ato o grau de conhecimento das particularidades e se
houve ou natildeo o controle dos paixotildees
Conforme exposto o domiacutenio de si ou a falta dele afeta as deliberaccedilotildees e as escolhas que
um homem pode fazer Por isso o controle dos desejos eacute fundamental para a consecuccedilatildeo de uma
boa escolha Isto porque o desejo faz parte da faculdade sensitiva do homem Eacute um indutor da accedilatildeo
humana que nos impele para a busca de diversos fins e entre eles o fim uacuteltimo a eudaimonia
Cada desejo varia de acordo com o tipo o apetite () eacute atraiacutedo por um determinado objeto e
o impulso ()227 por outro Devido a esta realidade inerente agrave natureza humana Aristoacuteteles
descreve que a accedilatildeo e a verdade satildeo regidas pela sensaccedilatildeo (ai1sqhsij) intelecto (nou~~j)228 e desejo
(o1recij) embora a sensaccedilatildeo natildeo seja o princiacutepio da accedilatildeo por natildeo ser fruto de nenhum tipo de
processo racional Conforme diz Aristoacuteteles
ldquoA virtude de um coisa eacute relativa ao seu funcionamento (e1rgon) apropriado Orana alma existem trecircs coisas que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo(ai1sqhsij) razatildeo (nou~~j) e desejo (o1recij) Destas trecircs a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepiode nenhuma accedilatildeo bem o mostra o fato de os animais inferiores possuiacuteremsensaccedilatildeo mas natildeo participarem da accedilatildeordquo229
224 Cf EacuteN III 1111a 21-25 Ibidem p 43225 Cf EacuteN III 1110a 1-4 Ibidem p 41226 Cf EacuteN III 1110a 15 Ibidem p 41227 O thumos tambeacutem eacute traduzido pelo termos ldquoirardquo ldquofuacuteriardquo ldquocoacutelerardquo De todo modo eacute um intenso descontentamentoprovocado por algo que faz o homem reagir a esse fato desencadeador 228 Acerca da dificuldade de traduccedilatildeo deste termo grego conferir nota de rodapeacute nordm 115229 EacuteN VI 1139a 17-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102
78
O desejo eacute uma atraccedilatildeo que alguma coisa causa em noacutes Podemos ser atraiacutedos por qualquer
coisa o que implica que podemos querer coisas que podem ser boas ou ruins aleacutem de nos
impulsionar a realizarmos accedilotildees moralmente boas ou maacutes para conseguir o objeto desejado Daiacute a
importacircncia das virtudes morais para ordenar os diversos desejos para que sejam orientados para a
retidatildeo moral Desta maneira os retos desejos facilitam que o homem prudente realize escolhas
voltadas para o bem
Esta relaccedilatildeo entre desejo escolha e virtude eacute percebida quando Aristoacuteteles conceitua a
virtude moral como uma disposiccedilatildeo para uma escolha (e3cij proairetikh) de accedilotildees e paixotildees
pautadas pela mediania230 A virtude moral predispotildee de forma beneacutefica o homem agrave fazer boas
escolhas relacionadas agrave vida de forma geral ou seja ao fins mais importantes No sentido aqui
descrito as escolhas bem feitas satildeo o resultado de uma clareza de visatildeo que as virtudes morais
proporcionam ao homem prudente que sabiamente escolhe os melhores meios para atingir os fins
Isto tambeacutem eacute apontado na Eacutetica a Eudemo ao mostrar que a escolha eacute realizada visando o bem
viver A nobreza de conduta eacute o fator orientador de todas as escolhas De acordo com a Eacutetica a
Eudemo
Uma vez definido em relaccedilatildeo a isso que todos os capacitados a viver de acordocom a preacutevia escolha deveriam visar algo a favor de viver bem e nobremente seja ahonra a reputaccedilatildeo a riqueza ou a cultura em funccedilatildeo do que orientariam toda a suaconduta (pois natildeo ter a proacutepria vida organizada em vista de algum fim eacute um clarosinal de grande loucura) conclui-se que eacute maximamente necessaacuterio comeccedilar por sedecidir pessoalmente nisso natildeo agindo nem apressada nem negligentemente emqual das coisas que nos dizem respeito estaacute encerrada a vida boa e quais satildeo ascondiccedilotildees imprescindiacuteveis que possibilitam a noacutes seres humanos entrarmos deposse dessa vida 231
Vimos que o homem deve orientar a sua vida para a eudaimonia sendo esta o fim uacuteltimo
que eacute desejado por todos Para que este desejo de felicidade natildeo permaneccedila no campo da
imaginaccedilatildeo satildeo necessaacuterias fazer escolhas concretas O ato de escolher eacute uma etapa do processo de
decisatildeo realizado por cada homem O homem prudente realiza este ato com maestria pois o ato de
escolher eacute de fundamental importacircncia para a consecuccedilatildeo de uma vida feliz Aquele que escolhe
mal dificilmente seraacute feliz Assim sendo devido a sua importacircncia para a formaccedilatildeo do phronimos
adentraremos na ideia aristoteacutelica de proairesis (proairesij)
230 Cf EacuteN II 1106b 36 Ibidem p 33231 EacuteE I 1214b 7-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 47
79
O que eacute a proiaresis A proiaresis eacute um ato de livre escolha232 Poreacutem nem todos os atos
voluntaacuterios satildeo decorrentes de uma escolha As crianccedilas e os animais satildeo capazes de realizarem atos
voluntaacuterios mas natildeo de realizar escolhas233pois satildeo atos efetivados sem o uso da razatildeo No livro III
da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a proiaacuteresis como uma accedilatildeo voluntaacuteria que envolve o
raciociacutenio e algum processo do intelecto sendo precedida pela deliberaccedilatildeo234 Logo a escolha
pressupotildee o uso da razatildeo que controla o desejo e eacute feita com um processo de raciociacutenio que procura
analisar as melhores opccedilotildees
Por envolver a razatildeo a proairesis difere do apetite () do impulso () da
vontade () e da opiniatildeo (doca) O apetite e o impulso natildeo envolvem nenhum tipo de
processo racional por isso natildeo podem ser considerados como escolhas Aleacutem disto o apetite
envolve o que eacute agradaacutevel (prazeroso) e o desagradaacutevel (doloroso) A proairesis natildeo depende destes
dois fatores Afinal o homem pode escolher tanto um quanto outro destes aspectos conforme o
resultado a ser obtido Em relaccedilatildeo agrave vontade por ser uma espeacutecie de desejo mais aproximada da
racionalidade nos fazendo tender para o bem auxilia nas aspiraccedilotildees humanas mais elevadas
Entretanto muitas vezes a vontade quer agravequilo que eacute maior que a capacidade do homem de
alcanccedilaacute-la Satildeo aspiraccedilotildees irrealistas O exemplo utilizado por Aristoacuteteles eacute a imortalidade Pode-se
desejar ser imortal mas isto eacute inantingiacutevel pela accedilatildeo humana A vontade tambeacutem pode nos levar a
desejar algo fora do nosso poder decisoacuterio Como desejar que o time desportivo que torcemos ganhe
o campeonato Assim os desejos provenientes da vontade podem aspirar a qualquer coisa poreacutem
para serem atingiacuteveis devem ser realistas As escolhas para serem plausiacuteveis devem estar estar no
acircmbito do que a accedilatildeo humana pode realizar Outras aspiraccedilotildees mais tangiacuteveis como ter sauacutede ter
paz ser feliz etc satildeo o fins (objetivos) gerais que podem ser plenamente alcanccedilados Mas para
atingiacute-los eacute necessaacuterio escolher os meios Essa eacute a funccedilatildeo do ato de escolher propriamente dito
Logo a proairesis visa os meios a serem utilizados e natildeo os fins
A proairesis natildeo eacute opiniatildeo Primeiro eacute possiacutevel opinar acerca de quaisquer coisas que
estejam em nosso poder alcanccedilaacute-las e tambeacutem sobre o que estaacute longe disto Segundo a opiniatildeo eacute
uma etapa inicial do processo de conhecimento sendo classificada como verdadeira ou falsa em
suas assertivas Por seu lado a proairesis refere-se agrave accedilatildeo humana podendo ser adjetivada como
boa ou maacute Esta diferenccedila pode ser notada quando observamos homens que opinam corretamente
acerca de vaacuterios assuntos poreacutem fazem peacutessimas escolhas ao agirem ou homens que escolhem
bem mas erram em suas opiniotildees Normalmente as escolhas ruins satildeo feitas devido aos viacutecios
232 Cf EacuteN III 1111b 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 44 Conferir tambeacutem EacuteE II 1225b 1-18Eacutetica a Eudemo Op cit p 95233 A praacutexis humana eacute caracterizada pela accedilatildeo composta por um princiacutepio racional O raciociacutenio deve estar semprepresente Por isso animais natildeo ldquoagemrdquo no sentido aqui descrito 234 Cf EacuteN III 1111b 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45
80
Uma conduta viciosa influencia negativamente o raciociacutenio necessaacuterio para realizar uma boa
escolha Afinal os viacutecios satildeo desejados pelos homens incontinentes e pelos maldosos Observa-se
que a proairesis estaacute no campo da sabedoria praacutetica Em suma a opiniatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo pouco
cuidadosa dos fatos enquanto a proairesis eacute um ato que compotildee a accedilatildeo De acordo com
Aristoacuteteles
Ora com a opiniatildeo em geral natildeo haacute ningueacutem que a identifique [] Com efeito porescolher o que eacute bom ou mau somos homens de um determinado caraacuteter mas natildeo osomos por sustentar esta ou aquela opiniatildeo [] E tambeacutem escolhemos o quesabemos ser melhor (proairoumeqa men a4 malista i1smen a0gaqa o1nta) tantoquanto nos eacute dado sabecirc-lo mas opinamos sobre o que natildeo sabemos exatamente(docazomen de a4 ou0 panu i1smen) e natildeo satildeo as mesmas pessoas que passam porfazer as melhores escolhas e sustentar as melhores opiniotildees mas de algumas se dizque tecircm excelentes opiniotildees e no entanto padecem de um viacutecio (kakian) qualquerque as impede de escolher bem (kakian d airei=sqai ou0x a4 deirsquo e1mpeiroj ou0k e1stin =) 235
O Estagirita na sua obra Eacutetica a Eudemo assevera que a opiniatildeo e a vontade dizem respeito
aos fins enquanto a escolha refere-se aos meios236 A escolha eacute uma opccedilatildeo preferencial de uma
coisa e natildeo de outra Esta opccedilatildeo somente pode ser feita a partir da anaacutelise e deliberaccedilatildeo Por isso o
ato de escolher comeccedila na opiniatildeo deliberada (d chj bouleutikh=joacutej )237 Neste caso a opiniatildeo
significa o iniacutecio do exame das circunstacircncias sendo uma fase da deliberaccedilatildeo Contudo a escolha
natildeo eacute somente a opiniatildeo deliberada mas tambeacutem eacute composto pela vontade238 Por isso o filoacutesofo de
Estagira assevera que a escolha tambeacutem eacute um desejo deliberativo Esta uacuteltima noccedilatildeo de desejo e
deliberaccedilatildeo eacute destacada na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] a escolha ou eacute raciociacutenio desiderativo ou desejo
raciocinativo e a origem de uma accedilatildeo dessa espeacutecie eacute um homemrdquo239 Deste modo a escolha eacute
resultado do desejo deliberado ou envolve algum procedimento intelectual240
Descritas as caracteriacutesticas de cada uma entatildeo qual a diferenccedila entre proiaresis (escolha) e a
bouacuteleusis (deliberaccedilatildeo) Ambas se referem aos meios mas natildeo aos fins A distinccedilatildeo estaacute na
amplitude de visatildeo sobre o que deve ser feito A escolha diz respeito agravequilo que eacute mais imediato e
ldquoconcretordquo ou seja o plenamente operacionalizaacutevel em um dado instante Eacute a finalizaccedilatildeo da
deliberaccedilatildeo Pierre Aubenque define bem este caraacuteter da escolha eacute o momento da decisatildeo do voto
ela torna funcional a deliberaccedilatildeo e por isso pode pocircr-lhe um fim241 A deliberaccedilatildeo eacute o ato anterior agrave
escolha eacute a inteligecircncia ponderando e definindo qual o rumo a ser seguido A escolha eacute o desejo
235 EacuteN III 1112a 1-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45 236 Cf EacuteE II 1226a 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 97237 Cf EacuteE II 1226b 1-10 Idem p 98238 Cf EacuteE II 1226b 20-25 Ibidem p 99239 EacuteN VI 1139b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102 240 Cf nota de rodapeacute nordm 232241 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 196
81
deliberado das coisas Ou seja eacute o desejo ldquofiltradordquo pela razatildeo adquirindo a medida correta para
que possa ser alcanccedilado pela nossa proacutepria accedilatildeo No processo decisoacuterio a sequecircncia seguida eacute que
primeiro deliberamos depois escolhemos os meios de acordo com o que foi deliberado Neste ato
de escolher o desejo passa a estar em consonacircncia com a deliberaccedilatildeo De acordo com Aristoacuteteles
Eacute a mesma coisa aquela sobre que deliberamos e a que escolhemos (bouleuton dekai poraireton to au0to) salvo estar o objeto de escolha jaacute determinado jaacute queaquilo por que nos decidimos em resultado da deliberaccedilatildeo eacute o objeto da escolha (togar e0k th=j boulh=j kriqen proaireton e0stin) Efetivamente todos cessam deindagar como devem agir depois que fizeram voltar o princiacutepio motor a si mesmose agrave parte dirigente de si mesmos pois eacute essa que escolhe[]Sendo pois o objetoda escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes adeliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcanceporque apoacutes decidir em resultado de uma deliberaccedilatildeo desejamos de acordo com oque deliberamos (bouleutikh o1recij tw~~n e0f0 h9mi~~n) Consideremos pois comodescrita em linhas gerais a escolha estabelecida a natureza dos seus objetos e ofato de que ela diz respeito aos meios (poi=a e0sti kai o3ti tw~~n ta telh) 242
Como exemplo simples imaginemos esta cena eu tenho o desejo de cursar um mestrado
strictu sensu em outro paiacutes Este curso estaacute condizente com a felicidade (fim uacuteltimo) que almejo
Apoacutes uma deliberaccedilatildeo iacutentima e consultiva com outras pessoas procuro analisar os melhores meios
para me deslocar para outro paiacutes e me matricular no curso almejado Quais meios para chegar em
outro paiacutes O aviatildeo o trem o automoacutevel a peacute Qual o meio para me matricular e manter a estadia
A bolsa de estudos economias bancaacuterias etc E assim por diante a boa escolha indicaraacute os
melhores meios Portanto nota-se que a escolha deriva de um objetivo determinado pelo desejo em
seguida haacute a deliberaccedilatildeo para analisar os meios (natildeo eacute possiacutevel deliberar sem termos um propoacutesito
uma meta)243 e finalmente eacute realizada a escolha de qual eacute o melhor meio para operacionalizar a
consecuccedilatildeo do mestrado
Eacute possiacutevel haver erro na deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles responde afirmativamente que eacute possiacutevel o
homem incorrer em equiacutevocos no ato de deliberar A deliberaccedilatildeo envolve o conhecimento dos
universais e dos fatos particulares que satildeo adquiridos respectivamente por meio do ensino e da
experiecircncia244 O erro deliberativo ocorre quando haacute ignoracircncia dos dois aspectos ou de apenas um
deles Utilizamos o proacuteprio exemplo citado na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] o erro na deliberaccedilatildeo pode
versar tanto sobre o universal como sobre o particular isto eacute tanto eacute possiacutevel ignorar que toda a
aacutegua pesada eacute maacute como esta aacutegua aqui presente eacute pesadardquo245
242 EacuteN III 1113a 1-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46 Conferir tambeacutem EacuteE I 1226b 20-25ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99243 Cf EacuteE I 1226b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99244 Cf EacuteN VI 1141b 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106245 EacuteN VI 1142a 20-22 Idem p 108
82
A escolha e a deliberaccedilatildeo satildeo dois procedimentos fundamentais para que haja uma accedilatildeo
correta O homem prudente deve sempre atentar para fazer do melhor modo possiacutevel as
mencionadas operaccedilotildees do intelecto O bom exerciacutecio destes dois estaacutegios proporcionam uma
capacidade superior de decidir Por conseguinte as boas decisotildees contribuem para uma vida feliz
Dito isto passamos a analisar no proacuteximo toacutepico as chamadas trecircs virtudes intelectuais
menores Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia Portanto conveacutem a anaacutelise para
entendermos como se forma a excelecircncia do ato de decidir ou seja a proacutepria virtude da prudecircncia
35 As trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia (sunesij)
ponderaccedilatildeo (gnwmn)
As trecircs virtudes intelectuais menores satildeo a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia
(sunesij)246e ponderaccedilatildeo (gnwmn)247 Para se tornar prudente o homem precisa adquirir o domiacutenio
destas capacidades intelectuais Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia que possuem
trecircs funccedilotildees distintas A distinccedilatildeo ocorre conforme o segmento de realidade de prudecircncia a ser
examinado e discernido Deste modo estas virtudes satildeo tipos de operaccedilotildees intelectuais (raciociacutenios)
que consistem em estaacutegios do processo de anaacutelise das circunstacircncias
A primeira virtude intelectual eacute a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) Esta eacute o aperfeiccediloamento da
deliberaccedilatildeo No livro VI Aristoacuteteles nos mostra que a boa deliberaccedilatildeo consiste em uma
investigaccedilatildeo sobre um assunto em particular Ela envolve uma espeacutecie de caacutelculo consciente que
objetiva atingir o melhor resultado possiacutevel Deste modo a boa deliberaccedilatildeo eacute uma ponderaccedilatildeo que
atinge um alto grau de exatidatildeo porque analisa todas as variaacuteveis envolvidas em uma determinada
situaccedilatildeo tendo em vista uma finalidade boa
Ressalta-se que a boa deliberaccedilatildeo envolve uma ponderaccedilatildeo correta somada a um fim bom
Pois um homem pode acertar sua anaacutelise dos fatos e escolher corretamente os meios para atingir
um fim proveniente de um desejo que natildeo eacute bom Eacute o que ocorre com os homens incontinentes ou
maldosos Outro caso eacute o de desejar um fim bom mas natildeo alcanccedilaacute-lo por causa de um raciociacutenio
246 As traduccedilotildees do termo grego synesis satildeo variadas Alguns tradutores utilizam as palavras ldquodiscernimentordquo (E Bini2013 p 192) ldquoentendimientordquo (J Marias 1959 p 97) ldquointeligecircnciardquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p 109)ldquounderstandingrdquo (H Rackham 1996 p 155) Preferimos o termo ldquointeligecircnciardquo porque nos parece expressar melhor oconceito de synesis que significa a capacidade de aprender bem e por isso julgar bem as particularidades das diversassituaccedilotildees 247 As traduccedilotildees do termo grego gnome tambeacutem divergem entre si Alguns tradutores usam as palavras ldquoponderaccedilatildeordquo(E Bini 2013 p 192) ldquocomprensioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) ldquodiscernimentordquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p110) ldquoconsiderationrdquo (H Rackham 1996 p 156) Acreditamos que o termo ldquoponderaccedilatildeordquo traduz melhor o conceito degnome por este ser um ato de sopesar a situaccedilatildeo com o fim de atingir a equidade
83
errado Ambos os tipos natildeo satildeo consideradas como boas deliberaccedilotildees Desta forma a deliberaccedilatildeo
ideal eacute feita de uma anaacutelise correta visando fins corretos De acordo com Aristoacuteteles
Mas por outro lado a excelecircncia da deliberaccedilatildeo (eu0boulia boulh=j) envolveraciociacutenio [hellip] Mas a excelecircncia da deliberaccedilatildeo eacute certamente a deliberaccedilatildeocorreta [hellip] o homem incontinente (a0krathj) e o homem mau (fau=loj) seforem haacutebeis alcanccedilaratildeo como resultado do seu caacutelculo (logismou=) o quepropuseram a si mesmos de forma que teratildeo deliberado corretamente mas o queteratildeo alcanccedilado eacute um grande mal para eles (o0rqw~~j e1stai bebouleumenoj kakonde mega ei0lhfwj) Ora ter deliberado bem eacute considerado uma boa coisa pois eacuteessa espeacutecie de deliberaccedilatildeo correta que constitui a excelecircncia da deliberaccedilatildeo ndash istoeacute aquela que tende a alcanccedilar um bem (o0rqothj boulh=j eu0bouliampampa h9 a0gaqou=teuktikh)248
A boa deliberaccedilatildeo pode ser feita de forma mais lenta ou mais raacutepida Alguns assuntos
levaratildeo mais tempo de deliberaccedilatildeo outros necessitam de menos duraccedilatildeo Com a experiecircncia de
vida a deliberaccedilatildeo em muitos casos torna-se mais veloz Mas essencialmente a boa deliberaccedilatildeo
feita em um periacuteodo razoaacutevel para obter a melhor decisatildeo Devemos recordar que o homem
prudente percebe e aproveita o momento oportuno (kairoj) para agir Por isso uma deliberaccedilatildeo
muito lenta eacute um indicativo que ainda natildeo se atingiu a excelecircncia para atingir o bem Eacute o que o
Estagirita nos mostra ldquo[hellip] eacute possiacutevel alcanccedilaacute-lo [o bem] por uma longa deliberaccedilatildeo enquanto um
outro homem chega a ele rapidamente Por conseguinte no primeiro caso natildeo possuiacutemos ainda a
excelecircncia no deliberar que eacute a correccedilatildeo tanto no que toca ao fim como ao meio e ao tempordquo249
Logo a boa deliberaccedilatildeo requer o tempo correto para ser feita de forma cuidadosa para a escolha do
meio correto mas sem procrastinaccedilatildeo
Observa-se que a deliberaccedilatildeo natildeo eacute conhecimento cientiacutefico (e0pisthmh) E tambeacutem natildeo eacute
mera opiniatildeo (doca)250 A epiacutesteme versa sobre o necessaacuterio e o inalteraacutevel A doacutexa eacute uma
afirmaccedilatildeo referente aos fatos enquanto a deliberaccedilatildeo ainda eacute uma anaacutelise Agraves vezes a opiniatildeo eacute
correta na interpretaccedilatildeo de um fato De qualquer modo ao falarmos que a deliberaccedilatildeo pressupotildee
uma anaacutelise dos fatos estaacute impliacutecito um raciociacutenio analiacutetico sobre uma fato particular
Eacute interessante observar que a bouleacute (boulh) na histoacuteria da Greacutecia Antiga significa o
ldquoconselhordquo reunido Era uma reuniatildeo de cidadatildeos em cada cidade-estado grega para deliberar
sobre assuntos puacuteblicos relativos agrave poacutelis Na eacutepoca homeacuterica era a reuniatildeo de um rei com seus
248 EacuteN VI 1142b 16-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109 Conferir tambeacutem EacuteE II 1226b 10-12 Eacutetica a Eudemo Op cit p 98 (E Bini 2015) ldquoNingueacutem delibera quanto ao fim o qual estaacute fixado para todosDelibera-se contudo sobre o que conduz a ele se isto ou aquilo conduz a ele e supondo estar decidido se isto ouaquilo como seraacute produzidordquo Cf Magna Moralia 1199a 5-9 The Works of Aristotle Magna Moralia EthicaEudemia De Virtutibus et Vitiis Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford ClarendonPress 1915 (sem paacutegina)249 EacuteN VI 1142b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109250 EacuteN VI 1142b 8-10 Ibidem p 109
84
conselheiros Eacute desta noccedilatildeo de ldquoconselhordquo que Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar Aristoacuteteles
utiliza o vocaacutebulo eubulia251 e a considera uma virtude intriacutenseca agrave prudecircncia como o Estagirita
Conforme exposto na Suma Teoloacutegica
Em sentido contraacuterio a eubulia como diz o Filoacutesofo lsquoeacute a retidatildeo na deliberaccedilatildeorsquoMas a reta razatildeo aperfeiccediloa a virtude Logo a eubulia eacute virtude Como jaacute foi dito eacuteda razatildeo da virtude humana tornar bom o ato humano Entre os demais atos eacuteproacuteprio do homem deliberar porque implica uma busca conduzida pela razatildeorelativamente agrave accedilatildeo no que consiste a vida humana pois a via especulativa estaacuteacima do homem segundo o Filoacutesofo Ora a eubulia requer a bondade dadeliberaccedilatildeo De fato esta palavra eacute formada de eu que significa bem e de bouleacuteque significa conselho ou deliberaccedilatildeo como se dissesse o ato de bem deliberar ouantes o que aconselha bem Eacute pois evidente que a eubulia eacute uma virtudehumana252
Face ao exposto a boa deliberaccedilatildeo consiste em buscar compreender a realidade com todas
as suas variaacuteveis Esta compreensatildeo tem como objetivo alcanccedilar o maior grau de exatidatildeo possiacutevel
para aumentar a probabilidade de realizar uma escolha correta dos meios para atingir o fim
determinado O homem prudente ao realizar uma boa deliberaccedilatildeo analisa o conjunto das
circunstacircncias sempre com vistas a um fim nobre A boa deliberaccedilatildeo seleciona os meios que podem
ser alcanccedilados pela accedilatildeo Portanto a euboulia eacute o primeiro passo racional para obter a virtude da
prudecircncia
A inteligecircncia (sunesij) eacute a segunda virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles Eacute definida
como uma capacidade de aprender algo rapidamente O homem detentor desta virtude eacute algueacutem que
consegue assimilar e entender de modo ceacutelere o que satildeo as coisas e as relaccedilotildees entre estas Por
isso o homem inteligente possui uma maior propensatildeo a julgar corretamente qualquer conjuntura
No contexto do saber praacutetico a inteligecircncia assemelha-se agrave perspicaacutecia porque versa sobre a
habilidade de compreender com presteza o mundo que nos cerca Logo um homem perspicaz eacute um
homem inteligente
No acircmbito da accedilatildeo esta capacidade de aprender eacute referente aos assuntos possiacuteveis de
deliberaccedilatildeo e por isso pode gerar diversas visotildees diferentes Natildeo se trata de um aprendizado que se
refere agraves ciecircncias ou agravequilo que eacute necessaacuterio e eterno Natildeo se refere ao saber teoacuterico Tambeacutem eacute
251 A boa deliberaccedilatildeo tambeacutem eacute chamada de ldquobom conselhordquo na tradiccedilatildeo cristatilde252 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 637Summa Theologiae II-II q 51 a1 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoSed contra est quod eubulia estrectitudo consilii ut philosophus dicit in VI Ethic Sed recta ratio perficit rationem virtutis Ergo eubulia est virtusRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est de ratione virtutis humanae est quod faciat actum hominis bonumInter ceteros autem actus hominis proprium est ei consiliari quia hoc importat quandam rationis inquisitionem circaagenda in quibus consistit vita humana nam vita speculativa est supra hominem ut dicitur in X Ethic Eubulia autemimportat bonitatem consilii dicitur enim ab eu quod est bonum et boule quod est consilium quasi bona consiliatiovel potius bene consiliativa Unde manifestum est quod eubulia est virtus humanardquo
85
distinta de uma mera opiniatildeo dado que a synesis eacute uma inteligecircncia voltada para os aspectos
praacuteticos Ou seja ela diz respeito ao ldquoterritoacuteriordquo da accedilatildeo Esta virtude eacute a inteligecircncia em um grau
elevado que permite um aprendizado dos elementos envolvidos nas circunstacircncias Este fato auxilia
um julgamento correto de cada situaccedilatildeo
A synesis possui uma uacutenica funccedilatildeo que eacute o ato de julgar Poreacutem natildeo pode ser confundida
com a virtude da prudecircncia Na visatildeo aristoteacutelica a virtude da prudecircncia possui a funccedilatildeo de
comandar a maneira como o homem agiraacute visto que discerne o certo e o errado em relaccedilatildeo aos
meios A inteligecircncia restringe-se apenas a julgar do melhor modo possiacutevel os elementos
relacionados a cada situaccedilatildeo Com a compreensatildeo destes elementos a prudecircncia determinaraacute qual a
accedilatildeo a ser realizada Eacute o que nos diz Aristoacuteteles
Com efeito a inteligecircncia (sunesij) nem versa sobre as coisas eternas e imutaacuteveisnem sobre toda e qualquer coisa que vem a ser mas apenas sobre aquelas quepodem tornar-se assunto de duacutevidas e deliberaccedilatildeo (bouleusaito) Portanto osseus objetos satildeo os mesmos que os da sabedoria praacutetica (fronhsij) masinteligecircncia e sabedoria praacutetica natildeo satildeo a mesma coisa Esta uacuteltima emite ordensvisto que o seu fim eacute o que se deve ou natildeo se deve fazer (ti gar dei= prattein h9mh to teloj au0th=j e0stin) a inteligecircncia pelo contraacuterio limita-se a julgar(kritikh) Inteligecircncia eacute o mesmo que perspicaacutecia (eu0sunesia) e os homensinteligentes (sunetoi) o mesmo que homens perspicazes (eu0sunetoi)253
Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a virtude da synesis diz que ela eacute um juiacutezo reto
das accedilotildees particulares algo que tambeacutem faz a prudecircncia Mas esta uacuteltima comanda as accedilotildees para
que sejam feitas de modo ordenado para o bem254 A inteligecircncia por ser apenas uma correto juiacutezo
dos elementos particulares pode ser usada para fins ruins (maus) A inteligecircncia diferencia-se da
boa deliberaccedilatildeo e do saber teoacuterico Um homem pode deliberar bem ou dominar uma determinada
ciecircncia especulativa poreacutem isso natildeo significa ser um homem inteligente Deste modo o Aquinate
considera que o homem inteligente possui um bom senso das situaccedilotildees porque apreende as coisas
como satildeo em si mesmas Vejamos na Suma Teoloacutegica
Respondo A synesis implica um juiacutezo reto natildeo nas coisas de ordem especulativamas nas accedilotildees particulares que satildeo tambeacutem objeto da prudecircncia Tambeacutem comrelaccedilatildeo a esta palavra se diz em grego que alguns satildeo syneti isto eacute sensatos oueusyneti quer dizer homens de bom senso Ao contraacuterio satildeo chamados asynetiinsensatos aos que satildeo privados desta virtude Ora a diversidade de virtudes devecorresponder agrave diferenccedila de atos que natildeo se reduzem agrave mesma causa Com efeito eacuteevidente que a bondade da deliberaccedilatildeo e a bondade de juiacutezo natildeo se reduzem agrave
253 EacuteN VI 1143a 5-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109254 Cf TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642Summa Theologiae II-II q 51 a 3
86
mesma causa porque muitos satildeo de boa deliberaccedilatildeo mas natildeo satildeo de bom sensoisto eacute dotados de um julgamento reto Na ordem especulativa alguns investigambem pelo fato de terem uma razatildeo capaz de discorrer sobre coisas diversas o queparece proceder das disposiccedilotildees da imaginaccedilatildeo que pode formar facilmentediversas representaccedilotildees imaginaacuterias e no entanto agraves vezes natildeo sabem julgar bempor deficiecircncia do intelecto o que procede sobretudo da maacute disposiccedilatildeo do sensocomum que natildeo julga bem Por tudo isso se necessita aleacutem da eubulia de outravirtude que julgue bem a qual se chama synesis255
Essa apreensatildeo eacute melhor feita por um homem de virtudes morais Os viacutecios dificultam e agraves
vezes impedem compreender as coisas particulares da maneira correta Tomaacutes de Aquino compara
este homem virtuoso e inteligente a um espelho que reflete perfeitamente as coisas como satildeo O
intelecto natildeo sofre distorccedilatildeo no momento de apreender o que satildeo as coisas em si Isso ocorre
porque as virtudes morais favorecem um juiacutezo correto sobre o que eacute o melhor a ser desejado pelo
homem Logo providenciam que o intelecto acerte no julgamento das coisas pois um homem
viciado deseja aquilo que eacute errado o que o faz interpretar as coisas conforme seus viacutecios Nos diz
Satildeo Tomaacutes na Suma Teoloacutegica
Quanto ao 1ordm portanto deve-se dizer que o juiacutezo reto consiste em que a potecircnciacognoscitiva apreenda as coisas tais como satildeo em si mesmas Isto se daacute quandoestaacute bem disposta como um espelho em boas condiccedilotildees reproduz as imagens doscorpos como satildeo em si mesmos Mas se for um espelho mal disposto as imagensaparecem distorcidas e disformes A boa disposiccedilatildeo da potecircncia cognoscitiva parareceber as coisas como satildeo em si mesmas proveacutem radicalmente da natureza equanto agrave sua perfeiccedilatildeo depende do exerciacutecio do dom ou da graccedila E isso pode sedar de dois modos diretamente por parte da proacutepria potecircncia cognoscitiva que natildeoestaacute imbuiacuteda de concepccedilotildees depravadas mas verdadeiras e retas tal eacute a funccedilatildeoproacutepria da synesis como virtude especial E indiretamente pela boa disposiccedilatildeo dapotecircncia apetitiva em virtude da qual o homem emite um juiacutezo reto sobre o que eacutedesejaacutevel E assim os haacutebitos das virtudes morais influem sobre um bomjulgamento virtuoso a respeito dos fins enquanto que a synesis se ocupa mais dosmeios Quanto ao 2ordm deve-se dizer que nos maus pode se encontrar um juiacutezo reto somenteno plano universal poreacutem com respeito agrave accedilatildeo singular seu juiacutezo eacute sempredefeituoso como acima foi dito256
255 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 640-641Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodsynesis importat iudicium rectum non quIbidem circa speculabilia sed circa particularia operabilia circa quae etiamest prudentia Unde secundum synesim dicuntur in Graeco aliqui syneti idest sensati vel eusyneti idest homines bonisensus sicut e contrario qui carent hac virtute dicuntur asyneti idest insensati Oportet autem quod secundumdifferentiam actuum qui non reducuntur in eandem causam sit etiam diversitas virtutum Manifestum est autem quodbonitas consilii et bonitas iudicii non reducuntur in eandem causam multi enim sunt bene consiliativi qui tamen nonsunt bene sensati quasi recte iudicantes Sicut etiam in speculativis aliqui sunt bene inquirentes propter hoc quodratio eorum prompta est ad discurrendum per diversa quod videtur provenire ex dispositione imaginativae virtutisquae de facili potest formare diversa phantasmata et tamen huiusmodi quandoque non sunt boni iudicii quod estpropter defectum intellectus qui maxime contingit ex mala dispositione communis sensus non bene iudicantis Et ideooportet praeter eubuliam esse aliam virtutem quae est bene iudicativa Et haec dicitur synesisrdquo 256 Ibidem p 640-641 Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoAdprimum ergo dicendum quod rectum iudicium in hoc consistit quod vis cognoscitiva apprehendat rem aliquam
87
Aristoacuteteles natildeo cita nenhum exemplo ilustrativo sobre a synesis limita-se somente em
descrever suas caracteriacutesticas Neste sentido pensamos ser oportuno fazecirc-lo para facilitar a
compreensatildeo desta virtude intelectual menor A inteligecircncia permite o ceacutelere aprendizado sobre os
elementos envolvidos em uma dada situaccedilatildeo Isto favorece o discernimento prudencial porque haacute
um conhecimento mais acurado das particularidades do caso Assim imaginemos uma conjuntura
do paiacutes no qual exista uma crise generalizada no transporte de insumos devida agrave falta de
abastecimento de combustiacuteveis Este eacute o panorama Para emitir um juiacutezo correto eacute indispensaacutevel
entender cada elemento que compotildeem a situaccedilatildeo Cada elemento deve ser entendido no seu
funcionamento proacuteprio e na sua relaccedilatildeo com os outros O homem prudente sendo possuidor da
synesis estudaraacute e aprenderaacute os vaacuterios elementos na circunstacircncia descrita por exemplo a
paralisaccedilatildeo dos transportadores e seu papel na logiacutestica de bens materiais o refinamento e
comercializaccedilatildeo dos derivados do petroacuteleo etc A compreensatildeo de cada parte que promove a
compreensatildeo do todo Logo para emitir um parecer correto ou seja sensato sobre a conjuntura e
decidir a melhor accedilatildeo a ser realizada o prudente utiliza a inteligecircncia para aprender os elementos
particulares e em que consiste cada um deles
Em suma a synesis eacute a capacidade de resolver situaccedilotildees novas de maneira ceacutelere e com
sucesso adaptando-se a elas por meio do conhecimento adquirido Esta virtude permite que se faccedila
um bom juiacutezo das coisas Deste modo o homem adquire um bom senso que interpreta com
razoaacutevel grau de acerto o que ocorre em cada caso
A ponderaccedilatildeo (gnwmn) eacute a terceira virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles De acordo
com o filoacutesofo de Estagira eacute definida como ldquoO que se chama discernimento e em virtude do qual
se diz que os homens satildeo lsquojuiacutezes humanosrsquo e que lsquopossuem discernimentorsquo eacute a reta discriminaccedilatildeo
do equumlitativordquo257 O conceito de equidade significa julgar de uma foma justa uma determinada
demanda Para que este julgamento equitativo ocorra eacute necessaacuterio que o julgador possua a virtude
secundum quod in se est Quod quidem provenit ex recta dispositione virtutis apprehensivae sicut in speculo si fueritbene dispositum imprimuntur formae corporum secundum quod sunt si vero fuerit speculum male dispositumapparent ibi imagines distortae et prave se habentes Quod autem virtus cognoscitiva sit bene disposita ad recipiendumres secundum quod sunt contingit quidem radicaliter ex natura consummative autem ex exercitio vel ex muneregratiae Et hoc dupliciter Uno modo directe ex parte ipsius cognoscitivae virtutis puta quia non est imbuta pravisconceptionibus sed veris et rectis et hoc pertinet ad synesim secundum quod est specialis virtus Alio modo indirecteex bona dispositione appetitivae virtutis ex qua sequitur quod homo bene iudicet de appetibilibus Et sic bonum virtutisiudicium consequitur habitus virtutum moralium sed circa fines synesis autem est magis circa ea quae sunt ad finemAd secundum dicendum quod in malis potest quidem iudicium rectum esse in universali sed in particulari agibilisemper eorum iudicium corrumpitur ut supra habitum estrdquo Na presente citaccedilatildeo Satildeo Tomaacutes estaacute discutindo na questatildeo51 artigo 3 (1) se a synesis natildeo eacute virtude e (2) se os homens maus possuem ou natildeo a synesis257 EacuteN VI 1143a 19-21 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Conforme apontamos na nota derodapeacute nordm 245 a ediccedilatildeo em portuguecircs que usamos da EacuteN usa a palavra ldquodiscernimentordquo para traduzir o gnome (LVallandro e G Bornheim 1987 p 110) No presente trabalho preferimos chamar de ldquoponderaccedilatildeordquo pelos motivosexpostos na referida nota
88
moral da justiccedila O bom julgador eacute aquele que tem consideraccedilatildeo pelos outros Ou seja ele pensa nos
outros ao ponderar o que eacute mais justo para todos Em outros termos a gnome nasce na estima que o
julgador tem pelas outras pessoas Nos mostra Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco
Mostra-o o fato de dizermos que o homem equumlitativo (gnwmhn) eacute acima de tudoum homem de discernimento humano (suggnwmonaj) e de (sic) identificarmos aequidade com o discernimento humano a respeito de certos fatos E essediscernimento eacute aquele que discrimina corretamente o que eacute equitativo sendo odiscernimento correto (e0pieikou~~j o0rqh) aquele que julga com a verdade (o0rqh d h9rsquo e1mpeiroj ou0k e1stintou~~ a0lhqou~~j)258
Nota-se a vital importacircncia das virtudes morais para que exista a gnome Sem a solidez das
virtudes no caraacuteter do homem dificilmente poderaacute haver um julgamento justo quando a equidade
se fizer necessaacuteria A gnome e as virtudes morais satildeo imprescindiacuteveis para o exerciacutecio da justiccedila em
sociedade Deste modo natildeo existe nenhuma poacutelis ou naccedilatildeo que continue agregada de modo
civilizado sem a equidade
A Magna Moralia descreve que a esfera em que atua a gnome eacute aquela dos direitos legais
Onde as leis natildeo satildeo claras a equidade deve aparecer para esclarecer o que deve ser feito uma vez
que eacute impossiacutevel os legisladores preverem todos os tipos de situaccedilotildees em detalhes Logo cabe ao
bom julgador (eu0gnwmwn) clarear as questotildees que natildeo satildeo resolvidas prontamente pelas leis 259
Neste sentido a gnome eacute uma virtude intelectual que auxilia no conviacutevio muacutetuo Ela
promove a harmonia nas relaccedilotildees cotidianas entre os cidadatildeos Mas eacute indispensaacutevel para
governantes legisladores e magistrados haja vista o grande nuacutemero de pessoas que suas decisotildees
afetam260 Os governantes devem praticar este reto juiacutezo equitativo para que sua administraccedilatildeo
considere as necessidades de todos os cidadatildeos e natildeo apenas de uma parcela deles O juiacutezo
equitativo eacute ainda mais requisitado quando as leis satildeo inexistentes obtusas ou natildeo se aplicam ao
caso demandado Nesta situaccedilatildeo exige-se que o magistrado possua uma conduta moral iacutentegra para
que possa ponderar de forma correta e aplicar a justiccedila (dikh) Um magistrado que tenha viacutecios de
caraacuteter incorreraacute em dois efeitos maleacuteficos O primeiro eacute que natildeo julgaraacute de modo equitativo Por
ter viacutecios corruptiacuteveis natildeo poderaacute estabelecer a dike porque tenderaacute a proteger um dos querelantes
258 EacuteN VI 1143a 22-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 A suggnome eacute a qualidade do homemaltruiacutesta indulgente Este homem pondera as situaccedilotildees visando o que eacute o mais justo para todos os envolvidos nasituaccedilatildeo Deste modo ele profere um reto julgamento 259 Cf Magna Moralia 1198b 24-34 The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et VitiisOp Cit sem paacutegina260 Devemos recordar que na filosofia moral aristoteacutelica o objetivo principal dos liacutederes da poacutelis eacute promover aeudaimonia na poacutelis Em vista disto a virtude intelectual da gnome tem uma fundamental importacircncia Cf EacuteN VI1142a 9-10 Poliacutetica I 1252a 5 1323b 22-35 1324a 5-35
89
em detrimento do outro O segundo eacute que o magistrado ao atingir o niacutevel de corrupccedilatildeo moral seus
viacutecios o impediratildeo de ponderar corretamente a querela Em vista disto no momento de proferir sua
sentenccedila inadvertidamente ao aplicar a lei o faraacute de modo que natildeo atende ao que eacute mais justo na
situaccedilatildeo
O juiacutezo equitativo eacute necessaacuterio para os legisladores porque sua missatildeo eacute promulgar leis
justas Estas leis auxiliam que a poacutelis atinja a vida feliz e estimulam os cidadatildeos a serem virtuosos
Os legisladores corrompidos por viacutecios de caraacuteter natildeo possuem condiccedilotildees para estabelecer uma
sociedade justa Ao contraacuterio as leis seratildeo promulgadas para fins errocircneos e incentivaratildeo os viacutecios
nos cidadatildeos O bom legislador possui a capacidade de ponderar de forma equitativa porque eacute
detentor de um caraacuteter virtuoso moral e intelectual Por conseguinte faraacute leis que preconizem as
relaccedilotildees justas entre os cidadatildeos
Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a gnome argumenta que o juiacutezo equitativo eacute
aplicado nos casos insoacutelitos nos quais as regras comuns natildeo podem ser usadas como padratildeo de
referecircncia Satildeo casos de exceccedilatildeo ou extraordinaacuterios nos quais usar o padratildeo comum de julgamento
faria o julgador cometer um erro de juiacutezo e consequentemente uma injusticcedila Satildeo nestas situaccedilotildees
que o bom julgador pondera acertadamente sobre o mais justo a ser feito O Doutor Angeacutelico
assinala a diferenccedila entre synesis e gnome A primeira compreende as regras comuns que orientam
as accedilotildees nos casos ordinaacuterios e frequentes A segunda julga as situaccedilotildees excepcionais estas natildeo
podem ser solucionadas de acordo com o normativo regular e costumeiro Em vista disto a gnome
julga o que eacute mais justo a partir dos princiacutepios mais elevados que os aplicados nos casos ordinaacuterios
Conforme descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] Os haacutebitos cognoscitivos distinguem-se segundo princiacutepios mais ou menoselevados como a sabedoria considera os princiacutepios mais elevados no acircmbitoespeculativo do que a ciecircncia Por isso se distinguem entre si O mesmo deve sedar nas accedilotildees Eacute evidente que as coisas que estatildeo fora da ordem de um princiacutepio oude uma causa inferior cai agraves vezes sob a ordem de um princiacutepio mais elevado [hellip]Acontece agraves vezes haver a necessidade de fazer algo agrave margem das regras comunsda accedilatildeo Por exemplo natildeo devolver um depoacutesito ao inimigo da paacutetria e outrascoisas semelhantes Por isso se deve julgar a respeito desses casos segundoprinciacutepios mais elevados do que as regras comuns segundo as quais a synesisjulga E segundo estes princiacutepios mais elevados exige-se tambeacutem uma potecircnciajustificativa mais elevada esta chama-se gnome e ela implica certa perspicaacutecia nojulgamento[hellip] portanto deve-se dizer que a synesis julga bem todos os casos que caem sob asregras comuns Mas outras accedilotildees devem ser julgadas agrave margem das regras comunscomo se acabou de dizer [hellip] deve-se dizer que considerar tudo o que pode suceder agrave margem do cursonormal da natureza pertence somente agrave providecircncia divina mas entre os homens o
90
que for mais perspicaz pode conhecer por sua razatildeo muitas delas A isso se ordenaa gnome que implica certa perspicaacutecia no julgamento 261
Observa-se que as fronteiras entre a synesis e a gnome nem sempre satildeo muitos distinguiacuteveis
Ambas analisam as particularidades de cada situaccedilatildeo Mas se as funccedilotildees de cada uma destas
virtudes especiais nem sempre satildeo niacutetidas deve-se ao fato de que elas operam juntas e estatildeo
atreladas uma agrave outra O bom juiz somente consegue ponderar bem e promover a equidade em cada
situaccedilatildeo se conseguir ser inteligente o suficiente para aprender sobre os elementos particulares
envolvidos em cada circunstacircncia A partir daiacute consegue extrair regras comuns Justamente por
apreender as regras comuns com base nos fatos o homem prudente pode sopesar de modo correto
Diante disto as situaccedilotildees excepcionais podem ser julgadas agrave luz de princiacutepios mais elevados que as
regras comuns podem fazecirc-lo
Apoacutes a descriccedilatildeo das trecircs virtudes intelectuais menores e como elas interagem entre si para a
realizaccedilatildeo de uma boa decisatildeo pelo homem prudente julgamos oportuno descrever brevemente
sobre a razatildeo intuitiva (nou=j) Aristoacuteteles faz referecircncia sobre esta operaccedilatildeo do intelecto no mesmo
Livro VI no qual disserta sobre a prudecircncia e as demais virtudes menores Dito isto passamos ao
proacuteximo toacutepico acerca do noucircs (nou=j)
36 A razatildeo intuitiva (nou=j) e a prudecircncia
O noucircs (nou=j)262complementa as virtudes intelectuais No campo do saber teoacuterico eacute
conceituado como a capacidade que o intelecto possui de apreender os primeiros princiacutepios que
261 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642-643Summa Theologiae II-II q 51 a 4 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodhabitus cognoscitivi distinguuntur secundum altiora vel inferiora principia sicut sapientia in speculativis altioraprincipia considerat quam scientia et ideo ab ea distinguitur Et ita etiam oportet esse in activis Manifestum est autemquod illa quae sunt praeter ordinem inferioris principii sive causae reducuntur quandoque in ordinem altioris principiisicut monstruosi partus animalium sunt praeter ordinem virtutis activae in semine tamen cadunt sub ordine altiorisprincipii scilicet caelestis corporis vel ulterius providentiae divinae Unde ille qui consideraret virtutem activam insemine non posset iudicium certum ferre de huiusmodi monstris de quibus tamen potest iudicari secundumconsiderationem divinae providentiae Contingit autem quandoque aliquid esse faciendum praeter communes regulasagendorum puta cum impugnatori patriae non est depositum reddendum vel aliquid aliud huiusmodi Et ideo oportetde huiusmodi iudicare secundum aliqua altiora principia quam sint regulae communes secundum quas iudicat synesisEt secundum illa altiora principia exigitur altior virtus iudicativa quae vocatur gnome quae importat quandamperspicacitatem iudicii [] dicendum quod synesis est vere iudicativa de omnibus quae secundum communes regulas fiunt Sed praetercommunes regulas sunt quaedam alia diiudicanda ut iam dictum est [] dicendum quod omnia illa quae praeter communem cursum contingere possunt considerare pertinet ad solamprovidentiam divinam sed inter homines ille qui est magis perspicax potest plura horum sua ratione diiudicare Et adhoc pertinet gnome quae importat quandam perspicacitatem iudiciirdquo 262 Jaacute apontamos a dificuldade de traduccedilatildeo do termo grego noucircs (cf nota de rodapeacute nordm 115) Optamos pelo termoldquointuiccedilatildeordquo ou ldquorazatildeo intuitivardquo por julgarmos serem mais adequados para expressar o tipo de operaccedilatildeo intelectualdescrita por Aristoacuteteles
91
servem de fundamento para as ciecircncias Ele capta aquilo que natildeo eacute possiacutevel ser demonstrado por
meio de deduccedilotildees ou induccedilotildees Contudo o noucircs tambeacutem atua no campo do saber praacutetico Neste
aspecto o noucircs capta os fatos particulares que variam a cada situaccedilatildeo A partir dos particulares
realiza uma induccedilatildeo para chegar as premissas universais Por consequecircncia o noucircs auxilia o homem
prudente a perceber de modo imediato a melhor accedilatildeo a ser realizada sob quaisquer circunstacircncias
De acordo com Aristoacuteteles
A razatildeo intuitiva (nou=j) por sua vez ocupa-se com coisas imediatas em ambos ossentidos pois tanto os primeiros termos como os uacuteltimos satildeo objetos da razatildeointuitiva e natildeo do raciociacutenio e a razatildeo intuitiva pressuposta pelas demonstraccedilotildeesapreende os termos primeiros e imutaacuteveis enquanto a razatildeo intuitiva requerida peloraciociacutenio praacutetico apreende o fato uacuteltimo e variaacutevel isto eacute a premissa menor Eesses fatos variaacuteveis servem como pontos de partida para a apreensatildeo do fim[conclusatildeo do silogismo] visto que chegamos aos universais (kaqolou) pelosparticulares eacute mister por conseguinte que tenhamos percepccedilatildeo destes uacuteltimos etal percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva (toutwn ou]n e1xein dei= ai1sqhsin au3th d e0stirsquo e1mpeiroj ou0k e1stinnou=j)263
O noucircs natildeo eacute uma deliberaccedilatildeo nem opiniatildeo nem ciecircncia Podemos caracterizaacute-lo como uma
espeacutecie de ldquogolpe de vistardquo Eacute uma percepccedilatildeo imediata de tudo o que envolve uma situaccedilatildeo
qualquer e que ocorre sem a necessidade da deliberaccedilatildeo Pelo menos eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo
tatildeo veloz que mal pode ser definida como tal Eacute o homem que diante de uma ocorrecircncia sabe
rapidamente qual a accedilatildeo a ser realizada e com boas chances de acerto O comentador Pierre
Aubenque descreve esta atuaccedilatildeo do noucircs como um resultado abrupto que ocorre ao final da
reflexatildeo
Se se entende por nou~~j a apreensatildeo imediata dos princiacutepios da demonstraccedilatildeo tantoa prudecircncia quanto a sabedoria se encontram igualmente distantes disso emborapor razotildees diferentes a sabedoria porque eacute feita de demonstraccedilotildees a prudecircnciaporque natildeo concerne nem ao demonstraacutevel nem a seu princiacutepio Mas se se entendepor nou~~j a apreensatildeo imediata das ldquocoisas uacuteltimas e particularesrdquo264 seraacute precisoatribuir tal intuiccedilatildeo ao homem prudente ao mesmo tempo homem de pensamento eaccedilatildeo herdeiro dos heroacuteis da tradiccedilatildeo o phronimos une nele a lenta reflexatildeo e aimediatez do golpe de vista que natildeo eacute senatildeo a brusca eclosatildeo da primeira ele unea minuacutecia e a inspiraccedilatildeo o espiacuterito de previsatildeo e o espiacuterito de decisatildeo265
Este senso imediato sobre as circunstacircncias eacute resultado da atuaccedilatildeo conjunta das trecircs virtudes
intelectuais menores somada agrave empeiria Por isto o homem prudente eacute algueacutem que possui e exerce
263 EacuteN VI 1143a 35 ndash 1143b 7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110264 Pierre Aubenque assinala esta passagem na EacuteN VI 1143a 28265 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 237-238
92
muito bem a euboulia a synesis a gnome A velocidade de saber o que fazer em certas situaccedilotildees eacute
fruto da experiecircncia adquirida com o passar do tempo que aperfeiccediloa as trecircs virtudes intelectuais
menores Afinal no decorrer do tempo quantas circunstacircncias foram deliberadas Quantos casos
foram julgados Quantas escolhas foram feitas dia apoacutes dia Devido a isto quando comparado a
outros homens o phronimos sabe do modo mais raacutepido e certeiro entender o que se passa a sua
volta e realizar as accedilotildees mais corretas266
Devido agrave empeiria e ao tempo que ajudam a desenvolver as virtudes intelectuais menores
Aristoacuteteles elogia os homens com mais idade e maior experiecircncia A sabedoria destes expressa em
suas opiniotildees maacuteximas e proveacuterbios merecem tanto respeito e atenccedilatildeo quanto a devida a
renomados cientistas ou especialistas em alguma ciecircncia Os homens prudentes satildeo os saacutebios os
ldquoespecialistasrdquo na arte de viver Conforme nos mostra Aristoacuteteles
Eis aiacute por que tais disposiccedilotildees [euboulia synesis noucircs] satildeo consideradas comodotes naturais e enquanto de ningueacutem se diz que eacute filoacutesofo (sofoj) por natureza amuitos se atribui um discernimento inteligecircncia e uma razatildeo intuitiva inatos (gnwmhn d e1xein kai sunesin kai nou=nrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] dizendo que uma determinada idade trazconsigo a razatildeo intuitiva e o discernimento isto implica que a causa eacute natural[Donde se segue que a razatildeo intuitiva eacute tanto um comeccedilo como um fim (a0rxh kaiteloj nou=j) pois as demonstraccedilotildees partem deste e sobre estes versam] Por issodevemos acatar natildeo menos que as demonstraccedilotildees os aforismos e opiniotildees(docaij) natildeo demonstradas (a0podeiceij) de pessoas experientes (e0mpeirwn) emais velhas assim como das pessoas dotadas de sabedoria praacutetica Com efeitoessas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olho(e0mpeiriaj o1mma o9rw~~sin o0rqw~~j)267
Vimos como o aperfeiccediloamento das virtudes intelectuais menores eacute fundamental para a
aquisiccedilatildeo da prudecircncia O entrelaccedilamento destas trecircs capacidades do intelecto permite uma
interpretaccedilatildeo correta dos fatos Esta por sua vez auxilia para que haja uma boa anaacutelise de
conjuntura ou seja condizente com a realidade dos fatos No que lhe concerne esta averiguaccedilatildeo
certeira favorece a boa deliberaccedilatildeo Logo o homem prudente eacute aquele que realiza um bom exame
das circunstacircncias porque conhece os fatos particulares e os fins aos quais se destinam agrave accedilatildeo
humana
Apoacutes o exame das partes integrantes da prudecircncia resta uma questatildeo a ser tratada como a
prudecircncia nos conduz agrave eudaimonia A elucidaccedilatildeo desta pergunta estaacute exposta ao longo de toda a
266 Recordamos que uma accedilatildeo correta precisa ser moralmente nobre e eficaz para atingir o resultado previsto 267 EacuteN VI 1143b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Referente a expressatildeo ldquo[hellip] Comefeito essas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olhordquo Acreditamos que seja melhorcompreensiacutevel transcrevendo-a da seguinte forma ldquo[hellip] pois a experiecircncia lhes transmitiu uma visatildeo com a qualenxergam as coisas com acertordquo (E Bini 2013 p 195) Outra traduccedilatildeo [hellip] for experience has given them an eye forthings and so they see correctlyrdquo (H Rackham 1996 p 157)
93
explanaccedilatildeo feita Mas pensamos ser interessante esclarecer melhor a resposta Dito isto passemos
ao proacuteximo toacutepico
37 Prudecircncia virtudes morais e eudaimonia
No final do livro VI268 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles responde a alguns questionamentos
especiacuteficos sobre a prudecircncia Provavelmente seriam questotildees feitas por homens natildeo afeiccediloados agraves
reflexotildees mais profundas sobre a sophia e a phronecircsis De modo geral as perguntas versam sobre a
utilidade das virtudes intelectuais Estes questionamentos possuem o seu valor porque vatildeo no
acircmago de um aspecto que natildeo pode ser esquecido no estudo sobre o saber teoacuterico e o saber praacutetico
Estes saberes satildeo apenas um mero exerciacutecio intelectual sem viacutenculo com o cotidiano do homem
comum Apenas seriam uma espeacutecie de jogo para exercitar o raciociacutenio Algo sem importacircncia para
a construccedilatildeo de uma vida feliz Naturalmente que natildeo A sophia e a phronecircsis satildeo fundamentais
para a felicidade Eacute o que o Estagirita tentaraacute demonstrar
O filoacutesofo de Estagira comeccedila se interrogando acerca do aparente fato de que a sophia natildeo
pode auxiliar na busca da eudaimonia porque natildeo diz respeito agraves coisas contingenciais nem agraves que
foram geradas Apenas trata das coisas eternas e necessaacuterias Ao contraacuterio do saber teoacuterico a
phronecircsis versa sobre aquilo que nos faz agir de modo justo e nobre Entretanto uma vez que ser
justo e nobre satildeo qualidades do homem bom natildeo faz sentido desenvolver estes dois saberes
porque em tese o homem virtuoso jaacute possui qualidades boas E para um homem que natildeo eacute
virtuoso natildeo faria nenhuma diferenccedila basta ele viver sem prudecircncia ou acatar os conselhos dos
prudentes Entatildeo qual a necessidade de aprender e aprimorar a sophia e a phronecircsis Citamos o
texto
Mas algueacutem poderia perguntar de que servem essas faculdades da mente jaacute que (1)a sabedoria filosoacutefica (sofia) natildeo considera nenhuma das coisas que tornam umhomem feliz (pois natildeo diz respeito agraves coisas que se geram) e quanto agrave sabedoriapraacutetica embora trate dessas coisas para que necessitamos dela A sabedoriapraacutetica eacute a disposiccedilatildeo da mente que se ocupa com as coisas justas nobres e boaspara o homem (fronesij e0stin peri ta dikaia kai kala kai a0gaqaa0nqrwpw) mas essas satildeo coisas cuja praacutetica eacute caracteriacutestica de um homem bom(agaqou= e0stin a0ndroj) e natildeo nos tornamos mais capazes de agir pelo fato deconhececirc-las se as virtudes satildeo disposiccedilotildees do caraacuteter (e3ceij ai9 a0retai ei0sin)[hellip]269
268 Cf EacuteN VI 1143b 20 - 1144a 35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111-112 EacuteE I 1143b 20 -1144a 35 Eacutetica a Eudemo Op cit p 198-200269 EacuteN VI 1143b 18-28 Ibidem p 111
94
Decorrente do questionamento anterior surge outra questatildeo que Aristoacuteteles se defronta a
saber se a phronecircsis seria superior agrave sophia para construir uma vida feliz Ele faz uma comparaccedilatildeo
com a medicina e a sauacutede Pode-se pensar que natildeo necessariamente precisamos dominar a medicina
para termos sauacutede Basta praticar atos saudaacuteveis e teremos a sauacutede Poreacutem ao seguirmos esta linha
de raciociacutenio haacute uma estranheza a phronecircsis torna-se superior agrave sophia Ou seja a sabedoria
praacutetica que se refere aos meios torna-se mais importante que a sabedoria teoacuterica que compreende
as coisas mais elevadas Logo como a prudecircncia seria superior e mais importante que a sabedoria
teoacuterica De acordo com Aristoacuteteles
Mas (2) se dissermos que um homem deve possuir sabedoria praacutetica natildeo paraconhecer as verdades morais mas para tornar-se bom a sabedoria praacutetica nenhumautilidade teraacute para os que jaacute satildeo bons e por outro lado de nada serve ela para osque natildeo possuem virtude Com efeito nenhuma diferenccedila faz que eles proacutepriostenham sabedoria praacutetica ou que obedeccedilam (peiqesqai) a outros que a tecircm e seriasuficiente fazer o que costumamos fazer com respeito agrave sauacutede (u9gieian) emboradesejemos gozar sauacutede natildeo nos dispomos por isso a aprender a arte da medicina(3) Por outro pareceria estranho que a sabedoria praacutetica sendo inferior agrave filosoacutefica(sofiaj) tivesse autoridade (kuriwtera) sobre ela como parece implicar o fatode que a arte que produz uma coisa qualquer exerce o mando e o governorelativamente a essa coisa270
A resposta eacute que a sophia e a phronecircsis por serem virtudes correspondem agrave excelecircncia das
respectivas partes intelectuais da alma Elas satildeo o aacutepice das operaccedilotildees do intelecto que atuam nos
seus campos especiacuteficos a teoria e a accedilatildeo Portanto por serem a perfeiccedilatildeo daquilo que existe de
melhor em noacutes mesmos ndash a razatildeo ndash elas devem ser almejadas por si proacuteprias mesmo que
aparentemente natildeo produzam nenhum tipo de resultado
O detalhe eacute que as virtudes intelectuais e morais produzem efeitos reais Elas resultam na
eudaimonia Ao usar a razatildeo de maneira sublime o homem se torna mais feliz E quanto a
phronecircsis e as virtudes morais A prudecircncia e a virtude moral atuam juntas para que o homem
cumpra plenamente sua funccedilatildeo Ao cumpri-la o homem eacute feliz A prudecircncia garante a reta escolha
dos meios A virtude moral assegura a retidatildeo dos fins nobres pelos quais o homem orienta a sua
vida Portanto a conquista e o aprimoramento das virtudes intelectuais e morais satildeo indispensaacuteveis
para a eudaimonia Conforme nos expotildee Aristoacuteteles
270 EacuteN VI 1143b 29-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111
95
(1)Antes de tudo diremos que essas disposiccedilotildees de caraacuteter devem ser dignas deescolha porque satildeo as virtudes das duas partes da alma respectivamente e o seriamainda que nenhuma delas produzisse o que quer fosse (2) Em segundo lugar elasde fato produzem alguma coisa ndash natildeo poreacutem como a arte meacutedica produz sauacutedemas como a sauacutede (sic) produz sauacutede Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produzfelicidade (sofia eu0daimonian) porque sendo ela uma parte da virtude inteira [davirtude como um todo] (o3lhj a0reth=j) torna um homem feliz pelo fato de estar nasua posse e atualizar-se (e0nergei=n eu0daimona)271
A prudecircncia eacute relevante para tornar os homens melhores Certamente que sim Porque a
accedilatildeo virtuosa eacute resultado de uma escolha consciente do homem Os fins e os meios devem ser
corretos Somente quem for prudente realiza a correta escolha dos meios para alcanccedilar o fim
escolhido Unicamente opta pelos fins corretos quem for moralmente virtuoso O homem prudente
reuacutene em si todas as virtudes morais Desta maneira o Supremo Bem (eudaimonia) apenas pode ser
ldquovisualizadordquo pelo homem virtuoso e natildeo por aquele que tem viacutecios (kakoi) pois estes uacuteltimos
pervertem a visatildeo correta do que eacute o bem para o homem e dificultam a sua escolha De acordo com
Aristoacuteteles
(3) Por outro lado a obra (e1rgon) de um homem soacute eacute perfeita (a0potelei=tai)quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica (fponesij) e com a virtude moral(h0qikhn a0rethn) esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito (proairesin o0rqhnpoiei= h9 a0reth) aquela com que escolhamos os devidos meios [hellip] Assim comodizemos que algumas pessoas que praticam atos justos natildeo satildeo necessariamentejustas por isso ndash referimo-nos agraves que praticam os atos prescritos pela lei querinvoluntariamente quer devido agrave ignoracircncia ou por alguma outra razatildeo mas natildeo nointeresse dos proacuteprios atos embora seja certo que tais pessoas fazem o que deveme todas as coisas que o homem bem (sic) deve fazer - parece que do mesmo modopara algueacutem ser bom eacute preciso encontrar-se em determinada disposiccedilatildeo quandopratica cada um desses atos numa palavra eacute preciso praticaacute-los em resultado deuma escolha e no interesse dos proacuteprios atos 272
Assim a resposta agrave pergunta inicial do porque desenvolver as virtudes intelectuais e morais
para ser feliz pode ser respondida de modo satisfatoacuterio Eacute a consolidaccedilatildeo da virtude intelectual da
prudecircncia e das virtudes morais que o fazem se tornar um phronimos Deste modo ele consegue
discernir o bem em qualquer situaccedilatildeo e escolher os meios adequados para atingiacute-lo
271 EacuteN VI 1144a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111 Na expressatildeo ldquo[hellip] mas como a sauacutedeproduz sauacutederdquo entendemos que a ideia que se quer transmitir eacute mais compreensiacutevel na traduccedilatildeo de Edson Bini ldquo[hellip]mas naquele segundo o qual o sadio eacute a causa da sauacutederdquo (E Bini 2013 p 196) Tambeacutem pode ser entendido como oldquosaudaacutevelrdquo em vez de o ldquosadiordquo272 EacuteN VI 1144a 9-22 Ibidem p 111-112
96
CONCLUSAtildeO
Nas consideraccedilotildees finais deste estudo sobre a phronecircsis retomamos brevemente o caminho
percorrido Como fio condutor trata-se de compreender no que consiste a virtude intelectual da
prudecircncia e como esta auxilia na obtenccedilatildeo da eudaimonia A Eacutetica a Nicocircmaco eacute um tratado sobre
as virtudes e a felicidade Nesta obra o objetivo de Aristoacuteteles eacute indicar o que eacute a verdadeira vida
feliz e traccedilar um itineraacuterio para alcanccedilaacute-la ou melhor construiacute-la A vida feliz natildeo eacute fruto do acaso
mas eacute resultado de uma escolha baseada nas virtudes E se eacute uma escolha o homem deve estar
consciente desta ldquoescolha de vidardquo e arcar com as responsabilidades que esta acarreta Se a
felicidade consiste em parte em tomar boas decisotildees a razatildeo praacutetica deve atuar A virtude
intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia da razatildeo praacutetica no que se refere ao aspecto decisoacuterio Do
mesmo modo que um construtor que conhece o que deve fazer para construir uma casa e escolhe os
melhores meios para fazecirc-la certamente a construiraacute da forma correta Ele atingiu a meta
determinada que eacute a proacutepria casa Assim tambeacutem eacute a construccedilatildeo de uma vida feliz Logo quanto
mais o homem se exercitar na virtude intelectual da prudecircncia melhores seratildeo suas decisotildees o que
aumentaraacute as suas chances de ter uma vida feliz
Eacute importante compreender como o Estagirita descreve a relaccedilatildeo entre os bens e os fins ateacute
chegar ao conceito de Supremo Bem que eacute a proacutepria felicidade Uma vez que o ser humano possui
uma funccedilatildeo proacutepria caraterizada pela racionalidade satildeo as virtudes morais que promovem o
domiacutenio dos desejos e permitem que o indiviacuteduo siga os ditames da razatildeo Isso significa que existe
uma interaccedilatildeo entre a virtude intelectual da prudecircncia e as virtudes morais Para que a prudecircncia
apareccedila eacute necessaacuterio que as virtudes morais tambeacutem se desenvolvam Por isto a aquisiccedilatildeo das
virtudes morais eacute imprescindiacutevel para que o homem atinja a excelecircncia moral e conquiste a
plenitude de vida Entretanto para que haja o florescimento dessas virtudes e sua consolidaccedilatildeo no
homem virtuoso a prudecircncia precisa atuar Neste contexto a phronecircsis delimita o paracircmetro
correto para que o homem possa exercer uma accedilatildeo virtuosa dentro das circunstacircncias mutaacuteveis com
as quais se depara constantemente Esta virtude intelectual aplica-se no domiacutenio do contingente e
natildeo trata das coisas que nunca se alteram Seu acircmbito de aplicaccedilatildeo eacute o mundo das atividades
humanas pois eacute a prudecircncia que sopesa e julga as situaccedilotildees Assim a prudecircncia orienta o indiviacuteduo
a perceber os melhores meios para atingir os fins escolhidos E principalmente permite escolher os
meios para alcanccedilar o fim mais elevado de todos que eacute a proacutepria eudaimonia Logo esta virtude
intelectual possui uma funccedilatildeo basilar para que o homem se torne virtuoso e obtenha a felicidade
O motivo de desenvolver as virtudes intelectuais e morais para obter uma vida feliz pode ser
compreendido de modo clariacutessimo A necessidade de desenvolvecirc-las reside na proacutepria natureza
97
humana O ser humano eacute dotado de racionalidade A razatildeo eacute a mais sublime parte de sua alma Ela
permite que cumpramos nossa funccedilatildeo proacutepria plenamente Por isto quanto mais exercitamos a
razatildeo mais aprimoramos as virtudes intelectuais Em relaccedilatildeo agraves virtudes morais a praacutetica habitual
acarreta um controle maior dos nossos desejos Esse aperfeiccediloamento intelectual nos torna cada vez
mais felizes Primeiro pelo proacuteprio ato de raciocinar que eacute uma atividade que causa um prazer
nobre Segundo porque a sophia auxilia na contemplaccedilatildeo da beleza proveniente daquilo que eacute
eterno e por isto completamente estaacutevel A phronecircsis porque sendo o saber da boa decisatildeo ajuda
a vivermos em mundo instaacutevel e por consequecircncia incerto A prudecircncia ao ser aprendida e
exercitada torna o homem mais confiante em si proacuteprio pois desenvolve a capacidade de lidar com
as contingecircncias da vida e agir da maneira mais correta diante destas Portanto saber decidir bem
maximiza as chances de construir uma vida feliz porque os ldquoventos do acasordquo dificilmente
promovem a felicidade humana
Na formaccedilatildeo moral do homem o prazer possui um papel de muita importacircncia pois eacute um
indutor para a realizaccedilatildeo de accedilotildees boas ou maacutes Por isto desde a tenra idade o homem tem de ser
educado para sentir prazer na praacutetica de accedilotildees nobres e se deleitar com a praacutetica das virtudes morais
e intelectuais O homem virtuoso deve se afastar dos prazeres moralmente ruins Estes prazeres
torpes satildeo aqueles que natildeo estimulam o homem a torna-se mais virtuoso antes o afasta de uma
conduta moralmente elevada O prazer tem duas funccedilotildees importantes que auxiliam a atingir a
eudaimonia A primeira eacute o aprimoramento das atividades realizadas quanto mais prazer haacute
envolvido em uma accedilatildeo mais estiacutemulo existe para praticaacute-la o que ocasiona a melhora a atividade
exercida Um exemplo eacute o violinista que sente prazer ao tocar o seu violino isto o induz a treinar
mais e consequentemente a ser um muacutesico melhor Este aperfeiccediloamento causado pelo prazer
tambeacutem ocorre com a accedilatildeo humana quanto mais o homem se esforccedila para habituar-se agrave praacuteticas das
virtudes mais prazer ele sente em realizar accedilotildees corretas e nobres A segunda funccedilatildeo estaacute associada
ao resultado por exemplo ao tocar o instrumento musical de forma sublime o violinista teraacute mais
prazer O homem ao praticar as accedilotildees nobres torna-se cada vez mais excelente Deste modo o
resultado alcanccedilado pela conduta virtuosa moral e intelectual eacute a proacutepria felicidade
A importacircncia das virtudes morais para a felicidade eacute muito niacutetida Elas satildeo os fundamentos
a base para a virtude da prudecircncia Satildeo as virtudes morais que orientam os nossos desejos para o
bem Sem elas afundamos sobre o proacuteprio peso de aspiraccedilotildees incoerentes ou nefastas Afinal pode-
se desejar qualquer coisa inclusive o que nos faz mal Com isto nos afastamos da razatildeo e perdemos
a ideia da verdadeira felicidade E ainda arruinamos a capacidade de construiacute-la Sem a prudecircncia
que eacute a reta razatildeo no agir e sem a virtude moral que eacute o justo meio da accedilatildeo natildeo conseguimos definir
os fins que temos que atingir Tampouco conseguimos descobrir que accedilatildeo realizar para alcanccedilar
98
estes fins Ou pode-se ter um vislumbre da meta e da accedilatildeo mas natildeo haacute forccedila interior suficiente para
operacionalizar este intento Deste modo o homem perde a noccedilatildeo do fim uacuteltimo e frequentemente
dos fins particulares pois os viacutecios o arrastam para longe do Supremo Bem Tal fato o leva a fazer
escolhas ruins com consequecircncias infelizes
O ponto central para a realizaccedilatildeo das virtudes morais eacute a ideia de mediania A virtude moral
eacute um meio-termo entre dois tipos de condutas perniciosas para o homem Uma accedilatildeo ruim eacute marcada
pelo exagero a outra accedilatildeo eacute marcada pela carecircncia O spoudaios ou seja o homem virtuoso
moralmente aplica a mediania nas suas accedilotildees Neste sentido a mediania constitui a excelecircncia da
accedilatildeo
Ao longo desta pesquisa vimos como a virtude intelectual da prudecircncia se relaciona com as
virtudes morais Todo homem prudente possui as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter Satildeo
as virtudes morais que orientam os desejos para aquilo que eacute correto o que permite que a prudecircncia
decida quais satildeo os melhores meios para alcanccedilar os fins nobres desejados O homem prudente eacute
dotado de um domiacutenio sobre suas paixotildees e possui uma anaacutelise racional acertada das circunstacircncias
o que permite a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo correta Deste modo a prudecircncia indica como alcanccedilar o
fim mais desejado de todos que eacute a felicidade
A prudecircncia eacute o saber intelectual aplicado ao mundo contingente Ele sabe discernir a
intensidade o momento e a quem se aplica as suas accedilotildees Eacute a virtude da boa decisatildeo perante as
inuacutemeras circunstacircncias que surgem no decorrer da vida O homem prudente sabe deliberar
compreender e julgar de modo acurado as situaccedilotildees Existem trecircs fatores que auxiliam o
refinamento destes atos do intelecto que satildeo o tempo a experiecircncia e a instruccedilatildeo Deste modo a
virtude intelectual da prudecircncia pode ser aperfeiccediloada a cada decisatildeo realizada perante as
circunstacircncias
Eacute importante recordar que eacute a virtude da prudecircncia que preserva a consciecircncia dos limites do
possiacutevel para o homem Eacute o conhecimento dos seus limites que impede a desmesura (u3brij) ou
seja a arrogacircncia fatal que natildeo reconhece o que pode ou natildeo ser realizado e com isso acarreta na
infelicidade humana Neste sentido coadunamos com o pensamento de Pierre Aubenque ao trazer a
peccedila teatral Antiacutegona como exemplo ilustrativo da prudecircncia Nesta peccedila o coro diz ao vaidoso
Creonte que despreza o pensar prudencial acerca dos seus atos ldquoa (sic) prudecircncia (to fronei=n) eacute
de longe a primeira condiccedilatildeo da felicidade Nunca se deve cometer impiedade contra os deuses Os
orgulhosos vecircem suas grandes palavras pagas pelos grandes golpes da sorte e eacute apenas com os anos
que aprendem a prudecircnciardquo273 A prudecircncia se forja com o raciociacutenio aplicado agraves circunstacircncias nas
tentativas de realizar as melhores decisotildees possiacuteveis Com o passar do tempo as inuacutemeras
273 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op citp 260
99
experiecircncias vividas pelo homem permitem que suas decisotildees nas diversas situaccedilotildees tornem-se mais
apuradas Com este aprimoramento o homem prudente passa a ldquopersonificarrdquo a proacutepria reta razatildeo
Neste sentido a prudecircncia eacute a percepccedilatildeo salutar da ldquomedida das coisasrdquo que auxilia o bem viver
humano porque evita que desejos irreais e ideias absurdas que natildeo passaram no crivo da realidade
faccedilam o homem ser obstinado com fantasias que o conduziratildeo a uma trageacutedia individual ou coletiva
e natildeo a uma vida feliz
Diante do exposto acreditamos que eacute demonstrada a grande importacircncia que a virtude
intelectual da prudecircncia possui na vida do homem A eudaimonia que eacute o Supremo Bem desejado
por todas as pessoas somente pode ser atingida se houver boas decisotildees que nos conduzam ateacute uma
vida feliz O homem que seguidas vezes realiza decisotildees ruins ao longo de sua vida dificilmente
construiraacute uma vida feliz Somente eacute venturoso o homem que realiza o seu ergon ou seja alcanccedila a
sua plenitude a partir de dois atos extremamente importantes O primeiro ato eacute orientar os seus
desejos por meio das virtudes morais para os fins nobres e a ter prazer nas accedilotildees virtuosas sem
atitudes indignas de um homem valoroso O segundo ato eacute aprender a usar o intelecto para agir
corretamente ou seja a desenvolver a virtude da prudecircncia Afinal o homem prudente ao moderar
suas paixotildees e direcionar corretamente seus desejos para aquilo que eacute bom consegue decidir
corretamente o caminho a ser seguido dentro das diversas circunstacircncias
Em suma o homem sem prudecircncia e com os viacutecios que dominam o seu caraacuteter eacute como um
naacuteufrago sem mapa desorientado nos mares da vida Por outro lado o homem prudente sabe para
onde vai e possui a firmeza necessaacuteria para navegar ateacute laacute Logo nas incertezas da vida o
phronimos aristoteacutelico torna-se o seu proacuteprio porto seguro Isto o faz feliz
100
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de Filosofia Trad da primeira ediccedilatildeo brasileira coord e rev
por Alfredo Bosi rev e trad dos novos textos por Ivone Castilho Benedetti 6ordm ed Satildeo Paulo
WMF Martins Fontes 2012
ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica
nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-125
ARISTOTLE The Nicomachean Ethics Translated with Notes by Harris Rackham with a
Introduction by Stephen Watt Wordswhorth Classics of World Literature 1996
______________ Nicomachean Ethics Translated by WD Ross Batoche Books Kitchener 1999
______________ The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et Vitiis
Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford Clarendon Press 1915
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea I 13 ndashIII 8 Tratado da Virtude Moral Trad Marco Zingano
Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008
______________ Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro2015
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 3ordf Ediccedilatildeo 1ordm
reimp 2013
______________ Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Maria Arauacutejo y Juliacutean Marias Ed Biliacutengue CEPC
Diretor Antonio Truyol Serra 2002
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da
versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de
Eudoro de Souza Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural
1987 (Col Os Pensadores)
______________ Fiacutesica I-II Trad Lucas Angioni Campinas Editora Unicamp 2009
______________ Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterios de
Giovanni Reale) Volumes I II III Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ediccedilatildeo
2005
101
______________ Oacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edison Bini
Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev2010 p 41-42 (Seacuterie Claacutessicos Edipro)
______________ Poliacutetica Trad Nestor Silveira 1ordm ed Satildeo Paulo Folha de Satildeo Paulo 2010
______________ Retoacuterica Traduccedilatildeo textos adicionais e notas de Edson Bini Satildeo Paulo Edipro
2011
______________ Sobre a Alma Trad de Ana Maria Loacuteio revisatildeo cientiacutefica de Tomaacutes Calvo
Martiacutenez adaptado para o portuguecircs do Brasil por Luiza Aparecida dos Santos Satildeo Paulo WMF
Martins Fontes 2013 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles coord Antoacutenio Pedro Mesquita)
______________ Toacutepicos Dos argumentos sofiacutesticos seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta
Pessanha traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de WA Pickard mdash
Satildeo Paulo Nova Cultural 1987
ARISTOTELES Graece Ex recensione Immanuelis Bekkeri Volumen Alterum Berolini apud
Georgium Reimerum Academia Regia Borussica 1831
ARISTOTELIS Ethica Nicomachea Franciscus Susemihl Editio Altera Curavit Otto Apelt
Lipisiae In Aedibus B G Teubneri MCMIII
AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo
Discurso Editorial Paulus 2008
BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bertolini Satildeo Paulo Paulus 2012 (Coleccedilatildeo
Filosofia)
BRUumlLLMAN Phillip A Teoria do Bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo
Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 (Coleccedilatildeo Aristoteacutelica)
CARVALHO Helder Buenos Aires A phroacutenesis aristoteacutelica Breve comparaccedilatildeo das leituras de
Alasdair MacIntyre e Paul Ricoeur Hypnos Satildeo Paulo Nuacutemero 27 2ordm semestre 2011 p 260-283
ETICHE DI ARISTOTELE Etica Eudemea Etica Nicomachea Grande Etica A cura di Lucia
Caiani Introduzione di Francesco Adorno Torino Unione Tipografico-Editrice Torinese 1996
(Classici della Filosofia)
102
GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia
aristoteacutelica Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas
GEACH PT ldquoHistory of Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972
HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista
Archai Brasiacutelia n 04 pp 109-119 jan 2010
HERMANN Nadja Phronesis a especificidade da compreensatildeo moral Educaccedilatildeo Porto Alegre
Rio Grande do Sul ano XXX n 2(62) p 365-376 maioagosto 2007
HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a
eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
HOumlOFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008
JAEGER Werner Wilhelm Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Trad Artur M Parreira
adaptaccedilatildeo para versatildeo brasileira Mocircnica Stahel revisatildeo do texto grego Gilson Cesar Cardoso de
Souza 3ordm ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994
MACINTYRE Alasdair Justiccedila de quem Qual racionalidade Satildeo Paulo Loyola 1991
PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles a passagem da eacutetica agrave
dianoeacutetica aristoteacutelica no problema da felicidade Rio de Janeiro Poacutes Moderno 2002
PERINE Marcelo Quatro Liccedilotildees sobre a Eacutetica de Aristoacuteteles Ed Loyola Satildeo Paulo Brasil 2006
PLATAtildeO Teeteto Cratilo Traduccedilatildeo direta do grego Carlos Alberto Nunes Coordenaccedilatildeo Benedito
Nunes 3bull Ediccedilatildeo Revisada Beleacutem- Paraacute 2001
RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda
edicioacuten Trad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007
SPINELLI Priscila Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles Satildeo Leopoldo
Editora Unisinos 2007 (Col Precircmio ANPOF)
TOMAacuteS DE AQUINO Santo A prudecircncia a virtude da decisatildeo certa Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e
notas Jean Lauand 2ed Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014
103
__________________ Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes
Vol I Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015
p27
__________________Sententia Libri Ethicorum Disponiacutevel em
lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt
__________________ Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles
Trad Tiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013
__________________ Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed
Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004
VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo
Phronesis Vol 50 Nordm 2 2005 p 116-128
WEDIN Michael ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981
p243-262
WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de AristoacutetelesTrad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2010 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)
ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado da virtude moral Satildeo
Paulo Odysseus Editora 2008
ZINGANO Marco Estudo de Eacutetica Antiga 2edSatildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009
ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo
Paulo Ed Odysseus 2010
- BRASIacuteLIA
-
- 14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
- CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
- O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
-
- 16 O acaso na vida humana
- CAPIacuteTULO II
-
- AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
-
- 23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
- 24 O homem virtuoso
- 25 As virtudes morais como mediania
- 33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
-
ADRIANO SOTERO BIN
A PHRONEcircSIS NA EacuteTICA A NICOcircMACO
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof Dr Guy Hamelin (Orientador) Universidade de Brasiacutelia ndash UnB
___________________________________________
Prof Dr Marcos Aureacutelio FernandesUniversidade de Brasiacutelia ndash UnB
___________________________________________
Prof Dr Fernando Martins Mendonccedila Universidade Federal de Uberlacircndia - UFU
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a Deus por todos os desafios enfrentados
Agradeccedilo a todos que me incentivaram na realizaccedilatildeo deste trabalho
Se a felicidade eacute atividade conforme agrave virtude seraacute razoaacutevel que ela esteja tambeacutem emconcordacircncia com a mais alta virtude e essa seraacute a do que existe de melhor em noacutes Quer seja
a razatildeo quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guianatural tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas e quer seja ele mesmo divino quer
apenas o elemento mais divino que existe em noacutes sua atividade conforme agrave virtude que lhe eacuteproacutepria seraacute a perfeita felicidade Que essa atividade eacute contemplativa jaacute o dissemos
anteriormente(ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 1177a 13-18)
A virtude de um ser seja ordenada para o bem Logo a virtude humana que eacute um haacutebitoimperativo eacute um haacutebito bom e operativo do bem
(SANTO TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica Iordf seccedilatildeo IIordf parte Questatildeo 55 Art 3)
Natildeo te deixes levar por tuas paixotildees e refreia os teus desejos (ECLESIAacuteSTICO 18 30)
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo estudar a virtude intelectual da prudecircncia
(φρόνησις) em Aristoacuteteles e ver sua importacircncia para que o indiviacuteduo construa uma vida
feliz Este estudo concentra-se principalmente na Eacutetica a Nicocircmaco mas tambeacutem seraacute
utilizado a Eacutetica a Eudemo o outro tratado aristoteacutelico sobre a eacutetica como auxiacutelio para
compreensatildeo do pensamento do Estagirita sobre a prudecircncia Para tanto este estudo estaacute
dividido em trecircs capiacutetulos No primeiro analisamos a ideia de Supremo Bem como felicidade
(eu0daimonia) Vemos o que a caracteriza e porque ela eacute o fim mais desejado Tambeacutem eacute visto
qual o tipo de vida que melhor condiz com a funccedilatildeo (e2rgon) proacutepria do ser humano No
segundo capiacutetulo examinamos as virtudes intelectuais e morais Entretanto damos uma
ecircnfase maior nas virtudes morais porque satildeo o fundamento para que a phronecircsis possa se
sobressair Ademais analisamos a relaccedilatildeo entre a virtude moral e o prazer pois este uacuteltimo
possui um papel importante na busca da eudaimonia No terceiro capiacutetulo tratamos da virtude
intelectual da prudecircncia Vemos suas caracteriacutesticas suas partes integrantes como se
desenvolve e atua defronte agrave realidade Compreendemos o que eacute a deliberaccedilatildeo (bouleusij e
a escolha (proairesij) assim como estudamos quais satildeo as trecircs virtudes intelectuais
menores boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn)
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Virtudes Morais Felicidade Bem
ABSTRACT
The objective of the present work is to study the intellectual virtue of prudence (φρόνησις) in
Aristotle and to see its importance for the individual to build a happy life This study focuses
mainly on The Nichomachean Ethics but the The Eudemian Ethics the other Aristotelian
treatise on ethics will also be used as an aid to understand the Stagirites thinking on
prudence This study is divided into three chapters In the first one we analyze the idea of
Supreme Good as happiness (eu0daimonia) We see what characterizes it and why it is the
most desired We are also seing which type of life best fits with the function ( gἔρ ον) of the
human being In the second chapter we examine intellectual and moral virtues However we
emphasize size more on moral virtues because they are the foundation for phronesis to excel
In addition we analyze the relationship between moral virtue and pleasure for the latter has
an important role in the pursuit of eudaimonia In the third chapter we deal with the
intellectual virtue of prudence We examine its characteristics its parts whats is its
development and how it acts with reality We try to understand what is deliberation
(bouleusij and choice (proairesij) just as we study what are the three minor intellectual
virtues good deliberation (eu0bolia) intelligence (sunesij) and judgment (gnwmn)
Keywords Aristotle Prudence Moral Virtues Happiness Good
SUMAacuteRIO
RESUMO i
SUMAacuteRIOhellipii
INTRODUCcedilAtildeOhellipp 03
CAPIacuteTULO I ndash O BEM HUMANO E A EUDAIMONIAp 07
11 O CONCEITO DE BEMp 08
12 UMA POSSIacuteVEL FALAacuteCIA ARISTOTEacuteLICAp 14
13 FIM DOMINANTE OU INCLUSIVOp 19
14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
15 A EUDAIMONIA E TIPOS DE VIDAp 28
16 O ACASO NA VIDA HUMANAp 34
CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
21 DEFINICcedilAtildeO DAS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 38
22 A EDUCACcedilAtildeO DOS PRAZERES E AS VIRTUDES MORAIShelliphellipp 40
23 PRAZER E APERFEICcedilOAMENTO DE UMA ATIVIDADEhellipp 45
24 O HOMEM VIRTUOSOhelliphelliphelliphelliphelliphellipp 47
25 AS VIRTUDES MORAIS COMO MEDIANIAhelliphelliphelliphelliphellipp 49
CAPIacuteTULO III ndash A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICOhelliphelliphellipp 56
31 LINHAS GERAIS ACERCA DA PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphellipp 57
32 O CONCEITO DE PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 62
33 A RETA RAZAtildeO (o0rqoj logoj) E A EXPERIEcircNCIA (e0mpeiria)helliphelliphelliphelliphellipp 70
34 DESEJO (o1recij) DELIBERACcedilAtildeO (bouleusij E ESCOLHA (proairesij)hellipp 75
35 AS TREcircS VIRTUDES INTELECTUAIS MENORES BOA DELIBERACcedilAtildeO
(eu0boulia) INTELIGEcircNCIA (sunesij) PONDERACcedilAtildeO (gnwmh)helliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 82
36 A RAZAtildeO INTUITIVA (nou~j) E A PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 90
37 PRUDEcircNCIA VIRTUDES MORAIS E EUDAIMONIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 93
CONCLUSAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 96
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICASp 100
3
INTRODUCcedilAtildeO
No contexto da poacutes-modernidade a reflexatildeo eacutetica parece enfrentar um paradoxo Por um
lado a praacutetica social juriacutedica e poliacutetica bem como diversos setores da sociedade natildeo cessam de
clamar pelo valor da pessoa humana e seus direitos que se apresentam como norte da rota de
desenvolvimento civilizatoacuterio do Ocidente nesse momento da histoacuteria Todavia noutro sentido a
especulaccedilatildeo filosoacutefica parece cada vez menos propensa a adotar como paracircmetro a ideia de um
normativo moral calcado em determinadas regras de conduta generalizantes e universais e de certo
modo caracterizadas por uma rigidez que exigem uma conduta pautada principalmente pela noccedilatildeo
de dever
Essa desconfianccedila pode ter surgido a partir da experiecircncia dramaacutetica dos seacuteculos passados
nos quais alguns paradigmas ideoloacutegicos podem ter servido como molde para trageacutedias em larga
escala exigindo uma premente reflexatildeo acerca dos modelos intelectuais que tinham fundamentado
diretamente ou pelo menos tornado possiacuteveis alguns flagelos1
As circunstacircncias individuais e coletivas trazem uma enorme variedade de caminhos e
opccedilotildees a serem escolhidas e assumidas nas suas consequecircncias Nesse contexto a pergunta ldquoO que
eacute o melhor a ser feito diante dessa ou daquela situaccedilatildeordquo se impotildee de forma quase natural a cada
indiviacuteduo A virtude da prudecircncia fornece em Aristoacuteteles a medida adequada para que exista uma
accedilatildeo virtuosa diante das circunstacircncias Outro fato relacionado ao exerciacutecio da prudecircncia eacute que ela eacute
necessaacuteria para escolher corretamente os melhores meios para alcanccedilar os objetivos escolhidos
defronte as circunstacircncias que envolvem cada pessoa Essa eleiccedilatildeo dos meios deve ter como criteacuterio
a retidatildeo de comportamento2 Logo o homem prudente tambeacutem deve ser um indiviacuteduo que pratique
as virtudes morais
A phronecircsis eacute uma virtude de extrema importacircncia na consecuccedilatildeo do bem pois eacute ela que
auxilia o indiviacuteduo a tomar a melhor decisatildeo e por isso a agir da melhor maneira diante das
circunstacircncias Observa-se que eacute intriacutenseca a esta virtude a correta decisatildeo tomada e
operacionalizada no tempo correto Natildeo basta ao homem prudente discernir corretamente o que
fazer nas situaccedilotildees concretas Tambeacutem deve realizar a accedilatildeo preocupando-se com o kairoacutes
(kair joacutej ) ou seja o momento oportuno Assim a prudecircncia acarreta uma accedilatildeo virtuosa do
1 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo DiscursoEditorial Paulus 2008 p 72 Cf EacuteN 1143a 25-27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheimda versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de Eudoro de SouzaSeleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 112 (Col Os Pensadores)
4
indiviacuteduo na temporalidade a qual carrega consigo o contingencial o incerto onde estatildeo inseridos
os indiviacuteduos
O conceito de phronecircsis recorda que a busca pela vida feliz se encontra em bens factiacuteveis
dentro das peculiaridades humanas inseridas em um mundo imprevisiacutevel e marcado por diversas
contingecircncias Ao considerar a natureza humana com suas forccedilas e suas fraquezas a histoacuteria
mostra que eacute a virtude da prudecircncia juntamente com as virtudes morais que evitam a hybris
(u3brij) ou seja a desmesura Esse excesso ocasiona o apego exagerado agraves paixotildees o desprezo
pelos outros e que culmina em uma arrogacircncia absoluta do indiviacuteduo
O presente trabalho visa estudar a compreensatildeo da ideia de phronecircsis e sua importacircncia
dentro do sistema eacutetico aristoteacutelico caracterizado pela busca da eudaimonia por meio das virtudes
morais e intelectuais Eacute utilizada a Eacutetica a Nicocircmaco como base principal para o entendimento da
phronecircsis No entanto natildeo seratildeo desprezadas as demais obras de eacutetica como Eacutetica a Eudemo e
Magna Moralia podendo serem trazidas agrave luz como auxiacutelio a compreensatildeo da visatildeo eacutetica
aristoteacutelica
No primeiro capiacutetulo seraacute tratada a teoria geral do bem proposta na Eacutetica a Nicocircmaco a
partir da qual o estagirita realiza uma anaacutelise sobre o que significa o conceito de bem e como a ideia
de bem identifica-se com a finalidade das coisas Satildeo estudados os tipos de bens e qual o melhor
bem a ser conquistado Agrave luz desta anaacutelise eacute descrita a via mais efetiva para alcanccedilar este bem
considerado o mais perfeito de todos que eacute identificado com a eudaimonia Seratildeo abordadas duas
controvertidas questotildees acerca da eacutetica aristoteacutelica A primeira questatildeo versa sobre a possibilidade
de Aristoacuteteles ter cometido uma falaacutecia loacutegica ao expor o argumento sobre o Supremo Bem A
segunda questatildeo pergunta se o Supremo Bem deve ser entendido como um fim dominante ou um
fim inclusivo Em outros termos vemos se a eudaimonia se caracteriza somente por conter um
uacutenico bem superior a todos os demais bens ou se eacute composta por vaacuterios bens reunidos em um
conjunto Outro assunto tratado neste capiacutetulo diz respeito as caracteriacutesticas do Supremo Bem que
satildeo a autossuficiecircncia e a completude Outra anaacutelise a ser realizada eacute sobre a funccedilatildeo proacutepria dos
seres Esta funccedilatildeo consiste em cada ser possuir uma funccedilatildeo que lhe eacute particular pois eacute resultado da
finalidade para a qual fora criada Neste sentido a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada pela
racionalidade sendo necessaacuteria para a construccedilatildeo de uma vida feliz na perspectiva aristoteacutelica A
partir da identificaccedilatildeo do supremo bem com a felicidade passa-se a verificar qual eacute o tipo de vida
que conduz o homem agrave vida feliz Portanto neste primeiro capiacutetulo procuramos clarificar o
conceito de eudaimonia e saber porque eacute o elemento chave para a eacutetica aristoteacutelica visto que todos
os esforccedilos do homem virtuoso tendem para ela
5
No segundo capiacutetulo adentramos na divisatildeo das virtudes morais e intelectuais e vemos como
se relacionam frente agrave conduta humana e no processo decisoacuterio perante o mundo contingente Como
Aristoacuteteles claramente assinala que as virtudes satildeo essenciais para o alcance da eudaimonia eacute
necessaacuterio o estudo da natureza das virtudes morais e como contribuem para o desenvolvimento e a
correta aplicaccedilatildeo da phronecircsis Destacar-se-aacute uma atenccedilatildeo agraves virtudes morais uma vez que estas
dizem respeito a uma reta orientaccedilatildeo dos desejos e como esta moldagem dos anseios e dos prazeres
a serem buscados promovem um alicerce para o cultivo da virtude intelectual da prudecircncia Os
prazeres e as dores satildeo intrinsecamente ligados agrave natureza humana e agraves accedilotildees do indiviacuteduo O ser
humano busca o prazer e procura se afastar da dor Diante deste quadro eacute de grande importacircncia na
eacutetica aristoteacutelica o indiviacuteduo aprender a fundamentar sua conduta moral em prazeres provenientes
de accedilotildees nobres Pois o homem virtuoso tambeacutem sente prazer na retidatildeo moral Tambeacutem seraacute
abordada uma caracteriacutestica essencial das virtudes a mediania ou o meio-termo O conceito de
mediania eacute um pressuposto importante no contexto da eacutetica aristoteacutelica Por isso eacute necessaacuteria a
compreensatildeo do que seja ela e seu viacutenculo com as virtudes morais Estas satildeo intimamente ligadas agrave
virtude intelectual da prudecircncia Ocorre um processo simultacircneo A praacutetica das virtudes morais
prepara o exerciacutecio da prudecircncia natildeo permitindo que o indiviacuteduo cometa viacutecios por excessos ou por
insuficiecircncias e esta virtude intelectual fornece os melhores meios para alcanccedilar a accedilatildeo virtuosa
Essa relaccedilatildeo eacute descrita por Aristoacuteteles ao assinalar a figura do spoudaios (σπουδαῖος) como modelo
de homens de virtude Em suma o segundo capiacutetulo versaraacute principalmente sobre como as
virtudes morais e intelectuais satildeo imperativas para que o indiviacuteduo alcance uma vida feliz
No terceiro capiacutetulo seraacute feita a anaacutelise da proacutepria virtude da phronecircsis enquanto virtude
intelectual mas que objetiva um conhecimento praacutetico A sua funccedilatildeo primordial eacute de efetivar a
melhor decisatildeo possiacutevel a ser tomada pelo indiviacuteduo defronte agraves inuacutemeras circunstacircncias
encontradas Analisaremos a natureza da virtude da phronecircsis de que maneira esta virtude
intelectual se relaciona com as demais virtudes morais e como ela se desenvolve em vista de um
aperfeiccediloamento do indiviacuteduo Pois a phronecircsis eacute um dos pilares para a aquisiccedilatildeo e correta praacutetica
das demais virtudes morais As virtudes morais propiciam que o indiviacuteduo possa progredir na
praacutetica da virtude intelectual da prudecircncia Eacute a virtude da prudecircncia somada as virtudes morais que
conferem ldquopeso e medidardquo aos atos do indiviacuteduo e determina sobre o momento correto que estes
atos devem ser realizados para que a accedilatildeo humana possa ser considerada virtuosa Seraacute estudada a
noccedilatildeo de reta razatildeo como guia para as virtudes morais sendo a base da virtude da prudecircncia
Tambeacutem vemos qual o seu papel especiacutefico para alcanccedilar a felicidade Para uma melhor
compreensatildeo da virtude da prudecircncia e das virtudes morais analisaremos a relaccedilatildeo entre desejo
(o2recij) escolha (proairesij) e deliberaccedilatildeo (bouleusij A relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos
6
promove a accedilatildeo virtuosa Veremos como o homem virtuoso que exerce a virtude da prudecircncia em
um grau elevado a ponto de ser considerado como um verdadeiro homem prudente torna-se a
proacutepria medida da phronecircsis Por isto examinaremos o que eacute a reta razatildeo e a sua importacircncia para a
prudecircncia Tambeacutem seraacute visto o papel da experiecircncia no desenvolvimento da prudecircncia Uma vez
que este indiviacuteduo possui tanto as virtudes morais quanto agrave virtude da prudecircncia fortalecida pode
ser estimado como um homem que estaacute proacuteximo de ser plenamente feliz Analisamos as partes
integrantes da prudecircncia que satildeo as trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia)
inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn) Portanto o terceiro capiacutetulo eacute dedicado a examinar a
virtude intelectual da prudecircncia e sua importacircncia para a felicidade
Como objetivo final desta pesquisa esperamos demonstrar como a phronecircsis aristoteacutelica
simultaneamente com as virtudes morais contribui para a correta consecuccedilatildeo de uma accedilatildeo moral
virtuosa dentro da imprevisibilidade e contingecircncia do campo da praacutexis pra~~cij Pois esta virtude
proporciona a correta maneira de agir diante de uma situaccedilatildeo ao estabelecer a medida correta para
todas as accedilotildees virtuosas realizadas pelo indiviacuteduo Portanto a phronecircsis e as virtudes morais
possuem um papel central para que o indiviacuteduo alcance uma vida plena O caminho a ser percorrido
neste estudo acerca da virtude da prudecircncia se inicia na compreensatildeo dos conceitos de bem e
finalidade decorrentes da ideia de funccedilatildeo proacutepria do ser humano A anaacutelise destes trecircs conceitos
conduz ao estudo do Supremo Bem que eacute identificado como sendo a eudaimonia Uma vez que as
virtudes satildeo o meio privilegiado para atingir a felicidade torna-se imperativo o entendimento da
natureza das virtudes morais e intelectual E para compreendecirc-las eacute necessaacuterio compreender o que eacute
a mediania e a reta razatildeo Nesta linha de raciociacutenio demonstraremos a relaccedilatildeo entre as virtudes
morais e a virtude intelectual da prudecircncia e como cada uma contribui para o fortalecimento da
outra Por fim natildeo se pode perder de vista que o escopo desta pesquisa eacute a compreensatildeo da natureza
da virtude intelectual da prudecircncia e como esta virtude auxilia o ser humano na construccedilatildeo de uma
vida feliz
7
CAPIacuteTULO I
O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
A eudaimonia e sua relaccedilatildeo com os conceitos de bem finalidade e funccedilatildeo eacute o objeto de
anaacutelise deste primeiro capiacutetulo O conceito de eudaimonia tradicionalmente entendido como
felicidade vida feliz ou plenitude de vida estaacute condicionado a alguns fatores que satildeo desenvolvidos
ao longo do livro I da Eacutetica a Nicocircmaco Deste modo embora sejam feitas referecircncias aos demais
livros que compotildeem o mencionado tratado de Aristoacuteteles visto que estatildeo em parte interligados
entre si o livro I se constitui como o alicerce principal de estudo deste capiacutetulo
O conceito de bem eacute basilar para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica cunhada por Aristoacuteteles Sua
importacircncia reside no fato do conceito de bem ser identificado com o conceito de fim ou de
finalidade dos seres O conceito de finalidade identifica-se com a ideia de funccedilatildeo proacutepria dos seres
O cumprimento desta funccedilatildeo permite que algo ou algueacutem possa alcanccedilar sua finalidade ou seja
realizar o fim para o qual fora criado
Haacute uma distinccedilatildeo entre os bens existentes natildeo sendo todos equivalentes na valoraccedilatildeo que
lhes eacute conferida o que causa uma diferenciaccedilatildeo no seu grau de importacircncia Esta variedade de bens
acarreta uma variedade de fins sendo os mesmos categorizados como fins definitivos e fins
intermediaacuterios A argumentaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre a existecircncia de uma variedade de fins faz o
filoacutesofo de Estagira afastar-se da tese do seu mestre Platatildeo A tese deste uacuteltimo preconiza a
existecircncia de um uacutenico fim que eacute o Bem em si ao qual participam todas as coisas particulares Para
o Estagirita existem vaacuterios tipos de bens que visam o bem uacuteltimo que eacute a felicidade Diante desta
diferenccedila de concepccedilotildees acerca dos fins veremos as criacuteticas de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave filosofia
platocircnica
A vida feliz eacute o fim uacuteltimo a ser buscado Por isso neste capiacutetulo eacute analisada a natureza da
felicidade e suas propriedades Examinamos sobre quais fundamentos Aristoacuteteles forja sua ideia de
felicidade e qual a causa a considerar como o sumo bem Deste modo estudamos qual eacute o tipo de
vida que melhor corresponde agrave ideia de felicidade na visatildeo aristoteacutelica
8
11 O Conceito de Bem
Aristoacuteteles inaugura o seu tratado Eacutetica a Nicocircmaco com a afirmaccedilatildeo de que todas as
atividades humanas nas quais estatildeo inclusas a arte a inquiriccedilatildeo e as escolhas deliberadas visam um
bem Devido a este fato todas as coisas possuem a capacidade para alcanccedilar o seu proacuteprio bem
Como existem diferentes espeacutecies de artes ciecircncias e accedilotildees cada uma possui um tipo de bem
especiacutefico que eacute caracteriacutestico a partir daquela determinada atividade Deste modo as atividades
possuem finalidades distintas umas das outras como afirma Aristoacuteteles
Admite-se geralmente que toda arte (texnh) e toda investigaccedilatildeo (meqodoj) assimcomo toda accedilatildeo pra~~cije toda escolha (proairesij) tecircm em mira um bemqualquer e por isso foi dito com muito acerto que o bem (ta0gaqon) eacute aquilo aque todas as coisas tendem Mas observa-se entre os fins uma certa diferenccedilaalguns satildeo atividades outros satildeo produtos distintos das atividades que osproduzem Onde existem fins distintos das accedilotildees satildeo eles por natureza maisexcelentes do que estas 3
Aristoacuteteles continua sua anaacutelise acerca do bem percorrendo um caminho de reflexatildeo que se
propotildee em primeiro lugar apreender o conceito de bem e em seguida determinar qual eacute o bem
mais proveitoso e por fim determinar o mais importante a ser buscado pelo ser humano Para
cumprir com o objetivo de sua investigaccedilatildeo o filoacutesofo de Estagira procura analisar que tipo de bem
pode ser considerado como o mais essencial e quais os tipos de vida existentes podem ser
candidatos a serem representantes desta ideia de bem essencial ou o sumo bem Do mesmo modo
estabelece uma reflexatildeo sobre o ponto de vista platocircnico de Bem e como essa concepccedilatildeo estaacute
equivocada natildeo sendo possiacutevel adotaacute-la para alcanccedilar a eudaimonia Tambeacutem procura utilizar o
exemplo das diversas ciecircncias para averiguar como pode ser apreendido este sumo bem Por fim
Aristoacuteteles traccedila quais caracteriacutesticas deve possuir este bem para que possa ser estimado como o
mais essencial ao ser humano
Qual eacute o bem supremo E que espeacutecie de vida deve ser vivida para que o atinjamos
Embora de imediato no Livro I do tratado Eacutetica a Nicocircmaco4 haja uma insinuaccedilatildeo de que a
eudaimonia ou seja a felicidade possa ser este bem supremo Aristoacuteteles natildeo concede de modo
faacutecil o posto de bem supremo agrave eudaimonia Ao contraacuterio procura fundamentar no decorrer dos
capiacutetulos do Livro I porque a felicidade deve ser considerada como o bem supremo E discorre
3 EacuteN I 1094a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 Para fins de abreviaccedilatildeo do tiacutetulo da obra Eacuteticaa Nicocircmaco doravante seraacute utilizada a descriccedilatildeo EacuteN nas notas de rodapeacute4 Cf EacuteN I 1095a 15-20 Ibidem p 11
9
sobre quais satildeo as caracteriacutesticas que uma vida deve possuir para que seja considerada uma vida de
plenitude
Eacute importante perceber que no contexto da Eacutetica a Nicocircmaco a ideia de bem (to a0gaqon)
equivale agrave finalidade ao teacutelos (telojque cada coisa possui em decorrecircncia da sua natureza Cada
arte (texnh) investigaccedilatildeo (meqodoj) ou accedilatildeo pra~~cij possui seu teacutelos especiacutefico Aristoacuteteles cita
que a sauacutede eacute a finalidade da medicina o navio eacute a finalidade da construccedilatildeo naval a vitoacuteria eacute a
finalidade da estrateacutegia a riqueza eacute a finalidade da economia5 Logo isso significa que cada coisa
tem uma finalidade e os fins satildeo fatores determinantes tanto para a compreensatildeo da natureza dos
seres quanto para a das accedilotildees humanas
Assim em que consiste o bem aristoteacutelico Aristoacuteteles defende a tese de que natildeo existe um
uacutenico bem em si mesmo que todas as coisas tendam para este uacutenico Bem Conforme visto
anteriormente seu argumento eacute radicalmente oposto agrave ideia concebida por Platatildeo Para Aristoacuteteles
os bens estatildeo conectados intimamente agrave imensa variedade de seres existentes pois constituem suas
proacuteprias finalidades Cada ser tende para seu fim para seu teacutelos (teloj) especiacutefico O ser humano
tambeacutem possui uma finalidade proacutepria Logo o Supremo Bem deve ser encontrado tendo em vista o
que eacute proacuteprio do ser humano
O Supremo Bem serve como paracircmetro para a vida humana e consequentemente para as
accedilotildees do agente Por isso deve ser factiacutevel de ser alcanccedilado pela accedilatildeo humana E para se constituir
como paracircmetro para a vida humana deve ser absoluto e autossuficiente porque natildeo eacute possiacutevel ser
paracircmetro se natildeo possui estabilidade Eacute neste momento da Eacutetica a Nicocircmaco que Aristoacuteteles
conclui que o Supremo Bem eacute a proacutepria eudaimonia A felicidade eacute o uacutenico bem que possui as
propriedades descritas de ser absoluta e de ser autossuficiente aleacutem de conferir sentido agraves
atividades realizadas ou seja eacute a finalidade uacuteltima da accedilatildeo de cada pessoa6
Ora esse eacute o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade (eu0daimonia)Eacute ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa ao passoque agrave honra ao prazer agrave razatildeo e a todas as virtudes noacutes de fato escolhemos por simesmos (pois ainda que nada resultasse daiacute continuariacuteamos a escolher cada umdeles) mas tambeacutem os escolhemos no interesse da felicidade pensando que aposse deles nos tornaraacute felizes A felicidade todavia ningueacutem a escolhe tendo emvista algum destes nem em geral qualquer coisa que natildeo seja ela proacutepria [] Afelicidade eacute portanto algo absoluto (teleion) e auto-suficiente (au1tarkej) sendotambeacutem a finalidade da accedilatildeo (praktw~~n ou]sa teloj)7
5 Cf EacuteN I 1094a 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 6 A eudaimonia tambeacutem se constitui como criteacuterio para todas as accedilotildees da sociedade poliacutetica A felicidade na poacutelis eacute umdos temas tratados na Poliacutetica Por natildeo ser o escopo do presente trabalho natildeo seraacute visto de forma minuciosa pois aEacutetica a Nicocircmaco natildeo adentra nesta questatildeo de modo direto e aprofundado Mas eacute interessante perceber a iacutentimaconexatildeo entre as accedilotildees de cada agente enquanto cidadatildeo e a forma de conviacutevio em uma poacutelis que eacute analisada porAristoacuteteles no tratado da Poliacutetica7 EacuteN I 1097b 1-7 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15
10
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles continua a exposiccedilatildeo de sua ideia acerca dos bens de cada
arte mas cita que as artes com as caracteriacutesticas intriacutensecas a cada uma delas se subordinam a uma
finalidade uacutenica anaacuteloga agrave fabricaccedilatildeo de utensiacutelios diversos como reacutedeas e selas para a montaria
em cavalos estaacute subordinada agrave arte da equitaccedilatildeo Esta situaccedilatildeo tambeacutem ocorre com as atividades
militares em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia de guerra e assim ocorre com diversas artes que se subordinam a
outras artes Neste caso de subordinaccedilatildeo das artes em relaccedilatildeo a uma determinada arte mais
abrangente conforme os exemplos da equitaccedilatildeo e da estrateacutegia Aristoacuteteles avalia que os fins destas
artes mais abrangentes satildeo mais importantes que os fins das artes subordinadas Isso ocorre porque
os fins das artes principais satildeo os fins almejados enquanto os fins das artes subordinadas tornam-se
apenas meios para a consecuccedilatildeo dos fins principais8
O que estaacute exposto nesta primeira parte do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco eacute a divisatildeo entre
fins (bens) primaacuterios e fins secundaacuterios9 haja vista a multiplicidade de fins em decorrecircncia da
variedade de seres e de accedilotildees A existecircncia desta hierarquia de fins culmina em um fim uacuteltimo que eacute
a eudaimonia Aristoacuteteles assinala que eacute necessaacuterio haver um fim derradeiro porque sem este fim a
sequecircncia de fins seria infinita o que tornaria inuacutetil a busca pela felicidade10
Na Eacutetica a Eudemo Aristoacuteteles descreve em que consiste esta multiplicidade dos bens11 O ser
(to o1n pode ser apreendido sob diversas formas conforme as Categorias12 a substacircncia (ou0sia13
a qualidade (poion a quantidade (poson) o tempo (pote) espaccedilo (pouetc Tendo em vista que
natildeo existe uma ciecircncia uacutenica de todos os seres mas vaacuterias ciecircncias que desvendam os seres dos
entes segue-se que natildeo pode existir um bem uacutenico imediato em relaccedilatildeo a todos dos seres Deste
modo haacute vaacuterios bens tanto quanto existem vaacuterios seres Aristoacuteteles ainda exemplifica os vaacuterios
bens existentes em algumas categorias traccedilando um paralelo entre estas categorias e determinados
8 Cf EacuteN I 1094a 15 Ibidem p 99 No que tange a nomenclatura dos bens (fins) de cada atividade haacute outros termos que podem ser usados para se referira estes fins tais como fins principais fins intermediaacuterios fins preciacutepuos fins subordinados etc Tambeacutem eacute possiacutevelsubstituir o termo ldquobemrdquo ou ldquofimrdquo por ldquofinalidaderdquo Eventualmente todos estes termos seratildeo usados no decorrer dotexto como sinocircnimos A questatildeo essencial eacute a compreensatildeo de que haacute uma relaccedilatildeo de hierarquia entre os fins de cadaarte accedilatildeo ou ciecircncia ou seja dos fins em geral em vistas a um fim mais amplo 10 Cf EacuteN I 1094a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 911 Cf EacuteE I 1217b 27 Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 2015 p 5912 A lista completa de dez categorias eacute descrita por Aristoacuteteles em Categorias 41b 25 2a 1-10 Cf ARISTOacuteTELESOacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas(Seacuterie Claacutessicos Edipro) Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edson Bini Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev 2010 p41-42 13 O termo ousia eacute melhor entendido a partir dos conceitos em latim de essentia substantia Haacute uma diferenccedila entre otermo ousia no qual adota-se a palavra ldquoessecircnciardquo de tograve tiacute esti ( que significa o ldquoser de uma coisarsquo comoldquoessencialidaderdquo ou ldquosubstacircnciardquo Entendemos que os dois termos podem ser utilizados como sinocircnimos para o presenteestudo visto que natildeo eacute o objetivo deste trabalho proceder a uma anaacutelise da filosofia primeira cunhada por AristoacutetelesTambeacutem entendemos que os dois termos conseguem expressar de modo geral a ideia da pergunta ldquoo que eacute istordquoreferindo-se agravequilo que necessariamente eacute e faz um ente ser o que eacute de fato Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles TradRoberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 147
11
predicados relacionados agrave eacutetica Por exemplo o bem eacute predicado de Deus e do intelecto na categoria
de substacircncia na categoria da qualidade eacute o justo na categoria da quantidade eacute a moderaccedilatildeo na
categoria do tempo eacute o momento oportuno14
Ao postular a tese da multiplicidade de bens Aristoacuteteles estabelece uma posiccedilatildeo diferente da
tese defendida por seu mestre e antecessor Platatildeo o qual assevera a existecircncia de uma uacutenica Forma
de Bem Para Platatildeo o Bem em si possui algumas propriedades que o qualificam como o bem
fundamental o Bem pelo qual satildeo subordinados e participam todas as coisas boas As coisas
participam desta Forma de Bem por derivaccedilatildeo pois Esta fornece os atributos necessaacuterios para a
existecircncia e constituiccedilatildeo destes bens derivados15 Esta Forma de Bem eacute imutaacutevel e eterna sua
essecircncia permanece a mesma o que natildeo permite sua alteraccedilatildeo com o tempo Aristoacuteteles assevera
que natildeo eacute possiacutevel existir um uacutenico Bem em si um determinado tipo de bem que seja ldquogeralrdquo para
todos e dissociados dos seres Antes o estagirita afirma que cada ser possui e consequentemente
deseja o bem que lhe eacute especiacutefico pertencente a sua particularidade conforme descrito na Eacutetica a
Eudemo ldquoAdemais a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas existentes desejam um bem uacutenico eacute falsa
cada coisa anseia pelo bem que lhe eacute particular o olho a visatildeo o corpo a sauacutede e analogamente
outros bens []rdquo16 Deste modo a diferenccedila fundamental entre a visatildeo do bem aristoteacutelico e do Bem
platocircnico eacute que Aristoacuteteles advoga a ideia que existe um bem uacuteltimo para qual se dirigem os seres
Enquanto na perspectiva de Platatildeo haacute uma uacutenica Forma de Bem que eacute causa dos outros bens os
quais apenas satildeo bons por participaccedilatildeo e semelhanccedila agravequela Forma17
Na Eacutetica a Nicocircmaco tambeacutem se encontra a criacutetica de Aristoacuteteles agrave doutrina platocircnica da
Forma do Bem e a descriccedilatildeo da tese da pluralidade de bens18 Nesta parte o Estagirita postula que
natildeo pode existir uma uacutenica Forma de Bem pois a proacutepria palavra ldquobemrdquo eacute utilizada para se referir a
diversas categorias A substacircncia significa a proacutepria essecircncia daquilo que eacute o ser da coisa
naturalmente eacute anterior agrave categoria de relaccedilatildeo Sendo assim uma uacutenica Forma natildeo pode abranger
todos estes tipos de bens O termo ldquobemrdquo pode ter diversos significados referentes agrave variedade de
sentidos que comporta o ser Ou seja os bens satildeo pertinentes ao nuacutemero de seres existentes E como
os bens satildeo caracterizados conforme as categorias natildeo eacute possiacutevel que o bem possa ser uniacutevoco e
inteiramente presente em um uacutenico ser Por conseguinte o Bem platocircnico natildeo poderia ser predicado
em cada uma das categorias Como estaacute descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
14 Cf EacuteE I 1217b 16-34 Eacutetica a Eudemo Op cit p 5915 Cf EacuteE I 1217b 1-15 Ibidem p 5716 EacuteE I 1217b 30-33 Ibidem p 5917 Cf EacuteE I 1217b 5-15 Ibidem p 5818 Cf EacuteN1096a 16-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 13
12
Aleacutem disso como a palavra ldquobemrdquo (ta0gaqon) tem tantos sentidos quantos ldquoserrdquo(o1nti) (visto que eacute predicada tanto na categoria de substacircncia como na de Deus(qeoj) e da razatildeo (nou=j) quanto na de qualidade (poiw~~) isto eacute das virtudes(a0retai) na de quantidade (ποσῷ) isto eacute daquilo que eacute moderado (metrion) nade relaccedilatildeo isto eacute do uacutetil (xrhimon) na de tempo (χρόνῳ) isto eacute da oportunidadeapropriada (kairoj) na de espaccedilo (τόπῳ) isto eacute do lugar apropriado etc) estaacuteclaro que o bem natildeo pode ser algo uacutenico e universalmente (kaqolou) presente poisse assim fosse natildeo poderia ser predicado em todas as categorias (kathgoriaj)mas somente numa19
Por este motivo Aristoacuteteles tambeacutem natildeo concorda com que o ldquomelhor bem de todosrdquo possa
ser entendido como um bem uacutenico pois isto seria irrealizaacutevel Para demonstrar a impossibilidade da
existecircncia de um Bem em si para todos os seres o Estagirita utiliza o caso das ciecircncias pois se
houvesse uma uacutenica Forma de Bem deveria existir uma uacutenica ciecircncia de todos os bens A realidade
prova que isso natildeo existe tendo em vista a variedade de ciecircncias que estuda cada tipo de ser20 Uma
ciecircncia especiacutefica natildeo procura um objeto em geral mas um objeto especiacutefico ligado ao seu estudo
conforme exemplifica Aristoacuteteles A medicina busca alcanccedilar a sauacutede natildeo visa alcanccedilar um bem
em geral que sirva como modelo para qualquer outra coisa 21
Para Aristoacuteteles o Supremo Bem tem de ser alcanccedilaacutevel pela accedilatildeo humana A vida feliz estaacute
no acircmbito da praacutexis De modo geral a ideia de praacutexis pode se referir a uma accedilatildeo ligada agrave razatildeo
vinculada a uma conduta a um modo de proceder da pessoa Por isso fala-se em ldquoagenterdquo desta
accedilatildeo pois o agente eacute a pessoa que realiza a accedilatildeo de maneira racional jaacute que um animal tido como
irracional natildeo pode agir no sentido aqui proposto
De tal maneira o Estagirita desfavorece o conceito de um fim que esteja longe da accedilatildeo do
indiviacuteduo que assevera que mesmo que houvesse uma uacutenica Forma de Bem conforme advogava
seu mestre antecessor esta ideia uacutenica de bem de nada serviria para a eacutetica O fim buscado tem de
estar necessariamente ligado agrave accedilatildeo humana Aristoacuteteles eacute expressivo ao afirmar que cada accedilatildeo
cada propoacutesito eacute realizado em funccedilatildeo da finalidade daquela atividade Por isso caso haja uma
finalidade geral (um ldquofim maiorrdquo) a ser buscado pelo agente este bem eacute executaacutevel pela accedilatildeo E se
existir mais de um bem eles devem ser alcanccedilados por meio das accedilotildees humanas22 Portanto sendo
ligado agrave accedilatildeo humana este soberano bem natildeo poderia ser algo inexequiacutevel para os seres humanos
Conforme Aristoacuteteles nos mostra na Eacutetica a Eudemo
19 EacuteN I1096a 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1220 Cf EacuteN I1096a 30 Ibidem p 1321 Cf EacuteE I1218b 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Eudemo Op cit p 61-6222 Cf EacuteN I1097a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 14
13
Fica evidente portanto que o bem em si objeto de nossa busca natildeo eacute a Forma dobem como tambeacutem natildeo eacute o bem como universal (posto que a primeira eacute imutaacutevel einexequiacutevel enquanto o segundo embora mutaacutevel eacute inexequiacutevel) Entretanto oobjeto visado como fim eacute o melhor aleacutem de ser a causa daqueles que lhe estatildeosubordinados e o primeiro de todos os bens esse bem consequentemente seria obem em si ou seja o fim exequiacutevel humano Trata-se do bem que se enquadranaquele que eacute soberana entre todas as ciecircncias [praacuteticas] nomeadamente a poliacuteticaassociada agrave economia e agrave sabedoria praacutetica 23
O Supremo Bem tem de estar ao alcance da realizaccedilatildeo humana Aristoacuteteles ao traccedilar a
criacutetica agrave ideia platocircnica de uma Forma de Bem alega que mesmo que existisse essa forma ideal de
bem ela em nada auxiliaria as atividades humanas Primeiro ela seria inatingiacutevel Segundo ela natildeo
contribuiria em nada para o exerciacutecio de qualquer ofiacutecio Eis o questionamento de Aristoacuteteles acerca
da Forma do Bem em que conhecer a Forma de Bem faria um meacutedico exercer melhor a medicina e
curar seus pacientes Ou em que este conhecimento da Forma de Bem tornaria excelente um
general em estrateacutegias de batalhas levando-o agrave vitoacuteria24 Mesmo que houvesse algueacutem que
argumente que o conhecimento da Forma do Bem auxilie o agente conseguir os bens que podem ser
alcanccedilados pela accedilatildeo pois serve como um paracircmetro o estagirita afirma que este argumento natildeo
procede visto que todas as ciecircncias visam bens especiacuteficos e natildeo um bem geral
Na busca para desvendar em que consiste este ldquobem maiorrdquo em uma perspectiva diferente da
concepccedilatildeo platocircnica Aristoacuteteles cita duas propriedades A primeira eacute que este tipo de bem deve ser
absoluto completo acabado (τέλειον25 O conceito de completo significa que este bem natildeo eacute
buscado como intermediaacuterio para alcanccedilar outro bem O ldquobem maiorrdquo eacute procurado como um fim em
si mesmo natildeo sendo condiccedilatildeo para qualquer outro tipo de fim Ou seja este bem tem de ser
incondicional e final e natildeo pode ser um bem intermediaacuterio A segunda propriedade deste bem eacute a de
ser autossuficiente A autossuficiecircncia (αὐτάρκειαdo ldquobem maiorrdquo consiste em prover somente
por si mesmo uma vida agradaacutevel e que natildeo falte nada26 Mas esta autossuficiecircncia natildeo pode ser
entendida sob um prisma individual como se o indiviacuteduo natildeo dependesse de nada ou de ningueacutem
Ao contraacuterio a autarkeia deve ser compreendida a partir de um prisma coletivo Esta perspectiva
23 EacuteE I 1218b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 6224 Cf EacuteN I 1097a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1425 Na Metafiacutesica 1021b 30 o termo teacuteleion eacute descrito do seguinte modo ldquoPortanto as coisas como se dizem perfeitaspor si em todos esses sentidos algumas porque relativamente a seu bem natildeo carecem de nada ou natildeo satildeo superadospor outras e natildeo tecircm nenhuma de suas partes fora de si outras em geral porque natildeo satildeo superadas por outra e natildeo tecircmnenhuma parte fora de si no acircmbito do seu gecircnerordquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego comtraduccedilatildeo e comentaacuterios de Giovanni Reale) Vol II Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ed 2005p 24126 Cf EacuteN I 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 15
14
comunitaacuteria eacute perceptiacutevel quando Aristoacuteteles remete ao fato que deve ser observada a suficiecircncia
em funccedilatildeo tambeacutem dos pais esposa amigos e cidadatildeos da poacutelis27
Ao considerarmos a relaccedilatildeo entre fins preciacutepuos que satildeo buscados em si mesmos e fins
subordinados de caraacuteter instrumental que servem como fins para alcanccedilar um fim maior essa
relaccedilatildeo de hierarquia traz alguns questionamentos a serem considerados De modo sucinto
expomos estes questionamentos uma vez que estatildeo inseridas na histoacuteria dos estudos acerca da eacutetica
aristoteacutelica A primeira questatildeo versa acerca da possibilidade de Aristoacuteteles ter cometido uma
falaacutecia chamada de ldquomenino e meninardquo A segunda questatildeo diz respeito ao bem supremo ser
compreendido como um fim dominante ou um fim inclusivo
12 Uma possiacutevel falaacutecia aristoteacutelica
A ideia de um fim uacuteltimo a ser alcanccedilado por meio de fins instrumentais eacute posta por
Aristoacuteteles no iniacutecio Eacutetica a Nicocircmaco A forma que eacute descrita esta relaccedilatildeo no tratado aristoteacutelico
entre o Supremo Bem que eacute buscado por si proacuteprio e demais fins que satildeo subordinados a ele gerou
o debate apresentado neste toacutepico Sobre o tema se Aristoacuteteles cometeu ou natildeo a falaacutecia
argumentativa sobre o argumento do fim expomos as perspectivas de Peter Thomas Geach e Peter
Vranas O primeiro considera que o estagirita incorreu em uma falaacutecia o segundo defende a ideia
que natildeo foi cometida nenhuma falaacutecia no argumento aristoteacutelico Neste sentido segue o trecho a ser
comentado
Se pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo etudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisadesejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito einuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem ou antes osumo bem28
27 Cf EacuteN I 1097b 10-13 Ibidem p 15 Entendemos tambeacutem que a ideia de autossuficiecircncia natildeo pode sercompreendida somente de modo individual tendo em vista o fato que o conceito de autarkeia tambeacutem eacute fundamentalpara a concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo poliacutetica da Cidade-estado grega Uma vez que a poacutelis eacute construiacuteda com a finalidade deser autocircnoma com todos os meios de prover a si proacutepria e propiciar o melhor ambiente para que os cidadatildeos alcancemuma vida feliz Conforme Aristoacuteteles aponta na obra Poliacutetica I 1252b 30-1253a 1-5 a vida feliz eacute a finalidade naturalda comunidade poliacutetica e todo ser estaacute plenamente integrado na natureza quando atinge seu pleno desenvolvimento ouseja estaacute completo com perfeiccedilatildeo Deste modo uma vez que o ser humano possui uma natureza social ela somente serealiza plenamente no contexto da poacutelis Outro fator que consideramos que a autossuficiecircncia eacute compreendida dentro deuma visatildeo coletiva refere-se agrave virtude da justiccedila De acordo com o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco V 1130a 1-5 elasomente pode ser exercida dentro de uma sociedade pois visa o bem alheio Eacute uma virtude que natildeo pode ser praticadade modo solitaacuterio pelo agente mas deve realizaacute-la em funccedilatildeo dos outros Disto decorre que a vida feliz de um indiviacuteduotambeacutem estaacute em parte relacionada agrave felicidade das pessoas que o cercam de modo mais proacuteximo e da comunidade emgeral 28 EacuteN I 1094a 18-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 9
15
Assim sendo abordemos a questatildeo da dita falaacutecia aristoteacutelica Segundo o comentador
Geach29 seria um erro de loacutegica formal Eacute perceptiacutevel que existe uma diferenccedila entre as expressotildees
(i)Todo menino ama alguma meninardquo e (ii) ldquoHaacute alguma menina que todo menino amardquo30 Se
tomarmos a expressatildeo ldquoTodo menino ama alguma meninardquo natildeo eacute possiacutevel inferir que ldquoHaacute alguma
menina que todo menino amardquo sem fazer uma falaacutecia Ou seja (i) natildeo implica em (ii)
Agrave luz do exemplo de Geach o deslize argumentativo manifesta-se no fato de afirmar que
Todo menino ama alguma meninardquo natildeo implica necessariamente que exista alguma menina ou
seja uma uacutenica menina que todo menino ama Em termos teacutecnicos da loacutegica moderna a falaacutecia
cometida por Aristoacuteteles eacute denominada como uma falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores31
Na falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores eacute realizada uma passagem interdita entre um
conjunto de relaccedilotildees dispersas32 de fins para um conjunto de relaccedilotildees convergentes33 para um uacutenico
fim Isso se traduz da seguinte forma Se imaginarmos um conjunto de meninas e um outro conjunto
de meninos com o mesmo nuacutemero de elementos em cada conjunto Uma primeira possibilidade de
interaccedilatildeo entre os elementos de cada grupo seria cada rapaz amar uma garota que nenhum outro
garoto do grupo dos meninos ame tambeacutem Neste caso os dois conjuntos estatildeo dispersos natildeo haacute
uma convergecircncia entre os elementos dos respectivos grupos devido ao fato que um garoto
somente ama uma garota Na segunda possibilidade todos os garotos amam uma exclusiva e mesma
garota entatildeo existe uma convergecircncia total de todos os elementos do conjunto dos meninos
direcionados para uma uacutenica garota do grupo das meninas34 Deste modo essa inversatildeo de
quantificadores aplicada ao argumento aristoteacutelico significa afirmar que podem haver diferentes fins
a serem buscados tendo em vista a variedade de coisas e desejos humanos Eacute o caso mesmo que
natildeo desejemos uma seacuterie infinita de coisas a serem buscadas com vistas em outra pois este fato
acarreta uma seacuterie infinita de desejos Isto natildeo implica necessariamente que exista um uacutenico e
melhor fim que desejemos e todos os outros fins sejam buscados em funccedilatildeo dele
Eacute preciso observar no caso em questatildeo que Geach natildeo analisa especificamente agrave Eacutetica a
Nicocircmaco e nem o argumento aristoteacutelico por si mesmo Ele apenas o utiliza como exemplo
29 Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972 p 1-1330 No dizer de Geach ldquoAnybody can see that from lsquoEvery boy loves some girlrsquo we cannot infer lsquoThere is some girl thatevery boy lovesrsquo that from lsquoIt is obligatory that somebody should gorsquo it does not follow that lsquoThere is somebody who itis obligatory should gorsquo[] rdquo Ibidem p 131ldquoOperator-shift fallacy ldquoou ldquoquantifier-shift fallacyrdquo Cf Ibidem p 132 A dispersatildeo significa que cada elemento pertencente a um grupo x busca os outros elementos do grupo y Natildeo existea busca dos elementos do grupo x para um uacutenico elemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees dispersassignificam que todos os garotos buscam todas as garotas Ou seja cada garoto procura conquistar a sua garota Natildeo haacuteuma busca do grupo dos garotos para alcanccedilar uma uacutenica e mesma garota 33 A convergecircncia significa a orientaccedilatildeo para um mesmo objetivo Todos os elementos do grupo x buscam um uacutenicoelemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees convergentes significam que todos os garotos convergem ouseja todos se orientam para buscar uma uacutenica e mesma garota34 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia aristoteacutelica Tese deDoutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas p 78
16
juntamente com trechos de escritos de outros filoacutesofos famosos35 para demonstrar os requisitos
necessaacuterios de uma teoria da quantificaccedilatildeo na loacutegica moderna E tambeacutem utiliza estes escritos para
mostrar como pode ser uma ocorrecircncia comum cometer este tipo de falaacutecia de inversatildeo de
quantificadores36
A questatildeo da validade loacutegica expressa no referido trecho da Eacutetica a Nicocircmaco citado acima
natildeo eacute o escopo principal deste trabalho Mas eacute interessante apontar de maneira miacutenima um
possiacutevel caminho de superaccedilatildeo que este impasse trouxe agrave leitura do argumento aristoteacutelico haja
vista ser um dos argumentos centrais acerca da eudaimonia pois ela eacute o fim que natildeo se busca leva a
nenhum outro Para tanto seguimos dois enfoques descritos a seguir
Na primeira abordagem consideremos somente o aspecto da validade formal do argumento
aristoteacutelico Um possiacutevel caminho eacute realizar uma interpretaccedilatildeo do argumento aristoteacutelico que una as
proposiccedilotildees (a) ldquoSe pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo
e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim [] rdquo e (b) ldquo[]se eacute verdade que nem toda coisa
desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo
seria o nosso desejar) []rdquo como duas premissas que fundamentam a conclusatildeo (c) ldquo[] tal fim
seraacute o bem ou antes o sumo bemrdquo Isso eacute possiacutevel devido a utilizaccedilatildeo do termo ldquoerdquo (kai)37 no texto
aristoteacutelico que introduz a proposiccedilatildeo (a) e faz a ligaccedilatildeo com a proposiccedilatildeo (b) Logo haacute uma
indicaccedilatildeo hipoteacutetica da existecircncia de um fim desejado por si um fim uacuteltimo (fim universal) que
subordina os demais fins que satildeo instrumentais
Esta interpretaccedilatildeo literal do argumento aristoteacutelico eacute defendida por Peter Vranas38 que
retoma a mesma linha de raciociacutenio anteriormente defendida por Michael Wendin39 segundo a qual
Aristoacuteteles natildeo cometeu uma falaacutecia E natildeo incorreu em uma falaacutecia porque as duas proposiccedilotildees (a)
e (b) devem ser entendidas como uma conjunccedilatildeo No entender de Vranas caso consideremos que
existam dois fins uacuteltimos implicados se (a) eacute um fim universal e (b) eacute um fim natildeo-instrumental
procede que existe um uacutenico fim natildeo-instrumental40 que eacute equivalente a um fim uacutenico universal41
Logo esta conjunccedilatildeo implica que o fim proposto por Aristoacuteteles eacute um fim de caraacuteter natildeo-
instrumental o que significa que eacute um fim uacutenico universal42
35 Geach utiliza trechos de obras de Platatildeo Berkeley Spinoza Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Op cit p 2-536 Ibidem p 237 A junccedilatildeo das duas proposiccedilotildees eacute admissiacutevel tendo em vista o uso do termo καί que eacute o equivalente na liacutenguaportuguesa agrave conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo38 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo Phronesis Vol 50Nordm 2 2005 p 116-128 39 Cf WEDIN M ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981 p243-262 40 Fim natildeo-instrumental significa que este natildeo eacute perseguido por causa de nenhum outro fim41 Fim uacutenico universal equivale ao fim uacuteltimo42 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best goodrdquo Op cit p 118
17
Nesta linha de raciociacutenio caso as proposiccedilotildees (a) e (b) sejam verdadeiras sendo (a) um fim
uacutenico universal todos os outros fins tornam-se intermediaacuterios (fins ldquoxrdquo) instrumentos para alcanccedilar
(a) Inclusive o fim (b) assume nesta hipoacutetese um caraacuteter instrumental Mas a situaccedilatildeo pode ser
invertida pois caso (b) seja o fim a ser buscado torna-se o fim uacutenico universal com os fins
intermediaacuterios (fins ldquoyrdquo) como instrumentos para alcanccedilar (b) Neste caso (a) passa a ser
instrumental Portanto mesmo que um indiviacuteduo siga qualquer um dos fins (a) ou (b) como estatildeo
mutuamente relacionados entre si de todos os modos sua busca recai sobre o fim uacutenico universal43
A interpretaccedilatildeo de Vranas eacute interessante do ponto de vista da loacutegica formal e tenta inocentar
Aristoacuteteles de ter cometido a mencionada falaacutecia Este esforccedilo possui o seu meacuterito tendo em vista
ser uma denuacutencia que tem durado ao longo do tempo e defendida por diversos estudiosos da obra do
Estagirita Ainda assim haacute em nosso entender uma fragilidade no argumento exposto pelo citado
comentador A interpretaccedilatildeo literal estaacute baseada em uma leitura que aparentemente procura forccedilar
um limite de explicaccedilatildeo que natildeo encontra respaldo no texto aristoteacutelico Ao considerar o tratado da
Eacutetica a Nicocircmaco como um todo natildeo nos parece que haja dois fins uacuteltimos um de caraacuteter universal
e outro natildeo-instrumental de que possuam relaccedilotildees reciacuteprocas entre si Este fim universal e uacutenico eacute
asseverado pelo Estagirita quando afirma a existecircncia de apenas um fim absoluto e incondicional
Se porventura existir mais de um fim o mais absoluto de todos torna-se o objetivo a ser alcanccedilado
Este fim absoluto e incondicional eacute a proacutepria eudaimonia visto que todos os outros fins
intermediaacuterios satildeo buscados como meios para alcanccedilar uma vida feliz44 Assim sendo o texto de
Aristoacuteteles leva ao entendimento que exista somente um fim que eacute universal e uacutenico e os demais
fins possuem um caraacuteter instrumental de subordinaccedilatildeo a este fim universal
Em relaccedilatildeo ao argumento de Geach no qual ele afirma que natildeo eacute possiacutevel inferir a partir da
proposiccedilatildeo Todo menino ama alguma meninardquo que exista ldquoHaacute alguma menina que todo menino
amardquo O problema eacute que esta afirmaccedilatildeo natildeo considera a questatildeo da hierarquia de fins mencionada
no texto aristoteacutelico Ao desconsiderar esta hierarquia de fins haacute a eliminaccedilatildeo de qualquer
possibilidade de convergecircncia entre o Sumo Bem e outros fins A hierarquia entre fins subordinados
e os fins principais das variadas artes ciecircncias e atividades eacute descrita por Aristoacuteteles ao enumerar
alguns exemplos o fim da arte meacutedica eacute a sauacutede o fim da construccedilatildeo naval eacute a fabricaccedilatildeo do navio
o fim da estrateacutegia eacute a vitoacuteria o fim da economia eacute a riqueza o fim da selaria eacute a equitaccedilatildeo Os fins
uacuteltimos de cada arte satildeo preferiacuteveis por serem mais importantes por isso devem ser buscados por
meio dos fins subordinados45 O texto aristoteacutelico eacute claro ao afirmar a existecircncia de uma hierarquia
de fins em si que se encaminha agravequele fim uacuteltimo que eacute perseguido por todo ser humano em sua
43 Ibid p 11944 Cf EacuteN 1097a 25-30 a 1097b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1545 Cf EacuteN 1094a 7-15 Ibidem p 9
18
vida Eacute um raciociacutenio de cunho arquitetocircnico o qual mostra que os vaacuterios fins subordinados satildeo
etapas para alcanccedilar o fim uacuteltimo de determinada arte Deste modo como o objeto da eacutetica
aristoteacutelica eacute a felicidade humana Aristoacuteteles descreve a ldquoarquiteturardquo de construccedilatildeo de uma vida
feliz na qual cada fim eacute buscado com vistas a alcanccedilar esta plena realizaccedilatildeo que eacute a felicidade (fim
supremo)
O argumento de Geach parece natildeo contemplar esta arquitetura proveniente desta
convergecircncia do fim uacuteltimo e os fins subordinados Para uma melhor compreensatildeo desta
convergecircncia dos diversos fins um bom exemplo seria pensar em uma bacia hidrograacutefica46 Existem
rios secundaacuterios que satildeo diferentes entre si cada um com sua foz individual mas todos convergem
para o rio principal que desemboca no mar ou em um lago Cada rio secundaacuterio converge para um
fim maior mais abrangente que eacute o rio principal que desemboca no mar ou no lago que neste caso
representa o fim supremo Tal como a medicina busca a sauacutede a estrateacutegia busca agrave vitoacuteria agrave selaria
busca a equitaccedilatildeo etc e todas satildeo realizadas em vista da eudaimonia Logo a rede hidrograacutefica
como um todo eacute convergente e natildeo somente um uacutenico rio
A segunda abordagem visa examinar o domiacutenio referencial no qual o argumento aristoteacutelico
estaacute fundamentado em um aspecto praacutetico ou teoacuterico Para esta linha de pensamento a referecircncia
principal do argumento aristoteacutelico se encontra no universo da accedilatildeo O raciociacutenio do fim uacuteltimo
pode ser analisado sob dois prismas e cada um deles conduz agrave uma conclusatildeo diferente O primeiro
prisma eacute o de validade loacutegica o qual descrevemos acima ao examinar a criacutetica de Geach ao texto
aristoteacutelico O segundo prisma eacute analisar o argumento aristoteacutelico inserido no campo das accedilotildees
humanas Caso o argumento aristoteacutelico seja examinado sob o ponto de vista da loacutegica formal
apenas resta tentar estabelecer formas de evitar o julgamento de Geach por meio dos instrumentos
cabiacuteveis da loacutegica formal ou simplesmente aceitar o fato que houve o cometimento de uma falaacutecia
pelo Filoacutesofo Mas caso seja escolhido o prisma referencial que coloca o argumento aristoteacutelico no
acircmbito da praacutexis humana talvez seja possiacutevel sobrepujar o desafio imposto por Geach Portanto
procederemos agrave anaacutelise do argumento aristoteacutelico sob a oacutetica da dimensatildeo praacutetica
O domiacutenio referencial no qual se insere o argumento aristoteacutelico eacute a accedilatildeo humana Natildeo se
trata somente de considerar a validade loacutegica das proposiccedilotildees como verdadeiras ou falsas mas
tambeacutem como devem ser entendidos conceitos importantes para a anaacutelise da conduta dos
indiviacuteduos tais como a felicidade o bem humano as virtudes etc Neste sentido haacute um
deslocamento para o domiacutenio praacutetico do argumento aristoteacutelico evitando seu uso somente no
domiacutenio teoacuterico no qual Geach realiza sua anaacutelise O domiacutenio teoacuterico e o domiacutenio praacutetico satildeo
compreendidos a partir da conceituaccedilatildeo de Aristoacuteteles O aspecto teoacuterico desenvolve as operaccedilotildees
46 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Op cit p 89
19
intelectuais da bios theorethikoacutes da verdade e da falsidade dos postulados do raciociacutenio47 enquanto
o aspecto praacutetico tem por objeto natildeo somente a validade das proposiccedilotildees mas orientar a conduta do
homem em funccedilatildeo da verdade Logo este uacuteltimo aspecto cuida para que a verdade permaneccedila em
concordacircncia com a retidatildeo no desejo e possa orientar a racionalidade praacutetica para a consecuccedilatildeo de
um fim nobre48
13 Fim dominante ou fim inclusivo
Neste ponto pode surgir um questionamento acerca da relaccedilatildeo entre fins e o supremo bem
uma vez que possa haver uma convergecircncia entre fins em prol de um fim supremo Quais fins
devem ser buscados pelo indiviacuteduo para que atinja uma vida feliz A resposta a esta pergunta
inspira duas perspectivas diferentes sobre o Supremo Bem e qual eacute a sua relaccedilatildeo com os fins
subordinados a ele Neste sentido existem duas visotildees sobre o Supremo Bem A primeira eacute vista
sob o prisma de um fim uacuteltimo dominante a segunda como um fim uacuteltimo inclusivo Deste modo
abordaremos estes dois pontos de vista acerca deste Bem maior
Uma vez que o sumo bem eacute a eudaimonia esta eacute identificada com a vida teoacuterico-
contemplativa ou pelo menos haacute uma grande ecircnfase neste tipo de vida como sendo uma vida
feliz49 Logo a pergunta central eacute saber se a vida feliz eacute somente caracterizada pela contemplaccedilatildeo
ou tambeacutem inclui outros tipos de bens
Na anaacutelise acerca do fim aristoteacutelico ser dominante ou inclusivo os principais estudiosos satildeo
William Francis Ross Hardie e John Lloyd Ackrill O primeiro comentador W F R Hardie defende
o ponto de vista de um fim dominante Enquanto o segundo estudioso advoga que o fim descrito por
Aristoacuteteles deve ser observado a partir de uma perspectiva inclusivista
No caminho de anaacutelise acerca da eudaimonia ser um fim dominante ou inclusivo WFR
Hardie50 iniciou esta discussatildeo ao afirmar que existiria uma falta de precisatildeo de Aristoacuteteles ao expor
o argumento que a eudaimonia eacute o fim uacuteltimo a ser alcanccedilado pelos indiviacuteduos Esta imprecisatildeo eacute
causada pelo fato do Estagirita natildeo ter explicitado de modo claro e contundente que espeacutecie de fim
uacuteltimo eacute o Supremo Bem A insuficiecircncia na explicaccedilatildeo aristoteacutelica permite a especulaccedilatildeo sob qual
prisma deve ser entendido o Bem maior como fim dominante ou inclusivo A desordem reside no
seguinte ponto Ao buscar a felicidade os indiviacuteduos elaboram o seu planejamento de vida que
inclui alcanccedilar determinados fins para satisfazer desejos que os levaratildeo a ter uma vida feliz Ao
47Cf EacuteN VI 1139a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10248Cf EacuteN VI 1139a 35-1139b 4 Ibidem p 10249Cf EacuteN X 1177a 11-15 ndash 1178a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 188-18950Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacuteticanicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
20
fazer este planejamento a duacutevida recai sobre qual eacute a ecircnfase colocada em um determinado fim para
que este se torne o seu fim predominante para que este fim se transforme no eixo central da vida
Este eixo central que eacute um objeto uacutenico desejado na vida do indiviacuteduo pode ser a riqueza a fama
a ciecircncia para ficarmos com alguns exemplos citados na Eacutetica a Nicocircmaco Ao planejar sua vida
qualquer indiviacuteduo sabe que possui variados interesses e desejos Percebe que alguns desejos satildeo
mais importantes que outros Ou percebe que alguns desejos satildeo mais difiacuteceis de serem realizados
enquanto outros satildeo mais faacuteceis E que a busca de um desejo escolhido pode auxiliar atrapalhar ou
tornar irrealizaacutevel a satisfaccedilatildeo de outros desejos Desta forma o indiviacuteduo que reflete acerca dos
seus desejos dentro do seu plano de vida procura traccedilar um caminho que permita a conquista do
modo mais completo possiacutevel dos desejos elencados como os mais importantes e satisfatoacuterios Sob
esta perspectiva o desejo pela felicidade consiste em satisfazer vaacuterios desejos de maneira
harmoniosa e ordenada
Na compreensatildeo de Hardie51 a concepccedilatildeo de fim inclusivo como sendo um conjunto de
fins pode ser constatado na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles ao dizer que uma ciecircncia ldquoarquitetocircnicardquo52 se
constitui com um fim preciacutepuo53 A felicidade eacute considerada como a coisa mais desejada perante
todas as outras sem que seja contada entre elas pois continua a ser a mais desejada mesmo com a
adiccedilatildeo do menor dos bens54 Para o mencionado comentador o estagirita deveria conceituar a
felicidade como um fim de segunda ordem55 no qual se incluiriam os fins de primeira ordem em
uma plena realizaccedilatildeo harmoniosa Mas ele natildeo o faz Diante deste quadro no entender de Hardie o
filoacutesofo grego ao tentar definir o bem final aproxima-se de uma concepccedilatildeo inclusivista mas
termina por construir uma concepccedilatildeo dominante sobre o supremo bem
A tese que compreende a eudaimonia como fim dominante descreve que o Sumo Bem
possui um cunho superior mais elevado que os outros fins Se a eudaimonia estaacute acima de outros
fins como por exemplo a honra o prazer a riqueza ou o conhecimento e se para alcanccedilar uma
vida feliz eacute necessaacuterio alcanccedilar um determinado tipo de fim pois este fim identifica-se com a
eudaimonia entatildeo este fim passa a ser o mais importante e superior de todos os outros fins juntos
A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo isso significa dizer que caso a eudaimonia seja identificada com a riqueza
esse fim torna-se essencial e deve ser buscado por qualquer indiviacuteduo que queira uma vida feliz Haacute
uma preponderacircncia deste fim essencial sobre outros fins os quais se tornam suplementares Todas
51Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo Op cit p 44 52Cf EacuteN 1094a 26-27 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4453Um exemplo utilizado eacute caso da poliacutetica Esta ciecircncia possui a caracteriacutestica de comportar vaacuterios outros fins CfEacuteN 1094b 6-7 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4454Cf EacuteN 1097b 16-20 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4455A felicidade eacute um fim de segunda ordem por ser considerada o fim uacuteltimo o fim mais desejado O fim de segundaordem eacute decorrente da consecuccedilatildeo de fins de primeira ordem que satildeo conquistados por meio das accedilotildees do indiviacuteduo
21
as accedilotildees do indiviacuteduo convergem para atingir este fim considerado o mais importante porque ele eacute
o proacuteprio nuacutecleo da eudaimonia
A criacutetica da concepccedilatildeo dominante eacute feita por JL Ackrill56 Este uacuteltimo concorda com
Hardie que natildeo eacute clara a posiccedilatildeo aristoteacutelica sobre a eudaimonia possuir uma tendecircncia inclusiva
ou dominante Mas Ackrill57 defende que conceito de eudaimonia exposto por Aristoacuteteles eacute
fundamentalmente de cunho inclusivo No argumento de Ackrill o conceito de fim inclusivo pode
ser entendido de duas formas A primeira forma de compreensatildeo eacute enxergar o fim como algo que
inclua dois ou mais objetivos valores atividades ou bens os quais possuem um mesmo valor natildeo
havendo uma diferenccedila de importacircncia entre estes elementos A segunda forma eacute compreender o
fim como algo que englobe os mesmos elementos (objetivos valores etc) mas que possuem um
valor aproximadamente igual entre si Ou seja nenhum elemento eacute muito superior a qualquer um
dos outros elementos inclusos no fim O conceito de fim dominante tambeacutem pode ser entendido de
duas formas58 A primeira forma entende o fim dominante com sendo um ldquofim monoliacuteticordquo que
consiste em somente uma atividade ou um bem mais valoroso Na segunda forma o fim conteacutem dois
ou mais elementos que satildeo valorosos em si mesmos mas somente um destes elementos eacute
considerado o mais importante de todos sendo o elemento que possui a preponderacircncia ou
supremacia frente a todos os demais elementos Logo este eacute o bem dominante dentro do fim uacuteltimo
Ackrill continua a argumentar que o fim uacuteltimo eacute uma reuniatildeo de fins que podem ser
agradaacuteveis e dignos em si mesmos natildeo havendo um uacutenico fim que seja superior aos demais fins59
A analogia que Ackrill utiliza eacute comparar o Supremo Bem com um cafeacute da manhatilde com trecircs
elementos bacon ovos e tomates Em uma leitura inclusiva bacon natildeo eacute superior aos ovos e aos
tomates Os trecircs juntos satildeo melhores que apenas o bacon A combinaccedilatildeo dos trecircs elementos forma
um conjunto superior em relaccedilatildeo a um fim uacuteltimo que eacute baseado somente em um uacutenico elemento
Na interpretaccedilatildeo de Zingano 60 o Supremo Bem natildeo eacute um uacutenico bem que estaacute acima de
todos os outros bens Consiste em uma reuniatildeo de todos os bens buscados pelo indiviacuteduo Eacute um
bem formalmente uacutenico mas materialmente diversificado61 Pois a tese que compreende a
56Cf ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteiade Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-12557Cf ACKRILL JL Ibidem p 10558 Em relaccedilatildeo ao fim dominante este pode ser interpretado em uma chave de leitura ldquoforterdquo ou ldquofracardquo O ponto devista ldquoforterdquo como um ldquofim monoliacuteticordquo aparece quando Hardie afirma que o fim supremo aristoteacutelico eacute dominanteporque eacute identificado com um uacutenico objeto de desejo principal que eacute a proacutepria filosofia (entendida como sabedoriacontemplativa) O ponto de vista ldquofracordquo surge no momento que Hardie assevera que dentre alguns fins combinadosexiste um fim dominante Segundo Ackrill a chave de leitura ldquoforterdquo eacute a adotada por Hardie Por isso natildeo pode seraceita porque um fim dominante ldquomonoliacuteticordquo seria restritivo demais para ser elencado como o Supremo Bem a serconquistado59 Cf ACKRILL JL rdquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo Op cit p 10860 Cf ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 73-11061 Cf Ibidem p 103
22
eudaimonia como um fim inclusivo descreve que a felicidade possui uma pluralidade de fins em si
que satildeo independentes mas satildeo buscados de forma harmocircnica Nesta pluralidade de fins existem
fins que satildeo desejados por si mesmos e fins instrumentais (subordinados) a estes fins preciacutepuos que
somente servem para atingir os fins em si Mas todos eles satildeo buscados tendo em vista a
eudaimonia Deste modo a eudaimonia inclui todos os fins desejaacuteveis que podem ser buscados em
vista do Sumo Bem
Esta eacute a posiccedilatildeo de Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar a ideia de bem aristoteacutelica Eacute o
ldquobem geralrdquo que delimita a atividade especiacutefica de cada ciecircncia em particular Igualmente ocorre
com as accedilotildees humanas em geral o homem realiza diversas accedilotildees particulares que conteacutem seus fins
particulares mas todas estas accedilotildees satildeo feitas em vistas de alguma concepccedilatildeo de Sumo Bem
Conforme mostra o Aquinate nas Sententia Libri Ethicorum
Assim quando Aristoacuteteles diz-se (sic) que o bem eacute o que todos apetecem natildeo sedeve entender apenas para os que tecircm conhecimento que apreendem o bem mastambeacutem para os que carecem do conhecimento que tendem ao bem por um apetitenatural natildeo enquanto conheccedilam o bem mas porque satildeo movidos ao bem poralgum cognoscente a saber pela ordenaccedilatildeo do intelecto divino ao modo como aflecha tende ao alvo pela direccedilatildeo do arqueiro Mas o proacuteprio tender ao bem eacuteapetecer o bem e por isso disse que o ato apetece ao bem enquanto tende ao bemNatildeo eacute poreacutem um uacutenico bem ao qual todas as coisas tendem como foi dito acimaE portanto natildeo se descreve aqui um uacutenico bem mas um bem considerado emcomum Porque nada eacute bom a natildeo ser quanto eacute certa semelhanccedila e participaccedilatildeo dosumo Bem o mesmo sumo Bem que eacute de algum modo apetecido em todo bem Eassim pode-se dizer que eacute um uacutenico bem o que todos apetecem62
Natildeo eacute objetivo principal deste trabalho responder plenamente agrave questatildeo da eudaimonia ser
um fim dominante ou um fim inclusivo Mas pensamos ser interessante apresentar um breve parecer
acerca deste tema relacionado a vida feliz A questatildeo de como interpretar a eudaimonia como um
fim dominante ou fim inclusivo decorre da forma que Aristoacuteteles apresenta a vida teoacuterico-
contemplativa (βίος θεωρητικός) no Livro X da Eacutetica a Nicocircmaco Sob a perspectiva de fim
62 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes Vol IEdiccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015 p27 A citaccedilatildeo em latim vemdas Sententia Libri Ethicorum liber 1 lectio 1 n 11 ldquoQuod autem dicit quod omnia appetunt non est intelligendumsolum de habentibus cognitionem quae apprehendunt bonum sed etiam de rebus carentibus cognitione quae naturaliappetitu tendunt in bonum non quasi cognoscant bonum sed quia ab aliquo cognoscente moventur ad bonum scilicetex ordinatione divini intellectus ad modum quo sagitta tendit ad signum ex directione sagittantis Ipsum autem tenderein bonum est appetere bonum unde et actum dixit appetere bonum in quantum tendit in bonum Non autem est unumbonum in quod omnia tendunt ut infra dicetur Et ideo non describitur hic aliquod unum bonum sed bonumcommuniter sumptum Quia autem nihil est bonum nisi inquantum est quaedam similitudo et participatio summi boniipsum summum bonum quodammodo appetitur in quolibet bono et sic potest dici quod unum bonum est quod omniaappetuntrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Sententia libri Ethicorum liber I a lectio I ad IIIDisponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc0101htmlgt Acesso em 23 de junho de 2017
23
dominante todas as virtudes bens externos e a conduta do indiviacuteduo estatildeo subordinados a um fim
uacutenico e determinado que consiste na vida teoacuterico-contemplativa Aristoacuteteles natildeo poupa elogios agrave
vida teoacuterico-contemplativa ao descrever que esta eacute a melhor a mais duraacutevel a mais completa
autossuficiente e a mais amada de todas as atividades63 A contemplaccedilatildeo em outras palavras a
sabedoria filosoacutefica (σοφία) eacute o fim mais desejaacutevel entre todos os outros fins Por outro lado o
Estagirita destaca o papel das virtudes morais juntamente com a virtude intelectual da prudecircncia no
Livro VI da EacuteN Na eacutetica aristoteacutelica haacute uma grande importacircncia conferida agrave vida praacutetica Desta
maneira resta saber como a contemplaccedilatildeo interage com as virtudes morais a virtude da prudecircncia e
os demais fins
Em que consiste a vida teoacuterico-contemplativa Consiste em um estilo de vida que busca o
conhecimento da verdade64 e a nobreza de conduta como fundamento principal porque a verdade e
a nobreza de conduta adquirida por meio da praacutetica das virtudes morais satildeo pilares da eudaimonia
A faculdade da razatildeo eacute o que haacute de mais caracteriacutestico no ser humano Por isso pautar-se por ela
traz a certeza de uma vida feliz65 E aliado a esta racionalidade encontram-se as accedilotildees virtuosas66
Logo a vida contemplativa eacute uma vida proveniente da uniatildeo do exerciacutecio do intelecto com a retidatildeo
moral
A vida teoacuterico-contemplativa pode ser chamada de dominante por ser a meta a ser
perseguida como tipo de vida ideal para o indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida de plenitude
Uma vez identificada com a eudaimonia passa a ser o fim uacuteltimo e supremo Mas essa dominacircncia
da vida contemplativa para que possa ser efetiva inclui outros tipos de fins que satildeo as virtudes
morais e poucos bens externos67 Deste modo existe uma mescla entre as vertentes dominante e
inclusiva na compreensatildeo do Supremo Bem aristoteacutelico
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos questionamentos levantados ao longo do tempo sobre o caraacuteter
dominante ou inclusivo do fim aristoteacutelico no proacuteximo toacutepico analisaremos os conceitos basilares
de ldquofunccedilatildeordquo e de ldquofinalidaderdquo utilizados na filosofia moral de Aristoacuteteles
63 Cf EacuteN X 1177a20-30 e X 1177b1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 190-19164 Cf EacuteN1177b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p19065 Cf EacuteN1178a 5-8 Ibidem p19066 Cf EacuteN 1178a 10 Ibidem p19067 CF EacuteN 1179a 5-7 Ibidem p191
24
14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres
Acerca do conceito de finalidade (ές existe uma outra significaccedilatildeo possiacutevel deste termo
que eacute a de ldquoplenituderdquo (τέλειον) Assim ao afirmar que os seres tendem agrave sua finalidade pode-se
entender que os seres procuram ou tendem a serem plenos completos por realizarem seus fins
especiacuteficos
O conceito de finalidade eacute dotado de grande importacircncia para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica de
Aristoacuteteles Sua filosofia moral eacute baseada na finalidade caracteriacutestica do ser humano Toda a accedilatildeo
humana eacute realizada em funccedilatildeo de um determinado fim seja este considerado em si mesmo seja este
visto como meio para obtenccedilatildeo de outros fins Do mesmo modo o ser humano tende a uma
finalidade propriamente sua que deriva de sua proacutepria natureza Essa finalidade proacutepria ultrapassa
os fins especiacuteficos das accedilotildees humanas como por exemplo ser artesatildeo ser poliacutetico ser pedagogo ou
quaisquer outras accedilotildees exercidas Eacute um tipo de fim mais abrangente e duradouro ao qual os outros
fins estatildeo subordinados Neste sentido a plena realizaccedilatildeo do ser humano encontra-se no
aperfeiccediloamento de todas as suas caracteriacutesticas e em especial no uso da razatildeo (λόγος)
Ao dizer que a eudaimonia eacute o ldquomelhor bem de todosrdquo e o mais procurado68 Aristoacuteteles
procurar fundamentar o alcance de uma vida plena na ideia de ergon (ἔργονdos seres Este termo
eacute tradicionalmente traduzido por ldquofunccedilatildeordquo mas tambeacutem pode ser entendido como ldquotrabalhordquo
ldquoocupaccedilatildeordquo ldquotarefardquo69 Optamos por utilizar o termo tradicional de funccedilatildeo uma vez que
acreditamos ser o termo adequado para o entendimento da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as
funccedilotildees e virtudes que cada ser possui e que no contexto eacutetico culmina com a funccedilatildeo e virtude do
ser humano O que significa essa funccedilatildeo exclusiva das coisas Significa dizer que cada ser possui
uma funccedilatildeo que lhe eacute caracteriacutestica em decorrecircncia daquela finalidade para a qual fora criada Ou
seja a finalidade eacute inerente aos seres Por exemplo um navio eacute criado para navegar este objeto foi
criado para isso sua finalidade preciacutepua eacute a navegaccedilatildeo Caso o navio seja utilizado para outros fins
que natildeo agravequele ao qual foi originalmente fabricado haacute um desvirtuamento do seu fim original Ou
entatildeo o navio esteja com um casco fendido o que impossibilita uma boa navegaccedilatildeo a embarcaccedilatildeo
natildeo cumpre ou cumpre de modo pouco eficaz o fim para o qual foi designado Logo tanto na
situaccedilatildeo de desvirtuamento para o uso de outras funccedilotildees que natildeo aquela para o qual foi criado o
navio quanto na situaccedilatildeo em que haacute um casco ruim este objeto natildeo desempenha plenamente a sua
funccedilatildeo
68CF EacuteN 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p1569PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles Op cit p32
25
O navio ao natildeo desempenhar plenamente a sua funccedilatildeo perde a possibilidade de alcanccedilar a
excelecircncia na accedilatildeo de navegar Esta excelecircncia eacute a virtude (ἀρετήde cada ser eacute a plena realizaccedilatildeo
da sua funccedilatildeo atingida por qualquer ser E esta plenitude eacute atingida quando haacute (1) o cumprimento
exato da sua finalidade e (2) quando a accedilatildeo realizada eacute feita de forma maximamente eficaz Esta
ideia de virtude das coisas ao exercerem a sua funccedilatildeo de um ldquobom modordquo e de uma maneira eficaz
eacute o bem desta coisa Assim sendo Aristoacuteteles busca a funccedilatildeo inerente ao ser humano aquilo que lhe
eacute mais essencial Pois a vida plena a eudaimonia de um ser humano estaacute associada agrave realizaccedilatildeo
daquilo que lhe eacute mais proacuteprio ou seja do seu ergon mais distintivo conforme descrito na Eacutetica a
Nicocircmaco
Mas dizer que a felicidade eacute o sumo bem talvez pareccedila uma banalidade e faltaainda explicar mais claramente o que ela seja Tal explicaccedilatildeo natildeo ofereceria grandedificuldade se pudeacutessemos determinar primeiro a funccedilatildeo do homem Pois assimcomo para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisasque tecircm uma funccedilatildeo ou atividade considera-se que o bem e o ldquobem feitordquo residemna funccedilatildeo o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo Dar-se-aacute ocaso entatildeo de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funccedilotildees e atividades eo homem natildeo tenha nenhuma Ou assim como o olho a matildeo o peacute e em geral cadaparte do corpo tecircm evidentemente uma funccedilatildeo proacutepria poderemos assentar que ohomem do mesmo modo tem uma funccedilatildeo agrave parte de todas essas Qual poderaacute serela70
Cada oacutergatildeo do corpo humano possui sua funccedilatildeo especiacutefica e quando esta funccedilatildeo eacute exercida
da sua melhor maneira encontra-se em sua plena virtude O carpinteiro ou curtidor tem sua
atividade preciacutepua ao exercer sua respectiva funccedilatildeo de moldar a madeira e preparar o couro da
melhor maneira exerce suas atividades de modo virtuoso Em outras palavras assume seu grau de
excelecircncia Neste sentido o ser humano realiza plenamente sua funccedilatildeo proacutepria quando escolhe
atingir a excelecircncia naquilo que o diferencia de outros seres que eacute a racionalidade
Para responder a esta questatildeo acerca da funccedilatildeo proacutepria do ser humano Aristoacuteteles recorre agrave
divisatildeo da alma ( exposta na obra De Anima na qual eacute demonstrada a ideia de que a alma
possui trecircs partes ou faculdades distintas as quais satildeo intituladas de nutritiva (vegetativa) sensitiva
(perceptiva) e intelectiva (racional) A faculdade nutritiva eacute responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo dos seres vivos Eacute a faculdade nutritiva que primeiramente proporciona que haja vida
nos seres sendo comum a todos os seres vivos71 A faculdade sensitiva eacute a parte da alma que possui
a finalidade de percepcionar os sensiacuteveis e possui a funccedilatildeo de captar os estiacutemulos sensoriais
provenientes dos entes externos ao corpo e a alma Estes sensiacuteveis satildeo captados pelos cinco
70 EacuteN I 1097b 25-37 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15-1671 Cf De Anima II 415a 22 ARISTOacuteTELES De Anima Op cit p 50
26
sentidos visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar tato72 A faculdade intelectiva eacute a parte da alma com
capacidade para conhecer as formas inteligiacuteveis sendo responsaacutevel pelas funccedilotildees operativas do
entendimento tais como raciocinar deliberar escolher etc73
Na Eacutetica a Nicocircmaco esta divisatildeo da alma tambeacutem aparece ldquoPor exemplo que a alma tem
uma parte racional e outra privada de razatildeo []rdquo74Aristoacuteteles expotildee de modo sinteacutetico como a parte
irracional e racional da alma se comportam em relaccedilatildeo uma com a outra75 As faculdades nutritiva e
sensitiva fazem parte irracional E naturalmente a parte racional eacute a proacutepria faculdade intelectiva
A caracteriacutestica essencial do ser humano eacute a racionalidade Por isso deve submeter seus anseios e
desejos que fazem parte da faculdade sensitiva aos ditames da razatildeo para que possa realizar
plenamente sua finalidade e consequentemente ter uma vida feliz Mas para que o homem virtuoso
possa viver em funccedilatildeo do intelecto eacute necessaacuterio o cultivo das virtudes morais Pois satildeo as virtudes
morais que controlam os desejos do indiviacuteduo Aqui se encontra o ponto de confluecircncia entre a
faculdade sensitiva e a faculdade racional sem as virtudes morais ligadas agrave faculdade sensitiva natildeo
eacute possiacutevel agrave submissatildeo dos desejos agrave razatildeo Sem a faculdade racional natildeo eacute possiacutevel adquirir agraves
virtudes morais Esta intersecccedilatildeo entre a faculdade sensitiva e a faculdade racional pode ser
denominado como razatildeo desiderativa ou desejo racional76 Isso significa que os desejos se originam
na faculdade sensitiva mas uma vez que satildeo orientados pelo intelecto haacute uma influecircncia da
faculdade racional na parte sensitiva da alma Deste modo eacute nesta relaccedilatildeo entre o domiacutenio dos
desejos controlados por meio das virtudes morais e a racionalidade que se encontra a formaccedilatildeo do
homem virtuoso
No que tange agrave formaccedilatildeo moral do homem virtuoso a faculdade nutritiva eacute imediatamente
descartada por Aristoacuteteles pois ela eacute uma faculdade comum a todos os seres vivos e natildeo somente ao
homem Haja vista a funccedilatildeo da faculdade nutritiva ser apenas a nutriccedilatildeo e crescimento de um ser
vivo natildeo pode contribuir em nenhum aspecto na aquisiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das virtudes morais A
faculdade sensitiva deve atender aos comandos da faculdade racional Pois a parte sensitiva conteacutem
os desejos e estes nem sempre estatildeo de acordo com os princiacutepios determinados pela faculdade
racional Logo procede que natildeo haacute uma harmonia natural entre as duas faculdades mas o homem
virtuoso precisa proceder de modo que haja a prevalecircncia da razatildeo sobre os desejos para que
possam ser guiados de forma a contribuiacuterem para a eudaimonia Conforme descreve o texto
72 Cf De Anima II 424b 23 Ibidem p 8373 Cf De Anima III 429a 10 Ibidem p 9774 Cf EacuteN I 1102a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p2375Cf EacuteN I 1102b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24 76Cf EacuteN I 1103a 1-4 Ibidem p 24
27
Por exemplo que a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razatildeo []Do elemento irracional uma subdivisatildeo parece estar largamente difundida e ser denatureza vegetativa Refiro-me agrave que eacute causa da nutriccedilatildeo e do crescimento []Parece haver na alma ainda outro elemento irracional mas que em certo sentidoparticipa da razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional do homem continentee do incontinente () assim como a parte de sua alma quepossui tal princiacutepio porquanto ela nos impele na direccedilatildeo certa e para os melhoresobjetivos mas ao mesmo tempo encontra-se neles um outro elementonaturalmente oposto ao princiacutepio racional lutando contra este a resistindo-lhe []os impulsos dos incontinentes movem-se em direccedilotildees contraacuterias[] Apesar dissodevemos admitir que tambeacutem na alma existe qualquer coisa contraacuteria ao princiacutepioracional qualquer coisa que lhe resiste e se opotildee a ele [] seja como for nohomem continente ele obedece ao referido princiacutepio racional e eacute de presumir queno temperante e no bravo seja mais obediente ainda pois em tais homens ele fala arespeito de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racional77
Exposta a ideia acerca da divisatildeo da alma e sendo caracterizado que a faculdade racional eacute a
uacutenica inteiramente humana segue-se que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada com um tipo
de vida conduzida pela racionalidade Mas aleacutem de ser marcada pelo uso da razatildeo a funccedilatildeo do ser
humano tambeacutem consiste em ser realizada de maneira adequada e de modo digno A accedilatildeo virtuosa eacute
pautada nestes dois pressupostos (1) baseada na razatildeo e (2) feita de maneira adequada e digna
Neste ponto eacute importante perceber uma distinccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre uma accedilatildeo virtuosa e uma
accedilatildeo boa Natildeo eacute qualquer tipo de accedilatildeo que pode ser considerada como uma accedilatildeo virtuosa A accedilatildeo
virtuosa eacute caracterizada por ser uma accedilatildeo que proveacutem da virtude O homem virtuoso ao realizar
uma accedilatildeo virtuosa age com os meios corretos e com um fim nobre Isso fica claro quando
Aristoacuteteles assevera que o indiviacuteduo deve conhecer a accedilatildeo que realiza e deve escolher fazer a accedilatildeo
pela virtude78 A accedilatildeo deve ser feita do mesmo modo que os homens virtuosos fazem79 A accedilatildeo
meramente boa eacute uma accedilatildeo que pode ter um fim nobre mas o agente natildeo possui o conhecimento
das razotildees corretas de sua accedilatildeo Eacute uma accedilatildeo que possui uma aparecircncia de virtude mas natildeo eacute
verdadeiramente uma virtude porque carece de um caraacuteter intriacutenseco ao agente que realiza a accedilatildeo
Somado aos pressupostos da razatildeo e da virtude existe um terceiro pressuposto que completa as
caracteriacutesticas de uma accedilatildeo virtuosa que eacute (3) a praacutetica constante destas accedilotildees Esta praacutetica
constante de atos virtuosos eacute mostrada na comparaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre a constacircncia
necessaacuteria de accedilotildees virtuosas e uma andorinha solitaacuteria que em um dia somente natildeo faz um veratildeo
Ou seja um curto e passageiro periacuteodo de felicidade natildeo sustenta uma vida de plenitude80 Em
siacutentese a vida feliz eacute a vivecircncia desta faculdade racional que se sobrepotildee as demais estaacute em
77 EacuteN I 1102a 30 ndash 1102b 5-25 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23-2478 Cf EacuteN II 1105a 30-35 Ibidem p 3079 Cf EacuteN II 1105b 5 Ibidem p 31 80 Cf EacuteN I 1098a 17-20 Ibidem p 16
28
consonacircncia com a virtude moral e se manifesta de modo prolongado por toda a vida e natildeo somente
em ocasiotildees esparsas
Conforme exposto eacute necessaacuterio agir com a funccedilatildeo proacutepria do ser humano para alcanccedilar a
eudaimonia Para atingir sua plenitude de vida eacute imperioso que o indiviacuteduo aperfeiccediloe sua
racionalidade desenvolva as virtudes morais e pratique firmemente accedilotildees virtuosas Com isto o
percurso para construir a felicidade estaacute traccedilado na perspectiva eacutetica aristoteacutelica Uma vez definidas
as condiccedilotildees para uma vida feliz ainda resta saber qual o melhor tipo de vida que se enquadre nos
criteacuterios estabelecidos No proacuteximo toacutepico analisaremos esta questatildeo
15 A Eudaimonia e tipos de vida
O termo ldquoSumo Bemrdquo deriva da expressatildeo latina Summum Bonum a qual traz em seu bojo a
ideia de ser o bem mais elevado o melhor dos bens o bem supremo Conforme exposto nos itens
anteriores Aristoacuteteles considera que este bem mais elevado eacute a eudaimonia81 Ele descreve as
caracteriacutesticas que um bem deve ter para ser considerado justamente como o Sumo Bem
autossuficiente ser completo e baseado na razatildeo pois esta eacute o que haacute de mais proacuteprio no ser
humano Mas ao descrever as propriedades do Sumo Bem ou seja da eudaimonia falta ainda
determinar de modo mais preciso qual o ldquocaminhordquo para alcanccedilaacute-la Afinal como se trata de um
estudo no campo da eacutetica eacute necessaacuterio determinar como alcanccedilar esta eudaimonia em termos de
comportamento durante a vida humana Isto consiste em questionar qual eacute o melhor tipo de bem a
ser conquistado e consequentemente qual o tipo de vida que melhor se adequa agrave busca deste bem
No entender de Otfried Houmlffe a eudaimonia eacute considerada por Aristoacuteteles como o τέλος
τελειoτατoacuteν cujo significado eacute o de ser o ldquofim maacuteximordquo o ldquofim mais finalrdquo o fim uacuteltimo que natildeo
pode ser ultrapassado eacute a finalidade de todos os fins82 A eudaimonia eacute o fim geral que serve como
paracircmetro de orientaccedilatildeo para a busca de outros fins Por isso a partir dela criteacuterios satildeo delimitados
para que o indiviacuteduo escolha uma maneira de viver que realmente o conduza agrave felicidade Uma vez
que alguns tipos de vida natildeo atendem estes criteacuterios nem todos podem conduzir o indiviacuteduo ao
Sumo Bem que eacute a verdadeira eudaimonia Somente aquele tipo de vida que mais condiz com a
natureza humana e verdadeiramente pode ser considerado como um caminho seguro e consistente
para alcanccedilar uma vida feliz Neste sentido eacute necessaacuterio proceder a uma anaacutelise dos tipos de vida e
qual eacute a que pode ser considerada condizente com a eudaimonia
81 Cf EacuteN I 1097b 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1582 HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 196
29
Para a anaacutelise dos tipos de bens principais que dizem respeito a diferentes tipos de vidas
Aristoacuteteles natildeo desconsidera a endoxa (ἔνδοξα)83 ou seja a opiniatildeo comum Ele tambeacutem observa a
tradiccedilatildeo filosoacutefica anterior84 para proceder a uma avaliaccedilatildeo mais acurada acerca de qual vida eacute a
melhor e por conseguinte qual o tipo de vida torna o ser humano feliz Mas a partir da endoxa
avalia se cada tipo de vida pode de fato corresponder agraves caracteriacutesticas jaacute traccediladas para que um
bem qualquer possa receber o tiacutetulo de Sumo Bem
Na linha de raciociacutenio conduzida na Eacutetica a Nicocircmaco85 Aristoacuteteles apresenta uma siacutentese
dos trecircs tipos de vida a serem analisadas decorrentes dos bens considerados ldquofinaisrdquo os mais
importantes a serem procurados dentro daquele tipo de vida Pode-se verificar trecircs espeacutecies
principais de vida que representam os tipos de bens que as fundamentam Para algumas pessoas a
eudaimonia eacute identificada com uma vida de gozo dos prazeres mais mundanos86Outro contingente
de pessoas a identificam com as honras provenientes de uma vida pautada pela poliacutetica87 Enfim
outros a identificam com uma vida baseada na contemplaccedilatildeo (teoacuterico-contemplativa)88 Uma vida
de riquezas eacute desconsiderada por Aristoacuteteles como o tipo de vida ideal porque o acuacutemulo de
riquezas eacute apenas um meio para obtenccedilatildeo de outro bem89 Quanto agrave vida de honrarias que eacute
particularmente vinculada agrave vida poliacutetica ela traz em seu bojo uma instabilidade ao indiviacuteduo pois
as honras dependem mais de quem as concede do que a pessoa que as recebe Tampouco os
prazeres mundanos podem ser tidos como o tipo de vida a ser buscado porque satildeo contraacuterios agraves
virtudes morais Assim o modelo de vida mais adequado ao bem supremo deve ser vinculado de
modo mais iacutentimo ao homem e por isso deve ser mais estaacutevel Em relaccedilatildeo agrave vida teoacuterico-
contemplativa Aristoacuteteles a analisa de modo mais detalhado mais agrave frente no Livro X da Eacutetica a
Nicocircmaco Por isso natildeo analisaremos as propriedades da vida teoacuterico-contemplativa neste
momento
83 Conforme Aristoacuteteles aponta nas suas obras Toacutepicos I 1100a 18-25 e Retoacuterica I 1356b 33-36 a endoxa eacute umaopiniatildeo geralmente aceita acerca de qualquer tema que seja objeto de anaacutelise ora para leigos ora para os saacutebios (nosentido de especialistas em uma determinada aacuterea do conhecimento) Parte-se de premissas que satildeo consideradasprovaacuteveis e aparentemente verdadeiras para iniciar a anaacutelise e ocorrer o aprofundamento do estudo sobre o objetoescolhido Eacute o que faz Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando observa as diversas opiniotildees correntes agrave eacutepoca acerca doque seria a felicidade tanto na visatildeo comum quanto na visatildeo dos filoacutesofos Confiram-se os textos Toacutepicos I 1100a 18-25 ldquoNosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo deopiniotildees geralmente aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto [] rdquo Retoacuterica I 1356b 33-36 ldquo[] tatildeopouco a retoacuterica teorizaraacute sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo ndash por exemplo para Soacutecrates ou Hiacutepias ndash mas sobre o queparece verdade para pessoas de uma certa condiccedilatildeo como tambeacutem faz a dialeacutetica[] rdquo84 Cf EacuteN I 1098b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1785 Cf EacuteN I 1095b 15 - 1096a 10 Ibidem p 11-1286 Cf EacuteN I 1095b 15-20 Ibidem p 1187 Cf EacuteN I 1095b 25-30 Ibidem p 1288 Cf EacuteN I 1096a 5 Ibidem p 1289 Cf EacuteN I 1096a 8-10 Ibidem p 12
30
Uma vez que o Sumo Bem deve ser autossuficiente e completo os casos dos prazeres
mundanos da honra e das riquezas satildeo eliminados Assim os prazeres mundanos satildeo buscados por
aqueles que se entregam agraves paixotildees mais indignas natildeo sendo proacuteprios de homens que almejam a
nobreza de alma pois a estes homens compete agrave razatildeo comandar as suas accedilotildees As honrarias sendo
uma caracteriacutestica mais apropriada agrave vida poliacutetica ainda dependem de fatores externos ao indiviacuteduo
considerado honrado na poacutelis O reconhecimento de uma vida honrada depende de quem confere
este tiacutetulo ao indiviacuteduo Desta maneira natildeo eacute autossuficiente nem completa Em relaccedilatildeo agraves riquezas
satildeo a princiacutepio somente um bem instrumental dispostas apenas para alcanccedilar outros fins natildeo
possuindo nenhum caraacuteter de autossuficiecircncia e completude Deste modo nem os prazeres
mundanos nem a honra nem a riqueza podem ser alccediladas agrave categoria de Sumo Bem 90
Conforme descrito anteriormente os candidatos ao tiacutetulo de Sumo Bem satildeo os prazeres
corporais e espirituais a honra e a contemplaccedilatildeo com seus consequentes tipos de vida Aristoacuteteles
continua sua anaacutelise na Eacutetica a Nicocircmaco 91 acerca do tipo de vida adequada agrave verdadeira
eudaimonia Este filoacutesofo retoma uma determinada linha de pensamento filosoacutefico que preconiza a
divisatildeo dos bens em trecircs classes distintas os bens externos os bens do corpo e os bens da alma Os
uacutenicos bens externos e os bens do corpo natildeo podem ser considerados os bens mais adequados agrave
eudaimonia Os bens da alma devem ser postos em primeiro plano pois satildeo considerados os mais
elevados e plenos Para o estagirita eacute o exerciacutecio ativo das faculdades interiores da alma em
conformidade com a razatildeo que eacute o fundamento de uma vida feliz Logo um dos criteacuterios apontados
por Aristoacuteteles eacute que uma vida plena deve estar vinculada aos bens da alma e natildeo apenas aos bens
externos
Ora os bens tecircm sido divididos em trecircs classes e alguns foram descritos comoexteriores outros como relativos agrave alma ou ao corpo Noacutes outros consideramoscomo mais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com a almae como tais classificamos as accedilotildees e atividades psiacutequicas Logo o nosso ponto devista deve ser correto pelo menos de acordo com esta antiga opiniatildeo com a qualconcordam muitos filoacutesofos Eacute tambeacutem correto pelo fato de identificarmos o fimcom certas accedilotildees e atividades pois desse modo ele vem incluir-se entre os bens daalma e natildeo entre os bens exteriores92
Devemos recordar que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano aquela que melhor o caracteriza eacute
agir conforme a faculdade racional da alma Eacute a atividade racional do ser humano que estabelece a
90 Cf EacuteN I 1095b 15-30 - 1096a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1291 Cf EacuteN I 1098b 10 - 1099b 5 Ibidem p 1892 EacuteN I 1098a 15-19 Ibidem p 17
31
via mais adequada para alcanccedilar uma vida plena Por conseguinte a eudaimonia estaacute no uso ativo
da razatildeo e natildeo nas paixotildees que residem na faculdade sensitiva e claro muito menos na faculdade
nutritiva uma vez que esta diz respeito somente a sobrevivecircncia bioloacutegica93
Para Aristoacuteteles eacute preciso agir de modo correto visando sua maacutexima performance pois
nisso consiste alcanccedilar a excelecircncia de uma coisa ou de uma accedilatildeo A tiacutetulo de exemplo um escritor
quando realiza adequadamente e em um grau elevado a accedilatildeo de escrever exerce esta funccedilatildeo de
modo virtuoso Do mesmo modo um violinista ao tocar adequadamente um violino exerce o ato de
tocar seu instrumento de modo virtuoso A excelecircncia de algo ou de uma accedilatildeo eacute o modo mais
adequado a maacutexima performance da realizaccedilatildeo de sua proacutepria funccedilatildeo Conforme nos mostra o
Estagirita
Ora se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica umprinciacutepio racional e se dizemos que ldquoum tal-e-talrdquo e ldquoum bom tal-e-talrdquo tecircm umafunccedilatildeo que eacute a mesma espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocadorde lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentadaao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade - pois a funccedilatildeo de umtocador de lira eacute tocar lira e de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) serealmente assim eacute [e afirmamos ser a funccedilatildeo do homem uma certa espeacutecie de vidae esta vida uma atividade ou accedilotildees da alma que implicam um princiacutepio racional eacrescentamos que a funccedilatildeo de um bom homem eacute uma boa e nobre realizaccedilatildeo dasmesmas e se qualquer accedilatildeo eacute bem realizada quando estaacute de acordo com aexcelecircncia que lhe eacute proacutepria se realmente assim eacute] o bem do homem nos aparececomo uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de umavirtude com a melhor e a mais completa94
Conforme podemos ver no texto de Aristoacuteteles intitular uma accedilatildeo de virtuosa significa
afirmar que eacute uma accedilatildeo que atingiu a excelecircncia Pode-se dizer que eacute uma accedilatildeo que se tornou
sublime Utilizando novamente os exemplos citados existem escritores e violinistas medianos mas
existem escritores e violinistas sublimes Estes virtuosos escritores e violinistas satildeo os ldquoilustres
escritores e ilustres violinistasrdquo de acordo com o Estagirita Portanto satildeo os modelos a serem
seguidos por todos que desejem alcanccedilar a excelecircncia nestas artes
Mas a eudaimonia consiste somente em bens da alma tais como a virtude e a razatildeo Na
concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a virtude e a razatildeo possuem uma grande importacircncia na definiccedilatildeo de uma
vida feliz mas eacute necessaacuterio algo a mais Outra caracteriacutestica da eudaimonia encontra-se nos bens
externos manifestados na necessidade do ser humano de possuir uma certa prosperidade que natildeo
depende exclusivamente do indiviacuteduo Na compreensatildeo do filoacutesofo de Estagira a prosperidade
nestes bens externos facilita a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Estes bens externos considerados
93 EacuteN 1098a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1694 EacuteN 1098a 10-15 Ibidem p 16
32
pertinentes a uma vida feliz satildeo de vaacuterios tipos amigos riqueza influecircncia poliacutetica Outros bens
externos fortalecem a posse de uma vida feliz tornando-a mais acessiacutevel aos mais afortunados e a
falta destes torna mais difiacutecil ter uma vida feliz aos indiviacuteduos desafortunados Estes bens satildeo a
beleza fiacutesica ter nascido em uma boa famiacutelia e ter bons filhos Nos diz Aristoacuteteles
A felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do mundo eesses atributos natildeo se acham separados como na inscriccedilatildeo em Delos Das coisas amais nobre eacute a mais justa e a melhor eacute a sauacutede mas a mais doce eacute alcanccedilar o queamamos Com efeito todos eles pertencem agraves mais excelentes atividades e estasou entatildeo uma delas ndash a melhor ndash noacutes a identificamos com a felicidade E noentanto como dissemos ela necessita igualmente dos bens exteriores pois eacuteimpossiacutevel ou pelo menos natildeo eacute faacutecil realizar atos nobres sem os devidos meiosEm muitas accedilotildees utilizamos como instrumentos os amigos a riqueza e o poderpoliacutetico e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza denascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feiaaparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidadesde ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossemvisceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigosComo dissemos pois o homem feliz parece necessitar tambeacutem dessa espeacutecie deprosperidade e por essa razatildeo alguns identificam a felicidade com a boa fortunaembora outros a identifiquem com a virtude95
Observa-se no decorrer da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles que natildeo basta somente as virtudes
morais para que o homem virtuoso seja feliz Parece que haacute duas opiniotildees correntes em sua eacutepoca
Uma atribui agrave boa fortuna o alicerce principal da eudaimonia e a outra atribui agrave virtude o meio
fundamental para alcanccedilar a felicidade O estagirita realiza uma siacutentese entre as duas perspectivas
mas considera os bens da alma e os bens externos em patamares diferentes Determinados bens
como os bens da alma satildeo considerados essenciais agrave eudaimonia Estes satildeo a virtude e a razatildeo
Outros como os bens externos satildeo acessoacuterios e sua inexistecircncia natildeo acarreta necessariamente uma
vida infeliz mas a torne mais difiacutecil de ser suportada Devemos recordar que o Sumo Bem possui
duas propriedades que satildeo a autossuficiecircncia e a completude Portanto os bens externos como
acessoacuterios natildeo satildeo considerados autossuficientes e natildeo satildeo completos por serem bens
instrumentais Satildeo um meio para um fim e dependem de circunstacircncias externas ao indiviacuteduo
A eudaimonia eacute constituiacuteda de caracteriacutesticas essenciais e acessoacuterias96 Neste sentido
fazendo uma analogia com a engenharia de construccedilatildeo de edificaccedilotildees prediais Eacute possiacutevel um
entendimento de que a felicidade eacute construiacuteda por camadas Haacute um nuacutecleo essencial composto
pelos bens da alma ndash virtude e razatildeo ndash que estaacute na posse do indiviacuteduo ou seja sua
operacionalizaccedilatildeo depende unicamente dele e natildeo de fatores extriacutensecos A partir deste nuacutecleo
95EacuteN I 1099a 30 - 1099b 1-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1896 Cf EacuteN I 1099b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 19
33
essencial haacute os bens acessoacuterios ndash amigos riqueza influecircncia poliacutetica ndash que podem compor uma
vida feliz mas natildeo necessariamente satildeo indispensaacuteveis para que algueacutem seja feliz sua perda ou natildeo
obtenccedilatildeo natildeo acarretam uma vida infeliz para o indiviacuteduo O que deve ser evitado eacute a inversatildeo entre
aquilo que eacute essencial e aquilo que eacute acessoacuterio Os bens externos natildeo podem ser considerados como
um fundamento seguro para a felicidade porque satildeo instaacuteveis ou seja eacute possiacutevel perdecirc-los ou natildeo
corresponder agraves expectativas do indiviacuteduo Deste modo o indiviacuteduo para alcanccedilar a eudaimonia
necessita da virtude da prudecircncia e das virtudes morais para que possa conseguir realizar boas
escolhas durante sua vida e natildeo proceder a uma inversatildeo daquilo que eacute essencial ou acessoacuterio na
busca pela felicidade
Eacute interessante notar uma sutil divisatildeo dos bens externos Um primeiro subconjunto seriam
bens externos que ainda se encontram na esfera de accedilatildeo do indiviacuteduo Afinal caso seja uma escolha
do indiviacuteduo este por meio de sua accedilatildeo pode conquistar amigos riqueza e influecircncia poliacutetica Mas
o segundo subconjunto os outros bens externos citados por Aristoacuteteles que contribuem para a
felicidade como o nascimento em uma boa famiacutelia bons filhos e ter uma bela aparecircncia natildeo
pertencem a esfera de escolha e consequente accedilatildeo do indiviacuteduo O tipo de famiacutelia a vida dos filhos
e beleza fiacutesica estatildeo completamente fora do campo de deliberaccedilatildeo de algueacutem natildeo dependem do
indiviacuteduo tatildeo somente dependem de uma boa sorte
A harmonia entre os bens da alma e os bens externos eacute a linha que Aristoacuteteles segue ao
realizar sua anaacutelise acerca da eudaimonia O exerciacutecio ativo das virtudes morais e viver sob os
ditames da razatildeo satildeo o fundamento de uma vida feliz Qualquer homem virtuoso deve viver
segundo as virtudes Natildeo obstante a grande importacircncia da racionalidade e das virtudes na
construccedilatildeo da felicidade o Estagirita concede espaccedilo para as aspiraccedilotildees ldquonormaisrdquo de um homem
que vive o cotidiano da poacutelis Natildeo eacute uma perspectiva de felicidade cunhada para um eremita ou para
um monge que decide se abster de determinados bens externos A posiccedilatildeo de WD Ross ilustra bem
esta visatildeo de harmonia entre os bens da alma e os bens externos
Esta definiccedilatildeo (de felicidade) eacute confirmada por pontos de vista comuns acerca dobem-estar e ao mesmo tempo corrige-os Alguns afirmam que o bem-estar eacute avirtude Noacutes dizemos ser uma espeacutecie de acccedilatildeo para a qual tende a virtude Algunsafirmam ser o prazer Noacutes dizemos ser acompanhada necessariamente pelo prazerAlguns afirmam ser a prosperidade externa Noacutes dizemos que sem uma certa dosede prosperidade um homem natildeo pode exercitar esta boa atividade que eacute o bem-estar Assim os elementos principais que figuram na noccedilatildeo comum de bem-estartambeacutem entram na nossa definiccedilatildeo A virtude constitui a raiz donde descola a acccedilatildeoconforme o bem o prazer eacute o seu acompanhamento natural e a prosperidade suacondiccedilatildeo preacutevia normal97
97 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198 Na traduccedilatildeo portuguesa feita pela Publicaccedilotildees Dom Quixote a partir daediccedilatildeo inglesa publicada por Methuen amp Cu Ltd Londres o termo utilizado para se referir a eudaimonia eacute ldquobem-
34
A eacutetica aristoteacutelica tambeacutem eacute muito realista ao considerar o fato de que existe uma desordem
interna no indiviacuteduo Este conflito eacute caracterizado pela discrepacircncia entre a faculdade racional e os
desejos provindos da faculdade sensitiva Caso esta dissonacircncia natildeo seja resolvida com os desejos
submetidos ao ordenamento da racionalidade natildeo haacute a possibilidade do homem tornar-se virtuoso
Portanto o filoacutesofo de Estagira forja uma concepccedilatildeo eacutetica bastante equilibrada que evita excessos
de conduta decorrentes de determinados comportamentos morais muito comuns nos dias atuais
baseadas no hedonismo e no relativismo moral que consideram os desejos como os pilares da
felicidade
O Sumo Bem eacute a eudaimonia eacute aquilo que existe de mais nobre e confere mais prazer ao ser
humano Eacute a melhor atividade dentre as mais excelentes que pode ser realizada por algueacutem A
eudaimonia eacute uma espeacutecie de atividade da alma conforme a virtude E somado a isto a eudaimonia
tambeacutem eacute composta tanto por bens que satildeo indispensaacuteveis quanto bens que satildeo acessoacuterios agrave
felicidade98Assim a eudaimonia pode ser apreendida por meio de um treinamento Ou pode ser
desenvolvida de algum outro modo Ou eacute uma daacutediva divina A resposta eacute que a virtude natildeo eacute algo
natural no ser humano Por isso necessita de um constante esforccedilo do indiviacuteduo para adquiri-la e
aperfeiccediloaacute-la Conforme nos mostra Aristoacuteteles
[] pois aquilo que constitui o precircmio e a finalidade da virtude se nos afigura o quede melhor existe no mundo algo de divino e abenccediloado Dentro desta concepccedilatildeotambeacutem deve ela ser partilhada por grande nuacutemero de pessoas pois quem quer quenatildeo esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistaacute-la medianteuma certa espeacutecie de estudo e diligecircncia Mas se eacute preferiacutevel ser feliz dessamaneira a secirc-lo por acaso eacute razoaacutevel que os fatos sejam assim uma vez que quetudo aquilo que depende da accedilatildeo natural eacute por natureza tatildeo bom quanto poderiaser e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racionalespecialmente se depende da melhor de todas as causas Confiar ao acaso o que haacutede melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito99
Uma questatildeo que surge no estudo da eudaimonia e da virtude da prudecircncia diz respeito ao
papel que o acaso possui na busca por uma vida feliz O acaso constitui todas as situaccedilotildees que estatildeo
fora do controle imediato do indiviacuteduo Satildeo as contingecircncias que aparecem no decorrer da vida do
estarrdquo O proacuteprio WD Ross explica que prefere utilizar o termo ldquobem-estarrdquo para definir eudaimonia pelo fato destaser um certo tipo de atividade e natildeo um certo tipo de prazer embora este uacuteltimo a acompanhe Ross interpreta que otermo ldquofelicidaderdquo eacute inapropriado para traduzir a palavra grega eudaimonia por considerar que esse termo ldquofelicidaderdquose refere a um sentimento que apenas se diferencia do prazer por uma questatildeo de perdurar mais tempo ser maisprofundo e ser mais sereno que o prazer No presente trabalho optamos por usar o termo ldquofelicidaderdquo por esta traduccedilatildeoser a mais tradicional e consagrada nos textos que versam acerca da eacutetica em Aristoacuteteles 98 Cf EacuteN I 1099a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1899 EacuteN I 1099b 17-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 19
35
homem e que devem ser enfrentadas para que se alcance a felicidade Por isso examinaremos o
acaso na vida humana
16 O acaso na vida humana
O acaso na vida humana natildeo eacute um fator provaacutevel de trazer uma vida feliz ao indiviacuteduo O
acaso pode trazer tanto uma maacute quanto uma boa sorte e o indiviacuteduo que deixa sua vida ao acaso
tem pouca chance de alcanccedilar a eudaimonia A ordem natural das coisas indica que o indiviacuteduo
para atingir a excelecircncia nas suas accedilotildees seja em sua conduta seja em qualquer coisa que produza
deve se empenhar para que isso ocorra Portanto para cumprir sua funccedilatildeo proacutepria de ser racional
todo indiviacuteduo deve se empenhar em se tornar virtuoso e alcanccedilar sua excelecircncia como ser humano
porque isso natildeo ocorre de modo natural
O acaso pode trazer uma maacute sorte e vaacuterios infortuacutenios Um indiviacuteduo desafortunado pode ser
considerado feliz Aristoacuteteles considera que sim mesmo que uma pessoa sofra ao longo da sua vida
diversos desventuras ele pode ser feliz Pois a estabilidade encontra-se em uma vida virtuosa e natildeo
nas circunstacircncias que mudam a cada momento100 Naturalmente eventos agradaacuteveis acrescentam
alegrias e tornam mais agradaacuteveis uma vida virtuosa Mas eventos desagradaacuteveis trazem dores e
tornam mais sofrida uma vida mesmo que virtuosa Mesmo que o indiviacuteduo seja acometido por
uma sucessatildeo de eventos desagradaacuteveis sabe enfrentaacute-los de maneira digna Visto que a
eudaimonia eacute um exerciacutecio ativo do homem em conformidade com a virtude o sujeito que esteja
empenhado em agir conforme as virtudes natildeo depende da sorte para ser feliz Deste modo o homem
virtuoso sabe aproveitar as circunstacircncias e extrair o melhor delas para alcanccedilar uma vida
feliz101Acerca do acaso e de uma vida feliz esta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco eacute significativa
Ora muitas coisas acontecem por acaso e coisas diferentes quanto agrave importacircnciaEacute claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes natildeo pesam muito nabalanccedila mas uma multidatildeo de grandes acontecimentos se nos forem favoraacuteveistornaraacute nossa vida mais venturosa (pois natildeo apenas satildeo em si mesmos de feitio aaumentar a beleza da vida mas a proacutepria maneira como um homem os recebe podeser nobre e boa) e se se voltarem contra noacutes poderatildeo esmagar e mutilar afelicidade pois que aleacutem de serem acompanhados de dor impedem muitasatividades Todavia mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver quandoaceita com resignaccedilatildeo muitos grandes infortuacutenios natildeo por insensibilidade agrave dormas por nobreza e grandeza de alma102
100 Cf EacuteN I 1100b 13-20 Ibidem p 20101 Cf EacuteN I 1101a 35-37 Ibidem p 21102 EacuteN I 1100b 25-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 20-21
36
Decorrente do texto da Eacutetica a Nicocircmaco descrito acima podemos notar que o tamanho dos
acontecimentos pode afetar o indiviacuteduo tanto para a felicidade quanto agrave infelicidade Deste modo a
fortuna e o infortuacutenio podem ter uma determinada influecircncia na consecuccedilatildeo de uma vida feliz
embora o homem virtuoso consegue conviver com estes infortuacutenios e extrair o melhor de cada
situaccedilatildeo
A eudaimonia por ser autossuficiente e completa natildeo depende de nenhum fator externo
mas sobretudo das accedilotildees virtuosas praticadas pelo indiviacuteduo Por isso possui a caracteriacutestica de ser
estaacutevel Esta estabilidade perpassa a vida virtuosa do indiviacuteduo Por conseguinte as virtudes satildeo a
base para a estabilidade da eudaimonia
Na anaacutelise acerca da eudaimonia Aristoacuteteles tambeacutem questiona se porventura os
infortuacutenios de pessoas proacuteximas e queridas tais como os amigos e os descendentes podem afetar a
estabilidade de um indiviacuteduo virtuoso que possui uma vida feliz A resposta eacute que estes infortuacutenios
dos amigos ou descendentes natildeo tecircm forccedila suficiente para afetar um indiviacuteduo que jaacute deteacutem a
felicidade Os infortuacutenios podem ser em graus diversos e natildeo afetam substancialmente o homem
virtuoso 103 Do mesmo modo as adversidades enfrentadas pelos amigos e descendentes natildeo retiram
a felicidade do indiviacuteduo bem-aventurado nem a acrescentam em nada104
Observa-se que na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a eudaimonia para ser alcanccedilada possui uma
condicionante que consiste em agir baseado nas virtudes para obter uma nobreza de alma Se o
indiviacuteduo rejeitar esta condicionante natildeo teraacute uma vida plena A felicidade eacute um exerciacutecio ativo do
homem conforme a virtude perfeita sendo estaacutevel defronte agraves variadas circunstacircncias posto que eacute
autossuficiente e plena em si mesma Eacute o fim uacuteltimo que orienta toda a vida humana E este fim
uacuteltimo se constitui em cumprir a funccedilatildeo proacutepria do ser humano que eacute o uso da racionalidade e a
partir dele atingir um alto grau de virtudes Neste sentido o proacuteximo passo de Aristoacuteteles eacute analisar
a natureza das virtudes haja vista a grande importacircncia que estas possuem na composiccedilatildeo da
eudaimonia
103 Nas palavras de Ross para Aristoacuteteles a ldquo[] a finura de caraacuteter pode lsquobrilhar atraveacutesrsquo de circunstacircncias adversasrdquoROSS WD Aristoacuteteles opcit p 198104 Cf EacuteN I 1101b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 22
37
CAPIacuteTULO II
AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
Neste capiacutetulo eacute feito um estudo acerca da concepccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as virtudes e de
como satildeo fundamentais para a consecuccedilatildeo da eudaimonia Tambeacutem eacute vista a relaccedilatildeo entre as
virtudes e a educaccedilatildeo dos prazeres pois todo ser humano procura se aproximar daquilo que
ocasiona prazer e fugir daquilo que provoca dor Assim o prazer e a dor satildeo importantes para a
busca das virtudes e rejeiccedilatildeo dos viacutecios morais Nem todos os prazeres contribuem para uma correta
formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo O indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida feliz deve saber cultivar
os prazeres moralmente bons e rejeitar os prazeres moralmente ruins Por conseguinte deve ter um
conhecimento de quais prazeres satildeo bons para serem usufruiacutedos e quais natildeo satildeo para praticar accedilotildees
nobres e consequentemente ter uma vida em plenitude
Tal como as virtudes satildeo um componente essencial para uma vida feliz o prazer tambeacutem eacute
uma parte importante da eudaimonia O prazer tem um duplo caraacuteter aperfeiccediloamento e resultado
Como aperfeiccediloamento o prazer auxilia no refinamento das habilidades do indiviacuteduo e
naturalmente ajuda a aprimorar as virtudes105 Como resultado o prazer eacute fruto das proacuteprias accedilotildees
virtuosas que causam uma satisfaccedilatildeo no indiviacuteduo que as pratica106 Deste modo o prazer eacute inerente
agrave eudaimonia pois as virtudes satildeo um pressuposto baacutesico da vida feliz
As virtudes satildeo diferenciadas entre virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) e virtudes morais
(eacuteticas) As virtudes morais satildeo necessaacuterias para que haja o autodomiacutenio do indiviacuteduo sobre suas
paixotildees Satildeo as virtudes morais que permitem um melhor florescimento das virtudes intelectuais e
em especial a virtude da prudecircncia Para que o indiviacuteduo desenvolva corretamente as virtudes
morais eacute necessaacuterio conhecer qual eacute a natureza destas virtudes Assim eacute necessaacuteria a compreensatildeo
do conceito de mediania que eacute uma das caracteriacutesticas das virtudes
Em siacutentese no presente capiacutetulo analisaremos os seguintes pontos as virtudes morais os prazeres
e o seu papel na formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo o homem virtuoso (σπουδαῖος) o conceito de mediania
(μεσότης) e a necessidade das virtudes morais para o desenvolvimento da virtude intelectual da
prudecircncia (φρόνησις)
105Cf EacuteN X 1175a 30-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 185106Cf EacuteN X 1175a 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184
38
21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais
A definiccedilatildeo de eudaimonia eacute ser uma atividade da alma conforme a virtude perfeita107 Neste
sentido as virtudes satildeo uma peccedila central no sistema eacutetico aristoteacutelico Satildeo elas que ao serem
praticadas conduzem ao aprimoramento do indiviacuteduo tanto em conhecimento adquirido pelas
virtudes intelectuais quanto em proporcionar um caraacuteter mais nobre por causa da robustez das
virtudes morais
As virtudes satildeo divididas em conformidade com esta divisatildeo da alma entre uma parte
racional e outra irracional As virtudes que dizem respeito agrave parte intelectual satildeo as virtudes
intelectuais e as relacionadas agrave parte irracional mas propriamente ao elemento desiderativo satildeo as
virtudes morais A parte irracional da alma possui uma subdivisatildeo em dois elementos O primeiro
elemento natildeo pode ser submetido agrave razatildeo pois satildeo as proacuteprias atividades da faculdade vegetativa O
segundo elemento possui a capacidade de ser orientado pela razatildeo sendo este o elemento
desiderativo contido na faculdade sensitiva Por isso nota-se um detalhe importante em relaccedilatildeo ao
indiviacuteduo virtuoso ele escolhe submeter seus desejos e paixotildees agrave racionalidade e tambeacutem aprende
a desejar o que a racionalidade determina como correto
Conforme citamos no capiacutetulo anterior para uma melhor compreensatildeo das propriedades das
virtudes intelectuais e das virtudes morais eacute necessaacuterio recordar a obra De Anima na qual
Aristoacuteteles estabelece a divisatildeo da alma (ψυχή) humana em trecircs partes ou faculdades intituladas de
nutritiva (vegetativa) sensitiva (perceptiva) e racional (intelectiva) Estabelecida a divisatildeo da alma
em uma parte racional (faculdade intelectiva) e uma parte irracional (faculdades sensitiva e
nutritiva) deve-se observar que existe uma relaccedilatildeo entre estas duas partes Uma espeacutecie de
interaccedilatildeo entre a racionalidade e os apetites correspondentes agrave parte irracional Estas duas
dimensotildees da psicheacute natildeo satildeo naturalmente harmocircnicas entre si A faculdade sensitiva comporta os
desejos (o1recij) do ser humano Neste ponto eacute importante notar que Aristoacuteteles divide os desejos
em trecircs espeacutecies apetite () impulso () e vontade ()108
Por conter o elemento desiderativo a faculdade sensitiva eacute em parte responsaacutevel pelas
accedilotildees humanas Em parte porque a proacutepria faculdade sensitiva carece de racionalidade mas de
107 Cf EacuteN I 1102a 5-7 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23108 Cf De anima 414a 30 - 414b 3 Aristoacuteteles De anima Op cit p46-47 Segue-se o texto ldquoDas faculdades da almaque referimos a uns seres como dissemos pertencem todas umas delas a outros e a alguns seres pertence apenas umasoacute faculdade Chamamos entatildeo faculdades agraves partes nutritiva perceptiva desiderativa de deslocaccedilatildeo e discursiva Oraagraves plantas pertence apenas a faculdade nutritiva ao passo que aos outros seres pertencem esta faculdade e tambeacutem aperceptiva E se esses dispotildeem da faculdade perceptiva possuem igualmente a desiderativa pois o desejo eacute de fatoapetite impulso e vontade Todos os animais entatildeo possuem um dos sentidos o tato e ao ser a que a sensibilidadepertencem igualmente o prazer e a dor (isto eacute o apraziacutevel e o doloroso) Mais agravequeles a que estes pertencem pertence(sic) tambeacutem o apetite isto eacute o proacuteprio desejo do apraziacutevel []rdquo
39
uma certa forma o elemento desiderativo participa da faculdade racional Pois tanto o indiviacuteduo
considerado continente (e0gkrath~~j109 quanto o indiviacuteduo incontinente (a0krathj)110 possuem a
faculdade racional Mas haacute uma diferenccedila entre estes dois tipos de indiviacuteduos O indiviacuteduo
continente age conforme agrave razatildeo ele submete seus desejos e paixotildees agrave racionalidade O indiviacuteduo
incontinente foge dos ditames da razatildeo seus desejos e paixotildees prevalecem sobre o ordenamento
racional Aristoacuteteles afirma que o indiviacuteduo continente obedece agrave parte racional e no indiviacuteduo
temperante e no corajoso esta obediecircncia eacute ainda maior111 Este fato implica a utilizaccedilatildeo da razatildeo e
um autodomiacutenio perseverante que resultam em uma disposiccedilatildeo firme e habitual do indiviacuteduo para
que o elemento desiderativo contido na parte irracional possa estar submetido agrave parte racional
As virtudes satildeo divididas em duas espeacutecies correspondentes agrave divisatildeo da alma em parte
racional e irracional As virtudes intelectuais satildeo relacionadas agrave racionalidade e as virtudes morais
ao elemento desiderativo contido na parte irracional Ross classifica este elemento desiderativo
como sendo um elemento intermeacutedio pois embora pertenccedila agrave parte irracional possui uma ligaccedilatildeo
com a razatildeo Eacute esta parte do desejo que obedece aos princiacutepios e regras de vida que o indiviacuteduo
continente traccedilou para si mesmo Enquanto o indiviacuteduo incontinente natildeo consegue submeter o
desejo ao controle da faculdade racional112 Uma vez que esta parte desiderativa obedeccedila agrave
racionalidade pode-se entender o uso da razatildeo em dois momentos distintos que conferem dois
tipos de sentido O primeiro sentido eacute relacionado aos desejos e paixotildees nos quais estes se
submetem agrave racionalidade Neste caso eacute a razatildeo praacutetica que opera por meio da prudecircncia e das
virtudes morais O outro sentido eacute o uso da razatildeo para conhecer e verificar pressupostos teoacutericos
que natildeo dizem respeito agrave accedilatildeo humana como por exemplo um teorema matemaacutetico As virtudes
intelectuais referem-se a este campo de aplicaccedilatildeo da racionalidade113 No livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco114 satildeo listadas cinco virtudes intelectuais que satildeo a arte (τέχνη) o conhecimento
cientiacutefico (ἐπιστήμη) a sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) a razatildeo intuitiva
(νοῦς)115 No livro I haacute exemplos de virtudes morais116 a liberalidade (e0leuqeriothj) e a
temperanccedila (σωφροσύνη) Em relaccedilatildeo agrave sabedoria filosoacutefica (σοφία) sendo esta uma virtude
dianoeacutetica trata-se de uma sabedoria contemplativa dedicada agravequilo que eacute imutaacutevel A sophia
109 O indiviacuteduo continente domina seus desejos e os submete agrave razatildeo110 O indiviacuteduo incontinente natildeo domina seus desejos por isso natildeo consegue submetecirc-los agrave razatildeo 111 Cf EacuteN 1102b 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24112 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198113 SPINELLI Priscilla Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaacutequea Opcit p 42114 Cf EacuteN 1139b 15-18 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101115 Noucircs eacute traduzido de vaacuterias maneiras nas traduccedilotildees portuguesas da Eacutetica a Nicocircmaco entendimento (E Bini 2013p 194) perspicaacutecia (M Zingano 2008 p 40) razatildeo intuitiva (P T Spinelli 2007 p137 e L Vallandro e GBornheim 1987 p 110) ldquointuicioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) e ldquointelligencerdquo (H Rackham 1996 p 156) 116 Em EacuteN I 1103a 5-10 satildeo citadas somente estas duas virtudes morais como forma de exemplo mas Aristoacutetelesdescreve outras virtudes no decorrer de sua obra
40
possui uma natureza calcada na epiacutesteme e no nous pois visa aquilo que natildeo sofre alteraccedilotildees em
nenhuma circunstacircncia Por seu lado a phronecircsis se caracteriza por visar a praacutexis ao lidar com as
diversas situaccedilotildees que mudam constantemente
As virtudes intelectuais podem ser adquiridas e apuradas pela instruccedilatildeo enquanto as
virtudes morais satildeo robustecidas por meio do haacutebito117 Visto que nascemos dotados com elas em
potecircncia para que alcancem sua plenitude torna-se imperioso a sua solidificaccedilatildeo por meio de um
permanente esforccedilo do homem Se as virtudes morais e intelectuais jaacute estivessem plenamente
desenvolvidas no nosso caraacuteter natildeo seria necessaacuterio aprimoraacute-las pela repeticcedilatildeo das mesmas Neste
sentido eacute necessaacuterio desenvolver as virtudes uma vez que natildeo satildeo desenvolvidas na natureza
humana como satildeo por exemplo as faculdades da visatildeo ou da audiccedilatildeo que se encontram tanto em
um estado de potecircncia quanto em estado de ato118
Pode-se afirmar que uma parcela da conquista da eudaimonia consiste em harmonizar
corretamente a razatildeo e o desejo para que sejam conduzidos ao mesmo objetivo A adequada
harmonia consiste na proeminecircncia da racionalidade sobre os desejos e paixotildees A virtude moral
consiste nesta condiccedilatildeo estaacutevel do indiviacuteduo resultante de uma escolha que se transforma em um
haacutebito por ser repetida inuacutemeras vezes ao longo do tempo fazendo com que exerccedila bem sua funccedilatildeo
Mas para ser operacionalizada eacute fundamental a atuaccedilatildeo da razatildeo para escolher um fim razoaacutevel ao
qual o indiviacuteduo possa seguir por meio de sua vontade
Na formaccedilatildeo moral do homem para que este adquira uma nobreza de conduta e alcance uma
vida feliz vimos a importacircncia das virtudes morais para controlar os desejos provenientes da
faculdade sensitiva A felicidade eacute obtida pela primazia do intelecto sobre os desejos Neste
contexto de construccedilatildeo da eudaimonia haacute um componente a ser considerado que eacute o prazer ou a
dor proveniente das accedilotildees humanas Este eacute o assunto a ser abordado no proacuteximo toacutepico
22 A educaccedilatildeo dos prazeres e a eudaimonia
Uma percepccedilatildeo aristoteacutelica bastante interessante eacute assinalar a importacircncia de um treino
constante como sendo essencial para o robustecimento das virtudes morais pelo indiviacuteduo frente aos
acontecimentos Afinal ningueacutem eacute capaz de arrogar para si proacuteprio ou mesmo ser verdadeiramente
elogiado como sendo algueacutem virtuoso se natildeo se habituou a praticar as virtudes ao longo do tempo e
enfrentar as circunstacircncias concretas da vida Em outras palavras pode-se dizer que uma virtude eacute
conquistada quando for provada em vaacuterios casos e durante um periacuteodo de tempo prolongado Por
117 CF EacuteN II 1103a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 27118 CF EacuteN II 1103a 30 Ibidem p 27
41
isso eacute imprescindiacutevel desde a mais tenra idade estabelecer uma paideacuteia (παιδεία)119voltada para a
praacutetica das virtudes conforme mostra Aristoacuteteles ao seguir a mesma linha de raciociacutenio de Platatildeo
sobre a importacircncia de uma boa educaccedilatildeo Esta boa educaccedilatildeo consiste em aprender a apreciar
aquilo que eacute desejaacutevel e rejeitar aquilo que eacute indesejaacutevel120
No que tange agrave educaccedilatildeo para orientar a pessoa a gostar daquilo que eacute desejaacutevel um dos
pontos fundamentais da filosofia moral aristoteacutelica eacute a questatildeo do prazer O fenocircmeno do prazer eacute
um tema corrente na tradiccedilatildeo filosoacutefica grega antiga sendo ele considerado uma das fontes acerca
da moralidade e conduccedilatildeo agrave uma vida feliz O pensamento eacutetico aristoteacutelico segue esta tradiccedilatildeo e
insere uma teoria do prazer uma vez que este eacute um dos elementos essenciais para a realizaccedilatildeo
humana O prazer eacute algo completamente inserido na vida humana a ponto de natildeo se concebecirc-la sem
a perspectiva do acompanhamento ou a ausecircncia dele Conforme assevera Aristoacuteteles ldquoAcresce que
o agradaacutevel e o doloroso cresceram conosco desde a nossa infacircncia e por isso eacute difiacutecil conter essas
paixotildees enraizadas como estatildeo em nossa vida E alguns mais e outros menos medimos nossas
proacuteprias accedilotildees pelo estalatildeo do prazer e da dorrdquo121 O filoacutesofo de Estagira cita que Eudoxo122
identificava o bem com o prazer pois observava que todos os seres racionais e irracionais tendiam
para esse sentimento123 Platatildeo tambeacutem se posiciona acerca do fenocircmeno do prazer no seu diaacutelogo
Filebo no qual o mestre de Aristoacuteteles argumenta que tanto o homem intemperante quanto o
temperante provam do prazer o intemperante com prazeres depravados o temperante com prazeres
mais elevados e o saacutebio tem prazer na sua praacutetica da sabedoria124 Posto que o fenocircmeno do prazer e
da dor satildeo intriacutensecos agrave natureza humana naturalmente tambeacutem satildeo inerentes agrave conduta humana e
este fato os torna fatores educativos para o ser humano A eudaimonia tambeacutem se traduz em uma
adequada escolha dos prazeres uma vez que o ser humano natildeo eacute somente razatildeo mas tambeacutem eacute
dotado de sentidos Por conseguinte uma orientaccedilatildeo adequada do ser humano consiste em levaacute-lo
ao deleite prazeroso das coisas nobres sendo fundamental um estiacutemulo para a praacutetica das virtudes
intelectuais e morais
As virtudes morais possuem como uma de suas caracteriacutesticas serem ligadas aos prazeres
ou agraves dores resultantes de nossos atos Assim prazer e dor tornam-se indicativos do caraacuteter virtuoso
ou natildeo virtuoso de uma pessoa Caso realize uma accedilatildeo virtuosa e esta traga sofrimento ao agente
este natildeo poderaacute ser tido como virtuoso Para ilustrar esta ideia tem-se o exemplo de um homem que
119 O termo paideacuteia eacute traduzido como educaccedilatildeo ensinamento instruccedilatildeo treinamento120 Cf EacuteN II 1104b 10-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29121 EacuteN II 1105a 1-5 Ibidem p 30122 Foi um disciacutepulo de Platatildeo123 Cf EacuteN X 1172a 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 174124 Cf Filebo 11d-12d PLATOacuteN Diaacutelogos VI Filebo Timeo Critias Traducciones Introducciones y Notas porMaria Angeles Duraacuten y Francisco List Madrid Gredos 1992 p 22-24
42
pratica a abstinecircncia dos prazeres do corpo para fins de adquirir a virtude da temperanccedila A pessoa eacute
tida como temperante se o esforccedilo da abstinecircncia lhe eacute prazeroso caso natildeo seja e ocasionar um
sofrimento este seraacute um homem destemperante ou seja que natildeo possui moderaccedilatildeo nas suas
accedilotildees125 A virtude moral refere-se em como saber lidar com os prazeres e dores para uma
apropriada formaccedilatildeo do caraacuteter pois o prazer pode induzir o indiviacuteduo a realizar accedilotildees vis e a dor
dificulta a realizar accedilotildees nobres126 O prazer eacute um fator indutor das accedilotildees humanas seja para o bem
ou para o mal porque o prazer eacute vinculado agrave natureza humana sendo objeto dos nossos desejos
Afinal espera-se alcanccedilar o prazer nas atividades que exercemos e natildeo que estas resultem em
tristezas ou dores as quais o ser humano tende a evitaacute-los Aristoacuteteles eacute enfaacutetico ao afirmar que na
educaccedilatildeo dos jovens o prazer e a dor encontram-se presentes sendo ldquoguiasrdquo dos caminhos a serem
seguidos Eacute de extrema importacircncia escolher bem e comprazer-se com as coisas certas aquelas que
se deve apreciar e se afastar das coisas inapropriadas que devem ser evitadas natildeo se permitindo o
deleite com aquilo que eacute peacuterfido Por isso esta escolha tem uma grande influecircncia na formaccedilatildeo de
uma pessoa virtuosa127
O homem eacute um ser racional Agrave luz deste fato nota-se como o desejo pode e deve ser
moldado agrave luz da razatildeo O desejo impele o indiviacuteduo a buscar aquilo que eacute mais prazeroso No dizer
de Otfried Houmlffe o prazer eacute um elemento integrante da felicidade mas uma vida de puro prazer natildeo
oferece um fundamento seguro para encontrar a eudaimonia128 Para Aristoacuteteles os prazeres do
intelecto superam os prazeres dos sentidos129 Por isso a parte racional deve orientar o desejo para
que tenha prazer no empenho necessaacuterio para adquirir e manter a virtude e obter a satisfaccedilatildeo com o
exerciacutecio das atividades do intelecto130
Essa eacute uma opccedilatildeo de fundamental importacircncia a ser feita e a qual ningueacutem pode ser furtar
consciente ou natildeo da existecircncia dessa escolha Uma vez que os desejos satildeo intriacutensecos agrave natureza
humana sendo uma parcela deles pertencentes a sua parte irracional eacute imperioso escolher quais
espeacutecies de prazeres seratildeo objeto de agrado os prazeres mais sublimes que resIbidem na vivecircncia
das virtudes morais e no intelecto aprimorado pelas virtudes intelectuais ou os prazeres mais
rasteiros que satisfazem apenas os apetites da alma humana
125 Neste ponto surge uma questatildeo interessante o virtuoso temperante pode frear sentimentos prazerosos parapermanecer no meio-termo No nosso entender a resposta eacute positiva O homem temperante para alcanccedilar o meio-termoe executar uma accedilatildeo virtuosa pode reprimir os sentimentos prazerosos principalmente se forem prazeres torpes Emesmo que sejam prazeres nobres o temperante pode escolher dominaacute-los caso natildeo o conduza a uma accedilatildeo virtuosa 126 Cf EacuteN II 1104b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29127 Cf EacuteN X 1172a 20-25 Ibidem p 179128 Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Op cit p 193129 EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186130 Cf EacuteN X 1177a 1- 27 e 1178a 1-8
43
Aristoacuteteles utiliza pessoas concretas para exemplificar e identificar quais prazeres satildeo os
melhores e por conseguinte mais aspiraacuteveis a todos os homens131 O paracircmetro dos prazeres eacute
fornecido pela proacutepria accedilatildeo das pessoas virtuosas e natildeo por aquelas que possuem uma deformaccedilatildeo
em seu caraacuteter moral As pessoas virtuosas satildeo a proacutepria concretizaccedilatildeo do que se constitui o criteacuterio
dos prazeres considerados bons e dignos Elas satildeo consideradas modelos por se deliciarem com
prazeres que satildeo frutos da parte racional do ser humano e tambeacutem por terem os desejos
controlados pelas virtudes morais Por isso estes indiviacuteduos elevam a patamares superiores a
conduta humana Portanto os prazeres que as pessoas virtuosas buscam e desfrutam isso eacute o que
devem ser procurados porque satildeo estes prazeres que tanto estimulam a praacutetica das virtudes quanto
resultam destas mesmas virtudes praticadas no dia-a-dia
As pessoas viciosas corrompidas moralmente natildeo podem ser tomadas como modelo de
uma vida feliz devido ao fato de optarem por buscar os prazeres torpes que satisfazem apenas os
sentidos proacuteprios da parte irracional esquecendo-se da satisfaccedilatildeo do intelecto da parte racional
Com isso afastam-se da racionalidade que eacute a parte mais ilustre e mais humana e aproximam-se de
um modo de vida mais animalesco pois como diz Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquo[] tais prazeres satildeo
muitos desejados pelas bestas mas natildeo o devem ser pelos homensrdquo132 A torpeza na conduta
fatalmente afasta o homem de uma vida virtuosa que eacute proacutepria da eudaimonia Logo na sordidez
encontra-se a infelicidade embora muitas vezes tenha a aparecircncia de uma vida feliz
O homem bom eacute o proacuteprio homem virtuoso Ele eacute o padratildeo de referecircncia acerca dos
prazeres que podem ser apreciados O que se afigura como prazeroso ao homem virtuoso pode ser
deduzido como um prazer correto e agradaacutevel sendo liacutecito o estiacutemulo para ser usufruiacutedo por outras
pessoas Um homem virtuoso natildeo se deliciaraacute com coisas ou accedilatildeo desonrosas Somente homens
pervertidos moralmente podem se comprazer com aquilo que eacute vergonhoso natildeo existindo
possibilidade de serem erigidos ao patamar de modelos de prazeres a serem vividos Aristoacuteteles eacute
enfaacutetico ao afirmar que os prazeres reconhecidamente ignoacutebeis natildeo devem ser apreciados como
prazeres sob nenhuma condiccedilatildeo pois satildeo indignos de homens com nobreza moral sendo apenas
131Cf EacuteN VI 1140b 10 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Aristoacuteteles tambeacutem aponta para os homensconsiderados prudentes para exemplificar a virtude da phronecircsis em atuaccedilatildeo e tentar demonstrar os criteacuterios utilizadospara uma accedilatildeo virtuosa O Estagirita cita o estadista Peacutericles e ldquohomens como elerdquo como exemplo de indiviacuteduos quepossuiacuteam a virtude da prudecircncia porque percebiam o que era bom para si mesmos e para os homens em geral Por issoeram considerados bons administradores de casas e de Estados No caso dos prazeres Aristoacuteteles tambeacutem aponta que oshomens virtuosos satildeo o modelo de quais espeacutecies de prazeres podem ser usufruiacutedos Satildeo os prazeres provenientes dasaccedilotildees virtuosas 132 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles TradTiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 p 38 A citaccedilatildeo em latim vem das Sententia Libri Ethicorumliber 10 lectio 4 n 3 ldquo[] Et similiter delectationes bestiales bestiis quIbidem sunt appetibiles non autemhominibusrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017 O Aquinate sintetiza a visatildeoaristoteacutelica referente a EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-15
44
apreciados por homens degenerados em seu caraacuteter Mas mesmo dentro da categoria dos prazeres
dignos e honrosos a questatildeo que surge eacute a acerca de quais destes prazeres satildeo mais adequados ao
ser humano Novamente eacute o homem dotado de virtudes que se torna o proacuteprio criteacuterio De acordo
com o Estagirita
Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado comosendo realmente talSe isto eacute correto como se afiacutegura ser e a virtude e o homembom como tais satildeo a medida de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os quelhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitarSe as coisas que ele acha enfadonhas parecem agradaacuteveis a outros natildeo haacute nada desurpreendente nisso pois os homens podem ser pervertidos e estragados de muitosmodos e tais coisas natildeo satildeo realmente agradaacuteveis mas soacute o satildeo para essaspessoas e outras nas mesmas condiccedilotildees Das que reconhecidamente satildeovergonhosas evidentemente natildeo se deveria dizer que satildeo prazeressalvo para umgosto pervertido133
O prazer (h9donh) natildeo eacute um bem em si mesmo natildeo eacute autossuficiente posto que esteja
sempre atrelado em alguma coisa boa ou maacute Por isso natildeo eacute o bem supremo pois variam conforme
as diversas espeacutecies de prazer aleacutem de serem alguns resultantes de boas obras e outras de obras
torpes Assim o prazer natildeo pode ser considerado universalmente bom nem como o uacutenico criteacuterio
de bem Como siacutentese desta premissa Satildeo Tomaacutes de Aquino aponta trecircs aspectos acerca dos
prazeres pelos quais Aristoacuteteles natildeo considera o prazer universalmente bom134 Primeiro o prazer
possui muitas espeacutecies e muitas vezes pode ser maleacutefico Este fato pode ser ilustrado citando a
diferenccedila entre um amigo e um adulador Com o amigo com o qual existe uma verdadeira amizade
o conviacutevio eacute pautado pelo bem que traz Em relaccedilatildeo ao adulador o conviacutevio tem por fundamento
somente o prazer Prontamente o amigo eacute louvado pelo bem que traz agrave amizade enquanto o
adulador eacute repreendido Segundo uma crianccedila concede uma maacutexima relevacircncia aos prazeres da
infacircncia e ningueacutem deseja continuar vivendo nesta etapa da vida mesmo que o crescimento e
amadurecimento signifiquem assumir as tristezas inerentes agrave vida adulta Terceiro existem
atividades que satildeo desejadas mas natildeo trazem nenhum tipo de prazer tais como o ato de recordar
adquirir conhecimento e possuir virtudes Estas atividades se concretizam sem necessariamente
terem um prazer como consequecircncia Neste sentido sendo as virtudes e o conhecimento
relacionados agrave eudaimonia Aristoacuteteles recomenda que mesmo que hipoteticamente natildeo houvesse
133 Cf EacuteN X 1176a 15-23 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186134 Cf Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 39 e Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 4 n 4 a8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017
45
nenhum prazer na praacutetica destas atividades elas deveriam continuar a serem escolhidas pelo bem
que carregam consigo135
Em siacutentese o prazer eacute como um ldquomotorrdquo que impele o indiviacuteduo a buscar o objeto
apropriado do desejo seja este um bom ou mau desejo Estes desejos geram prazeres considerados
nobres ou torpes O homem virtuoso para alcanccedilar a eudaimonia procura os prazeres originados
pelas accedilotildees virtuosas porque geram prazeres dignos
Aleacutem de ser uma fonte indutora das atividades humanas o prazer tambeacutem possui o papel de
aperfeiccediloar estas mesmas atividades Eacute esta funccedilatildeo de aperfeiccediloamento que seraacute estudada no
proacuteximo toacutepico
23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
Uma outra funccedilatildeo distintiva do prazer eacute o aperfeiccediloamento da atividade Esta relaccedilatildeo de
prazer e perfeiccedilatildeo se refere agrave dois pontos importantes que satildeo o aprimoramento da atividade e o
resultado da perfeiccedilatildeo atingida na accedilatildeo
Na concepccedilatildeo aristoteacutelica todas as pessoas buscam o prazer porque aspiram agrave vida136 Uma
vez que a vida eacute uma atividade cada indiviacuteduo exerce sua atividade sobre os objetos e com as
faculdades que mais lhe apraz o prazer inerente a essas accedilotildees estimula repetir continuamente esta
mesma accedilatildeo Por exemplo um muacutesico sente prazer na audiccedilatildeo e no estudo das melodias ou um
intelectual se deleita com o uso da razatildeo nas questotildees filosoacuteficas Por isso o prazer eacute um
complemento de uma atividade bem exercida137 Deste modo haacute um aprimoramento das accedilotildees
realizadas o que leva um aperfeiccediloamento da proacutepria vida pois esta conteacutem todas as atividades
Conforme descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
Dir-ser-ia que todos os homens desejam o prazer porque todos aspiram agrave vida Avida eacute uma atividade e cada um eacute ativo em relaccedilatildeo agraves coisas e com as faculdadesque mais ama por exemplo o muacutesico eacute ativo com o ouvido em referecircncia agravesmelodias o estudioso como o intelecto em referecircncia a questotildees teoacutericas e da
135 Usando o proacuteprio exemplo de Aristoacuteteles na EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-10 Devemos notar que determinadasatividades como a visatildeo a memoacuteria o conhecimento a posse das virtudes etc podem gerar prazer ou natildeo Mas devemser buscadas mesmo que gerem dor Na referida passagem da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apenas afirma que devemser escolhidas independentemente de serem prazerosas ou natildeo Em nosso entender estas atividades podem emalgumas ocasiotildees natildeo serem prazerosas Mas natildeo significam necessariamente que gerem dor por isso deve-se optarpor elas tal como preconizado pelo Estagirita 136 A vida de um ser humano conteacutem prazeres e dores Todos os indiviacuteduos procuram ter uma vida prazerosa o quesignifica maximizar as atividades que trazem prazer e diminuir aquelas que provocam dor Logo dizer que um homembusca agrave vida significa que ele procura exercer as atividades que trazem alegria para si para que sua vida seja feliz137 Uma questatildeo que pode advir eacute se necessariamente uma atividade bem feita gera prazer Na nossa visatildeo entendemosque sim Porque o prazer eacute intriacutenseco agrave atividade ou seja acompanha cada accedilatildeo realizada de modo correto Oindiviacuteduo tem satisfaccedilatildeo ao final da accedilatildeo corretamente realizada
46
mesma forma nos outros casos Ora o prazer completa as atividades e portanto avida que eles desejam Eacute muito justo pois que aspirem tambeacutem ao prazer vistoque para cada um este completa a vida que lhe eacute desejaacutevel Mas quanto a saber seescolhemos a vida com vistas no prazer ou o prazer com vistas na vida eacute umaquestatildeo que podemos deixar de parte por ora Com efeito os dois parecem estarintimamente ligados entre si e natildeo admitir separaccedilatildeo jaacute que sem atividade natildeosurge o prazer e cada atividade eacute completada pelo prazer que a acompanha 138
Para Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquoPortanto o prazer eacute a perfeiccedilatildeo da operaccedilatildeordquo139 Ou seja a
proacutepria atividade eacute completada pelo prazer O prazer em si depende da operacionalizaccedilatildeo da
atividade140 seja esta uma atividade atinente aos sentidos ou ao intelecto Mas pode-se dizer que
existe uma escala de prazeres pois os prazeres satildeo de diversos tipos e vinculados a diversas
atividades que tambeacutem podem ser subdividas em uma escala Logo uma atividade bem-feita eacute
prazerosa e uma atividade perfeita eacute prazerosiacutessima
Tatildeo diversas quanto agraves atividades tambeacutem satildeo os prazeres Existem prazeres vinculados
aos sentidos e outros vinculados ao intelecto sendo estes uacuteltimos considerados mais sublimes e
puros141 Ao existir uma variedade de atividades com diferentes prazeres haacute uma consequente
valoraccedilatildeo moral diversificada para cada prazer O criteacuterio adotado por Aristoacuteteles para a aplicaccedilatildeo
de um juiacutezo moral correto que possa identificar um prazer considerado moralmente bom ou mau eacute
o proacuteprio exemplo do homem bom142
No que tange agrave observaccedilatildeo aristoteacutelica acerca da ligaccedilatildeo entre as atividades realizadas e
os prazeres resultantes que trazem um aperfeiccediloamento da mesma accedilatildeo o adaacutegio popular que
afirma que ldquoa praacutetica leva agrave perfeiccedilatildeordquo resume bem neste quesito a posiccedilatildeo aristoteacutelica A
constacircncia nas virtudes morais conduz agrave excelecircncia do caraacuteter assim como a perseveranccedila nas
virtudes intelectuais acarretam uma maestria com o conhecimento tanto pelo aumento de
conhecimento quanto pelo manejo deste Isso traz ao homem virtuoso a alegria o prazer em duas
formas o primeiro de percorrer o caminho da virtude o segundo de alcanccedilar cada vez mais uma
nobreza de conduta que o faz ser um indiviacuteduo feliz
138 Cf EacuteN X 1175a 10-20 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184139 Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 51 Eacute interessante conferir esta liccedilatildeo na iacutentegra por issocoloco a citaccedilatildeo inteira em latim das Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 6 n 5 ldquoEt inter huiusmodi operationessensus et intellectus illa est delectabilissima quae est perfectissima Perfectissima autem operatio est quae est sensusvel intellectus bene dispositi in comparatione ad optimum eorum quae subiacent sensui vel intellectui Si igitur operatioperfecta est delectabilis perfectissima autem delectabilissima consequens est quod operatio inquantum est perfecta sitdelectabilis Delectatio ergo est operationis perfectiordquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017140 Embora existam prazeres sem atos como algumas deleitaccedilotildees141 Cf EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186142 Cf EacuteN X 1176b 25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 187
47
24 O homem virtuoso
O indiviacuteduo que alcanccedilou a excelecircncia moral eacute denominado na visatildeo grega antiga de
spoudaios (σπουδαῖος) Conforme Aristoacuteteles assinala as virtudes morais estatildeo estritamente ligadas
agrave prudecircncia porque os princiacutepios que balizam a accedilatildeo humana satildeo fornecidos pela virtude intelectual
da prudecircncia A prudecircncia confere o paracircmetro correto para as virtudes morais143 O homem
prudente (φρόνιμος) aponta a melhor escolha a ser seguida O spoudaios eacute o indiviacuteduo que possui as
melhores condiccedilotildees para emitir um julgamento prudente acerca de quais prazeres satildeo liacutecitos em
serem gozados ou a correta medida das virtudes em cada caso especiacutefico O spoudaios torna-se o
proacuteprio criteacuterio de um bom julgamento dos princiacutepios morais prazeres e desejos perante as
circunstacircncias Na compreensatildeo de Pierre Aubenque para Platatildeo o homem saacutebio fixa seu
paracircmetro na Ideia de Bem ou seja em uma ordem ou norma transcendente a ele proacuteprio
Aristoacuteteles ao desconsiderar a existecircncia de um Mundo das Formas ideais transfere o paracircmetro de
sabedoria e retidatildeo a serem observadas para o proacuteprio phronimos Para sermos homens de retidatildeo
moral natildeo devemos ter como paracircmetro a Ideia de Bem e sim termos como paracircmetro o proacuteprio
homem de bem No entender de Pierre Aubenque inicialmente a palavra σπουδαῖος significava um
indiviacuteduo que tinha ldquozelordquo em suas faccedilanhas possuiacutea um ardor no combate sendo esta noccedilatildeo
aplicada ao ideal arcaico do heroacutei grego Depois passou a significar somente uma atividade
realizada de modo crediacutevel O spoudaios por ser zeloso na sua conduta inspira confianccedila visto que
eacute digno e honrado em suas accedilotildees Aristoacuteteles teria recuperado este antigo ideal heroacuteico mas
transmutado no homem que possui uma qualidade em seu julgamento por ser valoroso
moralmente144 Nota-se como o homem prudente o phronimos que possui uma excelecircncia na
virtude intelectual da prudecircncia se coaduna com o homem possuidor de excelecircncia moral o
spoudaios145
A vida virtuosa eacute uma vida prazerosa O spoudaios eacute o modelo do que deve ser feito e isso
inclui os prazeres considerados nobres e provenientes da virtude porque sabe discerni-los e pesaacute-los
bem146 O bem verdadeiro e por consequecircncia o prazer verdadeiramente bom eacute posto em relaccedilatildeo a
este indiviacuteduo considerado valoroso O spoudaios ilumina as situaccedilotildees e distingue aquilo que eacute
143 Cf EacuteN X 1178a 15-18 Ibidem p 190144 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 77-78145 Pierre Aubenque aponta a traduccedilatildeo de outros comentadores de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo ao termo σπουδαῖος ParaTricot eacute oldquohomem virtuosordquo para Voilquin eacute o ldquohomem de bemrdquo para Gauthier eacute o ldquovirtuosordquo para Ross eacute o ldquo thegood manrdquo Aubenque prefere chamar de ldquovalorosordquo Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p78 Independente da melhor forma de traduzir o termo σπουδαῖος o nuacutecleo central do conceito identifica-se com umaexcelecircncia de virtudes morais nobreza de conduta retidatildeo moral etc sendo contraacuterio agrave devassidatildeo ou condutapermeada de viacutecios 146 Cf EacuteN I 1099a 22-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 18
48
apenas aparecircncia ou nefasto daquilo eacute que autecircntico e benfazejo em cada categoria de coisas Um
indiviacuteduo pode considerar boa alguma coisa a ser feita ou buscada sem que aquilo seja
verdadeiramente bom devido a uma falsa percepccedilatildeo do que realmente eacute o bem em cada coisa Isto
tambeacutem ocorre com os prazeres inerentes agraves coisas que fazemos ou desejamos A princiacutepio podem
parecer prazeres edificantes mas tirados seus veacuteus conduzem apenas agrave ruiacutena Por isso eacute
imprescindiacutevel saber escolher corretamente os prazeres considerados bons e se habituar a desejaacute-
los Esta perspectiva do indiviacuteduo valoroso moralmente como regra e medida eacute subentendida desde
o Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco e se torna mais clara ao longo desta mesma obra Aristoacuteteles
assevera claramente este papel de criteacuterio ao spoudaios ao afirmar que
Com efeito o homem bom (σπουδαῖος) aquilata toda a classe de coisas comacerto e em cada uma delas a verdade lhe aparece com clareza mas cadadisposiccedilatildeo de caraacuteter tem suas ideacuteias proacuteprias sobre o nobre e o agradaacutevel e amaior diferenccedila entre o bom e os outros consiste talvez em perceber a verdade emcada classe de coisas como quem eacute delas a norma e a medida Na maioria doscasos o engano deve-se ao prazer que parece bom se realmente secirc-lo e por issoescolhemos o agradaacutevel como um bem e evitamos a dor como um malrdquo147
Podemos afirmar que na linha de raciociacutenio aristoteacutelica eacute necessaacuterio ser bom para decidir
bem O ato de discernir sopesar as coisas com acerto eacute uma accedilatildeo caracteriacutestica de um julgamento
correto acerca das coisas A retidatildeo de julgamento eacute uma qualidade distintiva do phronimos Por
isso Aristoacuteteles atribui ao homem prudente o exerciacutecio de estabelecer o criteacuterio para o julgamento
de cada classe de coisas O spoudaios eacute um homem nobre de conduta por ser virtuoso moralmente
mas ser um indiviacuteduo valoroso natildeo significa automaticamente ser um indiviacuteduo com um bom
discernimento acerca das circunstacircncias e da melhor accedilatildeo a ser operacionalizada Ser um homem de
virtudes morais eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para ser um homem com a virtude intelectual da prudecircncia 148
Por exemplo um indiviacuteduo incontinente que busque somente prazeres corporais natildeo consegue
julgar corretamente Todo phronimos eacute um indiviacuteduo valoroso moralmente natildeo sendo possiacutevel
algueacutem ser prudente se natildeo tiver se habituado a praacutetica das virtudes morais Uma vez que
Aristoacuteteles adere a posiccedilatildeo de imanecircncia dos criteacuterios de julgamento das coisas ao rejeitar a
transcendecircncia do Mundo das Formas traccedilada na filosofia platocircnica a reta razatildeo passar a ser
fundamentada no proacuteprio phronimos O homem prudente personifica a recta ratio porque ele se
torna aquele que possui a habilidade de julgar
O phronimos julga bem porque conhece aquilo que julga Conforme Aristoacuteteles assevera na
Eacutetica a Nicocircmaco que apenas julga bem quem foi instruiacutedo naquele assunto e julga bem as coisas
147 EacuteN III 1113a 30-39 Ibidem p 47148 Cf EacuteN VI 1143b 15- 23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 112
49
em geral por possuir uma instruccedilatildeo geral acerca de diversas coisas149 Tambeacutem natildeo basta somente
ser instruiacutedo sobre qualquer assunto na sua dimensatildeo teoacuterica mas eacute necessaacuterio ter ldquoexperiecircncia de
vidardquo para saber julgar corretamente as coisas e suas circunstacircncias Esta junccedilatildeo entre o
conhecimento teoacuterico dos princiacutepios e como aplicaacute-los nas diversas situaccedilotildees proporciona que o
indiviacuteduo seja considerado prudente A necessidade da maturidade como um dos fatores
fundamentais para a prudecircncia eacute posta por Aristoacuteteles quando explica que jovens natildeo satildeo bons
ouvintes para as instruccedilotildees acerca da vida poliacutetica pois natildeo possuem vivecircncia suficiente dos fatos
da vida150 Normalmente eles satildeo dados a seguirem suas paixotildees o que gera uma imaturidade que
atrapalha a accedilatildeo correta Vale frisar que na perspectiva aristoteacutelica indiviacuteduos adultos que natildeo satildeo
considerados jovens tambeacutem podem ser imaturos porque a maturidade depende de uma escolha do
modo de vida151 Desta maneira a aquisiccedilatildeo da virtude da prudecircncia vem de uma escolha que
envolve uma conduta de vida pautada pela racionalidade pelas virtudes morais e pela educaccedilatildeo
para desejar os prazeres corretos
25 As virtudes morais como mediania
Eacute notaacutevel a didaacutetica que Aristoacuteteles usa para explicar alguns conceitos descritos na Eacutetica a
Nicocircmaco Eacute frequente a comparaccedilatildeo que estabelece com as artes para expressar sua filosofia
moral Por exemplo ao argumentar sobre o bem das coisas usa a arte da navegaccedilatildeo a medicina a
equitaccedilatildeo a arqueria dentre outras Ao falar das virtudes recorre agrave figura dos construtores e
muacutesicos Esse recurso comparativo tambeacutem eacute usado para explicar as virtudes morais e o conceito de
mesoacutetes (152 Ao descrever a ideia de mediania como fundamental para uma conduta
virtuosa o Estagirita mostra que um mestre de ofiacutecio para atingir a excelecircncia na feitura de um
objeto busca a mediania por meio da qual evita o exagero ou uma deficiecircncia Logo o meio-termo
preserva a obra e os extremos a destroem A analogia confere clareza ao argumento aristoteacutelico
Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo (e escolhendo-o ndash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamentea noacutes Se assim pois que cada arte realiza bem o seu trabalho ndash tendo diante dosolhos o meio-termo e julgando suas obras por esse padratildeo e por isso dizemosmuitas vezes que agraves boas obras de arte natildeo eacute possiacutevel tirar nem acrescentar nada
149 Cf EacuteN 1094b 27 Ibidem p 10150 Cf EacuteN 1095a 3-5 Ibidem p 10 A relaccedilatildeo entre prudecircncia e experiecircncia seraacute estudada com mais detalhes noCapiacutetulo III 151 Cf EacuteN 1095a 6-13 Ibidem p 10152 O termo mesoacutetes pode ser traduzido por mediania meio-termo termo meacutedio mediedade
50
subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelecircncia dessas obrasenquanto o meio-termo a preserva e para este como dissemos se voltam osartistas no seu trabalho - e se ademais disso a virtude eacute mais exata e melhor quequalquer arte como tambeacutem o eacute a natureza segue-se que a virtude deve ter oatributo de visar ao meio-termo Refiro-me agrave virtude moral pois eacute ela que dizrespeito agraves paixotildees e accedilotildees nas quais existe excesso carecircncia e meio-termo153
O artesatildeo visa a mediania para realizar uma obra-prima Nesta nada eacute ausente tampouco eacute
possiacutevel acrescentar algo A excelecircncia da obra consiste na medida correta De modo anaacutelogo a
virtude moral se encontra na mediania O indiviacuteduo com virtudes morais eacute aquele que sabe constatar
nas situaccedilotildees qual eacute a proporccedilatildeo certa de seus afetos e accedilotildees para construir a si proacuteprio como ldquoobrardquo
de sua vida e alcanccedilar a eudaimonia
A virtude moral eacute caracterizada pela ideia de medianiaAmesoacutetes eacute o meio-termo entre
dois extremos de conduta Eacute o que nos mostra o Estagirita ao afirmar que ldquoPelas mesmas razotildees o
excesso e a falta satildeo caracteriacutesticos do viacutecio e a mediania da virtude pois os homens satildeo bons de
um modo soacute e maus de muitos modosrdquo154 Estes extremos satildeo considerados como viacutecios por
Aristoacuteteles Uma conduta virtuosa consiste em agir entre estes dois extremos Quais satildeo estas duas
formas de accedilatildeo ou emoccedilotildees que devem ser evitadas Satildeo dois tipos de viacutecios que denotam um
excesso ou uma carecircncia no sentir e no agir Deste modo a virtude eacute a proporccedilatildeo correta que evita
que o indiviacuteduo incorra em condutas que satildeo viciosas
A mediania natildeo deve ser entendida como um caacutelculo matemaacutetico exato e rigoroso Na
aritmeacutetica entre os nuacutemeros zero e dez a metade deste conjunto de numeraccedilatildeo eacute cinco Este
resultado eacute sempre o mesmo natildeo existe uma dependecircncia das situaccedilotildees para que isto ocorra Mas
esta exatidatildeo numeacuterica natildeo se aplica agrave conduta humana visto que a mediania deve ser observada
em relaccedilatildeo a noacutes examinando as situaccedilotildees pertinentes nas quais estamos inseridos Um exemplo
que ilustra o meio-termo eacute a alimentaccedilatildeo necessaacuteria de um atleta em comparaccedilatildeo a uma pessoa
sedentaacuteria que permanece o dia inteiro em um escritoacuterio O atleta necessita de uma alimentaccedilatildeo
mais rica em nutrientes e em quantidade maior enquanto o indiviacuteduo sedentaacuterio natildeo precisa de uma
nutriccedilatildeo diferenciada Ambos devem ter a alimentaccedilatildeo adequada agraves suas necessidades para que
possam cumprir sua funccedilatildeo e se manterem saudaacuteveis O mesmo ocorre com o exerciacutecio fiacutesico Por
isso o meio-termo preserva a sauacutede do corpo pois esta pode ser destruiacuteda tanto pelo excesso de
exerciacutecios alimentaccedilatildeo e bebida quanto pela sua total ausecircncia
153 EacuteN II 1106b 5-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32154 Cf EacuteN II 1106b 34-35 Ibidem p 33 Aleacutem da traduccedilatildeo utilizada neste trecho ldquopois os homens satildeo bons de ummodo soacute e maus de muitos modosrdquo feita por L Vallandro e G Bornheim 1987 indicamos a traduccedilatildeo feita por EdsonBini (2013 p 77) referente ao mesmo trecho ldquoSimples eacute a bondade muacuteltipla a maldaderdquo E a traduccedilatildeo realizada porMarco Zingano (2008 p 51) ldquoBravos pois de um soacute modo mas maus de muitos modosrdquo
51
No campo das virtudes morais esta mesma ideia de evitar o excesso ou carecircncia eacute aplicada
O indiviacuteduo que foge diante de quaisquer perigos ou natildeo enfrenta os desafios transforma-se em um
covarde Mas ao enfrentar todas as situaccedilotildees sem nenhum temor torna-se um temeraacuterio A coragem
consiste em natildeo ser um covarde nem ser um afoito que natildeo calcula os riscos Da mesma forma o
homem que cede a todos os prazeres natildeo praticando a temperanccedila assume a postura de um
libertino Entretanto se escolhe natildeo usufruir de nenhum tipo de prazer se converte em uma pessoa
insensiacutevel A temperanccedila estaacute na moderaccedilatildeo dos prazeres Tal como a sauacutede eacute adquirida e se
manteacutem pelo haacutebito de uma boa alimentaccedilatildeo e exerciacutecios fiacutesicos as virtudes satildeo adquiridas por
meio de uma boa praacutetica habitual Tornamo-nos temperantes evitando os extremos o que nos
capacita a sermos moderados O mesmo ocorre com a coragem ao confrontar aquilo que nos causa
medo nos tornamos corajosos Portanto as virtudes satildeo preservadas pela mediania mas satildeo
extinguidas pelo exagero ou pela deficiecircncia que impedem a execuccedilatildeo de uma accedilatildeo virtuosa
Eacute importante ressaltar que a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que proporciona um
proceder correto da conduta do indiviacuteduo A virtude diz respeito agraves paixotildees e as accedilotildees Em relaccedilatildeo
aos afetos significa que as paixotildees possam ser experimentadas da forma correta155 As paixotildees satildeo
corretamente vivenciadas quando atendem os requisitos de serem experimentadas no momento
oportuno quando se referem agraves pessoas certas visa o propoacutesito certo pelo motivo certo e da
maneira correta156 Os mesmos requisitos descritos acerca das emoccedilotildees satildeo aplicados agraves accedilotildees do
indiviacuteduo Estas tambeacutem devem ser realizadas do modo certo para serem consideradas virtuosas157
Satildeo as virtudes morais que permitem que o indiviacuteduo possa adquirir a excelecircncia ao lidar com as
paixotildees e consequentemente com as accedilotildees Diante dessas condiccedilotildees relacionadas tanto agraves paixotildees
quanto agraves accedilotildees o Estagirita assevera que eacute um desafio ser um homem bom porque eacute faacutecil errar de
muitos modos enquanto a conduta certa possui somente um uacutenico modo de agir158
Todas as accedilotildees e paixotildees possuem um meio-termo Aristoacuteteles afirma que determinadas
condutas natildeo satildeo passiacuteveis de aplicaccedilatildeo do conceito de mesoacutetes devido ao fato que estas satildeo maacutes
por si proacuteprias Natildeo satildeo os excessos ou as carecircncias que transformam estas condutas em accedilotildees ou
paixotildees agrave serem evitadas mas as suas proacuteprias essecircncias satildeo maldosas O Estagirita elenca alguns
exemplos referentes aos afetos como a malevolecircncia o despudor a inveja quanto agraves accedilotildees cita o
adulteacuterio o furto e o homiciacutedio Outro argumento exposto por Aristoacuteteles para natildeo aplicar a ideia de
mediania nas condutas mencionadas eacute que seria uma insensatez pensar a existecircncia de um meio-
termo em algo que por si mesmo jaacute eacute um excesso ou uma carecircncia Natildeo pode haver a ldquodemasiardquo de
155 Cf EacuteN II 1106b 15-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32-33156 Cf EacuteN II 1106b 20-24 Ibidem p 33157 Cf EacuteN II 1106b 26-29 Ibidem p 33158 Cf EacuteN II 1106b 35 Ibidem p 33
52
um excesso ou a ldquocarecircnciardquo de uma insuficiecircncia cerca das maacutes condutas descritas outro
exemplo que demonstra a clareza da ideia consiste no fato de que natildeo eacute possiacutevel existir uma
mediania quando as proacuteprias essecircncias das accedilotildees ou paixotildees satildeo perversas A tiacutetulo de exemplo eacute
absurdo imaginar que um indiviacuteduo que comete adulteacuterio com a frequecircncia de ser ldquomeramenterdquo
uma vez por ano durante um evento determinado com uma pessoa considerada bondosa e com a
duraccedilatildeo do encontro por apenas alguns minutos pode estar justificada moralmente Natildeo eacute
moderaccedilatildeo deste tipo de conduta que a faz ser boa ela sempre seraacute perniciosa A mesma ilustraccedilatildeo
pode ser aplicada agraves demais accedilotildees maacutes Logo de qualquer forma que estas accedilotildees sejam cometidas
estatildeo sempre erradas conforme nos mostra Aristoacuteteles
Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes quejaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito () o despudor() a inveja (θόνος) e no campo das accedilotildees o adulteacuterio (μοιχεία) ofurto (κλοπή) o assassiacutenio () Todas essas coisas e outras semelhantesimplicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso oudeficiecircncia Todas essas coisas e outas semelhantes implicam nos proacuteprios nomesque satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais podehaver retidatildeo mas unicamente o erro E no que se refere a essas coisas tampoucoa bondade ou maldade dependem de cometer adulteacuterio com a mulher apropriadana ocasiatildeo e da maneira convenientes mas fazer simplesmente qualquer delas eacute ummalIgualmente absurdo seria buscar um meio-termo (um excesso e umafalta em atos injustos covardes ou libidinosos porque assim haveria um meio-termo do excesso e da carecircncia um excesso do excesso e uma carecircncia da carecircnciaMas do mesmo modo que natildeo existe excesso nem carecircncia de temperanccedila ecoragem pois o que eacute intermediaacuterio tambeacutem eacute noutro sentido um extremotambeacutem das accedilotildees que mencionamos natildeo haacute meio-termo nem excesso nem faltaporque de qualquer forma que sejam praticadas satildeo maacutes Em suma do excesso eda falta natildeo haacute um meio-termo como tambeacutem natildeo haacute excesso ou falta de meio-termo159
Nas diversas situaccedilotildees que o homem se depara Aristoacuteteles descreve que um dos
aspectos160que deve ser observado para que a virtude moral possa atuar eacute a noccedilatildeo de
ldquoquantidaderdquo161 Lidar com os afetos significa experimentaacute-los na proporccedilatildeo correta dentro da
situaccedilatildeo enfrentada pelo indiviacuteduo162 Neste sentido uma observaccedilatildeo menos cuidadosa das
caracteriacutesticas da virtude pode levar agrave interpretaccedilatildeo equivocada que a mediania consistiria somente
em ter sentimentos moderados de uma forma inflexiacutevel sem atentar para os demais requisitos Para
159 EacuteN II 1107a 10-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33160 Cf EacuteN II 1106b 20-24 ARISTOacuteTELES Ibidem p 33 Outros elementos satildeo a ocasiatildeo apropriada os objetosapropriados as pessoas apropriadas o motivo correto e a maneira conveniente 161 A ldquoquantidaderdquo pode ser entendida como intensidade das emoccedilotildees162 Cf EacuteN II 1106b 18-19 Ibidem p 33
53
exemplificar esta perspectiva imaginemos o caso de um indiviacuteduo que seja viacutetima de um assalto a
ldquomatildeo armadardquo Ele deve sentir brandamente raiva do meliante natildeo se exaltando diante da
ocorrecircncia Outro exemplo seria a pessoa que natildeo se alegra nos eventos prazerosos Portanto a
virtude como accedilatildeo e paixatildeo corretas seria baseada no aspecto quantitativo de afeto
Esta interpretaccedilatildeo acima descrita natildeo condiz com o argumento aristoteacutelico acerca da
virtude moral163 Primeiro porque desconsidera os outros aspectos que devem ser observados pelo
indiviacuteduo para que a accedilatildeo possa ser tido como moralmente virtuosa Estes aspectos satildeo o tipo de
pessoa qual o momento em que ocorreu a accedilatildeo se o motivo foi correto ou errocircneo se a maneira de
agir foi adequada ou natildeo Esta interpretaccedilatildeo equivocada determina a ldquoquantidade meacutediardquo de afetos
que o indiviacuteduo deve vivenciar independente de qual seja as circunstacircncias O problema estaacute no
fato que esta vivecircncia se baseia em pressupostos abstratos Segundo porque a avaliaccedilatildeo das paixotildees
e accedilotildees eacute realizada a partir das circunstacircncias concretas nas quais o indiviacuteduo estaacute inserido
Terceiro a virtude moral se encontra no campo da razatildeo praacutetica natildeo eacute possiacutevel estabelecer um
comportamento que tenha uma ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo dotada de uma precisatildeo matematicamente
exata e imutaacutevel164 Na visatildeo aristoteacutelica o exame correto da conduta visa agraves particularidades de
cada situaccedilatildeo e evita qualquer abstraccedilatildeo relacionada as emoccedilotildees A ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo deve
ser adequada em cada situaccedilatildeo enfrentada A anaacutelise se o homem teve ou natildeo os afetos apropriados
deve considerar quem eacute a pessoa seus motivos o que estava ocorrendo naquele contexto etc
Portanto o aspecto quantitativo natildeo deve ser dispensado totalmente no exame da virtude visto que
ele tambeacutem compotildeem a accedilatildeo correta mas deve ser observado juntamente com os demais aspectos
relacionadas agrave accedilatildeo pautada pela virtude moral
Eacute importante ficar claro que o indiviacuteduo que busca atingir a mediania e por consequecircncia
uma accedilatildeo virtuosa precisa atentar para todos os aspectos envolvidos na virtude moral intensidade
correta dos afetos momento oportuno a pessoa visada o propoacutesito a maneira adequada de agir
Com frequecircncia erra-se em um requisito ou outro o que ocasiona um erro ou acerto parcial na
conduta Entretanto o equiacutevoco cometido em todos os aspectos acarreta uma accedilatildeo viciosa e por
isso uma maacute conduta Uma accedilatildeo virtuosa que prima pela excelecircncia cumpre todos as condiccedilotildees da
virtude moral Contudo Aristoacuteteles adverte que todos estes requisitos necessitam estar em
consonacircncia com a reta razatildeo165
Ao orientar a mediania a reta razatildeo implica que cada situaccedilatildeo necessita de uma accedilatildeo
apropriada O homem virtuoso pode agir de uma maneira ou de outra conforme a necessidade de
cada ocasiatildeo mas sempre com a finalidade de que sua accedilatildeo seja moralmente virtuosa Citamos um
163 Cf EacuteN II 1104b 20-29 Ibidem p 29164 Cf EacuteN II 1104a 3-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 28165 Cf EacuteN II 1103b 33-35 Ibidem p 28
54
exemplo para clarificar esta ideia em uma circunstacircncia ldquoxrdquo eacute imperioso que tenha muita ira e que
aja de acordo com este afeto Na circunstacircncia ldquoyrdquo apenas eacute necessaacuteria uma ira branda para que a
melhor accedilatildeo se realize Nota-se que a mediania que estaacute em concordacircncia com a reta razatildeo
estabelece que a accedilatildeo virtuosa eacute aquela que se adequa agrave situaccedilatildeo na qual o indiviacuteduo estaacute inserido
No entender de Martin Rhonheimer o meio-termo da virtude eacute o melhor e o maacuteximo que se deve
fazer em cada ocasiatildeo e isso eacute o bem determinado pela razatildeo166 As paixotildees e as accedilotildees satildeo avaliadas
agrave luz da racionalidade Eacute a razatildeo que examina se houve uma demasia ou uma insuficiecircncia E quem
define da melhor forma possiacutevel a reta razatildeo eacute a pessoa dotada de sabedoria praacutetica ou seja o
homem prudente (φρόνιμος) Por isso a virtude moral como mediania entre duas accedilotildees ruins estaacute
intimamente conectada agrave prudecircncia como mostra Aristoacuteteles
A virtude (ἀρετή) eacute pois uma disposiccedilatildeo (ἕξις) de caraacuteter relacionada com aescolha ( e consistente numa mediania ( isto eacute a medianiarelativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional proacuteprio do homemdotado de sabedoria praacutetica (φρόνιμος) E eacute um meio-termo (entre doisviacutecios ( um por excesso ( e outro por falta ( pois queenquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente notocante agraves accedilotildees ( e paixotildees ( a virtude encontra e escolhe omeio-termo E assim no que toca agrave sua substacircncia (ou0sian) e agrave definiccedilatildeo (l gonoacutej )que lhe estabelece a essecircncia (e0stin) a virtude eacute uma mediania com referecircncia aosumo bem ( e ao mais justo eacute poreacutem um extremo (167
Estabelecer a mesoacutetes em uma situaccedilatildeo concreta natildeo eacute uma tarefa faacutecil uma vez que eacute
imprescindiacutevel atentar para vaacuterios aspectos relacionados agrave virtude moral168 Diante deste fato
Aristoacuteteles propotildee trecircs criteacuterios que auxiliam na obtenccedilatildeo da mediania O primeiro eacute evitar o
extremo que mais se afasta do meio-termo Ao considerar a existecircncia de duas accedilotildees extremadas
(viacutecios) normalmente uma delas eacute mais grave e a outra menos Devemos escolher o menor dos
166 Cf RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda edicioacutenTrad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007 p 212 A obra original foi escrita na liacutengua alematildecom o tiacutetulo Die Perspecktive der Moral Grundlagen der philosphischen Ethik167 EacuteN II 1107a 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33 Uma observaccedilatildeo importante eacute sobre a traduccedilatildeo dotermo pela palavra ldquoextremordquo escolhida pelos tradutores Leonel Vallandro e Gerd Bornheim cuja obrausamos como base nesta pesquisa O uso do termo ldquoextremordquo pode ser confundido com o viacutecio pois este eacute uma condutaextremada E natildeo com algo que eacute excelente Acreditamos que o conceito seria mais compreensiacutevel nocontexto desta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco se fossem usados alguns termos como ldquoaacutepicerdquo ldquoelevadordquo ldquoaugerdquoPorque a virtude moral eacute a postura de excelecircncia que o indiviacuteduo possa ter ela permite atingir o bem humano Nestalinha de raciociacutenio Marco Zingano transcreve este trecho do seguinte modo ldquoA virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo deescolher por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo isto eacute comoa delimitaria o prudente Eacute uma mediedade entre dois males o mal por excesso e o mal por falta Ainda pelo fato deas disposiccedilotildees faltarem umas outras excederem no que se deve tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude descobree toma o meio-termo Por isso por essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlididade a virtude eacute uma mediedade massegundo o melhor e o bem eacute um aacutepicerdquo ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado davirtude moral Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008 p 51168 Cf EacuteN II 1109a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37
55
extremos169 O segundo eacute conhecer quais erros somos mais propensos a cometer Isso pode ser
reconhecido pelo prazer ou dor que experimentamos ao cometecirc-los Apoacutes esta observaccedilatildeo de
tendecircncias que atraem ao erro eacute necessaacuterio caminhar na direccedilatildeo oposta para nos aproximar da
mediania170 O terceiro eacute ter uma atitude de cautela diante das coisas prazerosas porque estas
podem ser enganosas171 Deste modo o indiviacuteduo que observar estas precauccedilotildees pode atingir o
meio-termo e ser virtuoso nas circunstacircncias nas quais estaacute envolvido
Conforme exposto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter referente agraves escolhas que o
indiviacuteduo realiza A escolha correta estaacute na mediania Esta consiste em uma proporccedilatildeo correta de
paixotildees e accedilotildees entre dois extremos que satildeo considerados como viacutecios de conduta Um destes viacutecios
eacute caracterizado pela demasia e o outro pela insuficiente A percepccedilatildeo deste termo meacutedio eacute
delimitada pela reta razatildeo que atua nas circunstacircncias concretas A recta ratio eacute o proacuteprio homem
prudente Ele eacute quem deteacutem o melhor juiacutezo acerca das situaccedilotildees e realiza as melhores opccedilotildees eacute o
homem que possui a virtude intelectual da prudecircncia Portanto adentraremos na anaacutelise da
phronecircsis visto que haacute uma relaccedilatildeo desta com as virtudes morais e por ser importantiacutessima para a
obtenccedilatildeo da eudaimonia
169 Cf EacuteN II 1109a 30 Ibidem p 37170 Cf EacuteN II 1109a 35-1109b 5-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37171 Cf EacuteN II 1109b 8-10 Ibidem p 37
56
CAPIacuteTULO III
A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICO
Neste capiacutetulo examinamos o conceito de prudecircncia Com este intento estudamos a
diferenccedila entre o saber teoacuterico o saber poieacutetico e o saber praacutetico A prudecircncia eacute uma virtude
intelectual aplicada agraves coisas contingentes Ela eacute a excelecircncia do ato de decidir e de como dirigir a
proacutepria vida Portanto o homem prudente eacute aquele que sabe decidir bem
Para decidir da melhor maneira possiacutevel o phronimos sabe como deliberar bem e escolher
bem Neste sentido eacute necessaacuterio examinar no que consiste a deliberaccedilatildeo (bouleusij) e a escolha
(proairesij) O ato de deliberar e o ato de escolher satildeo aperfeiccediloados pela prudecircncia Tambeacutem
analisamos o que eacute a reta razatildeo (o0rqoj logoj) e sua funccedilatildeo para que uma accedilatildeo seja julgada
moralmente virtuosa Outro fator a ser examinado devido a sua importacircncia para o
desenvolvimento da virtude da prudecircncia eacute o fenocircmeno da experiecircncia (e0mpeiria) pois a
phronecircsis somente pode aparecer com o transcorrer do tempo
Ademais analisamos as partes integrantes da virtude da prudecircncia Satildeo as denominadas trecircs
virtudes intelectuais menores a boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) a inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo
(gnwmn) Por fim estabelecemos a relaccedilatildeo de como a phronecircsis contribui para que o homem seja
feliz
57
31 Linhas gerais acerca da prudecircncia
No decorrer da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles trata no livro I sobre a eudaimonia como fim
uacuteltimo do homem e no que consiste a felicidade humana Esta eacute conceituada como uma atividade
conforme a virtude Para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio a praacutetica das virtudes morais A definiccedilatildeo de
virtude moral eacute a de ser uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel quase permanente e adquirida que se
caracteriza pelo domiacutenio das paixotildees Este controle racional das paixotildees impele o homem a escolher
bem qual accedilatildeo a realizar pois o auxilia a alcanccedilar a mediania necessaacuteria entre dois viacutecios para que
seja uma accedilatildeo virtuosa defronte as circunstacircncias O paracircmetro deste termo meacutedio eacute percebido e
consequentemente fornecido pelo homem prudente que se orienta pela reta razatildeo
O Estagirita analisa de modo mais detalhado o papel do intelecto para a consecuccedilatildeo de uma
accedilatildeo moral virtuosa no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco Eacute nesta parte da obra que eacute estudada de modo
mais especiacutefico a virtude intelectual da prudecircncia Por isso neste toacutepico eacute analisado em que
constitui esta virtude e suas principais caracteriacutesticas
Para uma melhor compreensatildeo da phronecircsis faccedilamos uma breve retomada da divisatildeo da
alma examinada anteriormente no capiacutetulo II As virtudes da alma satildeo referentes agraves faculdades
sensitiva e intelectiva Em relaccedilatildeo agrave primeira as virtudes morais (eacuteticas) moldam os desejos agrave luz da
razatildeo orientando-os para o bem Na segunda as virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) servem para
atingir a verdade As virtudes satildeo estados de excelecircncia vinculadas agraves funccedilotildees desempenhadas
Conforme escreve Aristoacuteteles ldquo[hellip] a obra (e2rgon) de ambas as partes intelectuais eacute a verdade
Logo as virtudes de ambas seratildeo aquelas disposiccedilotildees (e3ceij) segundo as quais cada uma delas
alcanccedilaraacute a verdade (a0lhqeuampsei) em sumo graurdquo172
Na faculdade intelectiva existem duas partes racionais referentes a dois tipos de raciociacutenios
ou conhecimentos Estes satildeo diferentes devido ao fato que visam realidades distintas com
caracteriacutesticas proacuteprias em cada uma O primeiro eacute o conhecimento cientiacutefico o qual objetiva
estudar agraves coisas que possuem causas imutaacuteveis por isso satildeo invariaacuteveis Esta parte do intelecto
tambeacutem eacute chamada de razatildeo teoacuterica que resulta na sabedoria contemplativa O segundo eacute
conhecimento calculativo ou deliberativo que analisa agraves coisas mutaacuteveis que variam com o tempo e
as circunstacircncias173 Este conhecimento visa orientar agrave accedilatildeo humana E esta pode ser feita de um
modo ou de outro Uma vez que lida com a praacutexis eacute chamada de razatildeo praacutetica ou sabedoria praacutetica
Neste sentido comeccedila-se a delinear o que seja a virtude da prudecircncia Ela eacute a proacutepria razatildeo praacutetica
que atua em um patamar de excelecircncia Conforme nos aponta Aristoacuteteles
172 EacuteN VI 1139b 12-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102173 Cf EacuteN VI 1139a 5-10 Ibidem p 101
58
Dividimos as virtudes da alma (yuxh~~j a0retaj) dizendo que algumas satildeo virtudesdo caraacuteter e outras do intelecto [hellip] Dissemos anteriormente que esta [alma] temduas partes a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeoFaccedilamos uma distinccedilatildeo simples no interior da primeira admitindo que sejam duasas partes que conceberam um princiacutepio racional uma pela qual contemplamos ascoisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamosas coisas variaacuteveis porque quando dois objetos diferem e espeacutecie as partes daalma que correspondem a cada um deles tambeacutem diferem em espeacutecie visto ser poruma certa semelhanccedila e afinidade com os seus objetos que elas os conhecemChamemos cientiacutefica a uma dessas partes e calculativas agrave outra pois o mesmo satildeodeliberar (bouleuestai) e calcular (logizesqai) mas ningueacutem delibera sobre oinvariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe umprinciacutepio racional Devemos assim investigar qual seja o melhor estado de cadauma dessas duas partes pois nele reside a virtude de cada uma174
A virtude da prudecircncia eacute diferente da ciecircncia (e0pisthampmh) O conhecimento cientiacutefico possui
como objeto de estudo aquilo que existe necessariamente Eacute um objeto eterno Por isso nunca se
altera natildeo perece nem eacute nascido ou criado Devido agraves qualidades mencionadas as coisas
invariaacuteveis podem ser consideradas como fundamentos seguros para prover um conhecimento
indubitaacutevel Este eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo podendo ser transmitido por meio da instruccedilatildeo A
ciecircncia visa o conhecimento dos universais Isto permite que haja um convencimento baseado
nestes primeiros princiacutepios Deste modo adquirimos um conhecimento seguro que permite alcanccedilar
a verdade quando se trata de uma realidade constante e perene Por isso a ciecircncia eacute uma espeacutecie de
saber diferente da prudecircncia Acerca do conhecimento cientiacutefico Aristoacuteteles nos diz que
Todos noacutes supomos que aquilo que sabemos natildeo eacute capaz de ser de outra forma[hellip]Por conseguinte o objeto de conhecimento cientiacutefico existe necessariamentedonde se segue que eacute eterno pois todas as coisas que existem por necessidade nosentido absoluto do termo satildeo eternas e as coisas eternas satildeo ingecircnitas eimpereciacuteveis Por outro lado julga-se que toda a ciecircncia pode ser ensinada e seuobjeto aprendido [hellip] Em suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nostorna capazes de demonstrar e possui as outras caracteriacutesticas limitativas queespecificamos nos Analiacuteticos pois eacute quando um homem tem certa espeacutecie deconvicccedilatildeo aleacutem de conhecer os pontos de partida que possui conhecimentocientiacutefico E se estes natildeo lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusatildeo suaciecircncia seraacute puramente acidental Com isto damos por terminada nossa exposiccedilatildeodo conhecimento cientiacutefico175
A virtude da prudecircncia tambeacutem eacute diferente da arte (texnh) Aristoacuteteles argumenta que no
mundo das coisas possiacuteveis de alteraccedilatildeo existe uma diferenccedila entre aquelas fabricadas e as accedilotildees
174 EacuteN VI 1139a 1-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101175 EacuteN VI 1139b 18-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103
59
realizadas A arte eacute a capacidade de produzir um objeto por meio de um raciociacutenio correto176 A
coisa criada passa a existir somente apoacutes a fabricaccedilatildeo humana Esta fabricaccedilatildeo varia conforme o
utensiacutelio a ser produzido uma vez que natildeo eacute algo necessaacuterio nem eacute natural a sua existecircncia pois
pode variar de acordo com as situaccedilotildees A arte como a prudecircncia tambeacutem eacute produzido pelo
intelecto e ambas versam acerca das coisas variaacuteveis A arte e a prudecircncia tratam do contingencial
ou seja do que pode ser ou natildeo ser de uma maneira ou de outra conforme eacute requerido pelas
circunstacircncias Mas as duas formas do intelecto natildeo se confundem porque a razatildeo poieacutetica trata da
produccedilatildeo de utensiacutelios em geral e a razatildeo praacutetica atua sobre as accedilotildees humanas Logo estes dois
tipos de raciociacutenios satildeo distintos entre si porque miram em realidades diacutespares que possuem
caracteriacutesticas proacuteprias
O tipo de razatildeo usada para fabricar (poihsij) natildeo eacute o mesmo quando o objetivo eacute agir
(pra=cij Os dois modos de operaccedilatildeo da racionalidade satildeo baseados em um modo correto de
raciocinar para atingirem suas finalidades Mas o que significa este raciociacutenio verdadeiro no caso do
ato de produzir O proacuteprio Aristoacuteteles responde claramente a esta pergunta
Na classe do variaacutevel incluem-se tanto coisas produzidas como coisas praticadasHaacute uma diferenccedila entre produzir e agir (poihsij kai pra=cij)[hellip] de sorte que acapacidade raciocinada de agir (meta logou e3cij prarktikh) difere dacapacidade raciocinada de produzir (meta logou poihtikh=j) Daiacute tambeacutem o natildeose incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir Oracomo a arquitetura eacute uma arte sendo essencialmente uma capacidade raciocinadade produzir e nem existe arte alguma que natildeo seja uma capacidade desta espeacutecienem capacidade desta espeacutecie que natildeo seja uma arte segue-se que a arte eacute idecircnticaa uma capacidade de produzir que envolve o reto raciociacutenio Toda arte visa agravegeraccedilatildeo e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir algumacoisa que tanto pode ser como natildeo ser e cuja origem estaacute no que produz e natildeo noque eacute produzido Com efeito a arte natildeo se ocupa nem com as coisas que satildeo ou quese gerem por necessidade nem com as que o fazem de acordo com a natureza (poisessas tecircm sua origem e si mesmas) Diferindo pois o produzir e o agir a arte deveser uma questatildeo de produzir e natildeo de agir [hellip] Logo como jaacute dissemos a arte eacuteuma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacutenio e acarecircncia de arte pelo contraacuterio eacute tal disposiccedilatildeo acompanhada de falso raciociacutenioE ambas dizem respeito agraves coisas que podem ser diferentemente177
176 Cf EacuteN VI 1140a 10 Ibidem p 103 177 EacuteN VI 1140a 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 Em relaccedilatildeo agrave frase traduzida porVallandro e Bornheim na citada passagem ldquoDaiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacuteproduzir nem produzir eacute agir (grifo nosso)rdquo Acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 181) seja maisesclarecedora ldquo[hellip] nem eacute um deles uma parte do outro pois fazer natildeo eacute uma forma de criar e nem um criar uma formade fazer (grifo nosso)rdquo Afinal natildeo eacute uma questatildeo de inclusatildeo de um tipo de raciociacutenio no outro mas de uma diferenccedilaclara que existe entre estes dois modos de operaccedilatildeo do intelecto
60
No caso da fabricaccedilatildeo ou produccedilatildeo de um objeto a razatildeo correta significa seguir as ldquoregras
de produccedilatildeo certasrdquo que permitem o artesatildeo produzir qualquer coisa de modo adequado Assim ao
realizar da maneira certa a manufatura do objeto este cumpre com a finalidade para a qual foi
projetado pelo artesatildeo Sem seguir as regras de produccedilatildeo o artesatildeo natildeo consegue fabricar o objeto
para que cumpra com a finalidade escolhida Como exemplo o proacuteprio Aristoacuteteles cita a arte da
arquitetura uma casa projetada por um arquiteto possui uma finalidade proacutepria que somente eacute
atingida se a casa for construiacuteda corretamente Podemos citar outras inuacutemeras artes como ilustraccedilatildeo
desta relaccedilatildeo entre as normas corretas de produccedilatildeo de um objeto para atender uma finalidade A
tiacutetulo de ilustraccedilatildeo basta imaginar um cuteleiro ao criar uma faca ou um curtidor ao preparar o
couro A criaccedilatildeo destes utensiacutelios deve respeitar determinadas regras ndash o modo correto de produzi-
los ndash para que a faca e o couro possam ser existir e serem usados com eficaacutecia cumprindo as
finalidades para as quais foram feitas
No que se refere agrave distinccedilatildeo entra a arte e a prudecircncia o comentador Guy Hamelin descreve
bem as caracteriacutesticas dos dois saberes Embora ambos sejam raciociacutenios praacuteticos a habilidade de
produzir um artefato exige um tipo de raciociacutenio diferente do utilizado para discernir a accedilatildeo a ser
realizada No caso da produccedilatildeo de um objeto o artesatildeo possui escolhas mais restritas Para o
artefato ser produzido de modo correto deve ser feito seguindo prescriccedilotildees precisas de fabricaccedilatildeo
Enquanto no discernimento de uma accedilatildeo a prudecircncia natildeo pode seguir regras estabelecidas Natildeo haacute
um ldquomanualrdquo de como agir em cada situaccedilatildeo A forma correta de agir eacute determinada pela
deliberaccedilatildeo apropriada a cada circunstacircncia Citamos o texto do mencionado exegeta
O Estagirita estima ser necessaacuterio diferenciar a habilidade da prudecircncia ou dodiscernimento por que o raciociacutenio praacutetico usado na habilidade difere em pelomenos dois aspectos importantes do raciociacutenio praacutetico usado na accedilatildeo Primeiro aspossibilidades de escolha resultando da habilidade satildeo muito mais restritas do queas oferecidas pela razatildeo praacutetica ligada agrave accedilatildeo Eacute manifesto que existem maneirasmais limitadas de construir um bom navio por exemplo do que viver bem a suaproacutepria vida e alcanccedilar a felicidade Por conseguinte o indiviacuteduo que age na esferada habilidade (texnh) estaacute mais restrito nas suas escolhas do que a pessoa que estaacutedecidindo a maneira de viver a sua vida A segunda distinccedilatildeo entre a habilidade e aprudecircncia em Aristoacuteteles diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do saber necessaacuteria para agir emcada uma dessas duas esferas Adquirir uma habilidade teacutecnica consisteessencialmente em conhecer como produzir um artefato e esse conhecimentoreduz-se em boa parte a um conjunto de preceitos (paraggeliai) deixados peloshabilidosos aos aprendizes Aristoacuteteles natildeo pode aceitar que seja possiacutevel adquiriruma virtude a partir de regras preestabelecidas pois cada situaccedilatildeo concreta danossa vida implica tantas possibilidades que apenas uma deliberaccedilatildeo adequada agravecircunstacircncia pode nos indicar a accedilatildeo a cumprir178
178 HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista ArchaiBrasiacutelia n 04 jan 2010 p 110-111
61
Em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana esta possui um fim em si proacutepria O ato de agir natildeo transcende a
si mesmo como os objetos criados pelo artesatildeo Como nos afirma o Estagirita ldquoCom efeito ao
passo que o produzir tem uma finalidade diferente de si mesmo isso natildeo acontece com o agir pois
que a boa accedilatildeo eacute o seu proacuteprio fimrdquo179 Diante deste fato referente agrave natureza da accedilatildeo podemos
pensar que o homem tem por ldquotarefardquo impelido pela sua funccedilatildeo proacutepria (ἔργον)180 de aperfeiccediloar a
si mesmo para alcanccedilar a eudaimonia Para isso deve aprimorar sua racionalidade para atingir a
verdade e orientar os seus iacutempetos ndash dominar suas paixotildees educar seus desejos e prazeres ndash por
meio das virtudes morais para aquilo que eacute bom digno e nobre Neste sentido podemos dizer que a
ldquoobra-primardquo a ser realizada atraveacutes das nossas boas accedilotildees somos noacutes mesmos
A criaccedilatildeo (produccedilatildeo fabricaccedilatildeo) de um artefato pertence a um gecircnero diferente da accedilatildeo O
ato de criar possui uma finalidade que transcende o homem que cria O objeto fabricado eacute distinto
do criador Por exemplo a fabricaccedilatildeo de um vaso de argila por um artesatildeo Por outro lado a accedilatildeo eacute
imanente ao proacuteprio homem pois eacute realizada pelo proacuteprio agente Natildeo haacute um objeto produzido que
eacute exterior ao homem O phronimos ao escolher a melhor accedilatildeo a ser realizada natildeo cria um produto
tangiacutevel algo corpoacutereo que possa ser tocado Deste modo ao ser referir agrave accedilatildeo humana esta eacute
compreendida como um ato de agir e natildeo como um ato de criaccedilatildeo O ato de criar eacute referente a quem
produz alguma coisa
Da mesma forma que na Eacutetica a Nicocircmaco a distinccedilatildeo entre o saber teoacuterico e saber praacutetico
tambeacutem eacute assinalada na Metafiacutesica Nela Aristoacuteteles descreve que a busca da verdade eacute a finalidade
principal tanto para a parte cientiacutefica quanto para a calculativa do intelecto Tambeacutem satildeo
delimitados os campos de aplicaccedilatildeo dos respectivos saberes embora a verdade como finalidade do
saber praacutetico eacute expresso de modo mais contundente no tratado sobre a eacutetica Na Metafiacutesica o
Estagirita assevera que o conhecimento cientiacutefico tem o objetivo de conhecer a verdade enquanto o
conhecimento praacutetico visa a accedilatildeo Cita-se a passagem desta obra
E tambeacutem eacute justo chamar a filosofia da ciecircncia da verdade porque o fim da ciecircnciateoreacutetica eacute a verdade enquanto o fim da praacutetica eacute a accedilatildeo (com efeito os que visamagrave accedilatildeo mesmo que observem como estatildeo as coisas natildeo tendem ao conhecimentodo que eacute eterno mas soacute do que eacute relativo a determinada circunstacircncia e numdeterminado momento) Ora natildeo conhecemos a verdade sem conhecer a causa181
Eacute interessante notar que Aristoacuteteles natildeo considera o intelecto apenas algo meramente
instrumental embora em um determinado sentido a racionalidade possa ser compreendida como
179 EacuteN VI 1140b 6-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 180 Conforme visto no capiacutetulo I no item 14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres181 Metafiacutesica 993b 20-23 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 73
62
instrumento para atingir um fim que satildeo as causas imutaacuteveis no caso do saber teoacuterico Na
produccedilatildeo de um objeto haacute a razatildeo poieacutetica E ainda haacute a deliberaccedilatildeo nas situaccedilotildees que dizem
respeito agrave razatildeo praacutetica A racionalidade tambeacutem pode ser entendida como um fim que ultrapassa a
perspectiva de mera instrumentalidade Natildeo eacute somente uma ferramenta para alcanccedilar fins desejados
Uma vez que o homem anseia pela verdade das coisas o desejo de conhecer eacute imanente a noacutes 182
Conhecer as coisas para alcanccedilar a verdade eacute uma funccedilatildeo proacutepria da razatildeo humana Logo a
atividade racional tambeacutem eacute desejada pelo homem pois permite que esta conheccedila a verdade e ao
conhececirc-la possa alcanccedilar a eudaimonia Em outros termos o proacuteprio exerciacutecio da razatildeo nos seus
distintos saberes torna o homem mais pleno e realizado e por isso mais feliz
Em suma o intelecto eacute parte da alma que busca compreender o mundo Para isso possui as
funccedilotildees de escolher ordenar hierarquizar especular O intelecto opera de formas distintas de
acordo como o tipo de finalidade exigida Em outros termos a razatildeo humana utiliza diferentes tipos
de raciociacutenios A sabedoria praacutetica natildeo eacute ciecircncia nem arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque
este se baseia em princiacutepios imutaacuteveis e por isso passiacuteveis de demonstraccedilatildeo Natildeo precisa utilizar
da deliberaccedilatildeo pois esta serve somente no caso de situaccedilotildees que variam e podem gerar diversos
resultados Tambeacutem natildeo eacute arte porque esta natildeo visa a accedilatildeo proacutepria do homem O conhecimento
produtivo cria coisas que possuem uma existecircncia concreta que diferem do artesatildeo que as produz
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos diferentes tipos de saberes (e0pisthmh texnh fronhsij) com suas
respectivas finalidades resta expor de modo mais detalhado a proacutepria prudecircncia Neste sentido
abordaremos esta virtude intelectual no proacuteximo toacutepico
32 O conceito de prudecircncia
A virtude intelectual da prudecircncia tem como papel operar o saber praacutetico em niacutevel de
excelecircncia A prudecircncia eacute a areteacute da razatildeo praacutetica Isso significa que nas diversas circunstacircncias
enfrentadas pelo homem tanto em situaccedilotildees corriqueiras no seu cotidiano quanto naquelas mais
importantes que definem a vida como um todo eacute necessaacuterio decidir entre vaacuterias opccedilotildees que podem
ser tomadas A prudecircncia eacute o conhecimento da boa deliberaccedilatildeo e decisatildeo E decisotildees corretas
facilitam alcanccedilar a eudaimonia Dificilmente um homem pode ser feliz se a maior parte das
decisotildees que tomou foram errocircneas Neste sentido o homem prudente conhece a melhor forma de
tomar uma decisatildeo o que acarreta saber que accedilatildeo realizar perante as situaccedilotildees nas quais estaacute
envolvido
182 Cf Metafiacutesica 980a 22 Op cit p 04 Conforme descrito neste trecho da obra ldquoTodos os homens tendem aosaberrdquo Ibidem p 4
63
A prudecircncia eacute o raciociacutenio correto e verdadeiro que permite o homem deliberar sobre o que
eacute bom e apropriado para si mesmo e para os outros A partir desta percepccedilatildeo esta virtude possui a
funccedilatildeo de escolher a melhor accedilatildeo para atingir o fim escolhido A phronecircsis vislumbra os meios
mais eficazes para que a accedilatildeo seja eficaz O homem prudente eacute efetivo em suas accedilotildees porque decide
de modo correto age da forma certa ao escolher os melhores meios para alcanccedilar os fins e sua accedilatildeo
eacute nobre Portanto o phronimos eacute o homem que delibera com acerto e por isso decide bem agrave luz
das variadas situaccedilotildees Eacute o que nos mostra Aristoacuteteles
Ora julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacuteticao poder deliberar bem (kalw~v bouleusasqai) sobre o que eacute bom eacute conveniente(a)gaqa kai sumfeampronta) para ele natildeo sob um aspecto particular como porexemplo sobre as espeacutecies de coisas que contribuem para a sauacutede e o vigor massobre aquelas que contribuem para a vida boa em geral Bem o mostra o fato deatribuirmos sabedoria praacutetica a um homem sob um aspecto particular quando elecalculou bem com vistas em alguma finalidade boa que natildeo se inclui entre aquelasque satildeo objeto de alguma arte Segue-se daiacute que num sentido geral tambeacutem o homem que eacute capaz de deliberarsobre coisas que natildeo podem ser de outro modo (ou0k e1sti bouleusasqai per tw~~nigrave tw~~ne0c a0nagkhj ontwn) [hellip] Resta pois a alternativa de ser ela uma capacidade(e3cin) verdadeira (a0leqou~~j) e raciocinada de agir (meta logou praktinken) comrespeito agraves coisas que satildeo boas ou maacutes para o homem ( qr p a)gaqa kaiἀν ώpῳ a)gaqa kai ῳkaka0)183
A partir desta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles nota-se que a prudecircncia possui dois aspectos O
primeiro trata da sabedoria praacutetica aplicada agrave vida particular do homem O segundo versa sobre agrave
vida coletiva No acircmbito privado o homem prudente discerne sobre os melhores meios para atingir
os fins particulares que o levam agrave eudaimonia Mas na perspectiva aristoteacutelica o homem natildeo pode
ser feliz sozinho pois sua natureza eacute poliacutetica184 O bem humano tambeacutem eacute a finalidade da poliacutetica185
Uma vez que o homem vive com outros eacute necessaacuterio discernir os caminhos da comunidade para
que esta atinja a felicidade O acircmbito comunitaacuterio diz respeito agrave vida na poacutelis Sem a eudaimonia na
cidade-Estado o homem natildeo poderaacute ser completamente feliz Logo o phronimos ao visar a vida
feliz sabe que esta eacute composta pelo que eacute bom e nobre tanto para ele quanto para os outros que o
cercam Acerca da poacutelis como incentivadora da eudaimonia temos na Eacutetica a Nicocircmaco
183 EacuteN VI 1140a 26 a 1140b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Tambeacutem conferir EacuteN VI1141a 9-12 p 106184 Cf Poliacutetica I 1253a 5 A expressatildeo ldquoanimal poliacuteticordquo (politikon zw~~on) deve ser entendida no sentido denatureza social ou sociaacutevel Eacute natural dos indiviacuteduos serem gregaacuterios 185 Sobre a eudaimonia como finalidade da poacutelis eacute proveitosa a leitura das passagens na Poliacutetica III 1278a 23-301280a 32-40 agrave 1280b 1-10 1283a 15-20 Ademais devemos recordar que a virtude moral da justiccedila somente pode serefetivada na comunidade Esta virtude eacute a ldquojoiardquo que permite a vida feliz na poacutelis
64
Ningueacutem duvidaraacute de que o seu estudo [do sumo bem] pertenccedila agrave arte maisprestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra Ora apoliacutetica (politikh) mostra ser dessa natureza pois eacute ela que determina quaisciecircncias que devem ser estudadas num Estado quais satildeo as que cada cidadatildeo deveaprender e ateacute que ponto e vemos que ateacute as faculdades tidas em maior apreccedilocomo a estrateacutegia a economia e a retoacuterica estatildeo sujeitas a ela Ora como a poliacuteticautiliza as demais ciecircncias e por outro lado legisla sobre o que devemos e o quenatildeo devemos fazer a finalidade dessa ciecircncia deve abranger as das outras de modoque essa finalidade seraacute o bem humano (a0gaqon) Com efeito ainda que tal fimseja o mesmo tanto para o indiviacuteduo como para o Estado (polei) o deste uacuteltimoparece ser algo maior e mais completo quer a atingir quer a preservar Emboravalha bem a pena atingir esse fim para um indiviacuteduo soacute eacute mais belo (kallion) emais divino (qeioteron) alcanccedilaacute-lo para uma naccedilatildeo ou para as cidades-Estado(e1qnei kai polesin) 186
A prudecircncia particular estaacute atrelada agrave prudecircncia coletiva Esta ideia eacute importante porque
recorda que Aristoacuteteles nunca perde de vista que a felicidade do homem estaacute inserida na poacutelis grega
Embora o Estagirita assevere que a genuiacutena felicidade individual esteja na sabedoria
contemplativa187 esta eacute mais facilmente atingida em um ambiente de felicidade comunitaacuteria A
prudecircncia deve ser entendida como sendo uma virtude intelectual que propicia uma correta escolha
que permite tomar boas decisotildees direcionadas para os fins nobres Devemos recordar que o
phronimos eacute um homem que tem a prudecircncia consolidada em seu caraacuteter Deste modo ele possui
uma visatildeo clara sobre o que eacute bom justo e nobre para si e para a comunidade em que vive
Nesta linha de raciociacutenio basta imaginarmos uma cidade bairro ou qualquer outro ambiente
coletivo Se nestes imperam os viacutecios e natildeo as virtudes existiratildeo dificuldades maiores para o
homem ser feliz No caso contraacuterio nos lugares onde as virtudes se sobressaem o homem teraacute sua
busca pela felicidade facilitada E aleacutem disso em uma sociedade virtuosa desde a infacircncia o
homem eacute educado para as virtudes Isto gera um ciclo beneacutefico a cidade auxilia o cidadatildeo a ser
virtuoso e consequentemente a ser feliz e este ajuda a cidade a ser mais virtuosa Enfim eacute a antiga
liccedilatildeo que assim como satildeo os cidadatildeos tal seraacute a cidade
Como exemplo dessa prudecircncia que estabelece uma ligaccedilatildeo entre os fins particulares e os
coletivos Aristoacuteteles cita como modelo de homem prudente o estadista ateniense Peacutericles e outros
como ele188 Este eacute considerado o maior liacuteder ateniense ou pelo menos um dos seus maiores gecircnios
poliacuteticos Sua grandeza proveacutem do fato que ele discernia bem sobre estas duas aplicaccedilotildees da
prudecircncia Julgava com acerto os rumos que Atenas deveria seguir pois visava o que era bom para
os cidadatildeos atenienses O Estagirita tambeacutem coloca como detentores da prudecircncia os bons
186 EacuteN I 1094a 27 a 1094b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10187 EacuteN X 1178b 28-33 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 191188 Cf EacuteN VI 1140b 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104
65
ecocircnomos (oikonomikouj) e os bons estadistas (politikouj) porque visam a felicidade da poacutelis189
Sobre o fim uacuteltimo da cidade grega e sua organizaccedilatildeo mais uma vez podemos observar uma
diferenccedila entre o filoacutesofo de Estagira e Platatildeo O pensamento aristoteacutelico considera que a
eudaimonia coletiva eacute um fim alcanccedilado por meio da forma que a poacutelis se organiza e a filosofia
moral que a direciona O bem da cidade-Estado estaacute no estiacutemulo agrave racionalidade e virtudes morais
dos cidadatildeos Enquanto para o seu antecessor o mundo das Ideias eacute a referecircncia para a cidade-
estado O comentaacuterio de Pierre Aubenque expressa bem este entrelaccedilamento entre o acircmbito
particular e o coletivo e a distinccedilatildeo com o pensamento platocircnico ao dizer que
ldquoOra a vida feliz (que ser trate da cidade ou da casa como indiviacuteduo) eacute atotalidade que transcende os fins particulares O prudente natildeo eacute entatildeo o puroempiacuterico que vive o dia-a-dia sem princiacutepios e sem perspectivas mas eacute o homemde visatildeo de conjunto E permanece a seu modo o herdeiro do sunoptikojplatocircnico embora veja uma totalidade concreta ndash o bem total da comunidade ou doindiviacuteduo - e natildeo essa Totalidade abstrata e segundo Aristoacuteteles irreal que era omundo platocircnico das Ideiasrdquo190
O homem prudente eacute uma espeacutecie de visionaacuterio Natildeo no sentido contemplativo mas como
um homem que vecirc ou mesmo prevecirc a conjuntura presente ou futura e consegue escolher o melhor
caminho a ser tomado Isto tanto na esfera privada quanto na coletiva Ele eacute detentor de um
importante tipo de conhecimento o de perceber as sutilezas do que se passa a sua volta e consigo
mesmo para tomar boas decisotildees que resultam em accedilotildees corretas Enfim accedilotildees que geram
resultados positivos conduzem o homem e o grupo em que vive para mais perto da eudaimonia
Essa percepccedilatildeo de conjuntura que propicia a decisatildeo correta eacute a marca do homem
prudente191 Mas como o phronimos consegue ter esta avaliaccedilatildeo acertada das coisas Isto ocorre
devido ao fato que o prudente conhece os princiacutepios universais (gerais) mas tambeacutem observa as
particularidades de cada situaccedilatildeo192 Ele consegue relacionar de modo efetivo os universais e os
particulares na accedilatildeo pois a accedilatildeo se encontra nos particulares O exemplo que Aristoacuteteles utiliza eacute o
do homem que possui o conhecimento de que carnes leves satildeo de faacutecil digestatildeo Estas auxiliam na
manutenccedilatildeo da sauacutede Mas ter somente esta informaccedilatildeo natildeo lhe auxiliaraacute em nada Pois ao ignorar
quais satildeos os tipos de carnes consideradas leves natildeo poderaacute reestabelecer sua sauacutede A situaccedilatildeo eacute
semelhante para vaacuterios casos Um meacutedico pode saber os princiacutepios da sauacutede em geral mas se nunca
teve experiecircncia das particularidades no atendimento de cada paciente dificilmente poderaacute curaacute-
los Ou capitatildeo de navio que conhece os princiacutepios da navegaccedilatildeo mas nunca navegou natildeo estaraacute
189 Cf EacuteN VI 1140b 10 Idem p 104190 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit 95-96 O sunoptikoacutes platocircnico eacute o homem que possuiuma visatildeo abrangente das circunstacircncias 191 Cf EacuteN VI 1141a 23-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106192 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 96
66
apto para comandar uma embarcaccedilatildeo Em suma o accedilougueiro o enfermeiro e o velho marujo
devido agraves experiecircncias (e0mpeiria) adquiridas muitas vezes atingem melhores resultados que o
homem puramente teoacuterico Nos diz Aristoacuteteles
Tampouco a sabedoria praacutetica se ocupa apenas com universais (kaqolou) Devetambeacutem reconhecer os particulares pois ela eacute praacutetica e a accedilatildeo versa sobre osparticulares Eacute por isso que alguns que natildeo sabem e especialmente os que possuemexperiecircncia satildeo mais praacuteticos do que os outros que sabem porque se um homemsoubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse queespeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutedepoderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinha193
No quesito referente ao conhecimento dos universais e dos particulares eacute importante
delimitar a distinccedilatildeo entre o saber filosoacutefico (sofia)194 e o saber praacutetico (qronesij) Anteriormente
citamos as cinco virtudes intelectuais descritas por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco195
Jaacute descrevemos com mais detalhes o saber cientiacutefico (ἐπιστήμη) e a arte (τέχνη) resta-nos discorrer
sobre o saber filosoacutefico e a razatildeo intuitiva (nou~~j) No decorrer da sua exposiccedilatildeo sobre os tipos de
saberes o noucircs eacute descrito como sendo um tipo de conhecimento que permite a imediata apreensatildeo
dos primeiros princiacutepios196 Natildeo utiliza a demonstraccedilatildeo racional para conhecer como necessitam os
saberes cientiacutefico e filosoacutefico Neste sentido o noucircs natildeo realiza determinadas operaccedilotildees mediatas
do intelecto como a deliberaccedilatildeo ou o caacutelculo E o que satildeo estes princiacutepios captados pelo noucircs Satildeo
os princiacutepios mais universais que natildeo podem mais serem deduzidos de outros princiacutepios Mas
formam a base sobre a qual a ciecircncia pode operar partindo de princiacutepios gerais para os mais
especiacuteficos Eacute o que explica a comentadora Ursula Wolf ldquo[] E visto que nem todos os princiacutepios
podem ser deduzidos de princiacutepios mais gerais e que nem todos os conceitos podem ser definidos
por meio de conceitos mais conhecidos os conceitos mais elevados da ciecircncia jaacute natildeo podem ser
explicitados discursivamente mediante princiacutepios mas apenas apreendidosrdquo197 Logo o nocircus eacute uma
captaccedilatildeo de cunho ldquointuitivordquo dos primeiros princiacutepios utilizados pela ciecircncia demonstrativa198
193 EacuteN VI 1141b 15-20 Ibidem p 106-107194 Tambeacutem chamada de ldquosapiecircnciardquo por alguns autores como REALE (Metafiacutesica Vol II 2005 p 06) eABBAGNANO (Dicionaacuterio de Filosofia 2012 p 1025-1026)195 Conferir o capiacutetulo II no toacutepico 21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais As cinco virtudes intelectuaissatildeo arte (τέχνη) conhecimento cientiacutefico (ἐπιστήμη) sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) razatildeointuitiva (νοῦς)196 EacuteN VI 1141a 16-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Em relaccedilatildeo as possiacuteveis traduccedilotildeesdo termo noucircs remetemos agrave nota de rodapeacute nordm 115197 WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p149 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)198 Cf EacuteN VI 1141a 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105
67
A sabedoria filosoacutefica eacute a perfeita forma de conhecimento Ela eacute a uniatildeo do conhecimento
cientiacutefico e do noucircs A combinaccedilatildeo destes dois tipos de saberes permite que ela contemple e
conheccedila as coisas mais sublimes Aristoacuteteles inicia sua explicaccedilatildeo sobre o saber filosoacutefico a partir
de uma noccedilatildeo mais usual aplicada ao campo das artes Neste caso o saacutebio seria o artista
consagrado como o melhor naquele tipo de arte Como exemplo seriam os mais elevados expoentes
nas artes da cutelaria da pintura da escultura da arquitetura etc Poreacutem o Estagirita vai aleacutem deste
esclarecimento inicial Para ele uma vez que existem pessoas que satildeo saacutebias de um modo geral e
natildeo em alguma arte ou ciecircncia especiacutefica estes satildeo os saacutebios em um sentido filosoacutefico Estes
homens compreendem verdadeiramente estes primeiros princiacutepios e conseguem demonstrar as
conclusotildees que se inferem a partir deles Neste sentido este eacute o perfil do homem que pode ser
chamado de filoacutesofo (filosofoj) ele maneja as teorias ou seja ldquodominardquo o saber teoacuterico
Segundo o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
A sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos(a0kribestatoij) expoentes por exemplo a Fiacutedias como escultor e Policleto comoretratista em pedra e por sabedoria aqui natildeo entendemos outra coisa senatildeo aexcelecircncia na arte (a0reth texnhj) Mas a certas pessoas consideramos saacutebias demodo geral e natildeo em algum campo particular ou sob qualquer outro aspectolimitado [hellip] Eacute pois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas deconhecimento a mais perfeita Donde se segue que o homem saacutebio natildeo apenasconheceraacute o que decorre dos primeiros princiacutepios (a0rxw~~n) senatildeo que tambeacutempossuiraacute a verdade a respeito desses princiacutepios (a0rxaj a0lhqeuein) Logo asabedoria deve ser a razatildeo intuitiva combinada com o conhecimento cientiacutefico(soqia nou=j kai e0pisthmh)ndash uma ciecircncia dos mais elevados objetos que recebeupor assim dizer a perfeiccedilatildeo que lhe eacute proacutepriardquo199
No sentido aqui exposto a teoria (qewria) eacute um saber puro desvinculado da teacutecnica
aplicada agrave produccedilatildeo de uma coisa corpoacuterea Tambeacutem natildeo estaacute ligada aos assuntos referentes agrave accedilatildeo
humana objetivo do saber praacutetico Seu campo de estudo eacute aquilo que eacute inacessiacutevel agrave experiecircncia
sensiacutevel alcanccedilaacutevel apenas pela especulaccedilatildeo Este conhecimento especulativo natildeo eacute subordinado a
nenhum outro200 Antes se constitui como fundamento dos outros tipos de saberes Por ser mais
199 EacuteN VI 1141a 10-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Eacute interessante fazer uma ressalvanas expressotildees ldquoA sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos expoentes []rdquo e ldquoEacutepois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais perfeitardquo No texto da Eacutetica aNicocircmaco satildeo usadas as palavras a0kribestatoij e a0kribestath respectivamente na primeira e segunda fraseEmbora tenham sido traduzidas como ldquoperfeitosrdquo e ldquoperfeiccedilatildeordquo o termo ἀκριβής significa ldquoprecisatildeordquo ldquoacuradordquoldquoexatidatildeordquo ldquorigorosordquo ldquoestritordquo No texto em questatildeo eacute cabiacutevel o uso do termo ldquoperfeiccedilatildeordquo pois este engloba todos osoutros conceitos citados Entretanto acreditamos que a compreensatildeo desta passagem do texto pode ser melhorentendida do seguinte modo ldquoA sabedoria nas artes eacute atribuiacuteda aos seus mais acurados expoentes []rdquo e ldquoEacute poisevidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais exatardquo 200 Cf Metafiacutesica I 981b 26-30 agrave 982a 4 e 15-17 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 6 - 9
68
afastada do mundo empiacuterico (sensiacutevel) acaba por se tornar um saber buscado por si mesmo natildeo
visando outro resultado diferentemente da epiacutesteme da poieacutesis e da praacutexis
Existe uma niacutetida distinccedilatildeo entre a sabedoria filosoacutefica e a sabedoria praacutetica Vimos que o
saber filosoacutefico visa os princiacutepios universais que satildeo imutaacuteveis necessaacuterios e eternos A prudecircncia
versa sobre o mundo contingente que muda a cada momento Por isso esta uacuteltima trata daquilo que
pode ser objeto de deliberaccedilatildeo Eacute importante observar que Aristoacuteteles demarca duas caracteriacutesticas
importantes sobre o ato de deliberar i) somente ocorre com as situaccedilotildees que satildeo mutaacuteveis e ii) a
deliberaccedilatildeo visa as coisas que possuem finalidades especiacuteficas e estas devem ser possiacuteveis de serem
obtidas pelas accedilotildees Logo o homem prudente delibera bem porque defronte das circunstacircncias faz
um caacutelculo para escolher os melhores meios para alcanccedilar o bem para o homem dentro da
conjuntura em que se encontra naquele momento De acordo com o Estagirita
A sabedoria praacutetica (fronhsij) pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas(a0nqpwpina) e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos queessa eacute acima de tudo a obra (e1rgon) do homem dotado de sabedoria praacutetica (fronimou) deliberar bem (bouleusesqai) Mas ningueacutem delibera (bouleueqai) arespeito de coisas invariaacuteveis nem sobre coisas que natildeo tenham uma finalidade(teloj) e essa finalidade um bem que se possa alcanccedilar pela accedilatildeo (praktona0gaqon) De modo que delibera bem (eu1bouloj) no sentido irrestrito da palavraaquele que baseando-se no caacutelculo eacute capaz de visar agrave melhor (a0ristou) para ohomem (a0nqpwpw|) das coisas alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo (praktw~~n)201
Apoacutes a descriccedilatildeo das caracteriacutesticas da sabedoria praacutetica e da filosoacutefica eacute possiacutevel
perguntar qual desses dois saberes eacute mais importante Aristoacuteteles responde que o homem prudente
necessita das duas formas de saber Pois a melhor accedilatildeo a ser realizada eacute o foco da virtude da
prudecircncia Esta conforme visto pressupotildee o conhecimento dos universais e dos particulares de
cada situaccedilatildeo Entretanto nem sempre eacute possiacutevel ter o domiacutenio destes dois saberes Neste caso
aplica-se o conselho aristoteacutelico ldquoOra a sabedoria praacutetica diz respeito agrave accedilatildeo Portanto deveriacuteamos
possuir ambas as espeacutecies de sabedoria ou a segunda [sabedoria praacutetica] de preferecircncia agrave primeira
[sabedoria filosoacutefica] Mas tanto da sabedoria praacutetica como da filosoacutefica deve haver uma espeacutecie
controladorardquo202 Afinal frequentemente o ato de agir perante uma conjuntura eacute feito somente com
a percepccedilatildeo dos fatos particulares e ainda apenas baseada na experiecircncia Muitas vezes estes dois
elementos da accedilatildeo atingem resultados satisfatoacuterios Deste modo tendo em vista agrave accedilatildeo humana a
preferecircncia eacute possuir a sabedoria praacutetica
201 EacuteN VI 1141b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106 Na expressatildeo ldquo[] um bem que sepossa alcanccedilar pela accedilatildeordquo visto que os termos utilizados em grego satildeo prakton a0gaqon acreditamos que a melhorforma de compreender a frase eacute ldquo[hellip] um bem que se possa alcanccedilar pela melhor accedilatildeordquo ou ldquopela correta accedilatildeordquo Istodevido ao fato que a palavra agathon a depender do uso significa ldquomelhorrdquo ldquobomrdquo ldquohonraacutevelrdquo ldquonobrerdquo ldquocorretardquoldquoconvenienterdquo ldquoefetivardquo dentre outros significados 202 EacuteN VI 1141b 22-23 Ibidem p107
69
Eacute importante observar que Aristoacuteteles traccedila uma outra caracteriacutestica da prudecircncia Esta
virtude intelectual deve focar em fins nobres A escolha dos meios natildeo pode ser voltada para
objetivos soacuterdidos O homem prudente eacute antes de tudo uma pessoa que possui um soacutelido caraacuteter
moral baseado nas virtudes morais Conforme visto anteriormente eacute considerado como um
spoudaios203 Seria contraditoacuterio que optasse por buscar fins que natildeo condizem com sua conduta
Ora o phronimos consegue visualizar as diversas nuances das circunstacircncias em que estaacute inserido
sejam individuais ou coletivas Por isso eacute perspicaz (deinothj)204 ou seja consegue encontrar as
melhores soluccedilotildees para os problemas Entretanto existe um outro tipo de pessoa que igualmente
possui perspicaacutecia diante das situaccedilotildees Eacute o homem vigarista (panou=pgoj) Este natildeo pode ser
considerado possuidor da virtude da prudecircncia por ser um homem eivado de viacutecios que busca fins
errocircneos Logo a prudecircncia somente eacute reservada para homens com nobreza de alma Eacute o que
Aristoacuteteles nos assevera
Existe uma faculdade que se chama habilidade (deinothta) e tal eacute a sua naturezaque tem o poder de fazer as coisas que conduzem ao fim proposto e alcanccedilaacute-loOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau ahabilidade seraacute simples astuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos osproacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj) Esta natildeo eacute afaculdade poreacutem natildeo existe sem ela e esse olho da alma natildeo atinge o seu perfeitodesenvolvimento sem o auxiacutelio da virtude como jaacute dissemos e como aliaacutes eacuteevidente E a razatildeo disto eacute que os silogismos em torno do que se deve fazercomeccedilam assim ldquovisto que o fim isto eacute o que eacute melhor eacute de tal naturezardquoAdmitamos no interesse do argumento que ela seja qual for mas soacute o homembom a conhece verdadeiramente porquanto a maldade nos perverte e nos leva aenganar-nos a respeito dos princiacutepios da accedilatildeo Donde estaacute claro que natildeo eacute possiacutevelpossuir sabedoria praacutetica quem natildeo seja bom205
Nota-se que a prudecircncia natildeo consiste somente na habilidade de escolher os meios para
atingir determinados fins Ela tambeacutem inclui este tipo de deliberaccedilatildeo de fins mais concretos Mas
satildeo apenas fins instrumentais que servem para atingir a eudaimonia O ato de deliberar e escolher os
meios devem ser compreendidos dentro de um panorama maior Eacute uma visatildeo geral da proacutepria vida
que acarreta em um ldquobom agirrdquo (eu0pracia) ou boa conduta constante O homem prudente delibera
203 Cf Capiacutetulo 2 item 24 O homem virtuoso204 Tambeacutem pode ser entendida como ldquohabilidaderdquo ldquoengenhosidaderdquo ldquoastuacuteciardquo ldquodestrezardquo Neste ponto eacute importanteressaltar que a moralidade maacute ou boa desta desenvoltura para resolver os problemas eacute definida pelos fins almejados Ohomem prudente a usa para alcanccedilar os fins nobres enquanto o vigarista a usa para fins errocircneos Neste sentido o termoldquoastuacuteciardquo na traduccedilatildeo citada eacute utilizado para descrever esta desenvoltura que tanto homens bons e maus possuem Naexpressatildeo ldquoOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau a habilidade seraacute simplesastuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos os proacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj)Esta natildeo eacute a faculdade poreacutem natildeo existe sem ela[]rdquo acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 197) permiteuma clareza melhor da ideia transmitida por Aristoacuteteles ldquoSe o objetivo for nobre revelar-se-aacute uma faculdade louvaacutevelse for vil revelar-se-aacute mera patifaria razatildeo pela qual nos referimos tanto a homens prudentes quanto a biltres comoengenhosos Ora ainda que essa faculdade natildeo seja idecircntica agrave prudecircncia esta a implicardquo205 EacuteN VI 1144a 25-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p112
70
natildeo somente sobre accedilotildees imediatas mas tambeacutem sobre aquilo que eacute essencial para a vida Em
uacuteltima instacircncia o homem prudente escolhe os meios tendo em vista o Supremo Bem que eacute a
proacutepria felicidade
Para o comentador Martin Rhonreimer uma vez que a verdadeira virtude da prudecircncia eacute a
ldquosabedoria das coisas humanasrdquo ela aponta para aquilo que possui uma relevacircncia para a vida como
um todo Essas ldquocoisas humanasrdquo dizem respeito a um fim geral da vida humana que passa a ser
uma referecircncia para o homem dirigir todas as suas tendecircncias206
Por fim apoacutes as descriccedilotildees feitas podemos sintetizar o conceito de prudecircncia Ela eacute uma
virtude pertencente agrave parte racional da alma que versa sobre a realidade das coisas variaacuteveis Eacute
distinta da ciecircncia e da arte pois especificamente refere-se agrave accedilatildeo humana Eacute a excelecircncia do ato
de deliberar O homem prudente conhece os princiacutepios universais e sobretudo os fatos particulares
de cada circunstacircncia Logo esta virtude permite que o homem escolha corretamente o que eacute bom
para si mesmo e para a comunidade tendo em vista os fins nobres
Dito isso passemos ao proacuteximo toacutepico que trata sobre a relaccedilatildeo entre a prudecircncia a reta
razatildeo e a experiecircncia Seraacute estudada como o homem prudente aprende esta virtude com o passar do
tempo Aleacutem disto examinaremos como a reta razatildeo atua para que o homem prudente possar
realizar uma boa escolha
33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
A prudecircncia eacute a virtude que permite a escolha correta dos meios para atingir determinados
fins Eacute a excelecircncia do ato de decidir Uma vez que natildeo nascemos com esta virtude eacute necessaacuterio
desenvolvecirc-la ao longo da vida Entatildeo como o homem torna-se prudente
A resposta a esta pergunta consiste na aquisiccedilatildeo das virtudes morais da experiecircncia
adquirida com o tempo e o estudo das chamadas virtudes intelectuais menores Visto que as virtudes
morais foram estudadas anteriormente e as virtudes intelectuais menores seraacute objeto de estudo
posterior nos concentraremos na experiecircncia e como ela auxilia na formaccedilatildeo da reta razatildeo
Conforme descrito no item anterior a phronecircsis eacute o conhecimento dos princiacutepios gerais
somada agrave deliberaccedilatildeo dos fatos particulares O homem que natildeo possui o senso das peculiaridades
inerentes a cada situaccedilatildeo natildeo poderaacute ser prudente Caso detenha somente o entendimento dos
primeiros princiacutepios ou como proceder em uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica seraacute um homem versado
no saber teoacuterico Este tipo de conhecimento pode ser aprendido por meio do estudo207 Com a
prudecircncia somente eacute possiacutevel ter este tipo de ensino de modo parcial Uma vez que ela abarca as
206 RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Op cit p 240 207 O melhor exemplo disto satildeo as diversas ciecircncias ensinadas nas instituiccedilotildees de ensino formal universidadesescolas cursos etc
71
particularidades de cada caso esta virtude somente pode ser adquirida com a vivecircncia das mais
variadas situaccedilotildees ao longo da vida A importacircncia do conhecimento dos detalhes eacute asseverada por
Aristoacuteteles ao dizer que os jovens podem ser muitos bons nas ciecircncias mas somente os homens
experientes possuem a virtude da prudecircncia Conforme nos diz o Estagirita
[hellip] embora os moccedilos possam tornar-se geocircmetras (gewmetrikoi) matemaacuteticos(maqhmatikoi) saacutebios em mateacuterias que tais natildeo se acredita que exista um jovemdotado de sabedoria praacutetica (fronimoj) O motivo eacute que essa espeacutecie de sabedoriadiz respeito natildeo soacute aos universais mas tambeacutem aos particulares que se tornamconhecidos pela experiecircncia (e0mpeiriaj) Ora um jovem carece de experiecircnciaque soacute o tempo pode dar (neoj d e1mpeiroj ou0k e1stinrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] Que a sabedoriapraacutetica natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico eacute evidente porque ela seocupa como jaacute se disse com o fato particular imediato visto que a coisa a fazer eacutedesta naturezardquo208
Um exemplo claro da importacircncia da empeiria (e0mpeiria) refere-se agrave poliacutetica A realidade
do comando da poacutelis para direcionaacute-la agrave sua plenitude talvez seja o maior desafio para o homem
prudente Afinal existe uma imensa variedade de circunstacircncias a serem enfrentadas que exigem
decisotildees acertadas para natildeo levarem a cidade-estado agrave derrocada Diante deste contexto natildeo eacute
prudente deixar os rumos da poliacutetica estatal sob o comando de homens inexperientes Por isso
Aristoacuteteles afirma que os negoacutecios puacuteblicos natildeo satildeo para os jovens pois estes ainda natildeo possuem
competecircncia suficiente para este tipo de lideranccedila devido agrave sua falta de conhecimento praacutetico209 Na
visatildeo aristoteacutelica a poliacutetica necessita tanto do saber teoacuterico para determinar os fins quanto do saber
praacutetico para alcanccedilar estes fins atraveacutes das contingecircncias com as quais a poacutelis se defronta
Naturalmente o conhecimento das peculiaridades do mundo poliacutetico natildeo eacute a uacutenica realidade que
serve como ilustraccedilatildeo da importacircncia da empeiria Logo o que se deseja exemplificar eacute que a
funccedilatildeo da empeiria consiste em harmonizar estes dois saberes
Na Metafiacutesica Aristoacuteteles tambeacutem descreve esta relaccedilatildeo entre a experiecircncia e o saber
teoacuterico Seu argumento eacute ilustrado com uma comparaccedilatildeo com as artes A experiecircncia eacute uma etapa
do ato de produzir um objeto qualquer Mas a maestria eacute alcanccedilada somente apoacutes a aprendizagem
do conhecimento da teoria por traacutes da produccedilatildeo Eacute o aprendiz que fabrica algo sem necessariamente
saber a causa da peccedila ser feita daquele jeito O mestre a produz e tambeacutem conhece o porquecirc da
208 EacuteN VI 1142a 12-15 e 22-23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106-107209 Cf EacuteN VI 1095a 3-5 Ibidem p 10
72
peccedila ser feita de uma determinada forma e natildeo de outra para que seja perfeita 210 De acordo como o
Estagirita
A experiecircncia (e0mpeiria) parece um pouco semelhante agrave ciecircncia e a arte Comefeito os homens adquirem ciecircncia (e0pisthmh) e arte (texnh) por meio daexperiecircncia A experiecircncia como diz Polo produz a arte enquanto a inexperiecircncia[falta de experiecircncia] produz o puro acaso [sorte] A arte se produz quando demuitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral (kaqolou genhtai) euacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantes Por exemplo o ato dejulgar que determinado remeacutedio fez bem a Caacutelias que sofria de certa enfermidadee que tambeacutem fez bem a Soacutecrates e a muitos outros indiviacuteduos eacute proacuteprio daexperiecircncia ao contraacuterio o ato de julgar que a todos esses indiviacuteduos reduzidos agraveunidade segundo a espeacutecie que padeciam de certa enfermidade determinadoremeacutedio fez bem (por exemplo aos fleumaacuteticos aos biliosos e aos febris) eacute proacuteprioda arteOra em vista da atividade praacutetica a experiecircncia em nada parece diferir da arteantes os empiacutericos tecircm mas sucesso do que os que possuem a teoria sem praacutetica Ea razatildeo disso eacute a seguinte a experiecircncia eacute conhecimento dos particulares enquantoa arte eacute conhecimento dos universais ora todas as accedilotildees e as produccedilotildees referem-seao particular De fato o meacutedico natildeo cura o homem a natildeo ser acidentalmente mascura Caacutelias ou Soacutecrates ou qualquer outro indiviacuteduo que leva um nome como elesao qual ocorra ser homem Portanto se algueacutem possui a teoria sem experiecircncia econhece o universal mas natildeo conhece o particular que nele estaacute contido muitasvezes erraraacute o tratamento porque o tratamento se dirige justamente ao indiviacuteduoparticularTodavia consideramos que o saber e o entender sejam mais proacuteprios da arte do queda experiecircncia e julgamos os que possuem a arte mais saacutebios do que os que soacutepossuem a experiecircncia na medida em que estamos convencidos de que a sapiecircnciaem cada um dos homens corresponda agrave sua capacidade de conhecer E isso porqueos primeiros conhecem a causa enquanto os outros natildeo a conhecem Os empiacutericosconhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outrosconhecem o porquecirc e a causa211
A prudecircncia eacute o equiliacutebrio entre a razatildeo teoacuterica e a razatildeo praacutetica Este equiliacutebrio somente eacute
ganho por meio da experiecircncia Esta uacuteltima eacute o ponto intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte A
experiecircncia eacute o uacutenico caminho para o aprendizado de como aplicar corretamente os princiacutepios
gerais traccedilados ou apreendidos pelo saber teoacuterico nas situaccedilotildees particulares Ou seja a sabedoria
praacutetica somente pode ser treinada e com isso aprendida no proacuteprio exerciacutecio de decidir qual a
melhor opccedilatildeo sob variadas condiccedilotildees A natureza da prudecircncia natildeo permite que ela seja ensinada
como um conteuacutedo de matemaacutetica A vivecircncia (experiecircncia) das situaccedilotildees eacute que forja o homem para
210 Como exemplo desta relaccedilatildeo entre saber teoacuterico saber praacutetico e experiecircncia pode-se imaginar um engenheiroautomotivo e um teacutecnico em mecacircnica de automoacuteveis O primeiro conhece a ldquociecircnciardquo por traacutes da teacutecnica enquanto osegundo apenas sabe a proacutepria teacutecnica em si Mas caso o engenheiro apenas conheccedila a ldquociecircnciardquo mas natildeo possua aexperiecircncia em consertar automoacuteveis sua accedilatildeo ficaraacute defasada Natildeo atingiraacute nenhum resultado posto que eacute inoacutecua suaaccedilatildeo 211 Metafiacutesica 981a 1-30 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 5
73
que consiga sopesar seus atos e escolhas ao considerar todos os elementos envolvidos no conjunto
das circunstacircncias212 Aliaacutes eacute um fato da vida humana que em geral a ldquoforccedilardquo eacute a caracteriacutestica
marcante nos jovens enquanto a sabedoria praacutetica pertence aos mais velhos Sobre esta
constataccedilatildeo Aristoacuteteles a sintetiza na Poliacutetica ldquo[hellip] A natureza daacute vigor agrave juventude e a prudecircncia
a uma idade mais avanccedilada [hellip]rdquo213 Dessa forma eacute a ldquoexperiecircncia de vidardquo - o confronto com as
situaccedilotildees - que faz o homem adquirir a virtude da prudecircncia Isto porque ele torna-se mais apto a
realizar deduccedilotildees e decidir melhor para chegar a conclusotildees (imperativos) de como agir melhor nas
diversas situaccedilotildees
Pierre Aubenque descreve que a experiecircncia aristoteacutelica eacute intermediaacuteria entre a sensaccedilatildeo e a
ciecircncia Ela jaacute eacute um tipo de conhecimento baseado na observaccedilatildeo dos particulares Ademais existe
uma caracteriacutestica importante na sabedoria praacutetica adquirida pela experiecircncia a de ser singular e
insubstituiacutevel214 Eacute a partir deste olhar atento sobre os detalhes acerca das coisas e pessoas e em
especial o exemplo de homens prudentes eacute que o jovem vai delineando sua vida de forma
prudente
A partir desta anaacutelise sobre a relaccedilatildeo entre saber teoacuterico o saber praacutetico e a experiecircncia eacute
possiacutevel vislumbrar o que eacute a orthos loacutegos (o0rqoj logoj) A reta razatildeo tambeacutem chamada de justa
razatildeo razatildeo correta ou regra correta eacute o paracircmetro correto da accedilatildeo a ser seguida pelo homem em
qualquer situaccedilatildeo para atingir um fim moralmente bom A mediania das virtudes morais eacute
determinada por esta razatildeo Conforme nos mostra Aristoacuteteles quando se trata da accedilatildeo humana o
cerne da razatildeo praacutetica eacute a concordacircncia entre o desejo correto e o raciociacutenio verdadeiro215Isso
significa que a recta ratio a partir da compreensatildeo dos primeiros princiacutepios consegue deduzir de
modo certo e coerente proposiccedilotildees no campo da ciecircncia e da eacutetica Deste modo eacute possiacutevel perceber
a ldquocorreta medida das coisasrdquo discernir corretamente e agir conforme o bom entendimento das
situaccedilotildees
A empeiria eacute essencial para o aprimoramento da reta razatildeo Por isso o desenvolvimento da
prudecircncia necessita de tempo A experiecircncia aperfeiccediloa o aprendizado de decidir e eacute fundamental
para a consolidaccedilatildeo das virtudes morais Conforme vimos o homem prudente reuacutene estas
condiccedilotildees ele deveria ser considerado como o homem dotado de virtudes morais216 Tambeacutem
conhece os princiacutepios universais para serem aplicados em cada caso Com a experiecircncia adquirida
com o tempo ele consegue rapidamente identificar no decorrer das circunstacircncias dois elementos
212 Cf EacuteN VI 1109a 26-29 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37 Estes elementos a serem observadosforam citados por Aristoacuteteles as pessoas envolvidas o momento a medida (quantidadeintensidade) e a maneira certa 213 Poliacutetica VII 1329a 16 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Op Cit p 156214 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 97- 98215 Cf EacuteN VI 1139a 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102216 Cf Capiacutetulo II item 24 O homem virtuoso
74
i) os meios para atingir os resultados (fins) e ii) quais os meios e os fins moralmente corretos Natildeo
pode haver uma dissonacircncia entre atos e fins na conduta Eacute interessante recordar que os fins satildeo
provenientes do desejo Por isso as virtudes morais satildeo necessaacuterias para fomentar os desejos nobres
para que o homem tenha apreccedilo por fins corretos A prudecircncia atuaraacute nos meios certos para alcanccedilar
estes fins Neste sentido o homem prudente por ter as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter
desejaraacute o que eacute bom e por ter a virtude intelectual da prudecircncia desenvolvida saberaacute discernir os
melhores meios para atingir os fins nobres Dessa forma ele estaacute mais apto que os outros para agir
em consonacircncia com a reta razatildeo
Sobre a empeiria o comentaacuterio de Satildeo Tomaacutes de Aquino reafirma a posiccedilatildeo aristoteacutelica que
somente o tempo a experiecircncia e o ensino permitem o florescimento da virtude intelectual da
prudecircncia De acordo com o descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] o Filoacutesofo diz que ldquoa virtude nasce e cresce principalmente pelo ensinamentoeacute por isso que ela requer experiecircncia e tempordquo Ora a prudecircncia eacute uma virtudeintelectual como se explicou anteriormente Logo natildeo somos prudentesnaturalmente mas graccedilas ao ensinamento e agrave experiecircncia Respondo Como estaacute claro pelo que foi dito antes a prudecircncia inclui oconhecimento dos universais e tambeacutem dos singulares que se devem fazer aosquais aplica os princiacutepios universais[ hellip] e como diz o Filoacutesofo ldquoA vidaespeculativa eacute melhor que a humanardquo Mas os princiacutepios universais posterioresseja da razatildeo especulativa seja da razatildeo praacutetica natildeo satildeo naturais Satildeo descobertospela experiecircncia ou pela instruccedilatildeo217
Diante do exposto a pergunta inicial de como um homem se torna prudente eacute respondida A
virtude da prudecircncia eacute adquirida ao longo do tempo por meio da empeiria e do aprendizado de
como aplicar este saber praacutetico no mundo contingente A prudecircncia permite ao homem apreender agrave
justa razatildeo E esta eacute a proacutepria prudecircncia em relaccedilatildeo agrave conduta218As palavras de W D Ross
sintetizam bem o conceito da reta razatildeo ldquoA regra correcta consiste numa regra obtida por uma
anaacutelise deliberativa do homem prudente a qual o informa de que o fim da vida humana seraacute melhor
atingido a partir de certas accedilccedilotildees intermeacutedias entres os extremos A virtude moral consiste na
217 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed SatildeoPaulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 610 Summa Theologiae II-II q 47 a15 ldquo[] quod philosophus dicit in II Ethicquod virtus intellectualis plurimum ex doctrina habet et generationem et augmentum ideo experimento indiget ettempore Sed prudentia est virtus intellectualis ut supra habitum est Ergo prudentia non inest nobis a natura sed exdoctrina et experimento Sed alia principia universalia posteriora sive sint rationis speculativae sive practicae nonhabentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti vel per disciplinam Respondeo dicendum quod sicut ex praemissis patet prudentia includit cognitionem et universalium et singulariumoperabilium ad quae prudens universalia principia applicat Quantum igitur ad universalem cognitionem eadem ratioest de prudentia et de scientia speculativa [] ut enim philosophus dicit in X Ethic vita quae est secundumspeculationem est melior quam quae est secundum hominem Sed alia principia universalia posteriora sive sintrationis speculativae sive practicae non habentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti velper disciplinam[hellip]rdquo 218 Cf EacuteN VI 1144b 25-27 Ibidem p 113
75
obediecircncia a uma tal regrardquo219 Em suma ela eacute a referecircncia raciocinada que indica que algumas
accedilotildees nos conduzem de modo mais acertado agrave eudaimonia enquanto outras natildeo
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia do ato de deliberar e decidir Mas a decisatildeo
eacute composta por elementos que se corretamente observados fazem o homem realizar uma boa
decisatildeo Estes elementos estatildeo relacionados entre si e satildeo o desejo a escolha e a deliberaccedilatildeo No
proacuteximo toacutepico os estudaremos de forma mais detalhada
34 Desejo (o1recij) Deliberaccedilatildeo (bouleusij e Escolha (proairesij)
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a razatildeo praacutetica que direciona a accedilatildeo humana para o bem
Para que este direcionamento seja correto e consiga ser efetivo na conduccedilatildeo da accedilatildeo o homem
prudente deve fazer uma deliberaccedilatildeo (bouleusij) que o permite realizar uma escolha
(proairesij) a fim de que sua accedilatildeo seja adequada agrave situaccedilatildeo Logo o processo decisoacuterio inicia-se
no ato de deliberar depois na escolha e finda com a accedilatildeo propriamente dita220
O que eacute a deliberaccedilatildeo Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles faz uma descriccedilatildeo das
caracteriacutesticas da bouacuteleusis Ao final o conceito torna-se claro A deliberaccedilatildeo somente eacute exercida
naquilo que eacute mutaacutevel Ningueacutem delibera sobre o que eacute necessaacuterio eterno e invariaacutevel As coisas
que possuem estas qualidades natildeo satildeo objeto de deliberaccedilatildeo Visto que natildeo satildeo factiacuteveis de
mudanccedila natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo humana O ato de deliberar somente visa aquilo que eacute
possiacutevel de ser atingido pela accedilatildeo do proacuteprio homem E tudo o que eacute realizado por meio da accedilatildeo
pode ter resultados incertos Afinal lidar com as contingecircncias eacute ldquomanejarrdquo as probabilidades de
erro ou acerto pois as variaacuteveis das situaccedilotildees podem mudar a cada momento Observa-se por
exemplo o campo da poliacutetica da economia da medicina dentre inuacutemeros outros Cada decisatildeo
deve ser tomada a partir das vaacuterias mudanccedilas circunstancias visando atingir o fim determinado
Neste quadro de incerteza parte do resultado por oacutebvio natildeo todo depende da accedilatildeo realizada a
partir da boa ou maacute deliberaccedilatildeo Dessa forma a deliberaccedilatildeo eacute a razatildeo praacutetica que tem de ponderar
perante o incerto com a maacutexima exatidatildeo possiacutevel Conforme nos mostra Aristoacuteteles
219 ROSS W D Aristoacuteteles Op cit p 226220 A bouacuteleusis e proairesis satildeo descritas por Aristoacuteteles tanto no livro III quanto no livro VI da Eacutetica a NicocircmacoNo decorrer da explicaccedilatildeo sobre estas duas fases da decisatildeo citaremos os dois livros Eacute interessante notar que o livroVI muitas vezes resume aspectos sobre a deliberaccedilatildeo e a escolha estudados anteriormente no livro III Este fatoocorre porque ao analisar a prudecircncia no livro VI o Estagirita coloca a deliberaccedilatildeo e a escolha em um patamar deexcelecircncia O homem prudente eacute aquele que delibera bem e escolhe bem
76
Eacute de presumir que devamos chamar objeto de deliberaccedilatildeo natildeo agravequilo que umneacutescio ou um louco deliberaria mas agravequilo sobre o que pode deliberar um homemsensato (nou~~n e1xwn) Ora sobre coisas eternas ningueacutem delibera por exemplosobre o universo material ou sobre a incomensurabilidade da diagonal com o ladodo quadrado [] Deliberamos sobre as coisas que estatildeo ao nosso alcance e podemser realizadas e essas satildeo efetivamente as que restam Porque como causasadmitimos a natureza a necessidade o acaso e tambeacutem a razatildeo e tudo quedepende do homem Ora cada classe de homem delibera sobre as coisas quepodem ser realizadas pelos seus esforccedilos [] as coisas que satildeo realizadas pelosnossos esforccedilos mas nem sempre do mesmo modo essas satildeo objetos dedeliberaccedilatildeo os problemas de tratamento meacutedico e de comeacutercio por exemplo221
O ato de deliberar envolve a observaccedilatildeo de coisas que ocorrem normalmente de uma certa
maneira Estas situaccedilotildees costumeiras favorecem o acerto quando deliberamos e agimos sobre elas
Entretanto natildeo significa que os resultados seratildeo necessariamente os esperados De acordo com
Aristoacuteteles ldquoDelibera-se a respeito de coisas que comumente acontecem de certo modo mas cujo
resultado eacute obscuro e daquelas em que este eacute indeterminado E nas coisas de grande monta
tomamos conselheiros por natildeo termos confianccedila em nossa capacidade de decidirrdquo222 A tiacutetulo de
ilustraccedilatildeo um meacutedico pode atender vaacuterios pacientes com a mesma doenccedila e receitar o remeacutedio
apropriado que comprovadamente curou a muitos Mas nada certifica que o remeacutedio poderaacute curar
sempre todos os pacientes Um raciociacutenio anaacutelogo pode ser aplicado a um time de basquete ou
nataccedilatildeo As accedilotildees satildeo realizadas com base em deliberaccedilotildees derivadas de observaccedilotildees do histoacuterico
do proacuteprio time e dos adversaacuterios As chances podem ser maximizadas para a vitoacuteria ainda assim o
resultado eacute indeterminado Por isso o Estagirita adverte que determinados assuntos devem ser
deliberados em conjunto para que haja uma anaacutelise mais acurada dos fatos
A deliberaccedilatildeo eacute a escolha dos meios para atingir os fins Caso haja vaacuterios meios que levam a
um mesmo resultado seraacute escolhido o meio mais eficaz Isso significa que em cada situaccedilatildeo o
homem prudente delibera sobre quais os melhores meios e como utilizaacute-los da melhor maneira
Cita-se o texto da Eacutetica a Nicocircmaco
Natildeo deliberamos acerca dos fins mas a respeito de meios (proj ta telh) Ummeacutedico por exemplo natildeo delibera (bouleuetai) se haacute de curar ou natildeo nem umorador se haacute de persuadir nem um estadista (politikoj) se haacute de implantar aordem puacuteblica nem qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade Datildeo afinalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcanccedilaacute-la e separece poder ser alcanccedilada por vaacuterios meios procuram o mais faacutecil e o mais eficazse for um soacute examinam como seraacute alcanccedilada por ele e por que outro meioalcanccedilar esse primeiro ateacute chegar ao primeiro princiacutepio que na ordem dedescobrimento eacute o uacuteltimo223
221 EacuteN III 1112a 20-35 e 1112b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45222 EacuteN III 1112b 8-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46223 EacuteN III 1112b 13-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46
77
Na dimensatildeo moral o aprimoramento do homem prudente eacute realizado pela consolidaccedilatildeo das
virtudes morais Na dimensatildeo da racionalidade praacutetica se traduz na sua capacidade de decidir cada
vez melhor ao passar pelas etapas da deliberaccedilatildeo e da escolha Quanto melhor for a deliberaccedilatildeo e a
escolha mais aperfeiccediloada seraacute a virtude da prudecircncia Neste sentido apoacutes a exposiccedilatildeo do ato de
deliberar estudaremos a escolha
Para uma melhor compreensatildeo do ato de escolher eacute preciso descrever brevemente a ideia de
voluntariedade e involuntariedade das accedilotildees humanas De modo geral Aristoacuteteles distingue o ato
voluntaacuterio e o involuntaacuterio O primeiro consiste na accedilatildeo como resultado de uma escolha do homem
Na accedilatildeo voluntaacuteria o homem deve estar consciente das particularidades de cada circunstacircncia224 e
no domiacutenio de suas paixotildees para sua accedilatildeo ser tida como voluntaacuteria225 O segundo ocorre quando o
homem ignora todos ou alguns aspectos das circunstacircncias aleacutem de natildeo possuir o controle de suas
paixotildees A ignoracircncia e falta de autodomiacutenio (a0krasia) o impede de alcanccedilar o fim esperado
Desta forma uma accedilatildeo para ser declarada voluntaacuteria ou involuntaacuteria depende do momento que eacute
realizada226 sob qual circunstacircncia ocorreu o ato o grau de conhecimento das particularidades e se
houve ou natildeo o controle dos paixotildees
Conforme exposto o domiacutenio de si ou a falta dele afeta as deliberaccedilotildees e as escolhas que
um homem pode fazer Por isso o controle dos desejos eacute fundamental para a consecuccedilatildeo de uma
boa escolha Isto porque o desejo faz parte da faculdade sensitiva do homem Eacute um indutor da accedilatildeo
humana que nos impele para a busca de diversos fins e entre eles o fim uacuteltimo a eudaimonia
Cada desejo varia de acordo com o tipo o apetite () eacute atraiacutedo por um determinado objeto e
o impulso ()227 por outro Devido a esta realidade inerente agrave natureza humana Aristoacuteteles
descreve que a accedilatildeo e a verdade satildeo regidas pela sensaccedilatildeo (ai1sqhsij) intelecto (nou~~j)228 e desejo
(o1recij) embora a sensaccedilatildeo natildeo seja o princiacutepio da accedilatildeo por natildeo ser fruto de nenhum tipo de
processo racional Conforme diz Aristoacuteteles
ldquoA virtude de um coisa eacute relativa ao seu funcionamento (e1rgon) apropriado Orana alma existem trecircs coisas que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo(ai1sqhsij) razatildeo (nou~~j) e desejo (o1recij) Destas trecircs a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepiode nenhuma accedilatildeo bem o mostra o fato de os animais inferiores possuiacuteremsensaccedilatildeo mas natildeo participarem da accedilatildeordquo229
224 Cf EacuteN III 1111a 21-25 Ibidem p 43225 Cf EacuteN III 1110a 1-4 Ibidem p 41226 Cf EacuteN III 1110a 15 Ibidem p 41227 O thumos tambeacutem eacute traduzido pelo termos ldquoirardquo ldquofuacuteriardquo ldquocoacutelerardquo De todo modo eacute um intenso descontentamentoprovocado por algo que faz o homem reagir a esse fato desencadeador 228 Acerca da dificuldade de traduccedilatildeo deste termo grego conferir nota de rodapeacute nordm 115229 EacuteN VI 1139a 17-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102
78
O desejo eacute uma atraccedilatildeo que alguma coisa causa em noacutes Podemos ser atraiacutedos por qualquer
coisa o que implica que podemos querer coisas que podem ser boas ou ruins aleacutem de nos
impulsionar a realizarmos accedilotildees moralmente boas ou maacutes para conseguir o objeto desejado Daiacute a
importacircncia das virtudes morais para ordenar os diversos desejos para que sejam orientados para a
retidatildeo moral Desta maneira os retos desejos facilitam que o homem prudente realize escolhas
voltadas para o bem
Esta relaccedilatildeo entre desejo escolha e virtude eacute percebida quando Aristoacuteteles conceitua a
virtude moral como uma disposiccedilatildeo para uma escolha (e3cij proairetikh) de accedilotildees e paixotildees
pautadas pela mediania230 A virtude moral predispotildee de forma beneacutefica o homem agrave fazer boas
escolhas relacionadas agrave vida de forma geral ou seja ao fins mais importantes No sentido aqui
descrito as escolhas bem feitas satildeo o resultado de uma clareza de visatildeo que as virtudes morais
proporcionam ao homem prudente que sabiamente escolhe os melhores meios para atingir os fins
Isto tambeacutem eacute apontado na Eacutetica a Eudemo ao mostrar que a escolha eacute realizada visando o bem
viver A nobreza de conduta eacute o fator orientador de todas as escolhas De acordo com a Eacutetica a
Eudemo
Uma vez definido em relaccedilatildeo a isso que todos os capacitados a viver de acordocom a preacutevia escolha deveriam visar algo a favor de viver bem e nobremente seja ahonra a reputaccedilatildeo a riqueza ou a cultura em funccedilatildeo do que orientariam toda a suaconduta (pois natildeo ter a proacutepria vida organizada em vista de algum fim eacute um clarosinal de grande loucura) conclui-se que eacute maximamente necessaacuterio comeccedilar por sedecidir pessoalmente nisso natildeo agindo nem apressada nem negligentemente emqual das coisas que nos dizem respeito estaacute encerrada a vida boa e quais satildeo ascondiccedilotildees imprescindiacuteveis que possibilitam a noacutes seres humanos entrarmos deposse dessa vida 231
Vimos que o homem deve orientar a sua vida para a eudaimonia sendo esta o fim uacuteltimo
que eacute desejado por todos Para que este desejo de felicidade natildeo permaneccedila no campo da
imaginaccedilatildeo satildeo necessaacuterias fazer escolhas concretas O ato de escolher eacute uma etapa do processo de
decisatildeo realizado por cada homem O homem prudente realiza este ato com maestria pois o ato de
escolher eacute de fundamental importacircncia para a consecuccedilatildeo de uma vida feliz Aquele que escolhe
mal dificilmente seraacute feliz Assim sendo devido a sua importacircncia para a formaccedilatildeo do phronimos
adentraremos na ideia aristoteacutelica de proairesis (proairesij)
230 Cf EacuteN II 1106b 36 Ibidem p 33231 EacuteE I 1214b 7-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 47
79
O que eacute a proiaresis A proiaresis eacute um ato de livre escolha232 Poreacutem nem todos os atos
voluntaacuterios satildeo decorrentes de uma escolha As crianccedilas e os animais satildeo capazes de realizarem atos
voluntaacuterios mas natildeo de realizar escolhas233pois satildeo atos efetivados sem o uso da razatildeo No livro III
da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a proiaacuteresis como uma accedilatildeo voluntaacuteria que envolve o
raciociacutenio e algum processo do intelecto sendo precedida pela deliberaccedilatildeo234 Logo a escolha
pressupotildee o uso da razatildeo que controla o desejo e eacute feita com um processo de raciociacutenio que procura
analisar as melhores opccedilotildees
Por envolver a razatildeo a proairesis difere do apetite () do impulso () da
vontade () e da opiniatildeo (doca) O apetite e o impulso natildeo envolvem nenhum tipo de
processo racional por isso natildeo podem ser considerados como escolhas Aleacutem disto o apetite
envolve o que eacute agradaacutevel (prazeroso) e o desagradaacutevel (doloroso) A proairesis natildeo depende destes
dois fatores Afinal o homem pode escolher tanto um quanto outro destes aspectos conforme o
resultado a ser obtido Em relaccedilatildeo agrave vontade por ser uma espeacutecie de desejo mais aproximada da
racionalidade nos fazendo tender para o bem auxilia nas aspiraccedilotildees humanas mais elevadas
Entretanto muitas vezes a vontade quer agravequilo que eacute maior que a capacidade do homem de
alcanccedilaacute-la Satildeo aspiraccedilotildees irrealistas O exemplo utilizado por Aristoacuteteles eacute a imortalidade Pode-se
desejar ser imortal mas isto eacute inantingiacutevel pela accedilatildeo humana A vontade tambeacutem pode nos levar a
desejar algo fora do nosso poder decisoacuterio Como desejar que o time desportivo que torcemos ganhe
o campeonato Assim os desejos provenientes da vontade podem aspirar a qualquer coisa poreacutem
para serem atingiacuteveis devem ser realistas As escolhas para serem plausiacuteveis devem estar estar no
acircmbito do que a accedilatildeo humana pode realizar Outras aspiraccedilotildees mais tangiacuteveis como ter sauacutede ter
paz ser feliz etc satildeo o fins (objetivos) gerais que podem ser plenamente alcanccedilados Mas para
atingiacute-los eacute necessaacuterio escolher os meios Essa eacute a funccedilatildeo do ato de escolher propriamente dito
Logo a proairesis visa os meios a serem utilizados e natildeo os fins
A proairesis natildeo eacute opiniatildeo Primeiro eacute possiacutevel opinar acerca de quaisquer coisas que
estejam em nosso poder alcanccedilaacute-las e tambeacutem sobre o que estaacute longe disto Segundo a opiniatildeo eacute
uma etapa inicial do processo de conhecimento sendo classificada como verdadeira ou falsa em
suas assertivas Por seu lado a proairesis refere-se agrave accedilatildeo humana podendo ser adjetivada como
boa ou maacute Esta diferenccedila pode ser notada quando observamos homens que opinam corretamente
acerca de vaacuterios assuntos poreacutem fazem peacutessimas escolhas ao agirem ou homens que escolhem
bem mas erram em suas opiniotildees Normalmente as escolhas ruins satildeo feitas devido aos viacutecios
232 Cf EacuteN III 1111b 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 44 Conferir tambeacutem EacuteE II 1225b 1-18Eacutetica a Eudemo Op cit p 95233 A praacutexis humana eacute caracterizada pela accedilatildeo composta por um princiacutepio racional O raciociacutenio deve estar semprepresente Por isso animais natildeo ldquoagemrdquo no sentido aqui descrito 234 Cf EacuteN III 1111b 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45
80
Uma conduta viciosa influencia negativamente o raciociacutenio necessaacuterio para realizar uma boa
escolha Afinal os viacutecios satildeo desejados pelos homens incontinentes e pelos maldosos Observa-se
que a proairesis estaacute no campo da sabedoria praacutetica Em suma a opiniatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo pouco
cuidadosa dos fatos enquanto a proairesis eacute um ato que compotildee a accedilatildeo De acordo com
Aristoacuteteles
Ora com a opiniatildeo em geral natildeo haacute ningueacutem que a identifique [] Com efeito porescolher o que eacute bom ou mau somos homens de um determinado caraacuteter mas natildeo osomos por sustentar esta ou aquela opiniatildeo [] E tambeacutem escolhemos o quesabemos ser melhor (proairoumeqa men a4 malista i1smen a0gaqa o1nta) tantoquanto nos eacute dado sabecirc-lo mas opinamos sobre o que natildeo sabemos exatamente(docazomen de a4 ou0 panu i1smen) e natildeo satildeo as mesmas pessoas que passam porfazer as melhores escolhas e sustentar as melhores opiniotildees mas de algumas se dizque tecircm excelentes opiniotildees e no entanto padecem de um viacutecio (kakian) qualquerque as impede de escolher bem (kakian d airei=sqai ou0x a4 deirsquo e1mpeiroj ou0k e1stin =) 235
O Estagirita na sua obra Eacutetica a Eudemo assevera que a opiniatildeo e a vontade dizem respeito
aos fins enquanto a escolha refere-se aos meios236 A escolha eacute uma opccedilatildeo preferencial de uma
coisa e natildeo de outra Esta opccedilatildeo somente pode ser feita a partir da anaacutelise e deliberaccedilatildeo Por isso o
ato de escolher comeccedila na opiniatildeo deliberada (d chj bouleutikh=joacutej )237 Neste caso a opiniatildeo
significa o iniacutecio do exame das circunstacircncias sendo uma fase da deliberaccedilatildeo Contudo a escolha
natildeo eacute somente a opiniatildeo deliberada mas tambeacutem eacute composto pela vontade238 Por isso o filoacutesofo de
Estagira assevera que a escolha tambeacutem eacute um desejo deliberativo Esta uacuteltima noccedilatildeo de desejo e
deliberaccedilatildeo eacute destacada na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] a escolha ou eacute raciociacutenio desiderativo ou desejo
raciocinativo e a origem de uma accedilatildeo dessa espeacutecie eacute um homemrdquo239 Deste modo a escolha eacute
resultado do desejo deliberado ou envolve algum procedimento intelectual240
Descritas as caracteriacutesticas de cada uma entatildeo qual a diferenccedila entre proiaresis (escolha) e a
bouacuteleusis (deliberaccedilatildeo) Ambas se referem aos meios mas natildeo aos fins A distinccedilatildeo estaacute na
amplitude de visatildeo sobre o que deve ser feito A escolha diz respeito agravequilo que eacute mais imediato e
ldquoconcretordquo ou seja o plenamente operacionalizaacutevel em um dado instante Eacute a finalizaccedilatildeo da
deliberaccedilatildeo Pierre Aubenque define bem este caraacuteter da escolha eacute o momento da decisatildeo do voto
ela torna funcional a deliberaccedilatildeo e por isso pode pocircr-lhe um fim241 A deliberaccedilatildeo eacute o ato anterior agrave
escolha eacute a inteligecircncia ponderando e definindo qual o rumo a ser seguido A escolha eacute o desejo
235 EacuteN III 1112a 1-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45 236 Cf EacuteE II 1226a 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 97237 Cf EacuteE II 1226b 1-10 Idem p 98238 Cf EacuteE II 1226b 20-25 Ibidem p 99239 EacuteN VI 1139b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102 240 Cf nota de rodapeacute nordm 232241 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 196
81
deliberado das coisas Ou seja eacute o desejo ldquofiltradordquo pela razatildeo adquirindo a medida correta para
que possa ser alcanccedilado pela nossa proacutepria accedilatildeo No processo decisoacuterio a sequecircncia seguida eacute que
primeiro deliberamos depois escolhemos os meios de acordo com o que foi deliberado Neste ato
de escolher o desejo passa a estar em consonacircncia com a deliberaccedilatildeo De acordo com Aristoacuteteles
Eacute a mesma coisa aquela sobre que deliberamos e a que escolhemos (bouleuton dekai poraireton to au0to) salvo estar o objeto de escolha jaacute determinado jaacute queaquilo por que nos decidimos em resultado da deliberaccedilatildeo eacute o objeto da escolha (togar e0k th=j boulh=j kriqen proaireton e0stin) Efetivamente todos cessam deindagar como devem agir depois que fizeram voltar o princiacutepio motor a si mesmose agrave parte dirigente de si mesmos pois eacute essa que escolhe[]Sendo pois o objetoda escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes adeliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcanceporque apoacutes decidir em resultado de uma deliberaccedilatildeo desejamos de acordo com oque deliberamos (bouleutikh o1recij tw~~n e0f0 h9mi~~n) Consideremos pois comodescrita em linhas gerais a escolha estabelecida a natureza dos seus objetos e ofato de que ela diz respeito aos meios (poi=a e0sti kai o3ti tw~~n ta telh) 242
Como exemplo simples imaginemos esta cena eu tenho o desejo de cursar um mestrado
strictu sensu em outro paiacutes Este curso estaacute condizente com a felicidade (fim uacuteltimo) que almejo
Apoacutes uma deliberaccedilatildeo iacutentima e consultiva com outras pessoas procuro analisar os melhores meios
para me deslocar para outro paiacutes e me matricular no curso almejado Quais meios para chegar em
outro paiacutes O aviatildeo o trem o automoacutevel a peacute Qual o meio para me matricular e manter a estadia
A bolsa de estudos economias bancaacuterias etc E assim por diante a boa escolha indicaraacute os
melhores meios Portanto nota-se que a escolha deriva de um objetivo determinado pelo desejo em
seguida haacute a deliberaccedilatildeo para analisar os meios (natildeo eacute possiacutevel deliberar sem termos um propoacutesito
uma meta)243 e finalmente eacute realizada a escolha de qual eacute o melhor meio para operacionalizar a
consecuccedilatildeo do mestrado
Eacute possiacutevel haver erro na deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles responde afirmativamente que eacute possiacutevel o
homem incorrer em equiacutevocos no ato de deliberar A deliberaccedilatildeo envolve o conhecimento dos
universais e dos fatos particulares que satildeo adquiridos respectivamente por meio do ensino e da
experiecircncia244 O erro deliberativo ocorre quando haacute ignoracircncia dos dois aspectos ou de apenas um
deles Utilizamos o proacuteprio exemplo citado na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] o erro na deliberaccedilatildeo pode
versar tanto sobre o universal como sobre o particular isto eacute tanto eacute possiacutevel ignorar que toda a
aacutegua pesada eacute maacute como esta aacutegua aqui presente eacute pesadardquo245
242 EacuteN III 1113a 1-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46 Conferir tambeacutem EacuteE I 1226b 20-25ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99243 Cf EacuteE I 1226b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99244 Cf EacuteN VI 1141b 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106245 EacuteN VI 1142a 20-22 Idem p 108
82
A escolha e a deliberaccedilatildeo satildeo dois procedimentos fundamentais para que haja uma accedilatildeo
correta O homem prudente deve sempre atentar para fazer do melhor modo possiacutevel as
mencionadas operaccedilotildees do intelecto O bom exerciacutecio destes dois estaacutegios proporcionam uma
capacidade superior de decidir Por conseguinte as boas decisotildees contribuem para uma vida feliz
Dito isto passamos a analisar no proacuteximo toacutepico as chamadas trecircs virtudes intelectuais
menores Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia Portanto conveacutem a anaacutelise para
entendermos como se forma a excelecircncia do ato de decidir ou seja a proacutepria virtude da prudecircncia
35 As trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia (sunesij)
ponderaccedilatildeo (gnwmn)
As trecircs virtudes intelectuais menores satildeo a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia
(sunesij)246e ponderaccedilatildeo (gnwmn)247 Para se tornar prudente o homem precisa adquirir o domiacutenio
destas capacidades intelectuais Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia que possuem
trecircs funccedilotildees distintas A distinccedilatildeo ocorre conforme o segmento de realidade de prudecircncia a ser
examinado e discernido Deste modo estas virtudes satildeo tipos de operaccedilotildees intelectuais (raciociacutenios)
que consistem em estaacutegios do processo de anaacutelise das circunstacircncias
A primeira virtude intelectual eacute a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) Esta eacute o aperfeiccediloamento da
deliberaccedilatildeo No livro VI Aristoacuteteles nos mostra que a boa deliberaccedilatildeo consiste em uma
investigaccedilatildeo sobre um assunto em particular Ela envolve uma espeacutecie de caacutelculo consciente que
objetiva atingir o melhor resultado possiacutevel Deste modo a boa deliberaccedilatildeo eacute uma ponderaccedilatildeo que
atinge um alto grau de exatidatildeo porque analisa todas as variaacuteveis envolvidas em uma determinada
situaccedilatildeo tendo em vista uma finalidade boa
Ressalta-se que a boa deliberaccedilatildeo envolve uma ponderaccedilatildeo correta somada a um fim bom
Pois um homem pode acertar sua anaacutelise dos fatos e escolher corretamente os meios para atingir
um fim proveniente de um desejo que natildeo eacute bom Eacute o que ocorre com os homens incontinentes ou
maldosos Outro caso eacute o de desejar um fim bom mas natildeo alcanccedilaacute-lo por causa de um raciociacutenio
246 As traduccedilotildees do termo grego synesis satildeo variadas Alguns tradutores utilizam as palavras ldquodiscernimentordquo (E Bini2013 p 192) ldquoentendimientordquo (J Marias 1959 p 97) ldquointeligecircnciardquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p 109)ldquounderstandingrdquo (H Rackham 1996 p 155) Preferimos o termo ldquointeligecircnciardquo porque nos parece expressar melhor oconceito de synesis que significa a capacidade de aprender bem e por isso julgar bem as particularidades das diversassituaccedilotildees 247 As traduccedilotildees do termo grego gnome tambeacutem divergem entre si Alguns tradutores usam as palavras ldquoponderaccedilatildeordquo(E Bini 2013 p 192) ldquocomprensioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) ldquodiscernimentordquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p110) ldquoconsiderationrdquo (H Rackham 1996 p 156) Acreditamos que o termo ldquoponderaccedilatildeordquo traduz melhor o conceito degnome por este ser um ato de sopesar a situaccedilatildeo com o fim de atingir a equidade
83
errado Ambos os tipos natildeo satildeo consideradas como boas deliberaccedilotildees Desta forma a deliberaccedilatildeo
ideal eacute feita de uma anaacutelise correta visando fins corretos De acordo com Aristoacuteteles
Mas por outro lado a excelecircncia da deliberaccedilatildeo (eu0boulia boulh=j) envolveraciociacutenio [hellip] Mas a excelecircncia da deliberaccedilatildeo eacute certamente a deliberaccedilatildeocorreta [hellip] o homem incontinente (a0krathj) e o homem mau (fau=loj) seforem haacutebeis alcanccedilaratildeo como resultado do seu caacutelculo (logismou=) o quepropuseram a si mesmos de forma que teratildeo deliberado corretamente mas o queteratildeo alcanccedilado eacute um grande mal para eles (o0rqw~~j e1stai bebouleumenoj kakonde mega ei0lhfwj) Ora ter deliberado bem eacute considerado uma boa coisa pois eacuteessa espeacutecie de deliberaccedilatildeo correta que constitui a excelecircncia da deliberaccedilatildeo ndash istoeacute aquela que tende a alcanccedilar um bem (o0rqothj boulh=j eu0bouliampampa h9 a0gaqou=teuktikh)248
A boa deliberaccedilatildeo pode ser feita de forma mais lenta ou mais raacutepida Alguns assuntos
levaratildeo mais tempo de deliberaccedilatildeo outros necessitam de menos duraccedilatildeo Com a experiecircncia de
vida a deliberaccedilatildeo em muitos casos torna-se mais veloz Mas essencialmente a boa deliberaccedilatildeo
feita em um periacuteodo razoaacutevel para obter a melhor decisatildeo Devemos recordar que o homem
prudente percebe e aproveita o momento oportuno (kairoj) para agir Por isso uma deliberaccedilatildeo
muito lenta eacute um indicativo que ainda natildeo se atingiu a excelecircncia para atingir o bem Eacute o que o
Estagirita nos mostra ldquo[hellip] eacute possiacutevel alcanccedilaacute-lo [o bem] por uma longa deliberaccedilatildeo enquanto um
outro homem chega a ele rapidamente Por conseguinte no primeiro caso natildeo possuiacutemos ainda a
excelecircncia no deliberar que eacute a correccedilatildeo tanto no que toca ao fim como ao meio e ao tempordquo249
Logo a boa deliberaccedilatildeo requer o tempo correto para ser feita de forma cuidadosa para a escolha do
meio correto mas sem procrastinaccedilatildeo
Observa-se que a deliberaccedilatildeo natildeo eacute conhecimento cientiacutefico (e0pisthmh) E tambeacutem natildeo eacute
mera opiniatildeo (doca)250 A epiacutesteme versa sobre o necessaacuterio e o inalteraacutevel A doacutexa eacute uma
afirmaccedilatildeo referente aos fatos enquanto a deliberaccedilatildeo ainda eacute uma anaacutelise Agraves vezes a opiniatildeo eacute
correta na interpretaccedilatildeo de um fato De qualquer modo ao falarmos que a deliberaccedilatildeo pressupotildee
uma anaacutelise dos fatos estaacute impliacutecito um raciociacutenio analiacutetico sobre uma fato particular
Eacute interessante observar que a bouleacute (boulh) na histoacuteria da Greacutecia Antiga significa o
ldquoconselhordquo reunido Era uma reuniatildeo de cidadatildeos em cada cidade-estado grega para deliberar
sobre assuntos puacuteblicos relativos agrave poacutelis Na eacutepoca homeacuterica era a reuniatildeo de um rei com seus
248 EacuteN VI 1142b 16-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109 Conferir tambeacutem EacuteE II 1226b 10-12 Eacutetica a Eudemo Op cit p 98 (E Bini 2015) ldquoNingueacutem delibera quanto ao fim o qual estaacute fixado para todosDelibera-se contudo sobre o que conduz a ele se isto ou aquilo conduz a ele e supondo estar decidido se isto ouaquilo como seraacute produzidordquo Cf Magna Moralia 1199a 5-9 The Works of Aristotle Magna Moralia EthicaEudemia De Virtutibus et Vitiis Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford ClarendonPress 1915 (sem paacutegina)249 EacuteN VI 1142b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109250 EacuteN VI 1142b 8-10 Ibidem p 109
84
conselheiros Eacute desta noccedilatildeo de ldquoconselhordquo que Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar Aristoacuteteles
utiliza o vocaacutebulo eubulia251 e a considera uma virtude intriacutenseca agrave prudecircncia como o Estagirita
Conforme exposto na Suma Teoloacutegica
Em sentido contraacuterio a eubulia como diz o Filoacutesofo lsquoeacute a retidatildeo na deliberaccedilatildeorsquoMas a reta razatildeo aperfeiccediloa a virtude Logo a eubulia eacute virtude Como jaacute foi dito eacuteda razatildeo da virtude humana tornar bom o ato humano Entre os demais atos eacuteproacuteprio do homem deliberar porque implica uma busca conduzida pela razatildeorelativamente agrave accedilatildeo no que consiste a vida humana pois a via especulativa estaacuteacima do homem segundo o Filoacutesofo Ora a eubulia requer a bondade dadeliberaccedilatildeo De fato esta palavra eacute formada de eu que significa bem e de bouleacuteque significa conselho ou deliberaccedilatildeo como se dissesse o ato de bem deliberar ouantes o que aconselha bem Eacute pois evidente que a eubulia eacute uma virtudehumana252
Face ao exposto a boa deliberaccedilatildeo consiste em buscar compreender a realidade com todas
as suas variaacuteveis Esta compreensatildeo tem como objetivo alcanccedilar o maior grau de exatidatildeo possiacutevel
para aumentar a probabilidade de realizar uma escolha correta dos meios para atingir o fim
determinado O homem prudente ao realizar uma boa deliberaccedilatildeo analisa o conjunto das
circunstacircncias sempre com vistas a um fim nobre A boa deliberaccedilatildeo seleciona os meios que podem
ser alcanccedilados pela accedilatildeo Portanto a euboulia eacute o primeiro passo racional para obter a virtude da
prudecircncia
A inteligecircncia (sunesij) eacute a segunda virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles Eacute definida
como uma capacidade de aprender algo rapidamente O homem detentor desta virtude eacute algueacutem que
consegue assimilar e entender de modo ceacutelere o que satildeo as coisas e as relaccedilotildees entre estas Por
isso o homem inteligente possui uma maior propensatildeo a julgar corretamente qualquer conjuntura
No contexto do saber praacutetico a inteligecircncia assemelha-se agrave perspicaacutecia porque versa sobre a
habilidade de compreender com presteza o mundo que nos cerca Logo um homem perspicaz eacute um
homem inteligente
No acircmbito da accedilatildeo esta capacidade de aprender eacute referente aos assuntos possiacuteveis de
deliberaccedilatildeo e por isso pode gerar diversas visotildees diferentes Natildeo se trata de um aprendizado que se
refere agraves ciecircncias ou agravequilo que eacute necessaacuterio e eterno Natildeo se refere ao saber teoacuterico Tambeacutem eacute
251 A boa deliberaccedilatildeo tambeacutem eacute chamada de ldquobom conselhordquo na tradiccedilatildeo cristatilde252 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 637Summa Theologiae II-II q 51 a1 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoSed contra est quod eubulia estrectitudo consilii ut philosophus dicit in VI Ethic Sed recta ratio perficit rationem virtutis Ergo eubulia est virtusRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est de ratione virtutis humanae est quod faciat actum hominis bonumInter ceteros autem actus hominis proprium est ei consiliari quia hoc importat quandam rationis inquisitionem circaagenda in quibus consistit vita humana nam vita speculativa est supra hominem ut dicitur in X Ethic Eubulia autemimportat bonitatem consilii dicitur enim ab eu quod est bonum et boule quod est consilium quasi bona consiliatiovel potius bene consiliativa Unde manifestum est quod eubulia est virtus humanardquo
85
distinta de uma mera opiniatildeo dado que a synesis eacute uma inteligecircncia voltada para os aspectos
praacuteticos Ou seja ela diz respeito ao ldquoterritoacuteriordquo da accedilatildeo Esta virtude eacute a inteligecircncia em um grau
elevado que permite um aprendizado dos elementos envolvidos nas circunstacircncias Este fato auxilia
um julgamento correto de cada situaccedilatildeo
A synesis possui uma uacutenica funccedilatildeo que eacute o ato de julgar Poreacutem natildeo pode ser confundida
com a virtude da prudecircncia Na visatildeo aristoteacutelica a virtude da prudecircncia possui a funccedilatildeo de
comandar a maneira como o homem agiraacute visto que discerne o certo e o errado em relaccedilatildeo aos
meios A inteligecircncia restringe-se apenas a julgar do melhor modo possiacutevel os elementos
relacionados a cada situaccedilatildeo Com a compreensatildeo destes elementos a prudecircncia determinaraacute qual a
accedilatildeo a ser realizada Eacute o que nos diz Aristoacuteteles
Com efeito a inteligecircncia (sunesij) nem versa sobre as coisas eternas e imutaacuteveisnem sobre toda e qualquer coisa que vem a ser mas apenas sobre aquelas quepodem tornar-se assunto de duacutevidas e deliberaccedilatildeo (bouleusaito) Portanto osseus objetos satildeo os mesmos que os da sabedoria praacutetica (fronhsij) masinteligecircncia e sabedoria praacutetica natildeo satildeo a mesma coisa Esta uacuteltima emite ordensvisto que o seu fim eacute o que se deve ou natildeo se deve fazer (ti gar dei= prattein h9mh to teloj au0th=j e0stin) a inteligecircncia pelo contraacuterio limita-se a julgar(kritikh) Inteligecircncia eacute o mesmo que perspicaacutecia (eu0sunesia) e os homensinteligentes (sunetoi) o mesmo que homens perspicazes (eu0sunetoi)253
Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a virtude da synesis diz que ela eacute um juiacutezo reto
das accedilotildees particulares algo que tambeacutem faz a prudecircncia Mas esta uacuteltima comanda as accedilotildees para
que sejam feitas de modo ordenado para o bem254 A inteligecircncia por ser apenas uma correto juiacutezo
dos elementos particulares pode ser usada para fins ruins (maus) A inteligecircncia diferencia-se da
boa deliberaccedilatildeo e do saber teoacuterico Um homem pode deliberar bem ou dominar uma determinada
ciecircncia especulativa poreacutem isso natildeo significa ser um homem inteligente Deste modo o Aquinate
considera que o homem inteligente possui um bom senso das situaccedilotildees porque apreende as coisas
como satildeo em si mesmas Vejamos na Suma Teoloacutegica
Respondo A synesis implica um juiacutezo reto natildeo nas coisas de ordem especulativamas nas accedilotildees particulares que satildeo tambeacutem objeto da prudecircncia Tambeacutem comrelaccedilatildeo a esta palavra se diz em grego que alguns satildeo syneti isto eacute sensatos oueusyneti quer dizer homens de bom senso Ao contraacuterio satildeo chamados asynetiinsensatos aos que satildeo privados desta virtude Ora a diversidade de virtudes devecorresponder agrave diferenccedila de atos que natildeo se reduzem agrave mesma causa Com efeito eacuteevidente que a bondade da deliberaccedilatildeo e a bondade de juiacutezo natildeo se reduzem agrave
253 EacuteN VI 1143a 5-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109254 Cf TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642Summa Theologiae II-II q 51 a 3
86
mesma causa porque muitos satildeo de boa deliberaccedilatildeo mas natildeo satildeo de bom sensoisto eacute dotados de um julgamento reto Na ordem especulativa alguns investigambem pelo fato de terem uma razatildeo capaz de discorrer sobre coisas diversas o queparece proceder das disposiccedilotildees da imaginaccedilatildeo que pode formar facilmentediversas representaccedilotildees imaginaacuterias e no entanto agraves vezes natildeo sabem julgar bempor deficiecircncia do intelecto o que procede sobretudo da maacute disposiccedilatildeo do sensocomum que natildeo julga bem Por tudo isso se necessita aleacutem da eubulia de outravirtude que julgue bem a qual se chama synesis255
Essa apreensatildeo eacute melhor feita por um homem de virtudes morais Os viacutecios dificultam e agraves
vezes impedem compreender as coisas particulares da maneira correta Tomaacutes de Aquino compara
este homem virtuoso e inteligente a um espelho que reflete perfeitamente as coisas como satildeo O
intelecto natildeo sofre distorccedilatildeo no momento de apreender o que satildeo as coisas em si Isso ocorre
porque as virtudes morais favorecem um juiacutezo correto sobre o que eacute o melhor a ser desejado pelo
homem Logo providenciam que o intelecto acerte no julgamento das coisas pois um homem
viciado deseja aquilo que eacute errado o que o faz interpretar as coisas conforme seus viacutecios Nos diz
Satildeo Tomaacutes na Suma Teoloacutegica
Quanto ao 1ordm portanto deve-se dizer que o juiacutezo reto consiste em que a potecircnciacognoscitiva apreenda as coisas tais como satildeo em si mesmas Isto se daacute quandoestaacute bem disposta como um espelho em boas condiccedilotildees reproduz as imagens doscorpos como satildeo em si mesmos Mas se for um espelho mal disposto as imagensaparecem distorcidas e disformes A boa disposiccedilatildeo da potecircncia cognoscitiva parareceber as coisas como satildeo em si mesmas proveacutem radicalmente da natureza equanto agrave sua perfeiccedilatildeo depende do exerciacutecio do dom ou da graccedila E isso pode sedar de dois modos diretamente por parte da proacutepria potecircncia cognoscitiva que natildeoestaacute imbuiacuteda de concepccedilotildees depravadas mas verdadeiras e retas tal eacute a funccedilatildeoproacutepria da synesis como virtude especial E indiretamente pela boa disposiccedilatildeo dapotecircncia apetitiva em virtude da qual o homem emite um juiacutezo reto sobre o que eacutedesejaacutevel E assim os haacutebitos das virtudes morais influem sobre um bomjulgamento virtuoso a respeito dos fins enquanto que a synesis se ocupa mais dosmeios Quanto ao 2ordm deve-se dizer que nos maus pode se encontrar um juiacutezo reto somenteno plano universal poreacutem com respeito agrave accedilatildeo singular seu juiacutezo eacute sempredefeituoso como acima foi dito256
255 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 640-641Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodsynesis importat iudicium rectum non quIbidem circa speculabilia sed circa particularia operabilia circa quae etiamest prudentia Unde secundum synesim dicuntur in Graeco aliqui syneti idest sensati vel eusyneti idest homines bonisensus sicut e contrario qui carent hac virtute dicuntur asyneti idest insensati Oportet autem quod secundumdifferentiam actuum qui non reducuntur in eandem causam sit etiam diversitas virtutum Manifestum est autem quodbonitas consilii et bonitas iudicii non reducuntur in eandem causam multi enim sunt bene consiliativi qui tamen nonsunt bene sensati quasi recte iudicantes Sicut etiam in speculativis aliqui sunt bene inquirentes propter hoc quodratio eorum prompta est ad discurrendum per diversa quod videtur provenire ex dispositione imaginativae virtutisquae de facili potest formare diversa phantasmata et tamen huiusmodi quandoque non sunt boni iudicii quod estpropter defectum intellectus qui maxime contingit ex mala dispositione communis sensus non bene iudicantis Et ideooportet praeter eubuliam esse aliam virtutem quae est bene iudicativa Et haec dicitur synesisrdquo 256 Ibidem p 640-641 Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoAdprimum ergo dicendum quod rectum iudicium in hoc consistit quod vis cognoscitiva apprehendat rem aliquam
87
Aristoacuteteles natildeo cita nenhum exemplo ilustrativo sobre a synesis limita-se somente em
descrever suas caracteriacutesticas Neste sentido pensamos ser oportuno fazecirc-lo para facilitar a
compreensatildeo desta virtude intelectual menor A inteligecircncia permite o ceacutelere aprendizado sobre os
elementos envolvidos em uma dada situaccedilatildeo Isto favorece o discernimento prudencial porque haacute
um conhecimento mais acurado das particularidades do caso Assim imaginemos uma conjuntura
do paiacutes no qual exista uma crise generalizada no transporte de insumos devida agrave falta de
abastecimento de combustiacuteveis Este eacute o panorama Para emitir um juiacutezo correto eacute indispensaacutevel
entender cada elemento que compotildeem a situaccedilatildeo Cada elemento deve ser entendido no seu
funcionamento proacuteprio e na sua relaccedilatildeo com os outros O homem prudente sendo possuidor da
synesis estudaraacute e aprenderaacute os vaacuterios elementos na circunstacircncia descrita por exemplo a
paralisaccedilatildeo dos transportadores e seu papel na logiacutestica de bens materiais o refinamento e
comercializaccedilatildeo dos derivados do petroacuteleo etc A compreensatildeo de cada parte que promove a
compreensatildeo do todo Logo para emitir um parecer correto ou seja sensato sobre a conjuntura e
decidir a melhor accedilatildeo a ser realizada o prudente utiliza a inteligecircncia para aprender os elementos
particulares e em que consiste cada um deles
Em suma a synesis eacute a capacidade de resolver situaccedilotildees novas de maneira ceacutelere e com
sucesso adaptando-se a elas por meio do conhecimento adquirido Esta virtude permite que se faccedila
um bom juiacutezo das coisas Deste modo o homem adquire um bom senso que interpreta com
razoaacutevel grau de acerto o que ocorre em cada caso
A ponderaccedilatildeo (gnwmn) eacute a terceira virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles De acordo
com o filoacutesofo de Estagira eacute definida como ldquoO que se chama discernimento e em virtude do qual
se diz que os homens satildeo lsquojuiacutezes humanosrsquo e que lsquopossuem discernimentorsquo eacute a reta discriminaccedilatildeo
do equumlitativordquo257 O conceito de equidade significa julgar de uma foma justa uma determinada
demanda Para que este julgamento equitativo ocorra eacute necessaacuterio que o julgador possua a virtude
secundum quod in se est Quod quidem provenit ex recta dispositione virtutis apprehensivae sicut in speculo si fueritbene dispositum imprimuntur formae corporum secundum quod sunt si vero fuerit speculum male dispositumapparent ibi imagines distortae et prave se habentes Quod autem virtus cognoscitiva sit bene disposita ad recipiendumres secundum quod sunt contingit quidem radicaliter ex natura consummative autem ex exercitio vel ex muneregratiae Et hoc dupliciter Uno modo directe ex parte ipsius cognoscitivae virtutis puta quia non est imbuta pravisconceptionibus sed veris et rectis et hoc pertinet ad synesim secundum quod est specialis virtus Alio modo indirecteex bona dispositione appetitivae virtutis ex qua sequitur quod homo bene iudicet de appetibilibus Et sic bonum virtutisiudicium consequitur habitus virtutum moralium sed circa fines synesis autem est magis circa ea quae sunt ad finemAd secundum dicendum quod in malis potest quidem iudicium rectum esse in universali sed in particulari agibilisemper eorum iudicium corrumpitur ut supra habitum estrdquo Na presente citaccedilatildeo Satildeo Tomaacutes estaacute discutindo na questatildeo51 artigo 3 (1) se a synesis natildeo eacute virtude e (2) se os homens maus possuem ou natildeo a synesis257 EacuteN VI 1143a 19-21 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Conforme apontamos na nota derodapeacute nordm 245 a ediccedilatildeo em portuguecircs que usamos da EacuteN usa a palavra ldquodiscernimentordquo para traduzir o gnome (LVallandro e G Bornheim 1987 p 110) No presente trabalho preferimos chamar de ldquoponderaccedilatildeordquo pelos motivosexpostos na referida nota
88
moral da justiccedila O bom julgador eacute aquele que tem consideraccedilatildeo pelos outros Ou seja ele pensa nos
outros ao ponderar o que eacute mais justo para todos Em outros termos a gnome nasce na estima que o
julgador tem pelas outras pessoas Nos mostra Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco
Mostra-o o fato de dizermos que o homem equumlitativo (gnwmhn) eacute acima de tudoum homem de discernimento humano (suggnwmonaj) e de (sic) identificarmos aequidade com o discernimento humano a respeito de certos fatos E essediscernimento eacute aquele que discrimina corretamente o que eacute equitativo sendo odiscernimento correto (e0pieikou~~j o0rqh) aquele que julga com a verdade (o0rqh d h9rsquo e1mpeiroj ou0k e1stintou~~ a0lhqou~~j)258
Nota-se a vital importacircncia das virtudes morais para que exista a gnome Sem a solidez das
virtudes no caraacuteter do homem dificilmente poderaacute haver um julgamento justo quando a equidade
se fizer necessaacuteria A gnome e as virtudes morais satildeo imprescindiacuteveis para o exerciacutecio da justiccedila em
sociedade Deste modo natildeo existe nenhuma poacutelis ou naccedilatildeo que continue agregada de modo
civilizado sem a equidade
A Magna Moralia descreve que a esfera em que atua a gnome eacute aquela dos direitos legais
Onde as leis natildeo satildeo claras a equidade deve aparecer para esclarecer o que deve ser feito uma vez
que eacute impossiacutevel os legisladores preverem todos os tipos de situaccedilotildees em detalhes Logo cabe ao
bom julgador (eu0gnwmwn) clarear as questotildees que natildeo satildeo resolvidas prontamente pelas leis 259
Neste sentido a gnome eacute uma virtude intelectual que auxilia no conviacutevio muacutetuo Ela
promove a harmonia nas relaccedilotildees cotidianas entre os cidadatildeos Mas eacute indispensaacutevel para
governantes legisladores e magistrados haja vista o grande nuacutemero de pessoas que suas decisotildees
afetam260 Os governantes devem praticar este reto juiacutezo equitativo para que sua administraccedilatildeo
considere as necessidades de todos os cidadatildeos e natildeo apenas de uma parcela deles O juiacutezo
equitativo eacute ainda mais requisitado quando as leis satildeo inexistentes obtusas ou natildeo se aplicam ao
caso demandado Nesta situaccedilatildeo exige-se que o magistrado possua uma conduta moral iacutentegra para
que possa ponderar de forma correta e aplicar a justiccedila (dikh) Um magistrado que tenha viacutecios de
caraacuteter incorreraacute em dois efeitos maleacuteficos O primeiro eacute que natildeo julgaraacute de modo equitativo Por
ter viacutecios corruptiacuteveis natildeo poderaacute estabelecer a dike porque tenderaacute a proteger um dos querelantes
258 EacuteN VI 1143a 22-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 A suggnome eacute a qualidade do homemaltruiacutesta indulgente Este homem pondera as situaccedilotildees visando o que eacute o mais justo para todos os envolvidos nasituaccedilatildeo Deste modo ele profere um reto julgamento 259 Cf Magna Moralia 1198b 24-34 The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et VitiisOp Cit sem paacutegina260 Devemos recordar que na filosofia moral aristoteacutelica o objetivo principal dos liacutederes da poacutelis eacute promover aeudaimonia na poacutelis Em vista disto a virtude intelectual da gnome tem uma fundamental importacircncia Cf EacuteN VI1142a 9-10 Poliacutetica I 1252a 5 1323b 22-35 1324a 5-35
89
em detrimento do outro O segundo eacute que o magistrado ao atingir o niacutevel de corrupccedilatildeo moral seus
viacutecios o impediratildeo de ponderar corretamente a querela Em vista disto no momento de proferir sua
sentenccedila inadvertidamente ao aplicar a lei o faraacute de modo que natildeo atende ao que eacute mais justo na
situaccedilatildeo
O juiacutezo equitativo eacute necessaacuterio para os legisladores porque sua missatildeo eacute promulgar leis
justas Estas leis auxiliam que a poacutelis atinja a vida feliz e estimulam os cidadatildeos a serem virtuosos
Os legisladores corrompidos por viacutecios de caraacuteter natildeo possuem condiccedilotildees para estabelecer uma
sociedade justa Ao contraacuterio as leis seratildeo promulgadas para fins errocircneos e incentivaratildeo os viacutecios
nos cidadatildeos O bom legislador possui a capacidade de ponderar de forma equitativa porque eacute
detentor de um caraacuteter virtuoso moral e intelectual Por conseguinte faraacute leis que preconizem as
relaccedilotildees justas entre os cidadatildeos
Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a gnome argumenta que o juiacutezo equitativo eacute
aplicado nos casos insoacutelitos nos quais as regras comuns natildeo podem ser usadas como padratildeo de
referecircncia Satildeo casos de exceccedilatildeo ou extraordinaacuterios nos quais usar o padratildeo comum de julgamento
faria o julgador cometer um erro de juiacutezo e consequentemente uma injusticcedila Satildeo nestas situaccedilotildees
que o bom julgador pondera acertadamente sobre o mais justo a ser feito O Doutor Angeacutelico
assinala a diferenccedila entre synesis e gnome A primeira compreende as regras comuns que orientam
as accedilotildees nos casos ordinaacuterios e frequentes A segunda julga as situaccedilotildees excepcionais estas natildeo
podem ser solucionadas de acordo com o normativo regular e costumeiro Em vista disto a gnome
julga o que eacute mais justo a partir dos princiacutepios mais elevados que os aplicados nos casos ordinaacuterios
Conforme descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] Os haacutebitos cognoscitivos distinguem-se segundo princiacutepios mais ou menoselevados como a sabedoria considera os princiacutepios mais elevados no acircmbitoespeculativo do que a ciecircncia Por isso se distinguem entre si O mesmo deve sedar nas accedilotildees Eacute evidente que as coisas que estatildeo fora da ordem de um princiacutepio oude uma causa inferior cai agraves vezes sob a ordem de um princiacutepio mais elevado [hellip]Acontece agraves vezes haver a necessidade de fazer algo agrave margem das regras comunsda accedilatildeo Por exemplo natildeo devolver um depoacutesito ao inimigo da paacutetria e outrascoisas semelhantes Por isso se deve julgar a respeito desses casos segundoprinciacutepios mais elevados do que as regras comuns segundo as quais a synesisjulga E segundo estes princiacutepios mais elevados exige-se tambeacutem uma potecircnciajustificativa mais elevada esta chama-se gnome e ela implica certa perspicaacutecia nojulgamento[hellip] portanto deve-se dizer que a synesis julga bem todos os casos que caem sob asregras comuns Mas outras accedilotildees devem ser julgadas agrave margem das regras comunscomo se acabou de dizer [hellip] deve-se dizer que considerar tudo o que pode suceder agrave margem do cursonormal da natureza pertence somente agrave providecircncia divina mas entre os homens o
90
que for mais perspicaz pode conhecer por sua razatildeo muitas delas A isso se ordenaa gnome que implica certa perspicaacutecia no julgamento 261
Observa-se que as fronteiras entre a synesis e a gnome nem sempre satildeo muitos distinguiacuteveis
Ambas analisam as particularidades de cada situaccedilatildeo Mas se as funccedilotildees de cada uma destas
virtudes especiais nem sempre satildeo niacutetidas deve-se ao fato de que elas operam juntas e estatildeo
atreladas uma agrave outra O bom juiz somente consegue ponderar bem e promover a equidade em cada
situaccedilatildeo se conseguir ser inteligente o suficiente para aprender sobre os elementos particulares
envolvidos em cada circunstacircncia A partir daiacute consegue extrair regras comuns Justamente por
apreender as regras comuns com base nos fatos o homem prudente pode sopesar de modo correto
Diante disto as situaccedilotildees excepcionais podem ser julgadas agrave luz de princiacutepios mais elevados que as
regras comuns podem fazecirc-lo
Apoacutes a descriccedilatildeo das trecircs virtudes intelectuais menores e como elas interagem entre si para a
realizaccedilatildeo de uma boa decisatildeo pelo homem prudente julgamos oportuno descrever brevemente
sobre a razatildeo intuitiva (nou=j) Aristoacuteteles faz referecircncia sobre esta operaccedilatildeo do intelecto no mesmo
Livro VI no qual disserta sobre a prudecircncia e as demais virtudes menores Dito isto passamos ao
proacuteximo toacutepico acerca do noucircs (nou=j)
36 A razatildeo intuitiva (nou=j) e a prudecircncia
O noucircs (nou=j)262complementa as virtudes intelectuais No campo do saber teoacuterico eacute
conceituado como a capacidade que o intelecto possui de apreender os primeiros princiacutepios que
261 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642-643Summa Theologiae II-II q 51 a 4 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodhabitus cognoscitivi distinguuntur secundum altiora vel inferiora principia sicut sapientia in speculativis altioraprincipia considerat quam scientia et ideo ab ea distinguitur Et ita etiam oportet esse in activis Manifestum est autemquod illa quae sunt praeter ordinem inferioris principii sive causae reducuntur quandoque in ordinem altioris principiisicut monstruosi partus animalium sunt praeter ordinem virtutis activae in semine tamen cadunt sub ordine altiorisprincipii scilicet caelestis corporis vel ulterius providentiae divinae Unde ille qui consideraret virtutem activam insemine non posset iudicium certum ferre de huiusmodi monstris de quibus tamen potest iudicari secundumconsiderationem divinae providentiae Contingit autem quandoque aliquid esse faciendum praeter communes regulasagendorum puta cum impugnatori patriae non est depositum reddendum vel aliquid aliud huiusmodi Et ideo oportetde huiusmodi iudicare secundum aliqua altiora principia quam sint regulae communes secundum quas iudicat synesisEt secundum illa altiora principia exigitur altior virtus iudicativa quae vocatur gnome quae importat quandamperspicacitatem iudicii [] dicendum quod synesis est vere iudicativa de omnibus quae secundum communes regulas fiunt Sed praetercommunes regulas sunt quaedam alia diiudicanda ut iam dictum est [] dicendum quod omnia illa quae praeter communem cursum contingere possunt considerare pertinet ad solamprovidentiam divinam sed inter homines ille qui est magis perspicax potest plura horum sua ratione diiudicare Et adhoc pertinet gnome quae importat quandam perspicacitatem iudiciirdquo 262 Jaacute apontamos a dificuldade de traduccedilatildeo do termo grego noucircs (cf nota de rodapeacute nordm 115) Optamos pelo termoldquointuiccedilatildeordquo ou ldquorazatildeo intuitivardquo por julgarmos serem mais adequados para expressar o tipo de operaccedilatildeo intelectualdescrita por Aristoacuteteles
91
servem de fundamento para as ciecircncias Ele capta aquilo que natildeo eacute possiacutevel ser demonstrado por
meio de deduccedilotildees ou induccedilotildees Contudo o noucircs tambeacutem atua no campo do saber praacutetico Neste
aspecto o noucircs capta os fatos particulares que variam a cada situaccedilatildeo A partir dos particulares
realiza uma induccedilatildeo para chegar as premissas universais Por consequecircncia o noucircs auxilia o homem
prudente a perceber de modo imediato a melhor accedilatildeo a ser realizada sob quaisquer circunstacircncias
De acordo com Aristoacuteteles
A razatildeo intuitiva (nou=j) por sua vez ocupa-se com coisas imediatas em ambos ossentidos pois tanto os primeiros termos como os uacuteltimos satildeo objetos da razatildeointuitiva e natildeo do raciociacutenio e a razatildeo intuitiva pressuposta pelas demonstraccedilotildeesapreende os termos primeiros e imutaacuteveis enquanto a razatildeo intuitiva requerida peloraciociacutenio praacutetico apreende o fato uacuteltimo e variaacutevel isto eacute a premissa menor Eesses fatos variaacuteveis servem como pontos de partida para a apreensatildeo do fim[conclusatildeo do silogismo] visto que chegamos aos universais (kaqolou) pelosparticulares eacute mister por conseguinte que tenhamos percepccedilatildeo destes uacuteltimos etal percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva (toutwn ou]n e1xein dei= ai1sqhsin au3th d e0stirsquo e1mpeiroj ou0k e1stinnou=j)263
O noucircs natildeo eacute uma deliberaccedilatildeo nem opiniatildeo nem ciecircncia Podemos caracterizaacute-lo como uma
espeacutecie de ldquogolpe de vistardquo Eacute uma percepccedilatildeo imediata de tudo o que envolve uma situaccedilatildeo
qualquer e que ocorre sem a necessidade da deliberaccedilatildeo Pelo menos eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo
tatildeo veloz que mal pode ser definida como tal Eacute o homem que diante de uma ocorrecircncia sabe
rapidamente qual a accedilatildeo a ser realizada e com boas chances de acerto O comentador Pierre
Aubenque descreve esta atuaccedilatildeo do noucircs como um resultado abrupto que ocorre ao final da
reflexatildeo
Se se entende por nou~~j a apreensatildeo imediata dos princiacutepios da demonstraccedilatildeo tantoa prudecircncia quanto a sabedoria se encontram igualmente distantes disso emborapor razotildees diferentes a sabedoria porque eacute feita de demonstraccedilotildees a prudecircnciaporque natildeo concerne nem ao demonstraacutevel nem a seu princiacutepio Mas se se entendepor nou~~j a apreensatildeo imediata das ldquocoisas uacuteltimas e particularesrdquo264 seraacute precisoatribuir tal intuiccedilatildeo ao homem prudente ao mesmo tempo homem de pensamento eaccedilatildeo herdeiro dos heroacuteis da tradiccedilatildeo o phronimos une nele a lenta reflexatildeo e aimediatez do golpe de vista que natildeo eacute senatildeo a brusca eclosatildeo da primeira ele unea minuacutecia e a inspiraccedilatildeo o espiacuterito de previsatildeo e o espiacuterito de decisatildeo265
Este senso imediato sobre as circunstacircncias eacute resultado da atuaccedilatildeo conjunta das trecircs virtudes
intelectuais menores somada agrave empeiria Por isto o homem prudente eacute algueacutem que possui e exerce
263 EacuteN VI 1143a 35 ndash 1143b 7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110264 Pierre Aubenque assinala esta passagem na EacuteN VI 1143a 28265 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 237-238
92
muito bem a euboulia a synesis a gnome A velocidade de saber o que fazer em certas situaccedilotildees eacute
fruto da experiecircncia adquirida com o passar do tempo que aperfeiccediloa as trecircs virtudes intelectuais
menores Afinal no decorrer do tempo quantas circunstacircncias foram deliberadas Quantos casos
foram julgados Quantas escolhas foram feitas dia apoacutes dia Devido a isto quando comparado a
outros homens o phronimos sabe do modo mais raacutepido e certeiro entender o que se passa a sua
volta e realizar as accedilotildees mais corretas266
Devido agrave empeiria e ao tempo que ajudam a desenvolver as virtudes intelectuais menores
Aristoacuteteles elogia os homens com mais idade e maior experiecircncia A sabedoria destes expressa em
suas opiniotildees maacuteximas e proveacuterbios merecem tanto respeito e atenccedilatildeo quanto a devida a
renomados cientistas ou especialistas em alguma ciecircncia Os homens prudentes satildeo os saacutebios os
ldquoespecialistasrdquo na arte de viver Conforme nos mostra Aristoacuteteles
Eis aiacute por que tais disposiccedilotildees [euboulia synesis noucircs] satildeo consideradas comodotes naturais e enquanto de ningueacutem se diz que eacute filoacutesofo (sofoj) por natureza amuitos se atribui um discernimento inteligecircncia e uma razatildeo intuitiva inatos (gnwmhn d e1xein kai sunesin kai nou=nrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] dizendo que uma determinada idade trazconsigo a razatildeo intuitiva e o discernimento isto implica que a causa eacute natural[Donde se segue que a razatildeo intuitiva eacute tanto um comeccedilo como um fim (a0rxh kaiteloj nou=j) pois as demonstraccedilotildees partem deste e sobre estes versam] Por issodevemos acatar natildeo menos que as demonstraccedilotildees os aforismos e opiniotildees(docaij) natildeo demonstradas (a0podeiceij) de pessoas experientes (e0mpeirwn) emais velhas assim como das pessoas dotadas de sabedoria praacutetica Com efeitoessas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olho(e0mpeiriaj o1mma o9rw~~sin o0rqw~~j)267
Vimos como o aperfeiccediloamento das virtudes intelectuais menores eacute fundamental para a
aquisiccedilatildeo da prudecircncia O entrelaccedilamento destas trecircs capacidades do intelecto permite uma
interpretaccedilatildeo correta dos fatos Esta por sua vez auxilia para que haja uma boa anaacutelise de
conjuntura ou seja condizente com a realidade dos fatos No que lhe concerne esta averiguaccedilatildeo
certeira favorece a boa deliberaccedilatildeo Logo o homem prudente eacute aquele que realiza um bom exame
das circunstacircncias porque conhece os fatos particulares e os fins aos quais se destinam agrave accedilatildeo
humana
Apoacutes o exame das partes integrantes da prudecircncia resta uma questatildeo a ser tratada como a
prudecircncia nos conduz agrave eudaimonia A elucidaccedilatildeo desta pergunta estaacute exposta ao longo de toda a
266 Recordamos que uma accedilatildeo correta precisa ser moralmente nobre e eficaz para atingir o resultado previsto 267 EacuteN VI 1143b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Referente a expressatildeo ldquo[hellip] Comefeito essas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olhordquo Acreditamos que seja melhorcompreensiacutevel transcrevendo-a da seguinte forma ldquo[hellip] pois a experiecircncia lhes transmitiu uma visatildeo com a qualenxergam as coisas com acertordquo (E Bini 2013 p 195) Outra traduccedilatildeo [hellip] for experience has given them an eye forthings and so they see correctlyrdquo (H Rackham 1996 p 157)
93
explanaccedilatildeo feita Mas pensamos ser interessante esclarecer melhor a resposta Dito isto passemos
ao proacuteximo toacutepico
37 Prudecircncia virtudes morais e eudaimonia
No final do livro VI268 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles responde a alguns questionamentos
especiacuteficos sobre a prudecircncia Provavelmente seriam questotildees feitas por homens natildeo afeiccediloados agraves
reflexotildees mais profundas sobre a sophia e a phronecircsis De modo geral as perguntas versam sobre a
utilidade das virtudes intelectuais Estes questionamentos possuem o seu valor porque vatildeo no
acircmago de um aspecto que natildeo pode ser esquecido no estudo sobre o saber teoacuterico e o saber praacutetico
Estes saberes satildeo apenas um mero exerciacutecio intelectual sem viacutenculo com o cotidiano do homem
comum Apenas seriam uma espeacutecie de jogo para exercitar o raciociacutenio Algo sem importacircncia para
a construccedilatildeo de uma vida feliz Naturalmente que natildeo A sophia e a phronecircsis satildeo fundamentais
para a felicidade Eacute o que o Estagirita tentaraacute demonstrar
O filoacutesofo de Estagira comeccedila se interrogando acerca do aparente fato de que a sophia natildeo
pode auxiliar na busca da eudaimonia porque natildeo diz respeito agraves coisas contingenciais nem agraves que
foram geradas Apenas trata das coisas eternas e necessaacuterias Ao contraacuterio do saber teoacuterico a
phronecircsis versa sobre aquilo que nos faz agir de modo justo e nobre Entretanto uma vez que ser
justo e nobre satildeo qualidades do homem bom natildeo faz sentido desenvolver estes dois saberes
porque em tese o homem virtuoso jaacute possui qualidades boas E para um homem que natildeo eacute
virtuoso natildeo faria nenhuma diferenccedila basta ele viver sem prudecircncia ou acatar os conselhos dos
prudentes Entatildeo qual a necessidade de aprender e aprimorar a sophia e a phronecircsis Citamos o
texto
Mas algueacutem poderia perguntar de que servem essas faculdades da mente jaacute que (1)a sabedoria filosoacutefica (sofia) natildeo considera nenhuma das coisas que tornam umhomem feliz (pois natildeo diz respeito agraves coisas que se geram) e quanto agrave sabedoriapraacutetica embora trate dessas coisas para que necessitamos dela A sabedoriapraacutetica eacute a disposiccedilatildeo da mente que se ocupa com as coisas justas nobres e boaspara o homem (fronesij e0stin peri ta dikaia kai kala kai a0gaqaa0nqrwpw) mas essas satildeo coisas cuja praacutetica eacute caracteriacutestica de um homem bom(agaqou= e0stin a0ndroj) e natildeo nos tornamos mais capazes de agir pelo fato deconhececirc-las se as virtudes satildeo disposiccedilotildees do caraacuteter (e3ceij ai9 a0retai ei0sin)[hellip]269
268 Cf EacuteN VI 1143b 20 - 1144a 35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111-112 EacuteE I 1143b 20 -1144a 35 Eacutetica a Eudemo Op cit p 198-200269 EacuteN VI 1143b 18-28 Ibidem p 111
94
Decorrente do questionamento anterior surge outra questatildeo que Aristoacuteteles se defronta a
saber se a phronecircsis seria superior agrave sophia para construir uma vida feliz Ele faz uma comparaccedilatildeo
com a medicina e a sauacutede Pode-se pensar que natildeo necessariamente precisamos dominar a medicina
para termos sauacutede Basta praticar atos saudaacuteveis e teremos a sauacutede Poreacutem ao seguirmos esta linha
de raciociacutenio haacute uma estranheza a phronecircsis torna-se superior agrave sophia Ou seja a sabedoria
praacutetica que se refere aos meios torna-se mais importante que a sabedoria teoacuterica que compreende
as coisas mais elevadas Logo como a prudecircncia seria superior e mais importante que a sabedoria
teoacuterica De acordo com Aristoacuteteles
Mas (2) se dissermos que um homem deve possuir sabedoria praacutetica natildeo paraconhecer as verdades morais mas para tornar-se bom a sabedoria praacutetica nenhumautilidade teraacute para os que jaacute satildeo bons e por outro lado de nada serve ela para osque natildeo possuem virtude Com efeito nenhuma diferenccedila faz que eles proacutepriostenham sabedoria praacutetica ou que obedeccedilam (peiqesqai) a outros que a tecircm e seriasuficiente fazer o que costumamos fazer com respeito agrave sauacutede (u9gieian) emboradesejemos gozar sauacutede natildeo nos dispomos por isso a aprender a arte da medicina(3) Por outro pareceria estranho que a sabedoria praacutetica sendo inferior agrave filosoacutefica(sofiaj) tivesse autoridade (kuriwtera) sobre ela como parece implicar o fatode que a arte que produz uma coisa qualquer exerce o mando e o governorelativamente a essa coisa270
A resposta eacute que a sophia e a phronecircsis por serem virtudes correspondem agrave excelecircncia das
respectivas partes intelectuais da alma Elas satildeo o aacutepice das operaccedilotildees do intelecto que atuam nos
seus campos especiacuteficos a teoria e a accedilatildeo Portanto por serem a perfeiccedilatildeo daquilo que existe de
melhor em noacutes mesmos ndash a razatildeo ndash elas devem ser almejadas por si proacuteprias mesmo que
aparentemente natildeo produzam nenhum tipo de resultado
O detalhe eacute que as virtudes intelectuais e morais produzem efeitos reais Elas resultam na
eudaimonia Ao usar a razatildeo de maneira sublime o homem se torna mais feliz E quanto a
phronecircsis e as virtudes morais A prudecircncia e a virtude moral atuam juntas para que o homem
cumpra plenamente sua funccedilatildeo Ao cumpri-la o homem eacute feliz A prudecircncia garante a reta escolha
dos meios A virtude moral assegura a retidatildeo dos fins nobres pelos quais o homem orienta a sua
vida Portanto a conquista e o aprimoramento das virtudes intelectuais e morais satildeo indispensaacuteveis
para a eudaimonia Conforme nos expotildee Aristoacuteteles
270 EacuteN VI 1143b 29-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111
95
(1)Antes de tudo diremos que essas disposiccedilotildees de caraacuteter devem ser dignas deescolha porque satildeo as virtudes das duas partes da alma respectivamente e o seriamainda que nenhuma delas produzisse o que quer fosse (2) Em segundo lugar elasde fato produzem alguma coisa ndash natildeo poreacutem como a arte meacutedica produz sauacutedemas como a sauacutede (sic) produz sauacutede Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produzfelicidade (sofia eu0daimonian) porque sendo ela uma parte da virtude inteira [davirtude como um todo] (o3lhj a0reth=j) torna um homem feliz pelo fato de estar nasua posse e atualizar-se (e0nergei=n eu0daimona)271
A prudecircncia eacute relevante para tornar os homens melhores Certamente que sim Porque a
accedilatildeo virtuosa eacute resultado de uma escolha consciente do homem Os fins e os meios devem ser
corretos Somente quem for prudente realiza a correta escolha dos meios para alcanccedilar o fim
escolhido Unicamente opta pelos fins corretos quem for moralmente virtuoso O homem prudente
reuacutene em si todas as virtudes morais Desta maneira o Supremo Bem (eudaimonia) apenas pode ser
ldquovisualizadordquo pelo homem virtuoso e natildeo por aquele que tem viacutecios (kakoi) pois estes uacuteltimos
pervertem a visatildeo correta do que eacute o bem para o homem e dificultam a sua escolha De acordo com
Aristoacuteteles
(3) Por outro lado a obra (e1rgon) de um homem soacute eacute perfeita (a0potelei=tai)quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica (fponesij) e com a virtude moral(h0qikhn a0rethn) esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito (proairesin o0rqhnpoiei= h9 a0reth) aquela com que escolhamos os devidos meios [hellip] Assim comodizemos que algumas pessoas que praticam atos justos natildeo satildeo necessariamentejustas por isso ndash referimo-nos agraves que praticam os atos prescritos pela lei querinvoluntariamente quer devido agrave ignoracircncia ou por alguma outra razatildeo mas natildeo nointeresse dos proacuteprios atos embora seja certo que tais pessoas fazem o que deveme todas as coisas que o homem bem (sic) deve fazer - parece que do mesmo modopara algueacutem ser bom eacute preciso encontrar-se em determinada disposiccedilatildeo quandopratica cada um desses atos numa palavra eacute preciso praticaacute-los em resultado deuma escolha e no interesse dos proacuteprios atos 272
Assim a resposta agrave pergunta inicial do porque desenvolver as virtudes intelectuais e morais
para ser feliz pode ser respondida de modo satisfatoacuterio Eacute a consolidaccedilatildeo da virtude intelectual da
prudecircncia e das virtudes morais que o fazem se tornar um phronimos Deste modo ele consegue
discernir o bem em qualquer situaccedilatildeo e escolher os meios adequados para atingiacute-lo
271 EacuteN VI 1144a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111 Na expressatildeo ldquo[hellip] mas como a sauacutedeproduz sauacutederdquo entendemos que a ideia que se quer transmitir eacute mais compreensiacutevel na traduccedilatildeo de Edson Bini ldquo[hellip]mas naquele segundo o qual o sadio eacute a causa da sauacutederdquo (E Bini 2013 p 196) Tambeacutem pode ser entendido como oldquosaudaacutevelrdquo em vez de o ldquosadiordquo272 EacuteN VI 1144a 9-22 Ibidem p 111-112
96
CONCLUSAtildeO
Nas consideraccedilotildees finais deste estudo sobre a phronecircsis retomamos brevemente o caminho
percorrido Como fio condutor trata-se de compreender no que consiste a virtude intelectual da
prudecircncia e como esta auxilia na obtenccedilatildeo da eudaimonia A Eacutetica a Nicocircmaco eacute um tratado sobre
as virtudes e a felicidade Nesta obra o objetivo de Aristoacuteteles eacute indicar o que eacute a verdadeira vida
feliz e traccedilar um itineraacuterio para alcanccedilaacute-la ou melhor construiacute-la A vida feliz natildeo eacute fruto do acaso
mas eacute resultado de uma escolha baseada nas virtudes E se eacute uma escolha o homem deve estar
consciente desta ldquoescolha de vidardquo e arcar com as responsabilidades que esta acarreta Se a
felicidade consiste em parte em tomar boas decisotildees a razatildeo praacutetica deve atuar A virtude
intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia da razatildeo praacutetica no que se refere ao aspecto decisoacuterio Do
mesmo modo que um construtor que conhece o que deve fazer para construir uma casa e escolhe os
melhores meios para fazecirc-la certamente a construiraacute da forma correta Ele atingiu a meta
determinada que eacute a proacutepria casa Assim tambeacutem eacute a construccedilatildeo de uma vida feliz Logo quanto
mais o homem se exercitar na virtude intelectual da prudecircncia melhores seratildeo suas decisotildees o que
aumentaraacute as suas chances de ter uma vida feliz
Eacute importante compreender como o Estagirita descreve a relaccedilatildeo entre os bens e os fins ateacute
chegar ao conceito de Supremo Bem que eacute a proacutepria felicidade Uma vez que o ser humano possui
uma funccedilatildeo proacutepria caraterizada pela racionalidade satildeo as virtudes morais que promovem o
domiacutenio dos desejos e permitem que o indiviacuteduo siga os ditames da razatildeo Isso significa que existe
uma interaccedilatildeo entre a virtude intelectual da prudecircncia e as virtudes morais Para que a prudecircncia
apareccedila eacute necessaacuterio que as virtudes morais tambeacutem se desenvolvam Por isto a aquisiccedilatildeo das
virtudes morais eacute imprescindiacutevel para que o homem atinja a excelecircncia moral e conquiste a
plenitude de vida Entretanto para que haja o florescimento dessas virtudes e sua consolidaccedilatildeo no
homem virtuoso a prudecircncia precisa atuar Neste contexto a phronecircsis delimita o paracircmetro
correto para que o homem possa exercer uma accedilatildeo virtuosa dentro das circunstacircncias mutaacuteveis com
as quais se depara constantemente Esta virtude intelectual aplica-se no domiacutenio do contingente e
natildeo trata das coisas que nunca se alteram Seu acircmbito de aplicaccedilatildeo eacute o mundo das atividades
humanas pois eacute a prudecircncia que sopesa e julga as situaccedilotildees Assim a prudecircncia orienta o indiviacuteduo
a perceber os melhores meios para atingir os fins escolhidos E principalmente permite escolher os
meios para alcanccedilar o fim mais elevado de todos que eacute a proacutepria eudaimonia Logo esta virtude
intelectual possui uma funccedilatildeo basilar para que o homem se torne virtuoso e obtenha a felicidade
O motivo de desenvolver as virtudes intelectuais e morais para obter uma vida feliz pode ser
compreendido de modo clariacutessimo A necessidade de desenvolvecirc-las reside na proacutepria natureza
97
humana O ser humano eacute dotado de racionalidade A razatildeo eacute a mais sublime parte de sua alma Ela
permite que cumpramos nossa funccedilatildeo proacutepria plenamente Por isto quanto mais exercitamos a
razatildeo mais aprimoramos as virtudes intelectuais Em relaccedilatildeo agraves virtudes morais a praacutetica habitual
acarreta um controle maior dos nossos desejos Esse aperfeiccediloamento intelectual nos torna cada vez
mais felizes Primeiro pelo proacuteprio ato de raciocinar que eacute uma atividade que causa um prazer
nobre Segundo porque a sophia auxilia na contemplaccedilatildeo da beleza proveniente daquilo que eacute
eterno e por isto completamente estaacutevel A phronecircsis porque sendo o saber da boa decisatildeo ajuda
a vivermos em mundo instaacutevel e por consequecircncia incerto A prudecircncia ao ser aprendida e
exercitada torna o homem mais confiante em si proacuteprio pois desenvolve a capacidade de lidar com
as contingecircncias da vida e agir da maneira mais correta diante destas Portanto saber decidir bem
maximiza as chances de construir uma vida feliz porque os ldquoventos do acasordquo dificilmente
promovem a felicidade humana
Na formaccedilatildeo moral do homem o prazer possui um papel de muita importacircncia pois eacute um
indutor para a realizaccedilatildeo de accedilotildees boas ou maacutes Por isto desde a tenra idade o homem tem de ser
educado para sentir prazer na praacutetica de accedilotildees nobres e se deleitar com a praacutetica das virtudes morais
e intelectuais O homem virtuoso deve se afastar dos prazeres moralmente ruins Estes prazeres
torpes satildeo aqueles que natildeo estimulam o homem a torna-se mais virtuoso antes o afasta de uma
conduta moralmente elevada O prazer tem duas funccedilotildees importantes que auxiliam a atingir a
eudaimonia A primeira eacute o aprimoramento das atividades realizadas quanto mais prazer haacute
envolvido em uma accedilatildeo mais estiacutemulo existe para praticaacute-la o que ocasiona a melhora a atividade
exercida Um exemplo eacute o violinista que sente prazer ao tocar o seu violino isto o induz a treinar
mais e consequentemente a ser um muacutesico melhor Este aperfeiccediloamento causado pelo prazer
tambeacutem ocorre com a accedilatildeo humana quanto mais o homem se esforccedila para habituar-se agrave praacuteticas das
virtudes mais prazer ele sente em realizar accedilotildees corretas e nobres A segunda funccedilatildeo estaacute associada
ao resultado por exemplo ao tocar o instrumento musical de forma sublime o violinista teraacute mais
prazer O homem ao praticar as accedilotildees nobres torna-se cada vez mais excelente Deste modo o
resultado alcanccedilado pela conduta virtuosa moral e intelectual eacute a proacutepria felicidade
A importacircncia das virtudes morais para a felicidade eacute muito niacutetida Elas satildeo os fundamentos
a base para a virtude da prudecircncia Satildeo as virtudes morais que orientam os nossos desejos para o
bem Sem elas afundamos sobre o proacuteprio peso de aspiraccedilotildees incoerentes ou nefastas Afinal pode-
se desejar qualquer coisa inclusive o que nos faz mal Com isto nos afastamos da razatildeo e perdemos
a ideia da verdadeira felicidade E ainda arruinamos a capacidade de construiacute-la Sem a prudecircncia
que eacute a reta razatildeo no agir e sem a virtude moral que eacute o justo meio da accedilatildeo natildeo conseguimos definir
os fins que temos que atingir Tampouco conseguimos descobrir que accedilatildeo realizar para alcanccedilar
98
estes fins Ou pode-se ter um vislumbre da meta e da accedilatildeo mas natildeo haacute forccedila interior suficiente para
operacionalizar este intento Deste modo o homem perde a noccedilatildeo do fim uacuteltimo e frequentemente
dos fins particulares pois os viacutecios o arrastam para longe do Supremo Bem Tal fato o leva a fazer
escolhas ruins com consequecircncias infelizes
O ponto central para a realizaccedilatildeo das virtudes morais eacute a ideia de mediania A virtude moral
eacute um meio-termo entre dois tipos de condutas perniciosas para o homem Uma accedilatildeo ruim eacute marcada
pelo exagero a outra accedilatildeo eacute marcada pela carecircncia O spoudaios ou seja o homem virtuoso
moralmente aplica a mediania nas suas accedilotildees Neste sentido a mediania constitui a excelecircncia da
accedilatildeo
Ao longo desta pesquisa vimos como a virtude intelectual da prudecircncia se relaciona com as
virtudes morais Todo homem prudente possui as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter Satildeo
as virtudes morais que orientam os desejos para aquilo que eacute correto o que permite que a prudecircncia
decida quais satildeo os melhores meios para alcanccedilar os fins nobres desejados O homem prudente eacute
dotado de um domiacutenio sobre suas paixotildees e possui uma anaacutelise racional acertada das circunstacircncias
o que permite a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo correta Deste modo a prudecircncia indica como alcanccedilar o
fim mais desejado de todos que eacute a felicidade
A prudecircncia eacute o saber intelectual aplicado ao mundo contingente Ele sabe discernir a
intensidade o momento e a quem se aplica as suas accedilotildees Eacute a virtude da boa decisatildeo perante as
inuacutemeras circunstacircncias que surgem no decorrer da vida O homem prudente sabe deliberar
compreender e julgar de modo acurado as situaccedilotildees Existem trecircs fatores que auxiliam o
refinamento destes atos do intelecto que satildeo o tempo a experiecircncia e a instruccedilatildeo Deste modo a
virtude intelectual da prudecircncia pode ser aperfeiccediloada a cada decisatildeo realizada perante as
circunstacircncias
Eacute importante recordar que eacute a virtude da prudecircncia que preserva a consciecircncia dos limites do
possiacutevel para o homem Eacute o conhecimento dos seus limites que impede a desmesura (u3brij) ou
seja a arrogacircncia fatal que natildeo reconhece o que pode ou natildeo ser realizado e com isso acarreta na
infelicidade humana Neste sentido coadunamos com o pensamento de Pierre Aubenque ao trazer a
peccedila teatral Antiacutegona como exemplo ilustrativo da prudecircncia Nesta peccedila o coro diz ao vaidoso
Creonte que despreza o pensar prudencial acerca dos seus atos ldquoa (sic) prudecircncia (to fronei=n) eacute
de longe a primeira condiccedilatildeo da felicidade Nunca se deve cometer impiedade contra os deuses Os
orgulhosos vecircem suas grandes palavras pagas pelos grandes golpes da sorte e eacute apenas com os anos
que aprendem a prudecircnciardquo273 A prudecircncia se forja com o raciociacutenio aplicado agraves circunstacircncias nas
tentativas de realizar as melhores decisotildees possiacuteveis Com o passar do tempo as inuacutemeras
273 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op citp 260
99
experiecircncias vividas pelo homem permitem que suas decisotildees nas diversas situaccedilotildees tornem-se mais
apuradas Com este aprimoramento o homem prudente passa a ldquopersonificarrdquo a proacutepria reta razatildeo
Neste sentido a prudecircncia eacute a percepccedilatildeo salutar da ldquomedida das coisasrdquo que auxilia o bem viver
humano porque evita que desejos irreais e ideias absurdas que natildeo passaram no crivo da realidade
faccedilam o homem ser obstinado com fantasias que o conduziratildeo a uma trageacutedia individual ou coletiva
e natildeo a uma vida feliz
Diante do exposto acreditamos que eacute demonstrada a grande importacircncia que a virtude
intelectual da prudecircncia possui na vida do homem A eudaimonia que eacute o Supremo Bem desejado
por todas as pessoas somente pode ser atingida se houver boas decisotildees que nos conduzam ateacute uma
vida feliz O homem que seguidas vezes realiza decisotildees ruins ao longo de sua vida dificilmente
construiraacute uma vida feliz Somente eacute venturoso o homem que realiza o seu ergon ou seja alcanccedila a
sua plenitude a partir de dois atos extremamente importantes O primeiro ato eacute orientar os seus
desejos por meio das virtudes morais para os fins nobres e a ter prazer nas accedilotildees virtuosas sem
atitudes indignas de um homem valoroso O segundo ato eacute aprender a usar o intelecto para agir
corretamente ou seja a desenvolver a virtude da prudecircncia Afinal o homem prudente ao moderar
suas paixotildees e direcionar corretamente seus desejos para aquilo que eacute bom consegue decidir
corretamente o caminho a ser seguido dentro das diversas circunstacircncias
Em suma o homem sem prudecircncia e com os viacutecios que dominam o seu caraacuteter eacute como um
naacuteufrago sem mapa desorientado nos mares da vida Por outro lado o homem prudente sabe para
onde vai e possui a firmeza necessaacuteria para navegar ateacute laacute Logo nas incertezas da vida o
phronimos aristoteacutelico torna-se o seu proacuteprio porto seguro Isto o faz feliz
100
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de Filosofia Trad da primeira ediccedilatildeo brasileira coord e rev
por Alfredo Bosi rev e trad dos novos textos por Ivone Castilho Benedetti 6ordm ed Satildeo Paulo
WMF Martins Fontes 2012
ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica
nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-125
ARISTOTLE The Nicomachean Ethics Translated with Notes by Harris Rackham with a
Introduction by Stephen Watt Wordswhorth Classics of World Literature 1996
______________ Nicomachean Ethics Translated by WD Ross Batoche Books Kitchener 1999
______________ The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et Vitiis
Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford Clarendon Press 1915
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea I 13 ndashIII 8 Tratado da Virtude Moral Trad Marco Zingano
Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008
______________ Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro2015
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 3ordf Ediccedilatildeo 1ordm
reimp 2013
______________ Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Maria Arauacutejo y Juliacutean Marias Ed Biliacutengue CEPC
Diretor Antonio Truyol Serra 2002
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da
versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de
Eudoro de Souza Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural
1987 (Col Os Pensadores)
______________ Fiacutesica I-II Trad Lucas Angioni Campinas Editora Unicamp 2009
______________ Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterios de
Giovanni Reale) Volumes I II III Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ediccedilatildeo
2005
101
______________ Oacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edison Bini
Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev2010 p 41-42 (Seacuterie Claacutessicos Edipro)
______________ Poliacutetica Trad Nestor Silveira 1ordm ed Satildeo Paulo Folha de Satildeo Paulo 2010
______________ Retoacuterica Traduccedilatildeo textos adicionais e notas de Edson Bini Satildeo Paulo Edipro
2011
______________ Sobre a Alma Trad de Ana Maria Loacuteio revisatildeo cientiacutefica de Tomaacutes Calvo
Martiacutenez adaptado para o portuguecircs do Brasil por Luiza Aparecida dos Santos Satildeo Paulo WMF
Martins Fontes 2013 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles coord Antoacutenio Pedro Mesquita)
______________ Toacutepicos Dos argumentos sofiacutesticos seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta
Pessanha traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de WA Pickard mdash
Satildeo Paulo Nova Cultural 1987
ARISTOTELES Graece Ex recensione Immanuelis Bekkeri Volumen Alterum Berolini apud
Georgium Reimerum Academia Regia Borussica 1831
ARISTOTELIS Ethica Nicomachea Franciscus Susemihl Editio Altera Curavit Otto Apelt
Lipisiae In Aedibus B G Teubneri MCMIII
AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo
Discurso Editorial Paulus 2008
BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bertolini Satildeo Paulo Paulus 2012 (Coleccedilatildeo
Filosofia)
BRUumlLLMAN Phillip A Teoria do Bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo
Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 (Coleccedilatildeo Aristoteacutelica)
CARVALHO Helder Buenos Aires A phroacutenesis aristoteacutelica Breve comparaccedilatildeo das leituras de
Alasdair MacIntyre e Paul Ricoeur Hypnos Satildeo Paulo Nuacutemero 27 2ordm semestre 2011 p 260-283
ETICHE DI ARISTOTELE Etica Eudemea Etica Nicomachea Grande Etica A cura di Lucia
Caiani Introduzione di Francesco Adorno Torino Unione Tipografico-Editrice Torinese 1996
(Classici della Filosofia)
102
GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia
aristoteacutelica Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas
GEACH PT ldquoHistory of Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972
HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista
Archai Brasiacutelia n 04 pp 109-119 jan 2010
HERMANN Nadja Phronesis a especificidade da compreensatildeo moral Educaccedilatildeo Porto Alegre
Rio Grande do Sul ano XXX n 2(62) p 365-376 maioagosto 2007
HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a
eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
HOumlOFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008
JAEGER Werner Wilhelm Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Trad Artur M Parreira
adaptaccedilatildeo para versatildeo brasileira Mocircnica Stahel revisatildeo do texto grego Gilson Cesar Cardoso de
Souza 3ordm ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994
MACINTYRE Alasdair Justiccedila de quem Qual racionalidade Satildeo Paulo Loyola 1991
PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles a passagem da eacutetica agrave
dianoeacutetica aristoteacutelica no problema da felicidade Rio de Janeiro Poacutes Moderno 2002
PERINE Marcelo Quatro Liccedilotildees sobre a Eacutetica de Aristoacuteteles Ed Loyola Satildeo Paulo Brasil 2006
PLATAtildeO Teeteto Cratilo Traduccedilatildeo direta do grego Carlos Alberto Nunes Coordenaccedilatildeo Benedito
Nunes 3bull Ediccedilatildeo Revisada Beleacutem- Paraacute 2001
RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda
edicioacuten Trad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007
SPINELLI Priscila Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles Satildeo Leopoldo
Editora Unisinos 2007 (Col Precircmio ANPOF)
TOMAacuteS DE AQUINO Santo A prudecircncia a virtude da decisatildeo certa Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e
notas Jean Lauand 2ed Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014
103
__________________ Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes
Vol I Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015
p27
__________________Sententia Libri Ethicorum Disponiacutevel em
lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt
__________________ Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles
Trad Tiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013
__________________ Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed
Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004
VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo
Phronesis Vol 50 Nordm 2 2005 p 116-128
WEDIN Michael ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981
p243-262
WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de AristoacutetelesTrad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2010 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)
ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado da virtude moral Satildeo
Paulo Odysseus Editora 2008
ZINGANO Marco Estudo de Eacutetica Antiga 2edSatildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009
ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo
Paulo Ed Odysseus 2010
- BRASIacuteLIA
-
- 14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
- CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
- O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
-
- 16 O acaso na vida humana
- CAPIacuteTULO II
-
- AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
-
- 23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
- 24 O homem virtuoso
- 25 As virtudes morais como mediania
- 33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
-
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a Deus por todos os desafios enfrentados
Agradeccedilo a todos que me incentivaram na realizaccedilatildeo deste trabalho
Se a felicidade eacute atividade conforme agrave virtude seraacute razoaacutevel que ela esteja tambeacutem emconcordacircncia com a mais alta virtude e essa seraacute a do que existe de melhor em noacutes Quer seja
a razatildeo quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guianatural tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas e quer seja ele mesmo divino quer
apenas o elemento mais divino que existe em noacutes sua atividade conforme agrave virtude que lhe eacuteproacutepria seraacute a perfeita felicidade Que essa atividade eacute contemplativa jaacute o dissemos
anteriormente(ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 1177a 13-18)
A virtude de um ser seja ordenada para o bem Logo a virtude humana que eacute um haacutebitoimperativo eacute um haacutebito bom e operativo do bem
(SANTO TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica Iordf seccedilatildeo IIordf parte Questatildeo 55 Art 3)
Natildeo te deixes levar por tuas paixotildees e refreia os teus desejos (ECLESIAacuteSTICO 18 30)
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo estudar a virtude intelectual da prudecircncia
(φρόνησις) em Aristoacuteteles e ver sua importacircncia para que o indiviacuteduo construa uma vida
feliz Este estudo concentra-se principalmente na Eacutetica a Nicocircmaco mas tambeacutem seraacute
utilizado a Eacutetica a Eudemo o outro tratado aristoteacutelico sobre a eacutetica como auxiacutelio para
compreensatildeo do pensamento do Estagirita sobre a prudecircncia Para tanto este estudo estaacute
dividido em trecircs capiacutetulos No primeiro analisamos a ideia de Supremo Bem como felicidade
(eu0daimonia) Vemos o que a caracteriza e porque ela eacute o fim mais desejado Tambeacutem eacute visto
qual o tipo de vida que melhor condiz com a funccedilatildeo (e2rgon) proacutepria do ser humano No
segundo capiacutetulo examinamos as virtudes intelectuais e morais Entretanto damos uma
ecircnfase maior nas virtudes morais porque satildeo o fundamento para que a phronecircsis possa se
sobressair Ademais analisamos a relaccedilatildeo entre a virtude moral e o prazer pois este uacuteltimo
possui um papel importante na busca da eudaimonia No terceiro capiacutetulo tratamos da virtude
intelectual da prudecircncia Vemos suas caracteriacutesticas suas partes integrantes como se
desenvolve e atua defronte agrave realidade Compreendemos o que eacute a deliberaccedilatildeo (bouleusij e
a escolha (proairesij) assim como estudamos quais satildeo as trecircs virtudes intelectuais
menores boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn)
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Virtudes Morais Felicidade Bem
ABSTRACT
The objective of the present work is to study the intellectual virtue of prudence (φρόνησις) in
Aristotle and to see its importance for the individual to build a happy life This study focuses
mainly on The Nichomachean Ethics but the The Eudemian Ethics the other Aristotelian
treatise on ethics will also be used as an aid to understand the Stagirites thinking on
prudence This study is divided into three chapters In the first one we analyze the idea of
Supreme Good as happiness (eu0daimonia) We see what characterizes it and why it is the
most desired We are also seing which type of life best fits with the function ( gἔρ ον) of the
human being In the second chapter we examine intellectual and moral virtues However we
emphasize size more on moral virtues because they are the foundation for phronesis to excel
In addition we analyze the relationship between moral virtue and pleasure for the latter has
an important role in the pursuit of eudaimonia In the third chapter we deal with the
intellectual virtue of prudence We examine its characteristics its parts whats is its
development and how it acts with reality We try to understand what is deliberation
(bouleusij and choice (proairesij) just as we study what are the three minor intellectual
virtues good deliberation (eu0bolia) intelligence (sunesij) and judgment (gnwmn)
Keywords Aristotle Prudence Moral Virtues Happiness Good
SUMAacuteRIO
RESUMO i
SUMAacuteRIOhellipii
INTRODUCcedilAtildeOhellipp 03
CAPIacuteTULO I ndash O BEM HUMANO E A EUDAIMONIAp 07
11 O CONCEITO DE BEMp 08
12 UMA POSSIacuteVEL FALAacuteCIA ARISTOTEacuteLICAp 14
13 FIM DOMINANTE OU INCLUSIVOp 19
14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
15 A EUDAIMONIA E TIPOS DE VIDAp 28
16 O ACASO NA VIDA HUMANAp 34
CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
21 DEFINICcedilAtildeO DAS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 38
22 A EDUCACcedilAtildeO DOS PRAZERES E AS VIRTUDES MORAIShelliphellipp 40
23 PRAZER E APERFEICcedilOAMENTO DE UMA ATIVIDADEhellipp 45
24 O HOMEM VIRTUOSOhelliphelliphelliphelliphelliphellipp 47
25 AS VIRTUDES MORAIS COMO MEDIANIAhelliphelliphelliphelliphellipp 49
CAPIacuteTULO III ndash A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICOhelliphelliphellipp 56
31 LINHAS GERAIS ACERCA DA PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphellipp 57
32 O CONCEITO DE PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 62
33 A RETA RAZAtildeO (o0rqoj logoj) E A EXPERIEcircNCIA (e0mpeiria)helliphelliphelliphelliphellipp 70
34 DESEJO (o1recij) DELIBERACcedilAtildeO (bouleusij E ESCOLHA (proairesij)hellipp 75
35 AS TREcircS VIRTUDES INTELECTUAIS MENORES BOA DELIBERACcedilAtildeO
(eu0boulia) INTELIGEcircNCIA (sunesij) PONDERACcedilAtildeO (gnwmh)helliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 82
36 A RAZAtildeO INTUITIVA (nou~j) E A PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 90
37 PRUDEcircNCIA VIRTUDES MORAIS E EUDAIMONIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 93
CONCLUSAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 96
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICASp 100
3
INTRODUCcedilAtildeO
No contexto da poacutes-modernidade a reflexatildeo eacutetica parece enfrentar um paradoxo Por um
lado a praacutetica social juriacutedica e poliacutetica bem como diversos setores da sociedade natildeo cessam de
clamar pelo valor da pessoa humana e seus direitos que se apresentam como norte da rota de
desenvolvimento civilizatoacuterio do Ocidente nesse momento da histoacuteria Todavia noutro sentido a
especulaccedilatildeo filosoacutefica parece cada vez menos propensa a adotar como paracircmetro a ideia de um
normativo moral calcado em determinadas regras de conduta generalizantes e universais e de certo
modo caracterizadas por uma rigidez que exigem uma conduta pautada principalmente pela noccedilatildeo
de dever
Essa desconfianccedila pode ter surgido a partir da experiecircncia dramaacutetica dos seacuteculos passados
nos quais alguns paradigmas ideoloacutegicos podem ter servido como molde para trageacutedias em larga
escala exigindo uma premente reflexatildeo acerca dos modelos intelectuais que tinham fundamentado
diretamente ou pelo menos tornado possiacuteveis alguns flagelos1
As circunstacircncias individuais e coletivas trazem uma enorme variedade de caminhos e
opccedilotildees a serem escolhidas e assumidas nas suas consequecircncias Nesse contexto a pergunta ldquoO que
eacute o melhor a ser feito diante dessa ou daquela situaccedilatildeordquo se impotildee de forma quase natural a cada
indiviacuteduo A virtude da prudecircncia fornece em Aristoacuteteles a medida adequada para que exista uma
accedilatildeo virtuosa diante das circunstacircncias Outro fato relacionado ao exerciacutecio da prudecircncia eacute que ela eacute
necessaacuteria para escolher corretamente os melhores meios para alcanccedilar os objetivos escolhidos
defronte as circunstacircncias que envolvem cada pessoa Essa eleiccedilatildeo dos meios deve ter como criteacuterio
a retidatildeo de comportamento2 Logo o homem prudente tambeacutem deve ser um indiviacuteduo que pratique
as virtudes morais
A phronecircsis eacute uma virtude de extrema importacircncia na consecuccedilatildeo do bem pois eacute ela que
auxilia o indiviacuteduo a tomar a melhor decisatildeo e por isso a agir da melhor maneira diante das
circunstacircncias Observa-se que eacute intriacutenseca a esta virtude a correta decisatildeo tomada e
operacionalizada no tempo correto Natildeo basta ao homem prudente discernir corretamente o que
fazer nas situaccedilotildees concretas Tambeacutem deve realizar a accedilatildeo preocupando-se com o kairoacutes
(kair joacutej ) ou seja o momento oportuno Assim a prudecircncia acarreta uma accedilatildeo virtuosa do
1 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo DiscursoEditorial Paulus 2008 p 72 Cf EacuteN 1143a 25-27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheimda versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de Eudoro de SouzaSeleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 112 (Col Os Pensadores)
4
indiviacuteduo na temporalidade a qual carrega consigo o contingencial o incerto onde estatildeo inseridos
os indiviacuteduos
O conceito de phronecircsis recorda que a busca pela vida feliz se encontra em bens factiacuteveis
dentro das peculiaridades humanas inseridas em um mundo imprevisiacutevel e marcado por diversas
contingecircncias Ao considerar a natureza humana com suas forccedilas e suas fraquezas a histoacuteria
mostra que eacute a virtude da prudecircncia juntamente com as virtudes morais que evitam a hybris
(u3brij) ou seja a desmesura Esse excesso ocasiona o apego exagerado agraves paixotildees o desprezo
pelos outros e que culmina em uma arrogacircncia absoluta do indiviacuteduo
O presente trabalho visa estudar a compreensatildeo da ideia de phronecircsis e sua importacircncia
dentro do sistema eacutetico aristoteacutelico caracterizado pela busca da eudaimonia por meio das virtudes
morais e intelectuais Eacute utilizada a Eacutetica a Nicocircmaco como base principal para o entendimento da
phronecircsis No entanto natildeo seratildeo desprezadas as demais obras de eacutetica como Eacutetica a Eudemo e
Magna Moralia podendo serem trazidas agrave luz como auxiacutelio a compreensatildeo da visatildeo eacutetica
aristoteacutelica
No primeiro capiacutetulo seraacute tratada a teoria geral do bem proposta na Eacutetica a Nicocircmaco a
partir da qual o estagirita realiza uma anaacutelise sobre o que significa o conceito de bem e como a ideia
de bem identifica-se com a finalidade das coisas Satildeo estudados os tipos de bens e qual o melhor
bem a ser conquistado Agrave luz desta anaacutelise eacute descrita a via mais efetiva para alcanccedilar este bem
considerado o mais perfeito de todos que eacute identificado com a eudaimonia Seratildeo abordadas duas
controvertidas questotildees acerca da eacutetica aristoteacutelica A primeira questatildeo versa sobre a possibilidade
de Aristoacuteteles ter cometido uma falaacutecia loacutegica ao expor o argumento sobre o Supremo Bem A
segunda questatildeo pergunta se o Supremo Bem deve ser entendido como um fim dominante ou um
fim inclusivo Em outros termos vemos se a eudaimonia se caracteriza somente por conter um
uacutenico bem superior a todos os demais bens ou se eacute composta por vaacuterios bens reunidos em um
conjunto Outro assunto tratado neste capiacutetulo diz respeito as caracteriacutesticas do Supremo Bem que
satildeo a autossuficiecircncia e a completude Outra anaacutelise a ser realizada eacute sobre a funccedilatildeo proacutepria dos
seres Esta funccedilatildeo consiste em cada ser possuir uma funccedilatildeo que lhe eacute particular pois eacute resultado da
finalidade para a qual fora criada Neste sentido a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada pela
racionalidade sendo necessaacuteria para a construccedilatildeo de uma vida feliz na perspectiva aristoteacutelica A
partir da identificaccedilatildeo do supremo bem com a felicidade passa-se a verificar qual eacute o tipo de vida
que conduz o homem agrave vida feliz Portanto neste primeiro capiacutetulo procuramos clarificar o
conceito de eudaimonia e saber porque eacute o elemento chave para a eacutetica aristoteacutelica visto que todos
os esforccedilos do homem virtuoso tendem para ela
5
No segundo capiacutetulo adentramos na divisatildeo das virtudes morais e intelectuais e vemos como
se relacionam frente agrave conduta humana e no processo decisoacuterio perante o mundo contingente Como
Aristoacuteteles claramente assinala que as virtudes satildeo essenciais para o alcance da eudaimonia eacute
necessaacuterio o estudo da natureza das virtudes morais e como contribuem para o desenvolvimento e a
correta aplicaccedilatildeo da phronecircsis Destacar-se-aacute uma atenccedilatildeo agraves virtudes morais uma vez que estas
dizem respeito a uma reta orientaccedilatildeo dos desejos e como esta moldagem dos anseios e dos prazeres
a serem buscados promovem um alicerce para o cultivo da virtude intelectual da prudecircncia Os
prazeres e as dores satildeo intrinsecamente ligados agrave natureza humana e agraves accedilotildees do indiviacuteduo O ser
humano busca o prazer e procura se afastar da dor Diante deste quadro eacute de grande importacircncia na
eacutetica aristoteacutelica o indiviacuteduo aprender a fundamentar sua conduta moral em prazeres provenientes
de accedilotildees nobres Pois o homem virtuoso tambeacutem sente prazer na retidatildeo moral Tambeacutem seraacute
abordada uma caracteriacutestica essencial das virtudes a mediania ou o meio-termo O conceito de
mediania eacute um pressuposto importante no contexto da eacutetica aristoteacutelica Por isso eacute necessaacuteria a
compreensatildeo do que seja ela e seu viacutenculo com as virtudes morais Estas satildeo intimamente ligadas agrave
virtude intelectual da prudecircncia Ocorre um processo simultacircneo A praacutetica das virtudes morais
prepara o exerciacutecio da prudecircncia natildeo permitindo que o indiviacuteduo cometa viacutecios por excessos ou por
insuficiecircncias e esta virtude intelectual fornece os melhores meios para alcanccedilar a accedilatildeo virtuosa
Essa relaccedilatildeo eacute descrita por Aristoacuteteles ao assinalar a figura do spoudaios (σπουδαῖος) como modelo
de homens de virtude Em suma o segundo capiacutetulo versaraacute principalmente sobre como as
virtudes morais e intelectuais satildeo imperativas para que o indiviacuteduo alcance uma vida feliz
No terceiro capiacutetulo seraacute feita a anaacutelise da proacutepria virtude da phronecircsis enquanto virtude
intelectual mas que objetiva um conhecimento praacutetico A sua funccedilatildeo primordial eacute de efetivar a
melhor decisatildeo possiacutevel a ser tomada pelo indiviacuteduo defronte agraves inuacutemeras circunstacircncias
encontradas Analisaremos a natureza da virtude da phronecircsis de que maneira esta virtude
intelectual se relaciona com as demais virtudes morais e como ela se desenvolve em vista de um
aperfeiccediloamento do indiviacuteduo Pois a phronecircsis eacute um dos pilares para a aquisiccedilatildeo e correta praacutetica
das demais virtudes morais As virtudes morais propiciam que o indiviacuteduo possa progredir na
praacutetica da virtude intelectual da prudecircncia Eacute a virtude da prudecircncia somada as virtudes morais que
conferem ldquopeso e medidardquo aos atos do indiviacuteduo e determina sobre o momento correto que estes
atos devem ser realizados para que a accedilatildeo humana possa ser considerada virtuosa Seraacute estudada a
noccedilatildeo de reta razatildeo como guia para as virtudes morais sendo a base da virtude da prudecircncia
Tambeacutem vemos qual o seu papel especiacutefico para alcanccedilar a felicidade Para uma melhor
compreensatildeo da virtude da prudecircncia e das virtudes morais analisaremos a relaccedilatildeo entre desejo
(o2recij) escolha (proairesij) e deliberaccedilatildeo (bouleusij A relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos
6
promove a accedilatildeo virtuosa Veremos como o homem virtuoso que exerce a virtude da prudecircncia em
um grau elevado a ponto de ser considerado como um verdadeiro homem prudente torna-se a
proacutepria medida da phronecircsis Por isto examinaremos o que eacute a reta razatildeo e a sua importacircncia para a
prudecircncia Tambeacutem seraacute visto o papel da experiecircncia no desenvolvimento da prudecircncia Uma vez
que este indiviacuteduo possui tanto as virtudes morais quanto agrave virtude da prudecircncia fortalecida pode
ser estimado como um homem que estaacute proacuteximo de ser plenamente feliz Analisamos as partes
integrantes da prudecircncia que satildeo as trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia)
inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn) Portanto o terceiro capiacutetulo eacute dedicado a examinar a
virtude intelectual da prudecircncia e sua importacircncia para a felicidade
Como objetivo final desta pesquisa esperamos demonstrar como a phronecircsis aristoteacutelica
simultaneamente com as virtudes morais contribui para a correta consecuccedilatildeo de uma accedilatildeo moral
virtuosa dentro da imprevisibilidade e contingecircncia do campo da praacutexis pra~~cij Pois esta virtude
proporciona a correta maneira de agir diante de uma situaccedilatildeo ao estabelecer a medida correta para
todas as accedilotildees virtuosas realizadas pelo indiviacuteduo Portanto a phronecircsis e as virtudes morais
possuem um papel central para que o indiviacuteduo alcance uma vida plena O caminho a ser percorrido
neste estudo acerca da virtude da prudecircncia se inicia na compreensatildeo dos conceitos de bem e
finalidade decorrentes da ideia de funccedilatildeo proacutepria do ser humano A anaacutelise destes trecircs conceitos
conduz ao estudo do Supremo Bem que eacute identificado como sendo a eudaimonia Uma vez que as
virtudes satildeo o meio privilegiado para atingir a felicidade torna-se imperativo o entendimento da
natureza das virtudes morais e intelectual E para compreendecirc-las eacute necessaacuterio compreender o que eacute
a mediania e a reta razatildeo Nesta linha de raciociacutenio demonstraremos a relaccedilatildeo entre as virtudes
morais e a virtude intelectual da prudecircncia e como cada uma contribui para o fortalecimento da
outra Por fim natildeo se pode perder de vista que o escopo desta pesquisa eacute a compreensatildeo da natureza
da virtude intelectual da prudecircncia e como esta virtude auxilia o ser humano na construccedilatildeo de uma
vida feliz
7
CAPIacuteTULO I
O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
A eudaimonia e sua relaccedilatildeo com os conceitos de bem finalidade e funccedilatildeo eacute o objeto de
anaacutelise deste primeiro capiacutetulo O conceito de eudaimonia tradicionalmente entendido como
felicidade vida feliz ou plenitude de vida estaacute condicionado a alguns fatores que satildeo desenvolvidos
ao longo do livro I da Eacutetica a Nicocircmaco Deste modo embora sejam feitas referecircncias aos demais
livros que compotildeem o mencionado tratado de Aristoacuteteles visto que estatildeo em parte interligados
entre si o livro I se constitui como o alicerce principal de estudo deste capiacutetulo
O conceito de bem eacute basilar para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica cunhada por Aristoacuteteles Sua
importacircncia reside no fato do conceito de bem ser identificado com o conceito de fim ou de
finalidade dos seres O conceito de finalidade identifica-se com a ideia de funccedilatildeo proacutepria dos seres
O cumprimento desta funccedilatildeo permite que algo ou algueacutem possa alcanccedilar sua finalidade ou seja
realizar o fim para o qual fora criado
Haacute uma distinccedilatildeo entre os bens existentes natildeo sendo todos equivalentes na valoraccedilatildeo que
lhes eacute conferida o que causa uma diferenciaccedilatildeo no seu grau de importacircncia Esta variedade de bens
acarreta uma variedade de fins sendo os mesmos categorizados como fins definitivos e fins
intermediaacuterios A argumentaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre a existecircncia de uma variedade de fins faz o
filoacutesofo de Estagira afastar-se da tese do seu mestre Platatildeo A tese deste uacuteltimo preconiza a
existecircncia de um uacutenico fim que eacute o Bem em si ao qual participam todas as coisas particulares Para
o Estagirita existem vaacuterios tipos de bens que visam o bem uacuteltimo que eacute a felicidade Diante desta
diferenccedila de concepccedilotildees acerca dos fins veremos as criacuteticas de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave filosofia
platocircnica
A vida feliz eacute o fim uacuteltimo a ser buscado Por isso neste capiacutetulo eacute analisada a natureza da
felicidade e suas propriedades Examinamos sobre quais fundamentos Aristoacuteteles forja sua ideia de
felicidade e qual a causa a considerar como o sumo bem Deste modo estudamos qual eacute o tipo de
vida que melhor corresponde agrave ideia de felicidade na visatildeo aristoteacutelica
8
11 O Conceito de Bem
Aristoacuteteles inaugura o seu tratado Eacutetica a Nicocircmaco com a afirmaccedilatildeo de que todas as
atividades humanas nas quais estatildeo inclusas a arte a inquiriccedilatildeo e as escolhas deliberadas visam um
bem Devido a este fato todas as coisas possuem a capacidade para alcanccedilar o seu proacuteprio bem
Como existem diferentes espeacutecies de artes ciecircncias e accedilotildees cada uma possui um tipo de bem
especiacutefico que eacute caracteriacutestico a partir daquela determinada atividade Deste modo as atividades
possuem finalidades distintas umas das outras como afirma Aristoacuteteles
Admite-se geralmente que toda arte (texnh) e toda investigaccedilatildeo (meqodoj) assimcomo toda accedilatildeo pra~~cije toda escolha (proairesij) tecircm em mira um bemqualquer e por isso foi dito com muito acerto que o bem (ta0gaqon) eacute aquilo aque todas as coisas tendem Mas observa-se entre os fins uma certa diferenccedilaalguns satildeo atividades outros satildeo produtos distintos das atividades que osproduzem Onde existem fins distintos das accedilotildees satildeo eles por natureza maisexcelentes do que estas 3
Aristoacuteteles continua sua anaacutelise acerca do bem percorrendo um caminho de reflexatildeo que se
propotildee em primeiro lugar apreender o conceito de bem e em seguida determinar qual eacute o bem
mais proveitoso e por fim determinar o mais importante a ser buscado pelo ser humano Para
cumprir com o objetivo de sua investigaccedilatildeo o filoacutesofo de Estagira procura analisar que tipo de bem
pode ser considerado como o mais essencial e quais os tipos de vida existentes podem ser
candidatos a serem representantes desta ideia de bem essencial ou o sumo bem Do mesmo modo
estabelece uma reflexatildeo sobre o ponto de vista platocircnico de Bem e como essa concepccedilatildeo estaacute
equivocada natildeo sendo possiacutevel adotaacute-la para alcanccedilar a eudaimonia Tambeacutem procura utilizar o
exemplo das diversas ciecircncias para averiguar como pode ser apreendido este sumo bem Por fim
Aristoacuteteles traccedila quais caracteriacutesticas deve possuir este bem para que possa ser estimado como o
mais essencial ao ser humano
Qual eacute o bem supremo E que espeacutecie de vida deve ser vivida para que o atinjamos
Embora de imediato no Livro I do tratado Eacutetica a Nicocircmaco4 haja uma insinuaccedilatildeo de que a
eudaimonia ou seja a felicidade possa ser este bem supremo Aristoacuteteles natildeo concede de modo
faacutecil o posto de bem supremo agrave eudaimonia Ao contraacuterio procura fundamentar no decorrer dos
capiacutetulos do Livro I porque a felicidade deve ser considerada como o bem supremo E discorre
3 EacuteN I 1094a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 Para fins de abreviaccedilatildeo do tiacutetulo da obra Eacuteticaa Nicocircmaco doravante seraacute utilizada a descriccedilatildeo EacuteN nas notas de rodapeacute4 Cf EacuteN I 1095a 15-20 Ibidem p 11
9
sobre quais satildeo as caracteriacutesticas que uma vida deve possuir para que seja considerada uma vida de
plenitude
Eacute importante perceber que no contexto da Eacutetica a Nicocircmaco a ideia de bem (to a0gaqon)
equivale agrave finalidade ao teacutelos (telojque cada coisa possui em decorrecircncia da sua natureza Cada
arte (texnh) investigaccedilatildeo (meqodoj) ou accedilatildeo pra~~cij possui seu teacutelos especiacutefico Aristoacuteteles cita
que a sauacutede eacute a finalidade da medicina o navio eacute a finalidade da construccedilatildeo naval a vitoacuteria eacute a
finalidade da estrateacutegia a riqueza eacute a finalidade da economia5 Logo isso significa que cada coisa
tem uma finalidade e os fins satildeo fatores determinantes tanto para a compreensatildeo da natureza dos
seres quanto para a das accedilotildees humanas
Assim em que consiste o bem aristoteacutelico Aristoacuteteles defende a tese de que natildeo existe um
uacutenico bem em si mesmo que todas as coisas tendam para este uacutenico Bem Conforme visto
anteriormente seu argumento eacute radicalmente oposto agrave ideia concebida por Platatildeo Para Aristoacuteteles
os bens estatildeo conectados intimamente agrave imensa variedade de seres existentes pois constituem suas
proacuteprias finalidades Cada ser tende para seu fim para seu teacutelos (teloj) especiacutefico O ser humano
tambeacutem possui uma finalidade proacutepria Logo o Supremo Bem deve ser encontrado tendo em vista o
que eacute proacuteprio do ser humano
O Supremo Bem serve como paracircmetro para a vida humana e consequentemente para as
accedilotildees do agente Por isso deve ser factiacutevel de ser alcanccedilado pela accedilatildeo humana E para se constituir
como paracircmetro para a vida humana deve ser absoluto e autossuficiente porque natildeo eacute possiacutevel ser
paracircmetro se natildeo possui estabilidade Eacute neste momento da Eacutetica a Nicocircmaco que Aristoacuteteles
conclui que o Supremo Bem eacute a proacutepria eudaimonia A felicidade eacute o uacutenico bem que possui as
propriedades descritas de ser absoluta e de ser autossuficiente aleacutem de conferir sentido agraves
atividades realizadas ou seja eacute a finalidade uacuteltima da accedilatildeo de cada pessoa6
Ora esse eacute o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade (eu0daimonia)Eacute ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa ao passoque agrave honra ao prazer agrave razatildeo e a todas as virtudes noacutes de fato escolhemos por simesmos (pois ainda que nada resultasse daiacute continuariacuteamos a escolher cada umdeles) mas tambeacutem os escolhemos no interesse da felicidade pensando que aposse deles nos tornaraacute felizes A felicidade todavia ningueacutem a escolhe tendo emvista algum destes nem em geral qualquer coisa que natildeo seja ela proacutepria [] Afelicidade eacute portanto algo absoluto (teleion) e auto-suficiente (au1tarkej) sendotambeacutem a finalidade da accedilatildeo (praktw~~n ou]sa teloj)7
5 Cf EacuteN I 1094a 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 6 A eudaimonia tambeacutem se constitui como criteacuterio para todas as accedilotildees da sociedade poliacutetica A felicidade na poacutelis eacute umdos temas tratados na Poliacutetica Por natildeo ser o escopo do presente trabalho natildeo seraacute visto de forma minuciosa pois aEacutetica a Nicocircmaco natildeo adentra nesta questatildeo de modo direto e aprofundado Mas eacute interessante perceber a iacutentimaconexatildeo entre as accedilotildees de cada agente enquanto cidadatildeo e a forma de conviacutevio em uma poacutelis que eacute analisada porAristoacuteteles no tratado da Poliacutetica7 EacuteN I 1097b 1-7 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15
10
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles continua a exposiccedilatildeo de sua ideia acerca dos bens de cada
arte mas cita que as artes com as caracteriacutesticas intriacutensecas a cada uma delas se subordinam a uma
finalidade uacutenica anaacuteloga agrave fabricaccedilatildeo de utensiacutelios diversos como reacutedeas e selas para a montaria
em cavalos estaacute subordinada agrave arte da equitaccedilatildeo Esta situaccedilatildeo tambeacutem ocorre com as atividades
militares em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia de guerra e assim ocorre com diversas artes que se subordinam a
outras artes Neste caso de subordinaccedilatildeo das artes em relaccedilatildeo a uma determinada arte mais
abrangente conforme os exemplos da equitaccedilatildeo e da estrateacutegia Aristoacuteteles avalia que os fins destas
artes mais abrangentes satildeo mais importantes que os fins das artes subordinadas Isso ocorre porque
os fins das artes principais satildeo os fins almejados enquanto os fins das artes subordinadas tornam-se
apenas meios para a consecuccedilatildeo dos fins principais8
O que estaacute exposto nesta primeira parte do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco eacute a divisatildeo entre
fins (bens) primaacuterios e fins secundaacuterios9 haja vista a multiplicidade de fins em decorrecircncia da
variedade de seres e de accedilotildees A existecircncia desta hierarquia de fins culmina em um fim uacuteltimo que eacute
a eudaimonia Aristoacuteteles assinala que eacute necessaacuterio haver um fim derradeiro porque sem este fim a
sequecircncia de fins seria infinita o que tornaria inuacutetil a busca pela felicidade10
Na Eacutetica a Eudemo Aristoacuteteles descreve em que consiste esta multiplicidade dos bens11 O ser
(to o1n pode ser apreendido sob diversas formas conforme as Categorias12 a substacircncia (ou0sia13
a qualidade (poion a quantidade (poson) o tempo (pote) espaccedilo (pouetc Tendo em vista que
natildeo existe uma ciecircncia uacutenica de todos os seres mas vaacuterias ciecircncias que desvendam os seres dos
entes segue-se que natildeo pode existir um bem uacutenico imediato em relaccedilatildeo a todos dos seres Deste
modo haacute vaacuterios bens tanto quanto existem vaacuterios seres Aristoacuteteles ainda exemplifica os vaacuterios
bens existentes em algumas categorias traccedilando um paralelo entre estas categorias e determinados
8 Cf EacuteN I 1094a 15 Ibidem p 99 No que tange a nomenclatura dos bens (fins) de cada atividade haacute outros termos que podem ser usados para se referira estes fins tais como fins principais fins intermediaacuterios fins preciacutepuos fins subordinados etc Tambeacutem eacute possiacutevelsubstituir o termo ldquobemrdquo ou ldquofimrdquo por ldquofinalidaderdquo Eventualmente todos estes termos seratildeo usados no decorrer dotexto como sinocircnimos A questatildeo essencial eacute a compreensatildeo de que haacute uma relaccedilatildeo de hierarquia entre os fins de cadaarte accedilatildeo ou ciecircncia ou seja dos fins em geral em vistas a um fim mais amplo 10 Cf EacuteN I 1094a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 911 Cf EacuteE I 1217b 27 Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 2015 p 5912 A lista completa de dez categorias eacute descrita por Aristoacuteteles em Categorias 41b 25 2a 1-10 Cf ARISTOacuteTELESOacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas(Seacuterie Claacutessicos Edipro) Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edson Bini Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev 2010 p41-42 13 O termo ousia eacute melhor entendido a partir dos conceitos em latim de essentia substantia Haacute uma diferenccedila entre otermo ousia no qual adota-se a palavra ldquoessecircnciardquo de tograve tiacute esti ( que significa o ldquoser de uma coisarsquo comoldquoessencialidaderdquo ou ldquosubstacircnciardquo Entendemos que os dois termos podem ser utilizados como sinocircnimos para o presenteestudo visto que natildeo eacute o objetivo deste trabalho proceder a uma anaacutelise da filosofia primeira cunhada por AristoacutetelesTambeacutem entendemos que os dois termos conseguem expressar de modo geral a ideia da pergunta ldquoo que eacute istordquoreferindo-se agravequilo que necessariamente eacute e faz um ente ser o que eacute de fato Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles TradRoberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 147
11
predicados relacionados agrave eacutetica Por exemplo o bem eacute predicado de Deus e do intelecto na categoria
de substacircncia na categoria da qualidade eacute o justo na categoria da quantidade eacute a moderaccedilatildeo na
categoria do tempo eacute o momento oportuno14
Ao postular a tese da multiplicidade de bens Aristoacuteteles estabelece uma posiccedilatildeo diferente da
tese defendida por seu mestre e antecessor Platatildeo o qual assevera a existecircncia de uma uacutenica Forma
de Bem Para Platatildeo o Bem em si possui algumas propriedades que o qualificam como o bem
fundamental o Bem pelo qual satildeo subordinados e participam todas as coisas boas As coisas
participam desta Forma de Bem por derivaccedilatildeo pois Esta fornece os atributos necessaacuterios para a
existecircncia e constituiccedilatildeo destes bens derivados15 Esta Forma de Bem eacute imutaacutevel e eterna sua
essecircncia permanece a mesma o que natildeo permite sua alteraccedilatildeo com o tempo Aristoacuteteles assevera
que natildeo eacute possiacutevel existir um uacutenico Bem em si um determinado tipo de bem que seja ldquogeralrdquo para
todos e dissociados dos seres Antes o estagirita afirma que cada ser possui e consequentemente
deseja o bem que lhe eacute especiacutefico pertencente a sua particularidade conforme descrito na Eacutetica a
Eudemo ldquoAdemais a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas existentes desejam um bem uacutenico eacute falsa
cada coisa anseia pelo bem que lhe eacute particular o olho a visatildeo o corpo a sauacutede e analogamente
outros bens []rdquo16 Deste modo a diferenccedila fundamental entre a visatildeo do bem aristoteacutelico e do Bem
platocircnico eacute que Aristoacuteteles advoga a ideia que existe um bem uacuteltimo para qual se dirigem os seres
Enquanto na perspectiva de Platatildeo haacute uma uacutenica Forma de Bem que eacute causa dos outros bens os
quais apenas satildeo bons por participaccedilatildeo e semelhanccedila agravequela Forma17
Na Eacutetica a Nicocircmaco tambeacutem se encontra a criacutetica de Aristoacuteteles agrave doutrina platocircnica da
Forma do Bem e a descriccedilatildeo da tese da pluralidade de bens18 Nesta parte o Estagirita postula que
natildeo pode existir uma uacutenica Forma de Bem pois a proacutepria palavra ldquobemrdquo eacute utilizada para se referir a
diversas categorias A substacircncia significa a proacutepria essecircncia daquilo que eacute o ser da coisa
naturalmente eacute anterior agrave categoria de relaccedilatildeo Sendo assim uma uacutenica Forma natildeo pode abranger
todos estes tipos de bens O termo ldquobemrdquo pode ter diversos significados referentes agrave variedade de
sentidos que comporta o ser Ou seja os bens satildeo pertinentes ao nuacutemero de seres existentes E como
os bens satildeo caracterizados conforme as categorias natildeo eacute possiacutevel que o bem possa ser uniacutevoco e
inteiramente presente em um uacutenico ser Por conseguinte o Bem platocircnico natildeo poderia ser predicado
em cada uma das categorias Como estaacute descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
14 Cf EacuteE I 1217b 16-34 Eacutetica a Eudemo Op cit p 5915 Cf EacuteE I 1217b 1-15 Ibidem p 5716 EacuteE I 1217b 30-33 Ibidem p 5917 Cf EacuteE I 1217b 5-15 Ibidem p 5818 Cf EacuteN1096a 16-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 13
12
Aleacutem disso como a palavra ldquobemrdquo (ta0gaqon) tem tantos sentidos quantos ldquoserrdquo(o1nti) (visto que eacute predicada tanto na categoria de substacircncia como na de Deus(qeoj) e da razatildeo (nou=j) quanto na de qualidade (poiw~~) isto eacute das virtudes(a0retai) na de quantidade (ποσῷ) isto eacute daquilo que eacute moderado (metrion) nade relaccedilatildeo isto eacute do uacutetil (xrhimon) na de tempo (χρόνῳ) isto eacute da oportunidadeapropriada (kairoj) na de espaccedilo (τόπῳ) isto eacute do lugar apropriado etc) estaacuteclaro que o bem natildeo pode ser algo uacutenico e universalmente (kaqolou) presente poisse assim fosse natildeo poderia ser predicado em todas as categorias (kathgoriaj)mas somente numa19
Por este motivo Aristoacuteteles tambeacutem natildeo concorda com que o ldquomelhor bem de todosrdquo possa
ser entendido como um bem uacutenico pois isto seria irrealizaacutevel Para demonstrar a impossibilidade da
existecircncia de um Bem em si para todos os seres o Estagirita utiliza o caso das ciecircncias pois se
houvesse uma uacutenica Forma de Bem deveria existir uma uacutenica ciecircncia de todos os bens A realidade
prova que isso natildeo existe tendo em vista a variedade de ciecircncias que estuda cada tipo de ser20 Uma
ciecircncia especiacutefica natildeo procura um objeto em geral mas um objeto especiacutefico ligado ao seu estudo
conforme exemplifica Aristoacuteteles A medicina busca alcanccedilar a sauacutede natildeo visa alcanccedilar um bem
em geral que sirva como modelo para qualquer outra coisa 21
Para Aristoacuteteles o Supremo Bem tem de ser alcanccedilaacutevel pela accedilatildeo humana A vida feliz estaacute
no acircmbito da praacutexis De modo geral a ideia de praacutexis pode se referir a uma accedilatildeo ligada agrave razatildeo
vinculada a uma conduta a um modo de proceder da pessoa Por isso fala-se em ldquoagenterdquo desta
accedilatildeo pois o agente eacute a pessoa que realiza a accedilatildeo de maneira racional jaacute que um animal tido como
irracional natildeo pode agir no sentido aqui proposto
De tal maneira o Estagirita desfavorece o conceito de um fim que esteja longe da accedilatildeo do
indiviacuteduo que assevera que mesmo que houvesse uma uacutenica Forma de Bem conforme advogava
seu mestre antecessor esta ideia uacutenica de bem de nada serviria para a eacutetica O fim buscado tem de
estar necessariamente ligado agrave accedilatildeo humana Aristoacuteteles eacute expressivo ao afirmar que cada accedilatildeo
cada propoacutesito eacute realizado em funccedilatildeo da finalidade daquela atividade Por isso caso haja uma
finalidade geral (um ldquofim maiorrdquo) a ser buscado pelo agente este bem eacute executaacutevel pela accedilatildeo E se
existir mais de um bem eles devem ser alcanccedilados por meio das accedilotildees humanas22 Portanto sendo
ligado agrave accedilatildeo humana este soberano bem natildeo poderia ser algo inexequiacutevel para os seres humanos
Conforme Aristoacuteteles nos mostra na Eacutetica a Eudemo
19 EacuteN I1096a 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1220 Cf EacuteN I1096a 30 Ibidem p 1321 Cf EacuteE I1218b 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Eudemo Op cit p 61-6222 Cf EacuteN I1097a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 14
13
Fica evidente portanto que o bem em si objeto de nossa busca natildeo eacute a Forma dobem como tambeacutem natildeo eacute o bem como universal (posto que a primeira eacute imutaacutevel einexequiacutevel enquanto o segundo embora mutaacutevel eacute inexequiacutevel) Entretanto oobjeto visado como fim eacute o melhor aleacutem de ser a causa daqueles que lhe estatildeosubordinados e o primeiro de todos os bens esse bem consequentemente seria obem em si ou seja o fim exequiacutevel humano Trata-se do bem que se enquadranaquele que eacute soberana entre todas as ciecircncias [praacuteticas] nomeadamente a poliacuteticaassociada agrave economia e agrave sabedoria praacutetica 23
O Supremo Bem tem de estar ao alcance da realizaccedilatildeo humana Aristoacuteteles ao traccedilar a
criacutetica agrave ideia platocircnica de uma Forma de Bem alega que mesmo que existisse essa forma ideal de
bem ela em nada auxiliaria as atividades humanas Primeiro ela seria inatingiacutevel Segundo ela natildeo
contribuiria em nada para o exerciacutecio de qualquer ofiacutecio Eis o questionamento de Aristoacuteteles acerca
da Forma do Bem em que conhecer a Forma de Bem faria um meacutedico exercer melhor a medicina e
curar seus pacientes Ou em que este conhecimento da Forma de Bem tornaria excelente um
general em estrateacutegias de batalhas levando-o agrave vitoacuteria24 Mesmo que houvesse algueacutem que
argumente que o conhecimento da Forma do Bem auxilie o agente conseguir os bens que podem ser
alcanccedilados pela accedilatildeo pois serve como um paracircmetro o estagirita afirma que este argumento natildeo
procede visto que todas as ciecircncias visam bens especiacuteficos e natildeo um bem geral
Na busca para desvendar em que consiste este ldquobem maiorrdquo em uma perspectiva diferente da
concepccedilatildeo platocircnica Aristoacuteteles cita duas propriedades A primeira eacute que este tipo de bem deve ser
absoluto completo acabado (τέλειον25 O conceito de completo significa que este bem natildeo eacute
buscado como intermediaacuterio para alcanccedilar outro bem O ldquobem maiorrdquo eacute procurado como um fim em
si mesmo natildeo sendo condiccedilatildeo para qualquer outro tipo de fim Ou seja este bem tem de ser
incondicional e final e natildeo pode ser um bem intermediaacuterio A segunda propriedade deste bem eacute a de
ser autossuficiente A autossuficiecircncia (αὐτάρκειαdo ldquobem maiorrdquo consiste em prover somente
por si mesmo uma vida agradaacutevel e que natildeo falte nada26 Mas esta autossuficiecircncia natildeo pode ser
entendida sob um prisma individual como se o indiviacuteduo natildeo dependesse de nada ou de ningueacutem
Ao contraacuterio a autarkeia deve ser compreendida a partir de um prisma coletivo Esta perspectiva
23 EacuteE I 1218b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 6224 Cf EacuteN I 1097a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1425 Na Metafiacutesica 1021b 30 o termo teacuteleion eacute descrito do seguinte modo ldquoPortanto as coisas como se dizem perfeitaspor si em todos esses sentidos algumas porque relativamente a seu bem natildeo carecem de nada ou natildeo satildeo superadospor outras e natildeo tecircm nenhuma de suas partes fora de si outras em geral porque natildeo satildeo superadas por outra e natildeo tecircmnenhuma parte fora de si no acircmbito do seu gecircnerordquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego comtraduccedilatildeo e comentaacuterios de Giovanni Reale) Vol II Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ed 2005p 24126 Cf EacuteN I 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 15
14
comunitaacuteria eacute perceptiacutevel quando Aristoacuteteles remete ao fato que deve ser observada a suficiecircncia
em funccedilatildeo tambeacutem dos pais esposa amigos e cidadatildeos da poacutelis27
Ao considerarmos a relaccedilatildeo entre fins preciacutepuos que satildeo buscados em si mesmos e fins
subordinados de caraacuteter instrumental que servem como fins para alcanccedilar um fim maior essa
relaccedilatildeo de hierarquia traz alguns questionamentos a serem considerados De modo sucinto
expomos estes questionamentos uma vez que estatildeo inseridas na histoacuteria dos estudos acerca da eacutetica
aristoteacutelica A primeira questatildeo versa acerca da possibilidade de Aristoacuteteles ter cometido uma
falaacutecia chamada de ldquomenino e meninardquo A segunda questatildeo diz respeito ao bem supremo ser
compreendido como um fim dominante ou um fim inclusivo
12 Uma possiacutevel falaacutecia aristoteacutelica
A ideia de um fim uacuteltimo a ser alcanccedilado por meio de fins instrumentais eacute posta por
Aristoacuteteles no iniacutecio Eacutetica a Nicocircmaco A forma que eacute descrita esta relaccedilatildeo no tratado aristoteacutelico
entre o Supremo Bem que eacute buscado por si proacuteprio e demais fins que satildeo subordinados a ele gerou
o debate apresentado neste toacutepico Sobre o tema se Aristoacuteteles cometeu ou natildeo a falaacutecia
argumentativa sobre o argumento do fim expomos as perspectivas de Peter Thomas Geach e Peter
Vranas O primeiro considera que o estagirita incorreu em uma falaacutecia o segundo defende a ideia
que natildeo foi cometida nenhuma falaacutecia no argumento aristoteacutelico Neste sentido segue o trecho a ser
comentado
Se pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo etudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisadesejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito einuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem ou antes osumo bem28
27 Cf EacuteN I 1097b 10-13 Ibidem p 15 Entendemos tambeacutem que a ideia de autossuficiecircncia natildeo pode sercompreendida somente de modo individual tendo em vista o fato que o conceito de autarkeia tambeacutem eacute fundamentalpara a concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo poliacutetica da Cidade-estado grega Uma vez que a poacutelis eacute construiacuteda com a finalidade deser autocircnoma com todos os meios de prover a si proacutepria e propiciar o melhor ambiente para que os cidadatildeos alcancemuma vida feliz Conforme Aristoacuteteles aponta na obra Poliacutetica I 1252b 30-1253a 1-5 a vida feliz eacute a finalidade naturalda comunidade poliacutetica e todo ser estaacute plenamente integrado na natureza quando atinge seu pleno desenvolvimento ouseja estaacute completo com perfeiccedilatildeo Deste modo uma vez que o ser humano possui uma natureza social ela somente serealiza plenamente no contexto da poacutelis Outro fator que consideramos que a autossuficiecircncia eacute compreendida dentro deuma visatildeo coletiva refere-se agrave virtude da justiccedila De acordo com o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco V 1130a 1-5 elasomente pode ser exercida dentro de uma sociedade pois visa o bem alheio Eacute uma virtude que natildeo pode ser praticadade modo solitaacuterio pelo agente mas deve realizaacute-la em funccedilatildeo dos outros Disto decorre que a vida feliz de um indiviacuteduotambeacutem estaacute em parte relacionada agrave felicidade das pessoas que o cercam de modo mais proacuteximo e da comunidade emgeral 28 EacuteN I 1094a 18-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 9
15
Assim sendo abordemos a questatildeo da dita falaacutecia aristoteacutelica Segundo o comentador
Geach29 seria um erro de loacutegica formal Eacute perceptiacutevel que existe uma diferenccedila entre as expressotildees
(i)Todo menino ama alguma meninardquo e (ii) ldquoHaacute alguma menina que todo menino amardquo30 Se
tomarmos a expressatildeo ldquoTodo menino ama alguma meninardquo natildeo eacute possiacutevel inferir que ldquoHaacute alguma
menina que todo menino amardquo sem fazer uma falaacutecia Ou seja (i) natildeo implica em (ii)
Agrave luz do exemplo de Geach o deslize argumentativo manifesta-se no fato de afirmar que
Todo menino ama alguma meninardquo natildeo implica necessariamente que exista alguma menina ou
seja uma uacutenica menina que todo menino ama Em termos teacutecnicos da loacutegica moderna a falaacutecia
cometida por Aristoacuteteles eacute denominada como uma falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores31
Na falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores eacute realizada uma passagem interdita entre um
conjunto de relaccedilotildees dispersas32 de fins para um conjunto de relaccedilotildees convergentes33 para um uacutenico
fim Isso se traduz da seguinte forma Se imaginarmos um conjunto de meninas e um outro conjunto
de meninos com o mesmo nuacutemero de elementos em cada conjunto Uma primeira possibilidade de
interaccedilatildeo entre os elementos de cada grupo seria cada rapaz amar uma garota que nenhum outro
garoto do grupo dos meninos ame tambeacutem Neste caso os dois conjuntos estatildeo dispersos natildeo haacute
uma convergecircncia entre os elementos dos respectivos grupos devido ao fato que um garoto
somente ama uma garota Na segunda possibilidade todos os garotos amam uma exclusiva e mesma
garota entatildeo existe uma convergecircncia total de todos os elementos do conjunto dos meninos
direcionados para uma uacutenica garota do grupo das meninas34 Deste modo essa inversatildeo de
quantificadores aplicada ao argumento aristoteacutelico significa afirmar que podem haver diferentes fins
a serem buscados tendo em vista a variedade de coisas e desejos humanos Eacute o caso mesmo que
natildeo desejemos uma seacuterie infinita de coisas a serem buscadas com vistas em outra pois este fato
acarreta uma seacuterie infinita de desejos Isto natildeo implica necessariamente que exista um uacutenico e
melhor fim que desejemos e todos os outros fins sejam buscados em funccedilatildeo dele
Eacute preciso observar no caso em questatildeo que Geach natildeo analisa especificamente agrave Eacutetica a
Nicocircmaco e nem o argumento aristoteacutelico por si mesmo Ele apenas o utiliza como exemplo
29 Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972 p 1-1330 No dizer de Geach ldquoAnybody can see that from lsquoEvery boy loves some girlrsquo we cannot infer lsquoThere is some girl thatevery boy lovesrsquo that from lsquoIt is obligatory that somebody should gorsquo it does not follow that lsquoThere is somebody who itis obligatory should gorsquo[] rdquo Ibidem p 131ldquoOperator-shift fallacy ldquoou ldquoquantifier-shift fallacyrdquo Cf Ibidem p 132 A dispersatildeo significa que cada elemento pertencente a um grupo x busca os outros elementos do grupo y Natildeo existea busca dos elementos do grupo x para um uacutenico elemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees dispersassignificam que todos os garotos buscam todas as garotas Ou seja cada garoto procura conquistar a sua garota Natildeo haacuteuma busca do grupo dos garotos para alcanccedilar uma uacutenica e mesma garota 33 A convergecircncia significa a orientaccedilatildeo para um mesmo objetivo Todos os elementos do grupo x buscam um uacutenicoelemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees convergentes significam que todos os garotos convergem ouseja todos se orientam para buscar uma uacutenica e mesma garota34 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia aristoteacutelica Tese deDoutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas p 78
16
juntamente com trechos de escritos de outros filoacutesofos famosos35 para demonstrar os requisitos
necessaacuterios de uma teoria da quantificaccedilatildeo na loacutegica moderna E tambeacutem utiliza estes escritos para
mostrar como pode ser uma ocorrecircncia comum cometer este tipo de falaacutecia de inversatildeo de
quantificadores36
A questatildeo da validade loacutegica expressa no referido trecho da Eacutetica a Nicocircmaco citado acima
natildeo eacute o escopo principal deste trabalho Mas eacute interessante apontar de maneira miacutenima um
possiacutevel caminho de superaccedilatildeo que este impasse trouxe agrave leitura do argumento aristoteacutelico haja
vista ser um dos argumentos centrais acerca da eudaimonia pois ela eacute o fim que natildeo se busca leva a
nenhum outro Para tanto seguimos dois enfoques descritos a seguir
Na primeira abordagem consideremos somente o aspecto da validade formal do argumento
aristoteacutelico Um possiacutevel caminho eacute realizar uma interpretaccedilatildeo do argumento aristoteacutelico que una as
proposiccedilotildees (a) ldquoSe pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo
e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim [] rdquo e (b) ldquo[]se eacute verdade que nem toda coisa
desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo
seria o nosso desejar) []rdquo como duas premissas que fundamentam a conclusatildeo (c) ldquo[] tal fim
seraacute o bem ou antes o sumo bemrdquo Isso eacute possiacutevel devido a utilizaccedilatildeo do termo ldquoerdquo (kai)37 no texto
aristoteacutelico que introduz a proposiccedilatildeo (a) e faz a ligaccedilatildeo com a proposiccedilatildeo (b) Logo haacute uma
indicaccedilatildeo hipoteacutetica da existecircncia de um fim desejado por si um fim uacuteltimo (fim universal) que
subordina os demais fins que satildeo instrumentais
Esta interpretaccedilatildeo literal do argumento aristoteacutelico eacute defendida por Peter Vranas38 que
retoma a mesma linha de raciociacutenio anteriormente defendida por Michael Wendin39 segundo a qual
Aristoacuteteles natildeo cometeu uma falaacutecia E natildeo incorreu em uma falaacutecia porque as duas proposiccedilotildees (a)
e (b) devem ser entendidas como uma conjunccedilatildeo No entender de Vranas caso consideremos que
existam dois fins uacuteltimos implicados se (a) eacute um fim universal e (b) eacute um fim natildeo-instrumental
procede que existe um uacutenico fim natildeo-instrumental40 que eacute equivalente a um fim uacutenico universal41
Logo esta conjunccedilatildeo implica que o fim proposto por Aristoacuteteles eacute um fim de caraacuteter natildeo-
instrumental o que significa que eacute um fim uacutenico universal42
35 Geach utiliza trechos de obras de Platatildeo Berkeley Spinoza Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Op cit p 2-536 Ibidem p 237 A junccedilatildeo das duas proposiccedilotildees eacute admissiacutevel tendo em vista o uso do termo καί que eacute o equivalente na liacutenguaportuguesa agrave conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo38 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo Phronesis Vol 50Nordm 2 2005 p 116-128 39 Cf WEDIN M ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981 p243-262 40 Fim natildeo-instrumental significa que este natildeo eacute perseguido por causa de nenhum outro fim41 Fim uacutenico universal equivale ao fim uacuteltimo42 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best goodrdquo Op cit p 118
17
Nesta linha de raciociacutenio caso as proposiccedilotildees (a) e (b) sejam verdadeiras sendo (a) um fim
uacutenico universal todos os outros fins tornam-se intermediaacuterios (fins ldquoxrdquo) instrumentos para alcanccedilar
(a) Inclusive o fim (b) assume nesta hipoacutetese um caraacuteter instrumental Mas a situaccedilatildeo pode ser
invertida pois caso (b) seja o fim a ser buscado torna-se o fim uacutenico universal com os fins
intermediaacuterios (fins ldquoyrdquo) como instrumentos para alcanccedilar (b) Neste caso (a) passa a ser
instrumental Portanto mesmo que um indiviacuteduo siga qualquer um dos fins (a) ou (b) como estatildeo
mutuamente relacionados entre si de todos os modos sua busca recai sobre o fim uacutenico universal43
A interpretaccedilatildeo de Vranas eacute interessante do ponto de vista da loacutegica formal e tenta inocentar
Aristoacuteteles de ter cometido a mencionada falaacutecia Este esforccedilo possui o seu meacuterito tendo em vista
ser uma denuacutencia que tem durado ao longo do tempo e defendida por diversos estudiosos da obra do
Estagirita Ainda assim haacute em nosso entender uma fragilidade no argumento exposto pelo citado
comentador A interpretaccedilatildeo literal estaacute baseada em uma leitura que aparentemente procura forccedilar
um limite de explicaccedilatildeo que natildeo encontra respaldo no texto aristoteacutelico Ao considerar o tratado da
Eacutetica a Nicocircmaco como um todo natildeo nos parece que haja dois fins uacuteltimos um de caraacuteter universal
e outro natildeo-instrumental de que possuam relaccedilotildees reciacuteprocas entre si Este fim universal e uacutenico eacute
asseverado pelo Estagirita quando afirma a existecircncia de apenas um fim absoluto e incondicional
Se porventura existir mais de um fim o mais absoluto de todos torna-se o objetivo a ser alcanccedilado
Este fim absoluto e incondicional eacute a proacutepria eudaimonia visto que todos os outros fins
intermediaacuterios satildeo buscados como meios para alcanccedilar uma vida feliz44 Assim sendo o texto de
Aristoacuteteles leva ao entendimento que exista somente um fim que eacute universal e uacutenico e os demais
fins possuem um caraacuteter instrumental de subordinaccedilatildeo a este fim universal
Em relaccedilatildeo ao argumento de Geach no qual ele afirma que natildeo eacute possiacutevel inferir a partir da
proposiccedilatildeo Todo menino ama alguma meninardquo que exista ldquoHaacute alguma menina que todo menino
amardquo O problema eacute que esta afirmaccedilatildeo natildeo considera a questatildeo da hierarquia de fins mencionada
no texto aristoteacutelico Ao desconsiderar esta hierarquia de fins haacute a eliminaccedilatildeo de qualquer
possibilidade de convergecircncia entre o Sumo Bem e outros fins A hierarquia entre fins subordinados
e os fins principais das variadas artes ciecircncias e atividades eacute descrita por Aristoacuteteles ao enumerar
alguns exemplos o fim da arte meacutedica eacute a sauacutede o fim da construccedilatildeo naval eacute a fabricaccedilatildeo do navio
o fim da estrateacutegia eacute a vitoacuteria o fim da economia eacute a riqueza o fim da selaria eacute a equitaccedilatildeo Os fins
uacuteltimos de cada arte satildeo preferiacuteveis por serem mais importantes por isso devem ser buscados por
meio dos fins subordinados45 O texto aristoteacutelico eacute claro ao afirmar a existecircncia de uma hierarquia
de fins em si que se encaminha agravequele fim uacuteltimo que eacute perseguido por todo ser humano em sua
43 Ibid p 11944 Cf EacuteN 1097a 25-30 a 1097b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1545 Cf EacuteN 1094a 7-15 Ibidem p 9
18
vida Eacute um raciociacutenio de cunho arquitetocircnico o qual mostra que os vaacuterios fins subordinados satildeo
etapas para alcanccedilar o fim uacuteltimo de determinada arte Deste modo como o objeto da eacutetica
aristoteacutelica eacute a felicidade humana Aristoacuteteles descreve a ldquoarquiteturardquo de construccedilatildeo de uma vida
feliz na qual cada fim eacute buscado com vistas a alcanccedilar esta plena realizaccedilatildeo que eacute a felicidade (fim
supremo)
O argumento de Geach parece natildeo contemplar esta arquitetura proveniente desta
convergecircncia do fim uacuteltimo e os fins subordinados Para uma melhor compreensatildeo desta
convergecircncia dos diversos fins um bom exemplo seria pensar em uma bacia hidrograacutefica46 Existem
rios secundaacuterios que satildeo diferentes entre si cada um com sua foz individual mas todos convergem
para o rio principal que desemboca no mar ou em um lago Cada rio secundaacuterio converge para um
fim maior mais abrangente que eacute o rio principal que desemboca no mar ou no lago que neste caso
representa o fim supremo Tal como a medicina busca a sauacutede a estrateacutegia busca agrave vitoacuteria agrave selaria
busca a equitaccedilatildeo etc e todas satildeo realizadas em vista da eudaimonia Logo a rede hidrograacutefica
como um todo eacute convergente e natildeo somente um uacutenico rio
A segunda abordagem visa examinar o domiacutenio referencial no qual o argumento aristoteacutelico
estaacute fundamentado em um aspecto praacutetico ou teoacuterico Para esta linha de pensamento a referecircncia
principal do argumento aristoteacutelico se encontra no universo da accedilatildeo O raciociacutenio do fim uacuteltimo
pode ser analisado sob dois prismas e cada um deles conduz agrave uma conclusatildeo diferente O primeiro
prisma eacute o de validade loacutegica o qual descrevemos acima ao examinar a criacutetica de Geach ao texto
aristoteacutelico O segundo prisma eacute analisar o argumento aristoteacutelico inserido no campo das accedilotildees
humanas Caso o argumento aristoteacutelico seja examinado sob o ponto de vista da loacutegica formal
apenas resta tentar estabelecer formas de evitar o julgamento de Geach por meio dos instrumentos
cabiacuteveis da loacutegica formal ou simplesmente aceitar o fato que houve o cometimento de uma falaacutecia
pelo Filoacutesofo Mas caso seja escolhido o prisma referencial que coloca o argumento aristoteacutelico no
acircmbito da praacutexis humana talvez seja possiacutevel sobrepujar o desafio imposto por Geach Portanto
procederemos agrave anaacutelise do argumento aristoteacutelico sob a oacutetica da dimensatildeo praacutetica
O domiacutenio referencial no qual se insere o argumento aristoteacutelico eacute a accedilatildeo humana Natildeo se
trata somente de considerar a validade loacutegica das proposiccedilotildees como verdadeiras ou falsas mas
tambeacutem como devem ser entendidos conceitos importantes para a anaacutelise da conduta dos
indiviacuteduos tais como a felicidade o bem humano as virtudes etc Neste sentido haacute um
deslocamento para o domiacutenio praacutetico do argumento aristoteacutelico evitando seu uso somente no
domiacutenio teoacuterico no qual Geach realiza sua anaacutelise O domiacutenio teoacuterico e o domiacutenio praacutetico satildeo
compreendidos a partir da conceituaccedilatildeo de Aristoacuteteles O aspecto teoacuterico desenvolve as operaccedilotildees
46 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Op cit p 89
19
intelectuais da bios theorethikoacutes da verdade e da falsidade dos postulados do raciociacutenio47 enquanto
o aspecto praacutetico tem por objeto natildeo somente a validade das proposiccedilotildees mas orientar a conduta do
homem em funccedilatildeo da verdade Logo este uacuteltimo aspecto cuida para que a verdade permaneccedila em
concordacircncia com a retidatildeo no desejo e possa orientar a racionalidade praacutetica para a consecuccedilatildeo de
um fim nobre48
13 Fim dominante ou fim inclusivo
Neste ponto pode surgir um questionamento acerca da relaccedilatildeo entre fins e o supremo bem
uma vez que possa haver uma convergecircncia entre fins em prol de um fim supremo Quais fins
devem ser buscados pelo indiviacuteduo para que atinja uma vida feliz A resposta a esta pergunta
inspira duas perspectivas diferentes sobre o Supremo Bem e qual eacute a sua relaccedilatildeo com os fins
subordinados a ele Neste sentido existem duas visotildees sobre o Supremo Bem A primeira eacute vista
sob o prisma de um fim uacuteltimo dominante a segunda como um fim uacuteltimo inclusivo Deste modo
abordaremos estes dois pontos de vista acerca deste Bem maior
Uma vez que o sumo bem eacute a eudaimonia esta eacute identificada com a vida teoacuterico-
contemplativa ou pelo menos haacute uma grande ecircnfase neste tipo de vida como sendo uma vida
feliz49 Logo a pergunta central eacute saber se a vida feliz eacute somente caracterizada pela contemplaccedilatildeo
ou tambeacutem inclui outros tipos de bens
Na anaacutelise acerca do fim aristoteacutelico ser dominante ou inclusivo os principais estudiosos satildeo
William Francis Ross Hardie e John Lloyd Ackrill O primeiro comentador W F R Hardie defende
o ponto de vista de um fim dominante Enquanto o segundo estudioso advoga que o fim descrito por
Aristoacuteteles deve ser observado a partir de uma perspectiva inclusivista
No caminho de anaacutelise acerca da eudaimonia ser um fim dominante ou inclusivo WFR
Hardie50 iniciou esta discussatildeo ao afirmar que existiria uma falta de precisatildeo de Aristoacuteteles ao expor
o argumento que a eudaimonia eacute o fim uacuteltimo a ser alcanccedilado pelos indiviacuteduos Esta imprecisatildeo eacute
causada pelo fato do Estagirita natildeo ter explicitado de modo claro e contundente que espeacutecie de fim
uacuteltimo eacute o Supremo Bem A insuficiecircncia na explicaccedilatildeo aristoteacutelica permite a especulaccedilatildeo sob qual
prisma deve ser entendido o Bem maior como fim dominante ou inclusivo A desordem reside no
seguinte ponto Ao buscar a felicidade os indiviacuteduos elaboram o seu planejamento de vida que
inclui alcanccedilar determinados fins para satisfazer desejos que os levaratildeo a ter uma vida feliz Ao
47Cf EacuteN VI 1139a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10248Cf EacuteN VI 1139a 35-1139b 4 Ibidem p 10249Cf EacuteN X 1177a 11-15 ndash 1178a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 188-18950Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacuteticanicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
20
fazer este planejamento a duacutevida recai sobre qual eacute a ecircnfase colocada em um determinado fim para
que este se torne o seu fim predominante para que este fim se transforme no eixo central da vida
Este eixo central que eacute um objeto uacutenico desejado na vida do indiviacuteduo pode ser a riqueza a fama
a ciecircncia para ficarmos com alguns exemplos citados na Eacutetica a Nicocircmaco Ao planejar sua vida
qualquer indiviacuteduo sabe que possui variados interesses e desejos Percebe que alguns desejos satildeo
mais importantes que outros Ou percebe que alguns desejos satildeo mais difiacuteceis de serem realizados
enquanto outros satildeo mais faacuteceis E que a busca de um desejo escolhido pode auxiliar atrapalhar ou
tornar irrealizaacutevel a satisfaccedilatildeo de outros desejos Desta forma o indiviacuteduo que reflete acerca dos
seus desejos dentro do seu plano de vida procura traccedilar um caminho que permita a conquista do
modo mais completo possiacutevel dos desejos elencados como os mais importantes e satisfatoacuterios Sob
esta perspectiva o desejo pela felicidade consiste em satisfazer vaacuterios desejos de maneira
harmoniosa e ordenada
Na compreensatildeo de Hardie51 a concepccedilatildeo de fim inclusivo como sendo um conjunto de
fins pode ser constatado na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles ao dizer que uma ciecircncia ldquoarquitetocircnicardquo52 se
constitui com um fim preciacutepuo53 A felicidade eacute considerada como a coisa mais desejada perante
todas as outras sem que seja contada entre elas pois continua a ser a mais desejada mesmo com a
adiccedilatildeo do menor dos bens54 Para o mencionado comentador o estagirita deveria conceituar a
felicidade como um fim de segunda ordem55 no qual se incluiriam os fins de primeira ordem em
uma plena realizaccedilatildeo harmoniosa Mas ele natildeo o faz Diante deste quadro no entender de Hardie o
filoacutesofo grego ao tentar definir o bem final aproxima-se de uma concepccedilatildeo inclusivista mas
termina por construir uma concepccedilatildeo dominante sobre o supremo bem
A tese que compreende a eudaimonia como fim dominante descreve que o Sumo Bem
possui um cunho superior mais elevado que os outros fins Se a eudaimonia estaacute acima de outros
fins como por exemplo a honra o prazer a riqueza ou o conhecimento e se para alcanccedilar uma
vida feliz eacute necessaacuterio alcanccedilar um determinado tipo de fim pois este fim identifica-se com a
eudaimonia entatildeo este fim passa a ser o mais importante e superior de todos os outros fins juntos
A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo isso significa dizer que caso a eudaimonia seja identificada com a riqueza
esse fim torna-se essencial e deve ser buscado por qualquer indiviacuteduo que queira uma vida feliz Haacute
uma preponderacircncia deste fim essencial sobre outros fins os quais se tornam suplementares Todas
51Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo Op cit p 44 52Cf EacuteN 1094a 26-27 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4453Um exemplo utilizado eacute caso da poliacutetica Esta ciecircncia possui a caracteriacutestica de comportar vaacuterios outros fins CfEacuteN 1094b 6-7 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4454Cf EacuteN 1097b 16-20 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4455A felicidade eacute um fim de segunda ordem por ser considerada o fim uacuteltimo o fim mais desejado O fim de segundaordem eacute decorrente da consecuccedilatildeo de fins de primeira ordem que satildeo conquistados por meio das accedilotildees do indiviacuteduo
21
as accedilotildees do indiviacuteduo convergem para atingir este fim considerado o mais importante porque ele eacute
o proacuteprio nuacutecleo da eudaimonia
A criacutetica da concepccedilatildeo dominante eacute feita por JL Ackrill56 Este uacuteltimo concorda com
Hardie que natildeo eacute clara a posiccedilatildeo aristoteacutelica sobre a eudaimonia possuir uma tendecircncia inclusiva
ou dominante Mas Ackrill57 defende que conceito de eudaimonia exposto por Aristoacuteteles eacute
fundamentalmente de cunho inclusivo No argumento de Ackrill o conceito de fim inclusivo pode
ser entendido de duas formas A primeira forma de compreensatildeo eacute enxergar o fim como algo que
inclua dois ou mais objetivos valores atividades ou bens os quais possuem um mesmo valor natildeo
havendo uma diferenccedila de importacircncia entre estes elementos A segunda forma eacute compreender o
fim como algo que englobe os mesmos elementos (objetivos valores etc) mas que possuem um
valor aproximadamente igual entre si Ou seja nenhum elemento eacute muito superior a qualquer um
dos outros elementos inclusos no fim O conceito de fim dominante tambeacutem pode ser entendido de
duas formas58 A primeira forma entende o fim dominante com sendo um ldquofim monoliacuteticordquo que
consiste em somente uma atividade ou um bem mais valoroso Na segunda forma o fim conteacutem dois
ou mais elementos que satildeo valorosos em si mesmos mas somente um destes elementos eacute
considerado o mais importante de todos sendo o elemento que possui a preponderacircncia ou
supremacia frente a todos os demais elementos Logo este eacute o bem dominante dentro do fim uacuteltimo
Ackrill continua a argumentar que o fim uacuteltimo eacute uma reuniatildeo de fins que podem ser
agradaacuteveis e dignos em si mesmos natildeo havendo um uacutenico fim que seja superior aos demais fins59
A analogia que Ackrill utiliza eacute comparar o Supremo Bem com um cafeacute da manhatilde com trecircs
elementos bacon ovos e tomates Em uma leitura inclusiva bacon natildeo eacute superior aos ovos e aos
tomates Os trecircs juntos satildeo melhores que apenas o bacon A combinaccedilatildeo dos trecircs elementos forma
um conjunto superior em relaccedilatildeo a um fim uacuteltimo que eacute baseado somente em um uacutenico elemento
Na interpretaccedilatildeo de Zingano 60 o Supremo Bem natildeo eacute um uacutenico bem que estaacute acima de
todos os outros bens Consiste em uma reuniatildeo de todos os bens buscados pelo indiviacuteduo Eacute um
bem formalmente uacutenico mas materialmente diversificado61 Pois a tese que compreende a
56Cf ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteiade Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-12557Cf ACKRILL JL Ibidem p 10558 Em relaccedilatildeo ao fim dominante este pode ser interpretado em uma chave de leitura ldquoforterdquo ou ldquofracardquo O ponto devista ldquoforterdquo como um ldquofim monoliacuteticordquo aparece quando Hardie afirma que o fim supremo aristoteacutelico eacute dominanteporque eacute identificado com um uacutenico objeto de desejo principal que eacute a proacutepria filosofia (entendida como sabedoriacontemplativa) O ponto de vista ldquofracordquo surge no momento que Hardie assevera que dentre alguns fins combinadosexiste um fim dominante Segundo Ackrill a chave de leitura ldquoforterdquo eacute a adotada por Hardie Por isso natildeo pode seraceita porque um fim dominante ldquomonoliacuteticordquo seria restritivo demais para ser elencado como o Supremo Bem a serconquistado59 Cf ACKRILL JL rdquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo Op cit p 10860 Cf ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 73-11061 Cf Ibidem p 103
22
eudaimonia como um fim inclusivo descreve que a felicidade possui uma pluralidade de fins em si
que satildeo independentes mas satildeo buscados de forma harmocircnica Nesta pluralidade de fins existem
fins que satildeo desejados por si mesmos e fins instrumentais (subordinados) a estes fins preciacutepuos que
somente servem para atingir os fins em si Mas todos eles satildeo buscados tendo em vista a
eudaimonia Deste modo a eudaimonia inclui todos os fins desejaacuteveis que podem ser buscados em
vista do Sumo Bem
Esta eacute a posiccedilatildeo de Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar a ideia de bem aristoteacutelica Eacute o
ldquobem geralrdquo que delimita a atividade especiacutefica de cada ciecircncia em particular Igualmente ocorre
com as accedilotildees humanas em geral o homem realiza diversas accedilotildees particulares que conteacutem seus fins
particulares mas todas estas accedilotildees satildeo feitas em vistas de alguma concepccedilatildeo de Sumo Bem
Conforme mostra o Aquinate nas Sententia Libri Ethicorum
Assim quando Aristoacuteteles diz-se (sic) que o bem eacute o que todos apetecem natildeo sedeve entender apenas para os que tecircm conhecimento que apreendem o bem mastambeacutem para os que carecem do conhecimento que tendem ao bem por um apetitenatural natildeo enquanto conheccedilam o bem mas porque satildeo movidos ao bem poralgum cognoscente a saber pela ordenaccedilatildeo do intelecto divino ao modo como aflecha tende ao alvo pela direccedilatildeo do arqueiro Mas o proacuteprio tender ao bem eacuteapetecer o bem e por isso disse que o ato apetece ao bem enquanto tende ao bemNatildeo eacute poreacutem um uacutenico bem ao qual todas as coisas tendem como foi dito acimaE portanto natildeo se descreve aqui um uacutenico bem mas um bem considerado emcomum Porque nada eacute bom a natildeo ser quanto eacute certa semelhanccedila e participaccedilatildeo dosumo Bem o mesmo sumo Bem que eacute de algum modo apetecido em todo bem Eassim pode-se dizer que eacute um uacutenico bem o que todos apetecem62
Natildeo eacute objetivo principal deste trabalho responder plenamente agrave questatildeo da eudaimonia ser
um fim dominante ou um fim inclusivo Mas pensamos ser interessante apresentar um breve parecer
acerca deste tema relacionado a vida feliz A questatildeo de como interpretar a eudaimonia como um
fim dominante ou fim inclusivo decorre da forma que Aristoacuteteles apresenta a vida teoacuterico-
contemplativa (βίος θεωρητικός) no Livro X da Eacutetica a Nicocircmaco Sob a perspectiva de fim
62 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes Vol IEdiccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015 p27 A citaccedilatildeo em latim vemdas Sententia Libri Ethicorum liber 1 lectio 1 n 11 ldquoQuod autem dicit quod omnia appetunt non est intelligendumsolum de habentibus cognitionem quae apprehendunt bonum sed etiam de rebus carentibus cognitione quae naturaliappetitu tendunt in bonum non quasi cognoscant bonum sed quia ab aliquo cognoscente moventur ad bonum scilicetex ordinatione divini intellectus ad modum quo sagitta tendit ad signum ex directione sagittantis Ipsum autem tenderein bonum est appetere bonum unde et actum dixit appetere bonum in quantum tendit in bonum Non autem est unumbonum in quod omnia tendunt ut infra dicetur Et ideo non describitur hic aliquod unum bonum sed bonumcommuniter sumptum Quia autem nihil est bonum nisi inquantum est quaedam similitudo et participatio summi boniipsum summum bonum quodammodo appetitur in quolibet bono et sic potest dici quod unum bonum est quod omniaappetuntrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Sententia libri Ethicorum liber I a lectio I ad IIIDisponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc0101htmlgt Acesso em 23 de junho de 2017
23
dominante todas as virtudes bens externos e a conduta do indiviacuteduo estatildeo subordinados a um fim
uacutenico e determinado que consiste na vida teoacuterico-contemplativa Aristoacuteteles natildeo poupa elogios agrave
vida teoacuterico-contemplativa ao descrever que esta eacute a melhor a mais duraacutevel a mais completa
autossuficiente e a mais amada de todas as atividades63 A contemplaccedilatildeo em outras palavras a
sabedoria filosoacutefica (σοφία) eacute o fim mais desejaacutevel entre todos os outros fins Por outro lado o
Estagirita destaca o papel das virtudes morais juntamente com a virtude intelectual da prudecircncia no
Livro VI da EacuteN Na eacutetica aristoteacutelica haacute uma grande importacircncia conferida agrave vida praacutetica Desta
maneira resta saber como a contemplaccedilatildeo interage com as virtudes morais a virtude da prudecircncia e
os demais fins
Em que consiste a vida teoacuterico-contemplativa Consiste em um estilo de vida que busca o
conhecimento da verdade64 e a nobreza de conduta como fundamento principal porque a verdade e
a nobreza de conduta adquirida por meio da praacutetica das virtudes morais satildeo pilares da eudaimonia
A faculdade da razatildeo eacute o que haacute de mais caracteriacutestico no ser humano Por isso pautar-se por ela
traz a certeza de uma vida feliz65 E aliado a esta racionalidade encontram-se as accedilotildees virtuosas66
Logo a vida contemplativa eacute uma vida proveniente da uniatildeo do exerciacutecio do intelecto com a retidatildeo
moral
A vida teoacuterico-contemplativa pode ser chamada de dominante por ser a meta a ser
perseguida como tipo de vida ideal para o indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida de plenitude
Uma vez identificada com a eudaimonia passa a ser o fim uacuteltimo e supremo Mas essa dominacircncia
da vida contemplativa para que possa ser efetiva inclui outros tipos de fins que satildeo as virtudes
morais e poucos bens externos67 Deste modo existe uma mescla entre as vertentes dominante e
inclusiva na compreensatildeo do Supremo Bem aristoteacutelico
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos questionamentos levantados ao longo do tempo sobre o caraacuteter
dominante ou inclusivo do fim aristoteacutelico no proacuteximo toacutepico analisaremos os conceitos basilares
de ldquofunccedilatildeordquo e de ldquofinalidaderdquo utilizados na filosofia moral de Aristoacuteteles
63 Cf EacuteN X 1177a20-30 e X 1177b1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 190-19164 Cf EacuteN1177b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p19065 Cf EacuteN1178a 5-8 Ibidem p19066 Cf EacuteN 1178a 10 Ibidem p19067 CF EacuteN 1179a 5-7 Ibidem p191
24
14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres
Acerca do conceito de finalidade (ές existe uma outra significaccedilatildeo possiacutevel deste termo
que eacute a de ldquoplenituderdquo (τέλειον) Assim ao afirmar que os seres tendem agrave sua finalidade pode-se
entender que os seres procuram ou tendem a serem plenos completos por realizarem seus fins
especiacuteficos
O conceito de finalidade eacute dotado de grande importacircncia para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica de
Aristoacuteteles Sua filosofia moral eacute baseada na finalidade caracteriacutestica do ser humano Toda a accedilatildeo
humana eacute realizada em funccedilatildeo de um determinado fim seja este considerado em si mesmo seja este
visto como meio para obtenccedilatildeo de outros fins Do mesmo modo o ser humano tende a uma
finalidade propriamente sua que deriva de sua proacutepria natureza Essa finalidade proacutepria ultrapassa
os fins especiacuteficos das accedilotildees humanas como por exemplo ser artesatildeo ser poliacutetico ser pedagogo ou
quaisquer outras accedilotildees exercidas Eacute um tipo de fim mais abrangente e duradouro ao qual os outros
fins estatildeo subordinados Neste sentido a plena realizaccedilatildeo do ser humano encontra-se no
aperfeiccediloamento de todas as suas caracteriacutesticas e em especial no uso da razatildeo (λόγος)
Ao dizer que a eudaimonia eacute o ldquomelhor bem de todosrdquo e o mais procurado68 Aristoacuteteles
procurar fundamentar o alcance de uma vida plena na ideia de ergon (ἔργονdos seres Este termo
eacute tradicionalmente traduzido por ldquofunccedilatildeordquo mas tambeacutem pode ser entendido como ldquotrabalhordquo
ldquoocupaccedilatildeordquo ldquotarefardquo69 Optamos por utilizar o termo tradicional de funccedilatildeo uma vez que
acreditamos ser o termo adequado para o entendimento da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as
funccedilotildees e virtudes que cada ser possui e que no contexto eacutetico culmina com a funccedilatildeo e virtude do
ser humano O que significa essa funccedilatildeo exclusiva das coisas Significa dizer que cada ser possui
uma funccedilatildeo que lhe eacute caracteriacutestica em decorrecircncia daquela finalidade para a qual fora criada Ou
seja a finalidade eacute inerente aos seres Por exemplo um navio eacute criado para navegar este objeto foi
criado para isso sua finalidade preciacutepua eacute a navegaccedilatildeo Caso o navio seja utilizado para outros fins
que natildeo agravequele ao qual foi originalmente fabricado haacute um desvirtuamento do seu fim original Ou
entatildeo o navio esteja com um casco fendido o que impossibilita uma boa navegaccedilatildeo a embarcaccedilatildeo
natildeo cumpre ou cumpre de modo pouco eficaz o fim para o qual foi designado Logo tanto na
situaccedilatildeo de desvirtuamento para o uso de outras funccedilotildees que natildeo aquela para o qual foi criado o
navio quanto na situaccedilatildeo em que haacute um casco ruim este objeto natildeo desempenha plenamente a sua
funccedilatildeo
68CF EacuteN 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p1569PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles Op cit p32
25
O navio ao natildeo desempenhar plenamente a sua funccedilatildeo perde a possibilidade de alcanccedilar a
excelecircncia na accedilatildeo de navegar Esta excelecircncia eacute a virtude (ἀρετήde cada ser eacute a plena realizaccedilatildeo
da sua funccedilatildeo atingida por qualquer ser E esta plenitude eacute atingida quando haacute (1) o cumprimento
exato da sua finalidade e (2) quando a accedilatildeo realizada eacute feita de forma maximamente eficaz Esta
ideia de virtude das coisas ao exercerem a sua funccedilatildeo de um ldquobom modordquo e de uma maneira eficaz
eacute o bem desta coisa Assim sendo Aristoacuteteles busca a funccedilatildeo inerente ao ser humano aquilo que lhe
eacute mais essencial Pois a vida plena a eudaimonia de um ser humano estaacute associada agrave realizaccedilatildeo
daquilo que lhe eacute mais proacuteprio ou seja do seu ergon mais distintivo conforme descrito na Eacutetica a
Nicocircmaco
Mas dizer que a felicidade eacute o sumo bem talvez pareccedila uma banalidade e faltaainda explicar mais claramente o que ela seja Tal explicaccedilatildeo natildeo ofereceria grandedificuldade se pudeacutessemos determinar primeiro a funccedilatildeo do homem Pois assimcomo para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisasque tecircm uma funccedilatildeo ou atividade considera-se que o bem e o ldquobem feitordquo residemna funccedilatildeo o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo Dar-se-aacute ocaso entatildeo de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funccedilotildees e atividades eo homem natildeo tenha nenhuma Ou assim como o olho a matildeo o peacute e em geral cadaparte do corpo tecircm evidentemente uma funccedilatildeo proacutepria poderemos assentar que ohomem do mesmo modo tem uma funccedilatildeo agrave parte de todas essas Qual poderaacute serela70
Cada oacutergatildeo do corpo humano possui sua funccedilatildeo especiacutefica e quando esta funccedilatildeo eacute exercida
da sua melhor maneira encontra-se em sua plena virtude O carpinteiro ou curtidor tem sua
atividade preciacutepua ao exercer sua respectiva funccedilatildeo de moldar a madeira e preparar o couro da
melhor maneira exerce suas atividades de modo virtuoso Em outras palavras assume seu grau de
excelecircncia Neste sentido o ser humano realiza plenamente sua funccedilatildeo proacutepria quando escolhe
atingir a excelecircncia naquilo que o diferencia de outros seres que eacute a racionalidade
Para responder a esta questatildeo acerca da funccedilatildeo proacutepria do ser humano Aristoacuteteles recorre agrave
divisatildeo da alma ( exposta na obra De Anima na qual eacute demonstrada a ideia de que a alma
possui trecircs partes ou faculdades distintas as quais satildeo intituladas de nutritiva (vegetativa) sensitiva
(perceptiva) e intelectiva (racional) A faculdade nutritiva eacute responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo dos seres vivos Eacute a faculdade nutritiva que primeiramente proporciona que haja vida
nos seres sendo comum a todos os seres vivos71 A faculdade sensitiva eacute a parte da alma que possui
a finalidade de percepcionar os sensiacuteveis e possui a funccedilatildeo de captar os estiacutemulos sensoriais
provenientes dos entes externos ao corpo e a alma Estes sensiacuteveis satildeo captados pelos cinco
70 EacuteN I 1097b 25-37 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15-1671 Cf De Anima II 415a 22 ARISTOacuteTELES De Anima Op cit p 50
26
sentidos visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar tato72 A faculdade intelectiva eacute a parte da alma com
capacidade para conhecer as formas inteligiacuteveis sendo responsaacutevel pelas funccedilotildees operativas do
entendimento tais como raciocinar deliberar escolher etc73
Na Eacutetica a Nicocircmaco esta divisatildeo da alma tambeacutem aparece ldquoPor exemplo que a alma tem
uma parte racional e outra privada de razatildeo []rdquo74Aristoacuteteles expotildee de modo sinteacutetico como a parte
irracional e racional da alma se comportam em relaccedilatildeo uma com a outra75 As faculdades nutritiva e
sensitiva fazem parte irracional E naturalmente a parte racional eacute a proacutepria faculdade intelectiva
A caracteriacutestica essencial do ser humano eacute a racionalidade Por isso deve submeter seus anseios e
desejos que fazem parte da faculdade sensitiva aos ditames da razatildeo para que possa realizar
plenamente sua finalidade e consequentemente ter uma vida feliz Mas para que o homem virtuoso
possa viver em funccedilatildeo do intelecto eacute necessaacuterio o cultivo das virtudes morais Pois satildeo as virtudes
morais que controlam os desejos do indiviacuteduo Aqui se encontra o ponto de confluecircncia entre a
faculdade sensitiva e a faculdade racional sem as virtudes morais ligadas agrave faculdade sensitiva natildeo
eacute possiacutevel agrave submissatildeo dos desejos agrave razatildeo Sem a faculdade racional natildeo eacute possiacutevel adquirir agraves
virtudes morais Esta intersecccedilatildeo entre a faculdade sensitiva e a faculdade racional pode ser
denominado como razatildeo desiderativa ou desejo racional76 Isso significa que os desejos se originam
na faculdade sensitiva mas uma vez que satildeo orientados pelo intelecto haacute uma influecircncia da
faculdade racional na parte sensitiva da alma Deste modo eacute nesta relaccedilatildeo entre o domiacutenio dos
desejos controlados por meio das virtudes morais e a racionalidade que se encontra a formaccedilatildeo do
homem virtuoso
No que tange agrave formaccedilatildeo moral do homem virtuoso a faculdade nutritiva eacute imediatamente
descartada por Aristoacuteteles pois ela eacute uma faculdade comum a todos os seres vivos e natildeo somente ao
homem Haja vista a funccedilatildeo da faculdade nutritiva ser apenas a nutriccedilatildeo e crescimento de um ser
vivo natildeo pode contribuir em nenhum aspecto na aquisiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das virtudes morais A
faculdade sensitiva deve atender aos comandos da faculdade racional Pois a parte sensitiva conteacutem
os desejos e estes nem sempre estatildeo de acordo com os princiacutepios determinados pela faculdade
racional Logo procede que natildeo haacute uma harmonia natural entre as duas faculdades mas o homem
virtuoso precisa proceder de modo que haja a prevalecircncia da razatildeo sobre os desejos para que
possam ser guiados de forma a contribuiacuterem para a eudaimonia Conforme descreve o texto
72 Cf De Anima II 424b 23 Ibidem p 8373 Cf De Anima III 429a 10 Ibidem p 9774 Cf EacuteN I 1102a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p2375Cf EacuteN I 1102b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24 76Cf EacuteN I 1103a 1-4 Ibidem p 24
27
Por exemplo que a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razatildeo []Do elemento irracional uma subdivisatildeo parece estar largamente difundida e ser denatureza vegetativa Refiro-me agrave que eacute causa da nutriccedilatildeo e do crescimento []Parece haver na alma ainda outro elemento irracional mas que em certo sentidoparticipa da razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional do homem continentee do incontinente () assim como a parte de sua alma quepossui tal princiacutepio porquanto ela nos impele na direccedilatildeo certa e para os melhoresobjetivos mas ao mesmo tempo encontra-se neles um outro elementonaturalmente oposto ao princiacutepio racional lutando contra este a resistindo-lhe []os impulsos dos incontinentes movem-se em direccedilotildees contraacuterias[] Apesar dissodevemos admitir que tambeacutem na alma existe qualquer coisa contraacuteria ao princiacutepioracional qualquer coisa que lhe resiste e se opotildee a ele [] seja como for nohomem continente ele obedece ao referido princiacutepio racional e eacute de presumir queno temperante e no bravo seja mais obediente ainda pois em tais homens ele fala arespeito de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racional77
Exposta a ideia acerca da divisatildeo da alma e sendo caracterizado que a faculdade racional eacute a
uacutenica inteiramente humana segue-se que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada com um tipo
de vida conduzida pela racionalidade Mas aleacutem de ser marcada pelo uso da razatildeo a funccedilatildeo do ser
humano tambeacutem consiste em ser realizada de maneira adequada e de modo digno A accedilatildeo virtuosa eacute
pautada nestes dois pressupostos (1) baseada na razatildeo e (2) feita de maneira adequada e digna
Neste ponto eacute importante perceber uma distinccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre uma accedilatildeo virtuosa e uma
accedilatildeo boa Natildeo eacute qualquer tipo de accedilatildeo que pode ser considerada como uma accedilatildeo virtuosa A accedilatildeo
virtuosa eacute caracterizada por ser uma accedilatildeo que proveacutem da virtude O homem virtuoso ao realizar
uma accedilatildeo virtuosa age com os meios corretos e com um fim nobre Isso fica claro quando
Aristoacuteteles assevera que o indiviacuteduo deve conhecer a accedilatildeo que realiza e deve escolher fazer a accedilatildeo
pela virtude78 A accedilatildeo deve ser feita do mesmo modo que os homens virtuosos fazem79 A accedilatildeo
meramente boa eacute uma accedilatildeo que pode ter um fim nobre mas o agente natildeo possui o conhecimento
das razotildees corretas de sua accedilatildeo Eacute uma accedilatildeo que possui uma aparecircncia de virtude mas natildeo eacute
verdadeiramente uma virtude porque carece de um caraacuteter intriacutenseco ao agente que realiza a accedilatildeo
Somado aos pressupostos da razatildeo e da virtude existe um terceiro pressuposto que completa as
caracteriacutesticas de uma accedilatildeo virtuosa que eacute (3) a praacutetica constante destas accedilotildees Esta praacutetica
constante de atos virtuosos eacute mostrada na comparaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre a constacircncia
necessaacuteria de accedilotildees virtuosas e uma andorinha solitaacuteria que em um dia somente natildeo faz um veratildeo
Ou seja um curto e passageiro periacuteodo de felicidade natildeo sustenta uma vida de plenitude80 Em
siacutentese a vida feliz eacute a vivecircncia desta faculdade racional que se sobrepotildee as demais estaacute em
77 EacuteN I 1102a 30 ndash 1102b 5-25 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23-2478 Cf EacuteN II 1105a 30-35 Ibidem p 3079 Cf EacuteN II 1105b 5 Ibidem p 31 80 Cf EacuteN I 1098a 17-20 Ibidem p 16
28
consonacircncia com a virtude moral e se manifesta de modo prolongado por toda a vida e natildeo somente
em ocasiotildees esparsas
Conforme exposto eacute necessaacuterio agir com a funccedilatildeo proacutepria do ser humano para alcanccedilar a
eudaimonia Para atingir sua plenitude de vida eacute imperioso que o indiviacuteduo aperfeiccediloe sua
racionalidade desenvolva as virtudes morais e pratique firmemente accedilotildees virtuosas Com isto o
percurso para construir a felicidade estaacute traccedilado na perspectiva eacutetica aristoteacutelica Uma vez definidas
as condiccedilotildees para uma vida feliz ainda resta saber qual o melhor tipo de vida que se enquadre nos
criteacuterios estabelecidos No proacuteximo toacutepico analisaremos esta questatildeo
15 A Eudaimonia e tipos de vida
O termo ldquoSumo Bemrdquo deriva da expressatildeo latina Summum Bonum a qual traz em seu bojo a
ideia de ser o bem mais elevado o melhor dos bens o bem supremo Conforme exposto nos itens
anteriores Aristoacuteteles considera que este bem mais elevado eacute a eudaimonia81 Ele descreve as
caracteriacutesticas que um bem deve ter para ser considerado justamente como o Sumo Bem
autossuficiente ser completo e baseado na razatildeo pois esta eacute o que haacute de mais proacuteprio no ser
humano Mas ao descrever as propriedades do Sumo Bem ou seja da eudaimonia falta ainda
determinar de modo mais preciso qual o ldquocaminhordquo para alcanccedilaacute-la Afinal como se trata de um
estudo no campo da eacutetica eacute necessaacuterio determinar como alcanccedilar esta eudaimonia em termos de
comportamento durante a vida humana Isto consiste em questionar qual eacute o melhor tipo de bem a
ser conquistado e consequentemente qual o tipo de vida que melhor se adequa agrave busca deste bem
No entender de Otfried Houmlffe a eudaimonia eacute considerada por Aristoacuteteles como o τέλος
τελειoτατoacuteν cujo significado eacute o de ser o ldquofim maacuteximordquo o ldquofim mais finalrdquo o fim uacuteltimo que natildeo
pode ser ultrapassado eacute a finalidade de todos os fins82 A eudaimonia eacute o fim geral que serve como
paracircmetro de orientaccedilatildeo para a busca de outros fins Por isso a partir dela criteacuterios satildeo delimitados
para que o indiviacuteduo escolha uma maneira de viver que realmente o conduza agrave felicidade Uma vez
que alguns tipos de vida natildeo atendem estes criteacuterios nem todos podem conduzir o indiviacuteduo ao
Sumo Bem que eacute a verdadeira eudaimonia Somente aquele tipo de vida que mais condiz com a
natureza humana e verdadeiramente pode ser considerado como um caminho seguro e consistente
para alcanccedilar uma vida feliz Neste sentido eacute necessaacuterio proceder a uma anaacutelise dos tipos de vida e
qual eacute a que pode ser considerada condizente com a eudaimonia
81 Cf EacuteN I 1097b 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1582 HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 196
29
Para a anaacutelise dos tipos de bens principais que dizem respeito a diferentes tipos de vidas
Aristoacuteteles natildeo desconsidera a endoxa (ἔνδοξα)83 ou seja a opiniatildeo comum Ele tambeacutem observa a
tradiccedilatildeo filosoacutefica anterior84 para proceder a uma avaliaccedilatildeo mais acurada acerca de qual vida eacute a
melhor e por conseguinte qual o tipo de vida torna o ser humano feliz Mas a partir da endoxa
avalia se cada tipo de vida pode de fato corresponder agraves caracteriacutesticas jaacute traccediladas para que um
bem qualquer possa receber o tiacutetulo de Sumo Bem
Na linha de raciociacutenio conduzida na Eacutetica a Nicocircmaco85 Aristoacuteteles apresenta uma siacutentese
dos trecircs tipos de vida a serem analisadas decorrentes dos bens considerados ldquofinaisrdquo os mais
importantes a serem procurados dentro daquele tipo de vida Pode-se verificar trecircs espeacutecies
principais de vida que representam os tipos de bens que as fundamentam Para algumas pessoas a
eudaimonia eacute identificada com uma vida de gozo dos prazeres mais mundanos86Outro contingente
de pessoas a identificam com as honras provenientes de uma vida pautada pela poliacutetica87 Enfim
outros a identificam com uma vida baseada na contemplaccedilatildeo (teoacuterico-contemplativa)88 Uma vida
de riquezas eacute desconsiderada por Aristoacuteteles como o tipo de vida ideal porque o acuacutemulo de
riquezas eacute apenas um meio para obtenccedilatildeo de outro bem89 Quanto agrave vida de honrarias que eacute
particularmente vinculada agrave vida poliacutetica ela traz em seu bojo uma instabilidade ao indiviacuteduo pois
as honras dependem mais de quem as concede do que a pessoa que as recebe Tampouco os
prazeres mundanos podem ser tidos como o tipo de vida a ser buscado porque satildeo contraacuterios agraves
virtudes morais Assim o modelo de vida mais adequado ao bem supremo deve ser vinculado de
modo mais iacutentimo ao homem e por isso deve ser mais estaacutevel Em relaccedilatildeo agrave vida teoacuterico-
contemplativa Aristoacuteteles a analisa de modo mais detalhado mais agrave frente no Livro X da Eacutetica a
Nicocircmaco Por isso natildeo analisaremos as propriedades da vida teoacuterico-contemplativa neste
momento
83 Conforme Aristoacuteteles aponta nas suas obras Toacutepicos I 1100a 18-25 e Retoacuterica I 1356b 33-36 a endoxa eacute umaopiniatildeo geralmente aceita acerca de qualquer tema que seja objeto de anaacutelise ora para leigos ora para os saacutebios (nosentido de especialistas em uma determinada aacuterea do conhecimento) Parte-se de premissas que satildeo consideradasprovaacuteveis e aparentemente verdadeiras para iniciar a anaacutelise e ocorrer o aprofundamento do estudo sobre o objetoescolhido Eacute o que faz Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando observa as diversas opiniotildees correntes agrave eacutepoca acerca doque seria a felicidade tanto na visatildeo comum quanto na visatildeo dos filoacutesofos Confiram-se os textos Toacutepicos I 1100a 18-25 ldquoNosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo deopiniotildees geralmente aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto [] rdquo Retoacuterica I 1356b 33-36 ldquo[] tatildeopouco a retoacuterica teorizaraacute sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo ndash por exemplo para Soacutecrates ou Hiacutepias ndash mas sobre o queparece verdade para pessoas de uma certa condiccedilatildeo como tambeacutem faz a dialeacutetica[] rdquo84 Cf EacuteN I 1098b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1785 Cf EacuteN I 1095b 15 - 1096a 10 Ibidem p 11-1286 Cf EacuteN I 1095b 15-20 Ibidem p 1187 Cf EacuteN I 1095b 25-30 Ibidem p 1288 Cf EacuteN I 1096a 5 Ibidem p 1289 Cf EacuteN I 1096a 8-10 Ibidem p 12
30
Uma vez que o Sumo Bem deve ser autossuficiente e completo os casos dos prazeres
mundanos da honra e das riquezas satildeo eliminados Assim os prazeres mundanos satildeo buscados por
aqueles que se entregam agraves paixotildees mais indignas natildeo sendo proacuteprios de homens que almejam a
nobreza de alma pois a estes homens compete agrave razatildeo comandar as suas accedilotildees As honrarias sendo
uma caracteriacutestica mais apropriada agrave vida poliacutetica ainda dependem de fatores externos ao indiviacuteduo
considerado honrado na poacutelis O reconhecimento de uma vida honrada depende de quem confere
este tiacutetulo ao indiviacuteduo Desta maneira natildeo eacute autossuficiente nem completa Em relaccedilatildeo agraves riquezas
satildeo a princiacutepio somente um bem instrumental dispostas apenas para alcanccedilar outros fins natildeo
possuindo nenhum caraacuteter de autossuficiecircncia e completude Deste modo nem os prazeres
mundanos nem a honra nem a riqueza podem ser alccediladas agrave categoria de Sumo Bem 90
Conforme descrito anteriormente os candidatos ao tiacutetulo de Sumo Bem satildeo os prazeres
corporais e espirituais a honra e a contemplaccedilatildeo com seus consequentes tipos de vida Aristoacuteteles
continua sua anaacutelise na Eacutetica a Nicocircmaco 91 acerca do tipo de vida adequada agrave verdadeira
eudaimonia Este filoacutesofo retoma uma determinada linha de pensamento filosoacutefico que preconiza a
divisatildeo dos bens em trecircs classes distintas os bens externos os bens do corpo e os bens da alma Os
uacutenicos bens externos e os bens do corpo natildeo podem ser considerados os bens mais adequados agrave
eudaimonia Os bens da alma devem ser postos em primeiro plano pois satildeo considerados os mais
elevados e plenos Para o estagirita eacute o exerciacutecio ativo das faculdades interiores da alma em
conformidade com a razatildeo que eacute o fundamento de uma vida feliz Logo um dos criteacuterios apontados
por Aristoacuteteles eacute que uma vida plena deve estar vinculada aos bens da alma e natildeo apenas aos bens
externos
Ora os bens tecircm sido divididos em trecircs classes e alguns foram descritos comoexteriores outros como relativos agrave alma ou ao corpo Noacutes outros consideramoscomo mais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com a almae como tais classificamos as accedilotildees e atividades psiacutequicas Logo o nosso ponto devista deve ser correto pelo menos de acordo com esta antiga opiniatildeo com a qualconcordam muitos filoacutesofos Eacute tambeacutem correto pelo fato de identificarmos o fimcom certas accedilotildees e atividades pois desse modo ele vem incluir-se entre os bens daalma e natildeo entre os bens exteriores92
Devemos recordar que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano aquela que melhor o caracteriza eacute
agir conforme a faculdade racional da alma Eacute a atividade racional do ser humano que estabelece a
90 Cf EacuteN I 1095b 15-30 - 1096a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1291 Cf EacuteN I 1098b 10 - 1099b 5 Ibidem p 1892 EacuteN I 1098a 15-19 Ibidem p 17
31
via mais adequada para alcanccedilar uma vida plena Por conseguinte a eudaimonia estaacute no uso ativo
da razatildeo e natildeo nas paixotildees que residem na faculdade sensitiva e claro muito menos na faculdade
nutritiva uma vez que esta diz respeito somente a sobrevivecircncia bioloacutegica93
Para Aristoacuteteles eacute preciso agir de modo correto visando sua maacutexima performance pois
nisso consiste alcanccedilar a excelecircncia de uma coisa ou de uma accedilatildeo A tiacutetulo de exemplo um escritor
quando realiza adequadamente e em um grau elevado a accedilatildeo de escrever exerce esta funccedilatildeo de
modo virtuoso Do mesmo modo um violinista ao tocar adequadamente um violino exerce o ato de
tocar seu instrumento de modo virtuoso A excelecircncia de algo ou de uma accedilatildeo eacute o modo mais
adequado a maacutexima performance da realizaccedilatildeo de sua proacutepria funccedilatildeo Conforme nos mostra o
Estagirita
Ora se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica umprinciacutepio racional e se dizemos que ldquoum tal-e-talrdquo e ldquoum bom tal-e-talrdquo tecircm umafunccedilatildeo que eacute a mesma espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocadorde lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentadaao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade - pois a funccedilatildeo de umtocador de lira eacute tocar lira e de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) serealmente assim eacute [e afirmamos ser a funccedilatildeo do homem uma certa espeacutecie de vidae esta vida uma atividade ou accedilotildees da alma que implicam um princiacutepio racional eacrescentamos que a funccedilatildeo de um bom homem eacute uma boa e nobre realizaccedilatildeo dasmesmas e se qualquer accedilatildeo eacute bem realizada quando estaacute de acordo com aexcelecircncia que lhe eacute proacutepria se realmente assim eacute] o bem do homem nos aparececomo uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de umavirtude com a melhor e a mais completa94
Conforme podemos ver no texto de Aristoacuteteles intitular uma accedilatildeo de virtuosa significa
afirmar que eacute uma accedilatildeo que atingiu a excelecircncia Pode-se dizer que eacute uma accedilatildeo que se tornou
sublime Utilizando novamente os exemplos citados existem escritores e violinistas medianos mas
existem escritores e violinistas sublimes Estes virtuosos escritores e violinistas satildeo os ldquoilustres
escritores e ilustres violinistasrdquo de acordo com o Estagirita Portanto satildeo os modelos a serem
seguidos por todos que desejem alcanccedilar a excelecircncia nestas artes
Mas a eudaimonia consiste somente em bens da alma tais como a virtude e a razatildeo Na
concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a virtude e a razatildeo possuem uma grande importacircncia na definiccedilatildeo de uma
vida feliz mas eacute necessaacuterio algo a mais Outra caracteriacutestica da eudaimonia encontra-se nos bens
externos manifestados na necessidade do ser humano de possuir uma certa prosperidade que natildeo
depende exclusivamente do indiviacuteduo Na compreensatildeo do filoacutesofo de Estagira a prosperidade
nestes bens externos facilita a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Estes bens externos considerados
93 EacuteN 1098a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1694 EacuteN 1098a 10-15 Ibidem p 16
32
pertinentes a uma vida feliz satildeo de vaacuterios tipos amigos riqueza influecircncia poliacutetica Outros bens
externos fortalecem a posse de uma vida feliz tornando-a mais acessiacutevel aos mais afortunados e a
falta destes torna mais difiacutecil ter uma vida feliz aos indiviacuteduos desafortunados Estes bens satildeo a
beleza fiacutesica ter nascido em uma boa famiacutelia e ter bons filhos Nos diz Aristoacuteteles
A felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do mundo eesses atributos natildeo se acham separados como na inscriccedilatildeo em Delos Das coisas amais nobre eacute a mais justa e a melhor eacute a sauacutede mas a mais doce eacute alcanccedilar o queamamos Com efeito todos eles pertencem agraves mais excelentes atividades e estasou entatildeo uma delas ndash a melhor ndash noacutes a identificamos com a felicidade E noentanto como dissemos ela necessita igualmente dos bens exteriores pois eacuteimpossiacutevel ou pelo menos natildeo eacute faacutecil realizar atos nobres sem os devidos meiosEm muitas accedilotildees utilizamos como instrumentos os amigos a riqueza e o poderpoliacutetico e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza denascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feiaaparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidadesde ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossemvisceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigosComo dissemos pois o homem feliz parece necessitar tambeacutem dessa espeacutecie deprosperidade e por essa razatildeo alguns identificam a felicidade com a boa fortunaembora outros a identifiquem com a virtude95
Observa-se no decorrer da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles que natildeo basta somente as virtudes
morais para que o homem virtuoso seja feliz Parece que haacute duas opiniotildees correntes em sua eacutepoca
Uma atribui agrave boa fortuna o alicerce principal da eudaimonia e a outra atribui agrave virtude o meio
fundamental para alcanccedilar a felicidade O estagirita realiza uma siacutentese entre as duas perspectivas
mas considera os bens da alma e os bens externos em patamares diferentes Determinados bens
como os bens da alma satildeo considerados essenciais agrave eudaimonia Estes satildeo a virtude e a razatildeo
Outros como os bens externos satildeo acessoacuterios e sua inexistecircncia natildeo acarreta necessariamente uma
vida infeliz mas a torne mais difiacutecil de ser suportada Devemos recordar que o Sumo Bem possui
duas propriedades que satildeo a autossuficiecircncia e a completude Portanto os bens externos como
acessoacuterios natildeo satildeo considerados autossuficientes e natildeo satildeo completos por serem bens
instrumentais Satildeo um meio para um fim e dependem de circunstacircncias externas ao indiviacuteduo
A eudaimonia eacute constituiacuteda de caracteriacutesticas essenciais e acessoacuterias96 Neste sentido
fazendo uma analogia com a engenharia de construccedilatildeo de edificaccedilotildees prediais Eacute possiacutevel um
entendimento de que a felicidade eacute construiacuteda por camadas Haacute um nuacutecleo essencial composto
pelos bens da alma ndash virtude e razatildeo ndash que estaacute na posse do indiviacuteduo ou seja sua
operacionalizaccedilatildeo depende unicamente dele e natildeo de fatores extriacutensecos A partir deste nuacutecleo
95EacuteN I 1099a 30 - 1099b 1-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1896 Cf EacuteN I 1099b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 19
33
essencial haacute os bens acessoacuterios ndash amigos riqueza influecircncia poliacutetica ndash que podem compor uma
vida feliz mas natildeo necessariamente satildeo indispensaacuteveis para que algueacutem seja feliz sua perda ou natildeo
obtenccedilatildeo natildeo acarretam uma vida infeliz para o indiviacuteduo O que deve ser evitado eacute a inversatildeo entre
aquilo que eacute essencial e aquilo que eacute acessoacuterio Os bens externos natildeo podem ser considerados como
um fundamento seguro para a felicidade porque satildeo instaacuteveis ou seja eacute possiacutevel perdecirc-los ou natildeo
corresponder agraves expectativas do indiviacuteduo Deste modo o indiviacuteduo para alcanccedilar a eudaimonia
necessita da virtude da prudecircncia e das virtudes morais para que possa conseguir realizar boas
escolhas durante sua vida e natildeo proceder a uma inversatildeo daquilo que eacute essencial ou acessoacuterio na
busca pela felicidade
Eacute interessante notar uma sutil divisatildeo dos bens externos Um primeiro subconjunto seriam
bens externos que ainda se encontram na esfera de accedilatildeo do indiviacuteduo Afinal caso seja uma escolha
do indiviacuteduo este por meio de sua accedilatildeo pode conquistar amigos riqueza e influecircncia poliacutetica Mas
o segundo subconjunto os outros bens externos citados por Aristoacuteteles que contribuem para a
felicidade como o nascimento em uma boa famiacutelia bons filhos e ter uma bela aparecircncia natildeo
pertencem a esfera de escolha e consequente accedilatildeo do indiviacuteduo O tipo de famiacutelia a vida dos filhos
e beleza fiacutesica estatildeo completamente fora do campo de deliberaccedilatildeo de algueacutem natildeo dependem do
indiviacuteduo tatildeo somente dependem de uma boa sorte
A harmonia entre os bens da alma e os bens externos eacute a linha que Aristoacuteteles segue ao
realizar sua anaacutelise acerca da eudaimonia O exerciacutecio ativo das virtudes morais e viver sob os
ditames da razatildeo satildeo o fundamento de uma vida feliz Qualquer homem virtuoso deve viver
segundo as virtudes Natildeo obstante a grande importacircncia da racionalidade e das virtudes na
construccedilatildeo da felicidade o Estagirita concede espaccedilo para as aspiraccedilotildees ldquonormaisrdquo de um homem
que vive o cotidiano da poacutelis Natildeo eacute uma perspectiva de felicidade cunhada para um eremita ou para
um monge que decide se abster de determinados bens externos A posiccedilatildeo de WD Ross ilustra bem
esta visatildeo de harmonia entre os bens da alma e os bens externos
Esta definiccedilatildeo (de felicidade) eacute confirmada por pontos de vista comuns acerca dobem-estar e ao mesmo tempo corrige-os Alguns afirmam que o bem-estar eacute avirtude Noacutes dizemos ser uma espeacutecie de acccedilatildeo para a qual tende a virtude Algunsafirmam ser o prazer Noacutes dizemos ser acompanhada necessariamente pelo prazerAlguns afirmam ser a prosperidade externa Noacutes dizemos que sem uma certa dosede prosperidade um homem natildeo pode exercitar esta boa atividade que eacute o bem-estar Assim os elementos principais que figuram na noccedilatildeo comum de bem-estartambeacutem entram na nossa definiccedilatildeo A virtude constitui a raiz donde descola a acccedilatildeoconforme o bem o prazer eacute o seu acompanhamento natural e a prosperidade suacondiccedilatildeo preacutevia normal97
97 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198 Na traduccedilatildeo portuguesa feita pela Publicaccedilotildees Dom Quixote a partir daediccedilatildeo inglesa publicada por Methuen amp Cu Ltd Londres o termo utilizado para se referir a eudaimonia eacute ldquobem-
34
A eacutetica aristoteacutelica tambeacutem eacute muito realista ao considerar o fato de que existe uma desordem
interna no indiviacuteduo Este conflito eacute caracterizado pela discrepacircncia entre a faculdade racional e os
desejos provindos da faculdade sensitiva Caso esta dissonacircncia natildeo seja resolvida com os desejos
submetidos ao ordenamento da racionalidade natildeo haacute a possibilidade do homem tornar-se virtuoso
Portanto o filoacutesofo de Estagira forja uma concepccedilatildeo eacutetica bastante equilibrada que evita excessos
de conduta decorrentes de determinados comportamentos morais muito comuns nos dias atuais
baseadas no hedonismo e no relativismo moral que consideram os desejos como os pilares da
felicidade
O Sumo Bem eacute a eudaimonia eacute aquilo que existe de mais nobre e confere mais prazer ao ser
humano Eacute a melhor atividade dentre as mais excelentes que pode ser realizada por algueacutem A
eudaimonia eacute uma espeacutecie de atividade da alma conforme a virtude E somado a isto a eudaimonia
tambeacutem eacute composta tanto por bens que satildeo indispensaacuteveis quanto bens que satildeo acessoacuterios agrave
felicidade98Assim a eudaimonia pode ser apreendida por meio de um treinamento Ou pode ser
desenvolvida de algum outro modo Ou eacute uma daacutediva divina A resposta eacute que a virtude natildeo eacute algo
natural no ser humano Por isso necessita de um constante esforccedilo do indiviacuteduo para adquiri-la e
aperfeiccediloaacute-la Conforme nos mostra Aristoacuteteles
[] pois aquilo que constitui o precircmio e a finalidade da virtude se nos afigura o quede melhor existe no mundo algo de divino e abenccediloado Dentro desta concepccedilatildeotambeacutem deve ela ser partilhada por grande nuacutemero de pessoas pois quem quer quenatildeo esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistaacute-la medianteuma certa espeacutecie de estudo e diligecircncia Mas se eacute preferiacutevel ser feliz dessamaneira a secirc-lo por acaso eacute razoaacutevel que os fatos sejam assim uma vez que quetudo aquilo que depende da accedilatildeo natural eacute por natureza tatildeo bom quanto poderiaser e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racionalespecialmente se depende da melhor de todas as causas Confiar ao acaso o que haacutede melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito99
Uma questatildeo que surge no estudo da eudaimonia e da virtude da prudecircncia diz respeito ao
papel que o acaso possui na busca por uma vida feliz O acaso constitui todas as situaccedilotildees que estatildeo
fora do controle imediato do indiviacuteduo Satildeo as contingecircncias que aparecem no decorrer da vida do
estarrdquo O proacuteprio WD Ross explica que prefere utilizar o termo ldquobem-estarrdquo para definir eudaimonia pelo fato destaser um certo tipo de atividade e natildeo um certo tipo de prazer embora este uacuteltimo a acompanhe Ross interpreta que otermo ldquofelicidaderdquo eacute inapropriado para traduzir a palavra grega eudaimonia por considerar que esse termo ldquofelicidaderdquose refere a um sentimento que apenas se diferencia do prazer por uma questatildeo de perdurar mais tempo ser maisprofundo e ser mais sereno que o prazer No presente trabalho optamos por usar o termo ldquofelicidaderdquo por esta traduccedilatildeoser a mais tradicional e consagrada nos textos que versam acerca da eacutetica em Aristoacuteteles 98 Cf EacuteN I 1099a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1899 EacuteN I 1099b 17-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 19
35
homem e que devem ser enfrentadas para que se alcance a felicidade Por isso examinaremos o
acaso na vida humana
16 O acaso na vida humana
O acaso na vida humana natildeo eacute um fator provaacutevel de trazer uma vida feliz ao indiviacuteduo O
acaso pode trazer tanto uma maacute quanto uma boa sorte e o indiviacuteduo que deixa sua vida ao acaso
tem pouca chance de alcanccedilar a eudaimonia A ordem natural das coisas indica que o indiviacuteduo
para atingir a excelecircncia nas suas accedilotildees seja em sua conduta seja em qualquer coisa que produza
deve se empenhar para que isso ocorra Portanto para cumprir sua funccedilatildeo proacutepria de ser racional
todo indiviacuteduo deve se empenhar em se tornar virtuoso e alcanccedilar sua excelecircncia como ser humano
porque isso natildeo ocorre de modo natural
O acaso pode trazer uma maacute sorte e vaacuterios infortuacutenios Um indiviacuteduo desafortunado pode ser
considerado feliz Aristoacuteteles considera que sim mesmo que uma pessoa sofra ao longo da sua vida
diversos desventuras ele pode ser feliz Pois a estabilidade encontra-se em uma vida virtuosa e natildeo
nas circunstacircncias que mudam a cada momento100 Naturalmente eventos agradaacuteveis acrescentam
alegrias e tornam mais agradaacuteveis uma vida virtuosa Mas eventos desagradaacuteveis trazem dores e
tornam mais sofrida uma vida mesmo que virtuosa Mesmo que o indiviacuteduo seja acometido por
uma sucessatildeo de eventos desagradaacuteveis sabe enfrentaacute-los de maneira digna Visto que a
eudaimonia eacute um exerciacutecio ativo do homem em conformidade com a virtude o sujeito que esteja
empenhado em agir conforme as virtudes natildeo depende da sorte para ser feliz Deste modo o homem
virtuoso sabe aproveitar as circunstacircncias e extrair o melhor delas para alcanccedilar uma vida
feliz101Acerca do acaso e de uma vida feliz esta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco eacute significativa
Ora muitas coisas acontecem por acaso e coisas diferentes quanto agrave importacircnciaEacute claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes natildeo pesam muito nabalanccedila mas uma multidatildeo de grandes acontecimentos se nos forem favoraacuteveistornaraacute nossa vida mais venturosa (pois natildeo apenas satildeo em si mesmos de feitio aaumentar a beleza da vida mas a proacutepria maneira como um homem os recebe podeser nobre e boa) e se se voltarem contra noacutes poderatildeo esmagar e mutilar afelicidade pois que aleacutem de serem acompanhados de dor impedem muitasatividades Todavia mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver quandoaceita com resignaccedilatildeo muitos grandes infortuacutenios natildeo por insensibilidade agrave dormas por nobreza e grandeza de alma102
100 Cf EacuteN I 1100b 13-20 Ibidem p 20101 Cf EacuteN I 1101a 35-37 Ibidem p 21102 EacuteN I 1100b 25-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 20-21
36
Decorrente do texto da Eacutetica a Nicocircmaco descrito acima podemos notar que o tamanho dos
acontecimentos pode afetar o indiviacuteduo tanto para a felicidade quanto agrave infelicidade Deste modo a
fortuna e o infortuacutenio podem ter uma determinada influecircncia na consecuccedilatildeo de uma vida feliz
embora o homem virtuoso consegue conviver com estes infortuacutenios e extrair o melhor de cada
situaccedilatildeo
A eudaimonia por ser autossuficiente e completa natildeo depende de nenhum fator externo
mas sobretudo das accedilotildees virtuosas praticadas pelo indiviacuteduo Por isso possui a caracteriacutestica de ser
estaacutevel Esta estabilidade perpassa a vida virtuosa do indiviacuteduo Por conseguinte as virtudes satildeo a
base para a estabilidade da eudaimonia
Na anaacutelise acerca da eudaimonia Aristoacuteteles tambeacutem questiona se porventura os
infortuacutenios de pessoas proacuteximas e queridas tais como os amigos e os descendentes podem afetar a
estabilidade de um indiviacuteduo virtuoso que possui uma vida feliz A resposta eacute que estes infortuacutenios
dos amigos ou descendentes natildeo tecircm forccedila suficiente para afetar um indiviacuteduo que jaacute deteacutem a
felicidade Os infortuacutenios podem ser em graus diversos e natildeo afetam substancialmente o homem
virtuoso 103 Do mesmo modo as adversidades enfrentadas pelos amigos e descendentes natildeo retiram
a felicidade do indiviacuteduo bem-aventurado nem a acrescentam em nada104
Observa-se que na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a eudaimonia para ser alcanccedilada possui uma
condicionante que consiste em agir baseado nas virtudes para obter uma nobreza de alma Se o
indiviacuteduo rejeitar esta condicionante natildeo teraacute uma vida plena A felicidade eacute um exerciacutecio ativo do
homem conforme a virtude perfeita sendo estaacutevel defronte agraves variadas circunstacircncias posto que eacute
autossuficiente e plena em si mesma Eacute o fim uacuteltimo que orienta toda a vida humana E este fim
uacuteltimo se constitui em cumprir a funccedilatildeo proacutepria do ser humano que eacute o uso da racionalidade e a
partir dele atingir um alto grau de virtudes Neste sentido o proacuteximo passo de Aristoacuteteles eacute analisar
a natureza das virtudes haja vista a grande importacircncia que estas possuem na composiccedilatildeo da
eudaimonia
103 Nas palavras de Ross para Aristoacuteteles a ldquo[] a finura de caraacuteter pode lsquobrilhar atraveacutesrsquo de circunstacircncias adversasrdquoROSS WD Aristoacuteteles opcit p 198104 Cf EacuteN I 1101b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 22
37
CAPIacuteTULO II
AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
Neste capiacutetulo eacute feito um estudo acerca da concepccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as virtudes e de
como satildeo fundamentais para a consecuccedilatildeo da eudaimonia Tambeacutem eacute vista a relaccedilatildeo entre as
virtudes e a educaccedilatildeo dos prazeres pois todo ser humano procura se aproximar daquilo que
ocasiona prazer e fugir daquilo que provoca dor Assim o prazer e a dor satildeo importantes para a
busca das virtudes e rejeiccedilatildeo dos viacutecios morais Nem todos os prazeres contribuem para uma correta
formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo O indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida feliz deve saber cultivar
os prazeres moralmente bons e rejeitar os prazeres moralmente ruins Por conseguinte deve ter um
conhecimento de quais prazeres satildeo bons para serem usufruiacutedos e quais natildeo satildeo para praticar accedilotildees
nobres e consequentemente ter uma vida em plenitude
Tal como as virtudes satildeo um componente essencial para uma vida feliz o prazer tambeacutem eacute
uma parte importante da eudaimonia O prazer tem um duplo caraacuteter aperfeiccediloamento e resultado
Como aperfeiccediloamento o prazer auxilia no refinamento das habilidades do indiviacuteduo e
naturalmente ajuda a aprimorar as virtudes105 Como resultado o prazer eacute fruto das proacuteprias accedilotildees
virtuosas que causam uma satisfaccedilatildeo no indiviacuteduo que as pratica106 Deste modo o prazer eacute inerente
agrave eudaimonia pois as virtudes satildeo um pressuposto baacutesico da vida feliz
As virtudes satildeo diferenciadas entre virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) e virtudes morais
(eacuteticas) As virtudes morais satildeo necessaacuterias para que haja o autodomiacutenio do indiviacuteduo sobre suas
paixotildees Satildeo as virtudes morais que permitem um melhor florescimento das virtudes intelectuais e
em especial a virtude da prudecircncia Para que o indiviacuteduo desenvolva corretamente as virtudes
morais eacute necessaacuterio conhecer qual eacute a natureza destas virtudes Assim eacute necessaacuteria a compreensatildeo
do conceito de mediania que eacute uma das caracteriacutesticas das virtudes
Em siacutentese no presente capiacutetulo analisaremos os seguintes pontos as virtudes morais os prazeres
e o seu papel na formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo o homem virtuoso (σπουδαῖος) o conceito de mediania
(μεσότης) e a necessidade das virtudes morais para o desenvolvimento da virtude intelectual da
prudecircncia (φρόνησις)
105Cf EacuteN X 1175a 30-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 185106Cf EacuteN X 1175a 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184
38
21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais
A definiccedilatildeo de eudaimonia eacute ser uma atividade da alma conforme a virtude perfeita107 Neste
sentido as virtudes satildeo uma peccedila central no sistema eacutetico aristoteacutelico Satildeo elas que ao serem
praticadas conduzem ao aprimoramento do indiviacuteduo tanto em conhecimento adquirido pelas
virtudes intelectuais quanto em proporcionar um caraacuteter mais nobre por causa da robustez das
virtudes morais
As virtudes satildeo divididas em conformidade com esta divisatildeo da alma entre uma parte
racional e outra irracional As virtudes que dizem respeito agrave parte intelectual satildeo as virtudes
intelectuais e as relacionadas agrave parte irracional mas propriamente ao elemento desiderativo satildeo as
virtudes morais A parte irracional da alma possui uma subdivisatildeo em dois elementos O primeiro
elemento natildeo pode ser submetido agrave razatildeo pois satildeo as proacuteprias atividades da faculdade vegetativa O
segundo elemento possui a capacidade de ser orientado pela razatildeo sendo este o elemento
desiderativo contido na faculdade sensitiva Por isso nota-se um detalhe importante em relaccedilatildeo ao
indiviacuteduo virtuoso ele escolhe submeter seus desejos e paixotildees agrave racionalidade e tambeacutem aprende
a desejar o que a racionalidade determina como correto
Conforme citamos no capiacutetulo anterior para uma melhor compreensatildeo das propriedades das
virtudes intelectuais e das virtudes morais eacute necessaacuterio recordar a obra De Anima na qual
Aristoacuteteles estabelece a divisatildeo da alma (ψυχή) humana em trecircs partes ou faculdades intituladas de
nutritiva (vegetativa) sensitiva (perceptiva) e racional (intelectiva) Estabelecida a divisatildeo da alma
em uma parte racional (faculdade intelectiva) e uma parte irracional (faculdades sensitiva e
nutritiva) deve-se observar que existe uma relaccedilatildeo entre estas duas partes Uma espeacutecie de
interaccedilatildeo entre a racionalidade e os apetites correspondentes agrave parte irracional Estas duas
dimensotildees da psicheacute natildeo satildeo naturalmente harmocircnicas entre si A faculdade sensitiva comporta os
desejos (o1recij) do ser humano Neste ponto eacute importante notar que Aristoacuteteles divide os desejos
em trecircs espeacutecies apetite () impulso () e vontade ()108
Por conter o elemento desiderativo a faculdade sensitiva eacute em parte responsaacutevel pelas
accedilotildees humanas Em parte porque a proacutepria faculdade sensitiva carece de racionalidade mas de
107 Cf EacuteN I 1102a 5-7 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23108 Cf De anima 414a 30 - 414b 3 Aristoacuteteles De anima Op cit p46-47 Segue-se o texto ldquoDas faculdades da almaque referimos a uns seres como dissemos pertencem todas umas delas a outros e a alguns seres pertence apenas umasoacute faculdade Chamamos entatildeo faculdades agraves partes nutritiva perceptiva desiderativa de deslocaccedilatildeo e discursiva Oraagraves plantas pertence apenas a faculdade nutritiva ao passo que aos outros seres pertencem esta faculdade e tambeacutem aperceptiva E se esses dispotildeem da faculdade perceptiva possuem igualmente a desiderativa pois o desejo eacute de fatoapetite impulso e vontade Todos os animais entatildeo possuem um dos sentidos o tato e ao ser a que a sensibilidadepertencem igualmente o prazer e a dor (isto eacute o apraziacutevel e o doloroso) Mais agravequeles a que estes pertencem pertence(sic) tambeacutem o apetite isto eacute o proacuteprio desejo do apraziacutevel []rdquo
39
uma certa forma o elemento desiderativo participa da faculdade racional Pois tanto o indiviacuteduo
considerado continente (e0gkrath~~j109 quanto o indiviacuteduo incontinente (a0krathj)110 possuem a
faculdade racional Mas haacute uma diferenccedila entre estes dois tipos de indiviacuteduos O indiviacuteduo
continente age conforme agrave razatildeo ele submete seus desejos e paixotildees agrave racionalidade O indiviacuteduo
incontinente foge dos ditames da razatildeo seus desejos e paixotildees prevalecem sobre o ordenamento
racional Aristoacuteteles afirma que o indiviacuteduo continente obedece agrave parte racional e no indiviacuteduo
temperante e no corajoso esta obediecircncia eacute ainda maior111 Este fato implica a utilizaccedilatildeo da razatildeo e
um autodomiacutenio perseverante que resultam em uma disposiccedilatildeo firme e habitual do indiviacuteduo para
que o elemento desiderativo contido na parte irracional possa estar submetido agrave parte racional
As virtudes satildeo divididas em duas espeacutecies correspondentes agrave divisatildeo da alma em parte
racional e irracional As virtudes intelectuais satildeo relacionadas agrave racionalidade e as virtudes morais
ao elemento desiderativo contido na parte irracional Ross classifica este elemento desiderativo
como sendo um elemento intermeacutedio pois embora pertenccedila agrave parte irracional possui uma ligaccedilatildeo
com a razatildeo Eacute esta parte do desejo que obedece aos princiacutepios e regras de vida que o indiviacuteduo
continente traccedilou para si mesmo Enquanto o indiviacuteduo incontinente natildeo consegue submeter o
desejo ao controle da faculdade racional112 Uma vez que esta parte desiderativa obedeccedila agrave
racionalidade pode-se entender o uso da razatildeo em dois momentos distintos que conferem dois
tipos de sentido O primeiro sentido eacute relacionado aos desejos e paixotildees nos quais estes se
submetem agrave racionalidade Neste caso eacute a razatildeo praacutetica que opera por meio da prudecircncia e das
virtudes morais O outro sentido eacute o uso da razatildeo para conhecer e verificar pressupostos teoacutericos
que natildeo dizem respeito agrave accedilatildeo humana como por exemplo um teorema matemaacutetico As virtudes
intelectuais referem-se a este campo de aplicaccedilatildeo da racionalidade113 No livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco114 satildeo listadas cinco virtudes intelectuais que satildeo a arte (τέχνη) o conhecimento
cientiacutefico (ἐπιστήμη) a sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) a razatildeo intuitiva
(νοῦς)115 No livro I haacute exemplos de virtudes morais116 a liberalidade (e0leuqeriothj) e a
temperanccedila (σωφροσύνη) Em relaccedilatildeo agrave sabedoria filosoacutefica (σοφία) sendo esta uma virtude
dianoeacutetica trata-se de uma sabedoria contemplativa dedicada agravequilo que eacute imutaacutevel A sophia
109 O indiviacuteduo continente domina seus desejos e os submete agrave razatildeo110 O indiviacuteduo incontinente natildeo domina seus desejos por isso natildeo consegue submetecirc-los agrave razatildeo 111 Cf EacuteN 1102b 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24112 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198113 SPINELLI Priscilla Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaacutequea Opcit p 42114 Cf EacuteN 1139b 15-18 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101115 Noucircs eacute traduzido de vaacuterias maneiras nas traduccedilotildees portuguesas da Eacutetica a Nicocircmaco entendimento (E Bini 2013p 194) perspicaacutecia (M Zingano 2008 p 40) razatildeo intuitiva (P T Spinelli 2007 p137 e L Vallandro e GBornheim 1987 p 110) ldquointuicioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) e ldquointelligencerdquo (H Rackham 1996 p 156) 116 Em EacuteN I 1103a 5-10 satildeo citadas somente estas duas virtudes morais como forma de exemplo mas Aristoacutetelesdescreve outras virtudes no decorrer de sua obra
40
possui uma natureza calcada na epiacutesteme e no nous pois visa aquilo que natildeo sofre alteraccedilotildees em
nenhuma circunstacircncia Por seu lado a phronecircsis se caracteriza por visar a praacutexis ao lidar com as
diversas situaccedilotildees que mudam constantemente
As virtudes intelectuais podem ser adquiridas e apuradas pela instruccedilatildeo enquanto as
virtudes morais satildeo robustecidas por meio do haacutebito117 Visto que nascemos dotados com elas em
potecircncia para que alcancem sua plenitude torna-se imperioso a sua solidificaccedilatildeo por meio de um
permanente esforccedilo do homem Se as virtudes morais e intelectuais jaacute estivessem plenamente
desenvolvidas no nosso caraacuteter natildeo seria necessaacuterio aprimoraacute-las pela repeticcedilatildeo das mesmas Neste
sentido eacute necessaacuterio desenvolver as virtudes uma vez que natildeo satildeo desenvolvidas na natureza
humana como satildeo por exemplo as faculdades da visatildeo ou da audiccedilatildeo que se encontram tanto em
um estado de potecircncia quanto em estado de ato118
Pode-se afirmar que uma parcela da conquista da eudaimonia consiste em harmonizar
corretamente a razatildeo e o desejo para que sejam conduzidos ao mesmo objetivo A adequada
harmonia consiste na proeminecircncia da racionalidade sobre os desejos e paixotildees A virtude moral
consiste nesta condiccedilatildeo estaacutevel do indiviacuteduo resultante de uma escolha que se transforma em um
haacutebito por ser repetida inuacutemeras vezes ao longo do tempo fazendo com que exerccedila bem sua funccedilatildeo
Mas para ser operacionalizada eacute fundamental a atuaccedilatildeo da razatildeo para escolher um fim razoaacutevel ao
qual o indiviacuteduo possa seguir por meio de sua vontade
Na formaccedilatildeo moral do homem para que este adquira uma nobreza de conduta e alcance uma
vida feliz vimos a importacircncia das virtudes morais para controlar os desejos provenientes da
faculdade sensitiva A felicidade eacute obtida pela primazia do intelecto sobre os desejos Neste
contexto de construccedilatildeo da eudaimonia haacute um componente a ser considerado que eacute o prazer ou a
dor proveniente das accedilotildees humanas Este eacute o assunto a ser abordado no proacuteximo toacutepico
22 A educaccedilatildeo dos prazeres e a eudaimonia
Uma percepccedilatildeo aristoteacutelica bastante interessante eacute assinalar a importacircncia de um treino
constante como sendo essencial para o robustecimento das virtudes morais pelo indiviacuteduo frente aos
acontecimentos Afinal ningueacutem eacute capaz de arrogar para si proacuteprio ou mesmo ser verdadeiramente
elogiado como sendo algueacutem virtuoso se natildeo se habituou a praticar as virtudes ao longo do tempo e
enfrentar as circunstacircncias concretas da vida Em outras palavras pode-se dizer que uma virtude eacute
conquistada quando for provada em vaacuterios casos e durante um periacuteodo de tempo prolongado Por
117 CF EacuteN II 1103a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 27118 CF EacuteN II 1103a 30 Ibidem p 27
41
isso eacute imprescindiacutevel desde a mais tenra idade estabelecer uma paideacuteia (παιδεία)119voltada para a
praacutetica das virtudes conforme mostra Aristoacuteteles ao seguir a mesma linha de raciociacutenio de Platatildeo
sobre a importacircncia de uma boa educaccedilatildeo Esta boa educaccedilatildeo consiste em aprender a apreciar
aquilo que eacute desejaacutevel e rejeitar aquilo que eacute indesejaacutevel120
No que tange agrave educaccedilatildeo para orientar a pessoa a gostar daquilo que eacute desejaacutevel um dos
pontos fundamentais da filosofia moral aristoteacutelica eacute a questatildeo do prazer O fenocircmeno do prazer eacute
um tema corrente na tradiccedilatildeo filosoacutefica grega antiga sendo ele considerado uma das fontes acerca
da moralidade e conduccedilatildeo agrave uma vida feliz O pensamento eacutetico aristoteacutelico segue esta tradiccedilatildeo e
insere uma teoria do prazer uma vez que este eacute um dos elementos essenciais para a realizaccedilatildeo
humana O prazer eacute algo completamente inserido na vida humana a ponto de natildeo se concebecirc-la sem
a perspectiva do acompanhamento ou a ausecircncia dele Conforme assevera Aristoacuteteles ldquoAcresce que
o agradaacutevel e o doloroso cresceram conosco desde a nossa infacircncia e por isso eacute difiacutecil conter essas
paixotildees enraizadas como estatildeo em nossa vida E alguns mais e outros menos medimos nossas
proacuteprias accedilotildees pelo estalatildeo do prazer e da dorrdquo121 O filoacutesofo de Estagira cita que Eudoxo122
identificava o bem com o prazer pois observava que todos os seres racionais e irracionais tendiam
para esse sentimento123 Platatildeo tambeacutem se posiciona acerca do fenocircmeno do prazer no seu diaacutelogo
Filebo no qual o mestre de Aristoacuteteles argumenta que tanto o homem intemperante quanto o
temperante provam do prazer o intemperante com prazeres depravados o temperante com prazeres
mais elevados e o saacutebio tem prazer na sua praacutetica da sabedoria124 Posto que o fenocircmeno do prazer e
da dor satildeo intriacutensecos agrave natureza humana naturalmente tambeacutem satildeo inerentes agrave conduta humana e
este fato os torna fatores educativos para o ser humano A eudaimonia tambeacutem se traduz em uma
adequada escolha dos prazeres uma vez que o ser humano natildeo eacute somente razatildeo mas tambeacutem eacute
dotado de sentidos Por conseguinte uma orientaccedilatildeo adequada do ser humano consiste em levaacute-lo
ao deleite prazeroso das coisas nobres sendo fundamental um estiacutemulo para a praacutetica das virtudes
intelectuais e morais
As virtudes morais possuem como uma de suas caracteriacutesticas serem ligadas aos prazeres
ou agraves dores resultantes de nossos atos Assim prazer e dor tornam-se indicativos do caraacuteter virtuoso
ou natildeo virtuoso de uma pessoa Caso realize uma accedilatildeo virtuosa e esta traga sofrimento ao agente
este natildeo poderaacute ser tido como virtuoso Para ilustrar esta ideia tem-se o exemplo de um homem que
119 O termo paideacuteia eacute traduzido como educaccedilatildeo ensinamento instruccedilatildeo treinamento120 Cf EacuteN II 1104b 10-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29121 EacuteN II 1105a 1-5 Ibidem p 30122 Foi um disciacutepulo de Platatildeo123 Cf EacuteN X 1172a 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 174124 Cf Filebo 11d-12d PLATOacuteN Diaacutelogos VI Filebo Timeo Critias Traducciones Introducciones y Notas porMaria Angeles Duraacuten y Francisco List Madrid Gredos 1992 p 22-24
42
pratica a abstinecircncia dos prazeres do corpo para fins de adquirir a virtude da temperanccedila A pessoa eacute
tida como temperante se o esforccedilo da abstinecircncia lhe eacute prazeroso caso natildeo seja e ocasionar um
sofrimento este seraacute um homem destemperante ou seja que natildeo possui moderaccedilatildeo nas suas
accedilotildees125 A virtude moral refere-se em como saber lidar com os prazeres e dores para uma
apropriada formaccedilatildeo do caraacuteter pois o prazer pode induzir o indiviacuteduo a realizar accedilotildees vis e a dor
dificulta a realizar accedilotildees nobres126 O prazer eacute um fator indutor das accedilotildees humanas seja para o bem
ou para o mal porque o prazer eacute vinculado agrave natureza humana sendo objeto dos nossos desejos
Afinal espera-se alcanccedilar o prazer nas atividades que exercemos e natildeo que estas resultem em
tristezas ou dores as quais o ser humano tende a evitaacute-los Aristoacuteteles eacute enfaacutetico ao afirmar que na
educaccedilatildeo dos jovens o prazer e a dor encontram-se presentes sendo ldquoguiasrdquo dos caminhos a serem
seguidos Eacute de extrema importacircncia escolher bem e comprazer-se com as coisas certas aquelas que
se deve apreciar e se afastar das coisas inapropriadas que devem ser evitadas natildeo se permitindo o
deleite com aquilo que eacute peacuterfido Por isso esta escolha tem uma grande influecircncia na formaccedilatildeo de
uma pessoa virtuosa127
O homem eacute um ser racional Agrave luz deste fato nota-se como o desejo pode e deve ser
moldado agrave luz da razatildeo O desejo impele o indiviacuteduo a buscar aquilo que eacute mais prazeroso No dizer
de Otfried Houmlffe o prazer eacute um elemento integrante da felicidade mas uma vida de puro prazer natildeo
oferece um fundamento seguro para encontrar a eudaimonia128 Para Aristoacuteteles os prazeres do
intelecto superam os prazeres dos sentidos129 Por isso a parte racional deve orientar o desejo para
que tenha prazer no empenho necessaacuterio para adquirir e manter a virtude e obter a satisfaccedilatildeo com o
exerciacutecio das atividades do intelecto130
Essa eacute uma opccedilatildeo de fundamental importacircncia a ser feita e a qual ningueacutem pode ser furtar
consciente ou natildeo da existecircncia dessa escolha Uma vez que os desejos satildeo intriacutensecos agrave natureza
humana sendo uma parcela deles pertencentes a sua parte irracional eacute imperioso escolher quais
espeacutecies de prazeres seratildeo objeto de agrado os prazeres mais sublimes que resIbidem na vivecircncia
das virtudes morais e no intelecto aprimorado pelas virtudes intelectuais ou os prazeres mais
rasteiros que satisfazem apenas os apetites da alma humana
125 Neste ponto surge uma questatildeo interessante o virtuoso temperante pode frear sentimentos prazerosos parapermanecer no meio-termo No nosso entender a resposta eacute positiva O homem temperante para alcanccedilar o meio-termoe executar uma accedilatildeo virtuosa pode reprimir os sentimentos prazerosos principalmente se forem prazeres torpes Emesmo que sejam prazeres nobres o temperante pode escolher dominaacute-los caso natildeo o conduza a uma accedilatildeo virtuosa 126 Cf EacuteN II 1104b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29127 Cf EacuteN X 1172a 20-25 Ibidem p 179128 Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Op cit p 193129 EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186130 Cf EacuteN X 1177a 1- 27 e 1178a 1-8
43
Aristoacuteteles utiliza pessoas concretas para exemplificar e identificar quais prazeres satildeo os
melhores e por conseguinte mais aspiraacuteveis a todos os homens131 O paracircmetro dos prazeres eacute
fornecido pela proacutepria accedilatildeo das pessoas virtuosas e natildeo por aquelas que possuem uma deformaccedilatildeo
em seu caraacuteter moral As pessoas virtuosas satildeo a proacutepria concretizaccedilatildeo do que se constitui o criteacuterio
dos prazeres considerados bons e dignos Elas satildeo consideradas modelos por se deliciarem com
prazeres que satildeo frutos da parte racional do ser humano e tambeacutem por terem os desejos
controlados pelas virtudes morais Por isso estes indiviacuteduos elevam a patamares superiores a
conduta humana Portanto os prazeres que as pessoas virtuosas buscam e desfrutam isso eacute o que
devem ser procurados porque satildeo estes prazeres que tanto estimulam a praacutetica das virtudes quanto
resultam destas mesmas virtudes praticadas no dia-a-dia
As pessoas viciosas corrompidas moralmente natildeo podem ser tomadas como modelo de
uma vida feliz devido ao fato de optarem por buscar os prazeres torpes que satisfazem apenas os
sentidos proacuteprios da parte irracional esquecendo-se da satisfaccedilatildeo do intelecto da parte racional
Com isso afastam-se da racionalidade que eacute a parte mais ilustre e mais humana e aproximam-se de
um modo de vida mais animalesco pois como diz Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquo[] tais prazeres satildeo
muitos desejados pelas bestas mas natildeo o devem ser pelos homensrdquo132 A torpeza na conduta
fatalmente afasta o homem de uma vida virtuosa que eacute proacutepria da eudaimonia Logo na sordidez
encontra-se a infelicidade embora muitas vezes tenha a aparecircncia de uma vida feliz
O homem bom eacute o proacuteprio homem virtuoso Ele eacute o padratildeo de referecircncia acerca dos
prazeres que podem ser apreciados O que se afigura como prazeroso ao homem virtuoso pode ser
deduzido como um prazer correto e agradaacutevel sendo liacutecito o estiacutemulo para ser usufruiacutedo por outras
pessoas Um homem virtuoso natildeo se deliciaraacute com coisas ou accedilatildeo desonrosas Somente homens
pervertidos moralmente podem se comprazer com aquilo que eacute vergonhoso natildeo existindo
possibilidade de serem erigidos ao patamar de modelos de prazeres a serem vividos Aristoacuteteles eacute
enfaacutetico ao afirmar que os prazeres reconhecidamente ignoacutebeis natildeo devem ser apreciados como
prazeres sob nenhuma condiccedilatildeo pois satildeo indignos de homens com nobreza moral sendo apenas
131Cf EacuteN VI 1140b 10 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Aristoacuteteles tambeacutem aponta para os homensconsiderados prudentes para exemplificar a virtude da phronecircsis em atuaccedilatildeo e tentar demonstrar os criteacuterios utilizadospara uma accedilatildeo virtuosa O Estagirita cita o estadista Peacutericles e ldquohomens como elerdquo como exemplo de indiviacuteduos quepossuiacuteam a virtude da prudecircncia porque percebiam o que era bom para si mesmos e para os homens em geral Por issoeram considerados bons administradores de casas e de Estados No caso dos prazeres Aristoacuteteles tambeacutem aponta que oshomens virtuosos satildeo o modelo de quais espeacutecies de prazeres podem ser usufruiacutedos Satildeo os prazeres provenientes dasaccedilotildees virtuosas 132 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles TradTiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 p 38 A citaccedilatildeo em latim vem das Sententia Libri Ethicorumliber 10 lectio 4 n 3 ldquo[] Et similiter delectationes bestiales bestiis quIbidem sunt appetibiles non autemhominibusrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017 O Aquinate sintetiza a visatildeoaristoteacutelica referente a EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-15
44
apreciados por homens degenerados em seu caraacuteter Mas mesmo dentro da categoria dos prazeres
dignos e honrosos a questatildeo que surge eacute a acerca de quais destes prazeres satildeo mais adequados ao
ser humano Novamente eacute o homem dotado de virtudes que se torna o proacuteprio criteacuterio De acordo
com o Estagirita
Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado comosendo realmente talSe isto eacute correto como se afiacutegura ser e a virtude e o homembom como tais satildeo a medida de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os quelhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitarSe as coisas que ele acha enfadonhas parecem agradaacuteveis a outros natildeo haacute nada desurpreendente nisso pois os homens podem ser pervertidos e estragados de muitosmodos e tais coisas natildeo satildeo realmente agradaacuteveis mas soacute o satildeo para essaspessoas e outras nas mesmas condiccedilotildees Das que reconhecidamente satildeovergonhosas evidentemente natildeo se deveria dizer que satildeo prazeressalvo para umgosto pervertido133
O prazer (h9donh) natildeo eacute um bem em si mesmo natildeo eacute autossuficiente posto que esteja
sempre atrelado em alguma coisa boa ou maacute Por isso natildeo eacute o bem supremo pois variam conforme
as diversas espeacutecies de prazer aleacutem de serem alguns resultantes de boas obras e outras de obras
torpes Assim o prazer natildeo pode ser considerado universalmente bom nem como o uacutenico criteacuterio
de bem Como siacutentese desta premissa Satildeo Tomaacutes de Aquino aponta trecircs aspectos acerca dos
prazeres pelos quais Aristoacuteteles natildeo considera o prazer universalmente bom134 Primeiro o prazer
possui muitas espeacutecies e muitas vezes pode ser maleacutefico Este fato pode ser ilustrado citando a
diferenccedila entre um amigo e um adulador Com o amigo com o qual existe uma verdadeira amizade
o conviacutevio eacute pautado pelo bem que traz Em relaccedilatildeo ao adulador o conviacutevio tem por fundamento
somente o prazer Prontamente o amigo eacute louvado pelo bem que traz agrave amizade enquanto o
adulador eacute repreendido Segundo uma crianccedila concede uma maacutexima relevacircncia aos prazeres da
infacircncia e ningueacutem deseja continuar vivendo nesta etapa da vida mesmo que o crescimento e
amadurecimento signifiquem assumir as tristezas inerentes agrave vida adulta Terceiro existem
atividades que satildeo desejadas mas natildeo trazem nenhum tipo de prazer tais como o ato de recordar
adquirir conhecimento e possuir virtudes Estas atividades se concretizam sem necessariamente
terem um prazer como consequecircncia Neste sentido sendo as virtudes e o conhecimento
relacionados agrave eudaimonia Aristoacuteteles recomenda que mesmo que hipoteticamente natildeo houvesse
133 Cf EacuteN X 1176a 15-23 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186134 Cf Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 39 e Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 4 n 4 a8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017
45
nenhum prazer na praacutetica destas atividades elas deveriam continuar a serem escolhidas pelo bem
que carregam consigo135
Em siacutentese o prazer eacute como um ldquomotorrdquo que impele o indiviacuteduo a buscar o objeto
apropriado do desejo seja este um bom ou mau desejo Estes desejos geram prazeres considerados
nobres ou torpes O homem virtuoso para alcanccedilar a eudaimonia procura os prazeres originados
pelas accedilotildees virtuosas porque geram prazeres dignos
Aleacutem de ser uma fonte indutora das atividades humanas o prazer tambeacutem possui o papel de
aperfeiccediloar estas mesmas atividades Eacute esta funccedilatildeo de aperfeiccediloamento que seraacute estudada no
proacuteximo toacutepico
23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
Uma outra funccedilatildeo distintiva do prazer eacute o aperfeiccediloamento da atividade Esta relaccedilatildeo de
prazer e perfeiccedilatildeo se refere agrave dois pontos importantes que satildeo o aprimoramento da atividade e o
resultado da perfeiccedilatildeo atingida na accedilatildeo
Na concepccedilatildeo aristoteacutelica todas as pessoas buscam o prazer porque aspiram agrave vida136 Uma
vez que a vida eacute uma atividade cada indiviacuteduo exerce sua atividade sobre os objetos e com as
faculdades que mais lhe apraz o prazer inerente a essas accedilotildees estimula repetir continuamente esta
mesma accedilatildeo Por exemplo um muacutesico sente prazer na audiccedilatildeo e no estudo das melodias ou um
intelectual se deleita com o uso da razatildeo nas questotildees filosoacuteficas Por isso o prazer eacute um
complemento de uma atividade bem exercida137 Deste modo haacute um aprimoramento das accedilotildees
realizadas o que leva um aperfeiccediloamento da proacutepria vida pois esta conteacutem todas as atividades
Conforme descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
Dir-ser-ia que todos os homens desejam o prazer porque todos aspiram agrave vida Avida eacute uma atividade e cada um eacute ativo em relaccedilatildeo agraves coisas e com as faculdadesque mais ama por exemplo o muacutesico eacute ativo com o ouvido em referecircncia agravesmelodias o estudioso como o intelecto em referecircncia a questotildees teoacutericas e da
135 Usando o proacuteprio exemplo de Aristoacuteteles na EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-10 Devemos notar que determinadasatividades como a visatildeo a memoacuteria o conhecimento a posse das virtudes etc podem gerar prazer ou natildeo Mas devemser buscadas mesmo que gerem dor Na referida passagem da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apenas afirma que devemser escolhidas independentemente de serem prazerosas ou natildeo Em nosso entender estas atividades podem emalgumas ocasiotildees natildeo serem prazerosas Mas natildeo significam necessariamente que gerem dor por isso deve-se optarpor elas tal como preconizado pelo Estagirita 136 A vida de um ser humano conteacutem prazeres e dores Todos os indiviacuteduos procuram ter uma vida prazerosa o quesignifica maximizar as atividades que trazem prazer e diminuir aquelas que provocam dor Logo dizer que um homembusca agrave vida significa que ele procura exercer as atividades que trazem alegria para si para que sua vida seja feliz137 Uma questatildeo que pode advir eacute se necessariamente uma atividade bem feita gera prazer Na nossa visatildeo entendemosque sim Porque o prazer eacute intriacutenseco agrave atividade ou seja acompanha cada accedilatildeo realizada de modo correto Oindiviacuteduo tem satisfaccedilatildeo ao final da accedilatildeo corretamente realizada
46
mesma forma nos outros casos Ora o prazer completa as atividades e portanto avida que eles desejam Eacute muito justo pois que aspirem tambeacutem ao prazer vistoque para cada um este completa a vida que lhe eacute desejaacutevel Mas quanto a saber seescolhemos a vida com vistas no prazer ou o prazer com vistas na vida eacute umaquestatildeo que podemos deixar de parte por ora Com efeito os dois parecem estarintimamente ligados entre si e natildeo admitir separaccedilatildeo jaacute que sem atividade natildeosurge o prazer e cada atividade eacute completada pelo prazer que a acompanha 138
Para Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquoPortanto o prazer eacute a perfeiccedilatildeo da operaccedilatildeordquo139 Ou seja a
proacutepria atividade eacute completada pelo prazer O prazer em si depende da operacionalizaccedilatildeo da
atividade140 seja esta uma atividade atinente aos sentidos ou ao intelecto Mas pode-se dizer que
existe uma escala de prazeres pois os prazeres satildeo de diversos tipos e vinculados a diversas
atividades que tambeacutem podem ser subdividas em uma escala Logo uma atividade bem-feita eacute
prazerosa e uma atividade perfeita eacute prazerosiacutessima
Tatildeo diversas quanto agraves atividades tambeacutem satildeo os prazeres Existem prazeres vinculados
aos sentidos e outros vinculados ao intelecto sendo estes uacuteltimos considerados mais sublimes e
puros141 Ao existir uma variedade de atividades com diferentes prazeres haacute uma consequente
valoraccedilatildeo moral diversificada para cada prazer O criteacuterio adotado por Aristoacuteteles para a aplicaccedilatildeo
de um juiacutezo moral correto que possa identificar um prazer considerado moralmente bom ou mau eacute
o proacuteprio exemplo do homem bom142
No que tange agrave observaccedilatildeo aristoteacutelica acerca da ligaccedilatildeo entre as atividades realizadas e
os prazeres resultantes que trazem um aperfeiccediloamento da mesma accedilatildeo o adaacutegio popular que
afirma que ldquoa praacutetica leva agrave perfeiccedilatildeordquo resume bem neste quesito a posiccedilatildeo aristoteacutelica A
constacircncia nas virtudes morais conduz agrave excelecircncia do caraacuteter assim como a perseveranccedila nas
virtudes intelectuais acarretam uma maestria com o conhecimento tanto pelo aumento de
conhecimento quanto pelo manejo deste Isso traz ao homem virtuoso a alegria o prazer em duas
formas o primeiro de percorrer o caminho da virtude o segundo de alcanccedilar cada vez mais uma
nobreza de conduta que o faz ser um indiviacuteduo feliz
138 Cf EacuteN X 1175a 10-20 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184139 Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 51 Eacute interessante conferir esta liccedilatildeo na iacutentegra por issocoloco a citaccedilatildeo inteira em latim das Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 6 n 5 ldquoEt inter huiusmodi operationessensus et intellectus illa est delectabilissima quae est perfectissima Perfectissima autem operatio est quae est sensusvel intellectus bene dispositi in comparatione ad optimum eorum quae subiacent sensui vel intellectui Si igitur operatioperfecta est delectabilis perfectissima autem delectabilissima consequens est quod operatio inquantum est perfecta sitdelectabilis Delectatio ergo est operationis perfectiordquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017140 Embora existam prazeres sem atos como algumas deleitaccedilotildees141 Cf EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186142 Cf EacuteN X 1176b 25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 187
47
24 O homem virtuoso
O indiviacuteduo que alcanccedilou a excelecircncia moral eacute denominado na visatildeo grega antiga de
spoudaios (σπουδαῖος) Conforme Aristoacuteteles assinala as virtudes morais estatildeo estritamente ligadas
agrave prudecircncia porque os princiacutepios que balizam a accedilatildeo humana satildeo fornecidos pela virtude intelectual
da prudecircncia A prudecircncia confere o paracircmetro correto para as virtudes morais143 O homem
prudente (φρόνιμος) aponta a melhor escolha a ser seguida O spoudaios eacute o indiviacuteduo que possui as
melhores condiccedilotildees para emitir um julgamento prudente acerca de quais prazeres satildeo liacutecitos em
serem gozados ou a correta medida das virtudes em cada caso especiacutefico O spoudaios torna-se o
proacuteprio criteacuterio de um bom julgamento dos princiacutepios morais prazeres e desejos perante as
circunstacircncias Na compreensatildeo de Pierre Aubenque para Platatildeo o homem saacutebio fixa seu
paracircmetro na Ideia de Bem ou seja em uma ordem ou norma transcendente a ele proacuteprio
Aristoacuteteles ao desconsiderar a existecircncia de um Mundo das Formas ideais transfere o paracircmetro de
sabedoria e retidatildeo a serem observadas para o proacuteprio phronimos Para sermos homens de retidatildeo
moral natildeo devemos ter como paracircmetro a Ideia de Bem e sim termos como paracircmetro o proacuteprio
homem de bem No entender de Pierre Aubenque inicialmente a palavra σπουδαῖος significava um
indiviacuteduo que tinha ldquozelordquo em suas faccedilanhas possuiacutea um ardor no combate sendo esta noccedilatildeo
aplicada ao ideal arcaico do heroacutei grego Depois passou a significar somente uma atividade
realizada de modo crediacutevel O spoudaios por ser zeloso na sua conduta inspira confianccedila visto que
eacute digno e honrado em suas accedilotildees Aristoacuteteles teria recuperado este antigo ideal heroacuteico mas
transmutado no homem que possui uma qualidade em seu julgamento por ser valoroso
moralmente144 Nota-se como o homem prudente o phronimos que possui uma excelecircncia na
virtude intelectual da prudecircncia se coaduna com o homem possuidor de excelecircncia moral o
spoudaios145
A vida virtuosa eacute uma vida prazerosa O spoudaios eacute o modelo do que deve ser feito e isso
inclui os prazeres considerados nobres e provenientes da virtude porque sabe discerni-los e pesaacute-los
bem146 O bem verdadeiro e por consequecircncia o prazer verdadeiramente bom eacute posto em relaccedilatildeo a
este indiviacuteduo considerado valoroso O spoudaios ilumina as situaccedilotildees e distingue aquilo que eacute
143 Cf EacuteN X 1178a 15-18 Ibidem p 190144 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 77-78145 Pierre Aubenque aponta a traduccedilatildeo de outros comentadores de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo ao termo σπουδαῖος ParaTricot eacute oldquohomem virtuosordquo para Voilquin eacute o ldquohomem de bemrdquo para Gauthier eacute o ldquovirtuosordquo para Ross eacute o ldquo thegood manrdquo Aubenque prefere chamar de ldquovalorosordquo Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p78 Independente da melhor forma de traduzir o termo σπουδαῖος o nuacutecleo central do conceito identifica-se com umaexcelecircncia de virtudes morais nobreza de conduta retidatildeo moral etc sendo contraacuterio agrave devassidatildeo ou condutapermeada de viacutecios 146 Cf EacuteN I 1099a 22-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 18
48
apenas aparecircncia ou nefasto daquilo eacute que autecircntico e benfazejo em cada categoria de coisas Um
indiviacuteduo pode considerar boa alguma coisa a ser feita ou buscada sem que aquilo seja
verdadeiramente bom devido a uma falsa percepccedilatildeo do que realmente eacute o bem em cada coisa Isto
tambeacutem ocorre com os prazeres inerentes agraves coisas que fazemos ou desejamos A princiacutepio podem
parecer prazeres edificantes mas tirados seus veacuteus conduzem apenas agrave ruiacutena Por isso eacute
imprescindiacutevel saber escolher corretamente os prazeres considerados bons e se habituar a desejaacute-
los Esta perspectiva do indiviacuteduo valoroso moralmente como regra e medida eacute subentendida desde
o Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco e se torna mais clara ao longo desta mesma obra Aristoacuteteles
assevera claramente este papel de criteacuterio ao spoudaios ao afirmar que
Com efeito o homem bom (σπουδαῖος) aquilata toda a classe de coisas comacerto e em cada uma delas a verdade lhe aparece com clareza mas cadadisposiccedilatildeo de caraacuteter tem suas ideacuteias proacuteprias sobre o nobre e o agradaacutevel e amaior diferenccedila entre o bom e os outros consiste talvez em perceber a verdade emcada classe de coisas como quem eacute delas a norma e a medida Na maioria doscasos o engano deve-se ao prazer que parece bom se realmente secirc-lo e por issoescolhemos o agradaacutevel como um bem e evitamos a dor como um malrdquo147
Podemos afirmar que na linha de raciociacutenio aristoteacutelica eacute necessaacuterio ser bom para decidir
bem O ato de discernir sopesar as coisas com acerto eacute uma accedilatildeo caracteriacutestica de um julgamento
correto acerca das coisas A retidatildeo de julgamento eacute uma qualidade distintiva do phronimos Por
isso Aristoacuteteles atribui ao homem prudente o exerciacutecio de estabelecer o criteacuterio para o julgamento
de cada classe de coisas O spoudaios eacute um homem nobre de conduta por ser virtuoso moralmente
mas ser um indiviacuteduo valoroso natildeo significa automaticamente ser um indiviacuteduo com um bom
discernimento acerca das circunstacircncias e da melhor accedilatildeo a ser operacionalizada Ser um homem de
virtudes morais eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para ser um homem com a virtude intelectual da prudecircncia 148
Por exemplo um indiviacuteduo incontinente que busque somente prazeres corporais natildeo consegue
julgar corretamente Todo phronimos eacute um indiviacuteduo valoroso moralmente natildeo sendo possiacutevel
algueacutem ser prudente se natildeo tiver se habituado a praacutetica das virtudes morais Uma vez que
Aristoacuteteles adere a posiccedilatildeo de imanecircncia dos criteacuterios de julgamento das coisas ao rejeitar a
transcendecircncia do Mundo das Formas traccedilada na filosofia platocircnica a reta razatildeo passar a ser
fundamentada no proacuteprio phronimos O homem prudente personifica a recta ratio porque ele se
torna aquele que possui a habilidade de julgar
O phronimos julga bem porque conhece aquilo que julga Conforme Aristoacuteteles assevera na
Eacutetica a Nicocircmaco que apenas julga bem quem foi instruiacutedo naquele assunto e julga bem as coisas
147 EacuteN III 1113a 30-39 Ibidem p 47148 Cf EacuteN VI 1143b 15- 23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 112
49
em geral por possuir uma instruccedilatildeo geral acerca de diversas coisas149 Tambeacutem natildeo basta somente
ser instruiacutedo sobre qualquer assunto na sua dimensatildeo teoacuterica mas eacute necessaacuterio ter ldquoexperiecircncia de
vidardquo para saber julgar corretamente as coisas e suas circunstacircncias Esta junccedilatildeo entre o
conhecimento teoacuterico dos princiacutepios e como aplicaacute-los nas diversas situaccedilotildees proporciona que o
indiviacuteduo seja considerado prudente A necessidade da maturidade como um dos fatores
fundamentais para a prudecircncia eacute posta por Aristoacuteteles quando explica que jovens natildeo satildeo bons
ouvintes para as instruccedilotildees acerca da vida poliacutetica pois natildeo possuem vivecircncia suficiente dos fatos
da vida150 Normalmente eles satildeo dados a seguirem suas paixotildees o que gera uma imaturidade que
atrapalha a accedilatildeo correta Vale frisar que na perspectiva aristoteacutelica indiviacuteduos adultos que natildeo satildeo
considerados jovens tambeacutem podem ser imaturos porque a maturidade depende de uma escolha do
modo de vida151 Desta maneira a aquisiccedilatildeo da virtude da prudecircncia vem de uma escolha que
envolve uma conduta de vida pautada pela racionalidade pelas virtudes morais e pela educaccedilatildeo
para desejar os prazeres corretos
25 As virtudes morais como mediania
Eacute notaacutevel a didaacutetica que Aristoacuteteles usa para explicar alguns conceitos descritos na Eacutetica a
Nicocircmaco Eacute frequente a comparaccedilatildeo que estabelece com as artes para expressar sua filosofia
moral Por exemplo ao argumentar sobre o bem das coisas usa a arte da navegaccedilatildeo a medicina a
equitaccedilatildeo a arqueria dentre outras Ao falar das virtudes recorre agrave figura dos construtores e
muacutesicos Esse recurso comparativo tambeacutem eacute usado para explicar as virtudes morais e o conceito de
mesoacutetes (152 Ao descrever a ideia de mediania como fundamental para uma conduta
virtuosa o Estagirita mostra que um mestre de ofiacutecio para atingir a excelecircncia na feitura de um
objeto busca a mediania por meio da qual evita o exagero ou uma deficiecircncia Logo o meio-termo
preserva a obra e os extremos a destroem A analogia confere clareza ao argumento aristoteacutelico
Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo (e escolhendo-o ndash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamentea noacutes Se assim pois que cada arte realiza bem o seu trabalho ndash tendo diante dosolhos o meio-termo e julgando suas obras por esse padratildeo e por isso dizemosmuitas vezes que agraves boas obras de arte natildeo eacute possiacutevel tirar nem acrescentar nada
149 Cf EacuteN 1094b 27 Ibidem p 10150 Cf EacuteN 1095a 3-5 Ibidem p 10 A relaccedilatildeo entre prudecircncia e experiecircncia seraacute estudada com mais detalhes noCapiacutetulo III 151 Cf EacuteN 1095a 6-13 Ibidem p 10152 O termo mesoacutetes pode ser traduzido por mediania meio-termo termo meacutedio mediedade
50
subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelecircncia dessas obrasenquanto o meio-termo a preserva e para este como dissemos se voltam osartistas no seu trabalho - e se ademais disso a virtude eacute mais exata e melhor quequalquer arte como tambeacutem o eacute a natureza segue-se que a virtude deve ter oatributo de visar ao meio-termo Refiro-me agrave virtude moral pois eacute ela que dizrespeito agraves paixotildees e accedilotildees nas quais existe excesso carecircncia e meio-termo153
O artesatildeo visa a mediania para realizar uma obra-prima Nesta nada eacute ausente tampouco eacute
possiacutevel acrescentar algo A excelecircncia da obra consiste na medida correta De modo anaacutelogo a
virtude moral se encontra na mediania O indiviacuteduo com virtudes morais eacute aquele que sabe constatar
nas situaccedilotildees qual eacute a proporccedilatildeo certa de seus afetos e accedilotildees para construir a si proacuteprio como ldquoobrardquo
de sua vida e alcanccedilar a eudaimonia
A virtude moral eacute caracterizada pela ideia de medianiaAmesoacutetes eacute o meio-termo entre
dois extremos de conduta Eacute o que nos mostra o Estagirita ao afirmar que ldquoPelas mesmas razotildees o
excesso e a falta satildeo caracteriacutesticos do viacutecio e a mediania da virtude pois os homens satildeo bons de
um modo soacute e maus de muitos modosrdquo154 Estes extremos satildeo considerados como viacutecios por
Aristoacuteteles Uma conduta virtuosa consiste em agir entre estes dois extremos Quais satildeo estas duas
formas de accedilatildeo ou emoccedilotildees que devem ser evitadas Satildeo dois tipos de viacutecios que denotam um
excesso ou uma carecircncia no sentir e no agir Deste modo a virtude eacute a proporccedilatildeo correta que evita
que o indiviacuteduo incorra em condutas que satildeo viciosas
A mediania natildeo deve ser entendida como um caacutelculo matemaacutetico exato e rigoroso Na
aritmeacutetica entre os nuacutemeros zero e dez a metade deste conjunto de numeraccedilatildeo eacute cinco Este
resultado eacute sempre o mesmo natildeo existe uma dependecircncia das situaccedilotildees para que isto ocorra Mas
esta exatidatildeo numeacuterica natildeo se aplica agrave conduta humana visto que a mediania deve ser observada
em relaccedilatildeo a noacutes examinando as situaccedilotildees pertinentes nas quais estamos inseridos Um exemplo
que ilustra o meio-termo eacute a alimentaccedilatildeo necessaacuteria de um atleta em comparaccedilatildeo a uma pessoa
sedentaacuteria que permanece o dia inteiro em um escritoacuterio O atleta necessita de uma alimentaccedilatildeo
mais rica em nutrientes e em quantidade maior enquanto o indiviacuteduo sedentaacuterio natildeo precisa de uma
nutriccedilatildeo diferenciada Ambos devem ter a alimentaccedilatildeo adequada agraves suas necessidades para que
possam cumprir sua funccedilatildeo e se manterem saudaacuteveis O mesmo ocorre com o exerciacutecio fiacutesico Por
isso o meio-termo preserva a sauacutede do corpo pois esta pode ser destruiacuteda tanto pelo excesso de
exerciacutecios alimentaccedilatildeo e bebida quanto pela sua total ausecircncia
153 EacuteN II 1106b 5-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32154 Cf EacuteN II 1106b 34-35 Ibidem p 33 Aleacutem da traduccedilatildeo utilizada neste trecho ldquopois os homens satildeo bons de ummodo soacute e maus de muitos modosrdquo feita por L Vallandro e G Bornheim 1987 indicamos a traduccedilatildeo feita por EdsonBini (2013 p 77) referente ao mesmo trecho ldquoSimples eacute a bondade muacuteltipla a maldaderdquo E a traduccedilatildeo realizada porMarco Zingano (2008 p 51) ldquoBravos pois de um soacute modo mas maus de muitos modosrdquo
51
No campo das virtudes morais esta mesma ideia de evitar o excesso ou carecircncia eacute aplicada
O indiviacuteduo que foge diante de quaisquer perigos ou natildeo enfrenta os desafios transforma-se em um
covarde Mas ao enfrentar todas as situaccedilotildees sem nenhum temor torna-se um temeraacuterio A coragem
consiste em natildeo ser um covarde nem ser um afoito que natildeo calcula os riscos Da mesma forma o
homem que cede a todos os prazeres natildeo praticando a temperanccedila assume a postura de um
libertino Entretanto se escolhe natildeo usufruir de nenhum tipo de prazer se converte em uma pessoa
insensiacutevel A temperanccedila estaacute na moderaccedilatildeo dos prazeres Tal como a sauacutede eacute adquirida e se
manteacutem pelo haacutebito de uma boa alimentaccedilatildeo e exerciacutecios fiacutesicos as virtudes satildeo adquiridas por
meio de uma boa praacutetica habitual Tornamo-nos temperantes evitando os extremos o que nos
capacita a sermos moderados O mesmo ocorre com a coragem ao confrontar aquilo que nos causa
medo nos tornamos corajosos Portanto as virtudes satildeo preservadas pela mediania mas satildeo
extinguidas pelo exagero ou pela deficiecircncia que impedem a execuccedilatildeo de uma accedilatildeo virtuosa
Eacute importante ressaltar que a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que proporciona um
proceder correto da conduta do indiviacuteduo A virtude diz respeito agraves paixotildees e as accedilotildees Em relaccedilatildeo
aos afetos significa que as paixotildees possam ser experimentadas da forma correta155 As paixotildees satildeo
corretamente vivenciadas quando atendem os requisitos de serem experimentadas no momento
oportuno quando se referem agraves pessoas certas visa o propoacutesito certo pelo motivo certo e da
maneira correta156 Os mesmos requisitos descritos acerca das emoccedilotildees satildeo aplicados agraves accedilotildees do
indiviacuteduo Estas tambeacutem devem ser realizadas do modo certo para serem consideradas virtuosas157
Satildeo as virtudes morais que permitem que o indiviacuteduo possa adquirir a excelecircncia ao lidar com as
paixotildees e consequentemente com as accedilotildees Diante dessas condiccedilotildees relacionadas tanto agraves paixotildees
quanto agraves accedilotildees o Estagirita assevera que eacute um desafio ser um homem bom porque eacute faacutecil errar de
muitos modos enquanto a conduta certa possui somente um uacutenico modo de agir158
Todas as accedilotildees e paixotildees possuem um meio-termo Aristoacuteteles afirma que determinadas
condutas natildeo satildeo passiacuteveis de aplicaccedilatildeo do conceito de mesoacutetes devido ao fato que estas satildeo maacutes
por si proacuteprias Natildeo satildeo os excessos ou as carecircncias que transformam estas condutas em accedilotildees ou
paixotildees agrave serem evitadas mas as suas proacuteprias essecircncias satildeo maldosas O Estagirita elenca alguns
exemplos referentes aos afetos como a malevolecircncia o despudor a inveja quanto agraves accedilotildees cita o
adulteacuterio o furto e o homiciacutedio Outro argumento exposto por Aristoacuteteles para natildeo aplicar a ideia de
mediania nas condutas mencionadas eacute que seria uma insensatez pensar a existecircncia de um meio-
termo em algo que por si mesmo jaacute eacute um excesso ou uma carecircncia Natildeo pode haver a ldquodemasiardquo de
155 Cf EacuteN II 1106b 15-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32-33156 Cf EacuteN II 1106b 20-24 Ibidem p 33157 Cf EacuteN II 1106b 26-29 Ibidem p 33158 Cf EacuteN II 1106b 35 Ibidem p 33
52
um excesso ou a ldquocarecircnciardquo de uma insuficiecircncia cerca das maacutes condutas descritas outro
exemplo que demonstra a clareza da ideia consiste no fato de que natildeo eacute possiacutevel existir uma
mediania quando as proacuteprias essecircncias das accedilotildees ou paixotildees satildeo perversas A tiacutetulo de exemplo eacute
absurdo imaginar que um indiviacuteduo que comete adulteacuterio com a frequecircncia de ser ldquomeramenterdquo
uma vez por ano durante um evento determinado com uma pessoa considerada bondosa e com a
duraccedilatildeo do encontro por apenas alguns minutos pode estar justificada moralmente Natildeo eacute
moderaccedilatildeo deste tipo de conduta que a faz ser boa ela sempre seraacute perniciosa A mesma ilustraccedilatildeo
pode ser aplicada agraves demais accedilotildees maacutes Logo de qualquer forma que estas accedilotildees sejam cometidas
estatildeo sempre erradas conforme nos mostra Aristoacuteteles
Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes quejaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito () o despudor() a inveja (θόνος) e no campo das accedilotildees o adulteacuterio (μοιχεία) ofurto (κλοπή) o assassiacutenio () Todas essas coisas e outras semelhantesimplicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso oudeficiecircncia Todas essas coisas e outas semelhantes implicam nos proacuteprios nomesque satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais podehaver retidatildeo mas unicamente o erro E no que se refere a essas coisas tampoucoa bondade ou maldade dependem de cometer adulteacuterio com a mulher apropriadana ocasiatildeo e da maneira convenientes mas fazer simplesmente qualquer delas eacute ummalIgualmente absurdo seria buscar um meio-termo (um excesso e umafalta em atos injustos covardes ou libidinosos porque assim haveria um meio-termo do excesso e da carecircncia um excesso do excesso e uma carecircncia da carecircnciaMas do mesmo modo que natildeo existe excesso nem carecircncia de temperanccedila ecoragem pois o que eacute intermediaacuterio tambeacutem eacute noutro sentido um extremotambeacutem das accedilotildees que mencionamos natildeo haacute meio-termo nem excesso nem faltaporque de qualquer forma que sejam praticadas satildeo maacutes Em suma do excesso eda falta natildeo haacute um meio-termo como tambeacutem natildeo haacute excesso ou falta de meio-termo159
Nas diversas situaccedilotildees que o homem se depara Aristoacuteteles descreve que um dos
aspectos160que deve ser observado para que a virtude moral possa atuar eacute a noccedilatildeo de
ldquoquantidaderdquo161 Lidar com os afetos significa experimentaacute-los na proporccedilatildeo correta dentro da
situaccedilatildeo enfrentada pelo indiviacuteduo162 Neste sentido uma observaccedilatildeo menos cuidadosa das
caracteriacutesticas da virtude pode levar agrave interpretaccedilatildeo equivocada que a mediania consistiria somente
em ter sentimentos moderados de uma forma inflexiacutevel sem atentar para os demais requisitos Para
159 EacuteN II 1107a 10-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33160 Cf EacuteN II 1106b 20-24 ARISTOacuteTELES Ibidem p 33 Outros elementos satildeo a ocasiatildeo apropriada os objetosapropriados as pessoas apropriadas o motivo correto e a maneira conveniente 161 A ldquoquantidaderdquo pode ser entendida como intensidade das emoccedilotildees162 Cf EacuteN II 1106b 18-19 Ibidem p 33
53
exemplificar esta perspectiva imaginemos o caso de um indiviacuteduo que seja viacutetima de um assalto a
ldquomatildeo armadardquo Ele deve sentir brandamente raiva do meliante natildeo se exaltando diante da
ocorrecircncia Outro exemplo seria a pessoa que natildeo se alegra nos eventos prazerosos Portanto a
virtude como accedilatildeo e paixatildeo corretas seria baseada no aspecto quantitativo de afeto
Esta interpretaccedilatildeo acima descrita natildeo condiz com o argumento aristoteacutelico acerca da
virtude moral163 Primeiro porque desconsidera os outros aspectos que devem ser observados pelo
indiviacuteduo para que a accedilatildeo possa ser tido como moralmente virtuosa Estes aspectos satildeo o tipo de
pessoa qual o momento em que ocorreu a accedilatildeo se o motivo foi correto ou errocircneo se a maneira de
agir foi adequada ou natildeo Esta interpretaccedilatildeo equivocada determina a ldquoquantidade meacutediardquo de afetos
que o indiviacuteduo deve vivenciar independente de qual seja as circunstacircncias O problema estaacute no
fato que esta vivecircncia se baseia em pressupostos abstratos Segundo porque a avaliaccedilatildeo das paixotildees
e accedilotildees eacute realizada a partir das circunstacircncias concretas nas quais o indiviacuteduo estaacute inserido
Terceiro a virtude moral se encontra no campo da razatildeo praacutetica natildeo eacute possiacutevel estabelecer um
comportamento que tenha uma ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo dotada de uma precisatildeo matematicamente
exata e imutaacutevel164 Na visatildeo aristoteacutelica o exame correto da conduta visa agraves particularidades de
cada situaccedilatildeo e evita qualquer abstraccedilatildeo relacionada as emoccedilotildees A ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo deve
ser adequada em cada situaccedilatildeo enfrentada A anaacutelise se o homem teve ou natildeo os afetos apropriados
deve considerar quem eacute a pessoa seus motivos o que estava ocorrendo naquele contexto etc
Portanto o aspecto quantitativo natildeo deve ser dispensado totalmente no exame da virtude visto que
ele tambeacutem compotildeem a accedilatildeo correta mas deve ser observado juntamente com os demais aspectos
relacionadas agrave accedilatildeo pautada pela virtude moral
Eacute importante ficar claro que o indiviacuteduo que busca atingir a mediania e por consequecircncia
uma accedilatildeo virtuosa precisa atentar para todos os aspectos envolvidos na virtude moral intensidade
correta dos afetos momento oportuno a pessoa visada o propoacutesito a maneira adequada de agir
Com frequecircncia erra-se em um requisito ou outro o que ocasiona um erro ou acerto parcial na
conduta Entretanto o equiacutevoco cometido em todos os aspectos acarreta uma accedilatildeo viciosa e por
isso uma maacute conduta Uma accedilatildeo virtuosa que prima pela excelecircncia cumpre todos as condiccedilotildees da
virtude moral Contudo Aristoacuteteles adverte que todos estes requisitos necessitam estar em
consonacircncia com a reta razatildeo165
Ao orientar a mediania a reta razatildeo implica que cada situaccedilatildeo necessita de uma accedilatildeo
apropriada O homem virtuoso pode agir de uma maneira ou de outra conforme a necessidade de
cada ocasiatildeo mas sempre com a finalidade de que sua accedilatildeo seja moralmente virtuosa Citamos um
163 Cf EacuteN II 1104b 20-29 Ibidem p 29164 Cf EacuteN II 1104a 3-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 28165 Cf EacuteN II 1103b 33-35 Ibidem p 28
54
exemplo para clarificar esta ideia em uma circunstacircncia ldquoxrdquo eacute imperioso que tenha muita ira e que
aja de acordo com este afeto Na circunstacircncia ldquoyrdquo apenas eacute necessaacuteria uma ira branda para que a
melhor accedilatildeo se realize Nota-se que a mediania que estaacute em concordacircncia com a reta razatildeo
estabelece que a accedilatildeo virtuosa eacute aquela que se adequa agrave situaccedilatildeo na qual o indiviacuteduo estaacute inserido
No entender de Martin Rhonheimer o meio-termo da virtude eacute o melhor e o maacuteximo que se deve
fazer em cada ocasiatildeo e isso eacute o bem determinado pela razatildeo166 As paixotildees e as accedilotildees satildeo avaliadas
agrave luz da racionalidade Eacute a razatildeo que examina se houve uma demasia ou uma insuficiecircncia E quem
define da melhor forma possiacutevel a reta razatildeo eacute a pessoa dotada de sabedoria praacutetica ou seja o
homem prudente (φρόνιμος) Por isso a virtude moral como mediania entre duas accedilotildees ruins estaacute
intimamente conectada agrave prudecircncia como mostra Aristoacuteteles
A virtude (ἀρετή) eacute pois uma disposiccedilatildeo (ἕξις) de caraacuteter relacionada com aescolha ( e consistente numa mediania ( isto eacute a medianiarelativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional proacuteprio do homemdotado de sabedoria praacutetica (φρόνιμος) E eacute um meio-termo (entre doisviacutecios ( um por excesso ( e outro por falta ( pois queenquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente notocante agraves accedilotildees ( e paixotildees ( a virtude encontra e escolhe omeio-termo E assim no que toca agrave sua substacircncia (ou0sian) e agrave definiccedilatildeo (l gonoacutej )que lhe estabelece a essecircncia (e0stin) a virtude eacute uma mediania com referecircncia aosumo bem ( e ao mais justo eacute poreacutem um extremo (167
Estabelecer a mesoacutetes em uma situaccedilatildeo concreta natildeo eacute uma tarefa faacutecil uma vez que eacute
imprescindiacutevel atentar para vaacuterios aspectos relacionados agrave virtude moral168 Diante deste fato
Aristoacuteteles propotildee trecircs criteacuterios que auxiliam na obtenccedilatildeo da mediania O primeiro eacute evitar o
extremo que mais se afasta do meio-termo Ao considerar a existecircncia de duas accedilotildees extremadas
(viacutecios) normalmente uma delas eacute mais grave e a outra menos Devemos escolher o menor dos
166 Cf RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda edicioacutenTrad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007 p 212 A obra original foi escrita na liacutengua alematildecom o tiacutetulo Die Perspecktive der Moral Grundlagen der philosphischen Ethik167 EacuteN II 1107a 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33 Uma observaccedilatildeo importante eacute sobre a traduccedilatildeo dotermo pela palavra ldquoextremordquo escolhida pelos tradutores Leonel Vallandro e Gerd Bornheim cuja obrausamos como base nesta pesquisa O uso do termo ldquoextremordquo pode ser confundido com o viacutecio pois este eacute uma condutaextremada E natildeo com algo que eacute excelente Acreditamos que o conceito seria mais compreensiacutevel nocontexto desta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco se fossem usados alguns termos como ldquoaacutepicerdquo ldquoelevadordquo ldquoaugerdquoPorque a virtude moral eacute a postura de excelecircncia que o indiviacuteduo possa ter ela permite atingir o bem humano Nestalinha de raciociacutenio Marco Zingano transcreve este trecho do seguinte modo ldquoA virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo deescolher por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo isto eacute comoa delimitaria o prudente Eacute uma mediedade entre dois males o mal por excesso e o mal por falta Ainda pelo fato deas disposiccedilotildees faltarem umas outras excederem no que se deve tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude descobree toma o meio-termo Por isso por essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlididade a virtude eacute uma mediedade massegundo o melhor e o bem eacute um aacutepicerdquo ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado davirtude moral Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008 p 51168 Cf EacuteN II 1109a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37
55
extremos169 O segundo eacute conhecer quais erros somos mais propensos a cometer Isso pode ser
reconhecido pelo prazer ou dor que experimentamos ao cometecirc-los Apoacutes esta observaccedilatildeo de
tendecircncias que atraem ao erro eacute necessaacuterio caminhar na direccedilatildeo oposta para nos aproximar da
mediania170 O terceiro eacute ter uma atitude de cautela diante das coisas prazerosas porque estas
podem ser enganosas171 Deste modo o indiviacuteduo que observar estas precauccedilotildees pode atingir o
meio-termo e ser virtuoso nas circunstacircncias nas quais estaacute envolvido
Conforme exposto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter referente agraves escolhas que o
indiviacuteduo realiza A escolha correta estaacute na mediania Esta consiste em uma proporccedilatildeo correta de
paixotildees e accedilotildees entre dois extremos que satildeo considerados como viacutecios de conduta Um destes viacutecios
eacute caracterizado pela demasia e o outro pela insuficiente A percepccedilatildeo deste termo meacutedio eacute
delimitada pela reta razatildeo que atua nas circunstacircncias concretas A recta ratio eacute o proacuteprio homem
prudente Ele eacute quem deteacutem o melhor juiacutezo acerca das situaccedilotildees e realiza as melhores opccedilotildees eacute o
homem que possui a virtude intelectual da prudecircncia Portanto adentraremos na anaacutelise da
phronecircsis visto que haacute uma relaccedilatildeo desta com as virtudes morais e por ser importantiacutessima para a
obtenccedilatildeo da eudaimonia
169 Cf EacuteN II 1109a 30 Ibidem p 37170 Cf EacuteN II 1109a 35-1109b 5-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37171 Cf EacuteN II 1109b 8-10 Ibidem p 37
56
CAPIacuteTULO III
A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICO
Neste capiacutetulo examinamos o conceito de prudecircncia Com este intento estudamos a
diferenccedila entre o saber teoacuterico o saber poieacutetico e o saber praacutetico A prudecircncia eacute uma virtude
intelectual aplicada agraves coisas contingentes Ela eacute a excelecircncia do ato de decidir e de como dirigir a
proacutepria vida Portanto o homem prudente eacute aquele que sabe decidir bem
Para decidir da melhor maneira possiacutevel o phronimos sabe como deliberar bem e escolher
bem Neste sentido eacute necessaacuterio examinar no que consiste a deliberaccedilatildeo (bouleusij) e a escolha
(proairesij) O ato de deliberar e o ato de escolher satildeo aperfeiccediloados pela prudecircncia Tambeacutem
analisamos o que eacute a reta razatildeo (o0rqoj logoj) e sua funccedilatildeo para que uma accedilatildeo seja julgada
moralmente virtuosa Outro fator a ser examinado devido a sua importacircncia para o
desenvolvimento da virtude da prudecircncia eacute o fenocircmeno da experiecircncia (e0mpeiria) pois a
phronecircsis somente pode aparecer com o transcorrer do tempo
Ademais analisamos as partes integrantes da virtude da prudecircncia Satildeo as denominadas trecircs
virtudes intelectuais menores a boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) a inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo
(gnwmn) Por fim estabelecemos a relaccedilatildeo de como a phronecircsis contribui para que o homem seja
feliz
57
31 Linhas gerais acerca da prudecircncia
No decorrer da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles trata no livro I sobre a eudaimonia como fim
uacuteltimo do homem e no que consiste a felicidade humana Esta eacute conceituada como uma atividade
conforme a virtude Para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio a praacutetica das virtudes morais A definiccedilatildeo de
virtude moral eacute a de ser uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel quase permanente e adquirida que se
caracteriza pelo domiacutenio das paixotildees Este controle racional das paixotildees impele o homem a escolher
bem qual accedilatildeo a realizar pois o auxilia a alcanccedilar a mediania necessaacuteria entre dois viacutecios para que
seja uma accedilatildeo virtuosa defronte as circunstacircncias O paracircmetro deste termo meacutedio eacute percebido e
consequentemente fornecido pelo homem prudente que se orienta pela reta razatildeo
O Estagirita analisa de modo mais detalhado o papel do intelecto para a consecuccedilatildeo de uma
accedilatildeo moral virtuosa no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco Eacute nesta parte da obra que eacute estudada de modo
mais especiacutefico a virtude intelectual da prudecircncia Por isso neste toacutepico eacute analisado em que
constitui esta virtude e suas principais caracteriacutesticas
Para uma melhor compreensatildeo da phronecircsis faccedilamos uma breve retomada da divisatildeo da
alma examinada anteriormente no capiacutetulo II As virtudes da alma satildeo referentes agraves faculdades
sensitiva e intelectiva Em relaccedilatildeo agrave primeira as virtudes morais (eacuteticas) moldam os desejos agrave luz da
razatildeo orientando-os para o bem Na segunda as virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) servem para
atingir a verdade As virtudes satildeo estados de excelecircncia vinculadas agraves funccedilotildees desempenhadas
Conforme escreve Aristoacuteteles ldquo[hellip] a obra (e2rgon) de ambas as partes intelectuais eacute a verdade
Logo as virtudes de ambas seratildeo aquelas disposiccedilotildees (e3ceij) segundo as quais cada uma delas
alcanccedilaraacute a verdade (a0lhqeuampsei) em sumo graurdquo172
Na faculdade intelectiva existem duas partes racionais referentes a dois tipos de raciociacutenios
ou conhecimentos Estes satildeo diferentes devido ao fato que visam realidades distintas com
caracteriacutesticas proacuteprias em cada uma O primeiro eacute o conhecimento cientiacutefico o qual objetiva
estudar agraves coisas que possuem causas imutaacuteveis por isso satildeo invariaacuteveis Esta parte do intelecto
tambeacutem eacute chamada de razatildeo teoacuterica que resulta na sabedoria contemplativa O segundo eacute
conhecimento calculativo ou deliberativo que analisa agraves coisas mutaacuteveis que variam com o tempo e
as circunstacircncias173 Este conhecimento visa orientar agrave accedilatildeo humana E esta pode ser feita de um
modo ou de outro Uma vez que lida com a praacutexis eacute chamada de razatildeo praacutetica ou sabedoria praacutetica
Neste sentido comeccedila-se a delinear o que seja a virtude da prudecircncia Ela eacute a proacutepria razatildeo praacutetica
que atua em um patamar de excelecircncia Conforme nos aponta Aristoacuteteles
172 EacuteN VI 1139b 12-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102173 Cf EacuteN VI 1139a 5-10 Ibidem p 101
58
Dividimos as virtudes da alma (yuxh~~j a0retaj) dizendo que algumas satildeo virtudesdo caraacuteter e outras do intelecto [hellip] Dissemos anteriormente que esta [alma] temduas partes a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeoFaccedilamos uma distinccedilatildeo simples no interior da primeira admitindo que sejam duasas partes que conceberam um princiacutepio racional uma pela qual contemplamos ascoisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamosas coisas variaacuteveis porque quando dois objetos diferem e espeacutecie as partes daalma que correspondem a cada um deles tambeacutem diferem em espeacutecie visto ser poruma certa semelhanccedila e afinidade com os seus objetos que elas os conhecemChamemos cientiacutefica a uma dessas partes e calculativas agrave outra pois o mesmo satildeodeliberar (bouleuestai) e calcular (logizesqai) mas ningueacutem delibera sobre oinvariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe umprinciacutepio racional Devemos assim investigar qual seja o melhor estado de cadauma dessas duas partes pois nele reside a virtude de cada uma174
A virtude da prudecircncia eacute diferente da ciecircncia (e0pisthampmh) O conhecimento cientiacutefico possui
como objeto de estudo aquilo que existe necessariamente Eacute um objeto eterno Por isso nunca se
altera natildeo perece nem eacute nascido ou criado Devido agraves qualidades mencionadas as coisas
invariaacuteveis podem ser consideradas como fundamentos seguros para prover um conhecimento
indubitaacutevel Este eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo podendo ser transmitido por meio da instruccedilatildeo A
ciecircncia visa o conhecimento dos universais Isto permite que haja um convencimento baseado
nestes primeiros princiacutepios Deste modo adquirimos um conhecimento seguro que permite alcanccedilar
a verdade quando se trata de uma realidade constante e perene Por isso a ciecircncia eacute uma espeacutecie de
saber diferente da prudecircncia Acerca do conhecimento cientiacutefico Aristoacuteteles nos diz que
Todos noacutes supomos que aquilo que sabemos natildeo eacute capaz de ser de outra forma[hellip]Por conseguinte o objeto de conhecimento cientiacutefico existe necessariamentedonde se segue que eacute eterno pois todas as coisas que existem por necessidade nosentido absoluto do termo satildeo eternas e as coisas eternas satildeo ingecircnitas eimpereciacuteveis Por outro lado julga-se que toda a ciecircncia pode ser ensinada e seuobjeto aprendido [hellip] Em suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nostorna capazes de demonstrar e possui as outras caracteriacutesticas limitativas queespecificamos nos Analiacuteticos pois eacute quando um homem tem certa espeacutecie deconvicccedilatildeo aleacutem de conhecer os pontos de partida que possui conhecimentocientiacutefico E se estes natildeo lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusatildeo suaciecircncia seraacute puramente acidental Com isto damos por terminada nossa exposiccedilatildeodo conhecimento cientiacutefico175
A virtude da prudecircncia tambeacutem eacute diferente da arte (texnh) Aristoacuteteles argumenta que no
mundo das coisas possiacuteveis de alteraccedilatildeo existe uma diferenccedila entre aquelas fabricadas e as accedilotildees
174 EacuteN VI 1139a 1-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101175 EacuteN VI 1139b 18-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103
59
realizadas A arte eacute a capacidade de produzir um objeto por meio de um raciociacutenio correto176 A
coisa criada passa a existir somente apoacutes a fabricaccedilatildeo humana Esta fabricaccedilatildeo varia conforme o
utensiacutelio a ser produzido uma vez que natildeo eacute algo necessaacuterio nem eacute natural a sua existecircncia pois
pode variar de acordo com as situaccedilotildees A arte como a prudecircncia tambeacutem eacute produzido pelo
intelecto e ambas versam acerca das coisas variaacuteveis A arte e a prudecircncia tratam do contingencial
ou seja do que pode ser ou natildeo ser de uma maneira ou de outra conforme eacute requerido pelas
circunstacircncias Mas as duas formas do intelecto natildeo se confundem porque a razatildeo poieacutetica trata da
produccedilatildeo de utensiacutelios em geral e a razatildeo praacutetica atua sobre as accedilotildees humanas Logo estes dois
tipos de raciociacutenios satildeo distintos entre si porque miram em realidades diacutespares que possuem
caracteriacutesticas proacuteprias
O tipo de razatildeo usada para fabricar (poihsij) natildeo eacute o mesmo quando o objetivo eacute agir
(pra=cij Os dois modos de operaccedilatildeo da racionalidade satildeo baseados em um modo correto de
raciocinar para atingirem suas finalidades Mas o que significa este raciociacutenio verdadeiro no caso do
ato de produzir O proacuteprio Aristoacuteteles responde claramente a esta pergunta
Na classe do variaacutevel incluem-se tanto coisas produzidas como coisas praticadasHaacute uma diferenccedila entre produzir e agir (poihsij kai pra=cij)[hellip] de sorte que acapacidade raciocinada de agir (meta logou e3cij prarktikh) difere dacapacidade raciocinada de produzir (meta logou poihtikh=j) Daiacute tambeacutem o natildeose incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir Oracomo a arquitetura eacute uma arte sendo essencialmente uma capacidade raciocinadade produzir e nem existe arte alguma que natildeo seja uma capacidade desta espeacutecienem capacidade desta espeacutecie que natildeo seja uma arte segue-se que a arte eacute idecircnticaa uma capacidade de produzir que envolve o reto raciociacutenio Toda arte visa agravegeraccedilatildeo e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir algumacoisa que tanto pode ser como natildeo ser e cuja origem estaacute no que produz e natildeo noque eacute produzido Com efeito a arte natildeo se ocupa nem com as coisas que satildeo ou quese gerem por necessidade nem com as que o fazem de acordo com a natureza (poisessas tecircm sua origem e si mesmas) Diferindo pois o produzir e o agir a arte deveser uma questatildeo de produzir e natildeo de agir [hellip] Logo como jaacute dissemos a arte eacuteuma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacutenio e acarecircncia de arte pelo contraacuterio eacute tal disposiccedilatildeo acompanhada de falso raciociacutenioE ambas dizem respeito agraves coisas que podem ser diferentemente177
176 Cf EacuteN VI 1140a 10 Ibidem p 103 177 EacuteN VI 1140a 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 Em relaccedilatildeo agrave frase traduzida porVallandro e Bornheim na citada passagem ldquoDaiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacuteproduzir nem produzir eacute agir (grifo nosso)rdquo Acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 181) seja maisesclarecedora ldquo[hellip] nem eacute um deles uma parte do outro pois fazer natildeo eacute uma forma de criar e nem um criar uma formade fazer (grifo nosso)rdquo Afinal natildeo eacute uma questatildeo de inclusatildeo de um tipo de raciociacutenio no outro mas de uma diferenccedilaclara que existe entre estes dois modos de operaccedilatildeo do intelecto
60
No caso da fabricaccedilatildeo ou produccedilatildeo de um objeto a razatildeo correta significa seguir as ldquoregras
de produccedilatildeo certasrdquo que permitem o artesatildeo produzir qualquer coisa de modo adequado Assim ao
realizar da maneira certa a manufatura do objeto este cumpre com a finalidade para a qual foi
projetado pelo artesatildeo Sem seguir as regras de produccedilatildeo o artesatildeo natildeo consegue fabricar o objeto
para que cumpra com a finalidade escolhida Como exemplo o proacuteprio Aristoacuteteles cita a arte da
arquitetura uma casa projetada por um arquiteto possui uma finalidade proacutepria que somente eacute
atingida se a casa for construiacuteda corretamente Podemos citar outras inuacutemeras artes como ilustraccedilatildeo
desta relaccedilatildeo entre as normas corretas de produccedilatildeo de um objeto para atender uma finalidade A
tiacutetulo de ilustraccedilatildeo basta imaginar um cuteleiro ao criar uma faca ou um curtidor ao preparar o
couro A criaccedilatildeo destes utensiacutelios deve respeitar determinadas regras ndash o modo correto de produzi-
los ndash para que a faca e o couro possam ser existir e serem usados com eficaacutecia cumprindo as
finalidades para as quais foram feitas
No que se refere agrave distinccedilatildeo entra a arte e a prudecircncia o comentador Guy Hamelin descreve
bem as caracteriacutesticas dos dois saberes Embora ambos sejam raciociacutenios praacuteticos a habilidade de
produzir um artefato exige um tipo de raciociacutenio diferente do utilizado para discernir a accedilatildeo a ser
realizada No caso da produccedilatildeo de um objeto o artesatildeo possui escolhas mais restritas Para o
artefato ser produzido de modo correto deve ser feito seguindo prescriccedilotildees precisas de fabricaccedilatildeo
Enquanto no discernimento de uma accedilatildeo a prudecircncia natildeo pode seguir regras estabelecidas Natildeo haacute
um ldquomanualrdquo de como agir em cada situaccedilatildeo A forma correta de agir eacute determinada pela
deliberaccedilatildeo apropriada a cada circunstacircncia Citamos o texto do mencionado exegeta
O Estagirita estima ser necessaacuterio diferenciar a habilidade da prudecircncia ou dodiscernimento por que o raciociacutenio praacutetico usado na habilidade difere em pelomenos dois aspectos importantes do raciociacutenio praacutetico usado na accedilatildeo Primeiro aspossibilidades de escolha resultando da habilidade satildeo muito mais restritas do queas oferecidas pela razatildeo praacutetica ligada agrave accedilatildeo Eacute manifesto que existem maneirasmais limitadas de construir um bom navio por exemplo do que viver bem a suaproacutepria vida e alcanccedilar a felicidade Por conseguinte o indiviacuteduo que age na esferada habilidade (texnh) estaacute mais restrito nas suas escolhas do que a pessoa que estaacutedecidindo a maneira de viver a sua vida A segunda distinccedilatildeo entre a habilidade e aprudecircncia em Aristoacuteteles diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do saber necessaacuteria para agir emcada uma dessas duas esferas Adquirir uma habilidade teacutecnica consisteessencialmente em conhecer como produzir um artefato e esse conhecimentoreduz-se em boa parte a um conjunto de preceitos (paraggeliai) deixados peloshabilidosos aos aprendizes Aristoacuteteles natildeo pode aceitar que seja possiacutevel adquiriruma virtude a partir de regras preestabelecidas pois cada situaccedilatildeo concreta danossa vida implica tantas possibilidades que apenas uma deliberaccedilatildeo adequada agravecircunstacircncia pode nos indicar a accedilatildeo a cumprir178
178 HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista ArchaiBrasiacutelia n 04 jan 2010 p 110-111
61
Em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana esta possui um fim em si proacutepria O ato de agir natildeo transcende a
si mesmo como os objetos criados pelo artesatildeo Como nos afirma o Estagirita ldquoCom efeito ao
passo que o produzir tem uma finalidade diferente de si mesmo isso natildeo acontece com o agir pois
que a boa accedilatildeo eacute o seu proacuteprio fimrdquo179 Diante deste fato referente agrave natureza da accedilatildeo podemos
pensar que o homem tem por ldquotarefardquo impelido pela sua funccedilatildeo proacutepria (ἔργον)180 de aperfeiccediloar a
si mesmo para alcanccedilar a eudaimonia Para isso deve aprimorar sua racionalidade para atingir a
verdade e orientar os seus iacutempetos ndash dominar suas paixotildees educar seus desejos e prazeres ndash por
meio das virtudes morais para aquilo que eacute bom digno e nobre Neste sentido podemos dizer que a
ldquoobra-primardquo a ser realizada atraveacutes das nossas boas accedilotildees somos noacutes mesmos
A criaccedilatildeo (produccedilatildeo fabricaccedilatildeo) de um artefato pertence a um gecircnero diferente da accedilatildeo O
ato de criar possui uma finalidade que transcende o homem que cria O objeto fabricado eacute distinto
do criador Por exemplo a fabricaccedilatildeo de um vaso de argila por um artesatildeo Por outro lado a accedilatildeo eacute
imanente ao proacuteprio homem pois eacute realizada pelo proacuteprio agente Natildeo haacute um objeto produzido que
eacute exterior ao homem O phronimos ao escolher a melhor accedilatildeo a ser realizada natildeo cria um produto
tangiacutevel algo corpoacutereo que possa ser tocado Deste modo ao ser referir agrave accedilatildeo humana esta eacute
compreendida como um ato de agir e natildeo como um ato de criaccedilatildeo O ato de criar eacute referente a quem
produz alguma coisa
Da mesma forma que na Eacutetica a Nicocircmaco a distinccedilatildeo entre o saber teoacuterico e saber praacutetico
tambeacutem eacute assinalada na Metafiacutesica Nela Aristoacuteteles descreve que a busca da verdade eacute a finalidade
principal tanto para a parte cientiacutefica quanto para a calculativa do intelecto Tambeacutem satildeo
delimitados os campos de aplicaccedilatildeo dos respectivos saberes embora a verdade como finalidade do
saber praacutetico eacute expresso de modo mais contundente no tratado sobre a eacutetica Na Metafiacutesica o
Estagirita assevera que o conhecimento cientiacutefico tem o objetivo de conhecer a verdade enquanto o
conhecimento praacutetico visa a accedilatildeo Cita-se a passagem desta obra
E tambeacutem eacute justo chamar a filosofia da ciecircncia da verdade porque o fim da ciecircnciateoreacutetica eacute a verdade enquanto o fim da praacutetica eacute a accedilatildeo (com efeito os que visamagrave accedilatildeo mesmo que observem como estatildeo as coisas natildeo tendem ao conhecimentodo que eacute eterno mas soacute do que eacute relativo a determinada circunstacircncia e numdeterminado momento) Ora natildeo conhecemos a verdade sem conhecer a causa181
Eacute interessante notar que Aristoacuteteles natildeo considera o intelecto apenas algo meramente
instrumental embora em um determinado sentido a racionalidade possa ser compreendida como
179 EacuteN VI 1140b 6-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 180 Conforme visto no capiacutetulo I no item 14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres181 Metafiacutesica 993b 20-23 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 73
62
instrumento para atingir um fim que satildeo as causas imutaacuteveis no caso do saber teoacuterico Na
produccedilatildeo de um objeto haacute a razatildeo poieacutetica E ainda haacute a deliberaccedilatildeo nas situaccedilotildees que dizem
respeito agrave razatildeo praacutetica A racionalidade tambeacutem pode ser entendida como um fim que ultrapassa a
perspectiva de mera instrumentalidade Natildeo eacute somente uma ferramenta para alcanccedilar fins desejados
Uma vez que o homem anseia pela verdade das coisas o desejo de conhecer eacute imanente a noacutes 182
Conhecer as coisas para alcanccedilar a verdade eacute uma funccedilatildeo proacutepria da razatildeo humana Logo a
atividade racional tambeacutem eacute desejada pelo homem pois permite que esta conheccedila a verdade e ao
conhececirc-la possa alcanccedilar a eudaimonia Em outros termos o proacuteprio exerciacutecio da razatildeo nos seus
distintos saberes torna o homem mais pleno e realizado e por isso mais feliz
Em suma o intelecto eacute parte da alma que busca compreender o mundo Para isso possui as
funccedilotildees de escolher ordenar hierarquizar especular O intelecto opera de formas distintas de
acordo como o tipo de finalidade exigida Em outros termos a razatildeo humana utiliza diferentes tipos
de raciociacutenios A sabedoria praacutetica natildeo eacute ciecircncia nem arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque
este se baseia em princiacutepios imutaacuteveis e por isso passiacuteveis de demonstraccedilatildeo Natildeo precisa utilizar
da deliberaccedilatildeo pois esta serve somente no caso de situaccedilotildees que variam e podem gerar diversos
resultados Tambeacutem natildeo eacute arte porque esta natildeo visa a accedilatildeo proacutepria do homem O conhecimento
produtivo cria coisas que possuem uma existecircncia concreta que diferem do artesatildeo que as produz
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos diferentes tipos de saberes (e0pisthmh texnh fronhsij) com suas
respectivas finalidades resta expor de modo mais detalhado a proacutepria prudecircncia Neste sentido
abordaremos esta virtude intelectual no proacuteximo toacutepico
32 O conceito de prudecircncia
A virtude intelectual da prudecircncia tem como papel operar o saber praacutetico em niacutevel de
excelecircncia A prudecircncia eacute a areteacute da razatildeo praacutetica Isso significa que nas diversas circunstacircncias
enfrentadas pelo homem tanto em situaccedilotildees corriqueiras no seu cotidiano quanto naquelas mais
importantes que definem a vida como um todo eacute necessaacuterio decidir entre vaacuterias opccedilotildees que podem
ser tomadas A prudecircncia eacute o conhecimento da boa deliberaccedilatildeo e decisatildeo E decisotildees corretas
facilitam alcanccedilar a eudaimonia Dificilmente um homem pode ser feliz se a maior parte das
decisotildees que tomou foram errocircneas Neste sentido o homem prudente conhece a melhor forma de
tomar uma decisatildeo o que acarreta saber que accedilatildeo realizar perante as situaccedilotildees nas quais estaacute
envolvido
182 Cf Metafiacutesica 980a 22 Op cit p 04 Conforme descrito neste trecho da obra ldquoTodos os homens tendem aosaberrdquo Ibidem p 4
63
A prudecircncia eacute o raciociacutenio correto e verdadeiro que permite o homem deliberar sobre o que
eacute bom e apropriado para si mesmo e para os outros A partir desta percepccedilatildeo esta virtude possui a
funccedilatildeo de escolher a melhor accedilatildeo para atingir o fim escolhido A phronecircsis vislumbra os meios
mais eficazes para que a accedilatildeo seja eficaz O homem prudente eacute efetivo em suas accedilotildees porque decide
de modo correto age da forma certa ao escolher os melhores meios para alcanccedilar os fins e sua accedilatildeo
eacute nobre Portanto o phronimos eacute o homem que delibera com acerto e por isso decide bem agrave luz
das variadas situaccedilotildees Eacute o que nos mostra Aristoacuteteles
Ora julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacuteticao poder deliberar bem (kalw~v bouleusasqai) sobre o que eacute bom eacute conveniente(a)gaqa kai sumfeampronta) para ele natildeo sob um aspecto particular como porexemplo sobre as espeacutecies de coisas que contribuem para a sauacutede e o vigor massobre aquelas que contribuem para a vida boa em geral Bem o mostra o fato deatribuirmos sabedoria praacutetica a um homem sob um aspecto particular quando elecalculou bem com vistas em alguma finalidade boa que natildeo se inclui entre aquelasque satildeo objeto de alguma arte Segue-se daiacute que num sentido geral tambeacutem o homem que eacute capaz de deliberarsobre coisas que natildeo podem ser de outro modo (ou0k e1sti bouleusasqai per tw~~nigrave tw~~ne0c a0nagkhj ontwn) [hellip] Resta pois a alternativa de ser ela uma capacidade(e3cin) verdadeira (a0leqou~~j) e raciocinada de agir (meta logou praktinken) comrespeito agraves coisas que satildeo boas ou maacutes para o homem ( qr p a)gaqa kaiἀν ώpῳ a)gaqa kai ῳkaka0)183
A partir desta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles nota-se que a prudecircncia possui dois aspectos O
primeiro trata da sabedoria praacutetica aplicada agrave vida particular do homem O segundo versa sobre agrave
vida coletiva No acircmbito privado o homem prudente discerne sobre os melhores meios para atingir
os fins particulares que o levam agrave eudaimonia Mas na perspectiva aristoteacutelica o homem natildeo pode
ser feliz sozinho pois sua natureza eacute poliacutetica184 O bem humano tambeacutem eacute a finalidade da poliacutetica185
Uma vez que o homem vive com outros eacute necessaacuterio discernir os caminhos da comunidade para
que esta atinja a felicidade O acircmbito comunitaacuterio diz respeito agrave vida na poacutelis Sem a eudaimonia na
cidade-Estado o homem natildeo poderaacute ser completamente feliz Logo o phronimos ao visar a vida
feliz sabe que esta eacute composta pelo que eacute bom e nobre tanto para ele quanto para os outros que o
cercam Acerca da poacutelis como incentivadora da eudaimonia temos na Eacutetica a Nicocircmaco
183 EacuteN VI 1140a 26 a 1140b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Tambeacutem conferir EacuteN VI1141a 9-12 p 106184 Cf Poliacutetica I 1253a 5 A expressatildeo ldquoanimal poliacuteticordquo (politikon zw~~on) deve ser entendida no sentido denatureza social ou sociaacutevel Eacute natural dos indiviacuteduos serem gregaacuterios 185 Sobre a eudaimonia como finalidade da poacutelis eacute proveitosa a leitura das passagens na Poliacutetica III 1278a 23-301280a 32-40 agrave 1280b 1-10 1283a 15-20 Ademais devemos recordar que a virtude moral da justiccedila somente pode serefetivada na comunidade Esta virtude eacute a ldquojoiardquo que permite a vida feliz na poacutelis
64
Ningueacutem duvidaraacute de que o seu estudo [do sumo bem] pertenccedila agrave arte maisprestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra Ora apoliacutetica (politikh) mostra ser dessa natureza pois eacute ela que determina quaisciecircncias que devem ser estudadas num Estado quais satildeo as que cada cidadatildeo deveaprender e ateacute que ponto e vemos que ateacute as faculdades tidas em maior apreccedilocomo a estrateacutegia a economia e a retoacuterica estatildeo sujeitas a ela Ora como a poliacuteticautiliza as demais ciecircncias e por outro lado legisla sobre o que devemos e o quenatildeo devemos fazer a finalidade dessa ciecircncia deve abranger as das outras de modoque essa finalidade seraacute o bem humano (a0gaqon) Com efeito ainda que tal fimseja o mesmo tanto para o indiviacuteduo como para o Estado (polei) o deste uacuteltimoparece ser algo maior e mais completo quer a atingir quer a preservar Emboravalha bem a pena atingir esse fim para um indiviacuteduo soacute eacute mais belo (kallion) emais divino (qeioteron) alcanccedilaacute-lo para uma naccedilatildeo ou para as cidades-Estado(e1qnei kai polesin) 186
A prudecircncia particular estaacute atrelada agrave prudecircncia coletiva Esta ideia eacute importante porque
recorda que Aristoacuteteles nunca perde de vista que a felicidade do homem estaacute inserida na poacutelis grega
Embora o Estagirita assevere que a genuiacutena felicidade individual esteja na sabedoria
contemplativa187 esta eacute mais facilmente atingida em um ambiente de felicidade comunitaacuteria A
prudecircncia deve ser entendida como sendo uma virtude intelectual que propicia uma correta escolha
que permite tomar boas decisotildees direcionadas para os fins nobres Devemos recordar que o
phronimos eacute um homem que tem a prudecircncia consolidada em seu caraacuteter Deste modo ele possui
uma visatildeo clara sobre o que eacute bom justo e nobre para si e para a comunidade em que vive
Nesta linha de raciociacutenio basta imaginarmos uma cidade bairro ou qualquer outro ambiente
coletivo Se nestes imperam os viacutecios e natildeo as virtudes existiratildeo dificuldades maiores para o
homem ser feliz No caso contraacuterio nos lugares onde as virtudes se sobressaem o homem teraacute sua
busca pela felicidade facilitada E aleacutem disso em uma sociedade virtuosa desde a infacircncia o
homem eacute educado para as virtudes Isto gera um ciclo beneacutefico a cidade auxilia o cidadatildeo a ser
virtuoso e consequentemente a ser feliz e este ajuda a cidade a ser mais virtuosa Enfim eacute a antiga
liccedilatildeo que assim como satildeo os cidadatildeos tal seraacute a cidade
Como exemplo dessa prudecircncia que estabelece uma ligaccedilatildeo entre os fins particulares e os
coletivos Aristoacuteteles cita como modelo de homem prudente o estadista ateniense Peacutericles e outros
como ele188 Este eacute considerado o maior liacuteder ateniense ou pelo menos um dos seus maiores gecircnios
poliacuteticos Sua grandeza proveacutem do fato que ele discernia bem sobre estas duas aplicaccedilotildees da
prudecircncia Julgava com acerto os rumos que Atenas deveria seguir pois visava o que era bom para
os cidadatildeos atenienses O Estagirita tambeacutem coloca como detentores da prudecircncia os bons
186 EacuteN I 1094a 27 a 1094b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10187 EacuteN X 1178b 28-33 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 191188 Cf EacuteN VI 1140b 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104
65
ecocircnomos (oikonomikouj) e os bons estadistas (politikouj) porque visam a felicidade da poacutelis189
Sobre o fim uacuteltimo da cidade grega e sua organizaccedilatildeo mais uma vez podemos observar uma
diferenccedila entre o filoacutesofo de Estagira e Platatildeo O pensamento aristoteacutelico considera que a
eudaimonia coletiva eacute um fim alcanccedilado por meio da forma que a poacutelis se organiza e a filosofia
moral que a direciona O bem da cidade-Estado estaacute no estiacutemulo agrave racionalidade e virtudes morais
dos cidadatildeos Enquanto para o seu antecessor o mundo das Ideias eacute a referecircncia para a cidade-
estado O comentaacuterio de Pierre Aubenque expressa bem este entrelaccedilamento entre o acircmbito
particular e o coletivo e a distinccedilatildeo com o pensamento platocircnico ao dizer que
ldquoOra a vida feliz (que ser trate da cidade ou da casa como indiviacuteduo) eacute atotalidade que transcende os fins particulares O prudente natildeo eacute entatildeo o puroempiacuterico que vive o dia-a-dia sem princiacutepios e sem perspectivas mas eacute o homemde visatildeo de conjunto E permanece a seu modo o herdeiro do sunoptikojplatocircnico embora veja uma totalidade concreta ndash o bem total da comunidade ou doindiviacuteduo - e natildeo essa Totalidade abstrata e segundo Aristoacuteteles irreal que era omundo platocircnico das Ideiasrdquo190
O homem prudente eacute uma espeacutecie de visionaacuterio Natildeo no sentido contemplativo mas como
um homem que vecirc ou mesmo prevecirc a conjuntura presente ou futura e consegue escolher o melhor
caminho a ser tomado Isto tanto na esfera privada quanto na coletiva Ele eacute detentor de um
importante tipo de conhecimento o de perceber as sutilezas do que se passa a sua volta e consigo
mesmo para tomar boas decisotildees que resultam em accedilotildees corretas Enfim accedilotildees que geram
resultados positivos conduzem o homem e o grupo em que vive para mais perto da eudaimonia
Essa percepccedilatildeo de conjuntura que propicia a decisatildeo correta eacute a marca do homem
prudente191 Mas como o phronimos consegue ter esta avaliaccedilatildeo acertada das coisas Isto ocorre
devido ao fato que o prudente conhece os princiacutepios universais (gerais) mas tambeacutem observa as
particularidades de cada situaccedilatildeo192 Ele consegue relacionar de modo efetivo os universais e os
particulares na accedilatildeo pois a accedilatildeo se encontra nos particulares O exemplo que Aristoacuteteles utiliza eacute o
do homem que possui o conhecimento de que carnes leves satildeo de faacutecil digestatildeo Estas auxiliam na
manutenccedilatildeo da sauacutede Mas ter somente esta informaccedilatildeo natildeo lhe auxiliaraacute em nada Pois ao ignorar
quais satildeos os tipos de carnes consideradas leves natildeo poderaacute reestabelecer sua sauacutede A situaccedilatildeo eacute
semelhante para vaacuterios casos Um meacutedico pode saber os princiacutepios da sauacutede em geral mas se nunca
teve experiecircncia das particularidades no atendimento de cada paciente dificilmente poderaacute curaacute-
los Ou capitatildeo de navio que conhece os princiacutepios da navegaccedilatildeo mas nunca navegou natildeo estaraacute
189 Cf EacuteN VI 1140b 10 Idem p 104190 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit 95-96 O sunoptikoacutes platocircnico eacute o homem que possuiuma visatildeo abrangente das circunstacircncias 191 Cf EacuteN VI 1141a 23-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106192 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 96
66
apto para comandar uma embarcaccedilatildeo Em suma o accedilougueiro o enfermeiro e o velho marujo
devido agraves experiecircncias (e0mpeiria) adquiridas muitas vezes atingem melhores resultados que o
homem puramente teoacuterico Nos diz Aristoacuteteles
Tampouco a sabedoria praacutetica se ocupa apenas com universais (kaqolou) Devetambeacutem reconhecer os particulares pois ela eacute praacutetica e a accedilatildeo versa sobre osparticulares Eacute por isso que alguns que natildeo sabem e especialmente os que possuemexperiecircncia satildeo mais praacuteticos do que os outros que sabem porque se um homemsoubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse queespeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutedepoderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinha193
No quesito referente ao conhecimento dos universais e dos particulares eacute importante
delimitar a distinccedilatildeo entre o saber filosoacutefico (sofia)194 e o saber praacutetico (qronesij) Anteriormente
citamos as cinco virtudes intelectuais descritas por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco195
Jaacute descrevemos com mais detalhes o saber cientiacutefico (ἐπιστήμη) e a arte (τέχνη) resta-nos discorrer
sobre o saber filosoacutefico e a razatildeo intuitiva (nou~~j) No decorrer da sua exposiccedilatildeo sobre os tipos de
saberes o noucircs eacute descrito como sendo um tipo de conhecimento que permite a imediata apreensatildeo
dos primeiros princiacutepios196 Natildeo utiliza a demonstraccedilatildeo racional para conhecer como necessitam os
saberes cientiacutefico e filosoacutefico Neste sentido o noucircs natildeo realiza determinadas operaccedilotildees mediatas
do intelecto como a deliberaccedilatildeo ou o caacutelculo E o que satildeo estes princiacutepios captados pelo noucircs Satildeo
os princiacutepios mais universais que natildeo podem mais serem deduzidos de outros princiacutepios Mas
formam a base sobre a qual a ciecircncia pode operar partindo de princiacutepios gerais para os mais
especiacuteficos Eacute o que explica a comentadora Ursula Wolf ldquo[] E visto que nem todos os princiacutepios
podem ser deduzidos de princiacutepios mais gerais e que nem todos os conceitos podem ser definidos
por meio de conceitos mais conhecidos os conceitos mais elevados da ciecircncia jaacute natildeo podem ser
explicitados discursivamente mediante princiacutepios mas apenas apreendidosrdquo197 Logo o nocircus eacute uma
captaccedilatildeo de cunho ldquointuitivordquo dos primeiros princiacutepios utilizados pela ciecircncia demonstrativa198
193 EacuteN VI 1141b 15-20 Ibidem p 106-107194 Tambeacutem chamada de ldquosapiecircnciardquo por alguns autores como REALE (Metafiacutesica Vol II 2005 p 06) eABBAGNANO (Dicionaacuterio de Filosofia 2012 p 1025-1026)195 Conferir o capiacutetulo II no toacutepico 21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais As cinco virtudes intelectuaissatildeo arte (τέχνη) conhecimento cientiacutefico (ἐπιστήμη) sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) razatildeointuitiva (νοῦς)196 EacuteN VI 1141a 16-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Em relaccedilatildeo as possiacuteveis traduccedilotildeesdo termo noucircs remetemos agrave nota de rodapeacute nordm 115197 WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p149 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)198 Cf EacuteN VI 1141a 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105
67
A sabedoria filosoacutefica eacute a perfeita forma de conhecimento Ela eacute a uniatildeo do conhecimento
cientiacutefico e do noucircs A combinaccedilatildeo destes dois tipos de saberes permite que ela contemple e
conheccedila as coisas mais sublimes Aristoacuteteles inicia sua explicaccedilatildeo sobre o saber filosoacutefico a partir
de uma noccedilatildeo mais usual aplicada ao campo das artes Neste caso o saacutebio seria o artista
consagrado como o melhor naquele tipo de arte Como exemplo seriam os mais elevados expoentes
nas artes da cutelaria da pintura da escultura da arquitetura etc Poreacutem o Estagirita vai aleacutem deste
esclarecimento inicial Para ele uma vez que existem pessoas que satildeo saacutebias de um modo geral e
natildeo em alguma arte ou ciecircncia especiacutefica estes satildeo os saacutebios em um sentido filosoacutefico Estes
homens compreendem verdadeiramente estes primeiros princiacutepios e conseguem demonstrar as
conclusotildees que se inferem a partir deles Neste sentido este eacute o perfil do homem que pode ser
chamado de filoacutesofo (filosofoj) ele maneja as teorias ou seja ldquodominardquo o saber teoacuterico
Segundo o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
A sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos(a0kribestatoij) expoentes por exemplo a Fiacutedias como escultor e Policleto comoretratista em pedra e por sabedoria aqui natildeo entendemos outra coisa senatildeo aexcelecircncia na arte (a0reth texnhj) Mas a certas pessoas consideramos saacutebias demodo geral e natildeo em algum campo particular ou sob qualquer outro aspectolimitado [hellip] Eacute pois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas deconhecimento a mais perfeita Donde se segue que o homem saacutebio natildeo apenasconheceraacute o que decorre dos primeiros princiacutepios (a0rxw~~n) senatildeo que tambeacutempossuiraacute a verdade a respeito desses princiacutepios (a0rxaj a0lhqeuein) Logo asabedoria deve ser a razatildeo intuitiva combinada com o conhecimento cientiacutefico(soqia nou=j kai e0pisthmh)ndash uma ciecircncia dos mais elevados objetos que recebeupor assim dizer a perfeiccedilatildeo que lhe eacute proacutepriardquo199
No sentido aqui exposto a teoria (qewria) eacute um saber puro desvinculado da teacutecnica
aplicada agrave produccedilatildeo de uma coisa corpoacuterea Tambeacutem natildeo estaacute ligada aos assuntos referentes agrave accedilatildeo
humana objetivo do saber praacutetico Seu campo de estudo eacute aquilo que eacute inacessiacutevel agrave experiecircncia
sensiacutevel alcanccedilaacutevel apenas pela especulaccedilatildeo Este conhecimento especulativo natildeo eacute subordinado a
nenhum outro200 Antes se constitui como fundamento dos outros tipos de saberes Por ser mais
199 EacuteN VI 1141a 10-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Eacute interessante fazer uma ressalvanas expressotildees ldquoA sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos expoentes []rdquo e ldquoEacutepois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais perfeitardquo No texto da Eacutetica aNicocircmaco satildeo usadas as palavras a0kribestatoij e a0kribestath respectivamente na primeira e segunda fraseEmbora tenham sido traduzidas como ldquoperfeitosrdquo e ldquoperfeiccedilatildeordquo o termo ἀκριβής significa ldquoprecisatildeordquo ldquoacuradordquoldquoexatidatildeordquo ldquorigorosordquo ldquoestritordquo No texto em questatildeo eacute cabiacutevel o uso do termo ldquoperfeiccedilatildeordquo pois este engloba todos osoutros conceitos citados Entretanto acreditamos que a compreensatildeo desta passagem do texto pode ser melhorentendida do seguinte modo ldquoA sabedoria nas artes eacute atribuiacuteda aos seus mais acurados expoentes []rdquo e ldquoEacute poisevidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais exatardquo 200 Cf Metafiacutesica I 981b 26-30 agrave 982a 4 e 15-17 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 6 - 9
68
afastada do mundo empiacuterico (sensiacutevel) acaba por se tornar um saber buscado por si mesmo natildeo
visando outro resultado diferentemente da epiacutesteme da poieacutesis e da praacutexis
Existe uma niacutetida distinccedilatildeo entre a sabedoria filosoacutefica e a sabedoria praacutetica Vimos que o
saber filosoacutefico visa os princiacutepios universais que satildeo imutaacuteveis necessaacuterios e eternos A prudecircncia
versa sobre o mundo contingente que muda a cada momento Por isso esta uacuteltima trata daquilo que
pode ser objeto de deliberaccedilatildeo Eacute importante observar que Aristoacuteteles demarca duas caracteriacutesticas
importantes sobre o ato de deliberar i) somente ocorre com as situaccedilotildees que satildeo mutaacuteveis e ii) a
deliberaccedilatildeo visa as coisas que possuem finalidades especiacuteficas e estas devem ser possiacuteveis de serem
obtidas pelas accedilotildees Logo o homem prudente delibera bem porque defronte das circunstacircncias faz
um caacutelculo para escolher os melhores meios para alcanccedilar o bem para o homem dentro da
conjuntura em que se encontra naquele momento De acordo com o Estagirita
A sabedoria praacutetica (fronhsij) pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas(a0nqpwpina) e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos queessa eacute acima de tudo a obra (e1rgon) do homem dotado de sabedoria praacutetica (fronimou) deliberar bem (bouleusesqai) Mas ningueacutem delibera (bouleueqai) arespeito de coisas invariaacuteveis nem sobre coisas que natildeo tenham uma finalidade(teloj) e essa finalidade um bem que se possa alcanccedilar pela accedilatildeo (praktona0gaqon) De modo que delibera bem (eu1bouloj) no sentido irrestrito da palavraaquele que baseando-se no caacutelculo eacute capaz de visar agrave melhor (a0ristou) para ohomem (a0nqpwpw|) das coisas alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo (praktw~~n)201
Apoacutes a descriccedilatildeo das caracteriacutesticas da sabedoria praacutetica e da filosoacutefica eacute possiacutevel
perguntar qual desses dois saberes eacute mais importante Aristoacuteteles responde que o homem prudente
necessita das duas formas de saber Pois a melhor accedilatildeo a ser realizada eacute o foco da virtude da
prudecircncia Esta conforme visto pressupotildee o conhecimento dos universais e dos particulares de
cada situaccedilatildeo Entretanto nem sempre eacute possiacutevel ter o domiacutenio destes dois saberes Neste caso
aplica-se o conselho aristoteacutelico ldquoOra a sabedoria praacutetica diz respeito agrave accedilatildeo Portanto deveriacuteamos
possuir ambas as espeacutecies de sabedoria ou a segunda [sabedoria praacutetica] de preferecircncia agrave primeira
[sabedoria filosoacutefica] Mas tanto da sabedoria praacutetica como da filosoacutefica deve haver uma espeacutecie
controladorardquo202 Afinal frequentemente o ato de agir perante uma conjuntura eacute feito somente com
a percepccedilatildeo dos fatos particulares e ainda apenas baseada na experiecircncia Muitas vezes estes dois
elementos da accedilatildeo atingem resultados satisfatoacuterios Deste modo tendo em vista agrave accedilatildeo humana a
preferecircncia eacute possuir a sabedoria praacutetica
201 EacuteN VI 1141b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106 Na expressatildeo ldquo[] um bem que sepossa alcanccedilar pela accedilatildeordquo visto que os termos utilizados em grego satildeo prakton a0gaqon acreditamos que a melhorforma de compreender a frase eacute ldquo[hellip] um bem que se possa alcanccedilar pela melhor accedilatildeordquo ou ldquopela correta accedilatildeordquo Istodevido ao fato que a palavra agathon a depender do uso significa ldquomelhorrdquo ldquobomrdquo ldquohonraacutevelrdquo ldquonobrerdquo ldquocorretardquoldquoconvenienterdquo ldquoefetivardquo dentre outros significados 202 EacuteN VI 1141b 22-23 Ibidem p107
69
Eacute importante observar que Aristoacuteteles traccedila uma outra caracteriacutestica da prudecircncia Esta
virtude intelectual deve focar em fins nobres A escolha dos meios natildeo pode ser voltada para
objetivos soacuterdidos O homem prudente eacute antes de tudo uma pessoa que possui um soacutelido caraacuteter
moral baseado nas virtudes morais Conforme visto anteriormente eacute considerado como um
spoudaios203 Seria contraditoacuterio que optasse por buscar fins que natildeo condizem com sua conduta
Ora o phronimos consegue visualizar as diversas nuances das circunstacircncias em que estaacute inserido
sejam individuais ou coletivas Por isso eacute perspicaz (deinothj)204 ou seja consegue encontrar as
melhores soluccedilotildees para os problemas Entretanto existe um outro tipo de pessoa que igualmente
possui perspicaacutecia diante das situaccedilotildees Eacute o homem vigarista (panou=pgoj) Este natildeo pode ser
considerado possuidor da virtude da prudecircncia por ser um homem eivado de viacutecios que busca fins
errocircneos Logo a prudecircncia somente eacute reservada para homens com nobreza de alma Eacute o que
Aristoacuteteles nos assevera
Existe uma faculdade que se chama habilidade (deinothta) e tal eacute a sua naturezaque tem o poder de fazer as coisas que conduzem ao fim proposto e alcanccedilaacute-loOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau ahabilidade seraacute simples astuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos osproacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj) Esta natildeo eacute afaculdade poreacutem natildeo existe sem ela e esse olho da alma natildeo atinge o seu perfeitodesenvolvimento sem o auxiacutelio da virtude como jaacute dissemos e como aliaacutes eacuteevidente E a razatildeo disto eacute que os silogismos em torno do que se deve fazercomeccedilam assim ldquovisto que o fim isto eacute o que eacute melhor eacute de tal naturezardquoAdmitamos no interesse do argumento que ela seja qual for mas soacute o homembom a conhece verdadeiramente porquanto a maldade nos perverte e nos leva aenganar-nos a respeito dos princiacutepios da accedilatildeo Donde estaacute claro que natildeo eacute possiacutevelpossuir sabedoria praacutetica quem natildeo seja bom205
Nota-se que a prudecircncia natildeo consiste somente na habilidade de escolher os meios para
atingir determinados fins Ela tambeacutem inclui este tipo de deliberaccedilatildeo de fins mais concretos Mas
satildeo apenas fins instrumentais que servem para atingir a eudaimonia O ato de deliberar e escolher os
meios devem ser compreendidos dentro de um panorama maior Eacute uma visatildeo geral da proacutepria vida
que acarreta em um ldquobom agirrdquo (eu0pracia) ou boa conduta constante O homem prudente delibera
203 Cf Capiacutetulo 2 item 24 O homem virtuoso204 Tambeacutem pode ser entendida como ldquohabilidaderdquo ldquoengenhosidaderdquo ldquoastuacuteciardquo ldquodestrezardquo Neste ponto eacute importanteressaltar que a moralidade maacute ou boa desta desenvoltura para resolver os problemas eacute definida pelos fins almejados Ohomem prudente a usa para alcanccedilar os fins nobres enquanto o vigarista a usa para fins errocircneos Neste sentido o termoldquoastuacuteciardquo na traduccedilatildeo citada eacute utilizado para descrever esta desenvoltura que tanto homens bons e maus possuem Naexpressatildeo ldquoOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau a habilidade seraacute simplesastuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos os proacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj)Esta natildeo eacute a faculdade poreacutem natildeo existe sem ela[]rdquo acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 197) permiteuma clareza melhor da ideia transmitida por Aristoacuteteles ldquoSe o objetivo for nobre revelar-se-aacute uma faculdade louvaacutevelse for vil revelar-se-aacute mera patifaria razatildeo pela qual nos referimos tanto a homens prudentes quanto a biltres comoengenhosos Ora ainda que essa faculdade natildeo seja idecircntica agrave prudecircncia esta a implicardquo205 EacuteN VI 1144a 25-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p112
70
natildeo somente sobre accedilotildees imediatas mas tambeacutem sobre aquilo que eacute essencial para a vida Em
uacuteltima instacircncia o homem prudente escolhe os meios tendo em vista o Supremo Bem que eacute a
proacutepria felicidade
Para o comentador Martin Rhonreimer uma vez que a verdadeira virtude da prudecircncia eacute a
ldquosabedoria das coisas humanasrdquo ela aponta para aquilo que possui uma relevacircncia para a vida como
um todo Essas ldquocoisas humanasrdquo dizem respeito a um fim geral da vida humana que passa a ser
uma referecircncia para o homem dirigir todas as suas tendecircncias206
Por fim apoacutes as descriccedilotildees feitas podemos sintetizar o conceito de prudecircncia Ela eacute uma
virtude pertencente agrave parte racional da alma que versa sobre a realidade das coisas variaacuteveis Eacute
distinta da ciecircncia e da arte pois especificamente refere-se agrave accedilatildeo humana Eacute a excelecircncia do ato
de deliberar O homem prudente conhece os princiacutepios universais e sobretudo os fatos particulares
de cada circunstacircncia Logo esta virtude permite que o homem escolha corretamente o que eacute bom
para si mesmo e para a comunidade tendo em vista os fins nobres
Dito isso passemos ao proacuteximo toacutepico que trata sobre a relaccedilatildeo entre a prudecircncia a reta
razatildeo e a experiecircncia Seraacute estudada como o homem prudente aprende esta virtude com o passar do
tempo Aleacutem disto examinaremos como a reta razatildeo atua para que o homem prudente possar
realizar uma boa escolha
33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
A prudecircncia eacute a virtude que permite a escolha correta dos meios para atingir determinados
fins Eacute a excelecircncia do ato de decidir Uma vez que natildeo nascemos com esta virtude eacute necessaacuterio
desenvolvecirc-la ao longo da vida Entatildeo como o homem torna-se prudente
A resposta a esta pergunta consiste na aquisiccedilatildeo das virtudes morais da experiecircncia
adquirida com o tempo e o estudo das chamadas virtudes intelectuais menores Visto que as virtudes
morais foram estudadas anteriormente e as virtudes intelectuais menores seraacute objeto de estudo
posterior nos concentraremos na experiecircncia e como ela auxilia na formaccedilatildeo da reta razatildeo
Conforme descrito no item anterior a phronecircsis eacute o conhecimento dos princiacutepios gerais
somada agrave deliberaccedilatildeo dos fatos particulares O homem que natildeo possui o senso das peculiaridades
inerentes a cada situaccedilatildeo natildeo poderaacute ser prudente Caso detenha somente o entendimento dos
primeiros princiacutepios ou como proceder em uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica seraacute um homem versado
no saber teoacuterico Este tipo de conhecimento pode ser aprendido por meio do estudo207 Com a
prudecircncia somente eacute possiacutevel ter este tipo de ensino de modo parcial Uma vez que ela abarca as
206 RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Op cit p 240 207 O melhor exemplo disto satildeo as diversas ciecircncias ensinadas nas instituiccedilotildees de ensino formal universidadesescolas cursos etc
71
particularidades de cada caso esta virtude somente pode ser adquirida com a vivecircncia das mais
variadas situaccedilotildees ao longo da vida A importacircncia do conhecimento dos detalhes eacute asseverada por
Aristoacuteteles ao dizer que os jovens podem ser muitos bons nas ciecircncias mas somente os homens
experientes possuem a virtude da prudecircncia Conforme nos diz o Estagirita
[hellip] embora os moccedilos possam tornar-se geocircmetras (gewmetrikoi) matemaacuteticos(maqhmatikoi) saacutebios em mateacuterias que tais natildeo se acredita que exista um jovemdotado de sabedoria praacutetica (fronimoj) O motivo eacute que essa espeacutecie de sabedoriadiz respeito natildeo soacute aos universais mas tambeacutem aos particulares que se tornamconhecidos pela experiecircncia (e0mpeiriaj) Ora um jovem carece de experiecircnciaque soacute o tempo pode dar (neoj d e1mpeiroj ou0k e1stinrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] Que a sabedoriapraacutetica natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico eacute evidente porque ela seocupa como jaacute se disse com o fato particular imediato visto que a coisa a fazer eacutedesta naturezardquo208
Um exemplo claro da importacircncia da empeiria (e0mpeiria) refere-se agrave poliacutetica A realidade
do comando da poacutelis para direcionaacute-la agrave sua plenitude talvez seja o maior desafio para o homem
prudente Afinal existe uma imensa variedade de circunstacircncias a serem enfrentadas que exigem
decisotildees acertadas para natildeo levarem a cidade-estado agrave derrocada Diante deste contexto natildeo eacute
prudente deixar os rumos da poliacutetica estatal sob o comando de homens inexperientes Por isso
Aristoacuteteles afirma que os negoacutecios puacuteblicos natildeo satildeo para os jovens pois estes ainda natildeo possuem
competecircncia suficiente para este tipo de lideranccedila devido agrave sua falta de conhecimento praacutetico209 Na
visatildeo aristoteacutelica a poliacutetica necessita tanto do saber teoacuterico para determinar os fins quanto do saber
praacutetico para alcanccedilar estes fins atraveacutes das contingecircncias com as quais a poacutelis se defronta
Naturalmente o conhecimento das peculiaridades do mundo poliacutetico natildeo eacute a uacutenica realidade que
serve como ilustraccedilatildeo da importacircncia da empeiria Logo o que se deseja exemplificar eacute que a
funccedilatildeo da empeiria consiste em harmonizar estes dois saberes
Na Metafiacutesica Aristoacuteteles tambeacutem descreve esta relaccedilatildeo entre a experiecircncia e o saber
teoacuterico Seu argumento eacute ilustrado com uma comparaccedilatildeo com as artes A experiecircncia eacute uma etapa
do ato de produzir um objeto qualquer Mas a maestria eacute alcanccedilada somente apoacutes a aprendizagem
do conhecimento da teoria por traacutes da produccedilatildeo Eacute o aprendiz que fabrica algo sem necessariamente
saber a causa da peccedila ser feita daquele jeito O mestre a produz e tambeacutem conhece o porquecirc da
208 EacuteN VI 1142a 12-15 e 22-23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106-107209 Cf EacuteN VI 1095a 3-5 Ibidem p 10
72
peccedila ser feita de uma determinada forma e natildeo de outra para que seja perfeita 210 De acordo como o
Estagirita
A experiecircncia (e0mpeiria) parece um pouco semelhante agrave ciecircncia e a arte Comefeito os homens adquirem ciecircncia (e0pisthmh) e arte (texnh) por meio daexperiecircncia A experiecircncia como diz Polo produz a arte enquanto a inexperiecircncia[falta de experiecircncia] produz o puro acaso [sorte] A arte se produz quando demuitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral (kaqolou genhtai) euacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantes Por exemplo o ato dejulgar que determinado remeacutedio fez bem a Caacutelias que sofria de certa enfermidadee que tambeacutem fez bem a Soacutecrates e a muitos outros indiviacuteduos eacute proacuteprio daexperiecircncia ao contraacuterio o ato de julgar que a todos esses indiviacuteduos reduzidos agraveunidade segundo a espeacutecie que padeciam de certa enfermidade determinadoremeacutedio fez bem (por exemplo aos fleumaacuteticos aos biliosos e aos febris) eacute proacuteprioda arteOra em vista da atividade praacutetica a experiecircncia em nada parece diferir da arteantes os empiacutericos tecircm mas sucesso do que os que possuem a teoria sem praacutetica Ea razatildeo disso eacute a seguinte a experiecircncia eacute conhecimento dos particulares enquantoa arte eacute conhecimento dos universais ora todas as accedilotildees e as produccedilotildees referem-seao particular De fato o meacutedico natildeo cura o homem a natildeo ser acidentalmente mascura Caacutelias ou Soacutecrates ou qualquer outro indiviacuteduo que leva um nome como elesao qual ocorra ser homem Portanto se algueacutem possui a teoria sem experiecircncia econhece o universal mas natildeo conhece o particular que nele estaacute contido muitasvezes erraraacute o tratamento porque o tratamento se dirige justamente ao indiviacuteduoparticularTodavia consideramos que o saber e o entender sejam mais proacuteprios da arte do queda experiecircncia e julgamos os que possuem a arte mais saacutebios do que os que soacutepossuem a experiecircncia na medida em que estamos convencidos de que a sapiecircnciaem cada um dos homens corresponda agrave sua capacidade de conhecer E isso porqueos primeiros conhecem a causa enquanto os outros natildeo a conhecem Os empiacutericosconhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outrosconhecem o porquecirc e a causa211
A prudecircncia eacute o equiliacutebrio entre a razatildeo teoacuterica e a razatildeo praacutetica Este equiliacutebrio somente eacute
ganho por meio da experiecircncia Esta uacuteltima eacute o ponto intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte A
experiecircncia eacute o uacutenico caminho para o aprendizado de como aplicar corretamente os princiacutepios
gerais traccedilados ou apreendidos pelo saber teoacuterico nas situaccedilotildees particulares Ou seja a sabedoria
praacutetica somente pode ser treinada e com isso aprendida no proacuteprio exerciacutecio de decidir qual a
melhor opccedilatildeo sob variadas condiccedilotildees A natureza da prudecircncia natildeo permite que ela seja ensinada
como um conteuacutedo de matemaacutetica A vivecircncia (experiecircncia) das situaccedilotildees eacute que forja o homem para
210 Como exemplo desta relaccedilatildeo entre saber teoacuterico saber praacutetico e experiecircncia pode-se imaginar um engenheiroautomotivo e um teacutecnico em mecacircnica de automoacuteveis O primeiro conhece a ldquociecircnciardquo por traacutes da teacutecnica enquanto osegundo apenas sabe a proacutepria teacutecnica em si Mas caso o engenheiro apenas conheccedila a ldquociecircnciardquo mas natildeo possua aexperiecircncia em consertar automoacuteveis sua accedilatildeo ficaraacute defasada Natildeo atingiraacute nenhum resultado posto que eacute inoacutecua suaaccedilatildeo 211 Metafiacutesica 981a 1-30 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 5
73
que consiga sopesar seus atos e escolhas ao considerar todos os elementos envolvidos no conjunto
das circunstacircncias212 Aliaacutes eacute um fato da vida humana que em geral a ldquoforccedilardquo eacute a caracteriacutestica
marcante nos jovens enquanto a sabedoria praacutetica pertence aos mais velhos Sobre esta
constataccedilatildeo Aristoacuteteles a sintetiza na Poliacutetica ldquo[hellip] A natureza daacute vigor agrave juventude e a prudecircncia
a uma idade mais avanccedilada [hellip]rdquo213 Dessa forma eacute a ldquoexperiecircncia de vidardquo - o confronto com as
situaccedilotildees - que faz o homem adquirir a virtude da prudecircncia Isto porque ele torna-se mais apto a
realizar deduccedilotildees e decidir melhor para chegar a conclusotildees (imperativos) de como agir melhor nas
diversas situaccedilotildees
Pierre Aubenque descreve que a experiecircncia aristoteacutelica eacute intermediaacuteria entre a sensaccedilatildeo e a
ciecircncia Ela jaacute eacute um tipo de conhecimento baseado na observaccedilatildeo dos particulares Ademais existe
uma caracteriacutestica importante na sabedoria praacutetica adquirida pela experiecircncia a de ser singular e
insubstituiacutevel214 Eacute a partir deste olhar atento sobre os detalhes acerca das coisas e pessoas e em
especial o exemplo de homens prudentes eacute que o jovem vai delineando sua vida de forma
prudente
A partir desta anaacutelise sobre a relaccedilatildeo entre saber teoacuterico o saber praacutetico e a experiecircncia eacute
possiacutevel vislumbrar o que eacute a orthos loacutegos (o0rqoj logoj) A reta razatildeo tambeacutem chamada de justa
razatildeo razatildeo correta ou regra correta eacute o paracircmetro correto da accedilatildeo a ser seguida pelo homem em
qualquer situaccedilatildeo para atingir um fim moralmente bom A mediania das virtudes morais eacute
determinada por esta razatildeo Conforme nos mostra Aristoacuteteles quando se trata da accedilatildeo humana o
cerne da razatildeo praacutetica eacute a concordacircncia entre o desejo correto e o raciociacutenio verdadeiro215Isso
significa que a recta ratio a partir da compreensatildeo dos primeiros princiacutepios consegue deduzir de
modo certo e coerente proposiccedilotildees no campo da ciecircncia e da eacutetica Deste modo eacute possiacutevel perceber
a ldquocorreta medida das coisasrdquo discernir corretamente e agir conforme o bom entendimento das
situaccedilotildees
A empeiria eacute essencial para o aprimoramento da reta razatildeo Por isso o desenvolvimento da
prudecircncia necessita de tempo A experiecircncia aperfeiccediloa o aprendizado de decidir e eacute fundamental
para a consolidaccedilatildeo das virtudes morais Conforme vimos o homem prudente reuacutene estas
condiccedilotildees ele deveria ser considerado como o homem dotado de virtudes morais216 Tambeacutem
conhece os princiacutepios universais para serem aplicados em cada caso Com a experiecircncia adquirida
com o tempo ele consegue rapidamente identificar no decorrer das circunstacircncias dois elementos
212 Cf EacuteN VI 1109a 26-29 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37 Estes elementos a serem observadosforam citados por Aristoacuteteles as pessoas envolvidas o momento a medida (quantidadeintensidade) e a maneira certa 213 Poliacutetica VII 1329a 16 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Op Cit p 156214 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 97- 98215 Cf EacuteN VI 1139a 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102216 Cf Capiacutetulo II item 24 O homem virtuoso
74
i) os meios para atingir os resultados (fins) e ii) quais os meios e os fins moralmente corretos Natildeo
pode haver uma dissonacircncia entre atos e fins na conduta Eacute interessante recordar que os fins satildeo
provenientes do desejo Por isso as virtudes morais satildeo necessaacuterias para fomentar os desejos nobres
para que o homem tenha apreccedilo por fins corretos A prudecircncia atuaraacute nos meios certos para alcanccedilar
estes fins Neste sentido o homem prudente por ter as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter
desejaraacute o que eacute bom e por ter a virtude intelectual da prudecircncia desenvolvida saberaacute discernir os
melhores meios para atingir os fins nobres Dessa forma ele estaacute mais apto que os outros para agir
em consonacircncia com a reta razatildeo
Sobre a empeiria o comentaacuterio de Satildeo Tomaacutes de Aquino reafirma a posiccedilatildeo aristoteacutelica que
somente o tempo a experiecircncia e o ensino permitem o florescimento da virtude intelectual da
prudecircncia De acordo com o descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] o Filoacutesofo diz que ldquoa virtude nasce e cresce principalmente pelo ensinamentoeacute por isso que ela requer experiecircncia e tempordquo Ora a prudecircncia eacute uma virtudeintelectual como se explicou anteriormente Logo natildeo somos prudentesnaturalmente mas graccedilas ao ensinamento e agrave experiecircncia Respondo Como estaacute claro pelo que foi dito antes a prudecircncia inclui oconhecimento dos universais e tambeacutem dos singulares que se devem fazer aosquais aplica os princiacutepios universais[ hellip] e como diz o Filoacutesofo ldquoA vidaespeculativa eacute melhor que a humanardquo Mas os princiacutepios universais posterioresseja da razatildeo especulativa seja da razatildeo praacutetica natildeo satildeo naturais Satildeo descobertospela experiecircncia ou pela instruccedilatildeo217
Diante do exposto a pergunta inicial de como um homem se torna prudente eacute respondida A
virtude da prudecircncia eacute adquirida ao longo do tempo por meio da empeiria e do aprendizado de
como aplicar este saber praacutetico no mundo contingente A prudecircncia permite ao homem apreender agrave
justa razatildeo E esta eacute a proacutepria prudecircncia em relaccedilatildeo agrave conduta218As palavras de W D Ross
sintetizam bem o conceito da reta razatildeo ldquoA regra correcta consiste numa regra obtida por uma
anaacutelise deliberativa do homem prudente a qual o informa de que o fim da vida humana seraacute melhor
atingido a partir de certas accedilccedilotildees intermeacutedias entres os extremos A virtude moral consiste na
217 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed SatildeoPaulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 610 Summa Theologiae II-II q 47 a15 ldquo[] quod philosophus dicit in II Ethicquod virtus intellectualis plurimum ex doctrina habet et generationem et augmentum ideo experimento indiget ettempore Sed prudentia est virtus intellectualis ut supra habitum est Ergo prudentia non inest nobis a natura sed exdoctrina et experimento Sed alia principia universalia posteriora sive sint rationis speculativae sive practicae nonhabentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti vel per disciplinam Respondeo dicendum quod sicut ex praemissis patet prudentia includit cognitionem et universalium et singulariumoperabilium ad quae prudens universalia principia applicat Quantum igitur ad universalem cognitionem eadem ratioest de prudentia et de scientia speculativa [] ut enim philosophus dicit in X Ethic vita quae est secundumspeculationem est melior quam quae est secundum hominem Sed alia principia universalia posteriora sive sintrationis speculativae sive practicae non habentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti velper disciplinam[hellip]rdquo 218 Cf EacuteN VI 1144b 25-27 Ibidem p 113
75
obediecircncia a uma tal regrardquo219 Em suma ela eacute a referecircncia raciocinada que indica que algumas
accedilotildees nos conduzem de modo mais acertado agrave eudaimonia enquanto outras natildeo
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia do ato de deliberar e decidir Mas a decisatildeo
eacute composta por elementos que se corretamente observados fazem o homem realizar uma boa
decisatildeo Estes elementos estatildeo relacionados entre si e satildeo o desejo a escolha e a deliberaccedilatildeo No
proacuteximo toacutepico os estudaremos de forma mais detalhada
34 Desejo (o1recij) Deliberaccedilatildeo (bouleusij e Escolha (proairesij)
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a razatildeo praacutetica que direciona a accedilatildeo humana para o bem
Para que este direcionamento seja correto e consiga ser efetivo na conduccedilatildeo da accedilatildeo o homem
prudente deve fazer uma deliberaccedilatildeo (bouleusij) que o permite realizar uma escolha
(proairesij) a fim de que sua accedilatildeo seja adequada agrave situaccedilatildeo Logo o processo decisoacuterio inicia-se
no ato de deliberar depois na escolha e finda com a accedilatildeo propriamente dita220
O que eacute a deliberaccedilatildeo Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles faz uma descriccedilatildeo das
caracteriacutesticas da bouacuteleusis Ao final o conceito torna-se claro A deliberaccedilatildeo somente eacute exercida
naquilo que eacute mutaacutevel Ningueacutem delibera sobre o que eacute necessaacuterio eterno e invariaacutevel As coisas
que possuem estas qualidades natildeo satildeo objeto de deliberaccedilatildeo Visto que natildeo satildeo factiacuteveis de
mudanccedila natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo humana O ato de deliberar somente visa aquilo que eacute
possiacutevel de ser atingido pela accedilatildeo do proacuteprio homem E tudo o que eacute realizado por meio da accedilatildeo
pode ter resultados incertos Afinal lidar com as contingecircncias eacute ldquomanejarrdquo as probabilidades de
erro ou acerto pois as variaacuteveis das situaccedilotildees podem mudar a cada momento Observa-se por
exemplo o campo da poliacutetica da economia da medicina dentre inuacutemeros outros Cada decisatildeo
deve ser tomada a partir das vaacuterias mudanccedilas circunstancias visando atingir o fim determinado
Neste quadro de incerteza parte do resultado por oacutebvio natildeo todo depende da accedilatildeo realizada a
partir da boa ou maacute deliberaccedilatildeo Dessa forma a deliberaccedilatildeo eacute a razatildeo praacutetica que tem de ponderar
perante o incerto com a maacutexima exatidatildeo possiacutevel Conforme nos mostra Aristoacuteteles
219 ROSS W D Aristoacuteteles Op cit p 226220 A bouacuteleusis e proairesis satildeo descritas por Aristoacuteteles tanto no livro III quanto no livro VI da Eacutetica a NicocircmacoNo decorrer da explicaccedilatildeo sobre estas duas fases da decisatildeo citaremos os dois livros Eacute interessante notar que o livroVI muitas vezes resume aspectos sobre a deliberaccedilatildeo e a escolha estudados anteriormente no livro III Este fatoocorre porque ao analisar a prudecircncia no livro VI o Estagirita coloca a deliberaccedilatildeo e a escolha em um patamar deexcelecircncia O homem prudente eacute aquele que delibera bem e escolhe bem
76
Eacute de presumir que devamos chamar objeto de deliberaccedilatildeo natildeo agravequilo que umneacutescio ou um louco deliberaria mas agravequilo sobre o que pode deliberar um homemsensato (nou~~n e1xwn) Ora sobre coisas eternas ningueacutem delibera por exemplosobre o universo material ou sobre a incomensurabilidade da diagonal com o ladodo quadrado [] Deliberamos sobre as coisas que estatildeo ao nosso alcance e podemser realizadas e essas satildeo efetivamente as que restam Porque como causasadmitimos a natureza a necessidade o acaso e tambeacutem a razatildeo e tudo quedepende do homem Ora cada classe de homem delibera sobre as coisas quepodem ser realizadas pelos seus esforccedilos [] as coisas que satildeo realizadas pelosnossos esforccedilos mas nem sempre do mesmo modo essas satildeo objetos dedeliberaccedilatildeo os problemas de tratamento meacutedico e de comeacutercio por exemplo221
O ato de deliberar envolve a observaccedilatildeo de coisas que ocorrem normalmente de uma certa
maneira Estas situaccedilotildees costumeiras favorecem o acerto quando deliberamos e agimos sobre elas
Entretanto natildeo significa que os resultados seratildeo necessariamente os esperados De acordo com
Aristoacuteteles ldquoDelibera-se a respeito de coisas que comumente acontecem de certo modo mas cujo
resultado eacute obscuro e daquelas em que este eacute indeterminado E nas coisas de grande monta
tomamos conselheiros por natildeo termos confianccedila em nossa capacidade de decidirrdquo222 A tiacutetulo de
ilustraccedilatildeo um meacutedico pode atender vaacuterios pacientes com a mesma doenccedila e receitar o remeacutedio
apropriado que comprovadamente curou a muitos Mas nada certifica que o remeacutedio poderaacute curar
sempre todos os pacientes Um raciociacutenio anaacutelogo pode ser aplicado a um time de basquete ou
nataccedilatildeo As accedilotildees satildeo realizadas com base em deliberaccedilotildees derivadas de observaccedilotildees do histoacuterico
do proacuteprio time e dos adversaacuterios As chances podem ser maximizadas para a vitoacuteria ainda assim o
resultado eacute indeterminado Por isso o Estagirita adverte que determinados assuntos devem ser
deliberados em conjunto para que haja uma anaacutelise mais acurada dos fatos
A deliberaccedilatildeo eacute a escolha dos meios para atingir os fins Caso haja vaacuterios meios que levam a
um mesmo resultado seraacute escolhido o meio mais eficaz Isso significa que em cada situaccedilatildeo o
homem prudente delibera sobre quais os melhores meios e como utilizaacute-los da melhor maneira
Cita-se o texto da Eacutetica a Nicocircmaco
Natildeo deliberamos acerca dos fins mas a respeito de meios (proj ta telh) Ummeacutedico por exemplo natildeo delibera (bouleuetai) se haacute de curar ou natildeo nem umorador se haacute de persuadir nem um estadista (politikoj) se haacute de implantar aordem puacuteblica nem qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade Datildeo afinalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcanccedilaacute-la e separece poder ser alcanccedilada por vaacuterios meios procuram o mais faacutecil e o mais eficazse for um soacute examinam como seraacute alcanccedilada por ele e por que outro meioalcanccedilar esse primeiro ateacute chegar ao primeiro princiacutepio que na ordem dedescobrimento eacute o uacuteltimo223
221 EacuteN III 1112a 20-35 e 1112b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45222 EacuteN III 1112b 8-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46223 EacuteN III 1112b 13-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46
77
Na dimensatildeo moral o aprimoramento do homem prudente eacute realizado pela consolidaccedilatildeo das
virtudes morais Na dimensatildeo da racionalidade praacutetica se traduz na sua capacidade de decidir cada
vez melhor ao passar pelas etapas da deliberaccedilatildeo e da escolha Quanto melhor for a deliberaccedilatildeo e a
escolha mais aperfeiccediloada seraacute a virtude da prudecircncia Neste sentido apoacutes a exposiccedilatildeo do ato de
deliberar estudaremos a escolha
Para uma melhor compreensatildeo do ato de escolher eacute preciso descrever brevemente a ideia de
voluntariedade e involuntariedade das accedilotildees humanas De modo geral Aristoacuteteles distingue o ato
voluntaacuterio e o involuntaacuterio O primeiro consiste na accedilatildeo como resultado de uma escolha do homem
Na accedilatildeo voluntaacuteria o homem deve estar consciente das particularidades de cada circunstacircncia224 e
no domiacutenio de suas paixotildees para sua accedilatildeo ser tida como voluntaacuteria225 O segundo ocorre quando o
homem ignora todos ou alguns aspectos das circunstacircncias aleacutem de natildeo possuir o controle de suas
paixotildees A ignoracircncia e falta de autodomiacutenio (a0krasia) o impede de alcanccedilar o fim esperado
Desta forma uma accedilatildeo para ser declarada voluntaacuteria ou involuntaacuteria depende do momento que eacute
realizada226 sob qual circunstacircncia ocorreu o ato o grau de conhecimento das particularidades e se
houve ou natildeo o controle dos paixotildees
Conforme exposto o domiacutenio de si ou a falta dele afeta as deliberaccedilotildees e as escolhas que
um homem pode fazer Por isso o controle dos desejos eacute fundamental para a consecuccedilatildeo de uma
boa escolha Isto porque o desejo faz parte da faculdade sensitiva do homem Eacute um indutor da accedilatildeo
humana que nos impele para a busca de diversos fins e entre eles o fim uacuteltimo a eudaimonia
Cada desejo varia de acordo com o tipo o apetite () eacute atraiacutedo por um determinado objeto e
o impulso ()227 por outro Devido a esta realidade inerente agrave natureza humana Aristoacuteteles
descreve que a accedilatildeo e a verdade satildeo regidas pela sensaccedilatildeo (ai1sqhsij) intelecto (nou~~j)228 e desejo
(o1recij) embora a sensaccedilatildeo natildeo seja o princiacutepio da accedilatildeo por natildeo ser fruto de nenhum tipo de
processo racional Conforme diz Aristoacuteteles
ldquoA virtude de um coisa eacute relativa ao seu funcionamento (e1rgon) apropriado Orana alma existem trecircs coisas que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo(ai1sqhsij) razatildeo (nou~~j) e desejo (o1recij) Destas trecircs a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepiode nenhuma accedilatildeo bem o mostra o fato de os animais inferiores possuiacuteremsensaccedilatildeo mas natildeo participarem da accedilatildeordquo229
224 Cf EacuteN III 1111a 21-25 Ibidem p 43225 Cf EacuteN III 1110a 1-4 Ibidem p 41226 Cf EacuteN III 1110a 15 Ibidem p 41227 O thumos tambeacutem eacute traduzido pelo termos ldquoirardquo ldquofuacuteriardquo ldquocoacutelerardquo De todo modo eacute um intenso descontentamentoprovocado por algo que faz o homem reagir a esse fato desencadeador 228 Acerca da dificuldade de traduccedilatildeo deste termo grego conferir nota de rodapeacute nordm 115229 EacuteN VI 1139a 17-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102
78
O desejo eacute uma atraccedilatildeo que alguma coisa causa em noacutes Podemos ser atraiacutedos por qualquer
coisa o que implica que podemos querer coisas que podem ser boas ou ruins aleacutem de nos
impulsionar a realizarmos accedilotildees moralmente boas ou maacutes para conseguir o objeto desejado Daiacute a
importacircncia das virtudes morais para ordenar os diversos desejos para que sejam orientados para a
retidatildeo moral Desta maneira os retos desejos facilitam que o homem prudente realize escolhas
voltadas para o bem
Esta relaccedilatildeo entre desejo escolha e virtude eacute percebida quando Aristoacuteteles conceitua a
virtude moral como uma disposiccedilatildeo para uma escolha (e3cij proairetikh) de accedilotildees e paixotildees
pautadas pela mediania230 A virtude moral predispotildee de forma beneacutefica o homem agrave fazer boas
escolhas relacionadas agrave vida de forma geral ou seja ao fins mais importantes No sentido aqui
descrito as escolhas bem feitas satildeo o resultado de uma clareza de visatildeo que as virtudes morais
proporcionam ao homem prudente que sabiamente escolhe os melhores meios para atingir os fins
Isto tambeacutem eacute apontado na Eacutetica a Eudemo ao mostrar que a escolha eacute realizada visando o bem
viver A nobreza de conduta eacute o fator orientador de todas as escolhas De acordo com a Eacutetica a
Eudemo
Uma vez definido em relaccedilatildeo a isso que todos os capacitados a viver de acordocom a preacutevia escolha deveriam visar algo a favor de viver bem e nobremente seja ahonra a reputaccedilatildeo a riqueza ou a cultura em funccedilatildeo do que orientariam toda a suaconduta (pois natildeo ter a proacutepria vida organizada em vista de algum fim eacute um clarosinal de grande loucura) conclui-se que eacute maximamente necessaacuterio comeccedilar por sedecidir pessoalmente nisso natildeo agindo nem apressada nem negligentemente emqual das coisas que nos dizem respeito estaacute encerrada a vida boa e quais satildeo ascondiccedilotildees imprescindiacuteveis que possibilitam a noacutes seres humanos entrarmos deposse dessa vida 231
Vimos que o homem deve orientar a sua vida para a eudaimonia sendo esta o fim uacuteltimo
que eacute desejado por todos Para que este desejo de felicidade natildeo permaneccedila no campo da
imaginaccedilatildeo satildeo necessaacuterias fazer escolhas concretas O ato de escolher eacute uma etapa do processo de
decisatildeo realizado por cada homem O homem prudente realiza este ato com maestria pois o ato de
escolher eacute de fundamental importacircncia para a consecuccedilatildeo de uma vida feliz Aquele que escolhe
mal dificilmente seraacute feliz Assim sendo devido a sua importacircncia para a formaccedilatildeo do phronimos
adentraremos na ideia aristoteacutelica de proairesis (proairesij)
230 Cf EacuteN II 1106b 36 Ibidem p 33231 EacuteE I 1214b 7-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 47
79
O que eacute a proiaresis A proiaresis eacute um ato de livre escolha232 Poreacutem nem todos os atos
voluntaacuterios satildeo decorrentes de uma escolha As crianccedilas e os animais satildeo capazes de realizarem atos
voluntaacuterios mas natildeo de realizar escolhas233pois satildeo atos efetivados sem o uso da razatildeo No livro III
da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a proiaacuteresis como uma accedilatildeo voluntaacuteria que envolve o
raciociacutenio e algum processo do intelecto sendo precedida pela deliberaccedilatildeo234 Logo a escolha
pressupotildee o uso da razatildeo que controla o desejo e eacute feita com um processo de raciociacutenio que procura
analisar as melhores opccedilotildees
Por envolver a razatildeo a proairesis difere do apetite () do impulso () da
vontade () e da opiniatildeo (doca) O apetite e o impulso natildeo envolvem nenhum tipo de
processo racional por isso natildeo podem ser considerados como escolhas Aleacutem disto o apetite
envolve o que eacute agradaacutevel (prazeroso) e o desagradaacutevel (doloroso) A proairesis natildeo depende destes
dois fatores Afinal o homem pode escolher tanto um quanto outro destes aspectos conforme o
resultado a ser obtido Em relaccedilatildeo agrave vontade por ser uma espeacutecie de desejo mais aproximada da
racionalidade nos fazendo tender para o bem auxilia nas aspiraccedilotildees humanas mais elevadas
Entretanto muitas vezes a vontade quer agravequilo que eacute maior que a capacidade do homem de
alcanccedilaacute-la Satildeo aspiraccedilotildees irrealistas O exemplo utilizado por Aristoacuteteles eacute a imortalidade Pode-se
desejar ser imortal mas isto eacute inantingiacutevel pela accedilatildeo humana A vontade tambeacutem pode nos levar a
desejar algo fora do nosso poder decisoacuterio Como desejar que o time desportivo que torcemos ganhe
o campeonato Assim os desejos provenientes da vontade podem aspirar a qualquer coisa poreacutem
para serem atingiacuteveis devem ser realistas As escolhas para serem plausiacuteveis devem estar estar no
acircmbito do que a accedilatildeo humana pode realizar Outras aspiraccedilotildees mais tangiacuteveis como ter sauacutede ter
paz ser feliz etc satildeo o fins (objetivos) gerais que podem ser plenamente alcanccedilados Mas para
atingiacute-los eacute necessaacuterio escolher os meios Essa eacute a funccedilatildeo do ato de escolher propriamente dito
Logo a proairesis visa os meios a serem utilizados e natildeo os fins
A proairesis natildeo eacute opiniatildeo Primeiro eacute possiacutevel opinar acerca de quaisquer coisas que
estejam em nosso poder alcanccedilaacute-las e tambeacutem sobre o que estaacute longe disto Segundo a opiniatildeo eacute
uma etapa inicial do processo de conhecimento sendo classificada como verdadeira ou falsa em
suas assertivas Por seu lado a proairesis refere-se agrave accedilatildeo humana podendo ser adjetivada como
boa ou maacute Esta diferenccedila pode ser notada quando observamos homens que opinam corretamente
acerca de vaacuterios assuntos poreacutem fazem peacutessimas escolhas ao agirem ou homens que escolhem
bem mas erram em suas opiniotildees Normalmente as escolhas ruins satildeo feitas devido aos viacutecios
232 Cf EacuteN III 1111b 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 44 Conferir tambeacutem EacuteE II 1225b 1-18Eacutetica a Eudemo Op cit p 95233 A praacutexis humana eacute caracterizada pela accedilatildeo composta por um princiacutepio racional O raciociacutenio deve estar semprepresente Por isso animais natildeo ldquoagemrdquo no sentido aqui descrito 234 Cf EacuteN III 1111b 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45
80
Uma conduta viciosa influencia negativamente o raciociacutenio necessaacuterio para realizar uma boa
escolha Afinal os viacutecios satildeo desejados pelos homens incontinentes e pelos maldosos Observa-se
que a proairesis estaacute no campo da sabedoria praacutetica Em suma a opiniatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo pouco
cuidadosa dos fatos enquanto a proairesis eacute um ato que compotildee a accedilatildeo De acordo com
Aristoacuteteles
Ora com a opiniatildeo em geral natildeo haacute ningueacutem que a identifique [] Com efeito porescolher o que eacute bom ou mau somos homens de um determinado caraacuteter mas natildeo osomos por sustentar esta ou aquela opiniatildeo [] E tambeacutem escolhemos o quesabemos ser melhor (proairoumeqa men a4 malista i1smen a0gaqa o1nta) tantoquanto nos eacute dado sabecirc-lo mas opinamos sobre o que natildeo sabemos exatamente(docazomen de a4 ou0 panu i1smen) e natildeo satildeo as mesmas pessoas que passam porfazer as melhores escolhas e sustentar as melhores opiniotildees mas de algumas se dizque tecircm excelentes opiniotildees e no entanto padecem de um viacutecio (kakian) qualquerque as impede de escolher bem (kakian d airei=sqai ou0x a4 deirsquo e1mpeiroj ou0k e1stin =) 235
O Estagirita na sua obra Eacutetica a Eudemo assevera que a opiniatildeo e a vontade dizem respeito
aos fins enquanto a escolha refere-se aos meios236 A escolha eacute uma opccedilatildeo preferencial de uma
coisa e natildeo de outra Esta opccedilatildeo somente pode ser feita a partir da anaacutelise e deliberaccedilatildeo Por isso o
ato de escolher comeccedila na opiniatildeo deliberada (d chj bouleutikh=joacutej )237 Neste caso a opiniatildeo
significa o iniacutecio do exame das circunstacircncias sendo uma fase da deliberaccedilatildeo Contudo a escolha
natildeo eacute somente a opiniatildeo deliberada mas tambeacutem eacute composto pela vontade238 Por isso o filoacutesofo de
Estagira assevera que a escolha tambeacutem eacute um desejo deliberativo Esta uacuteltima noccedilatildeo de desejo e
deliberaccedilatildeo eacute destacada na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] a escolha ou eacute raciociacutenio desiderativo ou desejo
raciocinativo e a origem de uma accedilatildeo dessa espeacutecie eacute um homemrdquo239 Deste modo a escolha eacute
resultado do desejo deliberado ou envolve algum procedimento intelectual240
Descritas as caracteriacutesticas de cada uma entatildeo qual a diferenccedila entre proiaresis (escolha) e a
bouacuteleusis (deliberaccedilatildeo) Ambas se referem aos meios mas natildeo aos fins A distinccedilatildeo estaacute na
amplitude de visatildeo sobre o que deve ser feito A escolha diz respeito agravequilo que eacute mais imediato e
ldquoconcretordquo ou seja o plenamente operacionalizaacutevel em um dado instante Eacute a finalizaccedilatildeo da
deliberaccedilatildeo Pierre Aubenque define bem este caraacuteter da escolha eacute o momento da decisatildeo do voto
ela torna funcional a deliberaccedilatildeo e por isso pode pocircr-lhe um fim241 A deliberaccedilatildeo eacute o ato anterior agrave
escolha eacute a inteligecircncia ponderando e definindo qual o rumo a ser seguido A escolha eacute o desejo
235 EacuteN III 1112a 1-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45 236 Cf EacuteE II 1226a 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 97237 Cf EacuteE II 1226b 1-10 Idem p 98238 Cf EacuteE II 1226b 20-25 Ibidem p 99239 EacuteN VI 1139b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102 240 Cf nota de rodapeacute nordm 232241 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 196
81
deliberado das coisas Ou seja eacute o desejo ldquofiltradordquo pela razatildeo adquirindo a medida correta para
que possa ser alcanccedilado pela nossa proacutepria accedilatildeo No processo decisoacuterio a sequecircncia seguida eacute que
primeiro deliberamos depois escolhemos os meios de acordo com o que foi deliberado Neste ato
de escolher o desejo passa a estar em consonacircncia com a deliberaccedilatildeo De acordo com Aristoacuteteles
Eacute a mesma coisa aquela sobre que deliberamos e a que escolhemos (bouleuton dekai poraireton to au0to) salvo estar o objeto de escolha jaacute determinado jaacute queaquilo por que nos decidimos em resultado da deliberaccedilatildeo eacute o objeto da escolha (togar e0k th=j boulh=j kriqen proaireton e0stin) Efetivamente todos cessam deindagar como devem agir depois que fizeram voltar o princiacutepio motor a si mesmose agrave parte dirigente de si mesmos pois eacute essa que escolhe[]Sendo pois o objetoda escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes adeliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcanceporque apoacutes decidir em resultado de uma deliberaccedilatildeo desejamos de acordo com oque deliberamos (bouleutikh o1recij tw~~n e0f0 h9mi~~n) Consideremos pois comodescrita em linhas gerais a escolha estabelecida a natureza dos seus objetos e ofato de que ela diz respeito aos meios (poi=a e0sti kai o3ti tw~~n ta telh) 242
Como exemplo simples imaginemos esta cena eu tenho o desejo de cursar um mestrado
strictu sensu em outro paiacutes Este curso estaacute condizente com a felicidade (fim uacuteltimo) que almejo
Apoacutes uma deliberaccedilatildeo iacutentima e consultiva com outras pessoas procuro analisar os melhores meios
para me deslocar para outro paiacutes e me matricular no curso almejado Quais meios para chegar em
outro paiacutes O aviatildeo o trem o automoacutevel a peacute Qual o meio para me matricular e manter a estadia
A bolsa de estudos economias bancaacuterias etc E assim por diante a boa escolha indicaraacute os
melhores meios Portanto nota-se que a escolha deriva de um objetivo determinado pelo desejo em
seguida haacute a deliberaccedilatildeo para analisar os meios (natildeo eacute possiacutevel deliberar sem termos um propoacutesito
uma meta)243 e finalmente eacute realizada a escolha de qual eacute o melhor meio para operacionalizar a
consecuccedilatildeo do mestrado
Eacute possiacutevel haver erro na deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles responde afirmativamente que eacute possiacutevel o
homem incorrer em equiacutevocos no ato de deliberar A deliberaccedilatildeo envolve o conhecimento dos
universais e dos fatos particulares que satildeo adquiridos respectivamente por meio do ensino e da
experiecircncia244 O erro deliberativo ocorre quando haacute ignoracircncia dos dois aspectos ou de apenas um
deles Utilizamos o proacuteprio exemplo citado na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] o erro na deliberaccedilatildeo pode
versar tanto sobre o universal como sobre o particular isto eacute tanto eacute possiacutevel ignorar que toda a
aacutegua pesada eacute maacute como esta aacutegua aqui presente eacute pesadardquo245
242 EacuteN III 1113a 1-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46 Conferir tambeacutem EacuteE I 1226b 20-25ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99243 Cf EacuteE I 1226b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99244 Cf EacuteN VI 1141b 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106245 EacuteN VI 1142a 20-22 Idem p 108
82
A escolha e a deliberaccedilatildeo satildeo dois procedimentos fundamentais para que haja uma accedilatildeo
correta O homem prudente deve sempre atentar para fazer do melhor modo possiacutevel as
mencionadas operaccedilotildees do intelecto O bom exerciacutecio destes dois estaacutegios proporcionam uma
capacidade superior de decidir Por conseguinte as boas decisotildees contribuem para uma vida feliz
Dito isto passamos a analisar no proacuteximo toacutepico as chamadas trecircs virtudes intelectuais
menores Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia Portanto conveacutem a anaacutelise para
entendermos como se forma a excelecircncia do ato de decidir ou seja a proacutepria virtude da prudecircncia
35 As trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia (sunesij)
ponderaccedilatildeo (gnwmn)
As trecircs virtudes intelectuais menores satildeo a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia
(sunesij)246e ponderaccedilatildeo (gnwmn)247 Para se tornar prudente o homem precisa adquirir o domiacutenio
destas capacidades intelectuais Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia que possuem
trecircs funccedilotildees distintas A distinccedilatildeo ocorre conforme o segmento de realidade de prudecircncia a ser
examinado e discernido Deste modo estas virtudes satildeo tipos de operaccedilotildees intelectuais (raciociacutenios)
que consistem em estaacutegios do processo de anaacutelise das circunstacircncias
A primeira virtude intelectual eacute a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) Esta eacute o aperfeiccediloamento da
deliberaccedilatildeo No livro VI Aristoacuteteles nos mostra que a boa deliberaccedilatildeo consiste em uma
investigaccedilatildeo sobre um assunto em particular Ela envolve uma espeacutecie de caacutelculo consciente que
objetiva atingir o melhor resultado possiacutevel Deste modo a boa deliberaccedilatildeo eacute uma ponderaccedilatildeo que
atinge um alto grau de exatidatildeo porque analisa todas as variaacuteveis envolvidas em uma determinada
situaccedilatildeo tendo em vista uma finalidade boa
Ressalta-se que a boa deliberaccedilatildeo envolve uma ponderaccedilatildeo correta somada a um fim bom
Pois um homem pode acertar sua anaacutelise dos fatos e escolher corretamente os meios para atingir
um fim proveniente de um desejo que natildeo eacute bom Eacute o que ocorre com os homens incontinentes ou
maldosos Outro caso eacute o de desejar um fim bom mas natildeo alcanccedilaacute-lo por causa de um raciociacutenio
246 As traduccedilotildees do termo grego synesis satildeo variadas Alguns tradutores utilizam as palavras ldquodiscernimentordquo (E Bini2013 p 192) ldquoentendimientordquo (J Marias 1959 p 97) ldquointeligecircnciardquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p 109)ldquounderstandingrdquo (H Rackham 1996 p 155) Preferimos o termo ldquointeligecircnciardquo porque nos parece expressar melhor oconceito de synesis que significa a capacidade de aprender bem e por isso julgar bem as particularidades das diversassituaccedilotildees 247 As traduccedilotildees do termo grego gnome tambeacutem divergem entre si Alguns tradutores usam as palavras ldquoponderaccedilatildeordquo(E Bini 2013 p 192) ldquocomprensioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) ldquodiscernimentordquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p110) ldquoconsiderationrdquo (H Rackham 1996 p 156) Acreditamos que o termo ldquoponderaccedilatildeordquo traduz melhor o conceito degnome por este ser um ato de sopesar a situaccedilatildeo com o fim de atingir a equidade
83
errado Ambos os tipos natildeo satildeo consideradas como boas deliberaccedilotildees Desta forma a deliberaccedilatildeo
ideal eacute feita de uma anaacutelise correta visando fins corretos De acordo com Aristoacuteteles
Mas por outro lado a excelecircncia da deliberaccedilatildeo (eu0boulia boulh=j) envolveraciociacutenio [hellip] Mas a excelecircncia da deliberaccedilatildeo eacute certamente a deliberaccedilatildeocorreta [hellip] o homem incontinente (a0krathj) e o homem mau (fau=loj) seforem haacutebeis alcanccedilaratildeo como resultado do seu caacutelculo (logismou=) o quepropuseram a si mesmos de forma que teratildeo deliberado corretamente mas o queteratildeo alcanccedilado eacute um grande mal para eles (o0rqw~~j e1stai bebouleumenoj kakonde mega ei0lhfwj) Ora ter deliberado bem eacute considerado uma boa coisa pois eacuteessa espeacutecie de deliberaccedilatildeo correta que constitui a excelecircncia da deliberaccedilatildeo ndash istoeacute aquela que tende a alcanccedilar um bem (o0rqothj boulh=j eu0bouliampampa h9 a0gaqou=teuktikh)248
A boa deliberaccedilatildeo pode ser feita de forma mais lenta ou mais raacutepida Alguns assuntos
levaratildeo mais tempo de deliberaccedilatildeo outros necessitam de menos duraccedilatildeo Com a experiecircncia de
vida a deliberaccedilatildeo em muitos casos torna-se mais veloz Mas essencialmente a boa deliberaccedilatildeo
feita em um periacuteodo razoaacutevel para obter a melhor decisatildeo Devemos recordar que o homem
prudente percebe e aproveita o momento oportuno (kairoj) para agir Por isso uma deliberaccedilatildeo
muito lenta eacute um indicativo que ainda natildeo se atingiu a excelecircncia para atingir o bem Eacute o que o
Estagirita nos mostra ldquo[hellip] eacute possiacutevel alcanccedilaacute-lo [o bem] por uma longa deliberaccedilatildeo enquanto um
outro homem chega a ele rapidamente Por conseguinte no primeiro caso natildeo possuiacutemos ainda a
excelecircncia no deliberar que eacute a correccedilatildeo tanto no que toca ao fim como ao meio e ao tempordquo249
Logo a boa deliberaccedilatildeo requer o tempo correto para ser feita de forma cuidadosa para a escolha do
meio correto mas sem procrastinaccedilatildeo
Observa-se que a deliberaccedilatildeo natildeo eacute conhecimento cientiacutefico (e0pisthmh) E tambeacutem natildeo eacute
mera opiniatildeo (doca)250 A epiacutesteme versa sobre o necessaacuterio e o inalteraacutevel A doacutexa eacute uma
afirmaccedilatildeo referente aos fatos enquanto a deliberaccedilatildeo ainda eacute uma anaacutelise Agraves vezes a opiniatildeo eacute
correta na interpretaccedilatildeo de um fato De qualquer modo ao falarmos que a deliberaccedilatildeo pressupotildee
uma anaacutelise dos fatos estaacute impliacutecito um raciociacutenio analiacutetico sobre uma fato particular
Eacute interessante observar que a bouleacute (boulh) na histoacuteria da Greacutecia Antiga significa o
ldquoconselhordquo reunido Era uma reuniatildeo de cidadatildeos em cada cidade-estado grega para deliberar
sobre assuntos puacuteblicos relativos agrave poacutelis Na eacutepoca homeacuterica era a reuniatildeo de um rei com seus
248 EacuteN VI 1142b 16-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109 Conferir tambeacutem EacuteE II 1226b 10-12 Eacutetica a Eudemo Op cit p 98 (E Bini 2015) ldquoNingueacutem delibera quanto ao fim o qual estaacute fixado para todosDelibera-se contudo sobre o que conduz a ele se isto ou aquilo conduz a ele e supondo estar decidido se isto ouaquilo como seraacute produzidordquo Cf Magna Moralia 1199a 5-9 The Works of Aristotle Magna Moralia EthicaEudemia De Virtutibus et Vitiis Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford ClarendonPress 1915 (sem paacutegina)249 EacuteN VI 1142b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109250 EacuteN VI 1142b 8-10 Ibidem p 109
84
conselheiros Eacute desta noccedilatildeo de ldquoconselhordquo que Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar Aristoacuteteles
utiliza o vocaacutebulo eubulia251 e a considera uma virtude intriacutenseca agrave prudecircncia como o Estagirita
Conforme exposto na Suma Teoloacutegica
Em sentido contraacuterio a eubulia como diz o Filoacutesofo lsquoeacute a retidatildeo na deliberaccedilatildeorsquoMas a reta razatildeo aperfeiccediloa a virtude Logo a eubulia eacute virtude Como jaacute foi dito eacuteda razatildeo da virtude humana tornar bom o ato humano Entre os demais atos eacuteproacuteprio do homem deliberar porque implica uma busca conduzida pela razatildeorelativamente agrave accedilatildeo no que consiste a vida humana pois a via especulativa estaacuteacima do homem segundo o Filoacutesofo Ora a eubulia requer a bondade dadeliberaccedilatildeo De fato esta palavra eacute formada de eu que significa bem e de bouleacuteque significa conselho ou deliberaccedilatildeo como se dissesse o ato de bem deliberar ouantes o que aconselha bem Eacute pois evidente que a eubulia eacute uma virtudehumana252
Face ao exposto a boa deliberaccedilatildeo consiste em buscar compreender a realidade com todas
as suas variaacuteveis Esta compreensatildeo tem como objetivo alcanccedilar o maior grau de exatidatildeo possiacutevel
para aumentar a probabilidade de realizar uma escolha correta dos meios para atingir o fim
determinado O homem prudente ao realizar uma boa deliberaccedilatildeo analisa o conjunto das
circunstacircncias sempre com vistas a um fim nobre A boa deliberaccedilatildeo seleciona os meios que podem
ser alcanccedilados pela accedilatildeo Portanto a euboulia eacute o primeiro passo racional para obter a virtude da
prudecircncia
A inteligecircncia (sunesij) eacute a segunda virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles Eacute definida
como uma capacidade de aprender algo rapidamente O homem detentor desta virtude eacute algueacutem que
consegue assimilar e entender de modo ceacutelere o que satildeo as coisas e as relaccedilotildees entre estas Por
isso o homem inteligente possui uma maior propensatildeo a julgar corretamente qualquer conjuntura
No contexto do saber praacutetico a inteligecircncia assemelha-se agrave perspicaacutecia porque versa sobre a
habilidade de compreender com presteza o mundo que nos cerca Logo um homem perspicaz eacute um
homem inteligente
No acircmbito da accedilatildeo esta capacidade de aprender eacute referente aos assuntos possiacuteveis de
deliberaccedilatildeo e por isso pode gerar diversas visotildees diferentes Natildeo se trata de um aprendizado que se
refere agraves ciecircncias ou agravequilo que eacute necessaacuterio e eterno Natildeo se refere ao saber teoacuterico Tambeacutem eacute
251 A boa deliberaccedilatildeo tambeacutem eacute chamada de ldquobom conselhordquo na tradiccedilatildeo cristatilde252 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 637Summa Theologiae II-II q 51 a1 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoSed contra est quod eubulia estrectitudo consilii ut philosophus dicit in VI Ethic Sed recta ratio perficit rationem virtutis Ergo eubulia est virtusRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est de ratione virtutis humanae est quod faciat actum hominis bonumInter ceteros autem actus hominis proprium est ei consiliari quia hoc importat quandam rationis inquisitionem circaagenda in quibus consistit vita humana nam vita speculativa est supra hominem ut dicitur in X Ethic Eubulia autemimportat bonitatem consilii dicitur enim ab eu quod est bonum et boule quod est consilium quasi bona consiliatiovel potius bene consiliativa Unde manifestum est quod eubulia est virtus humanardquo
85
distinta de uma mera opiniatildeo dado que a synesis eacute uma inteligecircncia voltada para os aspectos
praacuteticos Ou seja ela diz respeito ao ldquoterritoacuteriordquo da accedilatildeo Esta virtude eacute a inteligecircncia em um grau
elevado que permite um aprendizado dos elementos envolvidos nas circunstacircncias Este fato auxilia
um julgamento correto de cada situaccedilatildeo
A synesis possui uma uacutenica funccedilatildeo que eacute o ato de julgar Poreacutem natildeo pode ser confundida
com a virtude da prudecircncia Na visatildeo aristoteacutelica a virtude da prudecircncia possui a funccedilatildeo de
comandar a maneira como o homem agiraacute visto que discerne o certo e o errado em relaccedilatildeo aos
meios A inteligecircncia restringe-se apenas a julgar do melhor modo possiacutevel os elementos
relacionados a cada situaccedilatildeo Com a compreensatildeo destes elementos a prudecircncia determinaraacute qual a
accedilatildeo a ser realizada Eacute o que nos diz Aristoacuteteles
Com efeito a inteligecircncia (sunesij) nem versa sobre as coisas eternas e imutaacuteveisnem sobre toda e qualquer coisa que vem a ser mas apenas sobre aquelas quepodem tornar-se assunto de duacutevidas e deliberaccedilatildeo (bouleusaito) Portanto osseus objetos satildeo os mesmos que os da sabedoria praacutetica (fronhsij) masinteligecircncia e sabedoria praacutetica natildeo satildeo a mesma coisa Esta uacuteltima emite ordensvisto que o seu fim eacute o que se deve ou natildeo se deve fazer (ti gar dei= prattein h9mh to teloj au0th=j e0stin) a inteligecircncia pelo contraacuterio limita-se a julgar(kritikh) Inteligecircncia eacute o mesmo que perspicaacutecia (eu0sunesia) e os homensinteligentes (sunetoi) o mesmo que homens perspicazes (eu0sunetoi)253
Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a virtude da synesis diz que ela eacute um juiacutezo reto
das accedilotildees particulares algo que tambeacutem faz a prudecircncia Mas esta uacuteltima comanda as accedilotildees para
que sejam feitas de modo ordenado para o bem254 A inteligecircncia por ser apenas uma correto juiacutezo
dos elementos particulares pode ser usada para fins ruins (maus) A inteligecircncia diferencia-se da
boa deliberaccedilatildeo e do saber teoacuterico Um homem pode deliberar bem ou dominar uma determinada
ciecircncia especulativa poreacutem isso natildeo significa ser um homem inteligente Deste modo o Aquinate
considera que o homem inteligente possui um bom senso das situaccedilotildees porque apreende as coisas
como satildeo em si mesmas Vejamos na Suma Teoloacutegica
Respondo A synesis implica um juiacutezo reto natildeo nas coisas de ordem especulativamas nas accedilotildees particulares que satildeo tambeacutem objeto da prudecircncia Tambeacutem comrelaccedilatildeo a esta palavra se diz em grego que alguns satildeo syneti isto eacute sensatos oueusyneti quer dizer homens de bom senso Ao contraacuterio satildeo chamados asynetiinsensatos aos que satildeo privados desta virtude Ora a diversidade de virtudes devecorresponder agrave diferenccedila de atos que natildeo se reduzem agrave mesma causa Com efeito eacuteevidente que a bondade da deliberaccedilatildeo e a bondade de juiacutezo natildeo se reduzem agrave
253 EacuteN VI 1143a 5-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109254 Cf TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642Summa Theologiae II-II q 51 a 3
86
mesma causa porque muitos satildeo de boa deliberaccedilatildeo mas natildeo satildeo de bom sensoisto eacute dotados de um julgamento reto Na ordem especulativa alguns investigambem pelo fato de terem uma razatildeo capaz de discorrer sobre coisas diversas o queparece proceder das disposiccedilotildees da imaginaccedilatildeo que pode formar facilmentediversas representaccedilotildees imaginaacuterias e no entanto agraves vezes natildeo sabem julgar bempor deficiecircncia do intelecto o que procede sobretudo da maacute disposiccedilatildeo do sensocomum que natildeo julga bem Por tudo isso se necessita aleacutem da eubulia de outravirtude que julgue bem a qual se chama synesis255
Essa apreensatildeo eacute melhor feita por um homem de virtudes morais Os viacutecios dificultam e agraves
vezes impedem compreender as coisas particulares da maneira correta Tomaacutes de Aquino compara
este homem virtuoso e inteligente a um espelho que reflete perfeitamente as coisas como satildeo O
intelecto natildeo sofre distorccedilatildeo no momento de apreender o que satildeo as coisas em si Isso ocorre
porque as virtudes morais favorecem um juiacutezo correto sobre o que eacute o melhor a ser desejado pelo
homem Logo providenciam que o intelecto acerte no julgamento das coisas pois um homem
viciado deseja aquilo que eacute errado o que o faz interpretar as coisas conforme seus viacutecios Nos diz
Satildeo Tomaacutes na Suma Teoloacutegica
Quanto ao 1ordm portanto deve-se dizer que o juiacutezo reto consiste em que a potecircnciacognoscitiva apreenda as coisas tais como satildeo em si mesmas Isto se daacute quandoestaacute bem disposta como um espelho em boas condiccedilotildees reproduz as imagens doscorpos como satildeo em si mesmos Mas se for um espelho mal disposto as imagensaparecem distorcidas e disformes A boa disposiccedilatildeo da potecircncia cognoscitiva parareceber as coisas como satildeo em si mesmas proveacutem radicalmente da natureza equanto agrave sua perfeiccedilatildeo depende do exerciacutecio do dom ou da graccedila E isso pode sedar de dois modos diretamente por parte da proacutepria potecircncia cognoscitiva que natildeoestaacute imbuiacuteda de concepccedilotildees depravadas mas verdadeiras e retas tal eacute a funccedilatildeoproacutepria da synesis como virtude especial E indiretamente pela boa disposiccedilatildeo dapotecircncia apetitiva em virtude da qual o homem emite um juiacutezo reto sobre o que eacutedesejaacutevel E assim os haacutebitos das virtudes morais influem sobre um bomjulgamento virtuoso a respeito dos fins enquanto que a synesis se ocupa mais dosmeios Quanto ao 2ordm deve-se dizer que nos maus pode se encontrar um juiacutezo reto somenteno plano universal poreacutem com respeito agrave accedilatildeo singular seu juiacutezo eacute sempredefeituoso como acima foi dito256
255 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 640-641Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodsynesis importat iudicium rectum non quIbidem circa speculabilia sed circa particularia operabilia circa quae etiamest prudentia Unde secundum synesim dicuntur in Graeco aliqui syneti idest sensati vel eusyneti idest homines bonisensus sicut e contrario qui carent hac virtute dicuntur asyneti idest insensati Oportet autem quod secundumdifferentiam actuum qui non reducuntur in eandem causam sit etiam diversitas virtutum Manifestum est autem quodbonitas consilii et bonitas iudicii non reducuntur in eandem causam multi enim sunt bene consiliativi qui tamen nonsunt bene sensati quasi recte iudicantes Sicut etiam in speculativis aliqui sunt bene inquirentes propter hoc quodratio eorum prompta est ad discurrendum per diversa quod videtur provenire ex dispositione imaginativae virtutisquae de facili potest formare diversa phantasmata et tamen huiusmodi quandoque non sunt boni iudicii quod estpropter defectum intellectus qui maxime contingit ex mala dispositione communis sensus non bene iudicantis Et ideooportet praeter eubuliam esse aliam virtutem quae est bene iudicativa Et haec dicitur synesisrdquo 256 Ibidem p 640-641 Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoAdprimum ergo dicendum quod rectum iudicium in hoc consistit quod vis cognoscitiva apprehendat rem aliquam
87
Aristoacuteteles natildeo cita nenhum exemplo ilustrativo sobre a synesis limita-se somente em
descrever suas caracteriacutesticas Neste sentido pensamos ser oportuno fazecirc-lo para facilitar a
compreensatildeo desta virtude intelectual menor A inteligecircncia permite o ceacutelere aprendizado sobre os
elementos envolvidos em uma dada situaccedilatildeo Isto favorece o discernimento prudencial porque haacute
um conhecimento mais acurado das particularidades do caso Assim imaginemos uma conjuntura
do paiacutes no qual exista uma crise generalizada no transporte de insumos devida agrave falta de
abastecimento de combustiacuteveis Este eacute o panorama Para emitir um juiacutezo correto eacute indispensaacutevel
entender cada elemento que compotildeem a situaccedilatildeo Cada elemento deve ser entendido no seu
funcionamento proacuteprio e na sua relaccedilatildeo com os outros O homem prudente sendo possuidor da
synesis estudaraacute e aprenderaacute os vaacuterios elementos na circunstacircncia descrita por exemplo a
paralisaccedilatildeo dos transportadores e seu papel na logiacutestica de bens materiais o refinamento e
comercializaccedilatildeo dos derivados do petroacuteleo etc A compreensatildeo de cada parte que promove a
compreensatildeo do todo Logo para emitir um parecer correto ou seja sensato sobre a conjuntura e
decidir a melhor accedilatildeo a ser realizada o prudente utiliza a inteligecircncia para aprender os elementos
particulares e em que consiste cada um deles
Em suma a synesis eacute a capacidade de resolver situaccedilotildees novas de maneira ceacutelere e com
sucesso adaptando-se a elas por meio do conhecimento adquirido Esta virtude permite que se faccedila
um bom juiacutezo das coisas Deste modo o homem adquire um bom senso que interpreta com
razoaacutevel grau de acerto o que ocorre em cada caso
A ponderaccedilatildeo (gnwmn) eacute a terceira virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles De acordo
com o filoacutesofo de Estagira eacute definida como ldquoO que se chama discernimento e em virtude do qual
se diz que os homens satildeo lsquojuiacutezes humanosrsquo e que lsquopossuem discernimentorsquo eacute a reta discriminaccedilatildeo
do equumlitativordquo257 O conceito de equidade significa julgar de uma foma justa uma determinada
demanda Para que este julgamento equitativo ocorra eacute necessaacuterio que o julgador possua a virtude
secundum quod in se est Quod quidem provenit ex recta dispositione virtutis apprehensivae sicut in speculo si fueritbene dispositum imprimuntur formae corporum secundum quod sunt si vero fuerit speculum male dispositumapparent ibi imagines distortae et prave se habentes Quod autem virtus cognoscitiva sit bene disposita ad recipiendumres secundum quod sunt contingit quidem radicaliter ex natura consummative autem ex exercitio vel ex muneregratiae Et hoc dupliciter Uno modo directe ex parte ipsius cognoscitivae virtutis puta quia non est imbuta pravisconceptionibus sed veris et rectis et hoc pertinet ad synesim secundum quod est specialis virtus Alio modo indirecteex bona dispositione appetitivae virtutis ex qua sequitur quod homo bene iudicet de appetibilibus Et sic bonum virtutisiudicium consequitur habitus virtutum moralium sed circa fines synesis autem est magis circa ea quae sunt ad finemAd secundum dicendum quod in malis potest quidem iudicium rectum esse in universali sed in particulari agibilisemper eorum iudicium corrumpitur ut supra habitum estrdquo Na presente citaccedilatildeo Satildeo Tomaacutes estaacute discutindo na questatildeo51 artigo 3 (1) se a synesis natildeo eacute virtude e (2) se os homens maus possuem ou natildeo a synesis257 EacuteN VI 1143a 19-21 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Conforme apontamos na nota derodapeacute nordm 245 a ediccedilatildeo em portuguecircs que usamos da EacuteN usa a palavra ldquodiscernimentordquo para traduzir o gnome (LVallandro e G Bornheim 1987 p 110) No presente trabalho preferimos chamar de ldquoponderaccedilatildeordquo pelos motivosexpostos na referida nota
88
moral da justiccedila O bom julgador eacute aquele que tem consideraccedilatildeo pelos outros Ou seja ele pensa nos
outros ao ponderar o que eacute mais justo para todos Em outros termos a gnome nasce na estima que o
julgador tem pelas outras pessoas Nos mostra Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco
Mostra-o o fato de dizermos que o homem equumlitativo (gnwmhn) eacute acima de tudoum homem de discernimento humano (suggnwmonaj) e de (sic) identificarmos aequidade com o discernimento humano a respeito de certos fatos E essediscernimento eacute aquele que discrimina corretamente o que eacute equitativo sendo odiscernimento correto (e0pieikou~~j o0rqh) aquele que julga com a verdade (o0rqh d h9rsquo e1mpeiroj ou0k e1stintou~~ a0lhqou~~j)258
Nota-se a vital importacircncia das virtudes morais para que exista a gnome Sem a solidez das
virtudes no caraacuteter do homem dificilmente poderaacute haver um julgamento justo quando a equidade
se fizer necessaacuteria A gnome e as virtudes morais satildeo imprescindiacuteveis para o exerciacutecio da justiccedila em
sociedade Deste modo natildeo existe nenhuma poacutelis ou naccedilatildeo que continue agregada de modo
civilizado sem a equidade
A Magna Moralia descreve que a esfera em que atua a gnome eacute aquela dos direitos legais
Onde as leis natildeo satildeo claras a equidade deve aparecer para esclarecer o que deve ser feito uma vez
que eacute impossiacutevel os legisladores preverem todos os tipos de situaccedilotildees em detalhes Logo cabe ao
bom julgador (eu0gnwmwn) clarear as questotildees que natildeo satildeo resolvidas prontamente pelas leis 259
Neste sentido a gnome eacute uma virtude intelectual que auxilia no conviacutevio muacutetuo Ela
promove a harmonia nas relaccedilotildees cotidianas entre os cidadatildeos Mas eacute indispensaacutevel para
governantes legisladores e magistrados haja vista o grande nuacutemero de pessoas que suas decisotildees
afetam260 Os governantes devem praticar este reto juiacutezo equitativo para que sua administraccedilatildeo
considere as necessidades de todos os cidadatildeos e natildeo apenas de uma parcela deles O juiacutezo
equitativo eacute ainda mais requisitado quando as leis satildeo inexistentes obtusas ou natildeo se aplicam ao
caso demandado Nesta situaccedilatildeo exige-se que o magistrado possua uma conduta moral iacutentegra para
que possa ponderar de forma correta e aplicar a justiccedila (dikh) Um magistrado que tenha viacutecios de
caraacuteter incorreraacute em dois efeitos maleacuteficos O primeiro eacute que natildeo julgaraacute de modo equitativo Por
ter viacutecios corruptiacuteveis natildeo poderaacute estabelecer a dike porque tenderaacute a proteger um dos querelantes
258 EacuteN VI 1143a 22-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 A suggnome eacute a qualidade do homemaltruiacutesta indulgente Este homem pondera as situaccedilotildees visando o que eacute o mais justo para todos os envolvidos nasituaccedilatildeo Deste modo ele profere um reto julgamento 259 Cf Magna Moralia 1198b 24-34 The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et VitiisOp Cit sem paacutegina260 Devemos recordar que na filosofia moral aristoteacutelica o objetivo principal dos liacutederes da poacutelis eacute promover aeudaimonia na poacutelis Em vista disto a virtude intelectual da gnome tem uma fundamental importacircncia Cf EacuteN VI1142a 9-10 Poliacutetica I 1252a 5 1323b 22-35 1324a 5-35
89
em detrimento do outro O segundo eacute que o magistrado ao atingir o niacutevel de corrupccedilatildeo moral seus
viacutecios o impediratildeo de ponderar corretamente a querela Em vista disto no momento de proferir sua
sentenccedila inadvertidamente ao aplicar a lei o faraacute de modo que natildeo atende ao que eacute mais justo na
situaccedilatildeo
O juiacutezo equitativo eacute necessaacuterio para os legisladores porque sua missatildeo eacute promulgar leis
justas Estas leis auxiliam que a poacutelis atinja a vida feliz e estimulam os cidadatildeos a serem virtuosos
Os legisladores corrompidos por viacutecios de caraacuteter natildeo possuem condiccedilotildees para estabelecer uma
sociedade justa Ao contraacuterio as leis seratildeo promulgadas para fins errocircneos e incentivaratildeo os viacutecios
nos cidadatildeos O bom legislador possui a capacidade de ponderar de forma equitativa porque eacute
detentor de um caraacuteter virtuoso moral e intelectual Por conseguinte faraacute leis que preconizem as
relaccedilotildees justas entre os cidadatildeos
Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a gnome argumenta que o juiacutezo equitativo eacute
aplicado nos casos insoacutelitos nos quais as regras comuns natildeo podem ser usadas como padratildeo de
referecircncia Satildeo casos de exceccedilatildeo ou extraordinaacuterios nos quais usar o padratildeo comum de julgamento
faria o julgador cometer um erro de juiacutezo e consequentemente uma injusticcedila Satildeo nestas situaccedilotildees
que o bom julgador pondera acertadamente sobre o mais justo a ser feito O Doutor Angeacutelico
assinala a diferenccedila entre synesis e gnome A primeira compreende as regras comuns que orientam
as accedilotildees nos casos ordinaacuterios e frequentes A segunda julga as situaccedilotildees excepcionais estas natildeo
podem ser solucionadas de acordo com o normativo regular e costumeiro Em vista disto a gnome
julga o que eacute mais justo a partir dos princiacutepios mais elevados que os aplicados nos casos ordinaacuterios
Conforme descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] Os haacutebitos cognoscitivos distinguem-se segundo princiacutepios mais ou menoselevados como a sabedoria considera os princiacutepios mais elevados no acircmbitoespeculativo do que a ciecircncia Por isso se distinguem entre si O mesmo deve sedar nas accedilotildees Eacute evidente que as coisas que estatildeo fora da ordem de um princiacutepio oude uma causa inferior cai agraves vezes sob a ordem de um princiacutepio mais elevado [hellip]Acontece agraves vezes haver a necessidade de fazer algo agrave margem das regras comunsda accedilatildeo Por exemplo natildeo devolver um depoacutesito ao inimigo da paacutetria e outrascoisas semelhantes Por isso se deve julgar a respeito desses casos segundoprinciacutepios mais elevados do que as regras comuns segundo as quais a synesisjulga E segundo estes princiacutepios mais elevados exige-se tambeacutem uma potecircnciajustificativa mais elevada esta chama-se gnome e ela implica certa perspicaacutecia nojulgamento[hellip] portanto deve-se dizer que a synesis julga bem todos os casos que caem sob asregras comuns Mas outras accedilotildees devem ser julgadas agrave margem das regras comunscomo se acabou de dizer [hellip] deve-se dizer que considerar tudo o que pode suceder agrave margem do cursonormal da natureza pertence somente agrave providecircncia divina mas entre os homens o
90
que for mais perspicaz pode conhecer por sua razatildeo muitas delas A isso se ordenaa gnome que implica certa perspicaacutecia no julgamento 261
Observa-se que as fronteiras entre a synesis e a gnome nem sempre satildeo muitos distinguiacuteveis
Ambas analisam as particularidades de cada situaccedilatildeo Mas se as funccedilotildees de cada uma destas
virtudes especiais nem sempre satildeo niacutetidas deve-se ao fato de que elas operam juntas e estatildeo
atreladas uma agrave outra O bom juiz somente consegue ponderar bem e promover a equidade em cada
situaccedilatildeo se conseguir ser inteligente o suficiente para aprender sobre os elementos particulares
envolvidos em cada circunstacircncia A partir daiacute consegue extrair regras comuns Justamente por
apreender as regras comuns com base nos fatos o homem prudente pode sopesar de modo correto
Diante disto as situaccedilotildees excepcionais podem ser julgadas agrave luz de princiacutepios mais elevados que as
regras comuns podem fazecirc-lo
Apoacutes a descriccedilatildeo das trecircs virtudes intelectuais menores e como elas interagem entre si para a
realizaccedilatildeo de uma boa decisatildeo pelo homem prudente julgamos oportuno descrever brevemente
sobre a razatildeo intuitiva (nou=j) Aristoacuteteles faz referecircncia sobre esta operaccedilatildeo do intelecto no mesmo
Livro VI no qual disserta sobre a prudecircncia e as demais virtudes menores Dito isto passamos ao
proacuteximo toacutepico acerca do noucircs (nou=j)
36 A razatildeo intuitiva (nou=j) e a prudecircncia
O noucircs (nou=j)262complementa as virtudes intelectuais No campo do saber teoacuterico eacute
conceituado como a capacidade que o intelecto possui de apreender os primeiros princiacutepios que
261 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642-643Summa Theologiae II-II q 51 a 4 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodhabitus cognoscitivi distinguuntur secundum altiora vel inferiora principia sicut sapientia in speculativis altioraprincipia considerat quam scientia et ideo ab ea distinguitur Et ita etiam oportet esse in activis Manifestum est autemquod illa quae sunt praeter ordinem inferioris principii sive causae reducuntur quandoque in ordinem altioris principiisicut monstruosi partus animalium sunt praeter ordinem virtutis activae in semine tamen cadunt sub ordine altiorisprincipii scilicet caelestis corporis vel ulterius providentiae divinae Unde ille qui consideraret virtutem activam insemine non posset iudicium certum ferre de huiusmodi monstris de quibus tamen potest iudicari secundumconsiderationem divinae providentiae Contingit autem quandoque aliquid esse faciendum praeter communes regulasagendorum puta cum impugnatori patriae non est depositum reddendum vel aliquid aliud huiusmodi Et ideo oportetde huiusmodi iudicare secundum aliqua altiora principia quam sint regulae communes secundum quas iudicat synesisEt secundum illa altiora principia exigitur altior virtus iudicativa quae vocatur gnome quae importat quandamperspicacitatem iudicii [] dicendum quod synesis est vere iudicativa de omnibus quae secundum communes regulas fiunt Sed praetercommunes regulas sunt quaedam alia diiudicanda ut iam dictum est [] dicendum quod omnia illa quae praeter communem cursum contingere possunt considerare pertinet ad solamprovidentiam divinam sed inter homines ille qui est magis perspicax potest plura horum sua ratione diiudicare Et adhoc pertinet gnome quae importat quandam perspicacitatem iudiciirdquo 262 Jaacute apontamos a dificuldade de traduccedilatildeo do termo grego noucircs (cf nota de rodapeacute nordm 115) Optamos pelo termoldquointuiccedilatildeordquo ou ldquorazatildeo intuitivardquo por julgarmos serem mais adequados para expressar o tipo de operaccedilatildeo intelectualdescrita por Aristoacuteteles
91
servem de fundamento para as ciecircncias Ele capta aquilo que natildeo eacute possiacutevel ser demonstrado por
meio de deduccedilotildees ou induccedilotildees Contudo o noucircs tambeacutem atua no campo do saber praacutetico Neste
aspecto o noucircs capta os fatos particulares que variam a cada situaccedilatildeo A partir dos particulares
realiza uma induccedilatildeo para chegar as premissas universais Por consequecircncia o noucircs auxilia o homem
prudente a perceber de modo imediato a melhor accedilatildeo a ser realizada sob quaisquer circunstacircncias
De acordo com Aristoacuteteles
A razatildeo intuitiva (nou=j) por sua vez ocupa-se com coisas imediatas em ambos ossentidos pois tanto os primeiros termos como os uacuteltimos satildeo objetos da razatildeointuitiva e natildeo do raciociacutenio e a razatildeo intuitiva pressuposta pelas demonstraccedilotildeesapreende os termos primeiros e imutaacuteveis enquanto a razatildeo intuitiva requerida peloraciociacutenio praacutetico apreende o fato uacuteltimo e variaacutevel isto eacute a premissa menor Eesses fatos variaacuteveis servem como pontos de partida para a apreensatildeo do fim[conclusatildeo do silogismo] visto que chegamos aos universais (kaqolou) pelosparticulares eacute mister por conseguinte que tenhamos percepccedilatildeo destes uacuteltimos etal percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva (toutwn ou]n e1xein dei= ai1sqhsin au3th d e0stirsquo e1mpeiroj ou0k e1stinnou=j)263
O noucircs natildeo eacute uma deliberaccedilatildeo nem opiniatildeo nem ciecircncia Podemos caracterizaacute-lo como uma
espeacutecie de ldquogolpe de vistardquo Eacute uma percepccedilatildeo imediata de tudo o que envolve uma situaccedilatildeo
qualquer e que ocorre sem a necessidade da deliberaccedilatildeo Pelo menos eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo
tatildeo veloz que mal pode ser definida como tal Eacute o homem que diante de uma ocorrecircncia sabe
rapidamente qual a accedilatildeo a ser realizada e com boas chances de acerto O comentador Pierre
Aubenque descreve esta atuaccedilatildeo do noucircs como um resultado abrupto que ocorre ao final da
reflexatildeo
Se se entende por nou~~j a apreensatildeo imediata dos princiacutepios da demonstraccedilatildeo tantoa prudecircncia quanto a sabedoria se encontram igualmente distantes disso emborapor razotildees diferentes a sabedoria porque eacute feita de demonstraccedilotildees a prudecircnciaporque natildeo concerne nem ao demonstraacutevel nem a seu princiacutepio Mas se se entendepor nou~~j a apreensatildeo imediata das ldquocoisas uacuteltimas e particularesrdquo264 seraacute precisoatribuir tal intuiccedilatildeo ao homem prudente ao mesmo tempo homem de pensamento eaccedilatildeo herdeiro dos heroacuteis da tradiccedilatildeo o phronimos une nele a lenta reflexatildeo e aimediatez do golpe de vista que natildeo eacute senatildeo a brusca eclosatildeo da primeira ele unea minuacutecia e a inspiraccedilatildeo o espiacuterito de previsatildeo e o espiacuterito de decisatildeo265
Este senso imediato sobre as circunstacircncias eacute resultado da atuaccedilatildeo conjunta das trecircs virtudes
intelectuais menores somada agrave empeiria Por isto o homem prudente eacute algueacutem que possui e exerce
263 EacuteN VI 1143a 35 ndash 1143b 7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110264 Pierre Aubenque assinala esta passagem na EacuteN VI 1143a 28265 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 237-238
92
muito bem a euboulia a synesis a gnome A velocidade de saber o que fazer em certas situaccedilotildees eacute
fruto da experiecircncia adquirida com o passar do tempo que aperfeiccediloa as trecircs virtudes intelectuais
menores Afinal no decorrer do tempo quantas circunstacircncias foram deliberadas Quantos casos
foram julgados Quantas escolhas foram feitas dia apoacutes dia Devido a isto quando comparado a
outros homens o phronimos sabe do modo mais raacutepido e certeiro entender o que se passa a sua
volta e realizar as accedilotildees mais corretas266
Devido agrave empeiria e ao tempo que ajudam a desenvolver as virtudes intelectuais menores
Aristoacuteteles elogia os homens com mais idade e maior experiecircncia A sabedoria destes expressa em
suas opiniotildees maacuteximas e proveacuterbios merecem tanto respeito e atenccedilatildeo quanto a devida a
renomados cientistas ou especialistas em alguma ciecircncia Os homens prudentes satildeo os saacutebios os
ldquoespecialistasrdquo na arte de viver Conforme nos mostra Aristoacuteteles
Eis aiacute por que tais disposiccedilotildees [euboulia synesis noucircs] satildeo consideradas comodotes naturais e enquanto de ningueacutem se diz que eacute filoacutesofo (sofoj) por natureza amuitos se atribui um discernimento inteligecircncia e uma razatildeo intuitiva inatos (gnwmhn d e1xein kai sunesin kai nou=nrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] dizendo que uma determinada idade trazconsigo a razatildeo intuitiva e o discernimento isto implica que a causa eacute natural[Donde se segue que a razatildeo intuitiva eacute tanto um comeccedilo como um fim (a0rxh kaiteloj nou=j) pois as demonstraccedilotildees partem deste e sobre estes versam] Por issodevemos acatar natildeo menos que as demonstraccedilotildees os aforismos e opiniotildees(docaij) natildeo demonstradas (a0podeiceij) de pessoas experientes (e0mpeirwn) emais velhas assim como das pessoas dotadas de sabedoria praacutetica Com efeitoessas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olho(e0mpeiriaj o1mma o9rw~~sin o0rqw~~j)267
Vimos como o aperfeiccediloamento das virtudes intelectuais menores eacute fundamental para a
aquisiccedilatildeo da prudecircncia O entrelaccedilamento destas trecircs capacidades do intelecto permite uma
interpretaccedilatildeo correta dos fatos Esta por sua vez auxilia para que haja uma boa anaacutelise de
conjuntura ou seja condizente com a realidade dos fatos No que lhe concerne esta averiguaccedilatildeo
certeira favorece a boa deliberaccedilatildeo Logo o homem prudente eacute aquele que realiza um bom exame
das circunstacircncias porque conhece os fatos particulares e os fins aos quais se destinam agrave accedilatildeo
humana
Apoacutes o exame das partes integrantes da prudecircncia resta uma questatildeo a ser tratada como a
prudecircncia nos conduz agrave eudaimonia A elucidaccedilatildeo desta pergunta estaacute exposta ao longo de toda a
266 Recordamos que uma accedilatildeo correta precisa ser moralmente nobre e eficaz para atingir o resultado previsto 267 EacuteN VI 1143b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Referente a expressatildeo ldquo[hellip] Comefeito essas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olhordquo Acreditamos que seja melhorcompreensiacutevel transcrevendo-a da seguinte forma ldquo[hellip] pois a experiecircncia lhes transmitiu uma visatildeo com a qualenxergam as coisas com acertordquo (E Bini 2013 p 195) Outra traduccedilatildeo [hellip] for experience has given them an eye forthings and so they see correctlyrdquo (H Rackham 1996 p 157)
93
explanaccedilatildeo feita Mas pensamos ser interessante esclarecer melhor a resposta Dito isto passemos
ao proacuteximo toacutepico
37 Prudecircncia virtudes morais e eudaimonia
No final do livro VI268 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles responde a alguns questionamentos
especiacuteficos sobre a prudecircncia Provavelmente seriam questotildees feitas por homens natildeo afeiccediloados agraves
reflexotildees mais profundas sobre a sophia e a phronecircsis De modo geral as perguntas versam sobre a
utilidade das virtudes intelectuais Estes questionamentos possuem o seu valor porque vatildeo no
acircmago de um aspecto que natildeo pode ser esquecido no estudo sobre o saber teoacuterico e o saber praacutetico
Estes saberes satildeo apenas um mero exerciacutecio intelectual sem viacutenculo com o cotidiano do homem
comum Apenas seriam uma espeacutecie de jogo para exercitar o raciociacutenio Algo sem importacircncia para
a construccedilatildeo de uma vida feliz Naturalmente que natildeo A sophia e a phronecircsis satildeo fundamentais
para a felicidade Eacute o que o Estagirita tentaraacute demonstrar
O filoacutesofo de Estagira comeccedila se interrogando acerca do aparente fato de que a sophia natildeo
pode auxiliar na busca da eudaimonia porque natildeo diz respeito agraves coisas contingenciais nem agraves que
foram geradas Apenas trata das coisas eternas e necessaacuterias Ao contraacuterio do saber teoacuterico a
phronecircsis versa sobre aquilo que nos faz agir de modo justo e nobre Entretanto uma vez que ser
justo e nobre satildeo qualidades do homem bom natildeo faz sentido desenvolver estes dois saberes
porque em tese o homem virtuoso jaacute possui qualidades boas E para um homem que natildeo eacute
virtuoso natildeo faria nenhuma diferenccedila basta ele viver sem prudecircncia ou acatar os conselhos dos
prudentes Entatildeo qual a necessidade de aprender e aprimorar a sophia e a phronecircsis Citamos o
texto
Mas algueacutem poderia perguntar de que servem essas faculdades da mente jaacute que (1)a sabedoria filosoacutefica (sofia) natildeo considera nenhuma das coisas que tornam umhomem feliz (pois natildeo diz respeito agraves coisas que se geram) e quanto agrave sabedoriapraacutetica embora trate dessas coisas para que necessitamos dela A sabedoriapraacutetica eacute a disposiccedilatildeo da mente que se ocupa com as coisas justas nobres e boaspara o homem (fronesij e0stin peri ta dikaia kai kala kai a0gaqaa0nqrwpw) mas essas satildeo coisas cuja praacutetica eacute caracteriacutestica de um homem bom(agaqou= e0stin a0ndroj) e natildeo nos tornamos mais capazes de agir pelo fato deconhececirc-las se as virtudes satildeo disposiccedilotildees do caraacuteter (e3ceij ai9 a0retai ei0sin)[hellip]269
268 Cf EacuteN VI 1143b 20 - 1144a 35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111-112 EacuteE I 1143b 20 -1144a 35 Eacutetica a Eudemo Op cit p 198-200269 EacuteN VI 1143b 18-28 Ibidem p 111
94
Decorrente do questionamento anterior surge outra questatildeo que Aristoacuteteles se defronta a
saber se a phronecircsis seria superior agrave sophia para construir uma vida feliz Ele faz uma comparaccedilatildeo
com a medicina e a sauacutede Pode-se pensar que natildeo necessariamente precisamos dominar a medicina
para termos sauacutede Basta praticar atos saudaacuteveis e teremos a sauacutede Poreacutem ao seguirmos esta linha
de raciociacutenio haacute uma estranheza a phronecircsis torna-se superior agrave sophia Ou seja a sabedoria
praacutetica que se refere aos meios torna-se mais importante que a sabedoria teoacuterica que compreende
as coisas mais elevadas Logo como a prudecircncia seria superior e mais importante que a sabedoria
teoacuterica De acordo com Aristoacuteteles
Mas (2) se dissermos que um homem deve possuir sabedoria praacutetica natildeo paraconhecer as verdades morais mas para tornar-se bom a sabedoria praacutetica nenhumautilidade teraacute para os que jaacute satildeo bons e por outro lado de nada serve ela para osque natildeo possuem virtude Com efeito nenhuma diferenccedila faz que eles proacutepriostenham sabedoria praacutetica ou que obedeccedilam (peiqesqai) a outros que a tecircm e seriasuficiente fazer o que costumamos fazer com respeito agrave sauacutede (u9gieian) emboradesejemos gozar sauacutede natildeo nos dispomos por isso a aprender a arte da medicina(3) Por outro pareceria estranho que a sabedoria praacutetica sendo inferior agrave filosoacutefica(sofiaj) tivesse autoridade (kuriwtera) sobre ela como parece implicar o fatode que a arte que produz uma coisa qualquer exerce o mando e o governorelativamente a essa coisa270
A resposta eacute que a sophia e a phronecircsis por serem virtudes correspondem agrave excelecircncia das
respectivas partes intelectuais da alma Elas satildeo o aacutepice das operaccedilotildees do intelecto que atuam nos
seus campos especiacuteficos a teoria e a accedilatildeo Portanto por serem a perfeiccedilatildeo daquilo que existe de
melhor em noacutes mesmos ndash a razatildeo ndash elas devem ser almejadas por si proacuteprias mesmo que
aparentemente natildeo produzam nenhum tipo de resultado
O detalhe eacute que as virtudes intelectuais e morais produzem efeitos reais Elas resultam na
eudaimonia Ao usar a razatildeo de maneira sublime o homem se torna mais feliz E quanto a
phronecircsis e as virtudes morais A prudecircncia e a virtude moral atuam juntas para que o homem
cumpra plenamente sua funccedilatildeo Ao cumpri-la o homem eacute feliz A prudecircncia garante a reta escolha
dos meios A virtude moral assegura a retidatildeo dos fins nobres pelos quais o homem orienta a sua
vida Portanto a conquista e o aprimoramento das virtudes intelectuais e morais satildeo indispensaacuteveis
para a eudaimonia Conforme nos expotildee Aristoacuteteles
270 EacuteN VI 1143b 29-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111
95
(1)Antes de tudo diremos que essas disposiccedilotildees de caraacuteter devem ser dignas deescolha porque satildeo as virtudes das duas partes da alma respectivamente e o seriamainda que nenhuma delas produzisse o que quer fosse (2) Em segundo lugar elasde fato produzem alguma coisa ndash natildeo poreacutem como a arte meacutedica produz sauacutedemas como a sauacutede (sic) produz sauacutede Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produzfelicidade (sofia eu0daimonian) porque sendo ela uma parte da virtude inteira [davirtude como um todo] (o3lhj a0reth=j) torna um homem feliz pelo fato de estar nasua posse e atualizar-se (e0nergei=n eu0daimona)271
A prudecircncia eacute relevante para tornar os homens melhores Certamente que sim Porque a
accedilatildeo virtuosa eacute resultado de uma escolha consciente do homem Os fins e os meios devem ser
corretos Somente quem for prudente realiza a correta escolha dos meios para alcanccedilar o fim
escolhido Unicamente opta pelos fins corretos quem for moralmente virtuoso O homem prudente
reuacutene em si todas as virtudes morais Desta maneira o Supremo Bem (eudaimonia) apenas pode ser
ldquovisualizadordquo pelo homem virtuoso e natildeo por aquele que tem viacutecios (kakoi) pois estes uacuteltimos
pervertem a visatildeo correta do que eacute o bem para o homem e dificultam a sua escolha De acordo com
Aristoacuteteles
(3) Por outro lado a obra (e1rgon) de um homem soacute eacute perfeita (a0potelei=tai)quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica (fponesij) e com a virtude moral(h0qikhn a0rethn) esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito (proairesin o0rqhnpoiei= h9 a0reth) aquela com que escolhamos os devidos meios [hellip] Assim comodizemos que algumas pessoas que praticam atos justos natildeo satildeo necessariamentejustas por isso ndash referimo-nos agraves que praticam os atos prescritos pela lei querinvoluntariamente quer devido agrave ignoracircncia ou por alguma outra razatildeo mas natildeo nointeresse dos proacuteprios atos embora seja certo que tais pessoas fazem o que deveme todas as coisas que o homem bem (sic) deve fazer - parece que do mesmo modopara algueacutem ser bom eacute preciso encontrar-se em determinada disposiccedilatildeo quandopratica cada um desses atos numa palavra eacute preciso praticaacute-los em resultado deuma escolha e no interesse dos proacuteprios atos 272
Assim a resposta agrave pergunta inicial do porque desenvolver as virtudes intelectuais e morais
para ser feliz pode ser respondida de modo satisfatoacuterio Eacute a consolidaccedilatildeo da virtude intelectual da
prudecircncia e das virtudes morais que o fazem se tornar um phronimos Deste modo ele consegue
discernir o bem em qualquer situaccedilatildeo e escolher os meios adequados para atingiacute-lo
271 EacuteN VI 1144a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111 Na expressatildeo ldquo[hellip] mas como a sauacutedeproduz sauacutederdquo entendemos que a ideia que se quer transmitir eacute mais compreensiacutevel na traduccedilatildeo de Edson Bini ldquo[hellip]mas naquele segundo o qual o sadio eacute a causa da sauacutederdquo (E Bini 2013 p 196) Tambeacutem pode ser entendido como oldquosaudaacutevelrdquo em vez de o ldquosadiordquo272 EacuteN VI 1144a 9-22 Ibidem p 111-112
96
CONCLUSAtildeO
Nas consideraccedilotildees finais deste estudo sobre a phronecircsis retomamos brevemente o caminho
percorrido Como fio condutor trata-se de compreender no que consiste a virtude intelectual da
prudecircncia e como esta auxilia na obtenccedilatildeo da eudaimonia A Eacutetica a Nicocircmaco eacute um tratado sobre
as virtudes e a felicidade Nesta obra o objetivo de Aristoacuteteles eacute indicar o que eacute a verdadeira vida
feliz e traccedilar um itineraacuterio para alcanccedilaacute-la ou melhor construiacute-la A vida feliz natildeo eacute fruto do acaso
mas eacute resultado de uma escolha baseada nas virtudes E se eacute uma escolha o homem deve estar
consciente desta ldquoescolha de vidardquo e arcar com as responsabilidades que esta acarreta Se a
felicidade consiste em parte em tomar boas decisotildees a razatildeo praacutetica deve atuar A virtude
intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia da razatildeo praacutetica no que se refere ao aspecto decisoacuterio Do
mesmo modo que um construtor que conhece o que deve fazer para construir uma casa e escolhe os
melhores meios para fazecirc-la certamente a construiraacute da forma correta Ele atingiu a meta
determinada que eacute a proacutepria casa Assim tambeacutem eacute a construccedilatildeo de uma vida feliz Logo quanto
mais o homem se exercitar na virtude intelectual da prudecircncia melhores seratildeo suas decisotildees o que
aumentaraacute as suas chances de ter uma vida feliz
Eacute importante compreender como o Estagirita descreve a relaccedilatildeo entre os bens e os fins ateacute
chegar ao conceito de Supremo Bem que eacute a proacutepria felicidade Uma vez que o ser humano possui
uma funccedilatildeo proacutepria caraterizada pela racionalidade satildeo as virtudes morais que promovem o
domiacutenio dos desejos e permitem que o indiviacuteduo siga os ditames da razatildeo Isso significa que existe
uma interaccedilatildeo entre a virtude intelectual da prudecircncia e as virtudes morais Para que a prudecircncia
apareccedila eacute necessaacuterio que as virtudes morais tambeacutem se desenvolvam Por isto a aquisiccedilatildeo das
virtudes morais eacute imprescindiacutevel para que o homem atinja a excelecircncia moral e conquiste a
plenitude de vida Entretanto para que haja o florescimento dessas virtudes e sua consolidaccedilatildeo no
homem virtuoso a prudecircncia precisa atuar Neste contexto a phronecircsis delimita o paracircmetro
correto para que o homem possa exercer uma accedilatildeo virtuosa dentro das circunstacircncias mutaacuteveis com
as quais se depara constantemente Esta virtude intelectual aplica-se no domiacutenio do contingente e
natildeo trata das coisas que nunca se alteram Seu acircmbito de aplicaccedilatildeo eacute o mundo das atividades
humanas pois eacute a prudecircncia que sopesa e julga as situaccedilotildees Assim a prudecircncia orienta o indiviacuteduo
a perceber os melhores meios para atingir os fins escolhidos E principalmente permite escolher os
meios para alcanccedilar o fim mais elevado de todos que eacute a proacutepria eudaimonia Logo esta virtude
intelectual possui uma funccedilatildeo basilar para que o homem se torne virtuoso e obtenha a felicidade
O motivo de desenvolver as virtudes intelectuais e morais para obter uma vida feliz pode ser
compreendido de modo clariacutessimo A necessidade de desenvolvecirc-las reside na proacutepria natureza
97
humana O ser humano eacute dotado de racionalidade A razatildeo eacute a mais sublime parte de sua alma Ela
permite que cumpramos nossa funccedilatildeo proacutepria plenamente Por isto quanto mais exercitamos a
razatildeo mais aprimoramos as virtudes intelectuais Em relaccedilatildeo agraves virtudes morais a praacutetica habitual
acarreta um controle maior dos nossos desejos Esse aperfeiccediloamento intelectual nos torna cada vez
mais felizes Primeiro pelo proacuteprio ato de raciocinar que eacute uma atividade que causa um prazer
nobre Segundo porque a sophia auxilia na contemplaccedilatildeo da beleza proveniente daquilo que eacute
eterno e por isto completamente estaacutevel A phronecircsis porque sendo o saber da boa decisatildeo ajuda
a vivermos em mundo instaacutevel e por consequecircncia incerto A prudecircncia ao ser aprendida e
exercitada torna o homem mais confiante em si proacuteprio pois desenvolve a capacidade de lidar com
as contingecircncias da vida e agir da maneira mais correta diante destas Portanto saber decidir bem
maximiza as chances de construir uma vida feliz porque os ldquoventos do acasordquo dificilmente
promovem a felicidade humana
Na formaccedilatildeo moral do homem o prazer possui um papel de muita importacircncia pois eacute um
indutor para a realizaccedilatildeo de accedilotildees boas ou maacutes Por isto desde a tenra idade o homem tem de ser
educado para sentir prazer na praacutetica de accedilotildees nobres e se deleitar com a praacutetica das virtudes morais
e intelectuais O homem virtuoso deve se afastar dos prazeres moralmente ruins Estes prazeres
torpes satildeo aqueles que natildeo estimulam o homem a torna-se mais virtuoso antes o afasta de uma
conduta moralmente elevada O prazer tem duas funccedilotildees importantes que auxiliam a atingir a
eudaimonia A primeira eacute o aprimoramento das atividades realizadas quanto mais prazer haacute
envolvido em uma accedilatildeo mais estiacutemulo existe para praticaacute-la o que ocasiona a melhora a atividade
exercida Um exemplo eacute o violinista que sente prazer ao tocar o seu violino isto o induz a treinar
mais e consequentemente a ser um muacutesico melhor Este aperfeiccediloamento causado pelo prazer
tambeacutem ocorre com a accedilatildeo humana quanto mais o homem se esforccedila para habituar-se agrave praacuteticas das
virtudes mais prazer ele sente em realizar accedilotildees corretas e nobres A segunda funccedilatildeo estaacute associada
ao resultado por exemplo ao tocar o instrumento musical de forma sublime o violinista teraacute mais
prazer O homem ao praticar as accedilotildees nobres torna-se cada vez mais excelente Deste modo o
resultado alcanccedilado pela conduta virtuosa moral e intelectual eacute a proacutepria felicidade
A importacircncia das virtudes morais para a felicidade eacute muito niacutetida Elas satildeo os fundamentos
a base para a virtude da prudecircncia Satildeo as virtudes morais que orientam os nossos desejos para o
bem Sem elas afundamos sobre o proacuteprio peso de aspiraccedilotildees incoerentes ou nefastas Afinal pode-
se desejar qualquer coisa inclusive o que nos faz mal Com isto nos afastamos da razatildeo e perdemos
a ideia da verdadeira felicidade E ainda arruinamos a capacidade de construiacute-la Sem a prudecircncia
que eacute a reta razatildeo no agir e sem a virtude moral que eacute o justo meio da accedilatildeo natildeo conseguimos definir
os fins que temos que atingir Tampouco conseguimos descobrir que accedilatildeo realizar para alcanccedilar
98
estes fins Ou pode-se ter um vislumbre da meta e da accedilatildeo mas natildeo haacute forccedila interior suficiente para
operacionalizar este intento Deste modo o homem perde a noccedilatildeo do fim uacuteltimo e frequentemente
dos fins particulares pois os viacutecios o arrastam para longe do Supremo Bem Tal fato o leva a fazer
escolhas ruins com consequecircncias infelizes
O ponto central para a realizaccedilatildeo das virtudes morais eacute a ideia de mediania A virtude moral
eacute um meio-termo entre dois tipos de condutas perniciosas para o homem Uma accedilatildeo ruim eacute marcada
pelo exagero a outra accedilatildeo eacute marcada pela carecircncia O spoudaios ou seja o homem virtuoso
moralmente aplica a mediania nas suas accedilotildees Neste sentido a mediania constitui a excelecircncia da
accedilatildeo
Ao longo desta pesquisa vimos como a virtude intelectual da prudecircncia se relaciona com as
virtudes morais Todo homem prudente possui as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter Satildeo
as virtudes morais que orientam os desejos para aquilo que eacute correto o que permite que a prudecircncia
decida quais satildeo os melhores meios para alcanccedilar os fins nobres desejados O homem prudente eacute
dotado de um domiacutenio sobre suas paixotildees e possui uma anaacutelise racional acertada das circunstacircncias
o que permite a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo correta Deste modo a prudecircncia indica como alcanccedilar o
fim mais desejado de todos que eacute a felicidade
A prudecircncia eacute o saber intelectual aplicado ao mundo contingente Ele sabe discernir a
intensidade o momento e a quem se aplica as suas accedilotildees Eacute a virtude da boa decisatildeo perante as
inuacutemeras circunstacircncias que surgem no decorrer da vida O homem prudente sabe deliberar
compreender e julgar de modo acurado as situaccedilotildees Existem trecircs fatores que auxiliam o
refinamento destes atos do intelecto que satildeo o tempo a experiecircncia e a instruccedilatildeo Deste modo a
virtude intelectual da prudecircncia pode ser aperfeiccediloada a cada decisatildeo realizada perante as
circunstacircncias
Eacute importante recordar que eacute a virtude da prudecircncia que preserva a consciecircncia dos limites do
possiacutevel para o homem Eacute o conhecimento dos seus limites que impede a desmesura (u3brij) ou
seja a arrogacircncia fatal que natildeo reconhece o que pode ou natildeo ser realizado e com isso acarreta na
infelicidade humana Neste sentido coadunamos com o pensamento de Pierre Aubenque ao trazer a
peccedila teatral Antiacutegona como exemplo ilustrativo da prudecircncia Nesta peccedila o coro diz ao vaidoso
Creonte que despreza o pensar prudencial acerca dos seus atos ldquoa (sic) prudecircncia (to fronei=n) eacute
de longe a primeira condiccedilatildeo da felicidade Nunca se deve cometer impiedade contra os deuses Os
orgulhosos vecircem suas grandes palavras pagas pelos grandes golpes da sorte e eacute apenas com os anos
que aprendem a prudecircnciardquo273 A prudecircncia se forja com o raciociacutenio aplicado agraves circunstacircncias nas
tentativas de realizar as melhores decisotildees possiacuteveis Com o passar do tempo as inuacutemeras
273 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op citp 260
99
experiecircncias vividas pelo homem permitem que suas decisotildees nas diversas situaccedilotildees tornem-se mais
apuradas Com este aprimoramento o homem prudente passa a ldquopersonificarrdquo a proacutepria reta razatildeo
Neste sentido a prudecircncia eacute a percepccedilatildeo salutar da ldquomedida das coisasrdquo que auxilia o bem viver
humano porque evita que desejos irreais e ideias absurdas que natildeo passaram no crivo da realidade
faccedilam o homem ser obstinado com fantasias que o conduziratildeo a uma trageacutedia individual ou coletiva
e natildeo a uma vida feliz
Diante do exposto acreditamos que eacute demonstrada a grande importacircncia que a virtude
intelectual da prudecircncia possui na vida do homem A eudaimonia que eacute o Supremo Bem desejado
por todas as pessoas somente pode ser atingida se houver boas decisotildees que nos conduzam ateacute uma
vida feliz O homem que seguidas vezes realiza decisotildees ruins ao longo de sua vida dificilmente
construiraacute uma vida feliz Somente eacute venturoso o homem que realiza o seu ergon ou seja alcanccedila a
sua plenitude a partir de dois atos extremamente importantes O primeiro ato eacute orientar os seus
desejos por meio das virtudes morais para os fins nobres e a ter prazer nas accedilotildees virtuosas sem
atitudes indignas de um homem valoroso O segundo ato eacute aprender a usar o intelecto para agir
corretamente ou seja a desenvolver a virtude da prudecircncia Afinal o homem prudente ao moderar
suas paixotildees e direcionar corretamente seus desejos para aquilo que eacute bom consegue decidir
corretamente o caminho a ser seguido dentro das diversas circunstacircncias
Em suma o homem sem prudecircncia e com os viacutecios que dominam o seu caraacuteter eacute como um
naacuteufrago sem mapa desorientado nos mares da vida Por outro lado o homem prudente sabe para
onde vai e possui a firmeza necessaacuteria para navegar ateacute laacute Logo nas incertezas da vida o
phronimos aristoteacutelico torna-se o seu proacuteprio porto seguro Isto o faz feliz
100
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de Filosofia Trad da primeira ediccedilatildeo brasileira coord e rev
por Alfredo Bosi rev e trad dos novos textos por Ivone Castilho Benedetti 6ordm ed Satildeo Paulo
WMF Martins Fontes 2012
ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica
nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-125
ARISTOTLE The Nicomachean Ethics Translated with Notes by Harris Rackham with a
Introduction by Stephen Watt Wordswhorth Classics of World Literature 1996
______________ Nicomachean Ethics Translated by WD Ross Batoche Books Kitchener 1999
______________ The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et Vitiis
Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford Clarendon Press 1915
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea I 13 ndashIII 8 Tratado da Virtude Moral Trad Marco Zingano
Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008
______________ Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro2015
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 3ordf Ediccedilatildeo 1ordm
reimp 2013
______________ Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Maria Arauacutejo y Juliacutean Marias Ed Biliacutengue CEPC
Diretor Antonio Truyol Serra 2002
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da
versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de
Eudoro de Souza Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural
1987 (Col Os Pensadores)
______________ Fiacutesica I-II Trad Lucas Angioni Campinas Editora Unicamp 2009
______________ Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterios de
Giovanni Reale) Volumes I II III Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ediccedilatildeo
2005
101
______________ Oacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edison Bini
Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev2010 p 41-42 (Seacuterie Claacutessicos Edipro)
______________ Poliacutetica Trad Nestor Silveira 1ordm ed Satildeo Paulo Folha de Satildeo Paulo 2010
______________ Retoacuterica Traduccedilatildeo textos adicionais e notas de Edson Bini Satildeo Paulo Edipro
2011
______________ Sobre a Alma Trad de Ana Maria Loacuteio revisatildeo cientiacutefica de Tomaacutes Calvo
Martiacutenez adaptado para o portuguecircs do Brasil por Luiza Aparecida dos Santos Satildeo Paulo WMF
Martins Fontes 2013 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles coord Antoacutenio Pedro Mesquita)
______________ Toacutepicos Dos argumentos sofiacutesticos seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta
Pessanha traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de WA Pickard mdash
Satildeo Paulo Nova Cultural 1987
ARISTOTELES Graece Ex recensione Immanuelis Bekkeri Volumen Alterum Berolini apud
Georgium Reimerum Academia Regia Borussica 1831
ARISTOTELIS Ethica Nicomachea Franciscus Susemihl Editio Altera Curavit Otto Apelt
Lipisiae In Aedibus B G Teubneri MCMIII
AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo
Discurso Editorial Paulus 2008
BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bertolini Satildeo Paulo Paulus 2012 (Coleccedilatildeo
Filosofia)
BRUumlLLMAN Phillip A Teoria do Bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo
Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 (Coleccedilatildeo Aristoteacutelica)
CARVALHO Helder Buenos Aires A phroacutenesis aristoteacutelica Breve comparaccedilatildeo das leituras de
Alasdair MacIntyre e Paul Ricoeur Hypnos Satildeo Paulo Nuacutemero 27 2ordm semestre 2011 p 260-283
ETICHE DI ARISTOTELE Etica Eudemea Etica Nicomachea Grande Etica A cura di Lucia
Caiani Introduzione di Francesco Adorno Torino Unione Tipografico-Editrice Torinese 1996
(Classici della Filosofia)
102
GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia
aristoteacutelica Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas
GEACH PT ldquoHistory of Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972
HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista
Archai Brasiacutelia n 04 pp 109-119 jan 2010
HERMANN Nadja Phronesis a especificidade da compreensatildeo moral Educaccedilatildeo Porto Alegre
Rio Grande do Sul ano XXX n 2(62) p 365-376 maioagosto 2007
HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a
eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
HOumlOFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008
JAEGER Werner Wilhelm Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Trad Artur M Parreira
adaptaccedilatildeo para versatildeo brasileira Mocircnica Stahel revisatildeo do texto grego Gilson Cesar Cardoso de
Souza 3ordm ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994
MACINTYRE Alasdair Justiccedila de quem Qual racionalidade Satildeo Paulo Loyola 1991
PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles a passagem da eacutetica agrave
dianoeacutetica aristoteacutelica no problema da felicidade Rio de Janeiro Poacutes Moderno 2002
PERINE Marcelo Quatro Liccedilotildees sobre a Eacutetica de Aristoacuteteles Ed Loyola Satildeo Paulo Brasil 2006
PLATAtildeO Teeteto Cratilo Traduccedilatildeo direta do grego Carlos Alberto Nunes Coordenaccedilatildeo Benedito
Nunes 3bull Ediccedilatildeo Revisada Beleacutem- Paraacute 2001
RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda
edicioacuten Trad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007
SPINELLI Priscila Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles Satildeo Leopoldo
Editora Unisinos 2007 (Col Precircmio ANPOF)
TOMAacuteS DE AQUINO Santo A prudecircncia a virtude da decisatildeo certa Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e
notas Jean Lauand 2ed Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014
103
__________________ Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes
Vol I Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015
p27
__________________Sententia Libri Ethicorum Disponiacutevel em
lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt
__________________ Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles
Trad Tiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013
__________________ Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed
Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004
VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo
Phronesis Vol 50 Nordm 2 2005 p 116-128
WEDIN Michael ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981
p243-262
WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de AristoacutetelesTrad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2010 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)
ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado da virtude moral Satildeo
Paulo Odysseus Editora 2008
ZINGANO Marco Estudo de Eacutetica Antiga 2edSatildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009
ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo
Paulo Ed Odysseus 2010
- BRASIacuteLIA
-
- 14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
- CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
- O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
-
- 16 O acaso na vida humana
- CAPIacuteTULO II
-
- AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
-
- 23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
- 24 O homem virtuoso
- 25 As virtudes morais como mediania
- 33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
-
Se a felicidade eacute atividade conforme agrave virtude seraacute razoaacutevel que ela esteja tambeacutem emconcordacircncia com a mais alta virtude e essa seraacute a do que existe de melhor em noacutes Quer seja
a razatildeo quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guianatural tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas e quer seja ele mesmo divino quer
apenas o elemento mais divino que existe em noacutes sua atividade conforme agrave virtude que lhe eacuteproacutepria seraacute a perfeita felicidade Que essa atividade eacute contemplativa jaacute o dissemos
anteriormente(ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 1177a 13-18)
A virtude de um ser seja ordenada para o bem Logo a virtude humana que eacute um haacutebitoimperativo eacute um haacutebito bom e operativo do bem
(SANTO TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica Iordf seccedilatildeo IIordf parte Questatildeo 55 Art 3)
Natildeo te deixes levar por tuas paixotildees e refreia os teus desejos (ECLESIAacuteSTICO 18 30)
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo estudar a virtude intelectual da prudecircncia
(φρόνησις) em Aristoacuteteles e ver sua importacircncia para que o indiviacuteduo construa uma vida
feliz Este estudo concentra-se principalmente na Eacutetica a Nicocircmaco mas tambeacutem seraacute
utilizado a Eacutetica a Eudemo o outro tratado aristoteacutelico sobre a eacutetica como auxiacutelio para
compreensatildeo do pensamento do Estagirita sobre a prudecircncia Para tanto este estudo estaacute
dividido em trecircs capiacutetulos No primeiro analisamos a ideia de Supremo Bem como felicidade
(eu0daimonia) Vemos o que a caracteriza e porque ela eacute o fim mais desejado Tambeacutem eacute visto
qual o tipo de vida que melhor condiz com a funccedilatildeo (e2rgon) proacutepria do ser humano No
segundo capiacutetulo examinamos as virtudes intelectuais e morais Entretanto damos uma
ecircnfase maior nas virtudes morais porque satildeo o fundamento para que a phronecircsis possa se
sobressair Ademais analisamos a relaccedilatildeo entre a virtude moral e o prazer pois este uacuteltimo
possui um papel importante na busca da eudaimonia No terceiro capiacutetulo tratamos da virtude
intelectual da prudecircncia Vemos suas caracteriacutesticas suas partes integrantes como se
desenvolve e atua defronte agrave realidade Compreendemos o que eacute a deliberaccedilatildeo (bouleusij e
a escolha (proairesij) assim como estudamos quais satildeo as trecircs virtudes intelectuais
menores boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn)
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Virtudes Morais Felicidade Bem
ABSTRACT
The objective of the present work is to study the intellectual virtue of prudence (φρόνησις) in
Aristotle and to see its importance for the individual to build a happy life This study focuses
mainly on The Nichomachean Ethics but the The Eudemian Ethics the other Aristotelian
treatise on ethics will also be used as an aid to understand the Stagirites thinking on
prudence This study is divided into three chapters In the first one we analyze the idea of
Supreme Good as happiness (eu0daimonia) We see what characterizes it and why it is the
most desired We are also seing which type of life best fits with the function ( gἔρ ον) of the
human being In the second chapter we examine intellectual and moral virtues However we
emphasize size more on moral virtues because they are the foundation for phronesis to excel
In addition we analyze the relationship between moral virtue and pleasure for the latter has
an important role in the pursuit of eudaimonia In the third chapter we deal with the
intellectual virtue of prudence We examine its characteristics its parts whats is its
development and how it acts with reality We try to understand what is deliberation
(bouleusij and choice (proairesij) just as we study what are the three minor intellectual
virtues good deliberation (eu0bolia) intelligence (sunesij) and judgment (gnwmn)
Keywords Aristotle Prudence Moral Virtues Happiness Good
SUMAacuteRIO
RESUMO i
SUMAacuteRIOhellipii
INTRODUCcedilAtildeOhellipp 03
CAPIacuteTULO I ndash O BEM HUMANO E A EUDAIMONIAp 07
11 O CONCEITO DE BEMp 08
12 UMA POSSIacuteVEL FALAacuteCIA ARISTOTEacuteLICAp 14
13 FIM DOMINANTE OU INCLUSIVOp 19
14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
15 A EUDAIMONIA E TIPOS DE VIDAp 28
16 O ACASO NA VIDA HUMANAp 34
CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
21 DEFINICcedilAtildeO DAS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 38
22 A EDUCACcedilAtildeO DOS PRAZERES E AS VIRTUDES MORAIShelliphellipp 40
23 PRAZER E APERFEICcedilOAMENTO DE UMA ATIVIDADEhellipp 45
24 O HOMEM VIRTUOSOhelliphelliphelliphelliphelliphellipp 47
25 AS VIRTUDES MORAIS COMO MEDIANIAhelliphelliphelliphelliphellipp 49
CAPIacuteTULO III ndash A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICOhelliphelliphellipp 56
31 LINHAS GERAIS ACERCA DA PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphellipp 57
32 O CONCEITO DE PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 62
33 A RETA RAZAtildeO (o0rqoj logoj) E A EXPERIEcircNCIA (e0mpeiria)helliphelliphelliphelliphellipp 70
34 DESEJO (o1recij) DELIBERACcedilAtildeO (bouleusij E ESCOLHA (proairesij)hellipp 75
35 AS TREcircS VIRTUDES INTELECTUAIS MENORES BOA DELIBERACcedilAtildeO
(eu0boulia) INTELIGEcircNCIA (sunesij) PONDERACcedilAtildeO (gnwmh)helliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 82
36 A RAZAtildeO INTUITIVA (nou~j) E A PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 90
37 PRUDEcircNCIA VIRTUDES MORAIS E EUDAIMONIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 93
CONCLUSAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 96
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICASp 100
3
INTRODUCcedilAtildeO
No contexto da poacutes-modernidade a reflexatildeo eacutetica parece enfrentar um paradoxo Por um
lado a praacutetica social juriacutedica e poliacutetica bem como diversos setores da sociedade natildeo cessam de
clamar pelo valor da pessoa humana e seus direitos que se apresentam como norte da rota de
desenvolvimento civilizatoacuterio do Ocidente nesse momento da histoacuteria Todavia noutro sentido a
especulaccedilatildeo filosoacutefica parece cada vez menos propensa a adotar como paracircmetro a ideia de um
normativo moral calcado em determinadas regras de conduta generalizantes e universais e de certo
modo caracterizadas por uma rigidez que exigem uma conduta pautada principalmente pela noccedilatildeo
de dever
Essa desconfianccedila pode ter surgido a partir da experiecircncia dramaacutetica dos seacuteculos passados
nos quais alguns paradigmas ideoloacutegicos podem ter servido como molde para trageacutedias em larga
escala exigindo uma premente reflexatildeo acerca dos modelos intelectuais que tinham fundamentado
diretamente ou pelo menos tornado possiacuteveis alguns flagelos1
As circunstacircncias individuais e coletivas trazem uma enorme variedade de caminhos e
opccedilotildees a serem escolhidas e assumidas nas suas consequecircncias Nesse contexto a pergunta ldquoO que
eacute o melhor a ser feito diante dessa ou daquela situaccedilatildeordquo se impotildee de forma quase natural a cada
indiviacuteduo A virtude da prudecircncia fornece em Aristoacuteteles a medida adequada para que exista uma
accedilatildeo virtuosa diante das circunstacircncias Outro fato relacionado ao exerciacutecio da prudecircncia eacute que ela eacute
necessaacuteria para escolher corretamente os melhores meios para alcanccedilar os objetivos escolhidos
defronte as circunstacircncias que envolvem cada pessoa Essa eleiccedilatildeo dos meios deve ter como criteacuterio
a retidatildeo de comportamento2 Logo o homem prudente tambeacutem deve ser um indiviacuteduo que pratique
as virtudes morais
A phronecircsis eacute uma virtude de extrema importacircncia na consecuccedilatildeo do bem pois eacute ela que
auxilia o indiviacuteduo a tomar a melhor decisatildeo e por isso a agir da melhor maneira diante das
circunstacircncias Observa-se que eacute intriacutenseca a esta virtude a correta decisatildeo tomada e
operacionalizada no tempo correto Natildeo basta ao homem prudente discernir corretamente o que
fazer nas situaccedilotildees concretas Tambeacutem deve realizar a accedilatildeo preocupando-se com o kairoacutes
(kair joacutej ) ou seja o momento oportuno Assim a prudecircncia acarreta uma accedilatildeo virtuosa do
1 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo DiscursoEditorial Paulus 2008 p 72 Cf EacuteN 1143a 25-27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheimda versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de Eudoro de SouzaSeleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 112 (Col Os Pensadores)
4
indiviacuteduo na temporalidade a qual carrega consigo o contingencial o incerto onde estatildeo inseridos
os indiviacuteduos
O conceito de phronecircsis recorda que a busca pela vida feliz se encontra em bens factiacuteveis
dentro das peculiaridades humanas inseridas em um mundo imprevisiacutevel e marcado por diversas
contingecircncias Ao considerar a natureza humana com suas forccedilas e suas fraquezas a histoacuteria
mostra que eacute a virtude da prudecircncia juntamente com as virtudes morais que evitam a hybris
(u3brij) ou seja a desmesura Esse excesso ocasiona o apego exagerado agraves paixotildees o desprezo
pelos outros e que culmina em uma arrogacircncia absoluta do indiviacuteduo
O presente trabalho visa estudar a compreensatildeo da ideia de phronecircsis e sua importacircncia
dentro do sistema eacutetico aristoteacutelico caracterizado pela busca da eudaimonia por meio das virtudes
morais e intelectuais Eacute utilizada a Eacutetica a Nicocircmaco como base principal para o entendimento da
phronecircsis No entanto natildeo seratildeo desprezadas as demais obras de eacutetica como Eacutetica a Eudemo e
Magna Moralia podendo serem trazidas agrave luz como auxiacutelio a compreensatildeo da visatildeo eacutetica
aristoteacutelica
No primeiro capiacutetulo seraacute tratada a teoria geral do bem proposta na Eacutetica a Nicocircmaco a
partir da qual o estagirita realiza uma anaacutelise sobre o que significa o conceito de bem e como a ideia
de bem identifica-se com a finalidade das coisas Satildeo estudados os tipos de bens e qual o melhor
bem a ser conquistado Agrave luz desta anaacutelise eacute descrita a via mais efetiva para alcanccedilar este bem
considerado o mais perfeito de todos que eacute identificado com a eudaimonia Seratildeo abordadas duas
controvertidas questotildees acerca da eacutetica aristoteacutelica A primeira questatildeo versa sobre a possibilidade
de Aristoacuteteles ter cometido uma falaacutecia loacutegica ao expor o argumento sobre o Supremo Bem A
segunda questatildeo pergunta se o Supremo Bem deve ser entendido como um fim dominante ou um
fim inclusivo Em outros termos vemos se a eudaimonia se caracteriza somente por conter um
uacutenico bem superior a todos os demais bens ou se eacute composta por vaacuterios bens reunidos em um
conjunto Outro assunto tratado neste capiacutetulo diz respeito as caracteriacutesticas do Supremo Bem que
satildeo a autossuficiecircncia e a completude Outra anaacutelise a ser realizada eacute sobre a funccedilatildeo proacutepria dos
seres Esta funccedilatildeo consiste em cada ser possuir uma funccedilatildeo que lhe eacute particular pois eacute resultado da
finalidade para a qual fora criada Neste sentido a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada pela
racionalidade sendo necessaacuteria para a construccedilatildeo de uma vida feliz na perspectiva aristoteacutelica A
partir da identificaccedilatildeo do supremo bem com a felicidade passa-se a verificar qual eacute o tipo de vida
que conduz o homem agrave vida feliz Portanto neste primeiro capiacutetulo procuramos clarificar o
conceito de eudaimonia e saber porque eacute o elemento chave para a eacutetica aristoteacutelica visto que todos
os esforccedilos do homem virtuoso tendem para ela
5
No segundo capiacutetulo adentramos na divisatildeo das virtudes morais e intelectuais e vemos como
se relacionam frente agrave conduta humana e no processo decisoacuterio perante o mundo contingente Como
Aristoacuteteles claramente assinala que as virtudes satildeo essenciais para o alcance da eudaimonia eacute
necessaacuterio o estudo da natureza das virtudes morais e como contribuem para o desenvolvimento e a
correta aplicaccedilatildeo da phronecircsis Destacar-se-aacute uma atenccedilatildeo agraves virtudes morais uma vez que estas
dizem respeito a uma reta orientaccedilatildeo dos desejos e como esta moldagem dos anseios e dos prazeres
a serem buscados promovem um alicerce para o cultivo da virtude intelectual da prudecircncia Os
prazeres e as dores satildeo intrinsecamente ligados agrave natureza humana e agraves accedilotildees do indiviacuteduo O ser
humano busca o prazer e procura se afastar da dor Diante deste quadro eacute de grande importacircncia na
eacutetica aristoteacutelica o indiviacuteduo aprender a fundamentar sua conduta moral em prazeres provenientes
de accedilotildees nobres Pois o homem virtuoso tambeacutem sente prazer na retidatildeo moral Tambeacutem seraacute
abordada uma caracteriacutestica essencial das virtudes a mediania ou o meio-termo O conceito de
mediania eacute um pressuposto importante no contexto da eacutetica aristoteacutelica Por isso eacute necessaacuteria a
compreensatildeo do que seja ela e seu viacutenculo com as virtudes morais Estas satildeo intimamente ligadas agrave
virtude intelectual da prudecircncia Ocorre um processo simultacircneo A praacutetica das virtudes morais
prepara o exerciacutecio da prudecircncia natildeo permitindo que o indiviacuteduo cometa viacutecios por excessos ou por
insuficiecircncias e esta virtude intelectual fornece os melhores meios para alcanccedilar a accedilatildeo virtuosa
Essa relaccedilatildeo eacute descrita por Aristoacuteteles ao assinalar a figura do spoudaios (σπουδαῖος) como modelo
de homens de virtude Em suma o segundo capiacutetulo versaraacute principalmente sobre como as
virtudes morais e intelectuais satildeo imperativas para que o indiviacuteduo alcance uma vida feliz
No terceiro capiacutetulo seraacute feita a anaacutelise da proacutepria virtude da phronecircsis enquanto virtude
intelectual mas que objetiva um conhecimento praacutetico A sua funccedilatildeo primordial eacute de efetivar a
melhor decisatildeo possiacutevel a ser tomada pelo indiviacuteduo defronte agraves inuacutemeras circunstacircncias
encontradas Analisaremos a natureza da virtude da phronecircsis de que maneira esta virtude
intelectual se relaciona com as demais virtudes morais e como ela se desenvolve em vista de um
aperfeiccediloamento do indiviacuteduo Pois a phronecircsis eacute um dos pilares para a aquisiccedilatildeo e correta praacutetica
das demais virtudes morais As virtudes morais propiciam que o indiviacuteduo possa progredir na
praacutetica da virtude intelectual da prudecircncia Eacute a virtude da prudecircncia somada as virtudes morais que
conferem ldquopeso e medidardquo aos atos do indiviacuteduo e determina sobre o momento correto que estes
atos devem ser realizados para que a accedilatildeo humana possa ser considerada virtuosa Seraacute estudada a
noccedilatildeo de reta razatildeo como guia para as virtudes morais sendo a base da virtude da prudecircncia
Tambeacutem vemos qual o seu papel especiacutefico para alcanccedilar a felicidade Para uma melhor
compreensatildeo da virtude da prudecircncia e das virtudes morais analisaremos a relaccedilatildeo entre desejo
(o2recij) escolha (proairesij) e deliberaccedilatildeo (bouleusij A relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos
6
promove a accedilatildeo virtuosa Veremos como o homem virtuoso que exerce a virtude da prudecircncia em
um grau elevado a ponto de ser considerado como um verdadeiro homem prudente torna-se a
proacutepria medida da phronecircsis Por isto examinaremos o que eacute a reta razatildeo e a sua importacircncia para a
prudecircncia Tambeacutem seraacute visto o papel da experiecircncia no desenvolvimento da prudecircncia Uma vez
que este indiviacuteduo possui tanto as virtudes morais quanto agrave virtude da prudecircncia fortalecida pode
ser estimado como um homem que estaacute proacuteximo de ser plenamente feliz Analisamos as partes
integrantes da prudecircncia que satildeo as trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia)
inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn) Portanto o terceiro capiacutetulo eacute dedicado a examinar a
virtude intelectual da prudecircncia e sua importacircncia para a felicidade
Como objetivo final desta pesquisa esperamos demonstrar como a phronecircsis aristoteacutelica
simultaneamente com as virtudes morais contribui para a correta consecuccedilatildeo de uma accedilatildeo moral
virtuosa dentro da imprevisibilidade e contingecircncia do campo da praacutexis pra~~cij Pois esta virtude
proporciona a correta maneira de agir diante de uma situaccedilatildeo ao estabelecer a medida correta para
todas as accedilotildees virtuosas realizadas pelo indiviacuteduo Portanto a phronecircsis e as virtudes morais
possuem um papel central para que o indiviacuteduo alcance uma vida plena O caminho a ser percorrido
neste estudo acerca da virtude da prudecircncia se inicia na compreensatildeo dos conceitos de bem e
finalidade decorrentes da ideia de funccedilatildeo proacutepria do ser humano A anaacutelise destes trecircs conceitos
conduz ao estudo do Supremo Bem que eacute identificado como sendo a eudaimonia Uma vez que as
virtudes satildeo o meio privilegiado para atingir a felicidade torna-se imperativo o entendimento da
natureza das virtudes morais e intelectual E para compreendecirc-las eacute necessaacuterio compreender o que eacute
a mediania e a reta razatildeo Nesta linha de raciociacutenio demonstraremos a relaccedilatildeo entre as virtudes
morais e a virtude intelectual da prudecircncia e como cada uma contribui para o fortalecimento da
outra Por fim natildeo se pode perder de vista que o escopo desta pesquisa eacute a compreensatildeo da natureza
da virtude intelectual da prudecircncia e como esta virtude auxilia o ser humano na construccedilatildeo de uma
vida feliz
7
CAPIacuteTULO I
O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
A eudaimonia e sua relaccedilatildeo com os conceitos de bem finalidade e funccedilatildeo eacute o objeto de
anaacutelise deste primeiro capiacutetulo O conceito de eudaimonia tradicionalmente entendido como
felicidade vida feliz ou plenitude de vida estaacute condicionado a alguns fatores que satildeo desenvolvidos
ao longo do livro I da Eacutetica a Nicocircmaco Deste modo embora sejam feitas referecircncias aos demais
livros que compotildeem o mencionado tratado de Aristoacuteteles visto que estatildeo em parte interligados
entre si o livro I se constitui como o alicerce principal de estudo deste capiacutetulo
O conceito de bem eacute basilar para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica cunhada por Aristoacuteteles Sua
importacircncia reside no fato do conceito de bem ser identificado com o conceito de fim ou de
finalidade dos seres O conceito de finalidade identifica-se com a ideia de funccedilatildeo proacutepria dos seres
O cumprimento desta funccedilatildeo permite que algo ou algueacutem possa alcanccedilar sua finalidade ou seja
realizar o fim para o qual fora criado
Haacute uma distinccedilatildeo entre os bens existentes natildeo sendo todos equivalentes na valoraccedilatildeo que
lhes eacute conferida o que causa uma diferenciaccedilatildeo no seu grau de importacircncia Esta variedade de bens
acarreta uma variedade de fins sendo os mesmos categorizados como fins definitivos e fins
intermediaacuterios A argumentaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre a existecircncia de uma variedade de fins faz o
filoacutesofo de Estagira afastar-se da tese do seu mestre Platatildeo A tese deste uacuteltimo preconiza a
existecircncia de um uacutenico fim que eacute o Bem em si ao qual participam todas as coisas particulares Para
o Estagirita existem vaacuterios tipos de bens que visam o bem uacuteltimo que eacute a felicidade Diante desta
diferenccedila de concepccedilotildees acerca dos fins veremos as criacuteticas de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave filosofia
platocircnica
A vida feliz eacute o fim uacuteltimo a ser buscado Por isso neste capiacutetulo eacute analisada a natureza da
felicidade e suas propriedades Examinamos sobre quais fundamentos Aristoacuteteles forja sua ideia de
felicidade e qual a causa a considerar como o sumo bem Deste modo estudamos qual eacute o tipo de
vida que melhor corresponde agrave ideia de felicidade na visatildeo aristoteacutelica
8
11 O Conceito de Bem
Aristoacuteteles inaugura o seu tratado Eacutetica a Nicocircmaco com a afirmaccedilatildeo de que todas as
atividades humanas nas quais estatildeo inclusas a arte a inquiriccedilatildeo e as escolhas deliberadas visam um
bem Devido a este fato todas as coisas possuem a capacidade para alcanccedilar o seu proacuteprio bem
Como existem diferentes espeacutecies de artes ciecircncias e accedilotildees cada uma possui um tipo de bem
especiacutefico que eacute caracteriacutestico a partir daquela determinada atividade Deste modo as atividades
possuem finalidades distintas umas das outras como afirma Aristoacuteteles
Admite-se geralmente que toda arte (texnh) e toda investigaccedilatildeo (meqodoj) assimcomo toda accedilatildeo pra~~cije toda escolha (proairesij) tecircm em mira um bemqualquer e por isso foi dito com muito acerto que o bem (ta0gaqon) eacute aquilo aque todas as coisas tendem Mas observa-se entre os fins uma certa diferenccedilaalguns satildeo atividades outros satildeo produtos distintos das atividades que osproduzem Onde existem fins distintos das accedilotildees satildeo eles por natureza maisexcelentes do que estas 3
Aristoacuteteles continua sua anaacutelise acerca do bem percorrendo um caminho de reflexatildeo que se
propotildee em primeiro lugar apreender o conceito de bem e em seguida determinar qual eacute o bem
mais proveitoso e por fim determinar o mais importante a ser buscado pelo ser humano Para
cumprir com o objetivo de sua investigaccedilatildeo o filoacutesofo de Estagira procura analisar que tipo de bem
pode ser considerado como o mais essencial e quais os tipos de vida existentes podem ser
candidatos a serem representantes desta ideia de bem essencial ou o sumo bem Do mesmo modo
estabelece uma reflexatildeo sobre o ponto de vista platocircnico de Bem e como essa concepccedilatildeo estaacute
equivocada natildeo sendo possiacutevel adotaacute-la para alcanccedilar a eudaimonia Tambeacutem procura utilizar o
exemplo das diversas ciecircncias para averiguar como pode ser apreendido este sumo bem Por fim
Aristoacuteteles traccedila quais caracteriacutesticas deve possuir este bem para que possa ser estimado como o
mais essencial ao ser humano
Qual eacute o bem supremo E que espeacutecie de vida deve ser vivida para que o atinjamos
Embora de imediato no Livro I do tratado Eacutetica a Nicocircmaco4 haja uma insinuaccedilatildeo de que a
eudaimonia ou seja a felicidade possa ser este bem supremo Aristoacuteteles natildeo concede de modo
faacutecil o posto de bem supremo agrave eudaimonia Ao contraacuterio procura fundamentar no decorrer dos
capiacutetulos do Livro I porque a felicidade deve ser considerada como o bem supremo E discorre
3 EacuteN I 1094a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 Para fins de abreviaccedilatildeo do tiacutetulo da obra Eacuteticaa Nicocircmaco doravante seraacute utilizada a descriccedilatildeo EacuteN nas notas de rodapeacute4 Cf EacuteN I 1095a 15-20 Ibidem p 11
9
sobre quais satildeo as caracteriacutesticas que uma vida deve possuir para que seja considerada uma vida de
plenitude
Eacute importante perceber que no contexto da Eacutetica a Nicocircmaco a ideia de bem (to a0gaqon)
equivale agrave finalidade ao teacutelos (telojque cada coisa possui em decorrecircncia da sua natureza Cada
arte (texnh) investigaccedilatildeo (meqodoj) ou accedilatildeo pra~~cij possui seu teacutelos especiacutefico Aristoacuteteles cita
que a sauacutede eacute a finalidade da medicina o navio eacute a finalidade da construccedilatildeo naval a vitoacuteria eacute a
finalidade da estrateacutegia a riqueza eacute a finalidade da economia5 Logo isso significa que cada coisa
tem uma finalidade e os fins satildeo fatores determinantes tanto para a compreensatildeo da natureza dos
seres quanto para a das accedilotildees humanas
Assim em que consiste o bem aristoteacutelico Aristoacuteteles defende a tese de que natildeo existe um
uacutenico bem em si mesmo que todas as coisas tendam para este uacutenico Bem Conforme visto
anteriormente seu argumento eacute radicalmente oposto agrave ideia concebida por Platatildeo Para Aristoacuteteles
os bens estatildeo conectados intimamente agrave imensa variedade de seres existentes pois constituem suas
proacuteprias finalidades Cada ser tende para seu fim para seu teacutelos (teloj) especiacutefico O ser humano
tambeacutem possui uma finalidade proacutepria Logo o Supremo Bem deve ser encontrado tendo em vista o
que eacute proacuteprio do ser humano
O Supremo Bem serve como paracircmetro para a vida humana e consequentemente para as
accedilotildees do agente Por isso deve ser factiacutevel de ser alcanccedilado pela accedilatildeo humana E para se constituir
como paracircmetro para a vida humana deve ser absoluto e autossuficiente porque natildeo eacute possiacutevel ser
paracircmetro se natildeo possui estabilidade Eacute neste momento da Eacutetica a Nicocircmaco que Aristoacuteteles
conclui que o Supremo Bem eacute a proacutepria eudaimonia A felicidade eacute o uacutenico bem que possui as
propriedades descritas de ser absoluta e de ser autossuficiente aleacutem de conferir sentido agraves
atividades realizadas ou seja eacute a finalidade uacuteltima da accedilatildeo de cada pessoa6
Ora esse eacute o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade (eu0daimonia)Eacute ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa ao passoque agrave honra ao prazer agrave razatildeo e a todas as virtudes noacutes de fato escolhemos por simesmos (pois ainda que nada resultasse daiacute continuariacuteamos a escolher cada umdeles) mas tambeacutem os escolhemos no interesse da felicidade pensando que aposse deles nos tornaraacute felizes A felicidade todavia ningueacutem a escolhe tendo emvista algum destes nem em geral qualquer coisa que natildeo seja ela proacutepria [] Afelicidade eacute portanto algo absoluto (teleion) e auto-suficiente (au1tarkej) sendotambeacutem a finalidade da accedilatildeo (praktw~~n ou]sa teloj)7
5 Cf EacuteN I 1094a 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 6 A eudaimonia tambeacutem se constitui como criteacuterio para todas as accedilotildees da sociedade poliacutetica A felicidade na poacutelis eacute umdos temas tratados na Poliacutetica Por natildeo ser o escopo do presente trabalho natildeo seraacute visto de forma minuciosa pois aEacutetica a Nicocircmaco natildeo adentra nesta questatildeo de modo direto e aprofundado Mas eacute interessante perceber a iacutentimaconexatildeo entre as accedilotildees de cada agente enquanto cidadatildeo e a forma de conviacutevio em uma poacutelis que eacute analisada porAristoacuteteles no tratado da Poliacutetica7 EacuteN I 1097b 1-7 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15
10
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles continua a exposiccedilatildeo de sua ideia acerca dos bens de cada
arte mas cita que as artes com as caracteriacutesticas intriacutensecas a cada uma delas se subordinam a uma
finalidade uacutenica anaacuteloga agrave fabricaccedilatildeo de utensiacutelios diversos como reacutedeas e selas para a montaria
em cavalos estaacute subordinada agrave arte da equitaccedilatildeo Esta situaccedilatildeo tambeacutem ocorre com as atividades
militares em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia de guerra e assim ocorre com diversas artes que se subordinam a
outras artes Neste caso de subordinaccedilatildeo das artes em relaccedilatildeo a uma determinada arte mais
abrangente conforme os exemplos da equitaccedilatildeo e da estrateacutegia Aristoacuteteles avalia que os fins destas
artes mais abrangentes satildeo mais importantes que os fins das artes subordinadas Isso ocorre porque
os fins das artes principais satildeo os fins almejados enquanto os fins das artes subordinadas tornam-se
apenas meios para a consecuccedilatildeo dos fins principais8
O que estaacute exposto nesta primeira parte do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco eacute a divisatildeo entre
fins (bens) primaacuterios e fins secundaacuterios9 haja vista a multiplicidade de fins em decorrecircncia da
variedade de seres e de accedilotildees A existecircncia desta hierarquia de fins culmina em um fim uacuteltimo que eacute
a eudaimonia Aristoacuteteles assinala que eacute necessaacuterio haver um fim derradeiro porque sem este fim a
sequecircncia de fins seria infinita o que tornaria inuacutetil a busca pela felicidade10
Na Eacutetica a Eudemo Aristoacuteteles descreve em que consiste esta multiplicidade dos bens11 O ser
(to o1n pode ser apreendido sob diversas formas conforme as Categorias12 a substacircncia (ou0sia13
a qualidade (poion a quantidade (poson) o tempo (pote) espaccedilo (pouetc Tendo em vista que
natildeo existe uma ciecircncia uacutenica de todos os seres mas vaacuterias ciecircncias que desvendam os seres dos
entes segue-se que natildeo pode existir um bem uacutenico imediato em relaccedilatildeo a todos dos seres Deste
modo haacute vaacuterios bens tanto quanto existem vaacuterios seres Aristoacuteteles ainda exemplifica os vaacuterios
bens existentes em algumas categorias traccedilando um paralelo entre estas categorias e determinados
8 Cf EacuteN I 1094a 15 Ibidem p 99 No que tange a nomenclatura dos bens (fins) de cada atividade haacute outros termos que podem ser usados para se referira estes fins tais como fins principais fins intermediaacuterios fins preciacutepuos fins subordinados etc Tambeacutem eacute possiacutevelsubstituir o termo ldquobemrdquo ou ldquofimrdquo por ldquofinalidaderdquo Eventualmente todos estes termos seratildeo usados no decorrer dotexto como sinocircnimos A questatildeo essencial eacute a compreensatildeo de que haacute uma relaccedilatildeo de hierarquia entre os fins de cadaarte accedilatildeo ou ciecircncia ou seja dos fins em geral em vistas a um fim mais amplo 10 Cf EacuteN I 1094a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 911 Cf EacuteE I 1217b 27 Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 2015 p 5912 A lista completa de dez categorias eacute descrita por Aristoacuteteles em Categorias 41b 25 2a 1-10 Cf ARISTOacuteTELESOacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas(Seacuterie Claacutessicos Edipro) Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edson Bini Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev 2010 p41-42 13 O termo ousia eacute melhor entendido a partir dos conceitos em latim de essentia substantia Haacute uma diferenccedila entre otermo ousia no qual adota-se a palavra ldquoessecircnciardquo de tograve tiacute esti ( que significa o ldquoser de uma coisarsquo comoldquoessencialidaderdquo ou ldquosubstacircnciardquo Entendemos que os dois termos podem ser utilizados como sinocircnimos para o presenteestudo visto que natildeo eacute o objetivo deste trabalho proceder a uma anaacutelise da filosofia primeira cunhada por AristoacutetelesTambeacutem entendemos que os dois termos conseguem expressar de modo geral a ideia da pergunta ldquoo que eacute istordquoreferindo-se agravequilo que necessariamente eacute e faz um ente ser o que eacute de fato Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles TradRoberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 147
11
predicados relacionados agrave eacutetica Por exemplo o bem eacute predicado de Deus e do intelecto na categoria
de substacircncia na categoria da qualidade eacute o justo na categoria da quantidade eacute a moderaccedilatildeo na
categoria do tempo eacute o momento oportuno14
Ao postular a tese da multiplicidade de bens Aristoacuteteles estabelece uma posiccedilatildeo diferente da
tese defendida por seu mestre e antecessor Platatildeo o qual assevera a existecircncia de uma uacutenica Forma
de Bem Para Platatildeo o Bem em si possui algumas propriedades que o qualificam como o bem
fundamental o Bem pelo qual satildeo subordinados e participam todas as coisas boas As coisas
participam desta Forma de Bem por derivaccedilatildeo pois Esta fornece os atributos necessaacuterios para a
existecircncia e constituiccedilatildeo destes bens derivados15 Esta Forma de Bem eacute imutaacutevel e eterna sua
essecircncia permanece a mesma o que natildeo permite sua alteraccedilatildeo com o tempo Aristoacuteteles assevera
que natildeo eacute possiacutevel existir um uacutenico Bem em si um determinado tipo de bem que seja ldquogeralrdquo para
todos e dissociados dos seres Antes o estagirita afirma que cada ser possui e consequentemente
deseja o bem que lhe eacute especiacutefico pertencente a sua particularidade conforme descrito na Eacutetica a
Eudemo ldquoAdemais a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas existentes desejam um bem uacutenico eacute falsa
cada coisa anseia pelo bem que lhe eacute particular o olho a visatildeo o corpo a sauacutede e analogamente
outros bens []rdquo16 Deste modo a diferenccedila fundamental entre a visatildeo do bem aristoteacutelico e do Bem
platocircnico eacute que Aristoacuteteles advoga a ideia que existe um bem uacuteltimo para qual se dirigem os seres
Enquanto na perspectiva de Platatildeo haacute uma uacutenica Forma de Bem que eacute causa dos outros bens os
quais apenas satildeo bons por participaccedilatildeo e semelhanccedila agravequela Forma17
Na Eacutetica a Nicocircmaco tambeacutem se encontra a criacutetica de Aristoacuteteles agrave doutrina platocircnica da
Forma do Bem e a descriccedilatildeo da tese da pluralidade de bens18 Nesta parte o Estagirita postula que
natildeo pode existir uma uacutenica Forma de Bem pois a proacutepria palavra ldquobemrdquo eacute utilizada para se referir a
diversas categorias A substacircncia significa a proacutepria essecircncia daquilo que eacute o ser da coisa
naturalmente eacute anterior agrave categoria de relaccedilatildeo Sendo assim uma uacutenica Forma natildeo pode abranger
todos estes tipos de bens O termo ldquobemrdquo pode ter diversos significados referentes agrave variedade de
sentidos que comporta o ser Ou seja os bens satildeo pertinentes ao nuacutemero de seres existentes E como
os bens satildeo caracterizados conforme as categorias natildeo eacute possiacutevel que o bem possa ser uniacutevoco e
inteiramente presente em um uacutenico ser Por conseguinte o Bem platocircnico natildeo poderia ser predicado
em cada uma das categorias Como estaacute descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
14 Cf EacuteE I 1217b 16-34 Eacutetica a Eudemo Op cit p 5915 Cf EacuteE I 1217b 1-15 Ibidem p 5716 EacuteE I 1217b 30-33 Ibidem p 5917 Cf EacuteE I 1217b 5-15 Ibidem p 5818 Cf EacuteN1096a 16-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 13
12
Aleacutem disso como a palavra ldquobemrdquo (ta0gaqon) tem tantos sentidos quantos ldquoserrdquo(o1nti) (visto que eacute predicada tanto na categoria de substacircncia como na de Deus(qeoj) e da razatildeo (nou=j) quanto na de qualidade (poiw~~) isto eacute das virtudes(a0retai) na de quantidade (ποσῷ) isto eacute daquilo que eacute moderado (metrion) nade relaccedilatildeo isto eacute do uacutetil (xrhimon) na de tempo (χρόνῳ) isto eacute da oportunidadeapropriada (kairoj) na de espaccedilo (τόπῳ) isto eacute do lugar apropriado etc) estaacuteclaro que o bem natildeo pode ser algo uacutenico e universalmente (kaqolou) presente poisse assim fosse natildeo poderia ser predicado em todas as categorias (kathgoriaj)mas somente numa19
Por este motivo Aristoacuteteles tambeacutem natildeo concorda com que o ldquomelhor bem de todosrdquo possa
ser entendido como um bem uacutenico pois isto seria irrealizaacutevel Para demonstrar a impossibilidade da
existecircncia de um Bem em si para todos os seres o Estagirita utiliza o caso das ciecircncias pois se
houvesse uma uacutenica Forma de Bem deveria existir uma uacutenica ciecircncia de todos os bens A realidade
prova que isso natildeo existe tendo em vista a variedade de ciecircncias que estuda cada tipo de ser20 Uma
ciecircncia especiacutefica natildeo procura um objeto em geral mas um objeto especiacutefico ligado ao seu estudo
conforme exemplifica Aristoacuteteles A medicina busca alcanccedilar a sauacutede natildeo visa alcanccedilar um bem
em geral que sirva como modelo para qualquer outra coisa 21
Para Aristoacuteteles o Supremo Bem tem de ser alcanccedilaacutevel pela accedilatildeo humana A vida feliz estaacute
no acircmbito da praacutexis De modo geral a ideia de praacutexis pode se referir a uma accedilatildeo ligada agrave razatildeo
vinculada a uma conduta a um modo de proceder da pessoa Por isso fala-se em ldquoagenterdquo desta
accedilatildeo pois o agente eacute a pessoa que realiza a accedilatildeo de maneira racional jaacute que um animal tido como
irracional natildeo pode agir no sentido aqui proposto
De tal maneira o Estagirita desfavorece o conceito de um fim que esteja longe da accedilatildeo do
indiviacuteduo que assevera que mesmo que houvesse uma uacutenica Forma de Bem conforme advogava
seu mestre antecessor esta ideia uacutenica de bem de nada serviria para a eacutetica O fim buscado tem de
estar necessariamente ligado agrave accedilatildeo humana Aristoacuteteles eacute expressivo ao afirmar que cada accedilatildeo
cada propoacutesito eacute realizado em funccedilatildeo da finalidade daquela atividade Por isso caso haja uma
finalidade geral (um ldquofim maiorrdquo) a ser buscado pelo agente este bem eacute executaacutevel pela accedilatildeo E se
existir mais de um bem eles devem ser alcanccedilados por meio das accedilotildees humanas22 Portanto sendo
ligado agrave accedilatildeo humana este soberano bem natildeo poderia ser algo inexequiacutevel para os seres humanos
Conforme Aristoacuteteles nos mostra na Eacutetica a Eudemo
19 EacuteN I1096a 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1220 Cf EacuteN I1096a 30 Ibidem p 1321 Cf EacuteE I1218b 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Eudemo Op cit p 61-6222 Cf EacuteN I1097a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 14
13
Fica evidente portanto que o bem em si objeto de nossa busca natildeo eacute a Forma dobem como tambeacutem natildeo eacute o bem como universal (posto que a primeira eacute imutaacutevel einexequiacutevel enquanto o segundo embora mutaacutevel eacute inexequiacutevel) Entretanto oobjeto visado como fim eacute o melhor aleacutem de ser a causa daqueles que lhe estatildeosubordinados e o primeiro de todos os bens esse bem consequentemente seria obem em si ou seja o fim exequiacutevel humano Trata-se do bem que se enquadranaquele que eacute soberana entre todas as ciecircncias [praacuteticas] nomeadamente a poliacuteticaassociada agrave economia e agrave sabedoria praacutetica 23
O Supremo Bem tem de estar ao alcance da realizaccedilatildeo humana Aristoacuteteles ao traccedilar a
criacutetica agrave ideia platocircnica de uma Forma de Bem alega que mesmo que existisse essa forma ideal de
bem ela em nada auxiliaria as atividades humanas Primeiro ela seria inatingiacutevel Segundo ela natildeo
contribuiria em nada para o exerciacutecio de qualquer ofiacutecio Eis o questionamento de Aristoacuteteles acerca
da Forma do Bem em que conhecer a Forma de Bem faria um meacutedico exercer melhor a medicina e
curar seus pacientes Ou em que este conhecimento da Forma de Bem tornaria excelente um
general em estrateacutegias de batalhas levando-o agrave vitoacuteria24 Mesmo que houvesse algueacutem que
argumente que o conhecimento da Forma do Bem auxilie o agente conseguir os bens que podem ser
alcanccedilados pela accedilatildeo pois serve como um paracircmetro o estagirita afirma que este argumento natildeo
procede visto que todas as ciecircncias visam bens especiacuteficos e natildeo um bem geral
Na busca para desvendar em que consiste este ldquobem maiorrdquo em uma perspectiva diferente da
concepccedilatildeo platocircnica Aristoacuteteles cita duas propriedades A primeira eacute que este tipo de bem deve ser
absoluto completo acabado (τέλειον25 O conceito de completo significa que este bem natildeo eacute
buscado como intermediaacuterio para alcanccedilar outro bem O ldquobem maiorrdquo eacute procurado como um fim em
si mesmo natildeo sendo condiccedilatildeo para qualquer outro tipo de fim Ou seja este bem tem de ser
incondicional e final e natildeo pode ser um bem intermediaacuterio A segunda propriedade deste bem eacute a de
ser autossuficiente A autossuficiecircncia (αὐτάρκειαdo ldquobem maiorrdquo consiste em prover somente
por si mesmo uma vida agradaacutevel e que natildeo falte nada26 Mas esta autossuficiecircncia natildeo pode ser
entendida sob um prisma individual como se o indiviacuteduo natildeo dependesse de nada ou de ningueacutem
Ao contraacuterio a autarkeia deve ser compreendida a partir de um prisma coletivo Esta perspectiva
23 EacuteE I 1218b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 6224 Cf EacuteN I 1097a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1425 Na Metafiacutesica 1021b 30 o termo teacuteleion eacute descrito do seguinte modo ldquoPortanto as coisas como se dizem perfeitaspor si em todos esses sentidos algumas porque relativamente a seu bem natildeo carecem de nada ou natildeo satildeo superadospor outras e natildeo tecircm nenhuma de suas partes fora de si outras em geral porque natildeo satildeo superadas por outra e natildeo tecircmnenhuma parte fora de si no acircmbito do seu gecircnerordquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego comtraduccedilatildeo e comentaacuterios de Giovanni Reale) Vol II Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ed 2005p 24126 Cf EacuteN I 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 15
14
comunitaacuteria eacute perceptiacutevel quando Aristoacuteteles remete ao fato que deve ser observada a suficiecircncia
em funccedilatildeo tambeacutem dos pais esposa amigos e cidadatildeos da poacutelis27
Ao considerarmos a relaccedilatildeo entre fins preciacutepuos que satildeo buscados em si mesmos e fins
subordinados de caraacuteter instrumental que servem como fins para alcanccedilar um fim maior essa
relaccedilatildeo de hierarquia traz alguns questionamentos a serem considerados De modo sucinto
expomos estes questionamentos uma vez que estatildeo inseridas na histoacuteria dos estudos acerca da eacutetica
aristoteacutelica A primeira questatildeo versa acerca da possibilidade de Aristoacuteteles ter cometido uma
falaacutecia chamada de ldquomenino e meninardquo A segunda questatildeo diz respeito ao bem supremo ser
compreendido como um fim dominante ou um fim inclusivo
12 Uma possiacutevel falaacutecia aristoteacutelica
A ideia de um fim uacuteltimo a ser alcanccedilado por meio de fins instrumentais eacute posta por
Aristoacuteteles no iniacutecio Eacutetica a Nicocircmaco A forma que eacute descrita esta relaccedilatildeo no tratado aristoteacutelico
entre o Supremo Bem que eacute buscado por si proacuteprio e demais fins que satildeo subordinados a ele gerou
o debate apresentado neste toacutepico Sobre o tema se Aristoacuteteles cometeu ou natildeo a falaacutecia
argumentativa sobre o argumento do fim expomos as perspectivas de Peter Thomas Geach e Peter
Vranas O primeiro considera que o estagirita incorreu em uma falaacutecia o segundo defende a ideia
que natildeo foi cometida nenhuma falaacutecia no argumento aristoteacutelico Neste sentido segue o trecho a ser
comentado
Se pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo etudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisadesejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito einuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem ou antes osumo bem28
27 Cf EacuteN I 1097b 10-13 Ibidem p 15 Entendemos tambeacutem que a ideia de autossuficiecircncia natildeo pode sercompreendida somente de modo individual tendo em vista o fato que o conceito de autarkeia tambeacutem eacute fundamentalpara a concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo poliacutetica da Cidade-estado grega Uma vez que a poacutelis eacute construiacuteda com a finalidade deser autocircnoma com todos os meios de prover a si proacutepria e propiciar o melhor ambiente para que os cidadatildeos alcancemuma vida feliz Conforme Aristoacuteteles aponta na obra Poliacutetica I 1252b 30-1253a 1-5 a vida feliz eacute a finalidade naturalda comunidade poliacutetica e todo ser estaacute plenamente integrado na natureza quando atinge seu pleno desenvolvimento ouseja estaacute completo com perfeiccedilatildeo Deste modo uma vez que o ser humano possui uma natureza social ela somente serealiza plenamente no contexto da poacutelis Outro fator que consideramos que a autossuficiecircncia eacute compreendida dentro deuma visatildeo coletiva refere-se agrave virtude da justiccedila De acordo com o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco V 1130a 1-5 elasomente pode ser exercida dentro de uma sociedade pois visa o bem alheio Eacute uma virtude que natildeo pode ser praticadade modo solitaacuterio pelo agente mas deve realizaacute-la em funccedilatildeo dos outros Disto decorre que a vida feliz de um indiviacuteduotambeacutem estaacute em parte relacionada agrave felicidade das pessoas que o cercam de modo mais proacuteximo e da comunidade emgeral 28 EacuteN I 1094a 18-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 9
15
Assim sendo abordemos a questatildeo da dita falaacutecia aristoteacutelica Segundo o comentador
Geach29 seria um erro de loacutegica formal Eacute perceptiacutevel que existe uma diferenccedila entre as expressotildees
(i)Todo menino ama alguma meninardquo e (ii) ldquoHaacute alguma menina que todo menino amardquo30 Se
tomarmos a expressatildeo ldquoTodo menino ama alguma meninardquo natildeo eacute possiacutevel inferir que ldquoHaacute alguma
menina que todo menino amardquo sem fazer uma falaacutecia Ou seja (i) natildeo implica em (ii)
Agrave luz do exemplo de Geach o deslize argumentativo manifesta-se no fato de afirmar que
Todo menino ama alguma meninardquo natildeo implica necessariamente que exista alguma menina ou
seja uma uacutenica menina que todo menino ama Em termos teacutecnicos da loacutegica moderna a falaacutecia
cometida por Aristoacuteteles eacute denominada como uma falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores31
Na falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores eacute realizada uma passagem interdita entre um
conjunto de relaccedilotildees dispersas32 de fins para um conjunto de relaccedilotildees convergentes33 para um uacutenico
fim Isso se traduz da seguinte forma Se imaginarmos um conjunto de meninas e um outro conjunto
de meninos com o mesmo nuacutemero de elementos em cada conjunto Uma primeira possibilidade de
interaccedilatildeo entre os elementos de cada grupo seria cada rapaz amar uma garota que nenhum outro
garoto do grupo dos meninos ame tambeacutem Neste caso os dois conjuntos estatildeo dispersos natildeo haacute
uma convergecircncia entre os elementos dos respectivos grupos devido ao fato que um garoto
somente ama uma garota Na segunda possibilidade todos os garotos amam uma exclusiva e mesma
garota entatildeo existe uma convergecircncia total de todos os elementos do conjunto dos meninos
direcionados para uma uacutenica garota do grupo das meninas34 Deste modo essa inversatildeo de
quantificadores aplicada ao argumento aristoteacutelico significa afirmar que podem haver diferentes fins
a serem buscados tendo em vista a variedade de coisas e desejos humanos Eacute o caso mesmo que
natildeo desejemos uma seacuterie infinita de coisas a serem buscadas com vistas em outra pois este fato
acarreta uma seacuterie infinita de desejos Isto natildeo implica necessariamente que exista um uacutenico e
melhor fim que desejemos e todos os outros fins sejam buscados em funccedilatildeo dele
Eacute preciso observar no caso em questatildeo que Geach natildeo analisa especificamente agrave Eacutetica a
Nicocircmaco e nem o argumento aristoteacutelico por si mesmo Ele apenas o utiliza como exemplo
29 Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972 p 1-1330 No dizer de Geach ldquoAnybody can see that from lsquoEvery boy loves some girlrsquo we cannot infer lsquoThere is some girl thatevery boy lovesrsquo that from lsquoIt is obligatory that somebody should gorsquo it does not follow that lsquoThere is somebody who itis obligatory should gorsquo[] rdquo Ibidem p 131ldquoOperator-shift fallacy ldquoou ldquoquantifier-shift fallacyrdquo Cf Ibidem p 132 A dispersatildeo significa que cada elemento pertencente a um grupo x busca os outros elementos do grupo y Natildeo existea busca dos elementos do grupo x para um uacutenico elemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees dispersassignificam que todos os garotos buscam todas as garotas Ou seja cada garoto procura conquistar a sua garota Natildeo haacuteuma busca do grupo dos garotos para alcanccedilar uma uacutenica e mesma garota 33 A convergecircncia significa a orientaccedilatildeo para um mesmo objetivo Todos os elementos do grupo x buscam um uacutenicoelemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees convergentes significam que todos os garotos convergem ouseja todos se orientam para buscar uma uacutenica e mesma garota34 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia aristoteacutelica Tese deDoutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas p 78
16
juntamente com trechos de escritos de outros filoacutesofos famosos35 para demonstrar os requisitos
necessaacuterios de uma teoria da quantificaccedilatildeo na loacutegica moderna E tambeacutem utiliza estes escritos para
mostrar como pode ser uma ocorrecircncia comum cometer este tipo de falaacutecia de inversatildeo de
quantificadores36
A questatildeo da validade loacutegica expressa no referido trecho da Eacutetica a Nicocircmaco citado acima
natildeo eacute o escopo principal deste trabalho Mas eacute interessante apontar de maneira miacutenima um
possiacutevel caminho de superaccedilatildeo que este impasse trouxe agrave leitura do argumento aristoteacutelico haja
vista ser um dos argumentos centrais acerca da eudaimonia pois ela eacute o fim que natildeo se busca leva a
nenhum outro Para tanto seguimos dois enfoques descritos a seguir
Na primeira abordagem consideremos somente o aspecto da validade formal do argumento
aristoteacutelico Um possiacutevel caminho eacute realizar uma interpretaccedilatildeo do argumento aristoteacutelico que una as
proposiccedilotildees (a) ldquoSe pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo
e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim [] rdquo e (b) ldquo[]se eacute verdade que nem toda coisa
desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo
seria o nosso desejar) []rdquo como duas premissas que fundamentam a conclusatildeo (c) ldquo[] tal fim
seraacute o bem ou antes o sumo bemrdquo Isso eacute possiacutevel devido a utilizaccedilatildeo do termo ldquoerdquo (kai)37 no texto
aristoteacutelico que introduz a proposiccedilatildeo (a) e faz a ligaccedilatildeo com a proposiccedilatildeo (b) Logo haacute uma
indicaccedilatildeo hipoteacutetica da existecircncia de um fim desejado por si um fim uacuteltimo (fim universal) que
subordina os demais fins que satildeo instrumentais
Esta interpretaccedilatildeo literal do argumento aristoteacutelico eacute defendida por Peter Vranas38 que
retoma a mesma linha de raciociacutenio anteriormente defendida por Michael Wendin39 segundo a qual
Aristoacuteteles natildeo cometeu uma falaacutecia E natildeo incorreu em uma falaacutecia porque as duas proposiccedilotildees (a)
e (b) devem ser entendidas como uma conjunccedilatildeo No entender de Vranas caso consideremos que
existam dois fins uacuteltimos implicados se (a) eacute um fim universal e (b) eacute um fim natildeo-instrumental
procede que existe um uacutenico fim natildeo-instrumental40 que eacute equivalente a um fim uacutenico universal41
Logo esta conjunccedilatildeo implica que o fim proposto por Aristoacuteteles eacute um fim de caraacuteter natildeo-
instrumental o que significa que eacute um fim uacutenico universal42
35 Geach utiliza trechos de obras de Platatildeo Berkeley Spinoza Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Op cit p 2-536 Ibidem p 237 A junccedilatildeo das duas proposiccedilotildees eacute admissiacutevel tendo em vista o uso do termo καί que eacute o equivalente na liacutenguaportuguesa agrave conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo38 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo Phronesis Vol 50Nordm 2 2005 p 116-128 39 Cf WEDIN M ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981 p243-262 40 Fim natildeo-instrumental significa que este natildeo eacute perseguido por causa de nenhum outro fim41 Fim uacutenico universal equivale ao fim uacuteltimo42 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best goodrdquo Op cit p 118
17
Nesta linha de raciociacutenio caso as proposiccedilotildees (a) e (b) sejam verdadeiras sendo (a) um fim
uacutenico universal todos os outros fins tornam-se intermediaacuterios (fins ldquoxrdquo) instrumentos para alcanccedilar
(a) Inclusive o fim (b) assume nesta hipoacutetese um caraacuteter instrumental Mas a situaccedilatildeo pode ser
invertida pois caso (b) seja o fim a ser buscado torna-se o fim uacutenico universal com os fins
intermediaacuterios (fins ldquoyrdquo) como instrumentos para alcanccedilar (b) Neste caso (a) passa a ser
instrumental Portanto mesmo que um indiviacuteduo siga qualquer um dos fins (a) ou (b) como estatildeo
mutuamente relacionados entre si de todos os modos sua busca recai sobre o fim uacutenico universal43
A interpretaccedilatildeo de Vranas eacute interessante do ponto de vista da loacutegica formal e tenta inocentar
Aristoacuteteles de ter cometido a mencionada falaacutecia Este esforccedilo possui o seu meacuterito tendo em vista
ser uma denuacutencia que tem durado ao longo do tempo e defendida por diversos estudiosos da obra do
Estagirita Ainda assim haacute em nosso entender uma fragilidade no argumento exposto pelo citado
comentador A interpretaccedilatildeo literal estaacute baseada em uma leitura que aparentemente procura forccedilar
um limite de explicaccedilatildeo que natildeo encontra respaldo no texto aristoteacutelico Ao considerar o tratado da
Eacutetica a Nicocircmaco como um todo natildeo nos parece que haja dois fins uacuteltimos um de caraacuteter universal
e outro natildeo-instrumental de que possuam relaccedilotildees reciacuteprocas entre si Este fim universal e uacutenico eacute
asseverado pelo Estagirita quando afirma a existecircncia de apenas um fim absoluto e incondicional
Se porventura existir mais de um fim o mais absoluto de todos torna-se o objetivo a ser alcanccedilado
Este fim absoluto e incondicional eacute a proacutepria eudaimonia visto que todos os outros fins
intermediaacuterios satildeo buscados como meios para alcanccedilar uma vida feliz44 Assim sendo o texto de
Aristoacuteteles leva ao entendimento que exista somente um fim que eacute universal e uacutenico e os demais
fins possuem um caraacuteter instrumental de subordinaccedilatildeo a este fim universal
Em relaccedilatildeo ao argumento de Geach no qual ele afirma que natildeo eacute possiacutevel inferir a partir da
proposiccedilatildeo Todo menino ama alguma meninardquo que exista ldquoHaacute alguma menina que todo menino
amardquo O problema eacute que esta afirmaccedilatildeo natildeo considera a questatildeo da hierarquia de fins mencionada
no texto aristoteacutelico Ao desconsiderar esta hierarquia de fins haacute a eliminaccedilatildeo de qualquer
possibilidade de convergecircncia entre o Sumo Bem e outros fins A hierarquia entre fins subordinados
e os fins principais das variadas artes ciecircncias e atividades eacute descrita por Aristoacuteteles ao enumerar
alguns exemplos o fim da arte meacutedica eacute a sauacutede o fim da construccedilatildeo naval eacute a fabricaccedilatildeo do navio
o fim da estrateacutegia eacute a vitoacuteria o fim da economia eacute a riqueza o fim da selaria eacute a equitaccedilatildeo Os fins
uacuteltimos de cada arte satildeo preferiacuteveis por serem mais importantes por isso devem ser buscados por
meio dos fins subordinados45 O texto aristoteacutelico eacute claro ao afirmar a existecircncia de uma hierarquia
de fins em si que se encaminha agravequele fim uacuteltimo que eacute perseguido por todo ser humano em sua
43 Ibid p 11944 Cf EacuteN 1097a 25-30 a 1097b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1545 Cf EacuteN 1094a 7-15 Ibidem p 9
18
vida Eacute um raciociacutenio de cunho arquitetocircnico o qual mostra que os vaacuterios fins subordinados satildeo
etapas para alcanccedilar o fim uacuteltimo de determinada arte Deste modo como o objeto da eacutetica
aristoteacutelica eacute a felicidade humana Aristoacuteteles descreve a ldquoarquiteturardquo de construccedilatildeo de uma vida
feliz na qual cada fim eacute buscado com vistas a alcanccedilar esta plena realizaccedilatildeo que eacute a felicidade (fim
supremo)
O argumento de Geach parece natildeo contemplar esta arquitetura proveniente desta
convergecircncia do fim uacuteltimo e os fins subordinados Para uma melhor compreensatildeo desta
convergecircncia dos diversos fins um bom exemplo seria pensar em uma bacia hidrograacutefica46 Existem
rios secundaacuterios que satildeo diferentes entre si cada um com sua foz individual mas todos convergem
para o rio principal que desemboca no mar ou em um lago Cada rio secundaacuterio converge para um
fim maior mais abrangente que eacute o rio principal que desemboca no mar ou no lago que neste caso
representa o fim supremo Tal como a medicina busca a sauacutede a estrateacutegia busca agrave vitoacuteria agrave selaria
busca a equitaccedilatildeo etc e todas satildeo realizadas em vista da eudaimonia Logo a rede hidrograacutefica
como um todo eacute convergente e natildeo somente um uacutenico rio
A segunda abordagem visa examinar o domiacutenio referencial no qual o argumento aristoteacutelico
estaacute fundamentado em um aspecto praacutetico ou teoacuterico Para esta linha de pensamento a referecircncia
principal do argumento aristoteacutelico se encontra no universo da accedilatildeo O raciociacutenio do fim uacuteltimo
pode ser analisado sob dois prismas e cada um deles conduz agrave uma conclusatildeo diferente O primeiro
prisma eacute o de validade loacutegica o qual descrevemos acima ao examinar a criacutetica de Geach ao texto
aristoteacutelico O segundo prisma eacute analisar o argumento aristoteacutelico inserido no campo das accedilotildees
humanas Caso o argumento aristoteacutelico seja examinado sob o ponto de vista da loacutegica formal
apenas resta tentar estabelecer formas de evitar o julgamento de Geach por meio dos instrumentos
cabiacuteveis da loacutegica formal ou simplesmente aceitar o fato que houve o cometimento de uma falaacutecia
pelo Filoacutesofo Mas caso seja escolhido o prisma referencial que coloca o argumento aristoteacutelico no
acircmbito da praacutexis humana talvez seja possiacutevel sobrepujar o desafio imposto por Geach Portanto
procederemos agrave anaacutelise do argumento aristoteacutelico sob a oacutetica da dimensatildeo praacutetica
O domiacutenio referencial no qual se insere o argumento aristoteacutelico eacute a accedilatildeo humana Natildeo se
trata somente de considerar a validade loacutegica das proposiccedilotildees como verdadeiras ou falsas mas
tambeacutem como devem ser entendidos conceitos importantes para a anaacutelise da conduta dos
indiviacuteduos tais como a felicidade o bem humano as virtudes etc Neste sentido haacute um
deslocamento para o domiacutenio praacutetico do argumento aristoteacutelico evitando seu uso somente no
domiacutenio teoacuterico no qual Geach realiza sua anaacutelise O domiacutenio teoacuterico e o domiacutenio praacutetico satildeo
compreendidos a partir da conceituaccedilatildeo de Aristoacuteteles O aspecto teoacuterico desenvolve as operaccedilotildees
46 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Op cit p 89
19
intelectuais da bios theorethikoacutes da verdade e da falsidade dos postulados do raciociacutenio47 enquanto
o aspecto praacutetico tem por objeto natildeo somente a validade das proposiccedilotildees mas orientar a conduta do
homem em funccedilatildeo da verdade Logo este uacuteltimo aspecto cuida para que a verdade permaneccedila em
concordacircncia com a retidatildeo no desejo e possa orientar a racionalidade praacutetica para a consecuccedilatildeo de
um fim nobre48
13 Fim dominante ou fim inclusivo
Neste ponto pode surgir um questionamento acerca da relaccedilatildeo entre fins e o supremo bem
uma vez que possa haver uma convergecircncia entre fins em prol de um fim supremo Quais fins
devem ser buscados pelo indiviacuteduo para que atinja uma vida feliz A resposta a esta pergunta
inspira duas perspectivas diferentes sobre o Supremo Bem e qual eacute a sua relaccedilatildeo com os fins
subordinados a ele Neste sentido existem duas visotildees sobre o Supremo Bem A primeira eacute vista
sob o prisma de um fim uacuteltimo dominante a segunda como um fim uacuteltimo inclusivo Deste modo
abordaremos estes dois pontos de vista acerca deste Bem maior
Uma vez que o sumo bem eacute a eudaimonia esta eacute identificada com a vida teoacuterico-
contemplativa ou pelo menos haacute uma grande ecircnfase neste tipo de vida como sendo uma vida
feliz49 Logo a pergunta central eacute saber se a vida feliz eacute somente caracterizada pela contemplaccedilatildeo
ou tambeacutem inclui outros tipos de bens
Na anaacutelise acerca do fim aristoteacutelico ser dominante ou inclusivo os principais estudiosos satildeo
William Francis Ross Hardie e John Lloyd Ackrill O primeiro comentador W F R Hardie defende
o ponto de vista de um fim dominante Enquanto o segundo estudioso advoga que o fim descrito por
Aristoacuteteles deve ser observado a partir de uma perspectiva inclusivista
No caminho de anaacutelise acerca da eudaimonia ser um fim dominante ou inclusivo WFR
Hardie50 iniciou esta discussatildeo ao afirmar que existiria uma falta de precisatildeo de Aristoacuteteles ao expor
o argumento que a eudaimonia eacute o fim uacuteltimo a ser alcanccedilado pelos indiviacuteduos Esta imprecisatildeo eacute
causada pelo fato do Estagirita natildeo ter explicitado de modo claro e contundente que espeacutecie de fim
uacuteltimo eacute o Supremo Bem A insuficiecircncia na explicaccedilatildeo aristoteacutelica permite a especulaccedilatildeo sob qual
prisma deve ser entendido o Bem maior como fim dominante ou inclusivo A desordem reside no
seguinte ponto Ao buscar a felicidade os indiviacuteduos elaboram o seu planejamento de vida que
inclui alcanccedilar determinados fins para satisfazer desejos que os levaratildeo a ter uma vida feliz Ao
47Cf EacuteN VI 1139a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10248Cf EacuteN VI 1139a 35-1139b 4 Ibidem p 10249Cf EacuteN X 1177a 11-15 ndash 1178a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 188-18950Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacuteticanicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
20
fazer este planejamento a duacutevida recai sobre qual eacute a ecircnfase colocada em um determinado fim para
que este se torne o seu fim predominante para que este fim se transforme no eixo central da vida
Este eixo central que eacute um objeto uacutenico desejado na vida do indiviacuteduo pode ser a riqueza a fama
a ciecircncia para ficarmos com alguns exemplos citados na Eacutetica a Nicocircmaco Ao planejar sua vida
qualquer indiviacuteduo sabe que possui variados interesses e desejos Percebe que alguns desejos satildeo
mais importantes que outros Ou percebe que alguns desejos satildeo mais difiacuteceis de serem realizados
enquanto outros satildeo mais faacuteceis E que a busca de um desejo escolhido pode auxiliar atrapalhar ou
tornar irrealizaacutevel a satisfaccedilatildeo de outros desejos Desta forma o indiviacuteduo que reflete acerca dos
seus desejos dentro do seu plano de vida procura traccedilar um caminho que permita a conquista do
modo mais completo possiacutevel dos desejos elencados como os mais importantes e satisfatoacuterios Sob
esta perspectiva o desejo pela felicidade consiste em satisfazer vaacuterios desejos de maneira
harmoniosa e ordenada
Na compreensatildeo de Hardie51 a concepccedilatildeo de fim inclusivo como sendo um conjunto de
fins pode ser constatado na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles ao dizer que uma ciecircncia ldquoarquitetocircnicardquo52 se
constitui com um fim preciacutepuo53 A felicidade eacute considerada como a coisa mais desejada perante
todas as outras sem que seja contada entre elas pois continua a ser a mais desejada mesmo com a
adiccedilatildeo do menor dos bens54 Para o mencionado comentador o estagirita deveria conceituar a
felicidade como um fim de segunda ordem55 no qual se incluiriam os fins de primeira ordem em
uma plena realizaccedilatildeo harmoniosa Mas ele natildeo o faz Diante deste quadro no entender de Hardie o
filoacutesofo grego ao tentar definir o bem final aproxima-se de uma concepccedilatildeo inclusivista mas
termina por construir uma concepccedilatildeo dominante sobre o supremo bem
A tese que compreende a eudaimonia como fim dominante descreve que o Sumo Bem
possui um cunho superior mais elevado que os outros fins Se a eudaimonia estaacute acima de outros
fins como por exemplo a honra o prazer a riqueza ou o conhecimento e se para alcanccedilar uma
vida feliz eacute necessaacuterio alcanccedilar um determinado tipo de fim pois este fim identifica-se com a
eudaimonia entatildeo este fim passa a ser o mais importante e superior de todos os outros fins juntos
A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo isso significa dizer que caso a eudaimonia seja identificada com a riqueza
esse fim torna-se essencial e deve ser buscado por qualquer indiviacuteduo que queira uma vida feliz Haacute
uma preponderacircncia deste fim essencial sobre outros fins os quais se tornam suplementares Todas
51Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo Op cit p 44 52Cf EacuteN 1094a 26-27 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4453Um exemplo utilizado eacute caso da poliacutetica Esta ciecircncia possui a caracteriacutestica de comportar vaacuterios outros fins CfEacuteN 1094b 6-7 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4454Cf EacuteN 1097b 16-20 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4455A felicidade eacute um fim de segunda ordem por ser considerada o fim uacuteltimo o fim mais desejado O fim de segundaordem eacute decorrente da consecuccedilatildeo de fins de primeira ordem que satildeo conquistados por meio das accedilotildees do indiviacuteduo
21
as accedilotildees do indiviacuteduo convergem para atingir este fim considerado o mais importante porque ele eacute
o proacuteprio nuacutecleo da eudaimonia
A criacutetica da concepccedilatildeo dominante eacute feita por JL Ackrill56 Este uacuteltimo concorda com
Hardie que natildeo eacute clara a posiccedilatildeo aristoteacutelica sobre a eudaimonia possuir uma tendecircncia inclusiva
ou dominante Mas Ackrill57 defende que conceito de eudaimonia exposto por Aristoacuteteles eacute
fundamentalmente de cunho inclusivo No argumento de Ackrill o conceito de fim inclusivo pode
ser entendido de duas formas A primeira forma de compreensatildeo eacute enxergar o fim como algo que
inclua dois ou mais objetivos valores atividades ou bens os quais possuem um mesmo valor natildeo
havendo uma diferenccedila de importacircncia entre estes elementos A segunda forma eacute compreender o
fim como algo que englobe os mesmos elementos (objetivos valores etc) mas que possuem um
valor aproximadamente igual entre si Ou seja nenhum elemento eacute muito superior a qualquer um
dos outros elementos inclusos no fim O conceito de fim dominante tambeacutem pode ser entendido de
duas formas58 A primeira forma entende o fim dominante com sendo um ldquofim monoliacuteticordquo que
consiste em somente uma atividade ou um bem mais valoroso Na segunda forma o fim conteacutem dois
ou mais elementos que satildeo valorosos em si mesmos mas somente um destes elementos eacute
considerado o mais importante de todos sendo o elemento que possui a preponderacircncia ou
supremacia frente a todos os demais elementos Logo este eacute o bem dominante dentro do fim uacuteltimo
Ackrill continua a argumentar que o fim uacuteltimo eacute uma reuniatildeo de fins que podem ser
agradaacuteveis e dignos em si mesmos natildeo havendo um uacutenico fim que seja superior aos demais fins59
A analogia que Ackrill utiliza eacute comparar o Supremo Bem com um cafeacute da manhatilde com trecircs
elementos bacon ovos e tomates Em uma leitura inclusiva bacon natildeo eacute superior aos ovos e aos
tomates Os trecircs juntos satildeo melhores que apenas o bacon A combinaccedilatildeo dos trecircs elementos forma
um conjunto superior em relaccedilatildeo a um fim uacuteltimo que eacute baseado somente em um uacutenico elemento
Na interpretaccedilatildeo de Zingano 60 o Supremo Bem natildeo eacute um uacutenico bem que estaacute acima de
todos os outros bens Consiste em uma reuniatildeo de todos os bens buscados pelo indiviacuteduo Eacute um
bem formalmente uacutenico mas materialmente diversificado61 Pois a tese que compreende a
56Cf ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteiade Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-12557Cf ACKRILL JL Ibidem p 10558 Em relaccedilatildeo ao fim dominante este pode ser interpretado em uma chave de leitura ldquoforterdquo ou ldquofracardquo O ponto devista ldquoforterdquo como um ldquofim monoliacuteticordquo aparece quando Hardie afirma que o fim supremo aristoteacutelico eacute dominanteporque eacute identificado com um uacutenico objeto de desejo principal que eacute a proacutepria filosofia (entendida como sabedoriacontemplativa) O ponto de vista ldquofracordquo surge no momento que Hardie assevera que dentre alguns fins combinadosexiste um fim dominante Segundo Ackrill a chave de leitura ldquoforterdquo eacute a adotada por Hardie Por isso natildeo pode seraceita porque um fim dominante ldquomonoliacuteticordquo seria restritivo demais para ser elencado como o Supremo Bem a serconquistado59 Cf ACKRILL JL rdquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo Op cit p 10860 Cf ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 73-11061 Cf Ibidem p 103
22
eudaimonia como um fim inclusivo descreve que a felicidade possui uma pluralidade de fins em si
que satildeo independentes mas satildeo buscados de forma harmocircnica Nesta pluralidade de fins existem
fins que satildeo desejados por si mesmos e fins instrumentais (subordinados) a estes fins preciacutepuos que
somente servem para atingir os fins em si Mas todos eles satildeo buscados tendo em vista a
eudaimonia Deste modo a eudaimonia inclui todos os fins desejaacuteveis que podem ser buscados em
vista do Sumo Bem
Esta eacute a posiccedilatildeo de Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar a ideia de bem aristoteacutelica Eacute o
ldquobem geralrdquo que delimita a atividade especiacutefica de cada ciecircncia em particular Igualmente ocorre
com as accedilotildees humanas em geral o homem realiza diversas accedilotildees particulares que conteacutem seus fins
particulares mas todas estas accedilotildees satildeo feitas em vistas de alguma concepccedilatildeo de Sumo Bem
Conforme mostra o Aquinate nas Sententia Libri Ethicorum
Assim quando Aristoacuteteles diz-se (sic) que o bem eacute o que todos apetecem natildeo sedeve entender apenas para os que tecircm conhecimento que apreendem o bem mastambeacutem para os que carecem do conhecimento que tendem ao bem por um apetitenatural natildeo enquanto conheccedilam o bem mas porque satildeo movidos ao bem poralgum cognoscente a saber pela ordenaccedilatildeo do intelecto divino ao modo como aflecha tende ao alvo pela direccedilatildeo do arqueiro Mas o proacuteprio tender ao bem eacuteapetecer o bem e por isso disse que o ato apetece ao bem enquanto tende ao bemNatildeo eacute poreacutem um uacutenico bem ao qual todas as coisas tendem como foi dito acimaE portanto natildeo se descreve aqui um uacutenico bem mas um bem considerado emcomum Porque nada eacute bom a natildeo ser quanto eacute certa semelhanccedila e participaccedilatildeo dosumo Bem o mesmo sumo Bem que eacute de algum modo apetecido em todo bem Eassim pode-se dizer que eacute um uacutenico bem o que todos apetecem62
Natildeo eacute objetivo principal deste trabalho responder plenamente agrave questatildeo da eudaimonia ser
um fim dominante ou um fim inclusivo Mas pensamos ser interessante apresentar um breve parecer
acerca deste tema relacionado a vida feliz A questatildeo de como interpretar a eudaimonia como um
fim dominante ou fim inclusivo decorre da forma que Aristoacuteteles apresenta a vida teoacuterico-
contemplativa (βίος θεωρητικός) no Livro X da Eacutetica a Nicocircmaco Sob a perspectiva de fim
62 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes Vol IEdiccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015 p27 A citaccedilatildeo em latim vemdas Sententia Libri Ethicorum liber 1 lectio 1 n 11 ldquoQuod autem dicit quod omnia appetunt non est intelligendumsolum de habentibus cognitionem quae apprehendunt bonum sed etiam de rebus carentibus cognitione quae naturaliappetitu tendunt in bonum non quasi cognoscant bonum sed quia ab aliquo cognoscente moventur ad bonum scilicetex ordinatione divini intellectus ad modum quo sagitta tendit ad signum ex directione sagittantis Ipsum autem tenderein bonum est appetere bonum unde et actum dixit appetere bonum in quantum tendit in bonum Non autem est unumbonum in quod omnia tendunt ut infra dicetur Et ideo non describitur hic aliquod unum bonum sed bonumcommuniter sumptum Quia autem nihil est bonum nisi inquantum est quaedam similitudo et participatio summi boniipsum summum bonum quodammodo appetitur in quolibet bono et sic potest dici quod unum bonum est quod omniaappetuntrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Sententia libri Ethicorum liber I a lectio I ad IIIDisponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc0101htmlgt Acesso em 23 de junho de 2017
23
dominante todas as virtudes bens externos e a conduta do indiviacuteduo estatildeo subordinados a um fim
uacutenico e determinado que consiste na vida teoacuterico-contemplativa Aristoacuteteles natildeo poupa elogios agrave
vida teoacuterico-contemplativa ao descrever que esta eacute a melhor a mais duraacutevel a mais completa
autossuficiente e a mais amada de todas as atividades63 A contemplaccedilatildeo em outras palavras a
sabedoria filosoacutefica (σοφία) eacute o fim mais desejaacutevel entre todos os outros fins Por outro lado o
Estagirita destaca o papel das virtudes morais juntamente com a virtude intelectual da prudecircncia no
Livro VI da EacuteN Na eacutetica aristoteacutelica haacute uma grande importacircncia conferida agrave vida praacutetica Desta
maneira resta saber como a contemplaccedilatildeo interage com as virtudes morais a virtude da prudecircncia e
os demais fins
Em que consiste a vida teoacuterico-contemplativa Consiste em um estilo de vida que busca o
conhecimento da verdade64 e a nobreza de conduta como fundamento principal porque a verdade e
a nobreza de conduta adquirida por meio da praacutetica das virtudes morais satildeo pilares da eudaimonia
A faculdade da razatildeo eacute o que haacute de mais caracteriacutestico no ser humano Por isso pautar-se por ela
traz a certeza de uma vida feliz65 E aliado a esta racionalidade encontram-se as accedilotildees virtuosas66
Logo a vida contemplativa eacute uma vida proveniente da uniatildeo do exerciacutecio do intelecto com a retidatildeo
moral
A vida teoacuterico-contemplativa pode ser chamada de dominante por ser a meta a ser
perseguida como tipo de vida ideal para o indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida de plenitude
Uma vez identificada com a eudaimonia passa a ser o fim uacuteltimo e supremo Mas essa dominacircncia
da vida contemplativa para que possa ser efetiva inclui outros tipos de fins que satildeo as virtudes
morais e poucos bens externos67 Deste modo existe uma mescla entre as vertentes dominante e
inclusiva na compreensatildeo do Supremo Bem aristoteacutelico
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos questionamentos levantados ao longo do tempo sobre o caraacuteter
dominante ou inclusivo do fim aristoteacutelico no proacuteximo toacutepico analisaremos os conceitos basilares
de ldquofunccedilatildeordquo e de ldquofinalidaderdquo utilizados na filosofia moral de Aristoacuteteles
63 Cf EacuteN X 1177a20-30 e X 1177b1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 190-19164 Cf EacuteN1177b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p19065 Cf EacuteN1178a 5-8 Ibidem p19066 Cf EacuteN 1178a 10 Ibidem p19067 CF EacuteN 1179a 5-7 Ibidem p191
24
14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres
Acerca do conceito de finalidade (ές existe uma outra significaccedilatildeo possiacutevel deste termo
que eacute a de ldquoplenituderdquo (τέλειον) Assim ao afirmar que os seres tendem agrave sua finalidade pode-se
entender que os seres procuram ou tendem a serem plenos completos por realizarem seus fins
especiacuteficos
O conceito de finalidade eacute dotado de grande importacircncia para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica de
Aristoacuteteles Sua filosofia moral eacute baseada na finalidade caracteriacutestica do ser humano Toda a accedilatildeo
humana eacute realizada em funccedilatildeo de um determinado fim seja este considerado em si mesmo seja este
visto como meio para obtenccedilatildeo de outros fins Do mesmo modo o ser humano tende a uma
finalidade propriamente sua que deriva de sua proacutepria natureza Essa finalidade proacutepria ultrapassa
os fins especiacuteficos das accedilotildees humanas como por exemplo ser artesatildeo ser poliacutetico ser pedagogo ou
quaisquer outras accedilotildees exercidas Eacute um tipo de fim mais abrangente e duradouro ao qual os outros
fins estatildeo subordinados Neste sentido a plena realizaccedilatildeo do ser humano encontra-se no
aperfeiccediloamento de todas as suas caracteriacutesticas e em especial no uso da razatildeo (λόγος)
Ao dizer que a eudaimonia eacute o ldquomelhor bem de todosrdquo e o mais procurado68 Aristoacuteteles
procurar fundamentar o alcance de uma vida plena na ideia de ergon (ἔργονdos seres Este termo
eacute tradicionalmente traduzido por ldquofunccedilatildeordquo mas tambeacutem pode ser entendido como ldquotrabalhordquo
ldquoocupaccedilatildeordquo ldquotarefardquo69 Optamos por utilizar o termo tradicional de funccedilatildeo uma vez que
acreditamos ser o termo adequado para o entendimento da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as
funccedilotildees e virtudes que cada ser possui e que no contexto eacutetico culmina com a funccedilatildeo e virtude do
ser humano O que significa essa funccedilatildeo exclusiva das coisas Significa dizer que cada ser possui
uma funccedilatildeo que lhe eacute caracteriacutestica em decorrecircncia daquela finalidade para a qual fora criada Ou
seja a finalidade eacute inerente aos seres Por exemplo um navio eacute criado para navegar este objeto foi
criado para isso sua finalidade preciacutepua eacute a navegaccedilatildeo Caso o navio seja utilizado para outros fins
que natildeo agravequele ao qual foi originalmente fabricado haacute um desvirtuamento do seu fim original Ou
entatildeo o navio esteja com um casco fendido o que impossibilita uma boa navegaccedilatildeo a embarcaccedilatildeo
natildeo cumpre ou cumpre de modo pouco eficaz o fim para o qual foi designado Logo tanto na
situaccedilatildeo de desvirtuamento para o uso de outras funccedilotildees que natildeo aquela para o qual foi criado o
navio quanto na situaccedilatildeo em que haacute um casco ruim este objeto natildeo desempenha plenamente a sua
funccedilatildeo
68CF EacuteN 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p1569PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles Op cit p32
25
O navio ao natildeo desempenhar plenamente a sua funccedilatildeo perde a possibilidade de alcanccedilar a
excelecircncia na accedilatildeo de navegar Esta excelecircncia eacute a virtude (ἀρετήde cada ser eacute a plena realizaccedilatildeo
da sua funccedilatildeo atingida por qualquer ser E esta plenitude eacute atingida quando haacute (1) o cumprimento
exato da sua finalidade e (2) quando a accedilatildeo realizada eacute feita de forma maximamente eficaz Esta
ideia de virtude das coisas ao exercerem a sua funccedilatildeo de um ldquobom modordquo e de uma maneira eficaz
eacute o bem desta coisa Assim sendo Aristoacuteteles busca a funccedilatildeo inerente ao ser humano aquilo que lhe
eacute mais essencial Pois a vida plena a eudaimonia de um ser humano estaacute associada agrave realizaccedilatildeo
daquilo que lhe eacute mais proacuteprio ou seja do seu ergon mais distintivo conforme descrito na Eacutetica a
Nicocircmaco
Mas dizer que a felicidade eacute o sumo bem talvez pareccedila uma banalidade e faltaainda explicar mais claramente o que ela seja Tal explicaccedilatildeo natildeo ofereceria grandedificuldade se pudeacutessemos determinar primeiro a funccedilatildeo do homem Pois assimcomo para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisasque tecircm uma funccedilatildeo ou atividade considera-se que o bem e o ldquobem feitordquo residemna funccedilatildeo o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo Dar-se-aacute ocaso entatildeo de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funccedilotildees e atividades eo homem natildeo tenha nenhuma Ou assim como o olho a matildeo o peacute e em geral cadaparte do corpo tecircm evidentemente uma funccedilatildeo proacutepria poderemos assentar que ohomem do mesmo modo tem uma funccedilatildeo agrave parte de todas essas Qual poderaacute serela70
Cada oacutergatildeo do corpo humano possui sua funccedilatildeo especiacutefica e quando esta funccedilatildeo eacute exercida
da sua melhor maneira encontra-se em sua plena virtude O carpinteiro ou curtidor tem sua
atividade preciacutepua ao exercer sua respectiva funccedilatildeo de moldar a madeira e preparar o couro da
melhor maneira exerce suas atividades de modo virtuoso Em outras palavras assume seu grau de
excelecircncia Neste sentido o ser humano realiza plenamente sua funccedilatildeo proacutepria quando escolhe
atingir a excelecircncia naquilo que o diferencia de outros seres que eacute a racionalidade
Para responder a esta questatildeo acerca da funccedilatildeo proacutepria do ser humano Aristoacuteteles recorre agrave
divisatildeo da alma ( exposta na obra De Anima na qual eacute demonstrada a ideia de que a alma
possui trecircs partes ou faculdades distintas as quais satildeo intituladas de nutritiva (vegetativa) sensitiva
(perceptiva) e intelectiva (racional) A faculdade nutritiva eacute responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo dos seres vivos Eacute a faculdade nutritiva que primeiramente proporciona que haja vida
nos seres sendo comum a todos os seres vivos71 A faculdade sensitiva eacute a parte da alma que possui
a finalidade de percepcionar os sensiacuteveis e possui a funccedilatildeo de captar os estiacutemulos sensoriais
provenientes dos entes externos ao corpo e a alma Estes sensiacuteveis satildeo captados pelos cinco
70 EacuteN I 1097b 25-37 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15-1671 Cf De Anima II 415a 22 ARISTOacuteTELES De Anima Op cit p 50
26
sentidos visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar tato72 A faculdade intelectiva eacute a parte da alma com
capacidade para conhecer as formas inteligiacuteveis sendo responsaacutevel pelas funccedilotildees operativas do
entendimento tais como raciocinar deliberar escolher etc73
Na Eacutetica a Nicocircmaco esta divisatildeo da alma tambeacutem aparece ldquoPor exemplo que a alma tem
uma parte racional e outra privada de razatildeo []rdquo74Aristoacuteteles expotildee de modo sinteacutetico como a parte
irracional e racional da alma se comportam em relaccedilatildeo uma com a outra75 As faculdades nutritiva e
sensitiva fazem parte irracional E naturalmente a parte racional eacute a proacutepria faculdade intelectiva
A caracteriacutestica essencial do ser humano eacute a racionalidade Por isso deve submeter seus anseios e
desejos que fazem parte da faculdade sensitiva aos ditames da razatildeo para que possa realizar
plenamente sua finalidade e consequentemente ter uma vida feliz Mas para que o homem virtuoso
possa viver em funccedilatildeo do intelecto eacute necessaacuterio o cultivo das virtudes morais Pois satildeo as virtudes
morais que controlam os desejos do indiviacuteduo Aqui se encontra o ponto de confluecircncia entre a
faculdade sensitiva e a faculdade racional sem as virtudes morais ligadas agrave faculdade sensitiva natildeo
eacute possiacutevel agrave submissatildeo dos desejos agrave razatildeo Sem a faculdade racional natildeo eacute possiacutevel adquirir agraves
virtudes morais Esta intersecccedilatildeo entre a faculdade sensitiva e a faculdade racional pode ser
denominado como razatildeo desiderativa ou desejo racional76 Isso significa que os desejos se originam
na faculdade sensitiva mas uma vez que satildeo orientados pelo intelecto haacute uma influecircncia da
faculdade racional na parte sensitiva da alma Deste modo eacute nesta relaccedilatildeo entre o domiacutenio dos
desejos controlados por meio das virtudes morais e a racionalidade que se encontra a formaccedilatildeo do
homem virtuoso
No que tange agrave formaccedilatildeo moral do homem virtuoso a faculdade nutritiva eacute imediatamente
descartada por Aristoacuteteles pois ela eacute uma faculdade comum a todos os seres vivos e natildeo somente ao
homem Haja vista a funccedilatildeo da faculdade nutritiva ser apenas a nutriccedilatildeo e crescimento de um ser
vivo natildeo pode contribuir em nenhum aspecto na aquisiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das virtudes morais A
faculdade sensitiva deve atender aos comandos da faculdade racional Pois a parte sensitiva conteacutem
os desejos e estes nem sempre estatildeo de acordo com os princiacutepios determinados pela faculdade
racional Logo procede que natildeo haacute uma harmonia natural entre as duas faculdades mas o homem
virtuoso precisa proceder de modo que haja a prevalecircncia da razatildeo sobre os desejos para que
possam ser guiados de forma a contribuiacuterem para a eudaimonia Conforme descreve o texto
72 Cf De Anima II 424b 23 Ibidem p 8373 Cf De Anima III 429a 10 Ibidem p 9774 Cf EacuteN I 1102a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p2375Cf EacuteN I 1102b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24 76Cf EacuteN I 1103a 1-4 Ibidem p 24
27
Por exemplo que a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razatildeo []Do elemento irracional uma subdivisatildeo parece estar largamente difundida e ser denatureza vegetativa Refiro-me agrave que eacute causa da nutriccedilatildeo e do crescimento []Parece haver na alma ainda outro elemento irracional mas que em certo sentidoparticipa da razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional do homem continentee do incontinente () assim como a parte de sua alma quepossui tal princiacutepio porquanto ela nos impele na direccedilatildeo certa e para os melhoresobjetivos mas ao mesmo tempo encontra-se neles um outro elementonaturalmente oposto ao princiacutepio racional lutando contra este a resistindo-lhe []os impulsos dos incontinentes movem-se em direccedilotildees contraacuterias[] Apesar dissodevemos admitir que tambeacutem na alma existe qualquer coisa contraacuteria ao princiacutepioracional qualquer coisa que lhe resiste e se opotildee a ele [] seja como for nohomem continente ele obedece ao referido princiacutepio racional e eacute de presumir queno temperante e no bravo seja mais obediente ainda pois em tais homens ele fala arespeito de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racional77
Exposta a ideia acerca da divisatildeo da alma e sendo caracterizado que a faculdade racional eacute a
uacutenica inteiramente humana segue-se que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada com um tipo
de vida conduzida pela racionalidade Mas aleacutem de ser marcada pelo uso da razatildeo a funccedilatildeo do ser
humano tambeacutem consiste em ser realizada de maneira adequada e de modo digno A accedilatildeo virtuosa eacute
pautada nestes dois pressupostos (1) baseada na razatildeo e (2) feita de maneira adequada e digna
Neste ponto eacute importante perceber uma distinccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre uma accedilatildeo virtuosa e uma
accedilatildeo boa Natildeo eacute qualquer tipo de accedilatildeo que pode ser considerada como uma accedilatildeo virtuosa A accedilatildeo
virtuosa eacute caracterizada por ser uma accedilatildeo que proveacutem da virtude O homem virtuoso ao realizar
uma accedilatildeo virtuosa age com os meios corretos e com um fim nobre Isso fica claro quando
Aristoacuteteles assevera que o indiviacuteduo deve conhecer a accedilatildeo que realiza e deve escolher fazer a accedilatildeo
pela virtude78 A accedilatildeo deve ser feita do mesmo modo que os homens virtuosos fazem79 A accedilatildeo
meramente boa eacute uma accedilatildeo que pode ter um fim nobre mas o agente natildeo possui o conhecimento
das razotildees corretas de sua accedilatildeo Eacute uma accedilatildeo que possui uma aparecircncia de virtude mas natildeo eacute
verdadeiramente uma virtude porque carece de um caraacuteter intriacutenseco ao agente que realiza a accedilatildeo
Somado aos pressupostos da razatildeo e da virtude existe um terceiro pressuposto que completa as
caracteriacutesticas de uma accedilatildeo virtuosa que eacute (3) a praacutetica constante destas accedilotildees Esta praacutetica
constante de atos virtuosos eacute mostrada na comparaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre a constacircncia
necessaacuteria de accedilotildees virtuosas e uma andorinha solitaacuteria que em um dia somente natildeo faz um veratildeo
Ou seja um curto e passageiro periacuteodo de felicidade natildeo sustenta uma vida de plenitude80 Em
siacutentese a vida feliz eacute a vivecircncia desta faculdade racional que se sobrepotildee as demais estaacute em
77 EacuteN I 1102a 30 ndash 1102b 5-25 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23-2478 Cf EacuteN II 1105a 30-35 Ibidem p 3079 Cf EacuteN II 1105b 5 Ibidem p 31 80 Cf EacuteN I 1098a 17-20 Ibidem p 16
28
consonacircncia com a virtude moral e se manifesta de modo prolongado por toda a vida e natildeo somente
em ocasiotildees esparsas
Conforme exposto eacute necessaacuterio agir com a funccedilatildeo proacutepria do ser humano para alcanccedilar a
eudaimonia Para atingir sua plenitude de vida eacute imperioso que o indiviacuteduo aperfeiccediloe sua
racionalidade desenvolva as virtudes morais e pratique firmemente accedilotildees virtuosas Com isto o
percurso para construir a felicidade estaacute traccedilado na perspectiva eacutetica aristoteacutelica Uma vez definidas
as condiccedilotildees para uma vida feliz ainda resta saber qual o melhor tipo de vida que se enquadre nos
criteacuterios estabelecidos No proacuteximo toacutepico analisaremos esta questatildeo
15 A Eudaimonia e tipos de vida
O termo ldquoSumo Bemrdquo deriva da expressatildeo latina Summum Bonum a qual traz em seu bojo a
ideia de ser o bem mais elevado o melhor dos bens o bem supremo Conforme exposto nos itens
anteriores Aristoacuteteles considera que este bem mais elevado eacute a eudaimonia81 Ele descreve as
caracteriacutesticas que um bem deve ter para ser considerado justamente como o Sumo Bem
autossuficiente ser completo e baseado na razatildeo pois esta eacute o que haacute de mais proacuteprio no ser
humano Mas ao descrever as propriedades do Sumo Bem ou seja da eudaimonia falta ainda
determinar de modo mais preciso qual o ldquocaminhordquo para alcanccedilaacute-la Afinal como se trata de um
estudo no campo da eacutetica eacute necessaacuterio determinar como alcanccedilar esta eudaimonia em termos de
comportamento durante a vida humana Isto consiste em questionar qual eacute o melhor tipo de bem a
ser conquistado e consequentemente qual o tipo de vida que melhor se adequa agrave busca deste bem
No entender de Otfried Houmlffe a eudaimonia eacute considerada por Aristoacuteteles como o τέλος
τελειoτατoacuteν cujo significado eacute o de ser o ldquofim maacuteximordquo o ldquofim mais finalrdquo o fim uacuteltimo que natildeo
pode ser ultrapassado eacute a finalidade de todos os fins82 A eudaimonia eacute o fim geral que serve como
paracircmetro de orientaccedilatildeo para a busca de outros fins Por isso a partir dela criteacuterios satildeo delimitados
para que o indiviacuteduo escolha uma maneira de viver que realmente o conduza agrave felicidade Uma vez
que alguns tipos de vida natildeo atendem estes criteacuterios nem todos podem conduzir o indiviacuteduo ao
Sumo Bem que eacute a verdadeira eudaimonia Somente aquele tipo de vida que mais condiz com a
natureza humana e verdadeiramente pode ser considerado como um caminho seguro e consistente
para alcanccedilar uma vida feliz Neste sentido eacute necessaacuterio proceder a uma anaacutelise dos tipos de vida e
qual eacute a que pode ser considerada condizente com a eudaimonia
81 Cf EacuteN I 1097b 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1582 HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 196
29
Para a anaacutelise dos tipos de bens principais que dizem respeito a diferentes tipos de vidas
Aristoacuteteles natildeo desconsidera a endoxa (ἔνδοξα)83 ou seja a opiniatildeo comum Ele tambeacutem observa a
tradiccedilatildeo filosoacutefica anterior84 para proceder a uma avaliaccedilatildeo mais acurada acerca de qual vida eacute a
melhor e por conseguinte qual o tipo de vida torna o ser humano feliz Mas a partir da endoxa
avalia se cada tipo de vida pode de fato corresponder agraves caracteriacutesticas jaacute traccediladas para que um
bem qualquer possa receber o tiacutetulo de Sumo Bem
Na linha de raciociacutenio conduzida na Eacutetica a Nicocircmaco85 Aristoacuteteles apresenta uma siacutentese
dos trecircs tipos de vida a serem analisadas decorrentes dos bens considerados ldquofinaisrdquo os mais
importantes a serem procurados dentro daquele tipo de vida Pode-se verificar trecircs espeacutecies
principais de vida que representam os tipos de bens que as fundamentam Para algumas pessoas a
eudaimonia eacute identificada com uma vida de gozo dos prazeres mais mundanos86Outro contingente
de pessoas a identificam com as honras provenientes de uma vida pautada pela poliacutetica87 Enfim
outros a identificam com uma vida baseada na contemplaccedilatildeo (teoacuterico-contemplativa)88 Uma vida
de riquezas eacute desconsiderada por Aristoacuteteles como o tipo de vida ideal porque o acuacutemulo de
riquezas eacute apenas um meio para obtenccedilatildeo de outro bem89 Quanto agrave vida de honrarias que eacute
particularmente vinculada agrave vida poliacutetica ela traz em seu bojo uma instabilidade ao indiviacuteduo pois
as honras dependem mais de quem as concede do que a pessoa que as recebe Tampouco os
prazeres mundanos podem ser tidos como o tipo de vida a ser buscado porque satildeo contraacuterios agraves
virtudes morais Assim o modelo de vida mais adequado ao bem supremo deve ser vinculado de
modo mais iacutentimo ao homem e por isso deve ser mais estaacutevel Em relaccedilatildeo agrave vida teoacuterico-
contemplativa Aristoacuteteles a analisa de modo mais detalhado mais agrave frente no Livro X da Eacutetica a
Nicocircmaco Por isso natildeo analisaremos as propriedades da vida teoacuterico-contemplativa neste
momento
83 Conforme Aristoacuteteles aponta nas suas obras Toacutepicos I 1100a 18-25 e Retoacuterica I 1356b 33-36 a endoxa eacute umaopiniatildeo geralmente aceita acerca de qualquer tema que seja objeto de anaacutelise ora para leigos ora para os saacutebios (nosentido de especialistas em uma determinada aacuterea do conhecimento) Parte-se de premissas que satildeo consideradasprovaacuteveis e aparentemente verdadeiras para iniciar a anaacutelise e ocorrer o aprofundamento do estudo sobre o objetoescolhido Eacute o que faz Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando observa as diversas opiniotildees correntes agrave eacutepoca acerca doque seria a felicidade tanto na visatildeo comum quanto na visatildeo dos filoacutesofos Confiram-se os textos Toacutepicos I 1100a 18-25 ldquoNosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo deopiniotildees geralmente aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto [] rdquo Retoacuterica I 1356b 33-36 ldquo[] tatildeopouco a retoacuterica teorizaraacute sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo ndash por exemplo para Soacutecrates ou Hiacutepias ndash mas sobre o queparece verdade para pessoas de uma certa condiccedilatildeo como tambeacutem faz a dialeacutetica[] rdquo84 Cf EacuteN I 1098b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1785 Cf EacuteN I 1095b 15 - 1096a 10 Ibidem p 11-1286 Cf EacuteN I 1095b 15-20 Ibidem p 1187 Cf EacuteN I 1095b 25-30 Ibidem p 1288 Cf EacuteN I 1096a 5 Ibidem p 1289 Cf EacuteN I 1096a 8-10 Ibidem p 12
30
Uma vez que o Sumo Bem deve ser autossuficiente e completo os casos dos prazeres
mundanos da honra e das riquezas satildeo eliminados Assim os prazeres mundanos satildeo buscados por
aqueles que se entregam agraves paixotildees mais indignas natildeo sendo proacuteprios de homens que almejam a
nobreza de alma pois a estes homens compete agrave razatildeo comandar as suas accedilotildees As honrarias sendo
uma caracteriacutestica mais apropriada agrave vida poliacutetica ainda dependem de fatores externos ao indiviacuteduo
considerado honrado na poacutelis O reconhecimento de uma vida honrada depende de quem confere
este tiacutetulo ao indiviacuteduo Desta maneira natildeo eacute autossuficiente nem completa Em relaccedilatildeo agraves riquezas
satildeo a princiacutepio somente um bem instrumental dispostas apenas para alcanccedilar outros fins natildeo
possuindo nenhum caraacuteter de autossuficiecircncia e completude Deste modo nem os prazeres
mundanos nem a honra nem a riqueza podem ser alccediladas agrave categoria de Sumo Bem 90
Conforme descrito anteriormente os candidatos ao tiacutetulo de Sumo Bem satildeo os prazeres
corporais e espirituais a honra e a contemplaccedilatildeo com seus consequentes tipos de vida Aristoacuteteles
continua sua anaacutelise na Eacutetica a Nicocircmaco 91 acerca do tipo de vida adequada agrave verdadeira
eudaimonia Este filoacutesofo retoma uma determinada linha de pensamento filosoacutefico que preconiza a
divisatildeo dos bens em trecircs classes distintas os bens externos os bens do corpo e os bens da alma Os
uacutenicos bens externos e os bens do corpo natildeo podem ser considerados os bens mais adequados agrave
eudaimonia Os bens da alma devem ser postos em primeiro plano pois satildeo considerados os mais
elevados e plenos Para o estagirita eacute o exerciacutecio ativo das faculdades interiores da alma em
conformidade com a razatildeo que eacute o fundamento de uma vida feliz Logo um dos criteacuterios apontados
por Aristoacuteteles eacute que uma vida plena deve estar vinculada aos bens da alma e natildeo apenas aos bens
externos
Ora os bens tecircm sido divididos em trecircs classes e alguns foram descritos comoexteriores outros como relativos agrave alma ou ao corpo Noacutes outros consideramoscomo mais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com a almae como tais classificamos as accedilotildees e atividades psiacutequicas Logo o nosso ponto devista deve ser correto pelo menos de acordo com esta antiga opiniatildeo com a qualconcordam muitos filoacutesofos Eacute tambeacutem correto pelo fato de identificarmos o fimcom certas accedilotildees e atividades pois desse modo ele vem incluir-se entre os bens daalma e natildeo entre os bens exteriores92
Devemos recordar que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano aquela que melhor o caracteriza eacute
agir conforme a faculdade racional da alma Eacute a atividade racional do ser humano que estabelece a
90 Cf EacuteN I 1095b 15-30 - 1096a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1291 Cf EacuteN I 1098b 10 - 1099b 5 Ibidem p 1892 EacuteN I 1098a 15-19 Ibidem p 17
31
via mais adequada para alcanccedilar uma vida plena Por conseguinte a eudaimonia estaacute no uso ativo
da razatildeo e natildeo nas paixotildees que residem na faculdade sensitiva e claro muito menos na faculdade
nutritiva uma vez que esta diz respeito somente a sobrevivecircncia bioloacutegica93
Para Aristoacuteteles eacute preciso agir de modo correto visando sua maacutexima performance pois
nisso consiste alcanccedilar a excelecircncia de uma coisa ou de uma accedilatildeo A tiacutetulo de exemplo um escritor
quando realiza adequadamente e em um grau elevado a accedilatildeo de escrever exerce esta funccedilatildeo de
modo virtuoso Do mesmo modo um violinista ao tocar adequadamente um violino exerce o ato de
tocar seu instrumento de modo virtuoso A excelecircncia de algo ou de uma accedilatildeo eacute o modo mais
adequado a maacutexima performance da realizaccedilatildeo de sua proacutepria funccedilatildeo Conforme nos mostra o
Estagirita
Ora se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica umprinciacutepio racional e se dizemos que ldquoum tal-e-talrdquo e ldquoum bom tal-e-talrdquo tecircm umafunccedilatildeo que eacute a mesma espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocadorde lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentadaao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade - pois a funccedilatildeo de umtocador de lira eacute tocar lira e de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) serealmente assim eacute [e afirmamos ser a funccedilatildeo do homem uma certa espeacutecie de vidae esta vida uma atividade ou accedilotildees da alma que implicam um princiacutepio racional eacrescentamos que a funccedilatildeo de um bom homem eacute uma boa e nobre realizaccedilatildeo dasmesmas e se qualquer accedilatildeo eacute bem realizada quando estaacute de acordo com aexcelecircncia que lhe eacute proacutepria se realmente assim eacute] o bem do homem nos aparececomo uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de umavirtude com a melhor e a mais completa94
Conforme podemos ver no texto de Aristoacuteteles intitular uma accedilatildeo de virtuosa significa
afirmar que eacute uma accedilatildeo que atingiu a excelecircncia Pode-se dizer que eacute uma accedilatildeo que se tornou
sublime Utilizando novamente os exemplos citados existem escritores e violinistas medianos mas
existem escritores e violinistas sublimes Estes virtuosos escritores e violinistas satildeo os ldquoilustres
escritores e ilustres violinistasrdquo de acordo com o Estagirita Portanto satildeo os modelos a serem
seguidos por todos que desejem alcanccedilar a excelecircncia nestas artes
Mas a eudaimonia consiste somente em bens da alma tais como a virtude e a razatildeo Na
concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a virtude e a razatildeo possuem uma grande importacircncia na definiccedilatildeo de uma
vida feliz mas eacute necessaacuterio algo a mais Outra caracteriacutestica da eudaimonia encontra-se nos bens
externos manifestados na necessidade do ser humano de possuir uma certa prosperidade que natildeo
depende exclusivamente do indiviacuteduo Na compreensatildeo do filoacutesofo de Estagira a prosperidade
nestes bens externos facilita a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Estes bens externos considerados
93 EacuteN 1098a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1694 EacuteN 1098a 10-15 Ibidem p 16
32
pertinentes a uma vida feliz satildeo de vaacuterios tipos amigos riqueza influecircncia poliacutetica Outros bens
externos fortalecem a posse de uma vida feliz tornando-a mais acessiacutevel aos mais afortunados e a
falta destes torna mais difiacutecil ter uma vida feliz aos indiviacuteduos desafortunados Estes bens satildeo a
beleza fiacutesica ter nascido em uma boa famiacutelia e ter bons filhos Nos diz Aristoacuteteles
A felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do mundo eesses atributos natildeo se acham separados como na inscriccedilatildeo em Delos Das coisas amais nobre eacute a mais justa e a melhor eacute a sauacutede mas a mais doce eacute alcanccedilar o queamamos Com efeito todos eles pertencem agraves mais excelentes atividades e estasou entatildeo uma delas ndash a melhor ndash noacutes a identificamos com a felicidade E noentanto como dissemos ela necessita igualmente dos bens exteriores pois eacuteimpossiacutevel ou pelo menos natildeo eacute faacutecil realizar atos nobres sem os devidos meiosEm muitas accedilotildees utilizamos como instrumentos os amigos a riqueza e o poderpoliacutetico e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza denascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feiaaparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidadesde ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossemvisceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigosComo dissemos pois o homem feliz parece necessitar tambeacutem dessa espeacutecie deprosperidade e por essa razatildeo alguns identificam a felicidade com a boa fortunaembora outros a identifiquem com a virtude95
Observa-se no decorrer da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles que natildeo basta somente as virtudes
morais para que o homem virtuoso seja feliz Parece que haacute duas opiniotildees correntes em sua eacutepoca
Uma atribui agrave boa fortuna o alicerce principal da eudaimonia e a outra atribui agrave virtude o meio
fundamental para alcanccedilar a felicidade O estagirita realiza uma siacutentese entre as duas perspectivas
mas considera os bens da alma e os bens externos em patamares diferentes Determinados bens
como os bens da alma satildeo considerados essenciais agrave eudaimonia Estes satildeo a virtude e a razatildeo
Outros como os bens externos satildeo acessoacuterios e sua inexistecircncia natildeo acarreta necessariamente uma
vida infeliz mas a torne mais difiacutecil de ser suportada Devemos recordar que o Sumo Bem possui
duas propriedades que satildeo a autossuficiecircncia e a completude Portanto os bens externos como
acessoacuterios natildeo satildeo considerados autossuficientes e natildeo satildeo completos por serem bens
instrumentais Satildeo um meio para um fim e dependem de circunstacircncias externas ao indiviacuteduo
A eudaimonia eacute constituiacuteda de caracteriacutesticas essenciais e acessoacuterias96 Neste sentido
fazendo uma analogia com a engenharia de construccedilatildeo de edificaccedilotildees prediais Eacute possiacutevel um
entendimento de que a felicidade eacute construiacuteda por camadas Haacute um nuacutecleo essencial composto
pelos bens da alma ndash virtude e razatildeo ndash que estaacute na posse do indiviacuteduo ou seja sua
operacionalizaccedilatildeo depende unicamente dele e natildeo de fatores extriacutensecos A partir deste nuacutecleo
95EacuteN I 1099a 30 - 1099b 1-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1896 Cf EacuteN I 1099b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 19
33
essencial haacute os bens acessoacuterios ndash amigos riqueza influecircncia poliacutetica ndash que podem compor uma
vida feliz mas natildeo necessariamente satildeo indispensaacuteveis para que algueacutem seja feliz sua perda ou natildeo
obtenccedilatildeo natildeo acarretam uma vida infeliz para o indiviacuteduo O que deve ser evitado eacute a inversatildeo entre
aquilo que eacute essencial e aquilo que eacute acessoacuterio Os bens externos natildeo podem ser considerados como
um fundamento seguro para a felicidade porque satildeo instaacuteveis ou seja eacute possiacutevel perdecirc-los ou natildeo
corresponder agraves expectativas do indiviacuteduo Deste modo o indiviacuteduo para alcanccedilar a eudaimonia
necessita da virtude da prudecircncia e das virtudes morais para que possa conseguir realizar boas
escolhas durante sua vida e natildeo proceder a uma inversatildeo daquilo que eacute essencial ou acessoacuterio na
busca pela felicidade
Eacute interessante notar uma sutil divisatildeo dos bens externos Um primeiro subconjunto seriam
bens externos que ainda se encontram na esfera de accedilatildeo do indiviacuteduo Afinal caso seja uma escolha
do indiviacuteduo este por meio de sua accedilatildeo pode conquistar amigos riqueza e influecircncia poliacutetica Mas
o segundo subconjunto os outros bens externos citados por Aristoacuteteles que contribuem para a
felicidade como o nascimento em uma boa famiacutelia bons filhos e ter uma bela aparecircncia natildeo
pertencem a esfera de escolha e consequente accedilatildeo do indiviacuteduo O tipo de famiacutelia a vida dos filhos
e beleza fiacutesica estatildeo completamente fora do campo de deliberaccedilatildeo de algueacutem natildeo dependem do
indiviacuteduo tatildeo somente dependem de uma boa sorte
A harmonia entre os bens da alma e os bens externos eacute a linha que Aristoacuteteles segue ao
realizar sua anaacutelise acerca da eudaimonia O exerciacutecio ativo das virtudes morais e viver sob os
ditames da razatildeo satildeo o fundamento de uma vida feliz Qualquer homem virtuoso deve viver
segundo as virtudes Natildeo obstante a grande importacircncia da racionalidade e das virtudes na
construccedilatildeo da felicidade o Estagirita concede espaccedilo para as aspiraccedilotildees ldquonormaisrdquo de um homem
que vive o cotidiano da poacutelis Natildeo eacute uma perspectiva de felicidade cunhada para um eremita ou para
um monge que decide se abster de determinados bens externos A posiccedilatildeo de WD Ross ilustra bem
esta visatildeo de harmonia entre os bens da alma e os bens externos
Esta definiccedilatildeo (de felicidade) eacute confirmada por pontos de vista comuns acerca dobem-estar e ao mesmo tempo corrige-os Alguns afirmam que o bem-estar eacute avirtude Noacutes dizemos ser uma espeacutecie de acccedilatildeo para a qual tende a virtude Algunsafirmam ser o prazer Noacutes dizemos ser acompanhada necessariamente pelo prazerAlguns afirmam ser a prosperidade externa Noacutes dizemos que sem uma certa dosede prosperidade um homem natildeo pode exercitar esta boa atividade que eacute o bem-estar Assim os elementos principais que figuram na noccedilatildeo comum de bem-estartambeacutem entram na nossa definiccedilatildeo A virtude constitui a raiz donde descola a acccedilatildeoconforme o bem o prazer eacute o seu acompanhamento natural e a prosperidade suacondiccedilatildeo preacutevia normal97
97 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198 Na traduccedilatildeo portuguesa feita pela Publicaccedilotildees Dom Quixote a partir daediccedilatildeo inglesa publicada por Methuen amp Cu Ltd Londres o termo utilizado para se referir a eudaimonia eacute ldquobem-
34
A eacutetica aristoteacutelica tambeacutem eacute muito realista ao considerar o fato de que existe uma desordem
interna no indiviacuteduo Este conflito eacute caracterizado pela discrepacircncia entre a faculdade racional e os
desejos provindos da faculdade sensitiva Caso esta dissonacircncia natildeo seja resolvida com os desejos
submetidos ao ordenamento da racionalidade natildeo haacute a possibilidade do homem tornar-se virtuoso
Portanto o filoacutesofo de Estagira forja uma concepccedilatildeo eacutetica bastante equilibrada que evita excessos
de conduta decorrentes de determinados comportamentos morais muito comuns nos dias atuais
baseadas no hedonismo e no relativismo moral que consideram os desejos como os pilares da
felicidade
O Sumo Bem eacute a eudaimonia eacute aquilo que existe de mais nobre e confere mais prazer ao ser
humano Eacute a melhor atividade dentre as mais excelentes que pode ser realizada por algueacutem A
eudaimonia eacute uma espeacutecie de atividade da alma conforme a virtude E somado a isto a eudaimonia
tambeacutem eacute composta tanto por bens que satildeo indispensaacuteveis quanto bens que satildeo acessoacuterios agrave
felicidade98Assim a eudaimonia pode ser apreendida por meio de um treinamento Ou pode ser
desenvolvida de algum outro modo Ou eacute uma daacutediva divina A resposta eacute que a virtude natildeo eacute algo
natural no ser humano Por isso necessita de um constante esforccedilo do indiviacuteduo para adquiri-la e
aperfeiccediloaacute-la Conforme nos mostra Aristoacuteteles
[] pois aquilo que constitui o precircmio e a finalidade da virtude se nos afigura o quede melhor existe no mundo algo de divino e abenccediloado Dentro desta concepccedilatildeotambeacutem deve ela ser partilhada por grande nuacutemero de pessoas pois quem quer quenatildeo esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistaacute-la medianteuma certa espeacutecie de estudo e diligecircncia Mas se eacute preferiacutevel ser feliz dessamaneira a secirc-lo por acaso eacute razoaacutevel que os fatos sejam assim uma vez que quetudo aquilo que depende da accedilatildeo natural eacute por natureza tatildeo bom quanto poderiaser e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racionalespecialmente se depende da melhor de todas as causas Confiar ao acaso o que haacutede melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito99
Uma questatildeo que surge no estudo da eudaimonia e da virtude da prudecircncia diz respeito ao
papel que o acaso possui na busca por uma vida feliz O acaso constitui todas as situaccedilotildees que estatildeo
fora do controle imediato do indiviacuteduo Satildeo as contingecircncias que aparecem no decorrer da vida do
estarrdquo O proacuteprio WD Ross explica que prefere utilizar o termo ldquobem-estarrdquo para definir eudaimonia pelo fato destaser um certo tipo de atividade e natildeo um certo tipo de prazer embora este uacuteltimo a acompanhe Ross interpreta que otermo ldquofelicidaderdquo eacute inapropriado para traduzir a palavra grega eudaimonia por considerar que esse termo ldquofelicidaderdquose refere a um sentimento que apenas se diferencia do prazer por uma questatildeo de perdurar mais tempo ser maisprofundo e ser mais sereno que o prazer No presente trabalho optamos por usar o termo ldquofelicidaderdquo por esta traduccedilatildeoser a mais tradicional e consagrada nos textos que versam acerca da eacutetica em Aristoacuteteles 98 Cf EacuteN I 1099a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1899 EacuteN I 1099b 17-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 19
35
homem e que devem ser enfrentadas para que se alcance a felicidade Por isso examinaremos o
acaso na vida humana
16 O acaso na vida humana
O acaso na vida humana natildeo eacute um fator provaacutevel de trazer uma vida feliz ao indiviacuteduo O
acaso pode trazer tanto uma maacute quanto uma boa sorte e o indiviacuteduo que deixa sua vida ao acaso
tem pouca chance de alcanccedilar a eudaimonia A ordem natural das coisas indica que o indiviacuteduo
para atingir a excelecircncia nas suas accedilotildees seja em sua conduta seja em qualquer coisa que produza
deve se empenhar para que isso ocorra Portanto para cumprir sua funccedilatildeo proacutepria de ser racional
todo indiviacuteduo deve se empenhar em se tornar virtuoso e alcanccedilar sua excelecircncia como ser humano
porque isso natildeo ocorre de modo natural
O acaso pode trazer uma maacute sorte e vaacuterios infortuacutenios Um indiviacuteduo desafortunado pode ser
considerado feliz Aristoacuteteles considera que sim mesmo que uma pessoa sofra ao longo da sua vida
diversos desventuras ele pode ser feliz Pois a estabilidade encontra-se em uma vida virtuosa e natildeo
nas circunstacircncias que mudam a cada momento100 Naturalmente eventos agradaacuteveis acrescentam
alegrias e tornam mais agradaacuteveis uma vida virtuosa Mas eventos desagradaacuteveis trazem dores e
tornam mais sofrida uma vida mesmo que virtuosa Mesmo que o indiviacuteduo seja acometido por
uma sucessatildeo de eventos desagradaacuteveis sabe enfrentaacute-los de maneira digna Visto que a
eudaimonia eacute um exerciacutecio ativo do homem em conformidade com a virtude o sujeito que esteja
empenhado em agir conforme as virtudes natildeo depende da sorte para ser feliz Deste modo o homem
virtuoso sabe aproveitar as circunstacircncias e extrair o melhor delas para alcanccedilar uma vida
feliz101Acerca do acaso e de uma vida feliz esta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco eacute significativa
Ora muitas coisas acontecem por acaso e coisas diferentes quanto agrave importacircnciaEacute claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes natildeo pesam muito nabalanccedila mas uma multidatildeo de grandes acontecimentos se nos forem favoraacuteveistornaraacute nossa vida mais venturosa (pois natildeo apenas satildeo em si mesmos de feitio aaumentar a beleza da vida mas a proacutepria maneira como um homem os recebe podeser nobre e boa) e se se voltarem contra noacutes poderatildeo esmagar e mutilar afelicidade pois que aleacutem de serem acompanhados de dor impedem muitasatividades Todavia mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver quandoaceita com resignaccedilatildeo muitos grandes infortuacutenios natildeo por insensibilidade agrave dormas por nobreza e grandeza de alma102
100 Cf EacuteN I 1100b 13-20 Ibidem p 20101 Cf EacuteN I 1101a 35-37 Ibidem p 21102 EacuteN I 1100b 25-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 20-21
36
Decorrente do texto da Eacutetica a Nicocircmaco descrito acima podemos notar que o tamanho dos
acontecimentos pode afetar o indiviacuteduo tanto para a felicidade quanto agrave infelicidade Deste modo a
fortuna e o infortuacutenio podem ter uma determinada influecircncia na consecuccedilatildeo de uma vida feliz
embora o homem virtuoso consegue conviver com estes infortuacutenios e extrair o melhor de cada
situaccedilatildeo
A eudaimonia por ser autossuficiente e completa natildeo depende de nenhum fator externo
mas sobretudo das accedilotildees virtuosas praticadas pelo indiviacuteduo Por isso possui a caracteriacutestica de ser
estaacutevel Esta estabilidade perpassa a vida virtuosa do indiviacuteduo Por conseguinte as virtudes satildeo a
base para a estabilidade da eudaimonia
Na anaacutelise acerca da eudaimonia Aristoacuteteles tambeacutem questiona se porventura os
infortuacutenios de pessoas proacuteximas e queridas tais como os amigos e os descendentes podem afetar a
estabilidade de um indiviacuteduo virtuoso que possui uma vida feliz A resposta eacute que estes infortuacutenios
dos amigos ou descendentes natildeo tecircm forccedila suficiente para afetar um indiviacuteduo que jaacute deteacutem a
felicidade Os infortuacutenios podem ser em graus diversos e natildeo afetam substancialmente o homem
virtuoso 103 Do mesmo modo as adversidades enfrentadas pelos amigos e descendentes natildeo retiram
a felicidade do indiviacuteduo bem-aventurado nem a acrescentam em nada104
Observa-se que na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a eudaimonia para ser alcanccedilada possui uma
condicionante que consiste em agir baseado nas virtudes para obter uma nobreza de alma Se o
indiviacuteduo rejeitar esta condicionante natildeo teraacute uma vida plena A felicidade eacute um exerciacutecio ativo do
homem conforme a virtude perfeita sendo estaacutevel defronte agraves variadas circunstacircncias posto que eacute
autossuficiente e plena em si mesma Eacute o fim uacuteltimo que orienta toda a vida humana E este fim
uacuteltimo se constitui em cumprir a funccedilatildeo proacutepria do ser humano que eacute o uso da racionalidade e a
partir dele atingir um alto grau de virtudes Neste sentido o proacuteximo passo de Aristoacuteteles eacute analisar
a natureza das virtudes haja vista a grande importacircncia que estas possuem na composiccedilatildeo da
eudaimonia
103 Nas palavras de Ross para Aristoacuteteles a ldquo[] a finura de caraacuteter pode lsquobrilhar atraveacutesrsquo de circunstacircncias adversasrdquoROSS WD Aristoacuteteles opcit p 198104 Cf EacuteN I 1101b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 22
37
CAPIacuteTULO II
AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
Neste capiacutetulo eacute feito um estudo acerca da concepccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as virtudes e de
como satildeo fundamentais para a consecuccedilatildeo da eudaimonia Tambeacutem eacute vista a relaccedilatildeo entre as
virtudes e a educaccedilatildeo dos prazeres pois todo ser humano procura se aproximar daquilo que
ocasiona prazer e fugir daquilo que provoca dor Assim o prazer e a dor satildeo importantes para a
busca das virtudes e rejeiccedilatildeo dos viacutecios morais Nem todos os prazeres contribuem para uma correta
formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo O indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida feliz deve saber cultivar
os prazeres moralmente bons e rejeitar os prazeres moralmente ruins Por conseguinte deve ter um
conhecimento de quais prazeres satildeo bons para serem usufruiacutedos e quais natildeo satildeo para praticar accedilotildees
nobres e consequentemente ter uma vida em plenitude
Tal como as virtudes satildeo um componente essencial para uma vida feliz o prazer tambeacutem eacute
uma parte importante da eudaimonia O prazer tem um duplo caraacuteter aperfeiccediloamento e resultado
Como aperfeiccediloamento o prazer auxilia no refinamento das habilidades do indiviacuteduo e
naturalmente ajuda a aprimorar as virtudes105 Como resultado o prazer eacute fruto das proacuteprias accedilotildees
virtuosas que causam uma satisfaccedilatildeo no indiviacuteduo que as pratica106 Deste modo o prazer eacute inerente
agrave eudaimonia pois as virtudes satildeo um pressuposto baacutesico da vida feliz
As virtudes satildeo diferenciadas entre virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) e virtudes morais
(eacuteticas) As virtudes morais satildeo necessaacuterias para que haja o autodomiacutenio do indiviacuteduo sobre suas
paixotildees Satildeo as virtudes morais que permitem um melhor florescimento das virtudes intelectuais e
em especial a virtude da prudecircncia Para que o indiviacuteduo desenvolva corretamente as virtudes
morais eacute necessaacuterio conhecer qual eacute a natureza destas virtudes Assim eacute necessaacuteria a compreensatildeo
do conceito de mediania que eacute uma das caracteriacutesticas das virtudes
Em siacutentese no presente capiacutetulo analisaremos os seguintes pontos as virtudes morais os prazeres
e o seu papel na formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo o homem virtuoso (σπουδαῖος) o conceito de mediania
(μεσότης) e a necessidade das virtudes morais para o desenvolvimento da virtude intelectual da
prudecircncia (φρόνησις)
105Cf EacuteN X 1175a 30-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 185106Cf EacuteN X 1175a 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184
38
21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais
A definiccedilatildeo de eudaimonia eacute ser uma atividade da alma conforme a virtude perfeita107 Neste
sentido as virtudes satildeo uma peccedila central no sistema eacutetico aristoteacutelico Satildeo elas que ao serem
praticadas conduzem ao aprimoramento do indiviacuteduo tanto em conhecimento adquirido pelas
virtudes intelectuais quanto em proporcionar um caraacuteter mais nobre por causa da robustez das
virtudes morais
As virtudes satildeo divididas em conformidade com esta divisatildeo da alma entre uma parte
racional e outra irracional As virtudes que dizem respeito agrave parte intelectual satildeo as virtudes
intelectuais e as relacionadas agrave parte irracional mas propriamente ao elemento desiderativo satildeo as
virtudes morais A parte irracional da alma possui uma subdivisatildeo em dois elementos O primeiro
elemento natildeo pode ser submetido agrave razatildeo pois satildeo as proacuteprias atividades da faculdade vegetativa O
segundo elemento possui a capacidade de ser orientado pela razatildeo sendo este o elemento
desiderativo contido na faculdade sensitiva Por isso nota-se um detalhe importante em relaccedilatildeo ao
indiviacuteduo virtuoso ele escolhe submeter seus desejos e paixotildees agrave racionalidade e tambeacutem aprende
a desejar o que a racionalidade determina como correto
Conforme citamos no capiacutetulo anterior para uma melhor compreensatildeo das propriedades das
virtudes intelectuais e das virtudes morais eacute necessaacuterio recordar a obra De Anima na qual
Aristoacuteteles estabelece a divisatildeo da alma (ψυχή) humana em trecircs partes ou faculdades intituladas de
nutritiva (vegetativa) sensitiva (perceptiva) e racional (intelectiva) Estabelecida a divisatildeo da alma
em uma parte racional (faculdade intelectiva) e uma parte irracional (faculdades sensitiva e
nutritiva) deve-se observar que existe uma relaccedilatildeo entre estas duas partes Uma espeacutecie de
interaccedilatildeo entre a racionalidade e os apetites correspondentes agrave parte irracional Estas duas
dimensotildees da psicheacute natildeo satildeo naturalmente harmocircnicas entre si A faculdade sensitiva comporta os
desejos (o1recij) do ser humano Neste ponto eacute importante notar que Aristoacuteteles divide os desejos
em trecircs espeacutecies apetite () impulso () e vontade ()108
Por conter o elemento desiderativo a faculdade sensitiva eacute em parte responsaacutevel pelas
accedilotildees humanas Em parte porque a proacutepria faculdade sensitiva carece de racionalidade mas de
107 Cf EacuteN I 1102a 5-7 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23108 Cf De anima 414a 30 - 414b 3 Aristoacuteteles De anima Op cit p46-47 Segue-se o texto ldquoDas faculdades da almaque referimos a uns seres como dissemos pertencem todas umas delas a outros e a alguns seres pertence apenas umasoacute faculdade Chamamos entatildeo faculdades agraves partes nutritiva perceptiva desiderativa de deslocaccedilatildeo e discursiva Oraagraves plantas pertence apenas a faculdade nutritiva ao passo que aos outros seres pertencem esta faculdade e tambeacutem aperceptiva E se esses dispotildeem da faculdade perceptiva possuem igualmente a desiderativa pois o desejo eacute de fatoapetite impulso e vontade Todos os animais entatildeo possuem um dos sentidos o tato e ao ser a que a sensibilidadepertencem igualmente o prazer e a dor (isto eacute o apraziacutevel e o doloroso) Mais agravequeles a que estes pertencem pertence(sic) tambeacutem o apetite isto eacute o proacuteprio desejo do apraziacutevel []rdquo
39
uma certa forma o elemento desiderativo participa da faculdade racional Pois tanto o indiviacuteduo
considerado continente (e0gkrath~~j109 quanto o indiviacuteduo incontinente (a0krathj)110 possuem a
faculdade racional Mas haacute uma diferenccedila entre estes dois tipos de indiviacuteduos O indiviacuteduo
continente age conforme agrave razatildeo ele submete seus desejos e paixotildees agrave racionalidade O indiviacuteduo
incontinente foge dos ditames da razatildeo seus desejos e paixotildees prevalecem sobre o ordenamento
racional Aristoacuteteles afirma que o indiviacuteduo continente obedece agrave parte racional e no indiviacuteduo
temperante e no corajoso esta obediecircncia eacute ainda maior111 Este fato implica a utilizaccedilatildeo da razatildeo e
um autodomiacutenio perseverante que resultam em uma disposiccedilatildeo firme e habitual do indiviacuteduo para
que o elemento desiderativo contido na parte irracional possa estar submetido agrave parte racional
As virtudes satildeo divididas em duas espeacutecies correspondentes agrave divisatildeo da alma em parte
racional e irracional As virtudes intelectuais satildeo relacionadas agrave racionalidade e as virtudes morais
ao elemento desiderativo contido na parte irracional Ross classifica este elemento desiderativo
como sendo um elemento intermeacutedio pois embora pertenccedila agrave parte irracional possui uma ligaccedilatildeo
com a razatildeo Eacute esta parte do desejo que obedece aos princiacutepios e regras de vida que o indiviacuteduo
continente traccedilou para si mesmo Enquanto o indiviacuteduo incontinente natildeo consegue submeter o
desejo ao controle da faculdade racional112 Uma vez que esta parte desiderativa obedeccedila agrave
racionalidade pode-se entender o uso da razatildeo em dois momentos distintos que conferem dois
tipos de sentido O primeiro sentido eacute relacionado aos desejos e paixotildees nos quais estes se
submetem agrave racionalidade Neste caso eacute a razatildeo praacutetica que opera por meio da prudecircncia e das
virtudes morais O outro sentido eacute o uso da razatildeo para conhecer e verificar pressupostos teoacutericos
que natildeo dizem respeito agrave accedilatildeo humana como por exemplo um teorema matemaacutetico As virtudes
intelectuais referem-se a este campo de aplicaccedilatildeo da racionalidade113 No livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco114 satildeo listadas cinco virtudes intelectuais que satildeo a arte (τέχνη) o conhecimento
cientiacutefico (ἐπιστήμη) a sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) a razatildeo intuitiva
(νοῦς)115 No livro I haacute exemplos de virtudes morais116 a liberalidade (e0leuqeriothj) e a
temperanccedila (σωφροσύνη) Em relaccedilatildeo agrave sabedoria filosoacutefica (σοφία) sendo esta uma virtude
dianoeacutetica trata-se de uma sabedoria contemplativa dedicada agravequilo que eacute imutaacutevel A sophia
109 O indiviacuteduo continente domina seus desejos e os submete agrave razatildeo110 O indiviacuteduo incontinente natildeo domina seus desejos por isso natildeo consegue submetecirc-los agrave razatildeo 111 Cf EacuteN 1102b 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24112 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198113 SPINELLI Priscilla Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaacutequea Opcit p 42114 Cf EacuteN 1139b 15-18 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101115 Noucircs eacute traduzido de vaacuterias maneiras nas traduccedilotildees portuguesas da Eacutetica a Nicocircmaco entendimento (E Bini 2013p 194) perspicaacutecia (M Zingano 2008 p 40) razatildeo intuitiva (P T Spinelli 2007 p137 e L Vallandro e GBornheim 1987 p 110) ldquointuicioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) e ldquointelligencerdquo (H Rackham 1996 p 156) 116 Em EacuteN I 1103a 5-10 satildeo citadas somente estas duas virtudes morais como forma de exemplo mas Aristoacutetelesdescreve outras virtudes no decorrer de sua obra
40
possui uma natureza calcada na epiacutesteme e no nous pois visa aquilo que natildeo sofre alteraccedilotildees em
nenhuma circunstacircncia Por seu lado a phronecircsis se caracteriza por visar a praacutexis ao lidar com as
diversas situaccedilotildees que mudam constantemente
As virtudes intelectuais podem ser adquiridas e apuradas pela instruccedilatildeo enquanto as
virtudes morais satildeo robustecidas por meio do haacutebito117 Visto que nascemos dotados com elas em
potecircncia para que alcancem sua plenitude torna-se imperioso a sua solidificaccedilatildeo por meio de um
permanente esforccedilo do homem Se as virtudes morais e intelectuais jaacute estivessem plenamente
desenvolvidas no nosso caraacuteter natildeo seria necessaacuterio aprimoraacute-las pela repeticcedilatildeo das mesmas Neste
sentido eacute necessaacuterio desenvolver as virtudes uma vez que natildeo satildeo desenvolvidas na natureza
humana como satildeo por exemplo as faculdades da visatildeo ou da audiccedilatildeo que se encontram tanto em
um estado de potecircncia quanto em estado de ato118
Pode-se afirmar que uma parcela da conquista da eudaimonia consiste em harmonizar
corretamente a razatildeo e o desejo para que sejam conduzidos ao mesmo objetivo A adequada
harmonia consiste na proeminecircncia da racionalidade sobre os desejos e paixotildees A virtude moral
consiste nesta condiccedilatildeo estaacutevel do indiviacuteduo resultante de uma escolha que se transforma em um
haacutebito por ser repetida inuacutemeras vezes ao longo do tempo fazendo com que exerccedila bem sua funccedilatildeo
Mas para ser operacionalizada eacute fundamental a atuaccedilatildeo da razatildeo para escolher um fim razoaacutevel ao
qual o indiviacuteduo possa seguir por meio de sua vontade
Na formaccedilatildeo moral do homem para que este adquira uma nobreza de conduta e alcance uma
vida feliz vimos a importacircncia das virtudes morais para controlar os desejos provenientes da
faculdade sensitiva A felicidade eacute obtida pela primazia do intelecto sobre os desejos Neste
contexto de construccedilatildeo da eudaimonia haacute um componente a ser considerado que eacute o prazer ou a
dor proveniente das accedilotildees humanas Este eacute o assunto a ser abordado no proacuteximo toacutepico
22 A educaccedilatildeo dos prazeres e a eudaimonia
Uma percepccedilatildeo aristoteacutelica bastante interessante eacute assinalar a importacircncia de um treino
constante como sendo essencial para o robustecimento das virtudes morais pelo indiviacuteduo frente aos
acontecimentos Afinal ningueacutem eacute capaz de arrogar para si proacuteprio ou mesmo ser verdadeiramente
elogiado como sendo algueacutem virtuoso se natildeo se habituou a praticar as virtudes ao longo do tempo e
enfrentar as circunstacircncias concretas da vida Em outras palavras pode-se dizer que uma virtude eacute
conquistada quando for provada em vaacuterios casos e durante um periacuteodo de tempo prolongado Por
117 CF EacuteN II 1103a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 27118 CF EacuteN II 1103a 30 Ibidem p 27
41
isso eacute imprescindiacutevel desde a mais tenra idade estabelecer uma paideacuteia (παιδεία)119voltada para a
praacutetica das virtudes conforme mostra Aristoacuteteles ao seguir a mesma linha de raciociacutenio de Platatildeo
sobre a importacircncia de uma boa educaccedilatildeo Esta boa educaccedilatildeo consiste em aprender a apreciar
aquilo que eacute desejaacutevel e rejeitar aquilo que eacute indesejaacutevel120
No que tange agrave educaccedilatildeo para orientar a pessoa a gostar daquilo que eacute desejaacutevel um dos
pontos fundamentais da filosofia moral aristoteacutelica eacute a questatildeo do prazer O fenocircmeno do prazer eacute
um tema corrente na tradiccedilatildeo filosoacutefica grega antiga sendo ele considerado uma das fontes acerca
da moralidade e conduccedilatildeo agrave uma vida feliz O pensamento eacutetico aristoteacutelico segue esta tradiccedilatildeo e
insere uma teoria do prazer uma vez que este eacute um dos elementos essenciais para a realizaccedilatildeo
humana O prazer eacute algo completamente inserido na vida humana a ponto de natildeo se concebecirc-la sem
a perspectiva do acompanhamento ou a ausecircncia dele Conforme assevera Aristoacuteteles ldquoAcresce que
o agradaacutevel e o doloroso cresceram conosco desde a nossa infacircncia e por isso eacute difiacutecil conter essas
paixotildees enraizadas como estatildeo em nossa vida E alguns mais e outros menos medimos nossas
proacuteprias accedilotildees pelo estalatildeo do prazer e da dorrdquo121 O filoacutesofo de Estagira cita que Eudoxo122
identificava o bem com o prazer pois observava que todos os seres racionais e irracionais tendiam
para esse sentimento123 Platatildeo tambeacutem se posiciona acerca do fenocircmeno do prazer no seu diaacutelogo
Filebo no qual o mestre de Aristoacuteteles argumenta que tanto o homem intemperante quanto o
temperante provam do prazer o intemperante com prazeres depravados o temperante com prazeres
mais elevados e o saacutebio tem prazer na sua praacutetica da sabedoria124 Posto que o fenocircmeno do prazer e
da dor satildeo intriacutensecos agrave natureza humana naturalmente tambeacutem satildeo inerentes agrave conduta humana e
este fato os torna fatores educativos para o ser humano A eudaimonia tambeacutem se traduz em uma
adequada escolha dos prazeres uma vez que o ser humano natildeo eacute somente razatildeo mas tambeacutem eacute
dotado de sentidos Por conseguinte uma orientaccedilatildeo adequada do ser humano consiste em levaacute-lo
ao deleite prazeroso das coisas nobres sendo fundamental um estiacutemulo para a praacutetica das virtudes
intelectuais e morais
As virtudes morais possuem como uma de suas caracteriacutesticas serem ligadas aos prazeres
ou agraves dores resultantes de nossos atos Assim prazer e dor tornam-se indicativos do caraacuteter virtuoso
ou natildeo virtuoso de uma pessoa Caso realize uma accedilatildeo virtuosa e esta traga sofrimento ao agente
este natildeo poderaacute ser tido como virtuoso Para ilustrar esta ideia tem-se o exemplo de um homem que
119 O termo paideacuteia eacute traduzido como educaccedilatildeo ensinamento instruccedilatildeo treinamento120 Cf EacuteN II 1104b 10-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29121 EacuteN II 1105a 1-5 Ibidem p 30122 Foi um disciacutepulo de Platatildeo123 Cf EacuteN X 1172a 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 174124 Cf Filebo 11d-12d PLATOacuteN Diaacutelogos VI Filebo Timeo Critias Traducciones Introducciones y Notas porMaria Angeles Duraacuten y Francisco List Madrid Gredos 1992 p 22-24
42
pratica a abstinecircncia dos prazeres do corpo para fins de adquirir a virtude da temperanccedila A pessoa eacute
tida como temperante se o esforccedilo da abstinecircncia lhe eacute prazeroso caso natildeo seja e ocasionar um
sofrimento este seraacute um homem destemperante ou seja que natildeo possui moderaccedilatildeo nas suas
accedilotildees125 A virtude moral refere-se em como saber lidar com os prazeres e dores para uma
apropriada formaccedilatildeo do caraacuteter pois o prazer pode induzir o indiviacuteduo a realizar accedilotildees vis e a dor
dificulta a realizar accedilotildees nobres126 O prazer eacute um fator indutor das accedilotildees humanas seja para o bem
ou para o mal porque o prazer eacute vinculado agrave natureza humana sendo objeto dos nossos desejos
Afinal espera-se alcanccedilar o prazer nas atividades que exercemos e natildeo que estas resultem em
tristezas ou dores as quais o ser humano tende a evitaacute-los Aristoacuteteles eacute enfaacutetico ao afirmar que na
educaccedilatildeo dos jovens o prazer e a dor encontram-se presentes sendo ldquoguiasrdquo dos caminhos a serem
seguidos Eacute de extrema importacircncia escolher bem e comprazer-se com as coisas certas aquelas que
se deve apreciar e se afastar das coisas inapropriadas que devem ser evitadas natildeo se permitindo o
deleite com aquilo que eacute peacuterfido Por isso esta escolha tem uma grande influecircncia na formaccedilatildeo de
uma pessoa virtuosa127
O homem eacute um ser racional Agrave luz deste fato nota-se como o desejo pode e deve ser
moldado agrave luz da razatildeo O desejo impele o indiviacuteduo a buscar aquilo que eacute mais prazeroso No dizer
de Otfried Houmlffe o prazer eacute um elemento integrante da felicidade mas uma vida de puro prazer natildeo
oferece um fundamento seguro para encontrar a eudaimonia128 Para Aristoacuteteles os prazeres do
intelecto superam os prazeres dos sentidos129 Por isso a parte racional deve orientar o desejo para
que tenha prazer no empenho necessaacuterio para adquirir e manter a virtude e obter a satisfaccedilatildeo com o
exerciacutecio das atividades do intelecto130
Essa eacute uma opccedilatildeo de fundamental importacircncia a ser feita e a qual ningueacutem pode ser furtar
consciente ou natildeo da existecircncia dessa escolha Uma vez que os desejos satildeo intriacutensecos agrave natureza
humana sendo uma parcela deles pertencentes a sua parte irracional eacute imperioso escolher quais
espeacutecies de prazeres seratildeo objeto de agrado os prazeres mais sublimes que resIbidem na vivecircncia
das virtudes morais e no intelecto aprimorado pelas virtudes intelectuais ou os prazeres mais
rasteiros que satisfazem apenas os apetites da alma humana
125 Neste ponto surge uma questatildeo interessante o virtuoso temperante pode frear sentimentos prazerosos parapermanecer no meio-termo No nosso entender a resposta eacute positiva O homem temperante para alcanccedilar o meio-termoe executar uma accedilatildeo virtuosa pode reprimir os sentimentos prazerosos principalmente se forem prazeres torpes Emesmo que sejam prazeres nobres o temperante pode escolher dominaacute-los caso natildeo o conduza a uma accedilatildeo virtuosa 126 Cf EacuteN II 1104b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29127 Cf EacuteN X 1172a 20-25 Ibidem p 179128 Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Op cit p 193129 EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186130 Cf EacuteN X 1177a 1- 27 e 1178a 1-8
43
Aristoacuteteles utiliza pessoas concretas para exemplificar e identificar quais prazeres satildeo os
melhores e por conseguinte mais aspiraacuteveis a todos os homens131 O paracircmetro dos prazeres eacute
fornecido pela proacutepria accedilatildeo das pessoas virtuosas e natildeo por aquelas que possuem uma deformaccedilatildeo
em seu caraacuteter moral As pessoas virtuosas satildeo a proacutepria concretizaccedilatildeo do que se constitui o criteacuterio
dos prazeres considerados bons e dignos Elas satildeo consideradas modelos por se deliciarem com
prazeres que satildeo frutos da parte racional do ser humano e tambeacutem por terem os desejos
controlados pelas virtudes morais Por isso estes indiviacuteduos elevam a patamares superiores a
conduta humana Portanto os prazeres que as pessoas virtuosas buscam e desfrutam isso eacute o que
devem ser procurados porque satildeo estes prazeres que tanto estimulam a praacutetica das virtudes quanto
resultam destas mesmas virtudes praticadas no dia-a-dia
As pessoas viciosas corrompidas moralmente natildeo podem ser tomadas como modelo de
uma vida feliz devido ao fato de optarem por buscar os prazeres torpes que satisfazem apenas os
sentidos proacuteprios da parte irracional esquecendo-se da satisfaccedilatildeo do intelecto da parte racional
Com isso afastam-se da racionalidade que eacute a parte mais ilustre e mais humana e aproximam-se de
um modo de vida mais animalesco pois como diz Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquo[] tais prazeres satildeo
muitos desejados pelas bestas mas natildeo o devem ser pelos homensrdquo132 A torpeza na conduta
fatalmente afasta o homem de uma vida virtuosa que eacute proacutepria da eudaimonia Logo na sordidez
encontra-se a infelicidade embora muitas vezes tenha a aparecircncia de uma vida feliz
O homem bom eacute o proacuteprio homem virtuoso Ele eacute o padratildeo de referecircncia acerca dos
prazeres que podem ser apreciados O que se afigura como prazeroso ao homem virtuoso pode ser
deduzido como um prazer correto e agradaacutevel sendo liacutecito o estiacutemulo para ser usufruiacutedo por outras
pessoas Um homem virtuoso natildeo se deliciaraacute com coisas ou accedilatildeo desonrosas Somente homens
pervertidos moralmente podem se comprazer com aquilo que eacute vergonhoso natildeo existindo
possibilidade de serem erigidos ao patamar de modelos de prazeres a serem vividos Aristoacuteteles eacute
enfaacutetico ao afirmar que os prazeres reconhecidamente ignoacutebeis natildeo devem ser apreciados como
prazeres sob nenhuma condiccedilatildeo pois satildeo indignos de homens com nobreza moral sendo apenas
131Cf EacuteN VI 1140b 10 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Aristoacuteteles tambeacutem aponta para os homensconsiderados prudentes para exemplificar a virtude da phronecircsis em atuaccedilatildeo e tentar demonstrar os criteacuterios utilizadospara uma accedilatildeo virtuosa O Estagirita cita o estadista Peacutericles e ldquohomens como elerdquo como exemplo de indiviacuteduos quepossuiacuteam a virtude da prudecircncia porque percebiam o que era bom para si mesmos e para os homens em geral Por issoeram considerados bons administradores de casas e de Estados No caso dos prazeres Aristoacuteteles tambeacutem aponta que oshomens virtuosos satildeo o modelo de quais espeacutecies de prazeres podem ser usufruiacutedos Satildeo os prazeres provenientes dasaccedilotildees virtuosas 132 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles TradTiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 p 38 A citaccedilatildeo em latim vem das Sententia Libri Ethicorumliber 10 lectio 4 n 3 ldquo[] Et similiter delectationes bestiales bestiis quIbidem sunt appetibiles non autemhominibusrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017 O Aquinate sintetiza a visatildeoaristoteacutelica referente a EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-15
44
apreciados por homens degenerados em seu caraacuteter Mas mesmo dentro da categoria dos prazeres
dignos e honrosos a questatildeo que surge eacute a acerca de quais destes prazeres satildeo mais adequados ao
ser humano Novamente eacute o homem dotado de virtudes que se torna o proacuteprio criteacuterio De acordo
com o Estagirita
Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado comosendo realmente talSe isto eacute correto como se afiacutegura ser e a virtude e o homembom como tais satildeo a medida de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os quelhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitarSe as coisas que ele acha enfadonhas parecem agradaacuteveis a outros natildeo haacute nada desurpreendente nisso pois os homens podem ser pervertidos e estragados de muitosmodos e tais coisas natildeo satildeo realmente agradaacuteveis mas soacute o satildeo para essaspessoas e outras nas mesmas condiccedilotildees Das que reconhecidamente satildeovergonhosas evidentemente natildeo se deveria dizer que satildeo prazeressalvo para umgosto pervertido133
O prazer (h9donh) natildeo eacute um bem em si mesmo natildeo eacute autossuficiente posto que esteja
sempre atrelado em alguma coisa boa ou maacute Por isso natildeo eacute o bem supremo pois variam conforme
as diversas espeacutecies de prazer aleacutem de serem alguns resultantes de boas obras e outras de obras
torpes Assim o prazer natildeo pode ser considerado universalmente bom nem como o uacutenico criteacuterio
de bem Como siacutentese desta premissa Satildeo Tomaacutes de Aquino aponta trecircs aspectos acerca dos
prazeres pelos quais Aristoacuteteles natildeo considera o prazer universalmente bom134 Primeiro o prazer
possui muitas espeacutecies e muitas vezes pode ser maleacutefico Este fato pode ser ilustrado citando a
diferenccedila entre um amigo e um adulador Com o amigo com o qual existe uma verdadeira amizade
o conviacutevio eacute pautado pelo bem que traz Em relaccedilatildeo ao adulador o conviacutevio tem por fundamento
somente o prazer Prontamente o amigo eacute louvado pelo bem que traz agrave amizade enquanto o
adulador eacute repreendido Segundo uma crianccedila concede uma maacutexima relevacircncia aos prazeres da
infacircncia e ningueacutem deseja continuar vivendo nesta etapa da vida mesmo que o crescimento e
amadurecimento signifiquem assumir as tristezas inerentes agrave vida adulta Terceiro existem
atividades que satildeo desejadas mas natildeo trazem nenhum tipo de prazer tais como o ato de recordar
adquirir conhecimento e possuir virtudes Estas atividades se concretizam sem necessariamente
terem um prazer como consequecircncia Neste sentido sendo as virtudes e o conhecimento
relacionados agrave eudaimonia Aristoacuteteles recomenda que mesmo que hipoteticamente natildeo houvesse
133 Cf EacuteN X 1176a 15-23 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186134 Cf Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 39 e Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 4 n 4 a8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017
45
nenhum prazer na praacutetica destas atividades elas deveriam continuar a serem escolhidas pelo bem
que carregam consigo135
Em siacutentese o prazer eacute como um ldquomotorrdquo que impele o indiviacuteduo a buscar o objeto
apropriado do desejo seja este um bom ou mau desejo Estes desejos geram prazeres considerados
nobres ou torpes O homem virtuoso para alcanccedilar a eudaimonia procura os prazeres originados
pelas accedilotildees virtuosas porque geram prazeres dignos
Aleacutem de ser uma fonte indutora das atividades humanas o prazer tambeacutem possui o papel de
aperfeiccediloar estas mesmas atividades Eacute esta funccedilatildeo de aperfeiccediloamento que seraacute estudada no
proacuteximo toacutepico
23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
Uma outra funccedilatildeo distintiva do prazer eacute o aperfeiccediloamento da atividade Esta relaccedilatildeo de
prazer e perfeiccedilatildeo se refere agrave dois pontos importantes que satildeo o aprimoramento da atividade e o
resultado da perfeiccedilatildeo atingida na accedilatildeo
Na concepccedilatildeo aristoteacutelica todas as pessoas buscam o prazer porque aspiram agrave vida136 Uma
vez que a vida eacute uma atividade cada indiviacuteduo exerce sua atividade sobre os objetos e com as
faculdades que mais lhe apraz o prazer inerente a essas accedilotildees estimula repetir continuamente esta
mesma accedilatildeo Por exemplo um muacutesico sente prazer na audiccedilatildeo e no estudo das melodias ou um
intelectual se deleita com o uso da razatildeo nas questotildees filosoacuteficas Por isso o prazer eacute um
complemento de uma atividade bem exercida137 Deste modo haacute um aprimoramento das accedilotildees
realizadas o que leva um aperfeiccediloamento da proacutepria vida pois esta conteacutem todas as atividades
Conforme descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
Dir-ser-ia que todos os homens desejam o prazer porque todos aspiram agrave vida Avida eacute uma atividade e cada um eacute ativo em relaccedilatildeo agraves coisas e com as faculdadesque mais ama por exemplo o muacutesico eacute ativo com o ouvido em referecircncia agravesmelodias o estudioso como o intelecto em referecircncia a questotildees teoacutericas e da
135 Usando o proacuteprio exemplo de Aristoacuteteles na EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-10 Devemos notar que determinadasatividades como a visatildeo a memoacuteria o conhecimento a posse das virtudes etc podem gerar prazer ou natildeo Mas devemser buscadas mesmo que gerem dor Na referida passagem da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apenas afirma que devemser escolhidas independentemente de serem prazerosas ou natildeo Em nosso entender estas atividades podem emalgumas ocasiotildees natildeo serem prazerosas Mas natildeo significam necessariamente que gerem dor por isso deve-se optarpor elas tal como preconizado pelo Estagirita 136 A vida de um ser humano conteacutem prazeres e dores Todos os indiviacuteduos procuram ter uma vida prazerosa o quesignifica maximizar as atividades que trazem prazer e diminuir aquelas que provocam dor Logo dizer que um homembusca agrave vida significa que ele procura exercer as atividades que trazem alegria para si para que sua vida seja feliz137 Uma questatildeo que pode advir eacute se necessariamente uma atividade bem feita gera prazer Na nossa visatildeo entendemosque sim Porque o prazer eacute intriacutenseco agrave atividade ou seja acompanha cada accedilatildeo realizada de modo correto Oindiviacuteduo tem satisfaccedilatildeo ao final da accedilatildeo corretamente realizada
46
mesma forma nos outros casos Ora o prazer completa as atividades e portanto avida que eles desejam Eacute muito justo pois que aspirem tambeacutem ao prazer vistoque para cada um este completa a vida que lhe eacute desejaacutevel Mas quanto a saber seescolhemos a vida com vistas no prazer ou o prazer com vistas na vida eacute umaquestatildeo que podemos deixar de parte por ora Com efeito os dois parecem estarintimamente ligados entre si e natildeo admitir separaccedilatildeo jaacute que sem atividade natildeosurge o prazer e cada atividade eacute completada pelo prazer que a acompanha 138
Para Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquoPortanto o prazer eacute a perfeiccedilatildeo da operaccedilatildeordquo139 Ou seja a
proacutepria atividade eacute completada pelo prazer O prazer em si depende da operacionalizaccedilatildeo da
atividade140 seja esta uma atividade atinente aos sentidos ou ao intelecto Mas pode-se dizer que
existe uma escala de prazeres pois os prazeres satildeo de diversos tipos e vinculados a diversas
atividades que tambeacutem podem ser subdividas em uma escala Logo uma atividade bem-feita eacute
prazerosa e uma atividade perfeita eacute prazerosiacutessima
Tatildeo diversas quanto agraves atividades tambeacutem satildeo os prazeres Existem prazeres vinculados
aos sentidos e outros vinculados ao intelecto sendo estes uacuteltimos considerados mais sublimes e
puros141 Ao existir uma variedade de atividades com diferentes prazeres haacute uma consequente
valoraccedilatildeo moral diversificada para cada prazer O criteacuterio adotado por Aristoacuteteles para a aplicaccedilatildeo
de um juiacutezo moral correto que possa identificar um prazer considerado moralmente bom ou mau eacute
o proacuteprio exemplo do homem bom142
No que tange agrave observaccedilatildeo aristoteacutelica acerca da ligaccedilatildeo entre as atividades realizadas e
os prazeres resultantes que trazem um aperfeiccediloamento da mesma accedilatildeo o adaacutegio popular que
afirma que ldquoa praacutetica leva agrave perfeiccedilatildeordquo resume bem neste quesito a posiccedilatildeo aristoteacutelica A
constacircncia nas virtudes morais conduz agrave excelecircncia do caraacuteter assim como a perseveranccedila nas
virtudes intelectuais acarretam uma maestria com o conhecimento tanto pelo aumento de
conhecimento quanto pelo manejo deste Isso traz ao homem virtuoso a alegria o prazer em duas
formas o primeiro de percorrer o caminho da virtude o segundo de alcanccedilar cada vez mais uma
nobreza de conduta que o faz ser um indiviacuteduo feliz
138 Cf EacuteN X 1175a 10-20 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184139 Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 51 Eacute interessante conferir esta liccedilatildeo na iacutentegra por issocoloco a citaccedilatildeo inteira em latim das Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 6 n 5 ldquoEt inter huiusmodi operationessensus et intellectus illa est delectabilissima quae est perfectissima Perfectissima autem operatio est quae est sensusvel intellectus bene dispositi in comparatione ad optimum eorum quae subiacent sensui vel intellectui Si igitur operatioperfecta est delectabilis perfectissima autem delectabilissima consequens est quod operatio inquantum est perfecta sitdelectabilis Delectatio ergo est operationis perfectiordquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017140 Embora existam prazeres sem atos como algumas deleitaccedilotildees141 Cf EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186142 Cf EacuteN X 1176b 25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 187
47
24 O homem virtuoso
O indiviacuteduo que alcanccedilou a excelecircncia moral eacute denominado na visatildeo grega antiga de
spoudaios (σπουδαῖος) Conforme Aristoacuteteles assinala as virtudes morais estatildeo estritamente ligadas
agrave prudecircncia porque os princiacutepios que balizam a accedilatildeo humana satildeo fornecidos pela virtude intelectual
da prudecircncia A prudecircncia confere o paracircmetro correto para as virtudes morais143 O homem
prudente (φρόνιμος) aponta a melhor escolha a ser seguida O spoudaios eacute o indiviacuteduo que possui as
melhores condiccedilotildees para emitir um julgamento prudente acerca de quais prazeres satildeo liacutecitos em
serem gozados ou a correta medida das virtudes em cada caso especiacutefico O spoudaios torna-se o
proacuteprio criteacuterio de um bom julgamento dos princiacutepios morais prazeres e desejos perante as
circunstacircncias Na compreensatildeo de Pierre Aubenque para Platatildeo o homem saacutebio fixa seu
paracircmetro na Ideia de Bem ou seja em uma ordem ou norma transcendente a ele proacuteprio
Aristoacuteteles ao desconsiderar a existecircncia de um Mundo das Formas ideais transfere o paracircmetro de
sabedoria e retidatildeo a serem observadas para o proacuteprio phronimos Para sermos homens de retidatildeo
moral natildeo devemos ter como paracircmetro a Ideia de Bem e sim termos como paracircmetro o proacuteprio
homem de bem No entender de Pierre Aubenque inicialmente a palavra σπουδαῖος significava um
indiviacuteduo que tinha ldquozelordquo em suas faccedilanhas possuiacutea um ardor no combate sendo esta noccedilatildeo
aplicada ao ideal arcaico do heroacutei grego Depois passou a significar somente uma atividade
realizada de modo crediacutevel O spoudaios por ser zeloso na sua conduta inspira confianccedila visto que
eacute digno e honrado em suas accedilotildees Aristoacuteteles teria recuperado este antigo ideal heroacuteico mas
transmutado no homem que possui uma qualidade em seu julgamento por ser valoroso
moralmente144 Nota-se como o homem prudente o phronimos que possui uma excelecircncia na
virtude intelectual da prudecircncia se coaduna com o homem possuidor de excelecircncia moral o
spoudaios145
A vida virtuosa eacute uma vida prazerosa O spoudaios eacute o modelo do que deve ser feito e isso
inclui os prazeres considerados nobres e provenientes da virtude porque sabe discerni-los e pesaacute-los
bem146 O bem verdadeiro e por consequecircncia o prazer verdadeiramente bom eacute posto em relaccedilatildeo a
este indiviacuteduo considerado valoroso O spoudaios ilumina as situaccedilotildees e distingue aquilo que eacute
143 Cf EacuteN X 1178a 15-18 Ibidem p 190144 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 77-78145 Pierre Aubenque aponta a traduccedilatildeo de outros comentadores de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo ao termo σπουδαῖος ParaTricot eacute oldquohomem virtuosordquo para Voilquin eacute o ldquohomem de bemrdquo para Gauthier eacute o ldquovirtuosordquo para Ross eacute o ldquo thegood manrdquo Aubenque prefere chamar de ldquovalorosordquo Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p78 Independente da melhor forma de traduzir o termo σπουδαῖος o nuacutecleo central do conceito identifica-se com umaexcelecircncia de virtudes morais nobreza de conduta retidatildeo moral etc sendo contraacuterio agrave devassidatildeo ou condutapermeada de viacutecios 146 Cf EacuteN I 1099a 22-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 18
48
apenas aparecircncia ou nefasto daquilo eacute que autecircntico e benfazejo em cada categoria de coisas Um
indiviacuteduo pode considerar boa alguma coisa a ser feita ou buscada sem que aquilo seja
verdadeiramente bom devido a uma falsa percepccedilatildeo do que realmente eacute o bem em cada coisa Isto
tambeacutem ocorre com os prazeres inerentes agraves coisas que fazemos ou desejamos A princiacutepio podem
parecer prazeres edificantes mas tirados seus veacuteus conduzem apenas agrave ruiacutena Por isso eacute
imprescindiacutevel saber escolher corretamente os prazeres considerados bons e se habituar a desejaacute-
los Esta perspectiva do indiviacuteduo valoroso moralmente como regra e medida eacute subentendida desde
o Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco e se torna mais clara ao longo desta mesma obra Aristoacuteteles
assevera claramente este papel de criteacuterio ao spoudaios ao afirmar que
Com efeito o homem bom (σπουδαῖος) aquilata toda a classe de coisas comacerto e em cada uma delas a verdade lhe aparece com clareza mas cadadisposiccedilatildeo de caraacuteter tem suas ideacuteias proacuteprias sobre o nobre e o agradaacutevel e amaior diferenccedila entre o bom e os outros consiste talvez em perceber a verdade emcada classe de coisas como quem eacute delas a norma e a medida Na maioria doscasos o engano deve-se ao prazer que parece bom se realmente secirc-lo e por issoescolhemos o agradaacutevel como um bem e evitamos a dor como um malrdquo147
Podemos afirmar que na linha de raciociacutenio aristoteacutelica eacute necessaacuterio ser bom para decidir
bem O ato de discernir sopesar as coisas com acerto eacute uma accedilatildeo caracteriacutestica de um julgamento
correto acerca das coisas A retidatildeo de julgamento eacute uma qualidade distintiva do phronimos Por
isso Aristoacuteteles atribui ao homem prudente o exerciacutecio de estabelecer o criteacuterio para o julgamento
de cada classe de coisas O spoudaios eacute um homem nobre de conduta por ser virtuoso moralmente
mas ser um indiviacuteduo valoroso natildeo significa automaticamente ser um indiviacuteduo com um bom
discernimento acerca das circunstacircncias e da melhor accedilatildeo a ser operacionalizada Ser um homem de
virtudes morais eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para ser um homem com a virtude intelectual da prudecircncia 148
Por exemplo um indiviacuteduo incontinente que busque somente prazeres corporais natildeo consegue
julgar corretamente Todo phronimos eacute um indiviacuteduo valoroso moralmente natildeo sendo possiacutevel
algueacutem ser prudente se natildeo tiver se habituado a praacutetica das virtudes morais Uma vez que
Aristoacuteteles adere a posiccedilatildeo de imanecircncia dos criteacuterios de julgamento das coisas ao rejeitar a
transcendecircncia do Mundo das Formas traccedilada na filosofia platocircnica a reta razatildeo passar a ser
fundamentada no proacuteprio phronimos O homem prudente personifica a recta ratio porque ele se
torna aquele que possui a habilidade de julgar
O phronimos julga bem porque conhece aquilo que julga Conforme Aristoacuteteles assevera na
Eacutetica a Nicocircmaco que apenas julga bem quem foi instruiacutedo naquele assunto e julga bem as coisas
147 EacuteN III 1113a 30-39 Ibidem p 47148 Cf EacuteN VI 1143b 15- 23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 112
49
em geral por possuir uma instruccedilatildeo geral acerca de diversas coisas149 Tambeacutem natildeo basta somente
ser instruiacutedo sobre qualquer assunto na sua dimensatildeo teoacuterica mas eacute necessaacuterio ter ldquoexperiecircncia de
vidardquo para saber julgar corretamente as coisas e suas circunstacircncias Esta junccedilatildeo entre o
conhecimento teoacuterico dos princiacutepios e como aplicaacute-los nas diversas situaccedilotildees proporciona que o
indiviacuteduo seja considerado prudente A necessidade da maturidade como um dos fatores
fundamentais para a prudecircncia eacute posta por Aristoacuteteles quando explica que jovens natildeo satildeo bons
ouvintes para as instruccedilotildees acerca da vida poliacutetica pois natildeo possuem vivecircncia suficiente dos fatos
da vida150 Normalmente eles satildeo dados a seguirem suas paixotildees o que gera uma imaturidade que
atrapalha a accedilatildeo correta Vale frisar que na perspectiva aristoteacutelica indiviacuteduos adultos que natildeo satildeo
considerados jovens tambeacutem podem ser imaturos porque a maturidade depende de uma escolha do
modo de vida151 Desta maneira a aquisiccedilatildeo da virtude da prudecircncia vem de uma escolha que
envolve uma conduta de vida pautada pela racionalidade pelas virtudes morais e pela educaccedilatildeo
para desejar os prazeres corretos
25 As virtudes morais como mediania
Eacute notaacutevel a didaacutetica que Aristoacuteteles usa para explicar alguns conceitos descritos na Eacutetica a
Nicocircmaco Eacute frequente a comparaccedilatildeo que estabelece com as artes para expressar sua filosofia
moral Por exemplo ao argumentar sobre o bem das coisas usa a arte da navegaccedilatildeo a medicina a
equitaccedilatildeo a arqueria dentre outras Ao falar das virtudes recorre agrave figura dos construtores e
muacutesicos Esse recurso comparativo tambeacutem eacute usado para explicar as virtudes morais e o conceito de
mesoacutetes (152 Ao descrever a ideia de mediania como fundamental para uma conduta
virtuosa o Estagirita mostra que um mestre de ofiacutecio para atingir a excelecircncia na feitura de um
objeto busca a mediania por meio da qual evita o exagero ou uma deficiecircncia Logo o meio-termo
preserva a obra e os extremos a destroem A analogia confere clareza ao argumento aristoteacutelico
Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo (e escolhendo-o ndash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamentea noacutes Se assim pois que cada arte realiza bem o seu trabalho ndash tendo diante dosolhos o meio-termo e julgando suas obras por esse padratildeo e por isso dizemosmuitas vezes que agraves boas obras de arte natildeo eacute possiacutevel tirar nem acrescentar nada
149 Cf EacuteN 1094b 27 Ibidem p 10150 Cf EacuteN 1095a 3-5 Ibidem p 10 A relaccedilatildeo entre prudecircncia e experiecircncia seraacute estudada com mais detalhes noCapiacutetulo III 151 Cf EacuteN 1095a 6-13 Ibidem p 10152 O termo mesoacutetes pode ser traduzido por mediania meio-termo termo meacutedio mediedade
50
subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelecircncia dessas obrasenquanto o meio-termo a preserva e para este como dissemos se voltam osartistas no seu trabalho - e se ademais disso a virtude eacute mais exata e melhor quequalquer arte como tambeacutem o eacute a natureza segue-se que a virtude deve ter oatributo de visar ao meio-termo Refiro-me agrave virtude moral pois eacute ela que dizrespeito agraves paixotildees e accedilotildees nas quais existe excesso carecircncia e meio-termo153
O artesatildeo visa a mediania para realizar uma obra-prima Nesta nada eacute ausente tampouco eacute
possiacutevel acrescentar algo A excelecircncia da obra consiste na medida correta De modo anaacutelogo a
virtude moral se encontra na mediania O indiviacuteduo com virtudes morais eacute aquele que sabe constatar
nas situaccedilotildees qual eacute a proporccedilatildeo certa de seus afetos e accedilotildees para construir a si proacuteprio como ldquoobrardquo
de sua vida e alcanccedilar a eudaimonia
A virtude moral eacute caracterizada pela ideia de medianiaAmesoacutetes eacute o meio-termo entre
dois extremos de conduta Eacute o que nos mostra o Estagirita ao afirmar que ldquoPelas mesmas razotildees o
excesso e a falta satildeo caracteriacutesticos do viacutecio e a mediania da virtude pois os homens satildeo bons de
um modo soacute e maus de muitos modosrdquo154 Estes extremos satildeo considerados como viacutecios por
Aristoacuteteles Uma conduta virtuosa consiste em agir entre estes dois extremos Quais satildeo estas duas
formas de accedilatildeo ou emoccedilotildees que devem ser evitadas Satildeo dois tipos de viacutecios que denotam um
excesso ou uma carecircncia no sentir e no agir Deste modo a virtude eacute a proporccedilatildeo correta que evita
que o indiviacuteduo incorra em condutas que satildeo viciosas
A mediania natildeo deve ser entendida como um caacutelculo matemaacutetico exato e rigoroso Na
aritmeacutetica entre os nuacutemeros zero e dez a metade deste conjunto de numeraccedilatildeo eacute cinco Este
resultado eacute sempre o mesmo natildeo existe uma dependecircncia das situaccedilotildees para que isto ocorra Mas
esta exatidatildeo numeacuterica natildeo se aplica agrave conduta humana visto que a mediania deve ser observada
em relaccedilatildeo a noacutes examinando as situaccedilotildees pertinentes nas quais estamos inseridos Um exemplo
que ilustra o meio-termo eacute a alimentaccedilatildeo necessaacuteria de um atleta em comparaccedilatildeo a uma pessoa
sedentaacuteria que permanece o dia inteiro em um escritoacuterio O atleta necessita de uma alimentaccedilatildeo
mais rica em nutrientes e em quantidade maior enquanto o indiviacuteduo sedentaacuterio natildeo precisa de uma
nutriccedilatildeo diferenciada Ambos devem ter a alimentaccedilatildeo adequada agraves suas necessidades para que
possam cumprir sua funccedilatildeo e se manterem saudaacuteveis O mesmo ocorre com o exerciacutecio fiacutesico Por
isso o meio-termo preserva a sauacutede do corpo pois esta pode ser destruiacuteda tanto pelo excesso de
exerciacutecios alimentaccedilatildeo e bebida quanto pela sua total ausecircncia
153 EacuteN II 1106b 5-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32154 Cf EacuteN II 1106b 34-35 Ibidem p 33 Aleacutem da traduccedilatildeo utilizada neste trecho ldquopois os homens satildeo bons de ummodo soacute e maus de muitos modosrdquo feita por L Vallandro e G Bornheim 1987 indicamos a traduccedilatildeo feita por EdsonBini (2013 p 77) referente ao mesmo trecho ldquoSimples eacute a bondade muacuteltipla a maldaderdquo E a traduccedilatildeo realizada porMarco Zingano (2008 p 51) ldquoBravos pois de um soacute modo mas maus de muitos modosrdquo
51
No campo das virtudes morais esta mesma ideia de evitar o excesso ou carecircncia eacute aplicada
O indiviacuteduo que foge diante de quaisquer perigos ou natildeo enfrenta os desafios transforma-se em um
covarde Mas ao enfrentar todas as situaccedilotildees sem nenhum temor torna-se um temeraacuterio A coragem
consiste em natildeo ser um covarde nem ser um afoito que natildeo calcula os riscos Da mesma forma o
homem que cede a todos os prazeres natildeo praticando a temperanccedila assume a postura de um
libertino Entretanto se escolhe natildeo usufruir de nenhum tipo de prazer se converte em uma pessoa
insensiacutevel A temperanccedila estaacute na moderaccedilatildeo dos prazeres Tal como a sauacutede eacute adquirida e se
manteacutem pelo haacutebito de uma boa alimentaccedilatildeo e exerciacutecios fiacutesicos as virtudes satildeo adquiridas por
meio de uma boa praacutetica habitual Tornamo-nos temperantes evitando os extremos o que nos
capacita a sermos moderados O mesmo ocorre com a coragem ao confrontar aquilo que nos causa
medo nos tornamos corajosos Portanto as virtudes satildeo preservadas pela mediania mas satildeo
extinguidas pelo exagero ou pela deficiecircncia que impedem a execuccedilatildeo de uma accedilatildeo virtuosa
Eacute importante ressaltar que a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que proporciona um
proceder correto da conduta do indiviacuteduo A virtude diz respeito agraves paixotildees e as accedilotildees Em relaccedilatildeo
aos afetos significa que as paixotildees possam ser experimentadas da forma correta155 As paixotildees satildeo
corretamente vivenciadas quando atendem os requisitos de serem experimentadas no momento
oportuno quando se referem agraves pessoas certas visa o propoacutesito certo pelo motivo certo e da
maneira correta156 Os mesmos requisitos descritos acerca das emoccedilotildees satildeo aplicados agraves accedilotildees do
indiviacuteduo Estas tambeacutem devem ser realizadas do modo certo para serem consideradas virtuosas157
Satildeo as virtudes morais que permitem que o indiviacuteduo possa adquirir a excelecircncia ao lidar com as
paixotildees e consequentemente com as accedilotildees Diante dessas condiccedilotildees relacionadas tanto agraves paixotildees
quanto agraves accedilotildees o Estagirita assevera que eacute um desafio ser um homem bom porque eacute faacutecil errar de
muitos modos enquanto a conduta certa possui somente um uacutenico modo de agir158
Todas as accedilotildees e paixotildees possuem um meio-termo Aristoacuteteles afirma que determinadas
condutas natildeo satildeo passiacuteveis de aplicaccedilatildeo do conceito de mesoacutetes devido ao fato que estas satildeo maacutes
por si proacuteprias Natildeo satildeo os excessos ou as carecircncias que transformam estas condutas em accedilotildees ou
paixotildees agrave serem evitadas mas as suas proacuteprias essecircncias satildeo maldosas O Estagirita elenca alguns
exemplos referentes aos afetos como a malevolecircncia o despudor a inveja quanto agraves accedilotildees cita o
adulteacuterio o furto e o homiciacutedio Outro argumento exposto por Aristoacuteteles para natildeo aplicar a ideia de
mediania nas condutas mencionadas eacute que seria uma insensatez pensar a existecircncia de um meio-
termo em algo que por si mesmo jaacute eacute um excesso ou uma carecircncia Natildeo pode haver a ldquodemasiardquo de
155 Cf EacuteN II 1106b 15-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32-33156 Cf EacuteN II 1106b 20-24 Ibidem p 33157 Cf EacuteN II 1106b 26-29 Ibidem p 33158 Cf EacuteN II 1106b 35 Ibidem p 33
52
um excesso ou a ldquocarecircnciardquo de uma insuficiecircncia cerca das maacutes condutas descritas outro
exemplo que demonstra a clareza da ideia consiste no fato de que natildeo eacute possiacutevel existir uma
mediania quando as proacuteprias essecircncias das accedilotildees ou paixotildees satildeo perversas A tiacutetulo de exemplo eacute
absurdo imaginar que um indiviacuteduo que comete adulteacuterio com a frequecircncia de ser ldquomeramenterdquo
uma vez por ano durante um evento determinado com uma pessoa considerada bondosa e com a
duraccedilatildeo do encontro por apenas alguns minutos pode estar justificada moralmente Natildeo eacute
moderaccedilatildeo deste tipo de conduta que a faz ser boa ela sempre seraacute perniciosa A mesma ilustraccedilatildeo
pode ser aplicada agraves demais accedilotildees maacutes Logo de qualquer forma que estas accedilotildees sejam cometidas
estatildeo sempre erradas conforme nos mostra Aristoacuteteles
Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes quejaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito () o despudor() a inveja (θόνος) e no campo das accedilotildees o adulteacuterio (μοιχεία) ofurto (κλοπή) o assassiacutenio () Todas essas coisas e outras semelhantesimplicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso oudeficiecircncia Todas essas coisas e outas semelhantes implicam nos proacuteprios nomesque satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais podehaver retidatildeo mas unicamente o erro E no que se refere a essas coisas tampoucoa bondade ou maldade dependem de cometer adulteacuterio com a mulher apropriadana ocasiatildeo e da maneira convenientes mas fazer simplesmente qualquer delas eacute ummalIgualmente absurdo seria buscar um meio-termo (um excesso e umafalta em atos injustos covardes ou libidinosos porque assim haveria um meio-termo do excesso e da carecircncia um excesso do excesso e uma carecircncia da carecircnciaMas do mesmo modo que natildeo existe excesso nem carecircncia de temperanccedila ecoragem pois o que eacute intermediaacuterio tambeacutem eacute noutro sentido um extremotambeacutem das accedilotildees que mencionamos natildeo haacute meio-termo nem excesso nem faltaporque de qualquer forma que sejam praticadas satildeo maacutes Em suma do excesso eda falta natildeo haacute um meio-termo como tambeacutem natildeo haacute excesso ou falta de meio-termo159
Nas diversas situaccedilotildees que o homem se depara Aristoacuteteles descreve que um dos
aspectos160que deve ser observado para que a virtude moral possa atuar eacute a noccedilatildeo de
ldquoquantidaderdquo161 Lidar com os afetos significa experimentaacute-los na proporccedilatildeo correta dentro da
situaccedilatildeo enfrentada pelo indiviacuteduo162 Neste sentido uma observaccedilatildeo menos cuidadosa das
caracteriacutesticas da virtude pode levar agrave interpretaccedilatildeo equivocada que a mediania consistiria somente
em ter sentimentos moderados de uma forma inflexiacutevel sem atentar para os demais requisitos Para
159 EacuteN II 1107a 10-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33160 Cf EacuteN II 1106b 20-24 ARISTOacuteTELES Ibidem p 33 Outros elementos satildeo a ocasiatildeo apropriada os objetosapropriados as pessoas apropriadas o motivo correto e a maneira conveniente 161 A ldquoquantidaderdquo pode ser entendida como intensidade das emoccedilotildees162 Cf EacuteN II 1106b 18-19 Ibidem p 33
53
exemplificar esta perspectiva imaginemos o caso de um indiviacuteduo que seja viacutetima de um assalto a
ldquomatildeo armadardquo Ele deve sentir brandamente raiva do meliante natildeo se exaltando diante da
ocorrecircncia Outro exemplo seria a pessoa que natildeo se alegra nos eventos prazerosos Portanto a
virtude como accedilatildeo e paixatildeo corretas seria baseada no aspecto quantitativo de afeto
Esta interpretaccedilatildeo acima descrita natildeo condiz com o argumento aristoteacutelico acerca da
virtude moral163 Primeiro porque desconsidera os outros aspectos que devem ser observados pelo
indiviacuteduo para que a accedilatildeo possa ser tido como moralmente virtuosa Estes aspectos satildeo o tipo de
pessoa qual o momento em que ocorreu a accedilatildeo se o motivo foi correto ou errocircneo se a maneira de
agir foi adequada ou natildeo Esta interpretaccedilatildeo equivocada determina a ldquoquantidade meacutediardquo de afetos
que o indiviacuteduo deve vivenciar independente de qual seja as circunstacircncias O problema estaacute no
fato que esta vivecircncia se baseia em pressupostos abstratos Segundo porque a avaliaccedilatildeo das paixotildees
e accedilotildees eacute realizada a partir das circunstacircncias concretas nas quais o indiviacuteduo estaacute inserido
Terceiro a virtude moral se encontra no campo da razatildeo praacutetica natildeo eacute possiacutevel estabelecer um
comportamento que tenha uma ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo dotada de uma precisatildeo matematicamente
exata e imutaacutevel164 Na visatildeo aristoteacutelica o exame correto da conduta visa agraves particularidades de
cada situaccedilatildeo e evita qualquer abstraccedilatildeo relacionada as emoccedilotildees A ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo deve
ser adequada em cada situaccedilatildeo enfrentada A anaacutelise se o homem teve ou natildeo os afetos apropriados
deve considerar quem eacute a pessoa seus motivos o que estava ocorrendo naquele contexto etc
Portanto o aspecto quantitativo natildeo deve ser dispensado totalmente no exame da virtude visto que
ele tambeacutem compotildeem a accedilatildeo correta mas deve ser observado juntamente com os demais aspectos
relacionadas agrave accedilatildeo pautada pela virtude moral
Eacute importante ficar claro que o indiviacuteduo que busca atingir a mediania e por consequecircncia
uma accedilatildeo virtuosa precisa atentar para todos os aspectos envolvidos na virtude moral intensidade
correta dos afetos momento oportuno a pessoa visada o propoacutesito a maneira adequada de agir
Com frequecircncia erra-se em um requisito ou outro o que ocasiona um erro ou acerto parcial na
conduta Entretanto o equiacutevoco cometido em todos os aspectos acarreta uma accedilatildeo viciosa e por
isso uma maacute conduta Uma accedilatildeo virtuosa que prima pela excelecircncia cumpre todos as condiccedilotildees da
virtude moral Contudo Aristoacuteteles adverte que todos estes requisitos necessitam estar em
consonacircncia com a reta razatildeo165
Ao orientar a mediania a reta razatildeo implica que cada situaccedilatildeo necessita de uma accedilatildeo
apropriada O homem virtuoso pode agir de uma maneira ou de outra conforme a necessidade de
cada ocasiatildeo mas sempre com a finalidade de que sua accedilatildeo seja moralmente virtuosa Citamos um
163 Cf EacuteN II 1104b 20-29 Ibidem p 29164 Cf EacuteN II 1104a 3-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 28165 Cf EacuteN II 1103b 33-35 Ibidem p 28
54
exemplo para clarificar esta ideia em uma circunstacircncia ldquoxrdquo eacute imperioso que tenha muita ira e que
aja de acordo com este afeto Na circunstacircncia ldquoyrdquo apenas eacute necessaacuteria uma ira branda para que a
melhor accedilatildeo se realize Nota-se que a mediania que estaacute em concordacircncia com a reta razatildeo
estabelece que a accedilatildeo virtuosa eacute aquela que se adequa agrave situaccedilatildeo na qual o indiviacuteduo estaacute inserido
No entender de Martin Rhonheimer o meio-termo da virtude eacute o melhor e o maacuteximo que se deve
fazer em cada ocasiatildeo e isso eacute o bem determinado pela razatildeo166 As paixotildees e as accedilotildees satildeo avaliadas
agrave luz da racionalidade Eacute a razatildeo que examina se houve uma demasia ou uma insuficiecircncia E quem
define da melhor forma possiacutevel a reta razatildeo eacute a pessoa dotada de sabedoria praacutetica ou seja o
homem prudente (φρόνιμος) Por isso a virtude moral como mediania entre duas accedilotildees ruins estaacute
intimamente conectada agrave prudecircncia como mostra Aristoacuteteles
A virtude (ἀρετή) eacute pois uma disposiccedilatildeo (ἕξις) de caraacuteter relacionada com aescolha ( e consistente numa mediania ( isto eacute a medianiarelativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional proacuteprio do homemdotado de sabedoria praacutetica (φρόνιμος) E eacute um meio-termo (entre doisviacutecios ( um por excesso ( e outro por falta ( pois queenquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente notocante agraves accedilotildees ( e paixotildees ( a virtude encontra e escolhe omeio-termo E assim no que toca agrave sua substacircncia (ou0sian) e agrave definiccedilatildeo (l gonoacutej )que lhe estabelece a essecircncia (e0stin) a virtude eacute uma mediania com referecircncia aosumo bem ( e ao mais justo eacute poreacutem um extremo (167
Estabelecer a mesoacutetes em uma situaccedilatildeo concreta natildeo eacute uma tarefa faacutecil uma vez que eacute
imprescindiacutevel atentar para vaacuterios aspectos relacionados agrave virtude moral168 Diante deste fato
Aristoacuteteles propotildee trecircs criteacuterios que auxiliam na obtenccedilatildeo da mediania O primeiro eacute evitar o
extremo que mais se afasta do meio-termo Ao considerar a existecircncia de duas accedilotildees extremadas
(viacutecios) normalmente uma delas eacute mais grave e a outra menos Devemos escolher o menor dos
166 Cf RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda edicioacutenTrad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007 p 212 A obra original foi escrita na liacutengua alematildecom o tiacutetulo Die Perspecktive der Moral Grundlagen der philosphischen Ethik167 EacuteN II 1107a 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33 Uma observaccedilatildeo importante eacute sobre a traduccedilatildeo dotermo pela palavra ldquoextremordquo escolhida pelos tradutores Leonel Vallandro e Gerd Bornheim cuja obrausamos como base nesta pesquisa O uso do termo ldquoextremordquo pode ser confundido com o viacutecio pois este eacute uma condutaextremada E natildeo com algo que eacute excelente Acreditamos que o conceito seria mais compreensiacutevel nocontexto desta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco se fossem usados alguns termos como ldquoaacutepicerdquo ldquoelevadordquo ldquoaugerdquoPorque a virtude moral eacute a postura de excelecircncia que o indiviacuteduo possa ter ela permite atingir o bem humano Nestalinha de raciociacutenio Marco Zingano transcreve este trecho do seguinte modo ldquoA virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo deescolher por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo isto eacute comoa delimitaria o prudente Eacute uma mediedade entre dois males o mal por excesso e o mal por falta Ainda pelo fato deas disposiccedilotildees faltarem umas outras excederem no que se deve tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude descobree toma o meio-termo Por isso por essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlididade a virtude eacute uma mediedade massegundo o melhor e o bem eacute um aacutepicerdquo ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado davirtude moral Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008 p 51168 Cf EacuteN II 1109a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37
55
extremos169 O segundo eacute conhecer quais erros somos mais propensos a cometer Isso pode ser
reconhecido pelo prazer ou dor que experimentamos ao cometecirc-los Apoacutes esta observaccedilatildeo de
tendecircncias que atraem ao erro eacute necessaacuterio caminhar na direccedilatildeo oposta para nos aproximar da
mediania170 O terceiro eacute ter uma atitude de cautela diante das coisas prazerosas porque estas
podem ser enganosas171 Deste modo o indiviacuteduo que observar estas precauccedilotildees pode atingir o
meio-termo e ser virtuoso nas circunstacircncias nas quais estaacute envolvido
Conforme exposto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter referente agraves escolhas que o
indiviacuteduo realiza A escolha correta estaacute na mediania Esta consiste em uma proporccedilatildeo correta de
paixotildees e accedilotildees entre dois extremos que satildeo considerados como viacutecios de conduta Um destes viacutecios
eacute caracterizado pela demasia e o outro pela insuficiente A percepccedilatildeo deste termo meacutedio eacute
delimitada pela reta razatildeo que atua nas circunstacircncias concretas A recta ratio eacute o proacuteprio homem
prudente Ele eacute quem deteacutem o melhor juiacutezo acerca das situaccedilotildees e realiza as melhores opccedilotildees eacute o
homem que possui a virtude intelectual da prudecircncia Portanto adentraremos na anaacutelise da
phronecircsis visto que haacute uma relaccedilatildeo desta com as virtudes morais e por ser importantiacutessima para a
obtenccedilatildeo da eudaimonia
169 Cf EacuteN II 1109a 30 Ibidem p 37170 Cf EacuteN II 1109a 35-1109b 5-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37171 Cf EacuteN II 1109b 8-10 Ibidem p 37
56
CAPIacuteTULO III
A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICO
Neste capiacutetulo examinamos o conceito de prudecircncia Com este intento estudamos a
diferenccedila entre o saber teoacuterico o saber poieacutetico e o saber praacutetico A prudecircncia eacute uma virtude
intelectual aplicada agraves coisas contingentes Ela eacute a excelecircncia do ato de decidir e de como dirigir a
proacutepria vida Portanto o homem prudente eacute aquele que sabe decidir bem
Para decidir da melhor maneira possiacutevel o phronimos sabe como deliberar bem e escolher
bem Neste sentido eacute necessaacuterio examinar no que consiste a deliberaccedilatildeo (bouleusij) e a escolha
(proairesij) O ato de deliberar e o ato de escolher satildeo aperfeiccediloados pela prudecircncia Tambeacutem
analisamos o que eacute a reta razatildeo (o0rqoj logoj) e sua funccedilatildeo para que uma accedilatildeo seja julgada
moralmente virtuosa Outro fator a ser examinado devido a sua importacircncia para o
desenvolvimento da virtude da prudecircncia eacute o fenocircmeno da experiecircncia (e0mpeiria) pois a
phronecircsis somente pode aparecer com o transcorrer do tempo
Ademais analisamos as partes integrantes da virtude da prudecircncia Satildeo as denominadas trecircs
virtudes intelectuais menores a boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) a inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo
(gnwmn) Por fim estabelecemos a relaccedilatildeo de como a phronecircsis contribui para que o homem seja
feliz
57
31 Linhas gerais acerca da prudecircncia
No decorrer da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles trata no livro I sobre a eudaimonia como fim
uacuteltimo do homem e no que consiste a felicidade humana Esta eacute conceituada como uma atividade
conforme a virtude Para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio a praacutetica das virtudes morais A definiccedilatildeo de
virtude moral eacute a de ser uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel quase permanente e adquirida que se
caracteriza pelo domiacutenio das paixotildees Este controle racional das paixotildees impele o homem a escolher
bem qual accedilatildeo a realizar pois o auxilia a alcanccedilar a mediania necessaacuteria entre dois viacutecios para que
seja uma accedilatildeo virtuosa defronte as circunstacircncias O paracircmetro deste termo meacutedio eacute percebido e
consequentemente fornecido pelo homem prudente que se orienta pela reta razatildeo
O Estagirita analisa de modo mais detalhado o papel do intelecto para a consecuccedilatildeo de uma
accedilatildeo moral virtuosa no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco Eacute nesta parte da obra que eacute estudada de modo
mais especiacutefico a virtude intelectual da prudecircncia Por isso neste toacutepico eacute analisado em que
constitui esta virtude e suas principais caracteriacutesticas
Para uma melhor compreensatildeo da phronecircsis faccedilamos uma breve retomada da divisatildeo da
alma examinada anteriormente no capiacutetulo II As virtudes da alma satildeo referentes agraves faculdades
sensitiva e intelectiva Em relaccedilatildeo agrave primeira as virtudes morais (eacuteticas) moldam os desejos agrave luz da
razatildeo orientando-os para o bem Na segunda as virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) servem para
atingir a verdade As virtudes satildeo estados de excelecircncia vinculadas agraves funccedilotildees desempenhadas
Conforme escreve Aristoacuteteles ldquo[hellip] a obra (e2rgon) de ambas as partes intelectuais eacute a verdade
Logo as virtudes de ambas seratildeo aquelas disposiccedilotildees (e3ceij) segundo as quais cada uma delas
alcanccedilaraacute a verdade (a0lhqeuampsei) em sumo graurdquo172
Na faculdade intelectiva existem duas partes racionais referentes a dois tipos de raciociacutenios
ou conhecimentos Estes satildeo diferentes devido ao fato que visam realidades distintas com
caracteriacutesticas proacuteprias em cada uma O primeiro eacute o conhecimento cientiacutefico o qual objetiva
estudar agraves coisas que possuem causas imutaacuteveis por isso satildeo invariaacuteveis Esta parte do intelecto
tambeacutem eacute chamada de razatildeo teoacuterica que resulta na sabedoria contemplativa O segundo eacute
conhecimento calculativo ou deliberativo que analisa agraves coisas mutaacuteveis que variam com o tempo e
as circunstacircncias173 Este conhecimento visa orientar agrave accedilatildeo humana E esta pode ser feita de um
modo ou de outro Uma vez que lida com a praacutexis eacute chamada de razatildeo praacutetica ou sabedoria praacutetica
Neste sentido comeccedila-se a delinear o que seja a virtude da prudecircncia Ela eacute a proacutepria razatildeo praacutetica
que atua em um patamar de excelecircncia Conforme nos aponta Aristoacuteteles
172 EacuteN VI 1139b 12-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102173 Cf EacuteN VI 1139a 5-10 Ibidem p 101
58
Dividimos as virtudes da alma (yuxh~~j a0retaj) dizendo que algumas satildeo virtudesdo caraacuteter e outras do intelecto [hellip] Dissemos anteriormente que esta [alma] temduas partes a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeoFaccedilamos uma distinccedilatildeo simples no interior da primeira admitindo que sejam duasas partes que conceberam um princiacutepio racional uma pela qual contemplamos ascoisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamosas coisas variaacuteveis porque quando dois objetos diferem e espeacutecie as partes daalma que correspondem a cada um deles tambeacutem diferem em espeacutecie visto ser poruma certa semelhanccedila e afinidade com os seus objetos que elas os conhecemChamemos cientiacutefica a uma dessas partes e calculativas agrave outra pois o mesmo satildeodeliberar (bouleuestai) e calcular (logizesqai) mas ningueacutem delibera sobre oinvariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe umprinciacutepio racional Devemos assim investigar qual seja o melhor estado de cadauma dessas duas partes pois nele reside a virtude de cada uma174
A virtude da prudecircncia eacute diferente da ciecircncia (e0pisthampmh) O conhecimento cientiacutefico possui
como objeto de estudo aquilo que existe necessariamente Eacute um objeto eterno Por isso nunca se
altera natildeo perece nem eacute nascido ou criado Devido agraves qualidades mencionadas as coisas
invariaacuteveis podem ser consideradas como fundamentos seguros para prover um conhecimento
indubitaacutevel Este eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo podendo ser transmitido por meio da instruccedilatildeo A
ciecircncia visa o conhecimento dos universais Isto permite que haja um convencimento baseado
nestes primeiros princiacutepios Deste modo adquirimos um conhecimento seguro que permite alcanccedilar
a verdade quando se trata de uma realidade constante e perene Por isso a ciecircncia eacute uma espeacutecie de
saber diferente da prudecircncia Acerca do conhecimento cientiacutefico Aristoacuteteles nos diz que
Todos noacutes supomos que aquilo que sabemos natildeo eacute capaz de ser de outra forma[hellip]Por conseguinte o objeto de conhecimento cientiacutefico existe necessariamentedonde se segue que eacute eterno pois todas as coisas que existem por necessidade nosentido absoluto do termo satildeo eternas e as coisas eternas satildeo ingecircnitas eimpereciacuteveis Por outro lado julga-se que toda a ciecircncia pode ser ensinada e seuobjeto aprendido [hellip] Em suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nostorna capazes de demonstrar e possui as outras caracteriacutesticas limitativas queespecificamos nos Analiacuteticos pois eacute quando um homem tem certa espeacutecie deconvicccedilatildeo aleacutem de conhecer os pontos de partida que possui conhecimentocientiacutefico E se estes natildeo lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusatildeo suaciecircncia seraacute puramente acidental Com isto damos por terminada nossa exposiccedilatildeodo conhecimento cientiacutefico175
A virtude da prudecircncia tambeacutem eacute diferente da arte (texnh) Aristoacuteteles argumenta que no
mundo das coisas possiacuteveis de alteraccedilatildeo existe uma diferenccedila entre aquelas fabricadas e as accedilotildees
174 EacuteN VI 1139a 1-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101175 EacuteN VI 1139b 18-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103
59
realizadas A arte eacute a capacidade de produzir um objeto por meio de um raciociacutenio correto176 A
coisa criada passa a existir somente apoacutes a fabricaccedilatildeo humana Esta fabricaccedilatildeo varia conforme o
utensiacutelio a ser produzido uma vez que natildeo eacute algo necessaacuterio nem eacute natural a sua existecircncia pois
pode variar de acordo com as situaccedilotildees A arte como a prudecircncia tambeacutem eacute produzido pelo
intelecto e ambas versam acerca das coisas variaacuteveis A arte e a prudecircncia tratam do contingencial
ou seja do que pode ser ou natildeo ser de uma maneira ou de outra conforme eacute requerido pelas
circunstacircncias Mas as duas formas do intelecto natildeo se confundem porque a razatildeo poieacutetica trata da
produccedilatildeo de utensiacutelios em geral e a razatildeo praacutetica atua sobre as accedilotildees humanas Logo estes dois
tipos de raciociacutenios satildeo distintos entre si porque miram em realidades diacutespares que possuem
caracteriacutesticas proacuteprias
O tipo de razatildeo usada para fabricar (poihsij) natildeo eacute o mesmo quando o objetivo eacute agir
(pra=cij Os dois modos de operaccedilatildeo da racionalidade satildeo baseados em um modo correto de
raciocinar para atingirem suas finalidades Mas o que significa este raciociacutenio verdadeiro no caso do
ato de produzir O proacuteprio Aristoacuteteles responde claramente a esta pergunta
Na classe do variaacutevel incluem-se tanto coisas produzidas como coisas praticadasHaacute uma diferenccedila entre produzir e agir (poihsij kai pra=cij)[hellip] de sorte que acapacidade raciocinada de agir (meta logou e3cij prarktikh) difere dacapacidade raciocinada de produzir (meta logou poihtikh=j) Daiacute tambeacutem o natildeose incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir Oracomo a arquitetura eacute uma arte sendo essencialmente uma capacidade raciocinadade produzir e nem existe arte alguma que natildeo seja uma capacidade desta espeacutecienem capacidade desta espeacutecie que natildeo seja uma arte segue-se que a arte eacute idecircnticaa uma capacidade de produzir que envolve o reto raciociacutenio Toda arte visa agravegeraccedilatildeo e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir algumacoisa que tanto pode ser como natildeo ser e cuja origem estaacute no que produz e natildeo noque eacute produzido Com efeito a arte natildeo se ocupa nem com as coisas que satildeo ou quese gerem por necessidade nem com as que o fazem de acordo com a natureza (poisessas tecircm sua origem e si mesmas) Diferindo pois o produzir e o agir a arte deveser uma questatildeo de produzir e natildeo de agir [hellip] Logo como jaacute dissemos a arte eacuteuma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacutenio e acarecircncia de arte pelo contraacuterio eacute tal disposiccedilatildeo acompanhada de falso raciociacutenioE ambas dizem respeito agraves coisas que podem ser diferentemente177
176 Cf EacuteN VI 1140a 10 Ibidem p 103 177 EacuteN VI 1140a 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 Em relaccedilatildeo agrave frase traduzida porVallandro e Bornheim na citada passagem ldquoDaiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacuteproduzir nem produzir eacute agir (grifo nosso)rdquo Acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 181) seja maisesclarecedora ldquo[hellip] nem eacute um deles uma parte do outro pois fazer natildeo eacute uma forma de criar e nem um criar uma formade fazer (grifo nosso)rdquo Afinal natildeo eacute uma questatildeo de inclusatildeo de um tipo de raciociacutenio no outro mas de uma diferenccedilaclara que existe entre estes dois modos de operaccedilatildeo do intelecto
60
No caso da fabricaccedilatildeo ou produccedilatildeo de um objeto a razatildeo correta significa seguir as ldquoregras
de produccedilatildeo certasrdquo que permitem o artesatildeo produzir qualquer coisa de modo adequado Assim ao
realizar da maneira certa a manufatura do objeto este cumpre com a finalidade para a qual foi
projetado pelo artesatildeo Sem seguir as regras de produccedilatildeo o artesatildeo natildeo consegue fabricar o objeto
para que cumpra com a finalidade escolhida Como exemplo o proacuteprio Aristoacuteteles cita a arte da
arquitetura uma casa projetada por um arquiteto possui uma finalidade proacutepria que somente eacute
atingida se a casa for construiacuteda corretamente Podemos citar outras inuacutemeras artes como ilustraccedilatildeo
desta relaccedilatildeo entre as normas corretas de produccedilatildeo de um objeto para atender uma finalidade A
tiacutetulo de ilustraccedilatildeo basta imaginar um cuteleiro ao criar uma faca ou um curtidor ao preparar o
couro A criaccedilatildeo destes utensiacutelios deve respeitar determinadas regras ndash o modo correto de produzi-
los ndash para que a faca e o couro possam ser existir e serem usados com eficaacutecia cumprindo as
finalidades para as quais foram feitas
No que se refere agrave distinccedilatildeo entra a arte e a prudecircncia o comentador Guy Hamelin descreve
bem as caracteriacutesticas dos dois saberes Embora ambos sejam raciociacutenios praacuteticos a habilidade de
produzir um artefato exige um tipo de raciociacutenio diferente do utilizado para discernir a accedilatildeo a ser
realizada No caso da produccedilatildeo de um objeto o artesatildeo possui escolhas mais restritas Para o
artefato ser produzido de modo correto deve ser feito seguindo prescriccedilotildees precisas de fabricaccedilatildeo
Enquanto no discernimento de uma accedilatildeo a prudecircncia natildeo pode seguir regras estabelecidas Natildeo haacute
um ldquomanualrdquo de como agir em cada situaccedilatildeo A forma correta de agir eacute determinada pela
deliberaccedilatildeo apropriada a cada circunstacircncia Citamos o texto do mencionado exegeta
O Estagirita estima ser necessaacuterio diferenciar a habilidade da prudecircncia ou dodiscernimento por que o raciociacutenio praacutetico usado na habilidade difere em pelomenos dois aspectos importantes do raciociacutenio praacutetico usado na accedilatildeo Primeiro aspossibilidades de escolha resultando da habilidade satildeo muito mais restritas do queas oferecidas pela razatildeo praacutetica ligada agrave accedilatildeo Eacute manifesto que existem maneirasmais limitadas de construir um bom navio por exemplo do que viver bem a suaproacutepria vida e alcanccedilar a felicidade Por conseguinte o indiviacuteduo que age na esferada habilidade (texnh) estaacute mais restrito nas suas escolhas do que a pessoa que estaacutedecidindo a maneira de viver a sua vida A segunda distinccedilatildeo entre a habilidade e aprudecircncia em Aristoacuteteles diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do saber necessaacuteria para agir emcada uma dessas duas esferas Adquirir uma habilidade teacutecnica consisteessencialmente em conhecer como produzir um artefato e esse conhecimentoreduz-se em boa parte a um conjunto de preceitos (paraggeliai) deixados peloshabilidosos aos aprendizes Aristoacuteteles natildeo pode aceitar que seja possiacutevel adquiriruma virtude a partir de regras preestabelecidas pois cada situaccedilatildeo concreta danossa vida implica tantas possibilidades que apenas uma deliberaccedilatildeo adequada agravecircunstacircncia pode nos indicar a accedilatildeo a cumprir178
178 HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista ArchaiBrasiacutelia n 04 jan 2010 p 110-111
61
Em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana esta possui um fim em si proacutepria O ato de agir natildeo transcende a
si mesmo como os objetos criados pelo artesatildeo Como nos afirma o Estagirita ldquoCom efeito ao
passo que o produzir tem uma finalidade diferente de si mesmo isso natildeo acontece com o agir pois
que a boa accedilatildeo eacute o seu proacuteprio fimrdquo179 Diante deste fato referente agrave natureza da accedilatildeo podemos
pensar que o homem tem por ldquotarefardquo impelido pela sua funccedilatildeo proacutepria (ἔργον)180 de aperfeiccediloar a
si mesmo para alcanccedilar a eudaimonia Para isso deve aprimorar sua racionalidade para atingir a
verdade e orientar os seus iacutempetos ndash dominar suas paixotildees educar seus desejos e prazeres ndash por
meio das virtudes morais para aquilo que eacute bom digno e nobre Neste sentido podemos dizer que a
ldquoobra-primardquo a ser realizada atraveacutes das nossas boas accedilotildees somos noacutes mesmos
A criaccedilatildeo (produccedilatildeo fabricaccedilatildeo) de um artefato pertence a um gecircnero diferente da accedilatildeo O
ato de criar possui uma finalidade que transcende o homem que cria O objeto fabricado eacute distinto
do criador Por exemplo a fabricaccedilatildeo de um vaso de argila por um artesatildeo Por outro lado a accedilatildeo eacute
imanente ao proacuteprio homem pois eacute realizada pelo proacuteprio agente Natildeo haacute um objeto produzido que
eacute exterior ao homem O phronimos ao escolher a melhor accedilatildeo a ser realizada natildeo cria um produto
tangiacutevel algo corpoacutereo que possa ser tocado Deste modo ao ser referir agrave accedilatildeo humana esta eacute
compreendida como um ato de agir e natildeo como um ato de criaccedilatildeo O ato de criar eacute referente a quem
produz alguma coisa
Da mesma forma que na Eacutetica a Nicocircmaco a distinccedilatildeo entre o saber teoacuterico e saber praacutetico
tambeacutem eacute assinalada na Metafiacutesica Nela Aristoacuteteles descreve que a busca da verdade eacute a finalidade
principal tanto para a parte cientiacutefica quanto para a calculativa do intelecto Tambeacutem satildeo
delimitados os campos de aplicaccedilatildeo dos respectivos saberes embora a verdade como finalidade do
saber praacutetico eacute expresso de modo mais contundente no tratado sobre a eacutetica Na Metafiacutesica o
Estagirita assevera que o conhecimento cientiacutefico tem o objetivo de conhecer a verdade enquanto o
conhecimento praacutetico visa a accedilatildeo Cita-se a passagem desta obra
E tambeacutem eacute justo chamar a filosofia da ciecircncia da verdade porque o fim da ciecircnciateoreacutetica eacute a verdade enquanto o fim da praacutetica eacute a accedilatildeo (com efeito os que visamagrave accedilatildeo mesmo que observem como estatildeo as coisas natildeo tendem ao conhecimentodo que eacute eterno mas soacute do que eacute relativo a determinada circunstacircncia e numdeterminado momento) Ora natildeo conhecemos a verdade sem conhecer a causa181
Eacute interessante notar que Aristoacuteteles natildeo considera o intelecto apenas algo meramente
instrumental embora em um determinado sentido a racionalidade possa ser compreendida como
179 EacuteN VI 1140b 6-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 180 Conforme visto no capiacutetulo I no item 14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres181 Metafiacutesica 993b 20-23 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 73
62
instrumento para atingir um fim que satildeo as causas imutaacuteveis no caso do saber teoacuterico Na
produccedilatildeo de um objeto haacute a razatildeo poieacutetica E ainda haacute a deliberaccedilatildeo nas situaccedilotildees que dizem
respeito agrave razatildeo praacutetica A racionalidade tambeacutem pode ser entendida como um fim que ultrapassa a
perspectiva de mera instrumentalidade Natildeo eacute somente uma ferramenta para alcanccedilar fins desejados
Uma vez que o homem anseia pela verdade das coisas o desejo de conhecer eacute imanente a noacutes 182
Conhecer as coisas para alcanccedilar a verdade eacute uma funccedilatildeo proacutepria da razatildeo humana Logo a
atividade racional tambeacutem eacute desejada pelo homem pois permite que esta conheccedila a verdade e ao
conhececirc-la possa alcanccedilar a eudaimonia Em outros termos o proacuteprio exerciacutecio da razatildeo nos seus
distintos saberes torna o homem mais pleno e realizado e por isso mais feliz
Em suma o intelecto eacute parte da alma que busca compreender o mundo Para isso possui as
funccedilotildees de escolher ordenar hierarquizar especular O intelecto opera de formas distintas de
acordo como o tipo de finalidade exigida Em outros termos a razatildeo humana utiliza diferentes tipos
de raciociacutenios A sabedoria praacutetica natildeo eacute ciecircncia nem arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque
este se baseia em princiacutepios imutaacuteveis e por isso passiacuteveis de demonstraccedilatildeo Natildeo precisa utilizar
da deliberaccedilatildeo pois esta serve somente no caso de situaccedilotildees que variam e podem gerar diversos
resultados Tambeacutem natildeo eacute arte porque esta natildeo visa a accedilatildeo proacutepria do homem O conhecimento
produtivo cria coisas que possuem uma existecircncia concreta que diferem do artesatildeo que as produz
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos diferentes tipos de saberes (e0pisthmh texnh fronhsij) com suas
respectivas finalidades resta expor de modo mais detalhado a proacutepria prudecircncia Neste sentido
abordaremos esta virtude intelectual no proacuteximo toacutepico
32 O conceito de prudecircncia
A virtude intelectual da prudecircncia tem como papel operar o saber praacutetico em niacutevel de
excelecircncia A prudecircncia eacute a areteacute da razatildeo praacutetica Isso significa que nas diversas circunstacircncias
enfrentadas pelo homem tanto em situaccedilotildees corriqueiras no seu cotidiano quanto naquelas mais
importantes que definem a vida como um todo eacute necessaacuterio decidir entre vaacuterias opccedilotildees que podem
ser tomadas A prudecircncia eacute o conhecimento da boa deliberaccedilatildeo e decisatildeo E decisotildees corretas
facilitam alcanccedilar a eudaimonia Dificilmente um homem pode ser feliz se a maior parte das
decisotildees que tomou foram errocircneas Neste sentido o homem prudente conhece a melhor forma de
tomar uma decisatildeo o que acarreta saber que accedilatildeo realizar perante as situaccedilotildees nas quais estaacute
envolvido
182 Cf Metafiacutesica 980a 22 Op cit p 04 Conforme descrito neste trecho da obra ldquoTodos os homens tendem aosaberrdquo Ibidem p 4
63
A prudecircncia eacute o raciociacutenio correto e verdadeiro que permite o homem deliberar sobre o que
eacute bom e apropriado para si mesmo e para os outros A partir desta percepccedilatildeo esta virtude possui a
funccedilatildeo de escolher a melhor accedilatildeo para atingir o fim escolhido A phronecircsis vislumbra os meios
mais eficazes para que a accedilatildeo seja eficaz O homem prudente eacute efetivo em suas accedilotildees porque decide
de modo correto age da forma certa ao escolher os melhores meios para alcanccedilar os fins e sua accedilatildeo
eacute nobre Portanto o phronimos eacute o homem que delibera com acerto e por isso decide bem agrave luz
das variadas situaccedilotildees Eacute o que nos mostra Aristoacuteteles
Ora julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacuteticao poder deliberar bem (kalw~v bouleusasqai) sobre o que eacute bom eacute conveniente(a)gaqa kai sumfeampronta) para ele natildeo sob um aspecto particular como porexemplo sobre as espeacutecies de coisas que contribuem para a sauacutede e o vigor massobre aquelas que contribuem para a vida boa em geral Bem o mostra o fato deatribuirmos sabedoria praacutetica a um homem sob um aspecto particular quando elecalculou bem com vistas em alguma finalidade boa que natildeo se inclui entre aquelasque satildeo objeto de alguma arte Segue-se daiacute que num sentido geral tambeacutem o homem que eacute capaz de deliberarsobre coisas que natildeo podem ser de outro modo (ou0k e1sti bouleusasqai per tw~~nigrave tw~~ne0c a0nagkhj ontwn) [hellip] Resta pois a alternativa de ser ela uma capacidade(e3cin) verdadeira (a0leqou~~j) e raciocinada de agir (meta logou praktinken) comrespeito agraves coisas que satildeo boas ou maacutes para o homem ( qr p a)gaqa kaiἀν ώpῳ a)gaqa kai ῳkaka0)183
A partir desta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles nota-se que a prudecircncia possui dois aspectos O
primeiro trata da sabedoria praacutetica aplicada agrave vida particular do homem O segundo versa sobre agrave
vida coletiva No acircmbito privado o homem prudente discerne sobre os melhores meios para atingir
os fins particulares que o levam agrave eudaimonia Mas na perspectiva aristoteacutelica o homem natildeo pode
ser feliz sozinho pois sua natureza eacute poliacutetica184 O bem humano tambeacutem eacute a finalidade da poliacutetica185
Uma vez que o homem vive com outros eacute necessaacuterio discernir os caminhos da comunidade para
que esta atinja a felicidade O acircmbito comunitaacuterio diz respeito agrave vida na poacutelis Sem a eudaimonia na
cidade-Estado o homem natildeo poderaacute ser completamente feliz Logo o phronimos ao visar a vida
feliz sabe que esta eacute composta pelo que eacute bom e nobre tanto para ele quanto para os outros que o
cercam Acerca da poacutelis como incentivadora da eudaimonia temos na Eacutetica a Nicocircmaco
183 EacuteN VI 1140a 26 a 1140b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Tambeacutem conferir EacuteN VI1141a 9-12 p 106184 Cf Poliacutetica I 1253a 5 A expressatildeo ldquoanimal poliacuteticordquo (politikon zw~~on) deve ser entendida no sentido denatureza social ou sociaacutevel Eacute natural dos indiviacuteduos serem gregaacuterios 185 Sobre a eudaimonia como finalidade da poacutelis eacute proveitosa a leitura das passagens na Poliacutetica III 1278a 23-301280a 32-40 agrave 1280b 1-10 1283a 15-20 Ademais devemos recordar que a virtude moral da justiccedila somente pode serefetivada na comunidade Esta virtude eacute a ldquojoiardquo que permite a vida feliz na poacutelis
64
Ningueacutem duvidaraacute de que o seu estudo [do sumo bem] pertenccedila agrave arte maisprestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra Ora apoliacutetica (politikh) mostra ser dessa natureza pois eacute ela que determina quaisciecircncias que devem ser estudadas num Estado quais satildeo as que cada cidadatildeo deveaprender e ateacute que ponto e vemos que ateacute as faculdades tidas em maior apreccedilocomo a estrateacutegia a economia e a retoacuterica estatildeo sujeitas a ela Ora como a poliacuteticautiliza as demais ciecircncias e por outro lado legisla sobre o que devemos e o quenatildeo devemos fazer a finalidade dessa ciecircncia deve abranger as das outras de modoque essa finalidade seraacute o bem humano (a0gaqon) Com efeito ainda que tal fimseja o mesmo tanto para o indiviacuteduo como para o Estado (polei) o deste uacuteltimoparece ser algo maior e mais completo quer a atingir quer a preservar Emboravalha bem a pena atingir esse fim para um indiviacuteduo soacute eacute mais belo (kallion) emais divino (qeioteron) alcanccedilaacute-lo para uma naccedilatildeo ou para as cidades-Estado(e1qnei kai polesin) 186
A prudecircncia particular estaacute atrelada agrave prudecircncia coletiva Esta ideia eacute importante porque
recorda que Aristoacuteteles nunca perde de vista que a felicidade do homem estaacute inserida na poacutelis grega
Embora o Estagirita assevere que a genuiacutena felicidade individual esteja na sabedoria
contemplativa187 esta eacute mais facilmente atingida em um ambiente de felicidade comunitaacuteria A
prudecircncia deve ser entendida como sendo uma virtude intelectual que propicia uma correta escolha
que permite tomar boas decisotildees direcionadas para os fins nobres Devemos recordar que o
phronimos eacute um homem que tem a prudecircncia consolidada em seu caraacuteter Deste modo ele possui
uma visatildeo clara sobre o que eacute bom justo e nobre para si e para a comunidade em que vive
Nesta linha de raciociacutenio basta imaginarmos uma cidade bairro ou qualquer outro ambiente
coletivo Se nestes imperam os viacutecios e natildeo as virtudes existiratildeo dificuldades maiores para o
homem ser feliz No caso contraacuterio nos lugares onde as virtudes se sobressaem o homem teraacute sua
busca pela felicidade facilitada E aleacutem disso em uma sociedade virtuosa desde a infacircncia o
homem eacute educado para as virtudes Isto gera um ciclo beneacutefico a cidade auxilia o cidadatildeo a ser
virtuoso e consequentemente a ser feliz e este ajuda a cidade a ser mais virtuosa Enfim eacute a antiga
liccedilatildeo que assim como satildeo os cidadatildeos tal seraacute a cidade
Como exemplo dessa prudecircncia que estabelece uma ligaccedilatildeo entre os fins particulares e os
coletivos Aristoacuteteles cita como modelo de homem prudente o estadista ateniense Peacutericles e outros
como ele188 Este eacute considerado o maior liacuteder ateniense ou pelo menos um dos seus maiores gecircnios
poliacuteticos Sua grandeza proveacutem do fato que ele discernia bem sobre estas duas aplicaccedilotildees da
prudecircncia Julgava com acerto os rumos que Atenas deveria seguir pois visava o que era bom para
os cidadatildeos atenienses O Estagirita tambeacutem coloca como detentores da prudecircncia os bons
186 EacuteN I 1094a 27 a 1094b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10187 EacuteN X 1178b 28-33 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 191188 Cf EacuteN VI 1140b 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104
65
ecocircnomos (oikonomikouj) e os bons estadistas (politikouj) porque visam a felicidade da poacutelis189
Sobre o fim uacuteltimo da cidade grega e sua organizaccedilatildeo mais uma vez podemos observar uma
diferenccedila entre o filoacutesofo de Estagira e Platatildeo O pensamento aristoteacutelico considera que a
eudaimonia coletiva eacute um fim alcanccedilado por meio da forma que a poacutelis se organiza e a filosofia
moral que a direciona O bem da cidade-Estado estaacute no estiacutemulo agrave racionalidade e virtudes morais
dos cidadatildeos Enquanto para o seu antecessor o mundo das Ideias eacute a referecircncia para a cidade-
estado O comentaacuterio de Pierre Aubenque expressa bem este entrelaccedilamento entre o acircmbito
particular e o coletivo e a distinccedilatildeo com o pensamento platocircnico ao dizer que
ldquoOra a vida feliz (que ser trate da cidade ou da casa como indiviacuteduo) eacute atotalidade que transcende os fins particulares O prudente natildeo eacute entatildeo o puroempiacuterico que vive o dia-a-dia sem princiacutepios e sem perspectivas mas eacute o homemde visatildeo de conjunto E permanece a seu modo o herdeiro do sunoptikojplatocircnico embora veja uma totalidade concreta ndash o bem total da comunidade ou doindiviacuteduo - e natildeo essa Totalidade abstrata e segundo Aristoacuteteles irreal que era omundo platocircnico das Ideiasrdquo190
O homem prudente eacute uma espeacutecie de visionaacuterio Natildeo no sentido contemplativo mas como
um homem que vecirc ou mesmo prevecirc a conjuntura presente ou futura e consegue escolher o melhor
caminho a ser tomado Isto tanto na esfera privada quanto na coletiva Ele eacute detentor de um
importante tipo de conhecimento o de perceber as sutilezas do que se passa a sua volta e consigo
mesmo para tomar boas decisotildees que resultam em accedilotildees corretas Enfim accedilotildees que geram
resultados positivos conduzem o homem e o grupo em que vive para mais perto da eudaimonia
Essa percepccedilatildeo de conjuntura que propicia a decisatildeo correta eacute a marca do homem
prudente191 Mas como o phronimos consegue ter esta avaliaccedilatildeo acertada das coisas Isto ocorre
devido ao fato que o prudente conhece os princiacutepios universais (gerais) mas tambeacutem observa as
particularidades de cada situaccedilatildeo192 Ele consegue relacionar de modo efetivo os universais e os
particulares na accedilatildeo pois a accedilatildeo se encontra nos particulares O exemplo que Aristoacuteteles utiliza eacute o
do homem que possui o conhecimento de que carnes leves satildeo de faacutecil digestatildeo Estas auxiliam na
manutenccedilatildeo da sauacutede Mas ter somente esta informaccedilatildeo natildeo lhe auxiliaraacute em nada Pois ao ignorar
quais satildeos os tipos de carnes consideradas leves natildeo poderaacute reestabelecer sua sauacutede A situaccedilatildeo eacute
semelhante para vaacuterios casos Um meacutedico pode saber os princiacutepios da sauacutede em geral mas se nunca
teve experiecircncia das particularidades no atendimento de cada paciente dificilmente poderaacute curaacute-
los Ou capitatildeo de navio que conhece os princiacutepios da navegaccedilatildeo mas nunca navegou natildeo estaraacute
189 Cf EacuteN VI 1140b 10 Idem p 104190 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit 95-96 O sunoptikoacutes platocircnico eacute o homem que possuiuma visatildeo abrangente das circunstacircncias 191 Cf EacuteN VI 1141a 23-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106192 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 96
66
apto para comandar uma embarcaccedilatildeo Em suma o accedilougueiro o enfermeiro e o velho marujo
devido agraves experiecircncias (e0mpeiria) adquiridas muitas vezes atingem melhores resultados que o
homem puramente teoacuterico Nos diz Aristoacuteteles
Tampouco a sabedoria praacutetica se ocupa apenas com universais (kaqolou) Devetambeacutem reconhecer os particulares pois ela eacute praacutetica e a accedilatildeo versa sobre osparticulares Eacute por isso que alguns que natildeo sabem e especialmente os que possuemexperiecircncia satildeo mais praacuteticos do que os outros que sabem porque se um homemsoubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse queespeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutedepoderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinha193
No quesito referente ao conhecimento dos universais e dos particulares eacute importante
delimitar a distinccedilatildeo entre o saber filosoacutefico (sofia)194 e o saber praacutetico (qronesij) Anteriormente
citamos as cinco virtudes intelectuais descritas por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco195
Jaacute descrevemos com mais detalhes o saber cientiacutefico (ἐπιστήμη) e a arte (τέχνη) resta-nos discorrer
sobre o saber filosoacutefico e a razatildeo intuitiva (nou~~j) No decorrer da sua exposiccedilatildeo sobre os tipos de
saberes o noucircs eacute descrito como sendo um tipo de conhecimento que permite a imediata apreensatildeo
dos primeiros princiacutepios196 Natildeo utiliza a demonstraccedilatildeo racional para conhecer como necessitam os
saberes cientiacutefico e filosoacutefico Neste sentido o noucircs natildeo realiza determinadas operaccedilotildees mediatas
do intelecto como a deliberaccedilatildeo ou o caacutelculo E o que satildeo estes princiacutepios captados pelo noucircs Satildeo
os princiacutepios mais universais que natildeo podem mais serem deduzidos de outros princiacutepios Mas
formam a base sobre a qual a ciecircncia pode operar partindo de princiacutepios gerais para os mais
especiacuteficos Eacute o que explica a comentadora Ursula Wolf ldquo[] E visto que nem todos os princiacutepios
podem ser deduzidos de princiacutepios mais gerais e que nem todos os conceitos podem ser definidos
por meio de conceitos mais conhecidos os conceitos mais elevados da ciecircncia jaacute natildeo podem ser
explicitados discursivamente mediante princiacutepios mas apenas apreendidosrdquo197 Logo o nocircus eacute uma
captaccedilatildeo de cunho ldquointuitivordquo dos primeiros princiacutepios utilizados pela ciecircncia demonstrativa198
193 EacuteN VI 1141b 15-20 Ibidem p 106-107194 Tambeacutem chamada de ldquosapiecircnciardquo por alguns autores como REALE (Metafiacutesica Vol II 2005 p 06) eABBAGNANO (Dicionaacuterio de Filosofia 2012 p 1025-1026)195 Conferir o capiacutetulo II no toacutepico 21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais As cinco virtudes intelectuaissatildeo arte (τέχνη) conhecimento cientiacutefico (ἐπιστήμη) sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) razatildeointuitiva (νοῦς)196 EacuteN VI 1141a 16-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Em relaccedilatildeo as possiacuteveis traduccedilotildeesdo termo noucircs remetemos agrave nota de rodapeacute nordm 115197 WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p149 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)198 Cf EacuteN VI 1141a 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105
67
A sabedoria filosoacutefica eacute a perfeita forma de conhecimento Ela eacute a uniatildeo do conhecimento
cientiacutefico e do noucircs A combinaccedilatildeo destes dois tipos de saberes permite que ela contemple e
conheccedila as coisas mais sublimes Aristoacuteteles inicia sua explicaccedilatildeo sobre o saber filosoacutefico a partir
de uma noccedilatildeo mais usual aplicada ao campo das artes Neste caso o saacutebio seria o artista
consagrado como o melhor naquele tipo de arte Como exemplo seriam os mais elevados expoentes
nas artes da cutelaria da pintura da escultura da arquitetura etc Poreacutem o Estagirita vai aleacutem deste
esclarecimento inicial Para ele uma vez que existem pessoas que satildeo saacutebias de um modo geral e
natildeo em alguma arte ou ciecircncia especiacutefica estes satildeo os saacutebios em um sentido filosoacutefico Estes
homens compreendem verdadeiramente estes primeiros princiacutepios e conseguem demonstrar as
conclusotildees que se inferem a partir deles Neste sentido este eacute o perfil do homem que pode ser
chamado de filoacutesofo (filosofoj) ele maneja as teorias ou seja ldquodominardquo o saber teoacuterico
Segundo o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
A sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos(a0kribestatoij) expoentes por exemplo a Fiacutedias como escultor e Policleto comoretratista em pedra e por sabedoria aqui natildeo entendemos outra coisa senatildeo aexcelecircncia na arte (a0reth texnhj) Mas a certas pessoas consideramos saacutebias demodo geral e natildeo em algum campo particular ou sob qualquer outro aspectolimitado [hellip] Eacute pois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas deconhecimento a mais perfeita Donde se segue que o homem saacutebio natildeo apenasconheceraacute o que decorre dos primeiros princiacutepios (a0rxw~~n) senatildeo que tambeacutempossuiraacute a verdade a respeito desses princiacutepios (a0rxaj a0lhqeuein) Logo asabedoria deve ser a razatildeo intuitiva combinada com o conhecimento cientiacutefico(soqia nou=j kai e0pisthmh)ndash uma ciecircncia dos mais elevados objetos que recebeupor assim dizer a perfeiccedilatildeo que lhe eacute proacutepriardquo199
No sentido aqui exposto a teoria (qewria) eacute um saber puro desvinculado da teacutecnica
aplicada agrave produccedilatildeo de uma coisa corpoacuterea Tambeacutem natildeo estaacute ligada aos assuntos referentes agrave accedilatildeo
humana objetivo do saber praacutetico Seu campo de estudo eacute aquilo que eacute inacessiacutevel agrave experiecircncia
sensiacutevel alcanccedilaacutevel apenas pela especulaccedilatildeo Este conhecimento especulativo natildeo eacute subordinado a
nenhum outro200 Antes se constitui como fundamento dos outros tipos de saberes Por ser mais
199 EacuteN VI 1141a 10-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Eacute interessante fazer uma ressalvanas expressotildees ldquoA sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos expoentes []rdquo e ldquoEacutepois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais perfeitardquo No texto da Eacutetica aNicocircmaco satildeo usadas as palavras a0kribestatoij e a0kribestath respectivamente na primeira e segunda fraseEmbora tenham sido traduzidas como ldquoperfeitosrdquo e ldquoperfeiccedilatildeordquo o termo ἀκριβής significa ldquoprecisatildeordquo ldquoacuradordquoldquoexatidatildeordquo ldquorigorosordquo ldquoestritordquo No texto em questatildeo eacute cabiacutevel o uso do termo ldquoperfeiccedilatildeordquo pois este engloba todos osoutros conceitos citados Entretanto acreditamos que a compreensatildeo desta passagem do texto pode ser melhorentendida do seguinte modo ldquoA sabedoria nas artes eacute atribuiacuteda aos seus mais acurados expoentes []rdquo e ldquoEacute poisevidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais exatardquo 200 Cf Metafiacutesica I 981b 26-30 agrave 982a 4 e 15-17 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 6 - 9
68
afastada do mundo empiacuterico (sensiacutevel) acaba por se tornar um saber buscado por si mesmo natildeo
visando outro resultado diferentemente da epiacutesteme da poieacutesis e da praacutexis
Existe uma niacutetida distinccedilatildeo entre a sabedoria filosoacutefica e a sabedoria praacutetica Vimos que o
saber filosoacutefico visa os princiacutepios universais que satildeo imutaacuteveis necessaacuterios e eternos A prudecircncia
versa sobre o mundo contingente que muda a cada momento Por isso esta uacuteltima trata daquilo que
pode ser objeto de deliberaccedilatildeo Eacute importante observar que Aristoacuteteles demarca duas caracteriacutesticas
importantes sobre o ato de deliberar i) somente ocorre com as situaccedilotildees que satildeo mutaacuteveis e ii) a
deliberaccedilatildeo visa as coisas que possuem finalidades especiacuteficas e estas devem ser possiacuteveis de serem
obtidas pelas accedilotildees Logo o homem prudente delibera bem porque defronte das circunstacircncias faz
um caacutelculo para escolher os melhores meios para alcanccedilar o bem para o homem dentro da
conjuntura em que se encontra naquele momento De acordo com o Estagirita
A sabedoria praacutetica (fronhsij) pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas(a0nqpwpina) e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos queessa eacute acima de tudo a obra (e1rgon) do homem dotado de sabedoria praacutetica (fronimou) deliberar bem (bouleusesqai) Mas ningueacutem delibera (bouleueqai) arespeito de coisas invariaacuteveis nem sobre coisas que natildeo tenham uma finalidade(teloj) e essa finalidade um bem que se possa alcanccedilar pela accedilatildeo (praktona0gaqon) De modo que delibera bem (eu1bouloj) no sentido irrestrito da palavraaquele que baseando-se no caacutelculo eacute capaz de visar agrave melhor (a0ristou) para ohomem (a0nqpwpw|) das coisas alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo (praktw~~n)201
Apoacutes a descriccedilatildeo das caracteriacutesticas da sabedoria praacutetica e da filosoacutefica eacute possiacutevel
perguntar qual desses dois saberes eacute mais importante Aristoacuteteles responde que o homem prudente
necessita das duas formas de saber Pois a melhor accedilatildeo a ser realizada eacute o foco da virtude da
prudecircncia Esta conforme visto pressupotildee o conhecimento dos universais e dos particulares de
cada situaccedilatildeo Entretanto nem sempre eacute possiacutevel ter o domiacutenio destes dois saberes Neste caso
aplica-se o conselho aristoteacutelico ldquoOra a sabedoria praacutetica diz respeito agrave accedilatildeo Portanto deveriacuteamos
possuir ambas as espeacutecies de sabedoria ou a segunda [sabedoria praacutetica] de preferecircncia agrave primeira
[sabedoria filosoacutefica] Mas tanto da sabedoria praacutetica como da filosoacutefica deve haver uma espeacutecie
controladorardquo202 Afinal frequentemente o ato de agir perante uma conjuntura eacute feito somente com
a percepccedilatildeo dos fatos particulares e ainda apenas baseada na experiecircncia Muitas vezes estes dois
elementos da accedilatildeo atingem resultados satisfatoacuterios Deste modo tendo em vista agrave accedilatildeo humana a
preferecircncia eacute possuir a sabedoria praacutetica
201 EacuteN VI 1141b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106 Na expressatildeo ldquo[] um bem que sepossa alcanccedilar pela accedilatildeordquo visto que os termos utilizados em grego satildeo prakton a0gaqon acreditamos que a melhorforma de compreender a frase eacute ldquo[hellip] um bem que se possa alcanccedilar pela melhor accedilatildeordquo ou ldquopela correta accedilatildeordquo Istodevido ao fato que a palavra agathon a depender do uso significa ldquomelhorrdquo ldquobomrdquo ldquohonraacutevelrdquo ldquonobrerdquo ldquocorretardquoldquoconvenienterdquo ldquoefetivardquo dentre outros significados 202 EacuteN VI 1141b 22-23 Ibidem p107
69
Eacute importante observar que Aristoacuteteles traccedila uma outra caracteriacutestica da prudecircncia Esta
virtude intelectual deve focar em fins nobres A escolha dos meios natildeo pode ser voltada para
objetivos soacuterdidos O homem prudente eacute antes de tudo uma pessoa que possui um soacutelido caraacuteter
moral baseado nas virtudes morais Conforme visto anteriormente eacute considerado como um
spoudaios203 Seria contraditoacuterio que optasse por buscar fins que natildeo condizem com sua conduta
Ora o phronimos consegue visualizar as diversas nuances das circunstacircncias em que estaacute inserido
sejam individuais ou coletivas Por isso eacute perspicaz (deinothj)204 ou seja consegue encontrar as
melhores soluccedilotildees para os problemas Entretanto existe um outro tipo de pessoa que igualmente
possui perspicaacutecia diante das situaccedilotildees Eacute o homem vigarista (panou=pgoj) Este natildeo pode ser
considerado possuidor da virtude da prudecircncia por ser um homem eivado de viacutecios que busca fins
errocircneos Logo a prudecircncia somente eacute reservada para homens com nobreza de alma Eacute o que
Aristoacuteteles nos assevera
Existe uma faculdade que se chama habilidade (deinothta) e tal eacute a sua naturezaque tem o poder de fazer as coisas que conduzem ao fim proposto e alcanccedilaacute-loOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau ahabilidade seraacute simples astuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos osproacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj) Esta natildeo eacute afaculdade poreacutem natildeo existe sem ela e esse olho da alma natildeo atinge o seu perfeitodesenvolvimento sem o auxiacutelio da virtude como jaacute dissemos e como aliaacutes eacuteevidente E a razatildeo disto eacute que os silogismos em torno do que se deve fazercomeccedilam assim ldquovisto que o fim isto eacute o que eacute melhor eacute de tal naturezardquoAdmitamos no interesse do argumento que ela seja qual for mas soacute o homembom a conhece verdadeiramente porquanto a maldade nos perverte e nos leva aenganar-nos a respeito dos princiacutepios da accedilatildeo Donde estaacute claro que natildeo eacute possiacutevelpossuir sabedoria praacutetica quem natildeo seja bom205
Nota-se que a prudecircncia natildeo consiste somente na habilidade de escolher os meios para
atingir determinados fins Ela tambeacutem inclui este tipo de deliberaccedilatildeo de fins mais concretos Mas
satildeo apenas fins instrumentais que servem para atingir a eudaimonia O ato de deliberar e escolher os
meios devem ser compreendidos dentro de um panorama maior Eacute uma visatildeo geral da proacutepria vida
que acarreta em um ldquobom agirrdquo (eu0pracia) ou boa conduta constante O homem prudente delibera
203 Cf Capiacutetulo 2 item 24 O homem virtuoso204 Tambeacutem pode ser entendida como ldquohabilidaderdquo ldquoengenhosidaderdquo ldquoastuacuteciardquo ldquodestrezardquo Neste ponto eacute importanteressaltar que a moralidade maacute ou boa desta desenvoltura para resolver os problemas eacute definida pelos fins almejados Ohomem prudente a usa para alcanccedilar os fins nobres enquanto o vigarista a usa para fins errocircneos Neste sentido o termoldquoastuacuteciardquo na traduccedilatildeo citada eacute utilizado para descrever esta desenvoltura que tanto homens bons e maus possuem Naexpressatildeo ldquoOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau a habilidade seraacute simplesastuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos os proacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj)Esta natildeo eacute a faculdade poreacutem natildeo existe sem ela[]rdquo acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 197) permiteuma clareza melhor da ideia transmitida por Aristoacuteteles ldquoSe o objetivo for nobre revelar-se-aacute uma faculdade louvaacutevelse for vil revelar-se-aacute mera patifaria razatildeo pela qual nos referimos tanto a homens prudentes quanto a biltres comoengenhosos Ora ainda que essa faculdade natildeo seja idecircntica agrave prudecircncia esta a implicardquo205 EacuteN VI 1144a 25-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p112
70
natildeo somente sobre accedilotildees imediatas mas tambeacutem sobre aquilo que eacute essencial para a vida Em
uacuteltima instacircncia o homem prudente escolhe os meios tendo em vista o Supremo Bem que eacute a
proacutepria felicidade
Para o comentador Martin Rhonreimer uma vez que a verdadeira virtude da prudecircncia eacute a
ldquosabedoria das coisas humanasrdquo ela aponta para aquilo que possui uma relevacircncia para a vida como
um todo Essas ldquocoisas humanasrdquo dizem respeito a um fim geral da vida humana que passa a ser
uma referecircncia para o homem dirigir todas as suas tendecircncias206
Por fim apoacutes as descriccedilotildees feitas podemos sintetizar o conceito de prudecircncia Ela eacute uma
virtude pertencente agrave parte racional da alma que versa sobre a realidade das coisas variaacuteveis Eacute
distinta da ciecircncia e da arte pois especificamente refere-se agrave accedilatildeo humana Eacute a excelecircncia do ato
de deliberar O homem prudente conhece os princiacutepios universais e sobretudo os fatos particulares
de cada circunstacircncia Logo esta virtude permite que o homem escolha corretamente o que eacute bom
para si mesmo e para a comunidade tendo em vista os fins nobres
Dito isso passemos ao proacuteximo toacutepico que trata sobre a relaccedilatildeo entre a prudecircncia a reta
razatildeo e a experiecircncia Seraacute estudada como o homem prudente aprende esta virtude com o passar do
tempo Aleacutem disto examinaremos como a reta razatildeo atua para que o homem prudente possar
realizar uma boa escolha
33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
A prudecircncia eacute a virtude que permite a escolha correta dos meios para atingir determinados
fins Eacute a excelecircncia do ato de decidir Uma vez que natildeo nascemos com esta virtude eacute necessaacuterio
desenvolvecirc-la ao longo da vida Entatildeo como o homem torna-se prudente
A resposta a esta pergunta consiste na aquisiccedilatildeo das virtudes morais da experiecircncia
adquirida com o tempo e o estudo das chamadas virtudes intelectuais menores Visto que as virtudes
morais foram estudadas anteriormente e as virtudes intelectuais menores seraacute objeto de estudo
posterior nos concentraremos na experiecircncia e como ela auxilia na formaccedilatildeo da reta razatildeo
Conforme descrito no item anterior a phronecircsis eacute o conhecimento dos princiacutepios gerais
somada agrave deliberaccedilatildeo dos fatos particulares O homem que natildeo possui o senso das peculiaridades
inerentes a cada situaccedilatildeo natildeo poderaacute ser prudente Caso detenha somente o entendimento dos
primeiros princiacutepios ou como proceder em uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica seraacute um homem versado
no saber teoacuterico Este tipo de conhecimento pode ser aprendido por meio do estudo207 Com a
prudecircncia somente eacute possiacutevel ter este tipo de ensino de modo parcial Uma vez que ela abarca as
206 RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Op cit p 240 207 O melhor exemplo disto satildeo as diversas ciecircncias ensinadas nas instituiccedilotildees de ensino formal universidadesescolas cursos etc
71
particularidades de cada caso esta virtude somente pode ser adquirida com a vivecircncia das mais
variadas situaccedilotildees ao longo da vida A importacircncia do conhecimento dos detalhes eacute asseverada por
Aristoacuteteles ao dizer que os jovens podem ser muitos bons nas ciecircncias mas somente os homens
experientes possuem a virtude da prudecircncia Conforme nos diz o Estagirita
[hellip] embora os moccedilos possam tornar-se geocircmetras (gewmetrikoi) matemaacuteticos(maqhmatikoi) saacutebios em mateacuterias que tais natildeo se acredita que exista um jovemdotado de sabedoria praacutetica (fronimoj) O motivo eacute que essa espeacutecie de sabedoriadiz respeito natildeo soacute aos universais mas tambeacutem aos particulares que se tornamconhecidos pela experiecircncia (e0mpeiriaj) Ora um jovem carece de experiecircnciaque soacute o tempo pode dar (neoj d e1mpeiroj ou0k e1stinrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] Que a sabedoriapraacutetica natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico eacute evidente porque ela seocupa como jaacute se disse com o fato particular imediato visto que a coisa a fazer eacutedesta naturezardquo208
Um exemplo claro da importacircncia da empeiria (e0mpeiria) refere-se agrave poliacutetica A realidade
do comando da poacutelis para direcionaacute-la agrave sua plenitude talvez seja o maior desafio para o homem
prudente Afinal existe uma imensa variedade de circunstacircncias a serem enfrentadas que exigem
decisotildees acertadas para natildeo levarem a cidade-estado agrave derrocada Diante deste contexto natildeo eacute
prudente deixar os rumos da poliacutetica estatal sob o comando de homens inexperientes Por isso
Aristoacuteteles afirma que os negoacutecios puacuteblicos natildeo satildeo para os jovens pois estes ainda natildeo possuem
competecircncia suficiente para este tipo de lideranccedila devido agrave sua falta de conhecimento praacutetico209 Na
visatildeo aristoteacutelica a poliacutetica necessita tanto do saber teoacuterico para determinar os fins quanto do saber
praacutetico para alcanccedilar estes fins atraveacutes das contingecircncias com as quais a poacutelis se defronta
Naturalmente o conhecimento das peculiaridades do mundo poliacutetico natildeo eacute a uacutenica realidade que
serve como ilustraccedilatildeo da importacircncia da empeiria Logo o que se deseja exemplificar eacute que a
funccedilatildeo da empeiria consiste em harmonizar estes dois saberes
Na Metafiacutesica Aristoacuteteles tambeacutem descreve esta relaccedilatildeo entre a experiecircncia e o saber
teoacuterico Seu argumento eacute ilustrado com uma comparaccedilatildeo com as artes A experiecircncia eacute uma etapa
do ato de produzir um objeto qualquer Mas a maestria eacute alcanccedilada somente apoacutes a aprendizagem
do conhecimento da teoria por traacutes da produccedilatildeo Eacute o aprendiz que fabrica algo sem necessariamente
saber a causa da peccedila ser feita daquele jeito O mestre a produz e tambeacutem conhece o porquecirc da
208 EacuteN VI 1142a 12-15 e 22-23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106-107209 Cf EacuteN VI 1095a 3-5 Ibidem p 10
72
peccedila ser feita de uma determinada forma e natildeo de outra para que seja perfeita 210 De acordo como o
Estagirita
A experiecircncia (e0mpeiria) parece um pouco semelhante agrave ciecircncia e a arte Comefeito os homens adquirem ciecircncia (e0pisthmh) e arte (texnh) por meio daexperiecircncia A experiecircncia como diz Polo produz a arte enquanto a inexperiecircncia[falta de experiecircncia] produz o puro acaso [sorte] A arte se produz quando demuitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral (kaqolou genhtai) euacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantes Por exemplo o ato dejulgar que determinado remeacutedio fez bem a Caacutelias que sofria de certa enfermidadee que tambeacutem fez bem a Soacutecrates e a muitos outros indiviacuteduos eacute proacuteprio daexperiecircncia ao contraacuterio o ato de julgar que a todos esses indiviacuteduos reduzidos agraveunidade segundo a espeacutecie que padeciam de certa enfermidade determinadoremeacutedio fez bem (por exemplo aos fleumaacuteticos aos biliosos e aos febris) eacute proacuteprioda arteOra em vista da atividade praacutetica a experiecircncia em nada parece diferir da arteantes os empiacutericos tecircm mas sucesso do que os que possuem a teoria sem praacutetica Ea razatildeo disso eacute a seguinte a experiecircncia eacute conhecimento dos particulares enquantoa arte eacute conhecimento dos universais ora todas as accedilotildees e as produccedilotildees referem-seao particular De fato o meacutedico natildeo cura o homem a natildeo ser acidentalmente mascura Caacutelias ou Soacutecrates ou qualquer outro indiviacuteduo que leva um nome como elesao qual ocorra ser homem Portanto se algueacutem possui a teoria sem experiecircncia econhece o universal mas natildeo conhece o particular que nele estaacute contido muitasvezes erraraacute o tratamento porque o tratamento se dirige justamente ao indiviacuteduoparticularTodavia consideramos que o saber e o entender sejam mais proacuteprios da arte do queda experiecircncia e julgamos os que possuem a arte mais saacutebios do que os que soacutepossuem a experiecircncia na medida em que estamos convencidos de que a sapiecircnciaem cada um dos homens corresponda agrave sua capacidade de conhecer E isso porqueos primeiros conhecem a causa enquanto os outros natildeo a conhecem Os empiacutericosconhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outrosconhecem o porquecirc e a causa211
A prudecircncia eacute o equiliacutebrio entre a razatildeo teoacuterica e a razatildeo praacutetica Este equiliacutebrio somente eacute
ganho por meio da experiecircncia Esta uacuteltima eacute o ponto intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte A
experiecircncia eacute o uacutenico caminho para o aprendizado de como aplicar corretamente os princiacutepios
gerais traccedilados ou apreendidos pelo saber teoacuterico nas situaccedilotildees particulares Ou seja a sabedoria
praacutetica somente pode ser treinada e com isso aprendida no proacuteprio exerciacutecio de decidir qual a
melhor opccedilatildeo sob variadas condiccedilotildees A natureza da prudecircncia natildeo permite que ela seja ensinada
como um conteuacutedo de matemaacutetica A vivecircncia (experiecircncia) das situaccedilotildees eacute que forja o homem para
210 Como exemplo desta relaccedilatildeo entre saber teoacuterico saber praacutetico e experiecircncia pode-se imaginar um engenheiroautomotivo e um teacutecnico em mecacircnica de automoacuteveis O primeiro conhece a ldquociecircnciardquo por traacutes da teacutecnica enquanto osegundo apenas sabe a proacutepria teacutecnica em si Mas caso o engenheiro apenas conheccedila a ldquociecircnciardquo mas natildeo possua aexperiecircncia em consertar automoacuteveis sua accedilatildeo ficaraacute defasada Natildeo atingiraacute nenhum resultado posto que eacute inoacutecua suaaccedilatildeo 211 Metafiacutesica 981a 1-30 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 5
73
que consiga sopesar seus atos e escolhas ao considerar todos os elementos envolvidos no conjunto
das circunstacircncias212 Aliaacutes eacute um fato da vida humana que em geral a ldquoforccedilardquo eacute a caracteriacutestica
marcante nos jovens enquanto a sabedoria praacutetica pertence aos mais velhos Sobre esta
constataccedilatildeo Aristoacuteteles a sintetiza na Poliacutetica ldquo[hellip] A natureza daacute vigor agrave juventude e a prudecircncia
a uma idade mais avanccedilada [hellip]rdquo213 Dessa forma eacute a ldquoexperiecircncia de vidardquo - o confronto com as
situaccedilotildees - que faz o homem adquirir a virtude da prudecircncia Isto porque ele torna-se mais apto a
realizar deduccedilotildees e decidir melhor para chegar a conclusotildees (imperativos) de como agir melhor nas
diversas situaccedilotildees
Pierre Aubenque descreve que a experiecircncia aristoteacutelica eacute intermediaacuteria entre a sensaccedilatildeo e a
ciecircncia Ela jaacute eacute um tipo de conhecimento baseado na observaccedilatildeo dos particulares Ademais existe
uma caracteriacutestica importante na sabedoria praacutetica adquirida pela experiecircncia a de ser singular e
insubstituiacutevel214 Eacute a partir deste olhar atento sobre os detalhes acerca das coisas e pessoas e em
especial o exemplo de homens prudentes eacute que o jovem vai delineando sua vida de forma
prudente
A partir desta anaacutelise sobre a relaccedilatildeo entre saber teoacuterico o saber praacutetico e a experiecircncia eacute
possiacutevel vislumbrar o que eacute a orthos loacutegos (o0rqoj logoj) A reta razatildeo tambeacutem chamada de justa
razatildeo razatildeo correta ou regra correta eacute o paracircmetro correto da accedilatildeo a ser seguida pelo homem em
qualquer situaccedilatildeo para atingir um fim moralmente bom A mediania das virtudes morais eacute
determinada por esta razatildeo Conforme nos mostra Aristoacuteteles quando se trata da accedilatildeo humana o
cerne da razatildeo praacutetica eacute a concordacircncia entre o desejo correto e o raciociacutenio verdadeiro215Isso
significa que a recta ratio a partir da compreensatildeo dos primeiros princiacutepios consegue deduzir de
modo certo e coerente proposiccedilotildees no campo da ciecircncia e da eacutetica Deste modo eacute possiacutevel perceber
a ldquocorreta medida das coisasrdquo discernir corretamente e agir conforme o bom entendimento das
situaccedilotildees
A empeiria eacute essencial para o aprimoramento da reta razatildeo Por isso o desenvolvimento da
prudecircncia necessita de tempo A experiecircncia aperfeiccediloa o aprendizado de decidir e eacute fundamental
para a consolidaccedilatildeo das virtudes morais Conforme vimos o homem prudente reuacutene estas
condiccedilotildees ele deveria ser considerado como o homem dotado de virtudes morais216 Tambeacutem
conhece os princiacutepios universais para serem aplicados em cada caso Com a experiecircncia adquirida
com o tempo ele consegue rapidamente identificar no decorrer das circunstacircncias dois elementos
212 Cf EacuteN VI 1109a 26-29 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37 Estes elementos a serem observadosforam citados por Aristoacuteteles as pessoas envolvidas o momento a medida (quantidadeintensidade) e a maneira certa 213 Poliacutetica VII 1329a 16 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Op Cit p 156214 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 97- 98215 Cf EacuteN VI 1139a 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102216 Cf Capiacutetulo II item 24 O homem virtuoso
74
i) os meios para atingir os resultados (fins) e ii) quais os meios e os fins moralmente corretos Natildeo
pode haver uma dissonacircncia entre atos e fins na conduta Eacute interessante recordar que os fins satildeo
provenientes do desejo Por isso as virtudes morais satildeo necessaacuterias para fomentar os desejos nobres
para que o homem tenha apreccedilo por fins corretos A prudecircncia atuaraacute nos meios certos para alcanccedilar
estes fins Neste sentido o homem prudente por ter as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter
desejaraacute o que eacute bom e por ter a virtude intelectual da prudecircncia desenvolvida saberaacute discernir os
melhores meios para atingir os fins nobres Dessa forma ele estaacute mais apto que os outros para agir
em consonacircncia com a reta razatildeo
Sobre a empeiria o comentaacuterio de Satildeo Tomaacutes de Aquino reafirma a posiccedilatildeo aristoteacutelica que
somente o tempo a experiecircncia e o ensino permitem o florescimento da virtude intelectual da
prudecircncia De acordo com o descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] o Filoacutesofo diz que ldquoa virtude nasce e cresce principalmente pelo ensinamentoeacute por isso que ela requer experiecircncia e tempordquo Ora a prudecircncia eacute uma virtudeintelectual como se explicou anteriormente Logo natildeo somos prudentesnaturalmente mas graccedilas ao ensinamento e agrave experiecircncia Respondo Como estaacute claro pelo que foi dito antes a prudecircncia inclui oconhecimento dos universais e tambeacutem dos singulares que se devem fazer aosquais aplica os princiacutepios universais[ hellip] e como diz o Filoacutesofo ldquoA vidaespeculativa eacute melhor que a humanardquo Mas os princiacutepios universais posterioresseja da razatildeo especulativa seja da razatildeo praacutetica natildeo satildeo naturais Satildeo descobertospela experiecircncia ou pela instruccedilatildeo217
Diante do exposto a pergunta inicial de como um homem se torna prudente eacute respondida A
virtude da prudecircncia eacute adquirida ao longo do tempo por meio da empeiria e do aprendizado de
como aplicar este saber praacutetico no mundo contingente A prudecircncia permite ao homem apreender agrave
justa razatildeo E esta eacute a proacutepria prudecircncia em relaccedilatildeo agrave conduta218As palavras de W D Ross
sintetizam bem o conceito da reta razatildeo ldquoA regra correcta consiste numa regra obtida por uma
anaacutelise deliberativa do homem prudente a qual o informa de que o fim da vida humana seraacute melhor
atingido a partir de certas accedilccedilotildees intermeacutedias entres os extremos A virtude moral consiste na
217 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed SatildeoPaulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 610 Summa Theologiae II-II q 47 a15 ldquo[] quod philosophus dicit in II Ethicquod virtus intellectualis plurimum ex doctrina habet et generationem et augmentum ideo experimento indiget ettempore Sed prudentia est virtus intellectualis ut supra habitum est Ergo prudentia non inest nobis a natura sed exdoctrina et experimento Sed alia principia universalia posteriora sive sint rationis speculativae sive practicae nonhabentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti vel per disciplinam Respondeo dicendum quod sicut ex praemissis patet prudentia includit cognitionem et universalium et singulariumoperabilium ad quae prudens universalia principia applicat Quantum igitur ad universalem cognitionem eadem ratioest de prudentia et de scientia speculativa [] ut enim philosophus dicit in X Ethic vita quae est secundumspeculationem est melior quam quae est secundum hominem Sed alia principia universalia posteriora sive sintrationis speculativae sive practicae non habentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti velper disciplinam[hellip]rdquo 218 Cf EacuteN VI 1144b 25-27 Ibidem p 113
75
obediecircncia a uma tal regrardquo219 Em suma ela eacute a referecircncia raciocinada que indica que algumas
accedilotildees nos conduzem de modo mais acertado agrave eudaimonia enquanto outras natildeo
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia do ato de deliberar e decidir Mas a decisatildeo
eacute composta por elementos que se corretamente observados fazem o homem realizar uma boa
decisatildeo Estes elementos estatildeo relacionados entre si e satildeo o desejo a escolha e a deliberaccedilatildeo No
proacuteximo toacutepico os estudaremos de forma mais detalhada
34 Desejo (o1recij) Deliberaccedilatildeo (bouleusij e Escolha (proairesij)
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a razatildeo praacutetica que direciona a accedilatildeo humana para o bem
Para que este direcionamento seja correto e consiga ser efetivo na conduccedilatildeo da accedilatildeo o homem
prudente deve fazer uma deliberaccedilatildeo (bouleusij) que o permite realizar uma escolha
(proairesij) a fim de que sua accedilatildeo seja adequada agrave situaccedilatildeo Logo o processo decisoacuterio inicia-se
no ato de deliberar depois na escolha e finda com a accedilatildeo propriamente dita220
O que eacute a deliberaccedilatildeo Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles faz uma descriccedilatildeo das
caracteriacutesticas da bouacuteleusis Ao final o conceito torna-se claro A deliberaccedilatildeo somente eacute exercida
naquilo que eacute mutaacutevel Ningueacutem delibera sobre o que eacute necessaacuterio eterno e invariaacutevel As coisas
que possuem estas qualidades natildeo satildeo objeto de deliberaccedilatildeo Visto que natildeo satildeo factiacuteveis de
mudanccedila natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo humana O ato de deliberar somente visa aquilo que eacute
possiacutevel de ser atingido pela accedilatildeo do proacuteprio homem E tudo o que eacute realizado por meio da accedilatildeo
pode ter resultados incertos Afinal lidar com as contingecircncias eacute ldquomanejarrdquo as probabilidades de
erro ou acerto pois as variaacuteveis das situaccedilotildees podem mudar a cada momento Observa-se por
exemplo o campo da poliacutetica da economia da medicina dentre inuacutemeros outros Cada decisatildeo
deve ser tomada a partir das vaacuterias mudanccedilas circunstancias visando atingir o fim determinado
Neste quadro de incerteza parte do resultado por oacutebvio natildeo todo depende da accedilatildeo realizada a
partir da boa ou maacute deliberaccedilatildeo Dessa forma a deliberaccedilatildeo eacute a razatildeo praacutetica que tem de ponderar
perante o incerto com a maacutexima exatidatildeo possiacutevel Conforme nos mostra Aristoacuteteles
219 ROSS W D Aristoacuteteles Op cit p 226220 A bouacuteleusis e proairesis satildeo descritas por Aristoacuteteles tanto no livro III quanto no livro VI da Eacutetica a NicocircmacoNo decorrer da explicaccedilatildeo sobre estas duas fases da decisatildeo citaremos os dois livros Eacute interessante notar que o livroVI muitas vezes resume aspectos sobre a deliberaccedilatildeo e a escolha estudados anteriormente no livro III Este fatoocorre porque ao analisar a prudecircncia no livro VI o Estagirita coloca a deliberaccedilatildeo e a escolha em um patamar deexcelecircncia O homem prudente eacute aquele que delibera bem e escolhe bem
76
Eacute de presumir que devamos chamar objeto de deliberaccedilatildeo natildeo agravequilo que umneacutescio ou um louco deliberaria mas agravequilo sobre o que pode deliberar um homemsensato (nou~~n e1xwn) Ora sobre coisas eternas ningueacutem delibera por exemplosobre o universo material ou sobre a incomensurabilidade da diagonal com o ladodo quadrado [] Deliberamos sobre as coisas que estatildeo ao nosso alcance e podemser realizadas e essas satildeo efetivamente as que restam Porque como causasadmitimos a natureza a necessidade o acaso e tambeacutem a razatildeo e tudo quedepende do homem Ora cada classe de homem delibera sobre as coisas quepodem ser realizadas pelos seus esforccedilos [] as coisas que satildeo realizadas pelosnossos esforccedilos mas nem sempre do mesmo modo essas satildeo objetos dedeliberaccedilatildeo os problemas de tratamento meacutedico e de comeacutercio por exemplo221
O ato de deliberar envolve a observaccedilatildeo de coisas que ocorrem normalmente de uma certa
maneira Estas situaccedilotildees costumeiras favorecem o acerto quando deliberamos e agimos sobre elas
Entretanto natildeo significa que os resultados seratildeo necessariamente os esperados De acordo com
Aristoacuteteles ldquoDelibera-se a respeito de coisas que comumente acontecem de certo modo mas cujo
resultado eacute obscuro e daquelas em que este eacute indeterminado E nas coisas de grande monta
tomamos conselheiros por natildeo termos confianccedila em nossa capacidade de decidirrdquo222 A tiacutetulo de
ilustraccedilatildeo um meacutedico pode atender vaacuterios pacientes com a mesma doenccedila e receitar o remeacutedio
apropriado que comprovadamente curou a muitos Mas nada certifica que o remeacutedio poderaacute curar
sempre todos os pacientes Um raciociacutenio anaacutelogo pode ser aplicado a um time de basquete ou
nataccedilatildeo As accedilotildees satildeo realizadas com base em deliberaccedilotildees derivadas de observaccedilotildees do histoacuterico
do proacuteprio time e dos adversaacuterios As chances podem ser maximizadas para a vitoacuteria ainda assim o
resultado eacute indeterminado Por isso o Estagirita adverte que determinados assuntos devem ser
deliberados em conjunto para que haja uma anaacutelise mais acurada dos fatos
A deliberaccedilatildeo eacute a escolha dos meios para atingir os fins Caso haja vaacuterios meios que levam a
um mesmo resultado seraacute escolhido o meio mais eficaz Isso significa que em cada situaccedilatildeo o
homem prudente delibera sobre quais os melhores meios e como utilizaacute-los da melhor maneira
Cita-se o texto da Eacutetica a Nicocircmaco
Natildeo deliberamos acerca dos fins mas a respeito de meios (proj ta telh) Ummeacutedico por exemplo natildeo delibera (bouleuetai) se haacute de curar ou natildeo nem umorador se haacute de persuadir nem um estadista (politikoj) se haacute de implantar aordem puacuteblica nem qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade Datildeo afinalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcanccedilaacute-la e separece poder ser alcanccedilada por vaacuterios meios procuram o mais faacutecil e o mais eficazse for um soacute examinam como seraacute alcanccedilada por ele e por que outro meioalcanccedilar esse primeiro ateacute chegar ao primeiro princiacutepio que na ordem dedescobrimento eacute o uacuteltimo223
221 EacuteN III 1112a 20-35 e 1112b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45222 EacuteN III 1112b 8-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46223 EacuteN III 1112b 13-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46
77
Na dimensatildeo moral o aprimoramento do homem prudente eacute realizado pela consolidaccedilatildeo das
virtudes morais Na dimensatildeo da racionalidade praacutetica se traduz na sua capacidade de decidir cada
vez melhor ao passar pelas etapas da deliberaccedilatildeo e da escolha Quanto melhor for a deliberaccedilatildeo e a
escolha mais aperfeiccediloada seraacute a virtude da prudecircncia Neste sentido apoacutes a exposiccedilatildeo do ato de
deliberar estudaremos a escolha
Para uma melhor compreensatildeo do ato de escolher eacute preciso descrever brevemente a ideia de
voluntariedade e involuntariedade das accedilotildees humanas De modo geral Aristoacuteteles distingue o ato
voluntaacuterio e o involuntaacuterio O primeiro consiste na accedilatildeo como resultado de uma escolha do homem
Na accedilatildeo voluntaacuteria o homem deve estar consciente das particularidades de cada circunstacircncia224 e
no domiacutenio de suas paixotildees para sua accedilatildeo ser tida como voluntaacuteria225 O segundo ocorre quando o
homem ignora todos ou alguns aspectos das circunstacircncias aleacutem de natildeo possuir o controle de suas
paixotildees A ignoracircncia e falta de autodomiacutenio (a0krasia) o impede de alcanccedilar o fim esperado
Desta forma uma accedilatildeo para ser declarada voluntaacuteria ou involuntaacuteria depende do momento que eacute
realizada226 sob qual circunstacircncia ocorreu o ato o grau de conhecimento das particularidades e se
houve ou natildeo o controle dos paixotildees
Conforme exposto o domiacutenio de si ou a falta dele afeta as deliberaccedilotildees e as escolhas que
um homem pode fazer Por isso o controle dos desejos eacute fundamental para a consecuccedilatildeo de uma
boa escolha Isto porque o desejo faz parte da faculdade sensitiva do homem Eacute um indutor da accedilatildeo
humana que nos impele para a busca de diversos fins e entre eles o fim uacuteltimo a eudaimonia
Cada desejo varia de acordo com o tipo o apetite () eacute atraiacutedo por um determinado objeto e
o impulso ()227 por outro Devido a esta realidade inerente agrave natureza humana Aristoacuteteles
descreve que a accedilatildeo e a verdade satildeo regidas pela sensaccedilatildeo (ai1sqhsij) intelecto (nou~~j)228 e desejo
(o1recij) embora a sensaccedilatildeo natildeo seja o princiacutepio da accedilatildeo por natildeo ser fruto de nenhum tipo de
processo racional Conforme diz Aristoacuteteles
ldquoA virtude de um coisa eacute relativa ao seu funcionamento (e1rgon) apropriado Orana alma existem trecircs coisas que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo(ai1sqhsij) razatildeo (nou~~j) e desejo (o1recij) Destas trecircs a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepiode nenhuma accedilatildeo bem o mostra o fato de os animais inferiores possuiacuteremsensaccedilatildeo mas natildeo participarem da accedilatildeordquo229
224 Cf EacuteN III 1111a 21-25 Ibidem p 43225 Cf EacuteN III 1110a 1-4 Ibidem p 41226 Cf EacuteN III 1110a 15 Ibidem p 41227 O thumos tambeacutem eacute traduzido pelo termos ldquoirardquo ldquofuacuteriardquo ldquocoacutelerardquo De todo modo eacute um intenso descontentamentoprovocado por algo que faz o homem reagir a esse fato desencadeador 228 Acerca da dificuldade de traduccedilatildeo deste termo grego conferir nota de rodapeacute nordm 115229 EacuteN VI 1139a 17-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102
78
O desejo eacute uma atraccedilatildeo que alguma coisa causa em noacutes Podemos ser atraiacutedos por qualquer
coisa o que implica que podemos querer coisas que podem ser boas ou ruins aleacutem de nos
impulsionar a realizarmos accedilotildees moralmente boas ou maacutes para conseguir o objeto desejado Daiacute a
importacircncia das virtudes morais para ordenar os diversos desejos para que sejam orientados para a
retidatildeo moral Desta maneira os retos desejos facilitam que o homem prudente realize escolhas
voltadas para o bem
Esta relaccedilatildeo entre desejo escolha e virtude eacute percebida quando Aristoacuteteles conceitua a
virtude moral como uma disposiccedilatildeo para uma escolha (e3cij proairetikh) de accedilotildees e paixotildees
pautadas pela mediania230 A virtude moral predispotildee de forma beneacutefica o homem agrave fazer boas
escolhas relacionadas agrave vida de forma geral ou seja ao fins mais importantes No sentido aqui
descrito as escolhas bem feitas satildeo o resultado de uma clareza de visatildeo que as virtudes morais
proporcionam ao homem prudente que sabiamente escolhe os melhores meios para atingir os fins
Isto tambeacutem eacute apontado na Eacutetica a Eudemo ao mostrar que a escolha eacute realizada visando o bem
viver A nobreza de conduta eacute o fator orientador de todas as escolhas De acordo com a Eacutetica a
Eudemo
Uma vez definido em relaccedilatildeo a isso que todos os capacitados a viver de acordocom a preacutevia escolha deveriam visar algo a favor de viver bem e nobremente seja ahonra a reputaccedilatildeo a riqueza ou a cultura em funccedilatildeo do que orientariam toda a suaconduta (pois natildeo ter a proacutepria vida organizada em vista de algum fim eacute um clarosinal de grande loucura) conclui-se que eacute maximamente necessaacuterio comeccedilar por sedecidir pessoalmente nisso natildeo agindo nem apressada nem negligentemente emqual das coisas que nos dizem respeito estaacute encerrada a vida boa e quais satildeo ascondiccedilotildees imprescindiacuteveis que possibilitam a noacutes seres humanos entrarmos deposse dessa vida 231
Vimos que o homem deve orientar a sua vida para a eudaimonia sendo esta o fim uacuteltimo
que eacute desejado por todos Para que este desejo de felicidade natildeo permaneccedila no campo da
imaginaccedilatildeo satildeo necessaacuterias fazer escolhas concretas O ato de escolher eacute uma etapa do processo de
decisatildeo realizado por cada homem O homem prudente realiza este ato com maestria pois o ato de
escolher eacute de fundamental importacircncia para a consecuccedilatildeo de uma vida feliz Aquele que escolhe
mal dificilmente seraacute feliz Assim sendo devido a sua importacircncia para a formaccedilatildeo do phronimos
adentraremos na ideia aristoteacutelica de proairesis (proairesij)
230 Cf EacuteN II 1106b 36 Ibidem p 33231 EacuteE I 1214b 7-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 47
79
O que eacute a proiaresis A proiaresis eacute um ato de livre escolha232 Poreacutem nem todos os atos
voluntaacuterios satildeo decorrentes de uma escolha As crianccedilas e os animais satildeo capazes de realizarem atos
voluntaacuterios mas natildeo de realizar escolhas233pois satildeo atos efetivados sem o uso da razatildeo No livro III
da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a proiaacuteresis como uma accedilatildeo voluntaacuteria que envolve o
raciociacutenio e algum processo do intelecto sendo precedida pela deliberaccedilatildeo234 Logo a escolha
pressupotildee o uso da razatildeo que controla o desejo e eacute feita com um processo de raciociacutenio que procura
analisar as melhores opccedilotildees
Por envolver a razatildeo a proairesis difere do apetite () do impulso () da
vontade () e da opiniatildeo (doca) O apetite e o impulso natildeo envolvem nenhum tipo de
processo racional por isso natildeo podem ser considerados como escolhas Aleacutem disto o apetite
envolve o que eacute agradaacutevel (prazeroso) e o desagradaacutevel (doloroso) A proairesis natildeo depende destes
dois fatores Afinal o homem pode escolher tanto um quanto outro destes aspectos conforme o
resultado a ser obtido Em relaccedilatildeo agrave vontade por ser uma espeacutecie de desejo mais aproximada da
racionalidade nos fazendo tender para o bem auxilia nas aspiraccedilotildees humanas mais elevadas
Entretanto muitas vezes a vontade quer agravequilo que eacute maior que a capacidade do homem de
alcanccedilaacute-la Satildeo aspiraccedilotildees irrealistas O exemplo utilizado por Aristoacuteteles eacute a imortalidade Pode-se
desejar ser imortal mas isto eacute inantingiacutevel pela accedilatildeo humana A vontade tambeacutem pode nos levar a
desejar algo fora do nosso poder decisoacuterio Como desejar que o time desportivo que torcemos ganhe
o campeonato Assim os desejos provenientes da vontade podem aspirar a qualquer coisa poreacutem
para serem atingiacuteveis devem ser realistas As escolhas para serem plausiacuteveis devem estar estar no
acircmbito do que a accedilatildeo humana pode realizar Outras aspiraccedilotildees mais tangiacuteveis como ter sauacutede ter
paz ser feliz etc satildeo o fins (objetivos) gerais que podem ser plenamente alcanccedilados Mas para
atingiacute-los eacute necessaacuterio escolher os meios Essa eacute a funccedilatildeo do ato de escolher propriamente dito
Logo a proairesis visa os meios a serem utilizados e natildeo os fins
A proairesis natildeo eacute opiniatildeo Primeiro eacute possiacutevel opinar acerca de quaisquer coisas que
estejam em nosso poder alcanccedilaacute-las e tambeacutem sobre o que estaacute longe disto Segundo a opiniatildeo eacute
uma etapa inicial do processo de conhecimento sendo classificada como verdadeira ou falsa em
suas assertivas Por seu lado a proairesis refere-se agrave accedilatildeo humana podendo ser adjetivada como
boa ou maacute Esta diferenccedila pode ser notada quando observamos homens que opinam corretamente
acerca de vaacuterios assuntos poreacutem fazem peacutessimas escolhas ao agirem ou homens que escolhem
bem mas erram em suas opiniotildees Normalmente as escolhas ruins satildeo feitas devido aos viacutecios
232 Cf EacuteN III 1111b 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 44 Conferir tambeacutem EacuteE II 1225b 1-18Eacutetica a Eudemo Op cit p 95233 A praacutexis humana eacute caracterizada pela accedilatildeo composta por um princiacutepio racional O raciociacutenio deve estar semprepresente Por isso animais natildeo ldquoagemrdquo no sentido aqui descrito 234 Cf EacuteN III 1111b 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45
80
Uma conduta viciosa influencia negativamente o raciociacutenio necessaacuterio para realizar uma boa
escolha Afinal os viacutecios satildeo desejados pelos homens incontinentes e pelos maldosos Observa-se
que a proairesis estaacute no campo da sabedoria praacutetica Em suma a opiniatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo pouco
cuidadosa dos fatos enquanto a proairesis eacute um ato que compotildee a accedilatildeo De acordo com
Aristoacuteteles
Ora com a opiniatildeo em geral natildeo haacute ningueacutem que a identifique [] Com efeito porescolher o que eacute bom ou mau somos homens de um determinado caraacuteter mas natildeo osomos por sustentar esta ou aquela opiniatildeo [] E tambeacutem escolhemos o quesabemos ser melhor (proairoumeqa men a4 malista i1smen a0gaqa o1nta) tantoquanto nos eacute dado sabecirc-lo mas opinamos sobre o que natildeo sabemos exatamente(docazomen de a4 ou0 panu i1smen) e natildeo satildeo as mesmas pessoas que passam porfazer as melhores escolhas e sustentar as melhores opiniotildees mas de algumas se dizque tecircm excelentes opiniotildees e no entanto padecem de um viacutecio (kakian) qualquerque as impede de escolher bem (kakian d airei=sqai ou0x a4 deirsquo e1mpeiroj ou0k e1stin =) 235
O Estagirita na sua obra Eacutetica a Eudemo assevera que a opiniatildeo e a vontade dizem respeito
aos fins enquanto a escolha refere-se aos meios236 A escolha eacute uma opccedilatildeo preferencial de uma
coisa e natildeo de outra Esta opccedilatildeo somente pode ser feita a partir da anaacutelise e deliberaccedilatildeo Por isso o
ato de escolher comeccedila na opiniatildeo deliberada (d chj bouleutikh=joacutej )237 Neste caso a opiniatildeo
significa o iniacutecio do exame das circunstacircncias sendo uma fase da deliberaccedilatildeo Contudo a escolha
natildeo eacute somente a opiniatildeo deliberada mas tambeacutem eacute composto pela vontade238 Por isso o filoacutesofo de
Estagira assevera que a escolha tambeacutem eacute um desejo deliberativo Esta uacuteltima noccedilatildeo de desejo e
deliberaccedilatildeo eacute destacada na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] a escolha ou eacute raciociacutenio desiderativo ou desejo
raciocinativo e a origem de uma accedilatildeo dessa espeacutecie eacute um homemrdquo239 Deste modo a escolha eacute
resultado do desejo deliberado ou envolve algum procedimento intelectual240
Descritas as caracteriacutesticas de cada uma entatildeo qual a diferenccedila entre proiaresis (escolha) e a
bouacuteleusis (deliberaccedilatildeo) Ambas se referem aos meios mas natildeo aos fins A distinccedilatildeo estaacute na
amplitude de visatildeo sobre o que deve ser feito A escolha diz respeito agravequilo que eacute mais imediato e
ldquoconcretordquo ou seja o plenamente operacionalizaacutevel em um dado instante Eacute a finalizaccedilatildeo da
deliberaccedilatildeo Pierre Aubenque define bem este caraacuteter da escolha eacute o momento da decisatildeo do voto
ela torna funcional a deliberaccedilatildeo e por isso pode pocircr-lhe um fim241 A deliberaccedilatildeo eacute o ato anterior agrave
escolha eacute a inteligecircncia ponderando e definindo qual o rumo a ser seguido A escolha eacute o desejo
235 EacuteN III 1112a 1-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45 236 Cf EacuteE II 1226a 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 97237 Cf EacuteE II 1226b 1-10 Idem p 98238 Cf EacuteE II 1226b 20-25 Ibidem p 99239 EacuteN VI 1139b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102 240 Cf nota de rodapeacute nordm 232241 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 196
81
deliberado das coisas Ou seja eacute o desejo ldquofiltradordquo pela razatildeo adquirindo a medida correta para
que possa ser alcanccedilado pela nossa proacutepria accedilatildeo No processo decisoacuterio a sequecircncia seguida eacute que
primeiro deliberamos depois escolhemos os meios de acordo com o que foi deliberado Neste ato
de escolher o desejo passa a estar em consonacircncia com a deliberaccedilatildeo De acordo com Aristoacuteteles
Eacute a mesma coisa aquela sobre que deliberamos e a que escolhemos (bouleuton dekai poraireton to au0to) salvo estar o objeto de escolha jaacute determinado jaacute queaquilo por que nos decidimos em resultado da deliberaccedilatildeo eacute o objeto da escolha (togar e0k th=j boulh=j kriqen proaireton e0stin) Efetivamente todos cessam deindagar como devem agir depois que fizeram voltar o princiacutepio motor a si mesmose agrave parte dirigente de si mesmos pois eacute essa que escolhe[]Sendo pois o objetoda escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes adeliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcanceporque apoacutes decidir em resultado de uma deliberaccedilatildeo desejamos de acordo com oque deliberamos (bouleutikh o1recij tw~~n e0f0 h9mi~~n) Consideremos pois comodescrita em linhas gerais a escolha estabelecida a natureza dos seus objetos e ofato de que ela diz respeito aos meios (poi=a e0sti kai o3ti tw~~n ta telh) 242
Como exemplo simples imaginemos esta cena eu tenho o desejo de cursar um mestrado
strictu sensu em outro paiacutes Este curso estaacute condizente com a felicidade (fim uacuteltimo) que almejo
Apoacutes uma deliberaccedilatildeo iacutentima e consultiva com outras pessoas procuro analisar os melhores meios
para me deslocar para outro paiacutes e me matricular no curso almejado Quais meios para chegar em
outro paiacutes O aviatildeo o trem o automoacutevel a peacute Qual o meio para me matricular e manter a estadia
A bolsa de estudos economias bancaacuterias etc E assim por diante a boa escolha indicaraacute os
melhores meios Portanto nota-se que a escolha deriva de um objetivo determinado pelo desejo em
seguida haacute a deliberaccedilatildeo para analisar os meios (natildeo eacute possiacutevel deliberar sem termos um propoacutesito
uma meta)243 e finalmente eacute realizada a escolha de qual eacute o melhor meio para operacionalizar a
consecuccedilatildeo do mestrado
Eacute possiacutevel haver erro na deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles responde afirmativamente que eacute possiacutevel o
homem incorrer em equiacutevocos no ato de deliberar A deliberaccedilatildeo envolve o conhecimento dos
universais e dos fatos particulares que satildeo adquiridos respectivamente por meio do ensino e da
experiecircncia244 O erro deliberativo ocorre quando haacute ignoracircncia dos dois aspectos ou de apenas um
deles Utilizamos o proacuteprio exemplo citado na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] o erro na deliberaccedilatildeo pode
versar tanto sobre o universal como sobre o particular isto eacute tanto eacute possiacutevel ignorar que toda a
aacutegua pesada eacute maacute como esta aacutegua aqui presente eacute pesadardquo245
242 EacuteN III 1113a 1-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46 Conferir tambeacutem EacuteE I 1226b 20-25ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99243 Cf EacuteE I 1226b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99244 Cf EacuteN VI 1141b 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106245 EacuteN VI 1142a 20-22 Idem p 108
82
A escolha e a deliberaccedilatildeo satildeo dois procedimentos fundamentais para que haja uma accedilatildeo
correta O homem prudente deve sempre atentar para fazer do melhor modo possiacutevel as
mencionadas operaccedilotildees do intelecto O bom exerciacutecio destes dois estaacutegios proporcionam uma
capacidade superior de decidir Por conseguinte as boas decisotildees contribuem para uma vida feliz
Dito isto passamos a analisar no proacuteximo toacutepico as chamadas trecircs virtudes intelectuais
menores Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia Portanto conveacutem a anaacutelise para
entendermos como se forma a excelecircncia do ato de decidir ou seja a proacutepria virtude da prudecircncia
35 As trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia (sunesij)
ponderaccedilatildeo (gnwmn)
As trecircs virtudes intelectuais menores satildeo a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia
(sunesij)246e ponderaccedilatildeo (gnwmn)247 Para se tornar prudente o homem precisa adquirir o domiacutenio
destas capacidades intelectuais Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia que possuem
trecircs funccedilotildees distintas A distinccedilatildeo ocorre conforme o segmento de realidade de prudecircncia a ser
examinado e discernido Deste modo estas virtudes satildeo tipos de operaccedilotildees intelectuais (raciociacutenios)
que consistem em estaacutegios do processo de anaacutelise das circunstacircncias
A primeira virtude intelectual eacute a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) Esta eacute o aperfeiccediloamento da
deliberaccedilatildeo No livro VI Aristoacuteteles nos mostra que a boa deliberaccedilatildeo consiste em uma
investigaccedilatildeo sobre um assunto em particular Ela envolve uma espeacutecie de caacutelculo consciente que
objetiva atingir o melhor resultado possiacutevel Deste modo a boa deliberaccedilatildeo eacute uma ponderaccedilatildeo que
atinge um alto grau de exatidatildeo porque analisa todas as variaacuteveis envolvidas em uma determinada
situaccedilatildeo tendo em vista uma finalidade boa
Ressalta-se que a boa deliberaccedilatildeo envolve uma ponderaccedilatildeo correta somada a um fim bom
Pois um homem pode acertar sua anaacutelise dos fatos e escolher corretamente os meios para atingir
um fim proveniente de um desejo que natildeo eacute bom Eacute o que ocorre com os homens incontinentes ou
maldosos Outro caso eacute o de desejar um fim bom mas natildeo alcanccedilaacute-lo por causa de um raciociacutenio
246 As traduccedilotildees do termo grego synesis satildeo variadas Alguns tradutores utilizam as palavras ldquodiscernimentordquo (E Bini2013 p 192) ldquoentendimientordquo (J Marias 1959 p 97) ldquointeligecircnciardquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p 109)ldquounderstandingrdquo (H Rackham 1996 p 155) Preferimos o termo ldquointeligecircnciardquo porque nos parece expressar melhor oconceito de synesis que significa a capacidade de aprender bem e por isso julgar bem as particularidades das diversassituaccedilotildees 247 As traduccedilotildees do termo grego gnome tambeacutem divergem entre si Alguns tradutores usam as palavras ldquoponderaccedilatildeordquo(E Bini 2013 p 192) ldquocomprensioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) ldquodiscernimentordquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p110) ldquoconsiderationrdquo (H Rackham 1996 p 156) Acreditamos que o termo ldquoponderaccedilatildeordquo traduz melhor o conceito degnome por este ser um ato de sopesar a situaccedilatildeo com o fim de atingir a equidade
83
errado Ambos os tipos natildeo satildeo consideradas como boas deliberaccedilotildees Desta forma a deliberaccedilatildeo
ideal eacute feita de uma anaacutelise correta visando fins corretos De acordo com Aristoacuteteles
Mas por outro lado a excelecircncia da deliberaccedilatildeo (eu0boulia boulh=j) envolveraciociacutenio [hellip] Mas a excelecircncia da deliberaccedilatildeo eacute certamente a deliberaccedilatildeocorreta [hellip] o homem incontinente (a0krathj) e o homem mau (fau=loj) seforem haacutebeis alcanccedilaratildeo como resultado do seu caacutelculo (logismou=) o quepropuseram a si mesmos de forma que teratildeo deliberado corretamente mas o queteratildeo alcanccedilado eacute um grande mal para eles (o0rqw~~j e1stai bebouleumenoj kakonde mega ei0lhfwj) Ora ter deliberado bem eacute considerado uma boa coisa pois eacuteessa espeacutecie de deliberaccedilatildeo correta que constitui a excelecircncia da deliberaccedilatildeo ndash istoeacute aquela que tende a alcanccedilar um bem (o0rqothj boulh=j eu0bouliampampa h9 a0gaqou=teuktikh)248
A boa deliberaccedilatildeo pode ser feita de forma mais lenta ou mais raacutepida Alguns assuntos
levaratildeo mais tempo de deliberaccedilatildeo outros necessitam de menos duraccedilatildeo Com a experiecircncia de
vida a deliberaccedilatildeo em muitos casos torna-se mais veloz Mas essencialmente a boa deliberaccedilatildeo
feita em um periacuteodo razoaacutevel para obter a melhor decisatildeo Devemos recordar que o homem
prudente percebe e aproveita o momento oportuno (kairoj) para agir Por isso uma deliberaccedilatildeo
muito lenta eacute um indicativo que ainda natildeo se atingiu a excelecircncia para atingir o bem Eacute o que o
Estagirita nos mostra ldquo[hellip] eacute possiacutevel alcanccedilaacute-lo [o bem] por uma longa deliberaccedilatildeo enquanto um
outro homem chega a ele rapidamente Por conseguinte no primeiro caso natildeo possuiacutemos ainda a
excelecircncia no deliberar que eacute a correccedilatildeo tanto no que toca ao fim como ao meio e ao tempordquo249
Logo a boa deliberaccedilatildeo requer o tempo correto para ser feita de forma cuidadosa para a escolha do
meio correto mas sem procrastinaccedilatildeo
Observa-se que a deliberaccedilatildeo natildeo eacute conhecimento cientiacutefico (e0pisthmh) E tambeacutem natildeo eacute
mera opiniatildeo (doca)250 A epiacutesteme versa sobre o necessaacuterio e o inalteraacutevel A doacutexa eacute uma
afirmaccedilatildeo referente aos fatos enquanto a deliberaccedilatildeo ainda eacute uma anaacutelise Agraves vezes a opiniatildeo eacute
correta na interpretaccedilatildeo de um fato De qualquer modo ao falarmos que a deliberaccedilatildeo pressupotildee
uma anaacutelise dos fatos estaacute impliacutecito um raciociacutenio analiacutetico sobre uma fato particular
Eacute interessante observar que a bouleacute (boulh) na histoacuteria da Greacutecia Antiga significa o
ldquoconselhordquo reunido Era uma reuniatildeo de cidadatildeos em cada cidade-estado grega para deliberar
sobre assuntos puacuteblicos relativos agrave poacutelis Na eacutepoca homeacuterica era a reuniatildeo de um rei com seus
248 EacuteN VI 1142b 16-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109 Conferir tambeacutem EacuteE II 1226b 10-12 Eacutetica a Eudemo Op cit p 98 (E Bini 2015) ldquoNingueacutem delibera quanto ao fim o qual estaacute fixado para todosDelibera-se contudo sobre o que conduz a ele se isto ou aquilo conduz a ele e supondo estar decidido se isto ouaquilo como seraacute produzidordquo Cf Magna Moralia 1199a 5-9 The Works of Aristotle Magna Moralia EthicaEudemia De Virtutibus et Vitiis Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford ClarendonPress 1915 (sem paacutegina)249 EacuteN VI 1142b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109250 EacuteN VI 1142b 8-10 Ibidem p 109
84
conselheiros Eacute desta noccedilatildeo de ldquoconselhordquo que Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar Aristoacuteteles
utiliza o vocaacutebulo eubulia251 e a considera uma virtude intriacutenseca agrave prudecircncia como o Estagirita
Conforme exposto na Suma Teoloacutegica
Em sentido contraacuterio a eubulia como diz o Filoacutesofo lsquoeacute a retidatildeo na deliberaccedilatildeorsquoMas a reta razatildeo aperfeiccediloa a virtude Logo a eubulia eacute virtude Como jaacute foi dito eacuteda razatildeo da virtude humana tornar bom o ato humano Entre os demais atos eacuteproacuteprio do homem deliberar porque implica uma busca conduzida pela razatildeorelativamente agrave accedilatildeo no que consiste a vida humana pois a via especulativa estaacuteacima do homem segundo o Filoacutesofo Ora a eubulia requer a bondade dadeliberaccedilatildeo De fato esta palavra eacute formada de eu que significa bem e de bouleacuteque significa conselho ou deliberaccedilatildeo como se dissesse o ato de bem deliberar ouantes o que aconselha bem Eacute pois evidente que a eubulia eacute uma virtudehumana252
Face ao exposto a boa deliberaccedilatildeo consiste em buscar compreender a realidade com todas
as suas variaacuteveis Esta compreensatildeo tem como objetivo alcanccedilar o maior grau de exatidatildeo possiacutevel
para aumentar a probabilidade de realizar uma escolha correta dos meios para atingir o fim
determinado O homem prudente ao realizar uma boa deliberaccedilatildeo analisa o conjunto das
circunstacircncias sempre com vistas a um fim nobre A boa deliberaccedilatildeo seleciona os meios que podem
ser alcanccedilados pela accedilatildeo Portanto a euboulia eacute o primeiro passo racional para obter a virtude da
prudecircncia
A inteligecircncia (sunesij) eacute a segunda virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles Eacute definida
como uma capacidade de aprender algo rapidamente O homem detentor desta virtude eacute algueacutem que
consegue assimilar e entender de modo ceacutelere o que satildeo as coisas e as relaccedilotildees entre estas Por
isso o homem inteligente possui uma maior propensatildeo a julgar corretamente qualquer conjuntura
No contexto do saber praacutetico a inteligecircncia assemelha-se agrave perspicaacutecia porque versa sobre a
habilidade de compreender com presteza o mundo que nos cerca Logo um homem perspicaz eacute um
homem inteligente
No acircmbito da accedilatildeo esta capacidade de aprender eacute referente aos assuntos possiacuteveis de
deliberaccedilatildeo e por isso pode gerar diversas visotildees diferentes Natildeo se trata de um aprendizado que se
refere agraves ciecircncias ou agravequilo que eacute necessaacuterio e eterno Natildeo se refere ao saber teoacuterico Tambeacutem eacute
251 A boa deliberaccedilatildeo tambeacutem eacute chamada de ldquobom conselhordquo na tradiccedilatildeo cristatilde252 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 637Summa Theologiae II-II q 51 a1 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoSed contra est quod eubulia estrectitudo consilii ut philosophus dicit in VI Ethic Sed recta ratio perficit rationem virtutis Ergo eubulia est virtusRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est de ratione virtutis humanae est quod faciat actum hominis bonumInter ceteros autem actus hominis proprium est ei consiliari quia hoc importat quandam rationis inquisitionem circaagenda in quibus consistit vita humana nam vita speculativa est supra hominem ut dicitur in X Ethic Eubulia autemimportat bonitatem consilii dicitur enim ab eu quod est bonum et boule quod est consilium quasi bona consiliatiovel potius bene consiliativa Unde manifestum est quod eubulia est virtus humanardquo
85
distinta de uma mera opiniatildeo dado que a synesis eacute uma inteligecircncia voltada para os aspectos
praacuteticos Ou seja ela diz respeito ao ldquoterritoacuteriordquo da accedilatildeo Esta virtude eacute a inteligecircncia em um grau
elevado que permite um aprendizado dos elementos envolvidos nas circunstacircncias Este fato auxilia
um julgamento correto de cada situaccedilatildeo
A synesis possui uma uacutenica funccedilatildeo que eacute o ato de julgar Poreacutem natildeo pode ser confundida
com a virtude da prudecircncia Na visatildeo aristoteacutelica a virtude da prudecircncia possui a funccedilatildeo de
comandar a maneira como o homem agiraacute visto que discerne o certo e o errado em relaccedilatildeo aos
meios A inteligecircncia restringe-se apenas a julgar do melhor modo possiacutevel os elementos
relacionados a cada situaccedilatildeo Com a compreensatildeo destes elementos a prudecircncia determinaraacute qual a
accedilatildeo a ser realizada Eacute o que nos diz Aristoacuteteles
Com efeito a inteligecircncia (sunesij) nem versa sobre as coisas eternas e imutaacuteveisnem sobre toda e qualquer coisa que vem a ser mas apenas sobre aquelas quepodem tornar-se assunto de duacutevidas e deliberaccedilatildeo (bouleusaito) Portanto osseus objetos satildeo os mesmos que os da sabedoria praacutetica (fronhsij) masinteligecircncia e sabedoria praacutetica natildeo satildeo a mesma coisa Esta uacuteltima emite ordensvisto que o seu fim eacute o que se deve ou natildeo se deve fazer (ti gar dei= prattein h9mh to teloj au0th=j e0stin) a inteligecircncia pelo contraacuterio limita-se a julgar(kritikh) Inteligecircncia eacute o mesmo que perspicaacutecia (eu0sunesia) e os homensinteligentes (sunetoi) o mesmo que homens perspicazes (eu0sunetoi)253
Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a virtude da synesis diz que ela eacute um juiacutezo reto
das accedilotildees particulares algo que tambeacutem faz a prudecircncia Mas esta uacuteltima comanda as accedilotildees para
que sejam feitas de modo ordenado para o bem254 A inteligecircncia por ser apenas uma correto juiacutezo
dos elementos particulares pode ser usada para fins ruins (maus) A inteligecircncia diferencia-se da
boa deliberaccedilatildeo e do saber teoacuterico Um homem pode deliberar bem ou dominar uma determinada
ciecircncia especulativa poreacutem isso natildeo significa ser um homem inteligente Deste modo o Aquinate
considera que o homem inteligente possui um bom senso das situaccedilotildees porque apreende as coisas
como satildeo em si mesmas Vejamos na Suma Teoloacutegica
Respondo A synesis implica um juiacutezo reto natildeo nas coisas de ordem especulativamas nas accedilotildees particulares que satildeo tambeacutem objeto da prudecircncia Tambeacutem comrelaccedilatildeo a esta palavra se diz em grego que alguns satildeo syneti isto eacute sensatos oueusyneti quer dizer homens de bom senso Ao contraacuterio satildeo chamados asynetiinsensatos aos que satildeo privados desta virtude Ora a diversidade de virtudes devecorresponder agrave diferenccedila de atos que natildeo se reduzem agrave mesma causa Com efeito eacuteevidente que a bondade da deliberaccedilatildeo e a bondade de juiacutezo natildeo se reduzem agrave
253 EacuteN VI 1143a 5-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109254 Cf TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642Summa Theologiae II-II q 51 a 3
86
mesma causa porque muitos satildeo de boa deliberaccedilatildeo mas natildeo satildeo de bom sensoisto eacute dotados de um julgamento reto Na ordem especulativa alguns investigambem pelo fato de terem uma razatildeo capaz de discorrer sobre coisas diversas o queparece proceder das disposiccedilotildees da imaginaccedilatildeo que pode formar facilmentediversas representaccedilotildees imaginaacuterias e no entanto agraves vezes natildeo sabem julgar bempor deficiecircncia do intelecto o que procede sobretudo da maacute disposiccedilatildeo do sensocomum que natildeo julga bem Por tudo isso se necessita aleacutem da eubulia de outravirtude que julgue bem a qual se chama synesis255
Essa apreensatildeo eacute melhor feita por um homem de virtudes morais Os viacutecios dificultam e agraves
vezes impedem compreender as coisas particulares da maneira correta Tomaacutes de Aquino compara
este homem virtuoso e inteligente a um espelho que reflete perfeitamente as coisas como satildeo O
intelecto natildeo sofre distorccedilatildeo no momento de apreender o que satildeo as coisas em si Isso ocorre
porque as virtudes morais favorecem um juiacutezo correto sobre o que eacute o melhor a ser desejado pelo
homem Logo providenciam que o intelecto acerte no julgamento das coisas pois um homem
viciado deseja aquilo que eacute errado o que o faz interpretar as coisas conforme seus viacutecios Nos diz
Satildeo Tomaacutes na Suma Teoloacutegica
Quanto ao 1ordm portanto deve-se dizer que o juiacutezo reto consiste em que a potecircnciacognoscitiva apreenda as coisas tais como satildeo em si mesmas Isto se daacute quandoestaacute bem disposta como um espelho em boas condiccedilotildees reproduz as imagens doscorpos como satildeo em si mesmos Mas se for um espelho mal disposto as imagensaparecem distorcidas e disformes A boa disposiccedilatildeo da potecircncia cognoscitiva parareceber as coisas como satildeo em si mesmas proveacutem radicalmente da natureza equanto agrave sua perfeiccedilatildeo depende do exerciacutecio do dom ou da graccedila E isso pode sedar de dois modos diretamente por parte da proacutepria potecircncia cognoscitiva que natildeoestaacute imbuiacuteda de concepccedilotildees depravadas mas verdadeiras e retas tal eacute a funccedilatildeoproacutepria da synesis como virtude especial E indiretamente pela boa disposiccedilatildeo dapotecircncia apetitiva em virtude da qual o homem emite um juiacutezo reto sobre o que eacutedesejaacutevel E assim os haacutebitos das virtudes morais influem sobre um bomjulgamento virtuoso a respeito dos fins enquanto que a synesis se ocupa mais dosmeios Quanto ao 2ordm deve-se dizer que nos maus pode se encontrar um juiacutezo reto somenteno plano universal poreacutem com respeito agrave accedilatildeo singular seu juiacutezo eacute sempredefeituoso como acima foi dito256
255 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 640-641Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodsynesis importat iudicium rectum non quIbidem circa speculabilia sed circa particularia operabilia circa quae etiamest prudentia Unde secundum synesim dicuntur in Graeco aliqui syneti idest sensati vel eusyneti idest homines bonisensus sicut e contrario qui carent hac virtute dicuntur asyneti idest insensati Oportet autem quod secundumdifferentiam actuum qui non reducuntur in eandem causam sit etiam diversitas virtutum Manifestum est autem quodbonitas consilii et bonitas iudicii non reducuntur in eandem causam multi enim sunt bene consiliativi qui tamen nonsunt bene sensati quasi recte iudicantes Sicut etiam in speculativis aliqui sunt bene inquirentes propter hoc quodratio eorum prompta est ad discurrendum per diversa quod videtur provenire ex dispositione imaginativae virtutisquae de facili potest formare diversa phantasmata et tamen huiusmodi quandoque non sunt boni iudicii quod estpropter defectum intellectus qui maxime contingit ex mala dispositione communis sensus non bene iudicantis Et ideooportet praeter eubuliam esse aliam virtutem quae est bene iudicativa Et haec dicitur synesisrdquo 256 Ibidem p 640-641 Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoAdprimum ergo dicendum quod rectum iudicium in hoc consistit quod vis cognoscitiva apprehendat rem aliquam
87
Aristoacuteteles natildeo cita nenhum exemplo ilustrativo sobre a synesis limita-se somente em
descrever suas caracteriacutesticas Neste sentido pensamos ser oportuno fazecirc-lo para facilitar a
compreensatildeo desta virtude intelectual menor A inteligecircncia permite o ceacutelere aprendizado sobre os
elementos envolvidos em uma dada situaccedilatildeo Isto favorece o discernimento prudencial porque haacute
um conhecimento mais acurado das particularidades do caso Assim imaginemos uma conjuntura
do paiacutes no qual exista uma crise generalizada no transporte de insumos devida agrave falta de
abastecimento de combustiacuteveis Este eacute o panorama Para emitir um juiacutezo correto eacute indispensaacutevel
entender cada elemento que compotildeem a situaccedilatildeo Cada elemento deve ser entendido no seu
funcionamento proacuteprio e na sua relaccedilatildeo com os outros O homem prudente sendo possuidor da
synesis estudaraacute e aprenderaacute os vaacuterios elementos na circunstacircncia descrita por exemplo a
paralisaccedilatildeo dos transportadores e seu papel na logiacutestica de bens materiais o refinamento e
comercializaccedilatildeo dos derivados do petroacuteleo etc A compreensatildeo de cada parte que promove a
compreensatildeo do todo Logo para emitir um parecer correto ou seja sensato sobre a conjuntura e
decidir a melhor accedilatildeo a ser realizada o prudente utiliza a inteligecircncia para aprender os elementos
particulares e em que consiste cada um deles
Em suma a synesis eacute a capacidade de resolver situaccedilotildees novas de maneira ceacutelere e com
sucesso adaptando-se a elas por meio do conhecimento adquirido Esta virtude permite que se faccedila
um bom juiacutezo das coisas Deste modo o homem adquire um bom senso que interpreta com
razoaacutevel grau de acerto o que ocorre em cada caso
A ponderaccedilatildeo (gnwmn) eacute a terceira virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles De acordo
com o filoacutesofo de Estagira eacute definida como ldquoO que se chama discernimento e em virtude do qual
se diz que os homens satildeo lsquojuiacutezes humanosrsquo e que lsquopossuem discernimentorsquo eacute a reta discriminaccedilatildeo
do equumlitativordquo257 O conceito de equidade significa julgar de uma foma justa uma determinada
demanda Para que este julgamento equitativo ocorra eacute necessaacuterio que o julgador possua a virtude
secundum quod in se est Quod quidem provenit ex recta dispositione virtutis apprehensivae sicut in speculo si fueritbene dispositum imprimuntur formae corporum secundum quod sunt si vero fuerit speculum male dispositumapparent ibi imagines distortae et prave se habentes Quod autem virtus cognoscitiva sit bene disposita ad recipiendumres secundum quod sunt contingit quidem radicaliter ex natura consummative autem ex exercitio vel ex muneregratiae Et hoc dupliciter Uno modo directe ex parte ipsius cognoscitivae virtutis puta quia non est imbuta pravisconceptionibus sed veris et rectis et hoc pertinet ad synesim secundum quod est specialis virtus Alio modo indirecteex bona dispositione appetitivae virtutis ex qua sequitur quod homo bene iudicet de appetibilibus Et sic bonum virtutisiudicium consequitur habitus virtutum moralium sed circa fines synesis autem est magis circa ea quae sunt ad finemAd secundum dicendum quod in malis potest quidem iudicium rectum esse in universali sed in particulari agibilisemper eorum iudicium corrumpitur ut supra habitum estrdquo Na presente citaccedilatildeo Satildeo Tomaacutes estaacute discutindo na questatildeo51 artigo 3 (1) se a synesis natildeo eacute virtude e (2) se os homens maus possuem ou natildeo a synesis257 EacuteN VI 1143a 19-21 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Conforme apontamos na nota derodapeacute nordm 245 a ediccedilatildeo em portuguecircs que usamos da EacuteN usa a palavra ldquodiscernimentordquo para traduzir o gnome (LVallandro e G Bornheim 1987 p 110) No presente trabalho preferimos chamar de ldquoponderaccedilatildeordquo pelos motivosexpostos na referida nota
88
moral da justiccedila O bom julgador eacute aquele que tem consideraccedilatildeo pelos outros Ou seja ele pensa nos
outros ao ponderar o que eacute mais justo para todos Em outros termos a gnome nasce na estima que o
julgador tem pelas outras pessoas Nos mostra Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco
Mostra-o o fato de dizermos que o homem equumlitativo (gnwmhn) eacute acima de tudoum homem de discernimento humano (suggnwmonaj) e de (sic) identificarmos aequidade com o discernimento humano a respeito de certos fatos E essediscernimento eacute aquele que discrimina corretamente o que eacute equitativo sendo odiscernimento correto (e0pieikou~~j o0rqh) aquele que julga com a verdade (o0rqh d h9rsquo e1mpeiroj ou0k e1stintou~~ a0lhqou~~j)258
Nota-se a vital importacircncia das virtudes morais para que exista a gnome Sem a solidez das
virtudes no caraacuteter do homem dificilmente poderaacute haver um julgamento justo quando a equidade
se fizer necessaacuteria A gnome e as virtudes morais satildeo imprescindiacuteveis para o exerciacutecio da justiccedila em
sociedade Deste modo natildeo existe nenhuma poacutelis ou naccedilatildeo que continue agregada de modo
civilizado sem a equidade
A Magna Moralia descreve que a esfera em que atua a gnome eacute aquela dos direitos legais
Onde as leis natildeo satildeo claras a equidade deve aparecer para esclarecer o que deve ser feito uma vez
que eacute impossiacutevel os legisladores preverem todos os tipos de situaccedilotildees em detalhes Logo cabe ao
bom julgador (eu0gnwmwn) clarear as questotildees que natildeo satildeo resolvidas prontamente pelas leis 259
Neste sentido a gnome eacute uma virtude intelectual que auxilia no conviacutevio muacutetuo Ela
promove a harmonia nas relaccedilotildees cotidianas entre os cidadatildeos Mas eacute indispensaacutevel para
governantes legisladores e magistrados haja vista o grande nuacutemero de pessoas que suas decisotildees
afetam260 Os governantes devem praticar este reto juiacutezo equitativo para que sua administraccedilatildeo
considere as necessidades de todos os cidadatildeos e natildeo apenas de uma parcela deles O juiacutezo
equitativo eacute ainda mais requisitado quando as leis satildeo inexistentes obtusas ou natildeo se aplicam ao
caso demandado Nesta situaccedilatildeo exige-se que o magistrado possua uma conduta moral iacutentegra para
que possa ponderar de forma correta e aplicar a justiccedila (dikh) Um magistrado que tenha viacutecios de
caraacuteter incorreraacute em dois efeitos maleacuteficos O primeiro eacute que natildeo julgaraacute de modo equitativo Por
ter viacutecios corruptiacuteveis natildeo poderaacute estabelecer a dike porque tenderaacute a proteger um dos querelantes
258 EacuteN VI 1143a 22-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 A suggnome eacute a qualidade do homemaltruiacutesta indulgente Este homem pondera as situaccedilotildees visando o que eacute o mais justo para todos os envolvidos nasituaccedilatildeo Deste modo ele profere um reto julgamento 259 Cf Magna Moralia 1198b 24-34 The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et VitiisOp Cit sem paacutegina260 Devemos recordar que na filosofia moral aristoteacutelica o objetivo principal dos liacutederes da poacutelis eacute promover aeudaimonia na poacutelis Em vista disto a virtude intelectual da gnome tem uma fundamental importacircncia Cf EacuteN VI1142a 9-10 Poliacutetica I 1252a 5 1323b 22-35 1324a 5-35
89
em detrimento do outro O segundo eacute que o magistrado ao atingir o niacutevel de corrupccedilatildeo moral seus
viacutecios o impediratildeo de ponderar corretamente a querela Em vista disto no momento de proferir sua
sentenccedila inadvertidamente ao aplicar a lei o faraacute de modo que natildeo atende ao que eacute mais justo na
situaccedilatildeo
O juiacutezo equitativo eacute necessaacuterio para os legisladores porque sua missatildeo eacute promulgar leis
justas Estas leis auxiliam que a poacutelis atinja a vida feliz e estimulam os cidadatildeos a serem virtuosos
Os legisladores corrompidos por viacutecios de caraacuteter natildeo possuem condiccedilotildees para estabelecer uma
sociedade justa Ao contraacuterio as leis seratildeo promulgadas para fins errocircneos e incentivaratildeo os viacutecios
nos cidadatildeos O bom legislador possui a capacidade de ponderar de forma equitativa porque eacute
detentor de um caraacuteter virtuoso moral e intelectual Por conseguinte faraacute leis que preconizem as
relaccedilotildees justas entre os cidadatildeos
Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a gnome argumenta que o juiacutezo equitativo eacute
aplicado nos casos insoacutelitos nos quais as regras comuns natildeo podem ser usadas como padratildeo de
referecircncia Satildeo casos de exceccedilatildeo ou extraordinaacuterios nos quais usar o padratildeo comum de julgamento
faria o julgador cometer um erro de juiacutezo e consequentemente uma injusticcedila Satildeo nestas situaccedilotildees
que o bom julgador pondera acertadamente sobre o mais justo a ser feito O Doutor Angeacutelico
assinala a diferenccedila entre synesis e gnome A primeira compreende as regras comuns que orientam
as accedilotildees nos casos ordinaacuterios e frequentes A segunda julga as situaccedilotildees excepcionais estas natildeo
podem ser solucionadas de acordo com o normativo regular e costumeiro Em vista disto a gnome
julga o que eacute mais justo a partir dos princiacutepios mais elevados que os aplicados nos casos ordinaacuterios
Conforme descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] Os haacutebitos cognoscitivos distinguem-se segundo princiacutepios mais ou menoselevados como a sabedoria considera os princiacutepios mais elevados no acircmbitoespeculativo do que a ciecircncia Por isso se distinguem entre si O mesmo deve sedar nas accedilotildees Eacute evidente que as coisas que estatildeo fora da ordem de um princiacutepio oude uma causa inferior cai agraves vezes sob a ordem de um princiacutepio mais elevado [hellip]Acontece agraves vezes haver a necessidade de fazer algo agrave margem das regras comunsda accedilatildeo Por exemplo natildeo devolver um depoacutesito ao inimigo da paacutetria e outrascoisas semelhantes Por isso se deve julgar a respeito desses casos segundoprinciacutepios mais elevados do que as regras comuns segundo as quais a synesisjulga E segundo estes princiacutepios mais elevados exige-se tambeacutem uma potecircnciajustificativa mais elevada esta chama-se gnome e ela implica certa perspicaacutecia nojulgamento[hellip] portanto deve-se dizer que a synesis julga bem todos os casos que caem sob asregras comuns Mas outras accedilotildees devem ser julgadas agrave margem das regras comunscomo se acabou de dizer [hellip] deve-se dizer que considerar tudo o que pode suceder agrave margem do cursonormal da natureza pertence somente agrave providecircncia divina mas entre os homens o
90
que for mais perspicaz pode conhecer por sua razatildeo muitas delas A isso se ordenaa gnome que implica certa perspicaacutecia no julgamento 261
Observa-se que as fronteiras entre a synesis e a gnome nem sempre satildeo muitos distinguiacuteveis
Ambas analisam as particularidades de cada situaccedilatildeo Mas se as funccedilotildees de cada uma destas
virtudes especiais nem sempre satildeo niacutetidas deve-se ao fato de que elas operam juntas e estatildeo
atreladas uma agrave outra O bom juiz somente consegue ponderar bem e promover a equidade em cada
situaccedilatildeo se conseguir ser inteligente o suficiente para aprender sobre os elementos particulares
envolvidos em cada circunstacircncia A partir daiacute consegue extrair regras comuns Justamente por
apreender as regras comuns com base nos fatos o homem prudente pode sopesar de modo correto
Diante disto as situaccedilotildees excepcionais podem ser julgadas agrave luz de princiacutepios mais elevados que as
regras comuns podem fazecirc-lo
Apoacutes a descriccedilatildeo das trecircs virtudes intelectuais menores e como elas interagem entre si para a
realizaccedilatildeo de uma boa decisatildeo pelo homem prudente julgamos oportuno descrever brevemente
sobre a razatildeo intuitiva (nou=j) Aristoacuteteles faz referecircncia sobre esta operaccedilatildeo do intelecto no mesmo
Livro VI no qual disserta sobre a prudecircncia e as demais virtudes menores Dito isto passamos ao
proacuteximo toacutepico acerca do noucircs (nou=j)
36 A razatildeo intuitiva (nou=j) e a prudecircncia
O noucircs (nou=j)262complementa as virtudes intelectuais No campo do saber teoacuterico eacute
conceituado como a capacidade que o intelecto possui de apreender os primeiros princiacutepios que
261 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642-643Summa Theologiae II-II q 51 a 4 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodhabitus cognoscitivi distinguuntur secundum altiora vel inferiora principia sicut sapientia in speculativis altioraprincipia considerat quam scientia et ideo ab ea distinguitur Et ita etiam oportet esse in activis Manifestum est autemquod illa quae sunt praeter ordinem inferioris principii sive causae reducuntur quandoque in ordinem altioris principiisicut monstruosi partus animalium sunt praeter ordinem virtutis activae in semine tamen cadunt sub ordine altiorisprincipii scilicet caelestis corporis vel ulterius providentiae divinae Unde ille qui consideraret virtutem activam insemine non posset iudicium certum ferre de huiusmodi monstris de quibus tamen potest iudicari secundumconsiderationem divinae providentiae Contingit autem quandoque aliquid esse faciendum praeter communes regulasagendorum puta cum impugnatori patriae non est depositum reddendum vel aliquid aliud huiusmodi Et ideo oportetde huiusmodi iudicare secundum aliqua altiora principia quam sint regulae communes secundum quas iudicat synesisEt secundum illa altiora principia exigitur altior virtus iudicativa quae vocatur gnome quae importat quandamperspicacitatem iudicii [] dicendum quod synesis est vere iudicativa de omnibus quae secundum communes regulas fiunt Sed praetercommunes regulas sunt quaedam alia diiudicanda ut iam dictum est [] dicendum quod omnia illa quae praeter communem cursum contingere possunt considerare pertinet ad solamprovidentiam divinam sed inter homines ille qui est magis perspicax potest plura horum sua ratione diiudicare Et adhoc pertinet gnome quae importat quandam perspicacitatem iudiciirdquo 262 Jaacute apontamos a dificuldade de traduccedilatildeo do termo grego noucircs (cf nota de rodapeacute nordm 115) Optamos pelo termoldquointuiccedilatildeordquo ou ldquorazatildeo intuitivardquo por julgarmos serem mais adequados para expressar o tipo de operaccedilatildeo intelectualdescrita por Aristoacuteteles
91
servem de fundamento para as ciecircncias Ele capta aquilo que natildeo eacute possiacutevel ser demonstrado por
meio de deduccedilotildees ou induccedilotildees Contudo o noucircs tambeacutem atua no campo do saber praacutetico Neste
aspecto o noucircs capta os fatos particulares que variam a cada situaccedilatildeo A partir dos particulares
realiza uma induccedilatildeo para chegar as premissas universais Por consequecircncia o noucircs auxilia o homem
prudente a perceber de modo imediato a melhor accedilatildeo a ser realizada sob quaisquer circunstacircncias
De acordo com Aristoacuteteles
A razatildeo intuitiva (nou=j) por sua vez ocupa-se com coisas imediatas em ambos ossentidos pois tanto os primeiros termos como os uacuteltimos satildeo objetos da razatildeointuitiva e natildeo do raciociacutenio e a razatildeo intuitiva pressuposta pelas demonstraccedilotildeesapreende os termos primeiros e imutaacuteveis enquanto a razatildeo intuitiva requerida peloraciociacutenio praacutetico apreende o fato uacuteltimo e variaacutevel isto eacute a premissa menor Eesses fatos variaacuteveis servem como pontos de partida para a apreensatildeo do fim[conclusatildeo do silogismo] visto que chegamos aos universais (kaqolou) pelosparticulares eacute mister por conseguinte que tenhamos percepccedilatildeo destes uacuteltimos etal percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva (toutwn ou]n e1xein dei= ai1sqhsin au3th d e0stirsquo e1mpeiroj ou0k e1stinnou=j)263
O noucircs natildeo eacute uma deliberaccedilatildeo nem opiniatildeo nem ciecircncia Podemos caracterizaacute-lo como uma
espeacutecie de ldquogolpe de vistardquo Eacute uma percepccedilatildeo imediata de tudo o que envolve uma situaccedilatildeo
qualquer e que ocorre sem a necessidade da deliberaccedilatildeo Pelo menos eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo
tatildeo veloz que mal pode ser definida como tal Eacute o homem que diante de uma ocorrecircncia sabe
rapidamente qual a accedilatildeo a ser realizada e com boas chances de acerto O comentador Pierre
Aubenque descreve esta atuaccedilatildeo do noucircs como um resultado abrupto que ocorre ao final da
reflexatildeo
Se se entende por nou~~j a apreensatildeo imediata dos princiacutepios da demonstraccedilatildeo tantoa prudecircncia quanto a sabedoria se encontram igualmente distantes disso emborapor razotildees diferentes a sabedoria porque eacute feita de demonstraccedilotildees a prudecircnciaporque natildeo concerne nem ao demonstraacutevel nem a seu princiacutepio Mas se se entendepor nou~~j a apreensatildeo imediata das ldquocoisas uacuteltimas e particularesrdquo264 seraacute precisoatribuir tal intuiccedilatildeo ao homem prudente ao mesmo tempo homem de pensamento eaccedilatildeo herdeiro dos heroacuteis da tradiccedilatildeo o phronimos une nele a lenta reflexatildeo e aimediatez do golpe de vista que natildeo eacute senatildeo a brusca eclosatildeo da primeira ele unea minuacutecia e a inspiraccedilatildeo o espiacuterito de previsatildeo e o espiacuterito de decisatildeo265
Este senso imediato sobre as circunstacircncias eacute resultado da atuaccedilatildeo conjunta das trecircs virtudes
intelectuais menores somada agrave empeiria Por isto o homem prudente eacute algueacutem que possui e exerce
263 EacuteN VI 1143a 35 ndash 1143b 7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110264 Pierre Aubenque assinala esta passagem na EacuteN VI 1143a 28265 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 237-238
92
muito bem a euboulia a synesis a gnome A velocidade de saber o que fazer em certas situaccedilotildees eacute
fruto da experiecircncia adquirida com o passar do tempo que aperfeiccediloa as trecircs virtudes intelectuais
menores Afinal no decorrer do tempo quantas circunstacircncias foram deliberadas Quantos casos
foram julgados Quantas escolhas foram feitas dia apoacutes dia Devido a isto quando comparado a
outros homens o phronimos sabe do modo mais raacutepido e certeiro entender o que se passa a sua
volta e realizar as accedilotildees mais corretas266
Devido agrave empeiria e ao tempo que ajudam a desenvolver as virtudes intelectuais menores
Aristoacuteteles elogia os homens com mais idade e maior experiecircncia A sabedoria destes expressa em
suas opiniotildees maacuteximas e proveacuterbios merecem tanto respeito e atenccedilatildeo quanto a devida a
renomados cientistas ou especialistas em alguma ciecircncia Os homens prudentes satildeo os saacutebios os
ldquoespecialistasrdquo na arte de viver Conforme nos mostra Aristoacuteteles
Eis aiacute por que tais disposiccedilotildees [euboulia synesis noucircs] satildeo consideradas comodotes naturais e enquanto de ningueacutem se diz que eacute filoacutesofo (sofoj) por natureza amuitos se atribui um discernimento inteligecircncia e uma razatildeo intuitiva inatos (gnwmhn d e1xein kai sunesin kai nou=nrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] dizendo que uma determinada idade trazconsigo a razatildeo intuitiva e o discernimento isto implica que a causa eacute natural[Donde se segue que a razatildeo intuitiva eacute tanto um comeccedilo como um fim (a0rxh kaiteloj nou=j) pois as demonstraccedilotildees partem deste e sobre estes versam] Por issodevemos acatar natildeo menos que as demonstraccedilotildees os aforismos e opiniotildees(docaij) natildeo demonstradas (a0podeiceij) de pessoas experientes (e0mpeirwn) emais velhas assim como das pessoas dotadas de sabedoria praacutetica Com efeitoessas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olho(e0mpeiriaj o1mma o9rw~~sin o0rqw~~j)267
Vimos como o aperfeiccediloamento das virtudes intelectuais menores eacute fundamental para a
aquisiccedilatildeo da prudecircncia O entrelaccedilamento destas trecircs capacidades do intelecto permite uma
interpretaccedilatildeo correta dos fatos Esta por sua vez auxilia para que haja uma boa anaacutelise de
conjuntura ou seja condizente com a realidade dos fatos No que lhe concerne esta averiguaccedilatildeo
certeira favorece a boa deliberaccedilatildeo Logo o homem prudente eacute aquele que realiza um bom exame
das circunstacircncias porque conhece os fatos particulares e os fins aos quais se destinam agrave accedilatildeo
humana
Apoacutes o exame das partes integrantes da prudecircncia resta uma questatildeo a ser tratada como a
prudecircncia nos conduz agrave eudaimonia A elucidaccedilatildeo desta pergunta estaacute exposta ao longo de toda a
266 Recordamos que uma accedilatildeo correta precisa ser moralmente nobre e eficaz para atingir o resultado previsto 267 EacuteN VI 1143b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Referente a expressatildeo ldquo[hellip] Comefeito essas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olhordquo Acreditamos que seja melhorcompreensiacutevel transcrevendo-a da seguinte forma ldquo[hellip] pois a experiecircncia lhes transmitiu uma visatildeo com a qualenxergam as coisas com acertordquo (E Bini 2013 p 195) Outra traduccedilatildeo [hellip] for experience has given them an eye forthings and so they see correctlyrdquo (H Rackham 1996 p 157)
93
explanaccedilatildeo feita Mas pensamos ser interessante esclarecer melhor a resposta Dito isto passemos
ao proacuteximo toacutepico
37 Prudecircncia virtudes morais e eudaimonia
No final do livro VI268 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles responde a alguns questionamentos
especiacuteficos sobre a prudecircncia Provavelmente seriam questotildees feitas por homens natildeo afeiccediloados agraves
reflexotildees mais profundas sobre a sophia e a phronecircsis De modo geral as perguntas versam sobre a
utilidade das virtudes intelectuais Estes questionamentos possuem o seu valor porque vatildeo no
acircmago de um aspecto que natildeo pode ser esquecido no estudo sobre o saber teoacuterico e o saber praacutetico
Estes saberes satildeo apenas um mero exerciacutecio intelectual sem viacutenculo com o cotidiano do homem
comum Apenas seriam uma espeacutecie de jogo para exercitar o raciociacutenio Algo sem importacircncia para
a construccedilatildeo de uma vida feliz Naturalmente que natildeo A sophia e a phronecircsis satildeo fundamentais
para a felicidade Eacute o que o Estagirita tentaraacute demonstrar
O filoacutesofo de Estagira comeccedila se interrogando acerca do aparente fato de que a sophia natildeo
pode auxiliar na busca da eudaimonia porque natildeo diz respeito agraves coisas contingenciais nem agraves que
foram geradas Apenas trata das coisas eternas e necessaacuterias Ao contraacuterio do saber teoacuterico a
phronecircsis versa sobre aquilo que nos faz agir de modo justo e nobre Entretanto uma vez que ser
justo e nobre satildeo qualidades do homem bom natildeo faz sentido desenvolver estes dois saberes
porque em tese o homem virtuoso jaacute possui qualidades boas E para um homem que natildeo eacute
virtuoso natildeo faria nenhuma diferenccedila basta ele viver sem prudecircncia ou acatar os conselhos dos
prudentes Entatildeo qual a necessidade de aprender e aprimorar a sophia e a phronecircsis Citamos o
texto
Mas algueacutem poderia perguntar de que servem essas faculdades da mente jaacute que (1)a sabedoria filosoacutefica (sofia) natildeo considera nenhuma das coisas que tornam umhomem feliz (pois natildeo diz respeito agraves coisas que se geram) e quanto agrave sabedoriapraacutetica embora trate dessas coisas para que necessitamos dela A sabedoriapraacutetica eacute a disposiccedilatildeo da mente que se ocupa com as coisas justas nobres e boaspara o homem (fronesij e0stin peri ta dikaia kai kala kai a0gaqaa0nqrwpw) mas essas satildeo coisas cuja praacutetica eacute caracteriacutestica de um homem bom(agaqou= e0stin a0ndroj) e natildeo nos tornamos mais capazes de agir pelo fato deconhececirc-las se as virtudes satildeo disposiccedilotildees do caraacuteter (e3ceij ai9 a0retai ei0sin)[hellip]269
268 Cf EacuteN VI 1143b 20 - 1144a 35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111-112 EacuteE I 1143b 20 -1144a 35 Eacutetica a Eudemo Op cit p 198-200269 EacuteN VI 1143b 18-28 Ibidem p 111
94
Decorrente do questionamento anterior surge outra questatildeo que Aristoacuteteles se defronta a
saber se a phronecircsis seria superior agrave sophia para construir uma vida feliz Ele faz uma comparaccedilatildeo
com a medicina e a sauacutede Pode-se pensar que natildeo necessariamente precisamos dominar a medicina
para termos sauacutede Basta praticar atos saudaacuteveis e teremos a sauacutede Poreacutem ao seguirmos esta linha
de raciociacutenio haacute uma estranheza a phronecircsis torna-se superior agrave sophia Ou seja a sabedoria
praacutetica que se refere aos meios torna-se mais importante que a sabedoria teoacuterica que compreende
as coisas mais elevadas Logo como a prudecircncia seria superior e mais importante que a sabedoria
teoacuterica De acordo com Aristoacuteteles
Mas (2) se dissermos que um homem deve possuir sabedoria praacutetica natildeo paraconhecer as verdades morais mas para tornar-se bom a sabedoria praacutetica nenhumautilidade teraacute para os que jaacute satildeo bons e por outro lado de nada serve ela para osque natildeo possuem virtude Com efeito nenhuma diferenccedila faz que eles proacutepriostenham sabedoria praacutetica ou que obedeccedilam (peiqesqai) a outros que a tecircm e seriasuficiente fazer o que costumamos fazer com respeito agrave sauacutede (u9gieian) emboradesejemos gozar sauacutede natildeo nos dispomos por isso a aprender a arte da medicina(3) Por outro pareceria estranho que a sabedoria praacutetica sendo inferior agrave filosoacutefica(sofiaj) tivesse autoridade (kuriwtera) sobre ela como parece implicar o fatode que a arte que produz uma coisa qualquer exerce o mando e o governorelativamente a essa coisa270
A resposta eacute que a sophia e a phronecircsis por serem virtudes correspondem agrave excelecircncia das
respectivas partes intelectuais da alma Elas satildeo o aacutepice das operaccedilotildees do intelecto que atuam nos
seus campos especiacuteficos a teoria e a accedilatildeo Portanto por serem a perfeiccedilatildeo daquilo que existe de
melhor em noacutes mesmos ndash a razatildeo ndash elas devem ser almejadas por si proacuteprias mesmo que
aparentemente natildeo produzam nenhum tipo de resultado
O detalhe eacute que as virtudes intelectuais e morais produzem efeitos reais Elas resultam na
eudaimonia Ao usar a razatildeo de maneira sublime o homem se torna mais feliz E quanto a
phronecircsis e as virtudes morais A prudecircncia e a virtude moral atuam juntas para que o homem
cumpra plenamente sua funccedilatildeo Ao cumpri-la o homem eacute feliz A prudecircncia garante a reta escolha
dos meios A virtude moral assegura a retidatildeo dos fins nobres pelos quais o homem orienta a sua
vida Portanto a conquista e o aprimoramento das virtudes intelectuais e morais satildeo indispensaacuteveis
para a eudaimonia Conforme nos expotildee Aristoacuteteles
270 EacuteN VI 1143b 29-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111
95
(1)Antes de tudo diremos que essas disposiccedilotildees de caraacuteter devem ser dignas deescolha porque satildeo as virtudes das duas partes da alma respectivamente e o seriamainda que nenhuma delas produzisse o que quer fosse (2) Em segundo lugar elasde fato produzem alguma coisa ndash natildeo poreacutem como a arte meacutedica produz sauacutedemas como a sauacutede (sic) produz sauacutede Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produzfelicidade (sofia eu0daimonian) porque sendo ela uma parte da virtude inteira [davirtude como um todo] (o3lhj a0reth=j) torna um homem feliz pelo fato de estar nasua posse e atualizar-se (e0nergei=n eu0daimona)271
A prudecircncia eacute relevante para tornar os homens melhores Certamente que sim Porque a
accedilatildeo virtuosa eacute resultado de uma escolha consciente do homem Os fins e os meios devem ser
corretos Somente quem for prudente realiza a correta escolha dos meios para alcanccedilar o fim
escolhido Unicamente opta pelos fins corretos quem for moralmente virtuoso O homem prudente
reuacutene em si todas as virtudes morais Desta maneira o Supremo Bem (eudaimonia) apenas pode ser
ldquovisualizadordquo pelo homem virtuoso e natildeo por aquele que tem viacutecios (kakoi) pois estes uacuteltimos
pervertem a visatildeo correta do que eacute o bem para o homem e dificultam a sua escolha De acordo com
Aristoacuteteles
(3) Por outro lado a obra (e1rgon) de um homem soacute eacute perfeita (a0potelei=tai)quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica (fponesij) e com a virtude moral(h0qikhn a0rethn) esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito (proairesin o0rqhnpoiei= h9 a0reth) aquela com que escolhamos os devidos meios [hellip] Assim comodizemos que algumas pessoas que praticam atos justos natildeo satildeo necessariamentejustas por isso ndash referimo-nos agraves que praticam os atos prescritos pela lei querinvoluntariamente quer devido agrave ignoracircncia ou por alguma outra razatildeo mas natildeo nointeresse dos proacuteprios atos embora seja certo que tais pessoas fazem o que deveme todas as coisas que o homem bem (sic) deve fazer - parece que do mesmo modopara algueacutem ser bom eacute preciso encontrar-se em determinada disposiccedilatildeo quandopratica cada um desses atos numa palavra eacute preciso praticaacute-los em resultado deuma escolha e no interesse dos proacuteprios atos 272
Assim a resposta agrave pergunta inicial do porque desenvolver as virtudes intelectuais e morais
para ser feliz pode ser respondida de modo satisfatoacuterio Eacute a consolidaccedilatildeo da virtude intelectual da
prudecircncia e das virtudes morais que o fazem se tornar um phronimos Deste modo ele consegue
discernir o bem em qualquer situaccedilatildeo e escolher os meios adequados para atingiacute-lo
271 EacuteN VI 1144a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111 Na expressatildeo ldquo[hellip] mas como a sauacutedeproduz sauacutederdquo entendemos que a ideia que se quer transmitir eacute mais compreensiacutevel na traduccedilatildeo de Edson Bini ldquo[hellip]mas naquele segundo o qual o sadio eacute a causa da sauacutederdquo (E Bini 2013 p 196) Tambeacutem pode ser entendido como oldquosaudaacutevelrdquo em vez de o ldquosadiordquo272 EacuteN VI 1144a 9-22 Ibidem p 111-112
96
CONCLUSAtildeO
Nas consideraccedilotildees finais deste estudo sobre a phronecircsis retomamos brevemente o caminho
percorrido Como fio condutor trata-se de compreender no que consiste a virtude intelectual da
prudecircncia e como esta auxilia na obtenccedilatildeo da eudaimonia A Eacutetica a Nicocircmaco eacute um tratado sobre
as virtudes e a felicidade Nesta obra o objetivo de Aristoacuteteles eacute indicar o que eacute a verdadeira vida
feliz e traccedilar um itineraacuterio para alcanccedilaacute-la ou melhor construiacute-la A vida feliz natildeo eacute fruto do acaso
mas eacute resultado de uma escolha baseada nas virtudes E se eacute uma escolha o homem deve estar
consciente desta ldquoescolha de vidardquo e arcar com as responsabilidades que esta acarreta Se a
felicidade consiste em parte em tomar boas decisotildees a razatildeo praacutetica deve atuar A virtude
intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia da razatildeo praacutetica no que se refere ao aspecto decisoacuterio Do
mesmo modo que um construtor que conhece o que deve fazer para construir uma casa e escolhe os
melhores meios para fazecirc-la certamente a construiraacute da forma correta Ele atingiu a meta
determinada que eacute a proacutepria casa Assim tambeacutem eacute a construccedilatildeo de uma vida feliz Logo quanto
mais o homem se exercitar na virtude intelectual da prudecircncia melhores seratildeo suas decisotildees o que
aumentaraacute as suas chances de ter uma vida feliz
Eacute importante compreender como o Estagirita descreve a relaccedilatildeo entre os bens e os fins ateacute
chegar ao conceito de Supremo Bem que eacute a proacutepria felicidade Uma vez que o ser humano possui
uma funccedilatildeo proacutepria caraterizada pela racionalidade satildeo as virtudes morais que promovem o
domiacutenio dos desejos e permitem que o indiviacuteduo siga os ditames da razatildeo Isso significa que existe
uma interaccedilatildeo entre a virtude intelectual da prudecircncia e as virtudes morais Para que a prudecircncia
apareccedila eacute necessaacuterio que as virtudes morais tambeacutem se desenvolvam Por isto a aquisiccedilatildeo das
virtudes morais eacute imprescindiacutevel para que o homem atinja a excelecircncia moral e conquiste a
plenitude de vida Entretanto para que haja o florescimento dessas virtudes e sua consolidaccedilatildeo no
homem virtuoso a prudecircncia precisa atuar Neste contexto a phronecircsis delimita o paracircmetro
correto para que o homem possa exercer uma accedilatildeo virtuosa dentro das circunstacircncias mutaacuteveis com
as quais se depara constantemente Esta virtude intelectual aplica-se no domiacutenio do contingente e
natildeo trata das coisas que nunca se alteram Seu acircmbito de aplicaccedilatildeo eacute o mundo das atividades
humanas pois eacute a prudecircncia que sopesa e julga as situaccedilotildees Assim a prudecircncia orienta o indiviacuteduo
a perceber os melhores meios para atingir os fins escolhidos E principalmente permite escolher os
meios para alcanccedilar o fim mais elevado de todos que eacute a proacutepria eudaimonia Logo esta virtude
intelectual possui uma funccedilatildeo basilar para que o homem se torne virtuoso e obtenha a felicidade
O motivo de desenvolver as virtudes intelectuais e morais para obter uma vida feliz pode ser
compreendido de modo clariacutessimo A necessidade de desenvolvecirc-las reside na proacutepria natureza
97
humana O ser humano eacute dotado de racionalidade A razatildeo eacute a mais sublime parte de sua alma Ela
permite que cumpramos nossa funccedilatildeo proacutepria plenamente Por isto quanto mais exercitamos a
razatildeo mais aprimoramos as virtudes intelectuais Em relaccedilatildeo agraves virtudes morais a praacutetica habitual
acarreta um controle maior dos nossos desejos Esse aperfeiccediloamento intelectual nos torna cada vez
mais felizes Primeiro pelo proacuteprio ato de raciocinar que eacute uma atividade que causa um prazer
nobre Segundo porque a sophia auxilia na contemplaccedilatildeo da beleza proveniente daquilo que eacute
eterno e por isto completamente estaacutevel A phronecircsis porque sendo o saber da boa decisatildeo ajuda
a vivermos em mundo instaacutevel e por consequecircncia incerto A prudecircncia ao ser aprendida e
exercitada torna o homem mais confiante em si proacuteprio pois desenvolve a capacidade de lidar com
as contingecircncias da vida e agir da maneira mais correta diante destas Portanto saber decidir bem
maximiza as chances de construir uma vida feliz porque os ldquoventos do acasordquo dificilmente
promovem a felicidade humana
Na formaccedilatildeo moral do homem o prazer possui um papel de muita importacircncia pois eacute um
indutor para a realizaccedilatildeo de accedilotildees boas ou maacutes Por isto desde a tenra idade o homem tem de ser
educado para sentir prazer na praacutetica de accedilotildees nobres e se deleitar com a praacutetica das virtudes morais
e intelectuais O homem virtuoso deve se afastar dos prazeres moralmente ruins Estes prazeres
torpes satildeo aqueles que natildeo estimulam o homem a torna-se mais virtuoso antes o afasta de uma
conduta moralmente elevada O prazer tem duas funccedilotildees importantes que auxiliam a atingir a
eudaimonia A primeira eacute o aprimoramento das atividades realizadas quanto mais prazer haacute
envolvido em uma accedilatildeo mais estiacutemulo existe para praticaacute-la o que ocasiona a melhora a atividade
exercida Um exemplo eacute o violinista que sente prazer ao tocar o seu violino isto o induz a treinar
mais e consequentemente a ser um muacutesico melhor Este aperfeiccediloamento causado pelo prazer
tambeacutem ocorre com a accedilatildeo humana quanto mais o homem se esforccedila para habituar-se agrave praacuteticas das
virtudes mais prazer ele sente em realizar accedilotildees corretas e nobres A segunda funccedilatildeo estaacute associada
ao resultado por exemplo ao tocar o instrumento musical de forma sublime o violinista teraacute mais
prazer O homem ao praticar as accedilotildees nobres torna-se cada vez mais excelente Deste modo o
resultado alcanccedilado pela conduta virtuosa moral e intelectual eacute a proacutepria felicidade
A importacircncia das virtudes morais para a felicidade eacute muito niacutetida Elas satildeo os fundamentos
a base para a virtude da prudecircncia Satildeo as virtudes morais que orientam os nossos desejos para o
bem Sem elas afundamos sobre o proacuteprio peso de aspiraccedilotildees incoerentes ou nefastas Afinal pode-
se desejar qualquer coisa inclusive o que nos faz mal Com isto nos afastamos da razatildeo e perdemos
a ideia da verdadeira felicidade E ainda arruinamos a capacidade de construiacute-la Sem a prudecircncia
que eacute a reta razatildeo no agir e sem a virtude moral que eacute o justo meio da accedilatildeo natildeo conseguimos definir
os fins que temos que atingir Tampouco conseguimos descobrir que accedilatildeo realizar para alcanccedilar
98
estes fins Ou pode-se ter um vislumbre da meta e da accedilatildeo mas natildeo haacute forccedila interior suficiente para
operacionalizar este intento Deste modo o homem perde a noccedilatildeo do fim uacuteltimo e frequentemente
dos fins particulares pois os viacutecios o arrastam para longe do Supremo Bem Tal fato o leva a fazer
escolhas ruins com consequecircncias infelizes
O ponto central para a realizaccedilatildeo das virtudes morais eacute a ideia de mediania A virtude moral
eacute um meio-termo entre dois tipos de condutas perniciosas para o homem Uma accedilatildeo ruim eacute marcada
pelo exagero a outra accedilatildeo eacute marcada pela carecircncia O spoudaios ou seja o homem virtuoso
moralmente aplica a mediania nas suas accedilotildees Neste sentido a mediania constitui a excelecircncia da
accedilatildeo
Ao longo desta pesquisa vimos como a virtude intelectual da prudecircncia se relaciona com as
virtudes morais Todo homem prudente possui as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter Satildeo
as virtudes morais que orientam os desejos para aquilo que eacute correto o que permite que a prudecircncia
decida quais satildeo os melhores meios para alcanccedilar os fins nobres desejados O homem prudente eacute
dotado de um domiacutenio sobre suas paixotildees e possui uma anaacutelise racional acertada das circunstacircncias
o que permite a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo correta Deste modo a prudecircncia indica como alcanccedilar o
fim mais desejado de todos que eacute a felicidade
A prudecircncia eacute o saber intelectual aplicado ao mundo contingente Ele sabe discernir a
intensidade o momento e a quem se aplica as suas accedilotildees Eacute a virtude da boa decisatildeo perante as
inuacutemeras circunstacircncias que surgem no decorrer da vida O homem prudente sabe deliberar
compreender e julgar de modo acurado as situaccedilotildees Existem trecircs fatores que auxiliam o
refinamento destes atos do intelecto que satildeo o tempo a experiecircncia e a instruccedilatildeo Deste modo a
virtude intelectual da prudecircncia pode ser aperfeiccediloada a cada decisatildeo realizada perante as
circunstacircncias
Eacute importante recordar que eacute a virtude da prudecircncia que preserva a consciecircncia dos limites do
possiacutevel para o homem Eacute o conhecimento dos seus limites que impede a desmesura (u3brij) ou
seja a arrogacircncia fatal que natildeo reconhece o que pode ou natildeo ser realizado e com isso acarreta na
infelicidade humana Neste sentido coadunamos com o pensamento de Pierre Aubenque ao trazer a
peccedila teatral Antiacutegona como exemplo ilustrativo da prudecircncia Nesta peccedila o coro diz ao vaidoso
Creonte que despreza o pensar prudencial acerca dos seus atos ldquoa (sic) prudecircncia (to fronei=n) eacute
de longe a primeira condiccedilatildeo da felicidade Nunca se deve cometer impiedade contra os deuses Os
orgulhosos vecircem suas grandes palavras pagas pelos grandes golpes da sorte e eacute apenas com os anos
que aprendem a prudecircnciardquo273 A prudecircncia se forja com o raciociacutenio aplicado agraves circunstacircncias nas
tentativas de realizar as melhores decisotildees possiacuteveis Com o passar do tempo as inuacutemeras
273 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op citp 260
99
experiecircncias vividas pelo homem permitem que suas decisotildees nas diversas situaccedilotildees tornem-se mais
apuradas Com este aprimoramento o homem prudente passa a ldquopersonificarrdquo a proacutepria reta razatildeo
Neste sentido a prudecircncia eacute a percepccedilatildeo salutar da ldquomedida das coisasrdquo que auxilia o bem viver
humano porque evita que desejos irreais e ideias absurdas que natildeo passaram no crivo da realidade
faccedilam o homem ser obstinado com fantasias que o conduziratildeo a uma trageacutedia individual ou coletiva
e natildeo a uma vida feliz
Diante do exposto acreditamos que eacute demonstrada a grande importacircncia que a virtude
intelectual da prudecircncia possui na vida do homem A eudaimonia que eacute o Supremo Bem desejado
por todas as pessoas somente pode ser atingida se houver boas decisotildees que nos conduzam ateacute uma
vida feliz O homem que seguidas vezes realiza decisotildees ruins ao longo de sua vida dificilmente
construiraacute uma vida feliz Somente eacute venturoso o homem que realiza o seu ergon ou seja alcanccedila a
sua plenitude a partir de dois atos extremamente importantes O primeiro ato eacute orientar os seus
desejos por meio das virtudes morais para os fins nobres e a ter prazer nas accedilotildees virtuosas sem
atitudes indignas de um homem valoroso O segundo ato eacute aprender a usar o intelecto para agir
corretamente ou seja a desenvolver a virtude da prudecircncia Afinal o homem prudente ao moderar
suas paixotildees e direcionar corretamente seus desejos para aquilo que eacute bom consegue decidir
corretamente o caminho a ser seguido dentro das diversas circunstacircncias
Em suma o homem sem prudecircncia e com os viacutecios que dominam o seu caraacuteter eacute como um
naacuteufrago sem mapa desorientado nos mares da vida Por outro lado o homem prudente sabe para
onde vai e possui a firmeza necessaacuteria para navegar ateacute laacute Logo nas incertezas da vida o
phronimos aristoteacutelico torna-se o seu proacuteprio porto seguro Isto o faz feliz
100
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de Filosofia Trad da primeira ediccedilatildeo brasileira coord e rev
por Alfredo Bosi rev e trad dos novos textos por Ivone Castilho Benedetti 6ordm ed Satildeo Paulo
WMF Martins Fontes 2012
ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica
nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-125
ARISTOTLE The Nicomachean Ethics Translated with Notes by Harris Rackham with a
Introduction by Stephen Watt Wordswhorth Classics of World Literature 1996
______________ Nicomachean Ethics Translated by WD Ross Batoche Books Kitchener 1999
______________ The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et Vitiis
Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford Clarendon Press 1915
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea I 13 ndashIII 8 Tratado da Virtude Moral Trad Marco Zingano
Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008
______________ Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro2015
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 3ordf Ediccedilatildeo 1ordm
reimp 2013
______________ Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Maria Arauacutejo y Juliacutean Marias Ed Biliacutengue CEPC
Diretor Antonio Truyol Serra 2002
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da
versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de
Eudoro de Souza Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural
1987 (Col Os Pensadores)
______________ Fiacutesica I-II Trad Lucas Angioni Campinas Editora Unicamp 2009
______________ Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterios de
Giovanni Reale) Volumes I II III Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ediccedilatildeo
2005
101
______________ Oacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edison Bini
Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev2010 p 41-42 (Seacuterie Claacutessicos Edipro)
______________ Poliacutetica Trad Nestor Silveira 1ordm ed Satildeo Paulo Folha de Satildeo Paulo 2010
______________ Retoacuterica Traduccedilatildeo textos adicionais e notas de Edson Bini Satildeo Paulo Edipro
2011
______________ Sobre a Alma Trad de Ana Maria Loacuteio revisatildeo cientiacutefica de Tomaacutes Calvo
Martiacutenez adaptado para o portuguecircs do Brasil por Luiza Aparecida dos Santos Satildeo Paulo WMF
Martins Fontes 2013 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles coord Antoacutenio Pedro Mesquita)
______________ Toacutepicos Dos argumentos sofiacutesticos seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta
Pessanha traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de WA Pickard mdash
Satildeo Paulo Nova Cultural 1987
ARISTOTELES Graece Ex recensione Immanuelis Bekkeri Volumen Alterum Berolini apud
Georgium Reimerum Academia Regia Borussica 1831
ARISTOTELIS Ethica Nicomachea Franciscus Susemihl Editio Altera Curavit Otto Apelt
Lipisiae In Aedibus B G Teubneri MCMIII
AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo
Discurso Editorial Paulus 2008
BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bertolini Satildeo Paulo Paulus 2012 (Coleccedilatildeo
Filosofia)
BRUumlLLMAN Phillip A Teoria do Bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo
Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 (Coleccedilatildeo Aristoteacutelica)
CARVALHO Helder Buenos Aires A phroacutenesis aristoteacutelica Breve comparaccedilatildeo das leituras de
Alasdair MacIntyre e Paul Ricoeur Hypnos Satildeo Paulo Nuacutemero 27 2ordm semestre 2011 p 260-283
ETICHE DI ARISTOTELE Etica Eudemea Etica Nicomachea Grande Etica A cura di Lucia
Caiani Introduzione di Francesco Adorno Torino Unione Tipografico-Editrice Torinese 1996
(Classici della Filosofia)
102
GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia
aristoteacutelica Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas
GEACH PT ldquoHistory of Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972
HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista
Archai Brasiacutelia n 04 pp 109-119 jan 2010
HERMANN Nadja Phronesis a especificidade da compreensatildeo moral Educaccedilatildeo Porto Alegre
Rio Grande do Sul ano XXX n 2(62) p 365-376 maioagosto 2007
HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a
eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
HOumlOFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008
JAEGER Werner Wilhelm Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Trad Artur M Parreira
adaptaccedilatildeo para versatildeo brasileira Mocircnica Stahel revisatildeo do texto grego Gilson Cesar Cardoso de
Souza 3ordm ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994
MACINTYRE Alasdair Justiccedila de quem Qual racionalidade Satildeo Paulo Loyola 1991
PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles a passagem da eacutetica agrave
dianoeacutetica aristoteacutelica no problema da felicidade Rio de Janeiro Poacutes Moderno 2002
PERINE Marcelo Quatro Liccedilotildees sobre a Eacutetica de Aristoacuteteles Ed Loyola Satildeo Paulo Brasil 2006
PLATAtildeO Teeteto Cratilo Traduccedilatildeo direta do grego Carlos Alberto Nunes Coordenaccedilatildeo Benedito
Nunes 3bull Ediccedilatildeo Revisada Beleacutem- Paraacute 2001
RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda
edicioacuten Trad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007
SPINELLI Priscila Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles Satildeo Leopoldo
Editora Unisinos 2007 (Col Precircmio ANPOF)
TOMAacuteS DE AQUINO Santo A prudecircncia a virtude da decisatildeo certa Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e
notas Jean Lauand 2ed Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014
103
__________________ Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes
Vol I Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015
p27
__________________Sententia Libri Ethicorum Disponiacutevel em
lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt
__________________ Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles
Trad Tiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013
__________________ Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed
Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004
VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo
Phronesis Vol 50 Nordm 2 2005 p 116-128
WEDIN Michael ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981
p243-262
WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de AristoacutetelesTrad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2010 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)
ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado da virtude moral Satildeo
Paulo Odysseus Editora 2008
ZINGANO Marco Estudo de Eacutetica Antiga 2edSatildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009
ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo
Paulo Ed Odysseus 2010
- BRASIacuteLIA
-
- 14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
- CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
- O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
-
- 16 O acaso na vida humana
- CAPIacuteTULO II
-
- AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
-
- 23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
- 24 O homem virtuoso
- 25 As virtudes morais como mediania
- 33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
-
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo estudar a virtude intelectual da prudecircncia
(φρόνησις) em Aristoacuteteles e ver sua importacircncia para que o indiviacuteduo construa uma vida
feliz Este estudo concentra-se principalmente na Eacutetica a Nicocircmaco mas tambeacutem seraacute
utilizado a Eacutetica a Eudemo o outro tratado aristoteacutelico sobre a eacutetica como auxiacutelio para
compreensatildeo do pensamento do Estagirita sobre a prudecircncia Para tanto este estudo estaacute
dividido em trecircs capiacutetulos No primeiro analisamos a ideia de Supremo Bem como felicidade
(eu0daimonia) Vemos o que a caracteriza e porque ela eacute o fim mais desejado Tambeacutem eacute visto
qual o tipo de vida que melhor condiz com a funccedilatildeo (e2rgon) proacutepria do ser humano No
segundo capiacutetulo examinamos as virtudes intelectuais e morais Entretanto damos uma
ecircnfase maior nas virtudes morais porque satildeo o fundamento para que a phronecircsis possa se
sobressair Ademais analisamos a relaccedilatildeo entre a virtude moral e o prazer pois este uacuteltimo
possui um papel importante na busca da eudaimonia No terceiro capiacutetulo tratamos da virtude
intelectual da prudecircncia Vemos suas caracteriacutesticas suas partes integrantes como se
desenvolve e atua defronte agrave realidade Compreendemos o que eacute a deliberaccedilatildeo (bouleusij e
a escolha (proairesij) assim como estudamos quais satildeo as trecircs virtudes intelectuais
menores boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn)
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Virtudes Morais Felicidade Bem
ABSTRACT
The objective of the present work is to study the intellectual virtue of prudence (φρόνησις) in
Aristotle and to see its importance for the individual to build a happy life This study focuses
mainly on The Nichomachean Ethics but the The Eudemian Ethics the other Aristotelian
treatise on ethics will also be used as an aid to understand the Stagirites thinking on
prudence This study is divided into three chapters In the first one we analyze the idea of
Supreme Good as happiness (eu0daimonia) We see what characterizes it and why it is the
most desired We are also seing which type of life best fits with the function ( gἔρ ον) of the
human being In the second chapter we examine intellectual and moral virtues However we
emphasize size more on moral virtues because they are the foundation for phronesis to excel
In addition we analyze the relationship between moral virtue and pleasure for the latter has
an important role in the pursuit of eudaimonia In the third chapter we deal with the
intellectual virtue of prudence We examine its characteristics its parts whats is its
development and how it acts with reality We try to understand what is deliberation
(bouleusij and choice (proairesij) just as we study what are the three minor intellectual
virtues good deliberation (eu0bolia) intelligence (sunesij) and judgment (gnwmn)
Keywords Aristotle Prudence Moral Virtues Happiness Good
SUMAacuteRIO
RESUMO i
SUMAacuteRIOhellipii
INTRODUCcedilAtildeOhellipp 03
CAPIacuteTULO I ndash O BEM HUMANO E A EUDAIMONIAp 07
11 O CONCEITO DE BEMp 08
12 UMA POSSIacuteVEL FALAacuteCIA ARISTOTEacuteLICAp 14
13 FIM DOMINANTE OU INCLUSIVOp 19
14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
15 A EUDAIMONIA E TIPOS DE VIDAp 28
16 O ACASO NA VIDA HUMANAp 34
CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
21 DEFINICcedilAtildeO DAS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 38
22 A EDUCACcedilAtildeO DOS PRAZERES E AS VIRTUDES MORAIShelliphellipp 40
23 PRAZER E APERFEICcedilOAMENTO DE UMA ATIVIDADEhellipp 45
24 O HOMEM VIRTUOSOhelliphelliphelliphelliphelliphellipp 47
25 AS VIRTUDES MORAIS COMO MEDIANIAhelliphelliphelliphelliphellipp 49
CAPIacuteTULO III ndash A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICOhelliphelliphellipp 56
31 LINHAS GERAIS ACERCA DA PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphellipp 57
32 O CONCEITO DE PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 62
33 A RETA RAZAtildeO (o0rqoj logoj) E A EXPERIEcircNCIA (e0mpeiria)helliphelliphelliphelliphellipp 70
34 DESEJO (o1recij) DELIBERACcedilAtildeO (bouleusij E ESCOLHA (proairesij)hellipp 75
35 AS TREcircS VIRTUDES INTELECTUAIS MENORES BOA DELIBERACcedilAtildeO
(eu0boulia) INTELIGEcircNCIA (sunesij) PONDERACcedilAtildeO (gnwmh)helliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 82
36 A RAZAtildeO INTUITIVA (nou~j) E A PRUDEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 90
37 PRUDEcircNCIA VIRTUDES MORAIS E EUDAIMONIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 93
CONCLUSAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipp 96
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICASp 100
3
INTRODUCcedilAtildeO
No contexto da poacutes-modernidade a reflexatildeo eacutetica parece enfrentar um paradoxo Por um
lado a praacutetica social juriacutedica e poliacutetica bem como diversos setores da sociedade natildeo cessam de
clamar pelo valor da pessoa humana e seus direitos que se apresentam como norte da rota de
desenvolvimento civilizatoacuterio do Ocidente nesse momento da histoacuteria Todavia noutro sentido a
especulaccedilatildeo filosoacutefica parece cada vez menos propensa a adotar como paracircmetro a ideia de um
normativo moral calcado em determinadas regras de conduta generalizantes e universais e de certo
modo caracterizadas por uma rigidez que exigem uma conduta pautada principalmente pela noccedilatildeo
de dever
Essa desconfianccedila pode ter surgido a partir da experiecircncia dramaacutetica dos seacuteculos passados
nos quais alguns paradigmas ideoloacutegicos podem ter servido como molde para trageacutedias em larga
escala exigindo uma premente reflexatildeo acerca dos modelos intelectuais que tinham fundamentado
diretamente ou pelo menos tornado possiacuteveis alguns flagelos1
As circunstacircncias individuais e coletivas trazem uma enorme variedade de caminhos e
opccedilotildees a serem escolhidas e assumidas nas suas consequecircncias Nesse contexto a pergunta ldquoO que
eacute o melhor a ser feito diante dessa ou daquela situaccedilatildeordquo se impotildee de forma quase natural a cada
indiviacuteduo A virtude da prudecircncia fornece em Aristoacuteteles a medida adequada para que exista uma
accedilatildeo virtuosa diante das circunstacircncias Outro fato relacionado ao exerciacutecio da prudecircncia eacute que ela eacute
necessaacuteria para escolher corretamente os melhores meios para alcanccedilar os objetivos escolhidos
defronte as circunstacircncias que envolvem cada pessoa Essa eleiccedilatildeo dos meios deve ter como criteacuterio
a retidatildeo de comportamento2 Logo o homem prudente tambeacutem deve ser um indiviacuteduo que pratique
as virtudes morais
A phronecircsis eacute uma virtude de extrema importacircncia na consecuccedilatildeo do bem pois eacute ela que
auxilia o indiviacuteduo a tomar a melhor decisatildeo e por isso a agir da melhor maneira diante das
circunstacircncias Observa-se que eacute intriacutenseca a esta virtude a correta decisatildeo tomada e
operacionalizada no tempo correto Natildeo basta ao homem prudente discernir corretamente o que
fazer nas situaccedilotildees concretas Tambeacutem deve realizar a accedilatildeo preocupando-se com o kairoacutes
(kair joacutej ) ou seja o momento oportuno Assim a prudecircncia acarreta uma accedilatildeo virtuosa do
1 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo DiscursoEditorial Paulus 2008 p 72 Cf EacuteN 1143a 25-27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheimda versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de Eudoro de SouzaSeleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 112 (Col Os Pensadores)
4
indiviacuteduo na temporalidade a qual carrega consigo o contingencial o incerto onde estatildeo inseridos
os indiviacuteduos
O conceito de phronecircsis recorda que a busca pela vida feliz se encontra em bens factiacuteveis
dentro das peculiaridades humanas inseridas em um mundo imprevisiacutevel e marcado por diversas
contingecircncias Ao considerar a natureza humana com suas forccedilas e suas fraquezas a histoacuteria
mostra que eacute a virtude da prudecircncia juntamente com as virtudes morais que evitam a hybris
(u3brij) ou seja a desmesura Esse excesso ocasiona o apego exagerado agraves paixotildees o desprezo
pelos outros e que culmina em uma arrogacircncia absoluta do indiviacuteduo
O presente trabalho visa estudar a compreensatildeo da ideia de phronecircsis e sua importacircncia
dentro do sistema eacutetico aristoteacutelico caracterizado pela busca da eudaimonia por meio das virtudes
morais e intelectuais Eacute utilizada a Eacutetica a Nicocircmaco como base principal para o entendimento da
phronecircsis No entanto natildeo seratildeo desprezadas as demais obras de eacutetica como Eacutetica a Eudemo e
Magna Moralia podendo serem trazidas agrave luz como auxiacutelio a compreensatildeo da visatildeo eacutetica
aristoteacutelica
No primeiro capiacutetulo seraacute tratada a teoria geral do bem proposta na Eacutetica a Nicocircmaco a
partir da qual o estagirita realiza uma anaacutelise sobre o que significa o conceito de bem e como a ideia
de bem identifica-se com a finalidade das coisas Satildeo estudados os tipos de bens e qual o melhor
bem a ser conquistado Agrave luz desta anaacutelise eacute descrita a via mais efetiva para alcanccedilar este bem
considerado o mais perfeito de todos que eacute identificado com a eudaimonia Seratildeo abordadas duas
controvertidas questotildees acerca da eacutetica aristoteacutelica A primeira questatildeo versa sobre a possibilidade
de Aristoacuteteles ter cometido uma falaacutecia loacutegica ao expor o argumento sobre o Supremo Bem A
segunda questatildeo pergunta se o Supremo Bem deve ser entendido como um fim dominante ou um
fim inclusivo Em outros termos vemos se a eudaimonia se caracteriza somente por conter um
uacutenico bem superior a todos os demais bens ou se eacute composta por vaacuterios bens reunidos em um
conjunto Outro assunto tratado neste capiacutetulo diz respeito as caracteriacutesticas do Supremo Bem que
satildeo a autossuficiecircncia e a completude Outra anaacutelise a ser realizada eacute sobre a funccedilatildeo proacutepria dos
seres Esta funccedilatildeo consiste em cada ser possuir uma funccedilatildeo que lhe eacute particular pois eacute resultado da
finalidade para a qual fora criada Neste sentido a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada pela
racionalidade sendo necessaacuteria para a construccedilatildeo de uma vida feliz na perspectiva aristoteacutelica A
partir da identificaccedilatildeo do supremo bem com a felicidade passa-se a verificar qual eacute o tipo de vida
que conduz o homem agrave vida feliz Portanto neste primeiro capiacutetulo procuramos clarificar o
conceito de eudaimonia e saber porque eacute o elemento chave para a eacutetica aristoteacutelica visto que todos
os esforccedilos do homem virtuoso tendem para ela
5
No segundo capiacutetulo adentramos na divisatildeo das virtudes morais e intelectuais e vemos como
se relacionam frente agrave conduta humana e no processo decisoacuterio perante o mundo contingente Como
Aristoacuteteles claramente assinala que as virtudes satildeo essenciais para o alcance da eudaimonia eacute
necessaacuterio o estudo da natureza das virtudes morais e como contribuem para o desenvolvimento e a
correta aplicaccedilatildeo da phronecircsis Destacar-se-aacute uma atenccedilatildeo agraves virtudes morais uma vez que estas
dizem respeito a uma reta orientaccedilatildeo dos desejos e como esta moldagem dos anseios e dos prazeres
a serem buscados promovem um alicerce para o cultivo da virtude intelectual da prudecircncia Os
prazeres e as dores satildeo intrinsecamente ligados agrave natureza humana e agraves accedilotildees do indiviacuteduo O ser
humano busca o prazer e procura se afastar da dor Diante deste quadro eacute de grande importacircncia na
eacutetica aristoteacutelica o indiviacuteduo aprender a fundamentar sua conduta moral em prazeres provenientes
de accedilotildees nobres Pois o homem virtuoso tambeacutem sente prazer na retidatildeo moral Tambeacutem seraacute
abordada uma caracteriacutestica essencial das virtudes a mediania ou o meio-termo O conceito de
mediania eacute um pressuposto importante no contexto da eacutetica aristoteacutelica Por isso eacute necessaacuteria a
compreensatildeo do que seja ela e seu viacutenculo com as virtudes morais Estas satildeo intimamente ligadas agrave
virtude intelectual da prudecircncia Ocorre um processo simultacircneo A praacutetica das virtudes morais
prepara o exerciacutecio da prudecircncia natildeo permitindo que o indiviacuteduo cometa viacutecios por excessos ou por
insuficiecircncias e esta virtude intelectual fornece os melhores meios para alcanccedilar a accedilatildeo virtuosa
Essa relaccedilatildeo eacute descrita por Aristoacuteteles ao assinalar a figura do spoudaios (σπουδαῖος) como modelo
de homens de virtude Em suma o segundo capiacutetulo versaraacute principalmente sobre como as
virtudes morais e intelectuais satildeo imperativas para que o indiviacuteduo alcance uma vida feliz
No terceiro capiacutetulo seraacute feita a anaacutelise da proacutepria virtude da phronecircsis enquanto virtude
intelectual mas que objetiva um conhecimento praacutetico A sua funccedilatildeo primordial eacute de efetivar a
melhor decisatildeo possiacutevel a ser tomada pelo indiviacuteduo defronte agraves inuacutemeras circunstacircncias
encontradas Analisaremos a natureza da virtude da phronecircsis de que maneira esta virtude
intelectual se relaciona com as demais virtudes morais e como ela se desenvolve em vista de um
aperfeiccediloamento do indiviacuteduo Pois a phronecircsis eacute um dos pilares para a aquisiccedilatildeo e correta praacutetica
das demais virtudes morais As virtudes morais propiciam que o indiviacuteduo possa progredir na
praacutetica da virtude intelectual da prudecircncia Eacute a virtude da prudecircncia somada as virtudes morais que
conferem ldquopeso e medidardquo aos atos do indiviacuteduo e determina sobre o momento correto que estes
atos devem ser realizados para que a accedilatildeo humana possa ser considerada virtuosa Seraacute estudada a
noccedilatildeo de reta razatildeo como guia para as virtudes morais sendo a base da virtude da prudecircncia
Tambeacutem vemos qual o seu papel especiacutefico para alcanccedilar a felicidade Para uma melhor
compreensatildeo da virtude da prudecircncia e das virtudes morais analisaremos a relaccedilatildeo entre desejo
(o2recij) escolha (proairesij) e deliberaccedilatildeo (bouleusij A relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos
6
promove a accedilatildeo virtuosa Veremos como o homem virtuoso que exerce a virtude da prudecircncia em
um grau elevado a ponto de ser considerado como um verdadeiro homem prudente torna-se a
proacutepria medida da phronecircsis Por isto examinaremos o que eacute a reta razatildeo e a sua importacircncia para a
prudecircncia Tambeacutem seraacute visto o papel da experiecircncia no desenvolvimento da prudecircncia Uma vez
que este indiviacuteduo possui tanto as virtudes morais quanto agrave virtude da prudecircncia fortalecida pode
ser estimado como um homem que estaacute proacuteximo de ser plenamente feliz Analisamos as partes
integrantes da prudecircncia que satildeo as trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia)
inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo (gnwmn) Portanto o terceiro capiacutetulo eacute dedicado a examinar a
virtude intelectual da prudecircncia e sua importacircncia para a felicidade
Como objetivo final desta pesquisa esperamos demonstrar como a phronecircsis aristoteacutelica
simultaneamente com as virtudes morais contribui para a correta consecuccedilatildeo de uma accedilatildeo moral
virtuosa dentro da imprevisibilidade e contingecircncia do campo da praacutexis pra~~cij Pois esta virtude
proporciona a correta maneira de agir diante de uma situaccedilatildeo ao estabelecer a medida correta para
todas as accedilotildees virtuosas realizadas pelo indiviacuteduo Portanto a phronecircsis e as virtudes morais
possuem um papel central para que o indiviacuteduo alcance uma vida plena O caminho a ser percorrido
neste estudo acerca da virtude da prudecircncia se inicia na compreensatildeo dos conceitos de bem e
finalidade decorrentes da ideia de funccedilatildeo proacutepria do ser humano A anaacutelise destes trecircs conceitos
conduz ao estudo do Supremo Bem que eacute identificado como sendo a eudaimonia Uma vez que as
virtudes satildeo o meio privilegiado para atingir a felicidade torna-se imperativo o entendimento da
natureza das virtudes morais e intelectual E para compreendecirc-las eacute necessaacuterio compreender o que eacute
a mediania e a reta razatildeo Nesta linha de raciociacutenio demonstraremos a relaccedilatildeo entre as virtudes
morais e a virtude intelectual da prudecircncia e como cada uma contribui para o fortalecimento da
outra Por fim natildeo se pode perder de vista que o escopo desta pesquisa eacute a compreensatildeo da natureza
da virtude intelectual da prudecircncia e como esta virtude auxilia o ser humano na construccedilatildeo de uma
vida feliz
7
CAPIacuteTULO I
O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
A eudaimonia e sua relaccedilatildeo com os conceitos de bem finalidade e funccedilatildeo eacute o objeto de
anaacutelise deste primeiro capiacutetulo O conceito de eudaimonia tradicionalmente entendido como
felicidade vida feliz ou plenitude de vida estaacute condicionado a alguns fatores que satildeo desenvolvidos
ao longo do livro I da Eacutetica a Nicocircmaco Deste modo embora sejam feitas referecircncias aos demais
livros que compotildeem o mencionado tratado de Aristoacuteteles visto que estatildeo em parte interligados
entre si o livro I se constitui como o alicerce principal de estudo deste capiacutetulo
O conceito de bem eacute basilar para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica cunhada por Aristoacuteteles Sua
importacircncia reside no fato do conceito de bem ser identificado com o conceito de fim ou de
finalidade dos seres O conceito de finalidade identifica-se com a ideia de funccedilatildeo proacutepria dos seres
O cumprimento desta funccedilatildeo permite que algo ou algueacutem possa alcanccedilar sua finalidade ou seja
realizar o fim para o qual fora criado
Haacute uma distinccedilatildeo entre os bens existentes natildeo sendo todos equivalentes na valoraccedilatildeo que
lhes eacute conferida o que causa uma diferenciaccedilatildeo no seu grau de importacircncia Esta variedade de bens
acarreta uma variedade de fins sendo os mesmos categorizados como fins definitivos e fins
intermediaacuterios A argumentaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre a existecircncia de uma variedade de fins faz o
filoacutesofo de Estagira afastar-se da tese do seu mestre Platatildeo A tese deste uacuteltimo preconiza a
existecircncia de um uacutenico fim que eacute o Bem em si ao qual participam todas as coisas particulares Para
o Estagirita existem vaacuterios tipos de bens que visam o bem uacuteltimo que eacute a felicidade Diante desta
diferenccedila de concepccedilotildees acerca dos fins veremos as criacuteticas de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave filosofia
platocircnica
A vida feliz eacute o fim uacuteltimo a ser buscado Por isso neste capiacutetulo eacute analisada a natureza da
felicidade e suas propriedades Examinamos sobre quais fundamentos Aristoacuteteles forja sua ideia de
felicidade e qual a causa a considerar como o sumo bem Deste modo estudamos qual eacute o tipo de
vida que melhor corresponde agrave ideia de felicidade na visatildeo aristoteacutelica
8
11 O Conceito de Bem
Aristoacuteteles inaugura o seu tratado Eacutetica a Nicocircmaco com a afirmaccedilatildeo de que todas as
atividades humanas nas quais estatildeo inclusas a arte a inquiriccedilatildeo e as escolhas deliberadas visam um
bem Devido a este fato todas as coisas possuem a capacidade para alcanccedilar o seu proacuteprio bem
Como existem diferentes espeacutecies de artes ciecircncias e accedilotildees cada uma possui um tipo de bem
especiacutefico que eacute caracteriacutestico a partir daquela determinada atividade Deste modo as atividades
possuem finalidades distintas umas das outras como afirma Aristoacuteteles
Admite-se geralmente que toda arte (texnh) e toda investigaccedilatildeo (meqodoj) assimcomo toda accedilatildeo pra~~cije toda escolha (proairesij) tecircm em mira um bemqualquer e por isso foi dito com muito acerto que o bem (ta0gaqon) eacute aquilo aque todas as coisas tendem Mas observa-se entre os fins uma certa diferenccedilaalguns satildeo atividades outros satildeo produtos distintos das atividades que osproduzem Onde existem fins distintos das accedilotildees satildeo eles por natureza maisexcelentes do que estas 3
Aristoacuteteles continua sua anaacutelise acerca do bem percorrendo um caminho de reflexatildeo que se
propotildee em primeiro lugar apreender o conceito de bem e em seguida determinar qual eacute o bem
mais proveitoso e por fim determinar o mais importante a ser buscado pelo ser humano Para
cumprir com o objetivo de sua investigaccedilatildeo o filoacutesofo de Estagira procura analisar que tipo de bem
pode ser considerado como o mais essencial e quais os tipos de vida existentes podem ser
candidatos a serem representantes desta ideia de bem essencial ou o sumo bem Do mesmo modo
estabelece uma reflexatildeo sobre o ponto de vista platocircnico de Bem e como essa concepccedilatildeo estaacute
equivocada natildeo sendo possiacutevel adotaacute-la para alcanccedilar a eudaimonia Tambeacutem procura utilizar o
exemplo das diversas ciecircncias para averiguar como pode ser apreendido este sumo bem Por fim
Aristoacuteteles traccedila quais caracteriacutesticas deve possuir este bem para que possa ser estimado como o
mais essencial ao ser humano
Qual eacute o bem supremo E que espeacutecie de vida deve ser vivida para que o atinjamos
Embora de imediato no Livro I do tratado Eacutetica a Nicocircmaco4 haja uma insinuaccedilatildeo de que a
eudaimonia ou seja a felicidade possa ser este bem supremo Aristoacuteteles natildeo concede de modo
faacutecil o posto de bem supremo agrave eudaimonia Ao contraacuterio procura fundamentar no decorrer dos
capiacutetulos do Livro I porque a felicidade deve ser considerada como o bem supremo E discorre
3 EacuteN I 1094a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 Para fins de abreviaccedilatildeo do tiacutetulo da obra Eacuteticaa Nicocircmaco doravante seraacute utilizada a descriccedilatildeo EacuteN nas notas de rodapeacute4 Cf EacuteN I 1095a 15-20 Ibidem p 11
9
sobre quais satildeo as caracteriacutesticas que uma vida deve possuir para que seja considerada uma vida de
plenitude
Eacute importante perceber que no contexto da Eacutetica a Nicocircmaco a ideia de bem (to a0gaqon)
equivale agrave finalidade ao teacutelos (telojque cada coisa possui em decorrecircncia da sua natureza Cada
arte (texnh) investigaccedilatildeo (meqodoj) ou accedilatildeo pra~~cij possui seu teacutelos especiacutefico Aristoacuteteles cita
que a sauacutede eacute a finalidade da medicina o navio eacute a finalidade da construccedilatildeo naval a vitoacuteria eacute a
finalidade da estrateacutegia a riqueza eacute a finalidade da economia5 Logo isso significa que cada coisa
tem uma finalidade e os fins satildeo fatores determinantes tanto para a compreensatildeo da natureza dos
seres quanto para a das accedilotildees humanas
Assim em que consiste o bem aristoteacutelico Aristoacuteteles defende a tese de que natildeo existe um
uacutenico bem em si mesmo que todas as coisas tendam para este uacutenico Bem Conforme visto
anteriormente seu argumento eacute radicalmente oposto agrave ideia concebida por Platatildeo Para Aristoacuteteles
os bens estatildeo conectados intimamente agrave imensa variedade de seres existentes pois constituem suas
proacuteprias finalidades Cada ser tende para seu fim para seu teacutelos (teloj) especiacutefico O ser humano
tambeacutem possui uma finalidade proacutepria Logo o Supremo Bem deve ser encontrado tendo em vista o
que eacute proacuteprio do ser humano
O Supremo Bem serve como paracircmetro para a vida humana e consequentemente para as
accedilotildees do agente Por isso deve ser factiacutevel de ser alcanccedilado pela accedilatildeo humana E para se constituir
como paracircmetro para a vida humana deve ser absoluto e autossuficiente porque natildeo eacute possiacutevel ser
paracircmetro se natildeo possui estabilidade Eacute neste momento da Eacutetica a Nicocircmaco que Aristoacuteteles
conclui que o Supremo Bem eacute a proacutepria eudaimonia A felicidade eacute o uacutenico bem que possui as
propriedades descritas de ser absoluta e de ser autossuficiente aleacutem de conferir sentido agraves
atividades realizadas ou seja eacute a finalidade uacuteltima da accedilatildeo de cada pessoa6
Ora esse eacute o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade (eu0daimonia)Eacute ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa ao passoque agrave honra ao prazer agrave razatildeo e a todas as virtudes noacutes de fato escolhemos por simesmos (pois ainda que nada resultasse daiacute continuariacuteamos a escolher cada umdeles) mas tambeacutem os escolhemos no interesse da felicidade pensando que aposse deles nos tornaraacute felizes A felicidade todavia ningueacutem a escolhe tendo emvista algum destes nem em geral qualquer coisa que natildeo seja ela proacutepria [] Afelicidade eacute portanto algo absoluto (teleion) e auto-suficiente (au1tarkej) sendotambeacutem a finalidade da accedilatildeo (praktw~~n ou]sa teloj)7
5 Cf EacuteN I 1094a 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 9 6 A eudaimonia tambeacutem se constitui como criteacuterio para todas as accedilotildees da sociedade poliacutetica A felicidade na poacutelis eacute umdos temas tratados na Poliacutetica Por natildeo ser o escopo do presente trabalho natildeo seraacute visto de forma minuciosa pois aEacutetica a Nicocircmaco natildeo adentra nesta questatildeo de modo direto e aprofundado Mas eacute interessante perceber a iacutentimaconexatildeo entre as accedilotildees de cada agente enquanto cidadatildeo e a forma de conviacutevio em uma poacutelis que eacute analisada porAristoacuteteles no tratado da Poliacutetica7 EacuteN I 1097b 1-7 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15
10
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles continua a exposiccedilatildeo de sua ideia acerca dos bens de cada
arte mas cita que as artes com as caracteriacutesticas intriacutensecas a cada uma delas se subordinam a uma
finalidade uacutenica anaacuteloga agrave fabricaccedilatildeo de utensiacutelios diversos como reacutedeas e selas para a montaria
em cavalos estaacute subordinada agrave arte da equitaccedilatildeo Esta situaccedilatildeo tambeacutem ocorre com as atividades
militares em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia de guerra e assim ocorre com diversas artes que se subordinam a
outras artes Neste caso de subordinaccedilatildeo das artes em relaccedilatildeo a uma determinada arte mais
abrangente conforme os exemplos da equitaccedilatildeo e da estrateacutegia Aristoacuteteles avalia que os fins destas
artes mais abrangentes satildeo mais importantes que os fins das artes subordinadas Isso ocorre porque
os fins das artes principais satildeo os fins almejados enquanto os fins das artes subordinadas tornam-se
apenas meios para a consecuccedilatildeo dos fins principais8
O que estaacute exposto nesta primeira parte do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco eacute a divisatildeo entre
fins (bens) primaacuterios e fins secundaacuterios9 haja vista a multiplicidade de fins em decorrecircncia da
variedade de seres e de accedilotildees A existecircncia desta hierarquia de fins culmina em um fim uacuteltimo que eacute
a eudaimonia Aristoacuteteles assinala que eacute necessaacuterio haver um fim derradeiro porque sem este fim a
sequecircncia de fins seria infinita o que tornaria inuacutetil a busca pela felicidade10
Na Eacutetica a Eudemo Aristoacuteteles descreve em que consiste esta multiplicidade dos bens11 O ser
(to o1n pode ser apreendido sob diversas formas conforme as Categorias12 a substacircncia (ou0sia13
a qualidade (poion a quantidade (poson) o tempo (pote) espaccedilo (pouetc Tendo em vista que
natildeo existe uma ciecircncia uacutenica de todos os seres mas vaacuterias ciecircncias que desvendam os seres dos
entes segue-se que natildeo pode existir um bem uacutenico imediato em relaccedilatildeo a todos dos seres Deste
modo haacute vaacuterios bens tanto quanto existem vaacuterios seres Aristoacuteteles ainda exemplifica os vaacuterios
bens existentes em algumas categorias traccedilando um paralelo entre estas categorias e determinados
8 Cf EacuteN I 1094a 15 Ibidem p 99 No que tange a nomenclatura dos bens (fins) de cada atividade haacute outros termos que podem ser usados para se referira estes fins tais como fins principais fins intermediaacuterios fins preciacutepuos fins subordinados etc Tambeacutem eacute possiacutevelsubstituir o termo ldquobemrdquo ou ldquofimrdquo por ldquofinalidaderdquo Eventualmente todos estes termos seratildeo usados no decorrer dotexto como sinocircnimos A questatildeo essencial eacute a compreensatildeo de que haacute uma relaccedilatildeo de hierarquia entre os fins de cadaarte accedilatildeo ou ciecircncia ou seja dos fins em geral em vistas a um fim mais amplo 10 Cf EacuteN I 1094a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 911 Cf EacuteE I 1217b 27 Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 2015 p 5912 A lista completa de dez categorias eacute descrita por Aristoacuteteles em Categorias 41b 25 2a 1-10 Cf ARISTOacuteTELESOacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas(Seacuterie Claacutessicos Edipro) Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edson Bini Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev 2010 p41-42 13 O termo ousia eacute melhor entendido a partir dos conceitos em latim de essentia substantia Haacute uma diferenccedila entre otermo ousia no qual adota-se a palavra ldquoessecircnciardquo de tograve tiacute esti ( que significa o ldquoser de uma coisarsquo comoldquoessencialidaderdquo ou ldquosubstacircnciardquo Entendemos que os dois termos podem ser utilizados como sinocircnimos para o presenteestudo visto que natildeo eacute o objetivo deste trabalho proceder a uma anaacutelise da filosofia primeira cunhada por AristoacutetelesTambeacutem entendemos que os dois termos conseguem expressar de modo geral a ideia da pergunta ldquoo que eacute istordquoreferindo-se agravequilo que necessariamente eacute e faz um ente ser o que eacute de fato Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles TradRoberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 147
11
predicados relacionados agrave eacutetica Por exemplo o bem eacute predicado de Deus e do intelecto na categoria
de substacircncia na categoria da qualidade eacute o justo na categoria da quantidade eacute a moderaccedilatildeo na
categoria do tempo eacute o momento oportuno14
Ao postular a tese da multiplicidade de bens Aristoacuteteles estabelece uma posiccedilatildeo diferente da
tese defendida por seu mestre e antecessor Platatildeo o qual assevera a existecircncia de uma uacutenica Forma
de Bem Para Platatildeo o Bem em si possui algumas propriedades que o qualificam como o bem
fundamental o Bem pelo qual satildeo subordinados e participam todas as coisas boas As coisas
participam desta Forma de Bem por derivaccedilatildeo pois Esta fornece os atributos necessaacuterios para a
existecircncia e constituiccedilatildeo destes bens derivados15 Esta Forma de Bem eacute imutaacutevel e eterna sua
essecircncia permanece a mesma o que natildeo permite sua alteraccedilatildeo com o tempo Aristoacuteteles assevera
que natildeo eacute possiacutevel existir um uacutenico Bem em si um determinado tipo de bem que seja ldquogeralrdquo para
todos e dissociados dos seres Antes o estagirita afirma que cada ser possui e consequentemente
deseja o bem que lhe eacute especiacutefico pertencente a sua particularidade conforme descrito na Eacutetica a
Eudemo ldquoAdemais a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas existentes desejam um bem uacutenico eacute falsa
cada coisa anseia pelo bem que lhe eacute particular o olho a visatildeo o corpo a sauacutede e analogamente
outros bens []rdquo16 Deste modo a diferenccedila fundamental entre a visatildeo do bem aristoteacutelico e do Bem
platocircnico eacute que Aristoacuteteles advoga a ideia que existe um bem uacuteltimo para qual se dirigem os seres
Enquanto na perspectiva de Platatildeo haacute uma uacutenica Forma de Bem que eacute causa dos outros bens os
quais apenas satildeo bons por participaccedilatildeo e semelhanccedila agravequela Forma17
Na Eacutetica a Nicocircmaco tambeacutem se encontra a criacutetica de Aristoacuteteles agrave doutrina platocircnica da
Forma do Bem e a descriccedilatildeo da tese da pluralidade de bens18 Nesta parte o Estagirita postula que
natildeo pode existir uma uacutenica Forma de Bem pois a proacutepria palavra ldquobemrdquo eacute utilizada para se referir a
diversas categorias A substacircncia significa a proacutepria essecircncia daquilo que eacute o ser da coisa
naturalmente eacute anterior agrave categoria de relaccedilatildeo Sendo assim uma uacutenica Forma natildeo pode abranger
todos estes tipos de bens O termo ldquobemrdquo pode ter diversos significados referentes agrave variedade de
sentidos que comporta o ser Ou seja os bens satildeo pertinentes ao nuacutemero de seres existentes E como
os bens satildeo caracterizados conforme as categorias natildeo eacute possiacutevel que o bem possa ser uniacutevoco e
inteiramente presente em um uacutenico ser Por conseguinte o Bem platocircnico natildeo poderia ser predicado
em cada uma das categorias Como estaacute descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
14 Cf EacuteE I 1217b 16-34 Eacutetica a Eudemo Op cit p 5915 Cf EacuteE I 1217b 1-15 Ibidem p 5716 EacuteE I 1217b 30-33 Ibidem p 5917 Cf EacuteE I 1217b 5-15 Ibidem p 5818 Cf EacuteN1096a 16-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 13
12
Aleacutem disso como a palavra ldquobemrdquo (ta0gaqon) tem tantos sentidos quantos ldquoserrdquo(o1nti) (visto que eacute predicada tanto na categoria de substacircncia como na de Deus(qeoj) e da razatildeo (nou=j) quanto na de qualidade (poiw~~) isto eacute das virtudes(a0retai) na de quantidade (ποσῷ) isto eacute daquilo que eacute moderado (metrion) nade relaccedilatildeo isto eacute do uacutetil (xrhimon) na de tempo (χρόνῳ) isto eacute da oportunidadeapropriada (kairoj) na de espaccedilo (τόπῳ) isto eacute do lugar apropriado etc) estaacuteclaro que o bem natildeo pode ser algo uacutenico e universalmente (kaqolou) presente poisse assim fosse natildeo poderia ser predicado em todas as categorias (kathgoriaj)mas somente numa19
Por este motivo Aristoacuteteles tambeacutem natildeo concorda com que o ldquomelhor bem de todosrdquo possa
ser entendido como um bem uacutenico pois isto seria irrealizaacutevel Para demonstrar a impossibilidade da
existecircncia de um Bem em si para todos os seres o Estagirita utiliza o caso das ciecircncias pois se
houvesse uma uacutenica Forma de Bem deveria existir uma uacutenica ciecircncia de todos os bens A realidade
prova que isso natildeo existe tendo em vista a variedade de ciecircncias que estuda cada tipo de ser20 Uma
ciecircncia especiacutefica natildeo procura um objeto em geral mas um objeto especiacutefico ligado ao seu estudo
conforme exemplifica Aristoacuteteles A medicina busca alcanccedilar a sauacutede natildeo visa alcanccedilar um bem
em geral que sirva como modelo para qualquer outra coisa 21
Para Aristoacuteteles o Supremo Bem tem de ser alcanccedilaacutevel pela accedilatildeo humana A vida feliz estaacute
no acircmbito da praacutexis De modo geral a ideia de praacutexis pode se referir a uma accedilatildeo ligada agrave razatildeo
vinculada a uma conduta a um modo de proceder da pessoa Por isso fala-se em ldquoagenterdquo desta
accedilatildeo pois o agente eacute a pessoa que realiza a accedilatildeo de maneira racional jaacute que um animal tido como
irracional natildeo pode agir no sentido aqui proposto
De tal maneira o Estagirita desfavorece o conceito de um fim que esteja longe da accedilatildeo do
indiviacuteduo que assevera que mesmo que houvesse uma uacutenica Forma de Bem conforme advogava
seu mestre antecessor esta ideia uacutenica de bem de nada serviria para a eacutetica O fim buscado tem de
estar necessariamente ligado agrave accedilatildeo humana Aristoacuteteles eacute expressivo ao afirmar que cada accedilatildeo
cada propoacutesito eacute realizado em funccedilatildeo da finalidade daquela atividade Por isso caso haja uma
finalidade geral (um ldquofim maiorrdquo) a ser buscado pelo agente este bem eacute executaacutevel pela accedilatildeo E se
existir mais de um bem eles devem ser alcanccedilados por meio das accedilotildees humanas22 Portanto sendo
ligado agrave accedilatildeo humana este soberano bem natildeo poderia ser algo inexequiacutevel para os seres humanos
Conforme Aristoacuteteles nos mostra na Eacutetica a Eudemo
19 EacuteN I1096a 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1220 Cf EacuteN I1096a 30 Ibidem p 1321 Cf EacuteE I1218b 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Eudemo Op cit p 61-6222 Cf EacuteN I1097a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 14
13
Fica evidente portanto que o bem em si objeto de nossa busca natildeo eacute a Forma dobem como tambeacutem natildeo eacute o bem como universal (posto que a primeira eacute imutaacutevel einexequiacutevel enquanto o segundo embora mutaacutevel eacute inexequiacutevel) Entretanto oobjeto visado como fim eacute o melhor aleacutem de ser a causa daqueles que lhe estatildeosubordinados e o primeiro de todos os bens esse bem consequentemente seria obem em si ou seja o fim exequiacutevel humano Trata-se do bem que se enquadranaquele que eacute soberana entre todas as ciecircncias [praacuteticas] nomeadamente a poliacuteticaassociada agrave economia e agrave sabedoria praacutetica 23
O Supremo Bem tem de estar ao alcance da realizaccedilatildeo humana Aristoacuteteles ao traccedilar a
criacutetica agrave ideia platocircnica de uma Forma de Bem alega que mesmo que existisse essa forma ideal de
bem ela em nada auxiliaria as atividades humanas Primeiro ela seria inatingiacutevel Segundo ela natildeo
contribuiria em nada para o exerciacutecio de qualquer ofiacutecio Eis o questionamento de Aristoacuteteles acerca
da Forma do Bem em que conhecer a Forma de Bem faria um meacutedico exercer melhor a medicina e
curar seus pacientes Ou em que este conhecimento da Forma de Bem tornaria excelente um
general em estrateacutegias de batalhas levando-o agrave vitoacuteria24 Mesmo que houvesse algueacutem que
argumente que o conhecimento da Forma do Bem auxilie o agente conseguir os bens que podem ser
alcanccedilados pela accedilatildeo pois serve como um paracircmetro o estagirita afirma que este argumento natildeo
procede visto que todas as ciecircncias visam bens especiacuteficos e natildeo um bem geral
Na busca para desvendar em que consiste este ldquobem maiorrdquo em uma perspectiva diferente da
concepccedilatildeo platocircnica Aristoacuteteles cita duas propriedades A primeira eacute que este tipo de bem deve ser
absoluto completo acabado (τέλειον25 O conceito de completo significa que este bem natildeo eacute
buscado como intermediaacuterio para alcanccedilar outro bem O ldquobem maiorrdquo eacute procurado como um fim em
si mesmo natildeo sendo condiccedilatildeo para qualquer outro tipo de fim Ou seja este bem tem de ser
incondicional e final e natildeo pode ser um bem intermediaacuterio A segunda propriedade deste bem eacute a de
ser autossuficiente A autossuficiecircncia (αὐτάρκειαdo ldquobem maiorrdquo consiste em prover somente
por si mesmo uma vida agradaacutevel e que natildeo falte nada26 Mas esta autossuficiecircncia natildeo pode ser
entendida sob um prisma individual como se o indiviacuteduo natildeo dependesse de nada ou de ningueacutem
Ao contraacuterio a autarkeia deve ser compreendida a partir de um prisma coletivo Esta perspectiva
23 EacuteE I 1218b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 6224 Cf EacuteN I 1097a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1425 Na Metafiacutesica 1021b 30 o termo teacuteleion eacute descrito do seguinte modo ldquoPortanto as coisas como se dizem perfeitaspor si em todos esses sentidos algumas porque relativamente a seu bem natildeo carecem de nada ou natildeo satildeo superadospor outras e natildeo tecircm nenhuma de suas partes fora de si outras em geral porque natildeo satildeo superadas por outra e natildeo tecircmnenhuma parte fora de si no acircmbito do seu gecircnerordquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego comtraduccedilatildeo e comentaacuterios de Giovanni Reale) Vol II Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ed 2005p 24126 Cf EacuteN I 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 15
14
comunitaacuteria eacute perceptiacutevel quando Aristoacuteteles remete ao fato que deve ser observada a suficiecircncia
em funccedilatildeo tambeacutem dos pais esposa amigos e cidadatildeos da poacutelis27
Ao considerarmos a relaccedilatildeo entre fins preciacutepuos que satildeo buscados em si mesmos e fins
subordinados de caraacuteter instrumental que servem como fins para alcanccedilar um fim maior essa
relaccedilatildeo de hierarquia traz alguns questionamentos a serem considerados De modo sucinto
expomos estes questionamentos uma vez que estatildeo inseridas na histoacuteria dos estudos acerca da eacutetica
aristoteacutelica A primeira questatildeo versa acerca da possibilidade de Aristoacuteteles ter cometido uma
falaacutecia chamada de ldquomenino e meninardquo A segunda questatildeo diz respeito ao bem supremo ser
compreendido como um fim dominante ou um fim inclusivo
12 Uma possiacutevel falaacutecia aristoteacutelica
A ideia de um fim uacuteltimo a ser alcanccedilado por meio de fins instrumentais eacute posta por
Aristoacuteteles no iniacutecio Eacutetica a Nicocircmaco A forma que eacute descrita esta relaccedilatildeo no tratado aristoteacutelico
entre o Supremo Bem que eacute buscado por si proacuteprio e demais fins que satildeo subordinados a ele gerou
o debate apresentado neste toacutepico Sobre o tema se Aristoacuteteles cometeu ou natildeo a falaacutecia
argumentativa sobre o argumento do fim expomos as perspectivas de Peter Thomas Geach e Peter
Vranas O primeiro considera que o estagirita incorreu em uma falaacutecia o segundo defende a ideia
que natildeo foi cometida nenhuma falaacutecia no argumento aristoteacutelico Neste sentido segue o trecho a ser
comentado
Se pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo etudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisadesejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito einuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem ou antes osumo bem28
27 Cf EacuteN I 1097b 10-13 Ibidem p 15 Entendemos tambeacutem que a ideia de autossuficiecircncia natildeo pode sercompreendida somente de modo individual tendo em vista o fato que o conceito de autarkeia tambeacutem eacute fundamentalpara a concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo poliacutetica da Cidade-estado grega Uma vez que a poacutelis eacute construiacuteda com a finalidade deser autocircnoma com todos os meios de prover a si proacutepria e propiciar o melhor ambiente para que os cidadatildeos alcancemuma vida feliz Conforme Aristoacuteteles aponta na obra Poliacutetica I 1252b 30-1253a 1-5 a vida feliz eacute a finalidade naturalda comunidade poliacutetica e todo ser estaacute plenamente integrado na natureza quando atinge seu pleno desenvolvimento ouseja estaacute completo com perfeiccedilatildeo Deste modo uma vez que o ser humano possui uma natureza social ela somente serealiza plenamente no contexto da poacutelis Outro fator que consideramos que a autossuficiecircncia eacute compreendida dentro deuma visatildeo coletiva refere-se agrave virtude da justiccedila De acordo com o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco V 1130a 1-5 elasomente pode ser exercida dentro de uma sociedade pois visa o bem alheio Eacute uma virtude que natildeo pode ser praticadade modo solitaacuterio pelo agente mas deve realizaacute-la em funccedilatildeo dos outros Disto decorre que a vida feliz de um indiviacuteduotambeacutem estaacute em parte relacionada agrave felicidade das pessoas que o cercam de modo mais proacuteximo e da comunidade emgeral 28 EacuteN I 1094a 18-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 9
15
Assim sendo abordemos a questatildeo da dita falaacutecia aristoteacutelica Segundo o comentador
Geach29 seria um erro de loacutegica formal Eacute perceptiacutevel que existe uma diferenccedila entre as expressotildees
(i)Todo menino ama alguma meninardquo e (ii) ldquoHaacute alguma menina que todo menino amardquo30 Se
tomarmos a expressatildeo ldquoTodo menino ama alguma meninardquo natildeo eacute possiacutevel inferir que ldquoHaacute alguma
menina que todo menino amardquo sem fazer uma falaacutecia Ou seja (i) natildeo implica em (ii)
Agrave luz do exemplo de Geach o deslize argumentativo manifesta-se no fato de afirmar que
Todo menino ama alguma meninardquo natildeo implica necessariamente que exista alguma menina ou
seja uma uacutenica menina que todo menino ama Em termos teacutecnicos da loacutegica moderna a falaacutecia
cometida por Aristoacuteteles eacute denominada como uma falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores31
Na falaacutecia da inversatildeo dos quantificadores eacute realizada uma passagem interdita entre um
conjunto de relaccedilotildees dispersas32 de fins para um conjunto de relaccedilotildees convergentes33 para um uacutenico
fim Isso se traduz da seguinte forma Se imaginarmos um conjunto de meninas e um outro conjunto
de meninos com o mesmo nuacutemero de elementos em cada conjunto Uma primeira possibilidade de
interaccedilatildeo entre os elementos de cada grupo seria cada rapaz amar uma garota que nenhum outro
garoto do grupo dos meninos ame tambeacutem Neste caso os dois conjuntos estatildeo dispersos natildeo haacute
uma convergecircncia entre os elementos dos respectivos grupos devido ao fato que um garoto
somente ama uma garota Na segunda possibilidade todos os garotos amam uma exclusiva e mesma
garota entatildeo existe uma convergecircncia total de todos os elementos do conjunto dos meninos
direcionados para uma uacutenica garota do grupo das meninas34 Deste modo essa inversatildeo de
quantificadores aplicada ao argumento aristoteacutelico significa afirmar que podem haver diferentes fins
a serem buscados tendo em vista a variedade de coisas e desejos humanos Eacute o caso mesmo que
natildeo desejemos uma seacuterie infinita de coisas a serem buscadas com vistas em outra pois este fato
acarreta uma seacuterie infinita de desejos Isto natildeo implica necessariamente que exista um uacutenico e
melhor fim que desejemos e todos os outros fins sejam buscados em funccedilatildeo dele
Eacute preciso observar no caso em questatildeo que Geach natildeo analisa especificamente agrave Eacutetica a
Nicocircmaco e nem o argumento aristoteacutelico por si mesmo Ele apenas o utiliza como exemplo
29 Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972 p 1-1330 No dizer de Geach ldquoAnybody can see that from lsquoEvery boy loves some girlrsquo we cannot infer lsquoThere is some girl thatevery boy lovesrsquo that from lsquoIt is obligatory that somebody should gorsquo it does not follow that lsquoThere is somebody who itis obligatory should gorsquo[] rdquo Ibidem p 131ldquoOperator-shift fallacy ldquoou ldquoquantifier-shift fallacyrdquo Cf Ibidem p 132 A dispersatildeo significa que cada elemento pertencente a um grupo x busca os outros elementos do grupo y Natildeo existea busca dos elementos do grupo x para um uacutenico elemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees dispersassignificam que todos os garotos buscam todas as garotas Ou seja cada garoto procura conquistar a sua garota Natildeo haacuteuma busca do grupo dos garotos para alcanccedilar uma uacutenica e mesma garota 33 A convergecircncia significa a orientaccedilatildeo para um mesmo objetivo Todos os elementos do grupo x buscam um uacutenicoelemento do grupo y No contexto apresentado as relaccedilotildees convergentes significam que todos os garotos convergem ouseja todos se orientam para buscar uma uacutenica e mesma garota34 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia aristoteacutelica Tese deDoutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas p 78
16
juntamente com trechos de escritos de outros filoacutesofos famosos35 para demonstrar os requisitos
necessaacuterios de uma teoria da quantificaccedilatildeo na loacutegica moderna E tambeacutem utiliza estes escritos para
mostrar como pode ser uma ocorrecircncia comum cometer este tipo de falaacutecia de inversatildeo de
quantificadores36
A questatildeo da validade loacutegica expressa no referido trecho da Eacutetica a Nicocircmaco citado acima
natildeo eacute o escopo principal deste trabalho Mas eacute interessante apontar de maneira miacutenima um
possiacutevel caminho de superaccedilatildeo que este impasse trouxe agrave leitura do argumento aristoteacutelico haja
vista ser um dos argumentos centrais acerca da eudaimonia pois ela eacute o fim que natildeo se busca leva a
nenhum outro Para tanto seguimos dois enfoques descritos a seguir
Na primeira abordagem consideremos somente o aspecto da validade formal do argumento
aristoteacutelico Um possiacutevel caminho eacute realizar uma interpretaccedilatildeo do argumento aristoteacutelico que una as
proposiccedilotildees (a) ldquoSe pois para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo
e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim [] rdquo e (b) ldquo[]se eacute verdade que nem toda coisa
desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo
seria o nosso desejar) []rdquo como duas premissas que fundamentam a conclusatildeo (c) ldquo[] tal fim
seraacute o bem ou antes o sumo bemrdquo Isso eacute possiacutevel devido a utilizaccedilatildeo do termo ldquoerdquo (kai)37 no texto
aristoteacutelico que introduz a proposiccedilatildeo (a) e faz a ligaccedilatildeo com a proposiccedilatildeo (b) Logo haacute uma
indicaccedilatildeo hipoteacutetica da existecircncia de um fim desejado por si um fim uacuteltimo (fim universal) que
subordina os demais fins que satildeo instrumentais
Esta interpretaccedilatildeo literal do argumento aristoteacutelico eacute defendida por Peter Vranas38 que
retoma a mesma linha de raciociacutenio anteriormente defendida por Michael Wendin39 segundo a qual
Aristoacuteteles natildeo cometeu uma falaacutecia E natildeo incorreu em uma falaacutecia porque as duas proposiccedilotildees (a)
e (b) devem ser entendidas como uma conjunccedilatildeo No entender de Vranas caso consideremos que
existam dois fins uacuteltimos implicados se (a) eacute um fim universal e (b) eacute um fim natildeo-instrumental
procede que existe um uacutenico fim natildeo-instrumental40 que eacute equivalente a um fim uacutenico universal41
Logo esta conjunccedilatildeo implica que o fim proposto por Aristoacuteteles eacute um fim de caraacuteter natildeo-
instrumental o que significa que eacute um fim uacutenico universal42
35 Geach utiliza trechos de obras de Platatildeo Berkeley Spinoza Cf GEACH PT ldquoHistory of a Fallacyrdquo Op cit p 2-536 Ibidem p 237 A junccedilatildeo das duas proposiccedilotildees eacute admissiacutevel tendo em vista o uso do termo καί que eacute o equivalente na liacutenguaportuguesa agrave conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo38 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo Phronesis Vol 50Nordm 2 2005 p 116-128 39 Cf WEDIN M ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981 p243-262 40 Fim natildeo-instrumental significa que este natildeo eacute perseguido por causa de nenhum outro fim41 Fim uacutenico universal equivale ao fim uacuteltimo42 Cf VRANAS P ldquoAristotle on the best goodrdquo Op cit p 118
17
Nesta linha de raciociacutenio caso as proposiccedilotildees (a) e (b) sejam verdadeiras sendo (a) um fim
uacutenico universal todos os outros fins tornam-se intermediaacuterios (fins ldquoxrdquo) instrumentos para alcanccedilar
(a) Inclusive o fim (b) assume nesta hipoacutetese um caraacuteter instrumental Mas a situaccedilatildeo pode ser
invertida pois caso (b) seja o fim a ser buscado torna-se o fim uacutenico universal com os fins
intermediaacuterios (fins ldquoyrdquo) como instrumentos para alcanccedilar (b) Neste caso (a) passa a ser
instrumental Portanto mesmo que um indiviacuteduo siga qualquer um dos fins (a) ou (b) como estatildeo
mutuamente relacionados entre si de todos os modos sua busca recai sobre o fim uacutenico universal43
A interpretaccedilatildeo de Vranas eacute interessante do ponto de vista da loacutegica formal e tenta inocentar
Aristoacuteteles de ter cometido a mencionada falaacutecia Este esforccedilo possui o seu meacuterito tendo em vista
ser uma denuacutencia que tem durado ao longo do tempo e defendida por diversos estudiosos da obra do
Estagirita Ainda assim haacute em nosso entender uma fragilidade no argumento exposto pelo citado
comentador A interpretaccedilatildeo literal estaacute baseada em uma leitura que aparentemente procura forccedilar
um limite de explicaccedilatildeo que natildeo encontra respaldo no texto aristoteacutelico Ao considerar o tratado da
Eacutetica a Nicocircmaco como um todo natildeo nos parece que haja dois fins uacuteltimos um de caraacuteter universal
e outro natildeo-instrumental de que possuam relaccedilotildees reciacuteprocas entre si Este fim universal e uacutenico eacute
asseverado pelo Estagirita quando afirma a existecircncia de apenas um fim absoluto e incondicional
Se porventura existir mais de um fim o mais absoluto de todos torna-se o objetivo a ser alcanccedilado
Este fim absoluto e incondicional eacute a proacutepria eudaimonia visto que todos os outros fins
intermediaacuterios satildeo buscados como meios para alcanccedilar uma vida feliz44 Assim sendo o texto de
Aristoacuteteles leva ao entendimento que exista somente um fim que eacute universal e uacutenico e os demais
fins possuem um caraacuteter instrumental de subordinaccedilatildeo a este fim universal
Em relaccedilatildeo ao argumento de Geach no qual ele afirma que natildeo eacute possiacutevel inferir a partir da
proposiccedilatildeo Todo menino ama alguma meninardquo que exista ldquoHaacute alguma menina que todo menino
amardquo O problema eacute que esta afirmaccedilatildeo natildeo considera a questatildeo da hierarquia de fins mencionada
no texto aristoteacutelico Ao desconsiderar esta hierarquia de fins haacute a eliminaccedilatildeo de qualquer
possibilidade de convergecircncia entre o Sumo Bem e outros fins A hierarquia entre fins subordinados
e os fins principais das variadas artes ciecircncias e atividades eacute descrita por Aristoacuteteles ao enumerar
alguns exemplos o fim da arte meacutedica eacute a sauacutede o fim da construccedilatildeo naval eacute a fabricaccedilatildeo do navio
o fim da estrateacutegia eacute a vitoacuteria o fim da economia eacute a riqueza o fim da selaria eacute a equitaccedilatildeo Os fins
uacuteltimos de cada arte satildeo preferiacuteveis por serem mais importantes por isso devem ser buscados por
meio dos fins subordinados45 O texto aristoteacutelico eacute claro ao afirmar a existecircncia de uma hierarquia
de fins em si que se encaminha agravequele fim uacuteltimo que eacute perseguido por todo ser humano em sua
43 Ibid p 11944 Cf EacuteN 1097a 25-30 a 1097b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1545 Cf EacuteN 1094a 7-15 Ibidem p 9
18
vida Eacute um raciociacutenio de cunho arquitetocircnico o qual mostra que os vaacuterios fins subordinados satildeo
etapas para alcanccedilar o fim uacuteltimo de determinada arte Deste modo como o objeto da eacutetica
aristoteacutelica eacute a felicidade humana Aristoacuteteles descreve a ldquoarquiteturardquo de construccedilatildeo de uma vida
feliz na qual cada fim eacute buscado com vistas a alcanccedilar esta plena realizaccedilatildeo que eacute a felicidade (fim
supremo)
O argumento de Geach parece natildeo contemplar esta arquitetura proveniente desta
convergecircncia do fim uacuteltimo e os fins subordinados Para uma melhor compreensatildeo desta
convergecircncia dos diversos fins um bom exemplo seria pensar em uma bacia hidrograacutefica46 Existem
rios secundaacuterios que satildeo diferentes entre si cada um com sua foz individual mas todos convergem
para o rio principal que desemboca no mar ou em um lago Cada rio secundaacuterio converge para um
fim maior mais abrangente que eacute o rio principal que desemboca no mar ou no lago que neste caso
representa o fim supremo Tal como a medicina busca a sauacutede a estrateacutegia busca agrave vitoacuteria agrave selaria
busca a equitaccedilatildeo etc e todas satildeo realizadas em vista da eudaimonia Logo a rede hidrograacutefica
como um todo eacute convergente e natildeo somente um uacutenico rio
A segunda abordagem visa examinar o domiacutenio referencial no qual o argumento aristoteacutelico
estaacute fundamentado em um aspecto praacutetico ou teoacuterico Para esta linha de pensamento a referecircncia
principal do argumento aristoteacutelico se encontra no universo da accedilatildeo O raciociacutenio do fim uacuteltimo
pode ser analisado sob dois prismas e cada um deles conduz agrave uma conclusatildeo diferente O primeiro
prisma eacute o de validade loacutegica o qual descrevemos acima ao examinar a criacutetica de Geach ao texto
aristoteacutelico O segundo prisma eacute analisar o argumento aristoteacutelico inserido no campo das accedilotildees
humanas Caso o argumento aristoteacutelico seja examinado sob o ponto de vista da loacutegica formal
apenas resta tentar estabelecer formas de evitar o julgamento de Geach por meio dos instrumentos
cabiacuteveis da loacutegica formal ou simplesmente aceitar o fato que houve o cometimento de uma falaacutecia
pelo Filoacutesofo Mas caso seja escolhido o prisma referencial que coloca o argumento aristoteacutelico no
acircmbito da praacutexis humana talvez seja possiacutevel sobrepujar o desafio imposto por Geach Portanto
procederemos agrave anaacutelise do argumento aristoteacutelico sob a oacutetica da dimensatildeo praacutetica
O domiacutenio referencial no qual se insere o argumento aristoteacutelico eacute a accedilatildeo humana Natildeo se
trata somente de considerar a validade loacutegica das proposiccedilotildees como verdadeiras ou falsas mas
tambeacutem como devem ser entendidos conceitos importantes para a anaacutelise da conduta dos
indiviacuteduos tais como a felicidade o bem humano as virtudes etc Neste sentido haacute um
deslocamento para o domiacutenio praacutetico do argumento aristoteacutelico evitando seu uso somente no
domiacutenio teoacuterico no qual Geach realiza sua anaacutelise O domiacutenio teoacuterico e o domiacutenio praacutetico satildeo
compreendidos a partir da conceituaccedilatildeo de Aristoacuteteles O aspecto teoacuterico desenvolve as operaccedilotildees
46 Cf GAZONI Fernando Felicidade controversa Op cit p 89
19
intelectuais da bios theorethikoacutes da verdade e da falsidade dos postulados do raciociacutenio47 enquanto
o aspecto praacutetico tem por objeto natildeo somente a validade das proposiccedilotildees mas orientar a conduta do
homem em funccedilatildeo da verdade Logo este uacuteltimo aspecto cuida para que a verdade permaneccedila em
concordacircncia com a retidatildeo no desejo e possa orientar a racionalidade praacutetica para a consecuccedilatildeo de
um fim nobre48
13 Fim dominante ou fim inclusivo
Neste ponto pode surgir um questionamento acerca da relaccedilatildeo entre fins e o supremo bem
uma vez que possa haver uma convergecircncia entre fins em prol de um fim supremo Quais fins
devem ser buscados pelo indiviacuteduo para que atinja uma vida feliz A resposta a esta pergunta
inspira duas perspectivas diferentes sobre o Supremo Bem e qual eacute a sua relaccedilatildeo com os fins
subordinados a ele Neste sentido existem duas visotildees sobre o Supremo Bem A primeira eacute vista
sob o prisma de um fim uacuteltimo dominante a segunda como um fim uacuteltimo inclusivo Deste modo
abordaremos estes dois pontos de vista acerca deste Bem maior
Uma vez que o sumo bem eacute a eudaimonia esta eacute identificada com a vida teoacuterico-
contemplativa ou pelo menos haacute uma grande ecircnfase neste tipo de vida como sendo uma vida
feliz49 Logo a pergunta central eacute saber se a vida feliz eacute somente caracterizada pela contemplaccedilatildeo
ou tambeacutem inclui outros tipos de bens
Na anaacutelise acerca do fim aristoteacutelico ser dominante ou inclusivo os principais estudiosos satildeo
William Francis Ross Hardie e John Lloyd Ackrill O primeiro comentador W F R Hardie defende
o ponto de vista de um fim dominante Enquanto o segundo estudioso advoga que o fim descrito por
Aristoacuteteles deve ser observado a partir de uma perspectiva inclusivista
No caminho de anaacutelise acerca da eudaimonia ser um fim dominante ou inclusivo WFR
Hardie50 iniciou esta discussatildeo ao afirmar que existiria uma falta de precisatildeo de Aristoacuteteles ao expor
o argumento que a eudaimonia eacute o fim uacuteltimo a ser alcanccedilado pelos indiviacuteduos Esta imprecisatildeo eacute
causada pelo fato do Estagirita natildeo ter explicitado de modo claro e contundente que espeacutecie de fim
uacuteltimo eacute o Supremo Bem A insuficiecircncia na explicaccedilatildeo aristoteacutelica permite a especulaccedilatildeo sob qual
prisma deve ser entendido o Bem maior como fim dominante ou inclusivo A desordem reside no
seguinte ponto Ao buscar a felicidade os indiviacuteduos elaboram o seu planejamento de vida que
inclui alcanccedilar determinados fins para satisfazer desejos que os levaratildeo a ter uma vida feliz Ao
47Cf EacuteN VI 1139a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10248Cf EacuteN VI 1139a 35-1139b 4 Ibidem p 10249Cf EacuteN X 1177a 11-15 ndash 1178a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 188-18950Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacuteticanicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
20
fazer este planejamento a duacutevida recai sobre qual eacute a ecircnfase colocada em um determinado fim para
que este se torne o seu fim predominante para que este fim se transforme no eixo central da vida
Este eixo central que eacute um objeto uacutenico desejado na vida do indiviacuteduo pode ser a riqueza a fama
a ciecircncia para ficarmos com alguns exemplos citados na Eacutetica a Nicocircmaco Ao planejar sua vida
qualquer indiviacuteduo sabe que possui variados interesses e desejos Percebe que alguns desejos satildeo
mais importantes que outros Ou percebe que alguns desejos satildeo mais difiacuteceis de serem realizados
enquanto outros satildeo mais faacuteceis E que a busca de um desejo escolhido pode auxiliar atrapalhar ou
tornar irrealizaacutevel a satisfaccedilatildeo de outros desejos Desta forma o indiviacuteduo que reflete acerca dos
seus desejos dentro do seu plano de vida procura traccedilar um caminho que permita a conquista do
modo mais completo possiacutevel dos desejos elencados como os mais importantes e satisfatoacuterios Sob
esta perspectiva o desejo pela felicidade consiste em satisfazer vaacuterios desejos de maneira
harmoniosa e ordenada
Na compreensatildeo de Hardie51 a concepccedilatildeo de fim inclusivo como sendo um conjunto de
fins pode ser constatado na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles ao dizer que uma ciecircncia ldquoarquitetocircnicardquo52 se
constitui com um fim preciacutepuo53 A felicidade eacute considerada como a coisa mais desejada perante
todas as outras sem que seja contada entre elas pois continua a ser a mais desejada mesmo com a
adiccedilatildeo do menor dos bens54 Para o mencionado comentador o estagirita deveria conceituar a
felicidade como um fim de segunda ordem55 no qual se incluiriam os fins de primeira ordem em
uma plena realizaccedilatildeo harmoniosa Mas ele natildeo o faz Diante deste quadro no entender de Hardie o
filoacutesofo grego ao tentar definir o bem final aproxima-se de uma concepccedilatildeo inclusivista mas
termina por construir uma concepccedilatildeo dominante sobre o supremo bem
A tese que compreende a eudaimonia como fim dominante descreve que o Sumo Bem
possui um cunho superior mais elevado que os outros fins Se a eudaimonia estaacute acima de outros
fins como por exemplo a honra o prazer a riqueza ou o conhecimento e se para alcanccedilar uma
vida feliz eacute necessaacuterio alcanccedilar um determinado tipo de fim pois este fim identifica-se com a
eudaimonia entatildeo este fim passa a ser o mais importante e superior de todos os outros fins juntos
A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo isso significa dizer que caso a eudaimonia seja identificada com a riqueza
esse fim torna-se essencial e deve ser buscado por qualquer indiviacuteduo que queira uma vida feliz Haacute
uma preponderacircncia deste fim essencial sobre outros fins os quais se tornam suplementares Todas
51Cf HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo Op cit p 44 52Cf EacuteN 1094a 26-27 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4453Um exemplo utilizado eacute caso da poliacutetica Esta ciecircncia possui a caracteriacutestica de comportar vaacuterios outros fins CfEacuteN 1094b 6-7 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4454Cf EacuteN 1097b 16-20 Apud HARDIE WFR Ibidem p 4455A felicidade eacute um fim de segunda ordem por ser considerada o fim uacuteltimo o fim mais desejado O fim de segundaordem eacute decorrente da consecuccedilatildeo de fins de primeira ordem que satildeo conquistados por meio das accedilotildees do indiviacuteduo
21
as accedilotildees do indiviacuteduo convergem para atingir este fim considerado o mais importante porque ele eacute
o proacuteprio nuacutecleo da eudaimonia
A criacutetica da concepccedilatildeo dominante eacute feita por JL Ackrill56 Este uacuteltimo concorda com
Hardie que natildeo eacute clara a posiccedilatildeo aristoteacutelica sobre a eudaimonia possuir uma tendecircncia inclusiva
ou dominante Mas Ackrill57 defende que conceito de eudaimonia exposto por Aristoacuteteles eacute
fundamentalmente de cunho inclusivo No argumento de Ackrill o conceito de fim inclusivo pode
ser entendido de duas formas A primeira forma de compreensatildeo eacute enxergar o fim como algo que
inclua dois ou mais objetivos valores atividades ou bens os quais possuem um mesmo valor natildeo
havendo uma diferenccedila de importacircncia entre estes elementos A segunda forma eacute compreender o
fim como algo que englobe os mesmos elementos (objetivos valores etc) mas que possuem um
valor aproximadamente igual entre si Ou seja nenhum elemento eacute muito superior a qualquer um
dos outros elementos inclusos no fim O conceito de fim dominante tambeacutem pode ser entendido de
duas formas58 A primeira forma entende o fim dominante com sendo um ldquofim monoliacuteticordquo que
consiste em somente uma atividade ou um bem mais valoroso Na segunda forma o fim conteacutem dois
ou mais elementos que satildeo valorosos em si mesmos mas somente um destes elementos eacute
considerado o mais importante de todos sendo o elemento que possui a preponderacircncia ou
supremacia frente a todos os demais elementos Logo este eacute o bem dominante dentro do fim uacuteltimo
Ackrill continua a argumentar que o fim uacuteltimo eacute uma reuniatildeo de fins que podem ser
agradaacuteveis e dignos em si mesmos natildeo havendo um uacutenico fim que seja superior aos demais fins59
A analogia que Ackrill utiliza eacute comparar o Supremo Bem com um cafeacute da manhatilde com trecircs
elementos bacon ovos e tomates Em uma leitura inclusiva bacon natildeo eacute superior aos ovos e aos
tomates Os trecircs juntos satildeo melhores que apenas o bacon A combinaccedilatildeo dos trecircs elementos forma
um conjunto superior em relaccedilatildeo a um fim uacuteltimo que eacute baseado somente em um uacutenico elemento
Na interpretaccedilatildeo de Zingano 60 o Supremo Bem natildeo eacute um uacutenico bem que estaacute acima de
todos os outros bens Consiste em uma reuniatildeo de todos os bens buscados pelo indiviacuteduo Eacute um
bem formalmente uacutenico mas materialmente diversificado61 Pois a tese que compreende a
56Cf ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteiade Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-12557Cf ACKRILL JL Ibidem p 10558 Em relaccedilatildeo ao fim dominante este pode ser interpretado em uma chave de leitura ldquoforterdquo ou ldquofracardquo O ponto devista ldquoforterdquo como um ldquofim monoliacuteticordquo aparece quando Hardie afirma que o fim supremo aristoteacutelico eacute dominanteporque eacute identificado com um uacutenico objeto de desejo principal que eacute a proacutepria filosofia (entendida como sabedoriacontemplativa) O ponto de vista ldquofracordquo surge no momento que Hardie assevera que dentre alguns fins combinadosexiste um fim dominante Segundo Ackrill a chave de leitura ldquoforterdquo eacute a adotada por Hardie Por isso natildeo pode seraceita porque um fim dominante ldquomonoliacuteticordquo seria restritivo demais para ser elencado como o Supremo Bem a serconquistado59 Cf ACKRILL JL rdquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo Op cit p 10860 Cf ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 73-11061 Cf Ibidem p 103
22
eudaimonia como um fim inclusivo descreve que a felicidade possui uma pluralidade de fins em si
que satildeo independentes mas satildeo buscados de forma harmocircnica Nesta pluralidade de fins existem
fins que satildeo desejados por si mesmos e fins instrumentais (subordinados) a estes fins preciacutepuos que
somente servem para atingir os fins em si Mas todos eles satildeo buscados tendo em vista a
eudaimonia Deste modo a eudaimonia inclui todos os fins desejaacuteveis que podem ser buscados em
vista do Sumo Bem
Esta eacute a posiccedilatildeo de Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar a ideia de bem aristoteacutelica Eacute o
ldquobem geralrdquo que delimita a atividade especiacutefica de cada ciecircncia em particular Igualmente ocorre
com as accedilotildees humanas em geral o homem realiza diversas accedilotildees particulares que conteacutem seus fins
particulares mas todas estas accedilotildees satildeo feitas em vistas de alguma concepccedilatildeo de Sumo Bem
Conforme mostra o Aquinate nas Sententia Libri Ethicorum
Assim quando Aristoacuteteles diz-se (sic) que o bem eacute o que todos apetecem natildeo sedeve entender apenas para os que tecircm conhecimento que apreendem o bem mastambeacutem para os que carecem do conhecimento que tendem ao bem por um apetitenatural natildeo enquanto conheccedilam o bem mas porque satildeo movidos ao bem poralgum cognoscente a saber pela ordenaccedilatildeo do intelecto divino ao modo como aflecha tende ao alvo pela direccedilatildeo do arqueiro Mas o proacuteprio tender ao bem eacuteapetecer o bem e por isso disse que o ato apetece ao bem enquanto tende ao bemNatildeo eacute poreacutem um uacutenico bem ao qual todas as coisas tendem como foi dito acimaE portanto natildeo se descreve aqui um uacutenico bem mas um bem considerado emcomum Porque nada eacute bom a natildeo ser quanto eacute certa semelhanccedila e participaccedilatildeo dosumo Bem o mesmo sumo Bem que eacute de algum modo apetecido em todo bem Eassim pode-se dizer que eacute um uacutenico bem o que todos apetecem62
Natildeo eacute objetivo principal deste trabalho responder plenamente agrave questatildeo da eudaimonia ser
um fim dominante ou um fim inclusivo Mas pensamos ser interessante apresentar um breve parecer
acerca deste tema relacionado a vida feliz A questatildeo de como interpretar a eudaimonia como um
fim dominante ou fim inclusivo decorre da forma que Aristoacuteteles apresenta a vida teoacuterico-
contemplativa (βίος θεωρητικός) no Livro X da Eacutetica a Nicocircmaco Sob a perspectiva de fim
62 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes Vol IEdiccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015 p27 A citaccedilatildeo em latim vemdas Sententia Libri Ethicorum liber 1 lectio 1 n 11 ldquoQuod autem dicit quod omnia appetunt non est intelligendumsolum de habentibus cognitionem quae apprehendunt bonum sed etiam de rebus carentibus cognitione quae naturaliappetitu tendunt in bonum non quasi cognoscant bonum sed quia ab aliquo cognoscente moventur ad bonum scilicetex ordinatione divini intellectus ad modum quo sagitta tendit ad signum ex directione sagittantis Ipsum autem tenderein bonum est appetere bonum unde et actum dixit appetere bonum in quantum tendit in bonum Non autem est unumbonum in quod omnia tendunt ut infra dicetur Et ideo non describitur hic aliquod unum bonum sed bonumcommuniter sumptum Quia autem nihil est bonum nisi inquantum est quaedam similitudo et participatio summi boniipsum summum bonum quodammodo appetitur in quolibet bono et sic potest dici quod unum bonum est quod omniaappetuntrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Sententia libri Ethicorum liber I a lectio I ad IIIDisponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc0101htmlgt Acesso em 23 de junho de 2017
23
dominante todas as virtudes bens externos e a conduta do indiviacuteduo estatildeo subordinados a um fim
uacutenico e determinado que consiste na vida teoacuterico-contemplativa Aristoacuteteles natildeo poupa elogios agrave
vida teoacuterico-contemplativa ao descrever que esta eacute a melhor a mais duraacutevel a mais completa
autossuficiente e a mais amada de todas as atividades63 A contemplaccedilatildeo em outras palavras a
sabedoria filosoacutefica (σοφία) eacute o fim mais desejaacutevel entre todos os outros fins Por outro lado o
Estagirita destaca o papel das virtudes morais juntamente com a virtude intelectual da prudecircncia no
Livro VI da EacuteN Na eacutetica aristoteacutelica haacute uma grande importacircncia conferida agrave vida praacutetica Desta
maneira resta saber como a contemplaccedilatildeo interage com as virtudes morais a virtude da prudecircncia e
os demais fins
Em que consiste a vida teoacuterico-contemplativa Consiste em um estilo de vida que busca o
conhecimento da verdade64 e a nobreza de conduta como fundamento principal porque a verdade e
a nobreza de conduta adquirida por meio da praacutetica das virtudes morais satildeo pilares da eudaimonia
A faculdade da razatildeo eacute o que haacute de mais caracteriacutestico no ser humano Por isso pautar-se por ela
traz a certeza de uma vida feliz65 E aliado a esta racionalidade encontram-se as accedilotildees virtuosas66
Logo a vida contemplativa eacute uma vida proveniente da uniatildeo do exerciacutecio do intelecto com a retidatildeo
moral
A vida teoacuterico-contemplativa pode ser chamada de dominante por ser a meta a ser
perseguida como tipo de vida ideal para o indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida de plenitude
Uma vez identificada com a eudaimonia passa a ser o fim uacuteltimo e supremo Mas essa dominacircncia
da vida contemplativa para que possa ser efetiva inclui outros tipos de fins que satildeo as virtudes
morais e poucos bens externos67 Deste modo existe uma mescla entre as vertentes dominante e
inclusiva na compreensatildeo do Supremo Bem aristoteacutelico
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos questionamentos levantados ao longo do tempo sobre o caraacuteter
dominante ou inclusivo do fim aristoteacutelico no proacuteximo toacutepico analisaremos os conceitos basilares
de ldquofunccedilatildeordquo e de ldquofinalidaderdquo utilizados na filosofia moral de Aristoacuteteles
63 Cf EacuteN X 1177a20-30 e X 1177b1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 190-19164 Cf EacuteN1177b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p19065 Cf EacuteN1178a 5-8 Ibidem p19066 Cf EacuteN 1178a 10 Ibidem p19067 CF EacuteN 1179a 5-7 Ibidem p191
24
14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres
Acerca do conceito de finalidade (ές existe uma outra significaccedilatildeo possiacutevel deste termo
que eacute a de ldquoplenituderdquo (τέλειον) Assim ao afirmar que os seres tendem agrave sua finalidade pode-se
entender que os seres procuram ou tendem a serem plenos completos por realizarem seus fins
especiacuteficos
O conceito de finalidade eacute dotado de grande importacircncia para a compreensatildeo da visatildeo eacutetica de
Aristoacuteteles Sua filosofia moral eacute baseada na finalidade caracteriacutestica do ser humano Toda a accedilatildeo
humana eacute realizada em funccedilatildeo de um determinado fim seja este considerado em si mesmo seja este
visto como meio para obtenccedilatildeo de outros fins Do mesmo modo o ser humano tende a uma
finalidade propriamente sua que deriva de sua proacutepria natureza Essa finalidade proacutepria ultrapassa
os fins especiacuteficos das accedilotildees humanas como por exemplo ser artesatildeo ser poliacutetico ser pedagogo ou
quaisquer outras accedilotildees exercidas Eacute um tipo de fim mais abrangente e duradouro ao qual os outros
fins estatildeo subordinados Neste sentido a plena realizaccedilatildeo do ser humano encontra-se no
aperfeiccediloamento de todas as suas caracteriacutesticas e em especial no uso da razatildeo (λόγος)
Ao dizer que a eudaimonia eacute o ldquomelhor bem de todosrdquo e o mais procurado68 Aristoacuteteles
procurar fundamentar o alcance de uma vida plena na ideia de ergon (ἔργονdos seres Este termo
eacute tradicionalmente traduzido por ldquofunccedilatildeordquo mas tambeacutem pode ser entendido como ldquotrabalhordquo
ldquoocupaccedilatildeordquo ldquotarefardquo69 Optamos por utilizar o termo tradicional de funccedilatildeo uma vez que
acreditamos ser o termo adequado para o entendimento da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as
funccedilotildees e virtudes que cada ser possui e que no contexto eacutetico culmina com a funccedilatildeo e virtude do
ser humano O que significa essa funccedilatildeo exclusiva das coisas Significa dizer que cada ser possui
uma funccedilatildeo que lhe eacute caracteriacutestica em decorrecircncia daquela finalidade para a qual fora criada Ou
seja a finalidade eacute inerente aos seres Por exemplo um navio eacute criado para navegar este objeto foi
criado para isso sua finalidade preciacutepua eacute a navegaccedilatildeo Caso o navio seja utilizado para outros fins
que natildeo agravequele ao qual foi originalmente fabricado haacute um desvirtuamento do seu fim original Ou
entatildeo o navio esteja com um casco fendido o que impossibilita uma boa navegaccedilatildeo a embarcaccedilatildeo
natildeo cumpre ou cumpre de modo pouco eficaz o fim para o qual foi designado Logo tanto na
situaccedilatildeo de desvirtuamento para o uso de outras funccedilotildees que natildeo aquela para o qual foi criado o
navio quanto na situaccedilatildeo em que haacute um casco ruim este objeto natildeo desempenha plenamente a sua
funccedilatildeo
68CF EacuteN 1097b 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p1569PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles Op cit p32
25
O navio ao natildeo desempenhar plenamente a sua funccedilatildeo perde a possibilidade de alcanccedilar a
excelecircncia na accedilatildeo de navegar Esta excelecircncia eacute a virtude (ἀρετήde cada ser eacute a plena realizaccedilatildeo
da sua funccedilatildeo atingida por qualquer ser E esta plenitude eacute atingida quando haacute (1) o cumprimento
exato da sua finalidade e (2) quando a accedilatildeo realizada eacute feita de forma maximamente eficaz Esta
ideia de virtude das coisas ao exercerem a sua funccedilatildeo de um ldquobom modordquo e de uma maneira eficaz
eacute o bem desta coisa Assim sendo Aristoacuteteles busca a funccedilatildeo inerente ao ser humano aquilo que lhe
eacute mais essencial Pois a vida plena a eudaimonia de um ser humano estaacute associada agrave realizaccedilatildeo
daquilo que lhe eacute mais proacuteprio ou seja do seu ergon mais distintivo conforme descrito na Eacutetica a
Nicocircmaco
Mas dizer que a felicidade eacute o sumo bem talvez pareccedila uma banalidade e faltaainda explicar mais claramente o que ela seja Tal explicaccedilatildeo natildeo ofereceria grandedificuldade se pudeacutessemos determinar primeiro a funccedilatildeo do homem Pois assimcomo para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisasque tecircm uma funccedilatildeo ou atividade considera-se que o bem e o ldquobem feitordquo residemna funccedilatildeo o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo Dar-se-aacute ocaso entatildeo de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funccedilotildees e atividades eo homem natildeo tenha nenhuma Ou assim como o olho a matildeo o peacute e em geral cadaparte do corpo tecircm evidentemente uma funccedilatildeo proacutepria poderemos assentar que ohomem do mesmo modo tem uma funccedilatildeo agrave parte de todas essas Qual poderaacute serela70
Cada oacutergatildeo do corpo humano possui sua funccedilatildeo especiacutefica e quando esta funccedilatildeo eacute exercida
da sua melhor maneira encontra-se em sua plena virtude O carpinteiro ou curtidor tem sua
atividade preciacutepua ao exercer sua respectiva funccedilatildeo de moldar a madeira e preparar o couro da
melhor maneira exerce suas atividades de modo virtuoso Em outras palavras assume seu grau de
excelecircncia Neste sentido o ser humano realiza plenamente sua funccedilatildeo proacutepria quando escolhe
atingir a excelecircncia naquilo que o diferencia de outros seres que eacute a racionalidade
Para responder a esta questatildeo acerca da funccedilatildeo proacutepria do ser humano Aristoacuteteles recorre agrave
divisatildeo da alma ( exposta na obra De Anima na qual eacute demonstrada a ideia de que a alma
possui trecircs partes ou faculdades distintas as quais satildeo intituladas de nutritiva (vegetativa) sensitiva
(perceptiva) e intelectiva (racional) A faculdade nutritiva eacute responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo dos seres vivos Eacute a faculdade nutritiva que primeiramente proporciona que haja vida
nos seres sendo comum a todos os seres vivos71 A faculdade sensitiva eacute a parte da alma que possui
a finalidade de percepcionar os sensiacuteveis e possui a funccedilatildeo de captar os estiacutemulos sensoriais
provenientes dos entes externos ao corpo e a alma Estes sensiacuteveis satildeo captados pelos cinco
70 EacuteN I 1097b 25-37 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 15-1671 Cf De Anima II 415a 22 ARISTOacuteTELES De Anima Op cit p 50
26
sentidos visatildeo audiccedilatildeo olfato paladar tato72 A faculdade intelectiva eacute a parte da alma com
capacidade para conhecer as formas inteligiacuteveis sendo responsaacutevel pelas funccedilotildees operativas do
entendimento tais como raciocinar deliberar escolher etc73
Na Eacutetica a Nicocircmaco esta divisatildeo da alma tambeacutem aparece ldquoPor exemplo que a alma tem
uma parte racional e outra privada de razatildeo []rdquo74Aristoacuteteles expotildee de modo sinteacutetico como a parte
irracional e racional da alma se comportam em relaccedilatildeo uma com a outra75 As faculdades nutritiva e
sensitiva fazem parte irracional E naturalmente a parte racional eacute a proacutepria faculdade intelectiva
A caracteriacutestica essencial do ser humano eacute a racionalidade Por isso deve submeter seus anseios e
desejos que fazem parte da faculdade sensitiva aos ditames da razatildeo para que possa realizar
plenamente sua finalidade e consequentemente ter uma vida feliz Mas para que o homem virtuoso
possa viver em funccedilatildeo do intelecto eacute necessaacuterio o cultivo das virtudes morais Pois satildeo as virtudes
morais que controlam os desejos do indiviacuteduo Aqui se encontra o ponto de confluecircncia entre a
faculdade sensitiva e a faculdade racional sem as virtudes morais ligadas agrave faculdade sensitiva natildeo
eacute possiacutevel agrave submissatildeo dos desejos agrave razatildeo Sem a faculdade racional natildeo eacute possiacutevel adquirir agraves
virtudes morais Esta intersecccedilatildeo entre a faculdade sensitiva e a faculdade racional pode ser
denominado como razatildeo desiderativa ou desejo racional76 Isso significa que os desejos se originam
na faculdade sensitiva mas uma vez que satildeo orientados pelo intelecto haacute uma influecircncia da
faculdade racional na parte sensitiva da alma Deste modo eacute nesta relaccedilatildeo entre o domiacutenio dos
desejos controlados por meio das virtudes morais e a racionalidade que se encontra a formaccedilatildeo do
homem virtuoso
No que tange agrave formaccedilatildeo moral do homem virtuoso a faculdade nutritiva eacute imediatamente
descartada por Aristoacuteteles pois ela eacute uma faculdade comum a todos os seres vivos e natildeo somente ao
homem Haja vista a funccedilatildeo da faculdade nutritiva ser apenas a nutriccedilatildeo e crescimento de um ser
vivo natildeo pode contribuir em nenhum aspecto na aquisiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das virtudes morais A
faculdade sensitiva deve atender aos comandos da faculdade racional Pois a parte sensitiva conteacutem
os desejos e estes nem sempre estatildeo de acordo com os princiacutepios determinados pela faculdade
racional Logo procede que natildeo haacute uma harmonia natural entre as duas faculdades mas o homem
virtuoso precisa proceder de modo que haja a prevalecircncia da razatildeo sobre os desejos para que
possam ser guiados de forma a contribuiacuterem para a eudaimonia Conforme descreve o texto
72 Cf De Anima II 424b 23 Ibidem p 8373 Cf De Anima III 429a 10 Ibidem p 9774 Cf EacuteN I 1102a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p2375Cf EacuteN I 1102b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24 76Cf EacuteN I 1103a 1-4 Ibidem p 24
27
Por exemplo que a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razatildeo []Do elemento irracional uma subdivisatildeo parece estar largamente difundida e ser denatureza vegetativa Refiro-me agrave que eacute causa da nutriccedilatildeo e do crescimento []Parece haver na alma ainda outro elemento irracional mas que em certo sentidoparticipa da razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional do homem continentee do incontinente () assim como a parte de sua alma quepossui tal princiacutepio porquanto ela nos impele na direccedilatildeo certa e para os melhoresobjetivos mas ao mesmo tempo encontra-se neles um outro elementonaturalmente oposto ao princiacutepio racional lutando contra este a resistindo-lhe []os impulsos dos incontinentes movem-se em direccedilotildees contraacuterias[] Apesar dissodevemos admitir que tambeacutem na alma existe qualquer coisa contraacuteria ao princiacutepioracional qualquer coisa que lhe resiste e se opotildee a ele [] seja como for nohomem continente ele obedece ao referido princiacutepio racional e eacute de presumir queno temperante e no bravo seja mais obediente ainda pois em tais homens ele fala arespeito de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racional77
Exposta a ideia acerca da divisatildeo da alma e sendo caracterizado que a faculdade racional eacute a
uacutenica inteiramente humana segue-se que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano eacute marcada com um tipo
de vida conduzida pela racionalidade Mas aleacutem de ser marcada pelo uso da razatildeo a funccedilatildeo do ser
humano tambeacutem consiste em ser realizada de maneira adequada e de modo digno A accedilatildeo virtuosa eacute
pautada nestes dois pressupostos (1) baseada na razatildeo e (2) feita de maneira adequada e digna
Neste ponto eacute importante perceber uma distinccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre uma accedilatildeo virtuosa e uma
accedilatildeo boa Natildeo eacute qualquer tipo de accedilatildeo que pode ser considerada como uma accedilatildeo virtuosa A accedilatildeo
virtuosa eacute caracterizada por ser uma accedilatildeo que proveacutem da virtude O homem virtuoso ao realizar
uma accedilatildeo virtuosa age com os meios corretos e com um fim nobre Isso fica claro quando
Aristoacuteteles assevera que o indiviacuteduo deve conhecer a accedilatildeo que realiza e deve escolher fazer a accedilatildeo
pela virtude78 A accedilatildeo deve ser feita do mesmo modo que os homens virtuosos fazem79 A accedilatildeo
meramente boa eacute uma accedilatildeo que pode ter um fim nobre mas o agente natildeo possui o conhecimento
das razotildees corretas de sua accedilatildeo Eacute uma accedilatildeo que possui uma aparecircncia de virtude mas natildeo eacute
verdadeiramente uma virtude porque carece de um caraacuteter intriacutenseco ao agente que realiza a accedilatildeo
Somado aos pressupostos da razatildeo e da virtude existe um terceiro pressuposto que completa as
caracteriacutesticas de uma accedilatildeo virtuosa que eacute (3) a praacutetica constante destas accedilotildees Esta praacutetica
constante de atos virtuosos eacute mostrada na comparaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz entre a constacircncia
necessaacuteria de accedilotildees virtuosas e uma andorinha solitaacuteria que em um dia somente natildeo faz um veratildeo
Ou seja um curto e passageiro periacuteodo de felicidade natildeo sustenta uma vida de plenitude80 Em
siacutentese a vida feliz eacute a vivecircncia desta faculdade racional que se sobrepotildee as demais estaacute em
77 EacuteN I 1102a 30 ndash 1102b 5-25 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23-2478 Cf EacuteN II 1105a 30-35 Ibidem p 3079 Cf EacuteN II 1105b 5 Ibidem p 31 80 Cf EacuteN I 1098a 17-20 Ibidem p 16
28
consonacircncia com a virtude moral e se manifesta de modo prolongado por toda a vida e natildeo somente
em ocasiotildees esparsas
Conforme exposto eacute necessaacuterio agir com a funccedilatildeo proacutepria do ser humano para alcanccedilar a
eudaimonia Para atingir sua plenitude de vida eacute imperioso que o indiviacuteduo aperfeiccediloe sua
racionalidade desenvolva as virtudes morais e pratique firmemente accedilotildees virtuosas Com isto o
percurso para construir a felicidade estaacute traccedilado na perspectiva eacutetica aristoteacutelica Uma vez definidas
as condiccedilotildees para uma vida feliz ainda resta saber qual o melhor tipo de vida que se enquadre nos
criteacuterios estabelecidos No proacuteximo toacutepico analisaremos esta questatildeo
15 A Eudaimonia e tipos de vida
O termo ldquoSumo Bemrdquo deriva da expressatildeo latina Summum Bonum a qual traz em seu bojo a
ideia de ser o bem mais elevado o melhor dos bens o bem supremo Conforme exposto nos itens
anteriores Aristoacuteteles considera que este bem mais elevado eacute a eudaimonia81 Ele descreve as
caracteriacutesticas que um bem deve ter para ser considerado justamente como o Sumo Bem
autossuficiente ser completo e baseado na razatildeo pois esta eacute o que haacute de mais proacuteprio no ser
humano Mas ao descrever as propriedades do Sumo Bem ou seja da eudaimonia falta ainda
determinar de modo mais preciso qual o ldquocaminhordquo para alcanccedilaacute-la Afinal como se trata de um
estudo no campo da eacutetica eacute necessaacuterio determinar como alcanccedilar esta eudaimonia em termos de
comportamento durante a vida humana Isto consiste em questionar qual eacute o melhor tipo de bem a
ser conquistado e consequentemente qual o tipo de vida que melhor se adequa agrave busca deste bem
No entender de Otfried Houmlffe a eudaimonia eacute considerada por Aristoacuteteles como o τέλος
τελειoτατoacuteν cujo significado eacute o de ser o ldquofim maacuteximordquo o ldquofim mais finalrdquo o fim uacuteltimo que natildeo
pode ser ultrapassado eacute a finalidade de todos os fins82 A eudaimonia eacute o fim geral que serve como
paracircmetro de orientaccedilatildeo para a busca de outros fins Por isso a partir dela criteacuterios satildeo delimitados
para que o indiviacuteduo escolha uma maneira de viver que realmente o conduza agrave felicidade Uma vez
que alguns tipos de vida natildeo atendem estes criteacuterios nem todos podem conduzir o indiviacuteduo ao
Sumo Bem que eacute a verdadeira eudaimonia Somente aquele tipo de vida que mais condiz com a
natureza humana e verdadeiramente pode ser considerado como um caminho seguro e consistente
para alcanccedilar uma vida feliz Neste sentido eacute necessaacuterio proceder a uma anaacutelise dos tipos de vida e
qual eacute a que pode ser considerada condizente com a eudaimonia
81 Cf EacuteN I 1097b 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1582 HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 p 196
29
Para a anaacutelise dos tipos de bens principais que dizem respeito a diferentes tipos de vidas
Aristoacuteteles natildeo desconsidera a endoxa (ἔνδοξα)83 ou seja a opiniatildeo comum Ele tambeacutem observa a
tradiccedilatildeo filosoacutefica anterior84 para proceder a uma avaliaccedilatildeo mais acurada acerca de qual vida eacute a
melhor e por conseguinte qual o tipo de vida torna o ser humano feliz Mas a partir da endoxa
avalia se cada tipo de vida pode de fato corresponder agraves caracteriacutesticas jaacute traccediladas para que um
bem qualquer possa receber o tiacutetulo de Sumo Bem
Na linha de raciociacutenio conduzida na Eacutetica a Nicocircmaco85 Aristoacuteteles apresenta uma siacutentese
dos trecircs tipos de vida a serem analisadas decorrentes dos bens considerados ldquofinaisrdquo os mais
importantes a serem procurados dentro daquele tipo de vida Pode-se verificar trecircs espeacutecies
principais de vida que representam os tipos de bens que as fundamentam Para algumas pessoas a
eudaimonia eacute identificada com uma vida de gozo dos prazeres mais mundanos86Outro contingente
de pessoas a identificam com as honras provenientes de uma vida pautada pela poliacutetica87 Enfim
outros a identificam com uma vida baseada na contemplaccedilatildeo (teoacuterico-contemplativa)88 Uma vida
de riquezas eacute desconsiderada por Aristoacuteteles como o tipo de vida ideal porque o acuacutemulo de
riquezas eacute apenas um meio para obtenccedilatildeo de outro bem89 Quanto agrave vida de honrarias que eacute
particularmente vinculada agrave vida poliacutetica ela traz em seu bojo uma instabilidade ao indiviacuteduo pois
as honras dependem mais de quem as concede do que a pessoa que as recebe Tampouco os
prazeres mundanos podem ser tidos como o tipo de vida a ser buscado porque satildeo contraacuterios agraves
virtudes morais Assim o modelo de vida mais adequado ao bem supremo deve ser vinculado de
modo mais iacutentimo ao homem e por isso deve ser mais estaacutevel Em relaccedilatildeo agrave vida teoacuterico-
contemplativa Aristoacuteteles a analisa de modo mais detalhado mais agrave frente no Livro X da Eacutetica a
Nicocircmaco Por isso natildeo analisaremos as propriedades da vida teoacuterico-contemplativa neste
momento
83 Conforme Aristoacuteteles aponta nas suas obras Toacutepicos I 1100a 18-25 e Retoacuterica I 1356b 33-36 a endoxa eacute umaopiniatildeo geralmente aceita acerca de qualquer tema que seja objeto de anaacutelise ora para leigos ora para os saacutebios (nosentido de especialistas em uma determinada aacuterea do conhecimento) Parte-se de premissas que satildeo consideradasprovaacuteveis e aparentemente verdadeiras para iniciar a anaacutelise e ocorrer o aprofundamento do estudo sobre o objetoescolhido Eacute o que faz Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando observa as diversas opiniotildees correntes agrave eacutepoca acerca doque seria a felicidade tanto na visatildeo comum quanto na visatildeo dos filoacutesofos Confiram-se os textos Toacutepicos I 1100a 18-25 ldquoNosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo deopiniotildees geralmente aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto [] rdquo Retoacuterica I 1356b 33-36 ldquo[] tatildeopouco a retoacuterica teorizaraacute sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo ndash por exemplo para Soacutecrates ou Hiacutepias ndash mas sobre o queparece verdade para pessoas de uma certa condiccedilatildeo como tambeacutem faz a dialeacutetica[] rdquo84 Cf EacuteN I 1098b 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1785 Cf EacuteN I 1095b 15 - 1096a 10 Ibidem p 11-1286 Cf EacuteN I 1095b 15-20 Ibidem p 1187 Cf EacuteN I 1095b 25-30 Ibidem p 1288 Cf EacuteN I 1096a 5 Ibidem p 1289 Cf EacuteN I 1096a 8-10 Ibidem p 12
30
Uma vez que o Sumo Bem deve ser autossuficiente e completo os casos dos prazeres
mundanos da honra e das riquezas satildeo eliminados Assim os prazeres mundanos satildeo buscados por
aqueles que se entregam agraves paixotildees mais indignas natildeo sendo proacuteprios de homens que almejam a
nobreza de alma pois a estes homens compete agrave razatildeo comandar as suas accedilotildees As honrarias sendo
uma caracteriacutestica mais apropriada agrave vida poliacutetica ainda dependem de fatores externos ao indiviacuteduo
considerado honrado na poacutelis O reconhecimento de uma vida honrada depende de quem confere
este tiacutetulo ao indiviacuteduo Desta maneira natildeo eacute autossuficiente nem completa Em relaccedilatildeo agraves riquezas
satildeo a princiacutepio somente um bem instrumental dispostas apenas para alcanccedilar outros fins natildeo
possuindo nenhum caraacuteter de autossuficiecircncia e completude Deste modo nem os prazeres
mundanos nem a honra nem a riqueza podem ser alccediladas agrave categoria de Sumo Bem 90
Conforme descrito anteriormente os candidatos ao tiacutetulo de Sumo Bem satildeo os prazeres
corporais e espirituais a honra e a contemplaccedilatildeo com seus consequentes tipos de vida Aristoacuteteles
continua sua anaacutelise na Eacutetica a Nicocircmaco 91 acerca do tipo de vida adequada agrave verdadeira
eudaimonia Este filoacutesofo retoma uma determinada linha de pensamento filosoacutefico que preconiza a
divisatildeo dos bens em trecircs classes distintas os bens externos os bens do corpo e os bens da alma Os
uacutenicos bens externos e os bens do corpo natildeo podem ser considerados os bens mais adequados agrave
eudaimonia Os bens da alma devem ser postos em primeiro plano pois satildeo considerados os mais
elevados e plenos Para o estagirita eacute o exerciacutecio ativo das faculdades interiores da alma em
conformidade com a razatildeo que eacute o fundamento de uma vida feliz Logo um dos criteacuterios apontados
por Aristoacuteteles eacute que uma vida plena deve estar vinculada aos bens da alma e natildeo apenas aos bens
externos
Ora os bens tecircm sido divididos em trecircs classes e alguns foram descritos comoexteriores outros como relativos agrave alma ou ao corpo Noacutes outros consideramoscomo mais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com a almae como tais classificamos as accedilotildees e atividades psiacutequicas Logo o nosso ponto devista deve ser correto pelo menos de acordo com esta antiga opiniatildeo com a qualconcordam muitos filoacutesofos Eacute tambeacutem correto pelo fato de identificarmos o fimcom certas accedilotildees e atividades pois desse modo ele vem incluir-se entre os bens daalma e natildeo entre os bens exteriores92
Devemos recordar que a funccedilatildeo proacutepria do ser humano aquela que melhor o caracteriza eacute
agir conforme a faculdade racional da alma Eacute a atividade racional do ser humano que estabelece a
90 Cf EacuteN I 1095b 15-30 - 1096a 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1291 Cf EacuteN I 1098b 10 - 1099b 5 Ibidem p 1892 EacuteN I 1098a 15-19 Ibidem p 17
31
via mais adequada para alcanccedilar uma vida plena Por conseguinte a eudaimonia estaacute no uso ativo
da razatildeo e natildeo nas paixotildees que residem na faculdade sensitiva e claro muito menos na faculdade
nutritiva uma vez que esta diz respeito somente a sobrevivecircncia bioloacutegica93
Para Aristoacuteteles eacute preciso agir de modo correto visando sua maacutexima performance pois
nisso consiste alcanccedilar a excelecircncia de uma coisa ou de uma accedilatildeo A tiacutetulo de exemplo um escritor
quando realiza adequadamente e em um grau elevado a accedilatildeo de escrever exerce esta funccedilatildeo de
modo virtuoso Do mesmo modo um violinista ao tocar adequadamente um violino exerce o ato de
tocar seu instrumento de modo virtuoso A excelecircncia de algo ou de uma accedilatildeo eacute o modo mais
adequado a maacutexima performance da realizaccedilatildeo de sua proacutepria funccedilatildeo Conforme nos mostra o
Estagirita
Ora se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica umprinciacutepio racional e se dizemos que ldquoum tal-e-talrdquo e ldquoum bom tal-e-talrdquo tecircm umafunccedilatildeo que eacute a mesma espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocadorde lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentadaao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade - pois a funccedilatildeo de umtocador de lira eacute tocar lira e de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) serealmente assim eacute [e afirmamos ser a funccedilatildeo do homem uma certa espeacutecie de vidae esta vida uma atividade ou accedilotildees da alma que implicam um princiacutepio racional eacrescentamos que a funccedilatildeo de um bom homem eacute uma boa e nobre realizaccedilatildeo dasmesmas e se qualquer accedilatildeo eacute bem realizada quando estaacute de acordo com aexcelecircncia que lhe eacute proacutepria se realmente assim eacute] o bem do homem nos aparececomo uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de umavirtude com a melhor e a mais completa94
Conforme podemos ver no texto de Aristoacuteteles intitular uma accedilatildeo de virtuosa significa
afirmar que eacute uma accedilatildeo que atingiu a excelecircncia Pode-se dizer que eacute uma accedilatildeo que se tornou
sublime Utilizando novamente os exemplos citados existem escritores e violinistas medianos mas
existem escritores e violinistas sublimes Estes virtuosos escritores e violinistas satildeo os ldquoilustres
escritores e ilustres violinistasrdquo de acordo com o Estagirita Portanto satildeo os modelos a serem
seguidos por todos que desejem alcanccedilar a excelecircncia nestas artes
Mas a eudaimonia consiste somente em bens da alma tais como a virtude e a razatildeo Na
concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a virtude e a razatildeo possuem uma grande importacircncia na definiccedilatildeo de uma
vida feliz mas eacute necessaacuterio algo a mais Outra caracteriacutestica da eudaimonia encontra-se nos bens
externos manifestados na necessidade do ser humano de possuir uma certa prosperidade que natildeo
depende exclusivamente do indiviacuteduo Na compreensatildeo do filoacutesofo de Estagira a prosperidade
nestes bens externos facilita a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Estes bens externos considerados
93 EacuteN 1098a 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1694 EacuteN 1098a 10-15 Ibidem p 16
32
pertinentes a uma vida feliz satildeo de vaacuterios tipos amigos riqueza influecircncia poliacutetica Outros bens
externos fortalecem a posse de uma vida feliz tornando-a mais acessiacutevel aos mais afortunados e a
falta destes torna mais difiacutecil ter uma vida feliz aos indiviacuteduos desafortunados Estes bens satildeo a
beleza fiacutesica ter nascido em uma boa famiacutelia e ter bons filhos Nos diz Aristoacuteteles
A felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do mundo eesses atributos natildeo se acham separados como na inscriccedilatildeo em Delos Das coisas amais nobre eacute a mais justa e a melhor eacute a sauacutede mas a mais doce eacute alcanccedilar o queamamos Com efeito todos eles pertencem agraves mais excelentes atividades e estasou entatildeo uma delas ndash a melhor ndash noacutes a identificamos com a felicidade E noentanto como dissemos ela necessita igualmente dos bens exteriores pois eacuteimpossiacutevel ou pelo menos natildeo eacute faacutecil realizar atos nobres sem os devidos meiosEm muitas accedilotildees utilizamos como instrumentos os amigos a riqueza e o poderpoliacutetico e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza denascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feiaaparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidadesde ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossemvisceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigosComo dissemos pois o homem feliz parece necessitar tambeacutem dessa espeacutecie deprosperidade e por essa razatildeo alguns identificam a felicidade com a boa fortunaembora outros a identifiquem com a virtude95
Observa-se no decorrer da explanaccedilatildeo de Aristoacuteteles que natildeo basta somente as virtudes
morais para que o homem virtuoso seja feliz Parece que haacute duas opiniotildees correntes em sua eacutepoca
Uma atribui agrave boa fortuna o alicerce principal da eudaimonia e a outra atribui agrave virtude o meio
fundamental para alcanccedilar a felicidade O estagirita realiza uma siacutentese entre as duas perspectivas
mas considera os bens da alma e os bens externos em patamares diferentes Determinados bens
como os bens da alma satildeo considerados essenciais agrave eudaimonia Estes satildeo a virtude e a razatildeo
Outros como os bens externos satildeo acessoacuterios e sua inexistecircncia natildeo acarreta necessariamente uma
vida infeliz mas a torne mais difiacutecil de ser suportada Devemos recordar que o Sumo Bem possui
duas propriedades que satildeo a autossuficiecircncia e a completude Portanto os bens externos como
acessoacuterios natildeo satildeo considerados autossuficientes e natildeo satildeo completos por serem bens
instrumentais Satildeo um meio para um fim e dependem de circunstacircncias externas ao indiviacuteduo
A eudaimonia eacute constituiacuteda de caracteriacutesticas essenciais e acessoacuterias96 Neste sentido
fazendo uma analogia com a engenharia de construccedilatildeo de edificaccedilotildees prediais Eacute possiacutevel um
entendimento de que a felicidade eacute construiacuteda por camadas Haacute um nuacutecleo essencial composto
pelos bens da alma ndash virtude e razatildeo ndash que estaacute na posse do indiviacuteduo ou seja sua
operacionalizaccedilatildeo depende unicamente dele e natildeo de fatores extriacutensecos A partir deste nuacutecleo
95EacuteN I 1099a 30 - 1099b 1-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1896 Cf EacuteN I 1099b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op Cit p 19
33
essencial haacute os bens acessoacuterios ndash amigos riqueza influecircncia poliacutetica ndash que podem compor uma
vida feliz mas natildeo necessariamente satildeo indispensaacuteveis para que algueacutem seja feliz sua perda ou natildeo
obtenccedilatildeo natildeo acarretam uma vida infeliz para o indiviacuteduo O que deve ser evitado eacute a inversatildeo entre
aquilo que eacute essencial e aquilo que eacute acessoacuterio Os bens externos natildeo podem ser considerados como
um fundamento seguro para a felicidade porque satildeo instaacuteveis ou seja eacute possiacutevel perdecirc-los ou natildeo
corresponder agraves expectativas do indiviacuteduo Deste modo o indiviacuteduo para alcanccedilar a eudaimonia
necessita da virtude da prudecircncia e das virtudes morais para que possa conseguir realizar boas
escolhas durante sua vida e natildeo proceder a uma inversatildeo daquilo que eacute essencial ou acessoacuterio na
busca pela felicidade
Eacute interessante notar uma sutil divisatildeo dos bens externos Um primeiro subconjunto seriam
bens externos que ainda se encontram na esfera de accedilatildeo do indiviacuteduo Afinal caso seja uma escolha
do indiviacuteduo este por meio de sua accedilatildeo pode conquistar amigos riqueza e influecircncia poliacutetica Mas
o segundo subconjunto os outros bens externos citados por Aristoacuteteles que contribuem para a
felicidade como o nascimento em uma boa famiacutelia bons filhos e ter uma bela aparecircncia natildeo
pertencem a esfera de escolha e consequente accedilatildeo do indiviacuteduo O tipo de famiacutelia a vida dos filhos
e beleza fiacutesica estatildeo completamente fora do campo de deliberaccedilatildeo de algueacutem natildeo dependem do
indiviacuteduo tatildeo somente dependem de uma boa sorte
A harmonia entre os bens da alma e os bens externos eacute a linha que Aristoacuteteles segue ao
realizar sua anaacutelise acerca da eudaimonia O exerciacutecio ativo das virtudes morais e viver sob os
ditames da razatildeo satildeo o fundamento de uma vida feliz Qualquer homem virtuoso deve viver
segundo as virtudes Natildeo obstante a grande importacircncia da racionalidade e das virtudes na
construccedilatildeo da felicidade o Estagirita concede espaccedilo para as aspiraccedilotildees ldquonormaisrdquo de um homem
que vive o cotidiano da poacutelis Natildeo eacute uma perspectiva de felicidade cunhada para um eremita ou para
um monge que decide se abster de determinados bens externos A posiccedilatildeo de WD Ross ilustra bem
esta visatildeo de harmonia entre os bens da alma e os bens externos
Esta definiccedilatildeo (de felicidade) eacute confirmada por pontos de vista comuns acerca dobem-estar e ao mesmo tempo corrige-os Alguns afirmam que o bem-estar eacute avirtude Noacutes dizemos ser uma espeacutecie de acccedilatildeo para a qual tende a virtude Algunsafirmam ser o prazer Noacutes dizemos ser acompanhada necessariamente pelo prazerAlguns afirmam ser a prosperidade externa Noacutes dizemos que sem uma certa dosede prosperidade um homem natildeo pode exercitar esta boa atividade que eacute o bem-estar Assim os elementos principais que figuram na noccedilatildeo comum de bem-estartambeacutem entram na nossa definiccedilatildeo A virtude constitui a raiz donde descola a acccedilatildeoconforme o bem o prazer eacute o seu acompanhamento natural e a prosperidade suacondiccedilatildeo preacutevia normal97
97 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198 Na traduccedilatildeo portuguesa feita pela Publicaccedilotildees Dom Quixote a partir daediccedilatildeo inglesa publicada por Methuen amp Cu Ltd Londres o termo utilizado para se referir a eudaimonia eacute ldquobem-
34
A eacutetica aristoteacutelica tambeacutem eacute muito realista ao considerar o fato de que existe uma desordem
interna no indiviacuteduo Este conflito eacute caracterizado pela discrepacircncia entre a faculdade racional e os
desejos provindos da faculdade sensitiva Caso esta dissonacircncia natildeo seja resolvida com os desejos
submetidos ao ordenamento da racionalidade natildeo haacute a possibilidade do homem tornar-se virtuoso
Portanto o filoacutesofo de Estagira forja uma concepccedilatildeo eacutetica bastante equilibrada que evita excessos
de conduta decorrentes de determinados comportamentos morais muito comuns nos dias atuais
baseadas no hedonismo e no relativismo moral que consideram os desejos como os pilares da
felicidade
O Sumo Bem eacute a eudaimonia eacute aquilo que existe de mais nobre e confere mais prazer ao ser
humano Eacute a melhor atividade dentre as mais excelentes que pode ser realizada por algueacutem A
eudaimonia eacute uma espeacutecie de atividade da alma conforme a virtude E somado a isto a eudaimonia
tambeacutem eacute composta tanto por bens que satildeo indispensaacuteveis quanto bens que satildeo acessoacuterios agrave
felicidade98Assim a eudaimonia pode ser apreendida por meio de um treinamento Ou pode ser
desenvolvida de algum outro modo Ou eacute uma daacutediva divina A resposta eacute que a virtude natildeo eacute algo
natural no ser humano Por isso necessita de um constante esforccedilo do indiviacuteduo para adquiri-la e
aperfeiccediloaacute-la Conforme nos mostra Aristoacuteteles
[] pois aquilo que constitui o precircmio e a finalidade da virtude se nos afigura o quede melhor existe no mundo algo de divino e abenccediloado Dentro desta concepccedilatildeotambeacutem deve ela ser partilhada por grande nuacutemero de pessoas pois quem quer quenatildeo esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistaacute-la medianteuma certa espeacutecie de estudo e diligecircncia Mas se eacute preferiacutevel ser feliz dessamaneira a secirc-lo por acaso eacute razoaacutevel que os fatos sejam assim uma vez que quetudo aquilo que depende da accedilatildeo natural eacute por natureza tatildeo bom quanto poderiaser e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racionalespecialmente se depende da melhor de todas as causas Confiar ao acaso o que haacutede melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito99
Uma questatildeo que surge no estudo da eudaimonia e da virtude da prudecircncia diz respeito ao
papel que o acaso possui na busca por uma vida feliz O acaso constitui todas as situaccedilotildees que estatildeo
fora do controle imediato do indiviacuteduo Satildeo as contingecircncias que aparecem no decorrer da vida do
estarrdquo O proacuteprio WD Ross explica que prefere utilizar o termo ldquobem-estarrdquo para definir eudaimonia pelo fato destaser um certo tipo de atividade e natildeo um certo tipo de prazer embora este uacuteltimo a acompanhe Ross interpreta que otermo ldquofelicidaderdquo eacute inapropriado para traduzir a palavra grega eudaimonia por considerar que esse termo ldquofelicidaderdquose refere a um sentimento que apenas se diferencia do prazer por uma questatildeo de perdurar mais tempo ser maisprofundo e ser mais sereno que o prazer No presente trabalho optamos por usar o termo ldquofelicidaderdquo por esta traduccedilatildeoser a mais tradicional e consagrada nos textos que versam acerca da eacutetica em Aristoacuteteles 98 Cf EacuteN I 1099a 25-30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 1899 EacuteN I 1099b 17-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 19
35
homem e que devem ser enfrentadas para que se alcance a felicidade Por isso examinaremos o
acaso na vida humana
16 O acaso na vida humana
O acaso na vida humana natildeo eacute um fator provaacutevel de trazer uma vida feliz ao indiviacuteduo O
acaso pode trazer tanto uma maacute quanto uma boa sorte e o indiviacuteduo que deixa sua vida ao acaso
tem pouca chance de alcanccedilar a eudaimonia A ordem natural das coisas indica que o indiviacuteduo
para atingir a excelecircncia nas suas accedilotildees seja em sua conduta seja em qualquer coisa que produza
deve se empenhar para que isso ocorra Portanto para cumprir sua funccedilatildeo proacutepria de ser racional
todo indiviacuteduo deve se empenhar em se tornar virtuoso e alcanccedilar sua excelecircncia como ser humano
porque isso natildeo ocorre de modo natural
O acaso pode trazer uma maacute sorte e vaacuterios infortuacutenios Um indiviacuteduo desafortunado pode ser
considerado feliz Aristoacuteteles considera que sim mesmo que uma pessoa sofra ao longo da sua vida
diversos desventuras ele pode ser feliz Pois a estabilidade encontra-se em uma vida virtuosa e natildeo
nas circunstacircncias que mudam a cada momento100 Naturalmente eventos agradaacuteveis acrescentam
alegrias e tornam mais agradaacuteveis uma vida virtuosa Mas eventos desagradaacuteveis trazem dores e
tornam mais sofrida uma vida mesmo que virtuosa Mesmo que o indiviacuteduo seja acometido por
uma sucessatildeo de eventos desagradaacuteveis sabe enfrentaacute-los de maneira digna Visto que a
eudaimonia eacute um exerciacutecio ativo do homem em conformidade com a virtude o sujeito que esteja
empenhado em agir conforme as virtudes natildeo depende da sorte para ser feliz Deste modo o homem
virtuoso sabe aproveitar as circunstacircncias e extrair o melhor delas para alcanccedilar uma vida
feliz101Acerca do acaso e de uma vida feliz esta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco eacute significativa
Ora muitas coisas acontecem por acaso e coisas diferentes quanto agrave importacircnciaEacute claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes natildeo pesam muito nabalanccedila mas uma multidatildeo de grandes acontecimentos se nos forem favoraacuteveistornaraacute nossa vida mais venturosa (pois natildeo apenas satildeo em si mesmos de feitio aaumentar a beleza da vida mas a proacutepria maneira como um homem os recebe podeser nobre e boa) e se se voltarem contra noacutes poderatildeo esmagar e mutilar afelicidade pois que aleacutem de serem acompanhados de dor impedem muitasatividades Todavia mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver quandoaceita com resignaccedilatildeo muitos grandes infortuacutenios natildeo por insensibilidade agrave dormas por nobreza e grandeza de alma102
100 Cf EacuteN I 1100b 13-20 Ibidem p 20101 Cf EacuteN I 1101a 35-37 Ibidem p 21102 EacuteN I 1100b 25-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 20-21
36
Decorrente do texto da Eacutetica a Nicocircmaco descrito acima podemos notar que o tamanho dos
acontecimentos pode afetar o indiviacuteduo tanto para a felicidade quanto agrave infelicidade Deste modo a
fortuna e o infortuacutenio podem ter uma determinada influecircncia na consecuccedilatildeo de uma vida feliz
embora o homem virtuoso consegue conviver com estes infortuacutenios e extrair o melhor de cada
situaccedilatildeo
A eudaimonia por ser autossuficiente e completa natildeo depende de nenhum fator externo
mas sobretudo das accedilotildees virtuosas praticadas pelo indiviacuteduo Por isso possui a caracteriacutestica de ser
estaacutevel Esta estabilidade perpassa a vida virtuosa do indiviacuteduo Por conseguinte as virtudes satildeo a
base para a estabilidade da eudaimonia
Na anaacutelise acerca da eudaimonia Aristoacuteteles tambeacutem questiona se porventura os
infortuacutenios de pessoas proacuteximas e queridas tais como os amigos e os descendentes podem afetar a
estabilidade de um indiviacuteduo virtuoso que possui uma vida feliz A resposta eacute que estes infortuacutenios
dos amigos ou descendentes natildeo tecircm forccedila suficiente para afetar um indiviacuteduo que jaacute deteacutem a
felicidade Os infortuacutenios podem ser em graus diversos e natildeo afetam substancialmente o homem
virtuoso 103 Do mesmo modo as adversidades enfrentadas pelos amigos e descendentes natildeo retiram
a felicidade do indiviacuteduo bem-aventurado nem a acrescentam em nada104
Observa-se que na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles a eudaimonia para ser alcanccedilada possui uma
condicionante que consiste em agir baseado nas virtudes para obter uma nobreza de alma Se o
indiviacuteduo rejeitar esta condicionante natildeo teraacute uma vida plena A felicidade eacute um exerciacutecio ativo do
homem conforme a virtude perfeita sendo estaacutevel defronte agraves variadas circunstacircncias posto que eacute
autossuficiente e plena em si mesma Eacute o fim uacuteltimo que orienta toda a vida humana E este fim
uacuteltimo se constitui em cumprir a funccedilatildeo proacutepria do ser humano que eacute o uso da racionalidade e a
partir dele atingir um alto grau de virtudes Neste sentido o proacuteximo passo de Aristoacuteteles eacute analisar
a natureza das virtudes haja vista a grande importacircncia que estas possuem na composiccedilatildeo da
eudaimonia
103 Nas palavras de Ross para Aristoacuteteles a ldquo[] a finura de caraacuteter pode lsquobrilhar atraveacutesrsquo de circunstacircncias adversasrdquoROSS WD Aristoacuteteles opcit p 198104 Cf EacuteN I 1101b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 22
37
CAPIacuteTULO II
AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
Neste capiacutetulo eacute feito um estudo acerca da concepccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre as virtudes e de
como satildeo fundamentais para a consecuccedilatildeo da eudaimonia Tambeacutem eacute vista a relaccedilatildeo entre as
virtudes e a educaccedilatildeo dos prazeres pois todo ser humano procura se aproximar daquilo que
ocasiona prazer e fugir daquilo que provoca dor Assim o prazer e a dor satildeo importantes para a
busca das virtudes e rejeiccedilatildeo dos viacutecios morais Nem todos os prazeres contribuem para uma correta
formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo O indiviacuteduo que deseje alcanccedilar uma vida feliz deve saber cultivar
os prazeres moralmente bons e rejeitar os prazeres moralmente ruins Por conseguinte deve ter um
conhecimento de quais prazeres satildeo bons para serem usufruiacutedos e quais natildeo satildeo para praticar accedilotildees
nobres e consequentemente ter uma vida em plenitude
Tal como as virtudes satildeo um componente essencial para uma vida feliz o prazer tambeacutem eacute
uma parte importante da eudaimonia O prazer tem um duplo caraacuteter aperfeiccediloamento e resultado
Como aperfeiccediloamento o prazer auxilia no refinamento das habilidades do indiviacuteduo e
naturalmente ajuda a aprimorar as virtudes105 Como resultado o prazer eacute fruto das proacuteprias accedilotildees
virtuosas que causam uma satisfaccedilatildeo no indiviacuteduo que as pratica106 Deste modo o prazer eacute inerente
agrave eudaimonia pois as virtudes satildeo um pressuposto baacutesico da vida feliz
As virtudes satildeo diferenciadas entre virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) e virtudes morais
(eacuteticas) As virtudes morais satildeo necessaacuterias para que haja o autodomiacutenio do indiviacuteduo sobre suas
paixotildees Satildeo as virtudes morais que permitem um melhor florescimento das virtudes intelectuais e
em especial a virtude da prudecircncia Para que o indiviacuteduo desenvolva corretamente as virtudes
morais eacute necessaacuterio conhecer qual eacute a natureza destas virtudes Assim eacute necessaacuteria a compreensatildeo
do conceito de mediania que eacute uma das caracteriacutesticas das virtudes
Em siacutentese no presente capiacutetulo analisaremos os seguintes pontos as virtudes morais os prazeres
e o seu papel na formaccedilatildeo moral do indiviacuteduo o homem virtuoso (σπουδαῖος) o conceito de mediania
(μεσότης) e a necessidade das virtudes morais para o desenvolvimento da virtude intelectual da
prudecircncia (φρόνησις)
105Cf EacuteN X 1175a 30-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 185106Cf EacuteN X 1175a 20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184
38
21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais
A definiccedilatildeo de eudaimonia eacute ser uma atividade da alma conforme a virtude perfeita107 Neste
sentido as virtudes satildeo uma peccedila central no sistema eacutetico aristoteacutelico Satildeo elas que ao serem
praticadas conduzem ao aprimoramento do indiviacuteduo tanto em conhecimento adquirido pelas
virtudes intelectuais quanto em proporcionar um caraacuteter mais nobre por causa da robustez das
virtudes morais
As virtudes satildeo divididas em conformidade com esta divisatildeo da alma entre uma parte
racional e outra irracional As virtudes que dizem respeito agrave parte intelectual satildeo as virtudes
intelectuais e as relacionadas agrave parte irracional mas propriamente ao elemento desiderativo satildeo as
virtudes morais A parte irracional da alma possui uma subdivisatildeo em dois elementos O primeiro
elemento natildeo pode ser submetido agrave razatildeo pois satildeo as proacuteprias atividades da faculdade vegetativa O
segundo elemento possui a capacidade de ser orientado pela razatildeo sendo este o elemento
desiderativo contido na faculdade sensitiva Por isso nota-se um detalhe importante em relaccedilatildeo ao
indiviacuteduo virtuoso ele escolhe submeter seus desejos e paixotildees agrave racionalidade e tambeacutem aprende
a desejar o que a racionalidade determina como correto
Conforme citamos no capiacutetulo anterior para uma melhor compreensatildeo das propriedades das
virtudes intelectuais e das virtudes morais eacute necessaacuterio recordar a obra De Anima na qual
Aristoacuteteles estabelece a divisatildeo da alma (ψυχή) humana em trecircs partes ou faculdades intituladas de
nutritiva (vegetativa) sensitiva (perceptiva) e racional (intelectiva) Estabelecida a divisatildeo da alma
em uma parte racional (faculdade intelectiva) e uma parte irracional (faculdades sensitiva e
nutritiva) deve-se observar que existe uma relaccedilatildeo entre estas duas partes Uma espeacutecie de
interaccedilatildeo entre a racionalidade e os apetites correspondentes agrave parte irracional Estas duas
dimensotildees da psicheacute natildeo satildeo naturalmente harmocircnicas entre si A faculdade sensitiva comporta os
desejos (o1recij) do ser humano Neste ponto eacute importante notar que Aristoacuteteles divide os desejos
em trecircs espeacutecies apetite () impulso () e vontade ()108
Por conter o elemento desiderativo a faculdade sensitiva eacute em parte responsaacutevel pelas
accedilotildees humanas Em parte porque a proacutepria faculdade sensitiva carece de racionalidade mas de
107 Cf EacuteN I 1102a 5-7 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 23108 Cf De anima 414a 30 - 414b 3 Aristoacuteteles De anima Op cit p46-47 Segue-se o texto ldquoDas faculdades da almaque referimos a uns seres como dissemos pertencem todas umas delas a outros e a alguns seres pertence apenas umasoacute faculdade Chamamos entatildeo faculdades agraves partes nutritiva perceptiva desiderativa de deslocaccedilatildeo e discursiva Oraagraves plantas pertence apenas a faculdade nutritiva ao passo que aos outros seres pertencem esta faculdade e tambeacutem aperceptiva E se esses dispotildeem da faculdade perceptiva possuem igualmente a desiderativa pois o desejo eacute de fatoapetite impulso e vontade Todos os animais entatildeo possuem um dos sentidos o tato e ao ser a que a sensibilidadepertencem igualmente o prazer e a dor (isto eacute o apraziacutevel e o doloroso) Mais agravequeles a que estes pertencem pertence(sic) tambeacutem o apetite isto eacute o proacuteprio desejo do apraziacutevel []rdquo
39
uma certa forma o elemento desiderativo participa da faculdade racional Pois tanto o indiviacuteduo
considerado continente (e0gkrath~~j109 quanto o indiviacuteduo incontinente (a0krathj)110 possuem a
faculdade racional Mas haacute uma diferenccedila entre estes dois tipos de indiviacuteduos O indiviacuteduo
continente age conforme agrave razatildeo ele submete seus desejos e paixotildees agrave racionalidade O indiviacuteduo
incontinente foge dos ditames da razatildeo seus desejos e paixotildees prevalecem sobre o ordenamento
racional Aristoacuteteles afirma que o indiviacuteduo continente obedece agrave parte racional e no indiviacuteduo
temperante e no corajoso esta obediecircncia eacute ainda maior111 Este fato implica a utilizaccedilatildeo da razatildeo e
um autodomiacutenio perseverante que resultam em uma disposiccedilatildeo firme e habitual do indiviacuteduo para
que o elemento desiderativo contido na parte irracional possa estar submetido agrave parte racional
As virtudes satildeo divididas em duas espeacutecies correspondentes agrave divisatildeo da alma em parte
racional e irracional As virtudes intelectuais satildeo relacionadas agrave racionalidade e as virtudes morais
ao elemento desiderativo contido na parte irracional Ross classifica este elemento desiderativo
como sendo um elemento intermeacutedio pois embora pertenccedila agrave parte irracional possui uma ligaccedilatildeo
com a razatildeo Eacute esta parte do desejo que obedece aos princiacutepios e regras de vida que o indiviacuteduo
continente traccedilou para si mesmo Enquanto o indiviacuteduo incontinente natildeo consegue submeter o
desejo ao controle da faculdade racional112 Uma vez que esta parte desiderativa obedeccedila agrave
racionalidade pode-se entender o uso da razatildeo em dois momentos distintos que conferem dois
tipos de sentido O primeiro sentido eacute relacionado aos desejos e paixotildees nos quais estes se
submetem agrave racionalidade Neste caso eacute a razatildeo praacutetica que opera por meio da prudecircncia e das
virtudes morais O outro sentido eacute o uso da razatildeo para conhecer e verificar pressupostos teoacutericos
que natildeo dizem respeito agrave accedilatildeo humana como por exemplo um teorema matemaacutetico As virtudes
intelectuais referem-se a este campo de aplicaccedilatildeo da racionalidade113 No livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco114 satildeo listadas cinco virtudes intelectuais que satildeo a arte (τέχνη) o conhecimento
cientiacutefico (ἐπιστήμη) a sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) a razatildeo intuitiva
(νοῦς)115 No livro I haacute exemplos de virtudes morais116 a liberalidade (e0leuqeriothj) e a
temperanccedila (σωφροσύνη) Em relaccedilatildeo agrave sabedoria filosoacutefica (σοφία) sendo esta uma virtude
dianoeacutetica trata-se de uma sabedoria contemplativa dedicada agravequilo que eacute imutaacutevel A sophia
109 O indiviacuteduo continente domina seus desejos e os submete agrave razatildeo110 O indiviacuteduo incontinente natildeo domina seus desejos por isso natildeo consegue submetecirc-los agrave razatildeo 111 Cf EacuteN 1102b 25-28 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 24112 ROSS WD Aristoacuteteles Op cit p 198113 SPINELLI Priscilla Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaacutequea Opcit p 42114 Cf EacuteN 1139b 15-18 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101115 Noucircs eacute traduzido de vaacuterias maneiras nas traduccedilotildees portuguesas da Eacutetica a Nicocircmaco entendimento (E Bini 2013p 194) perspicaacutecia (M Zingano 2008 p 40) razatildeo intuitiva (P T Spinelli 2007 p137 e L Vallandro e GBornheim 1987 p 110) ldquointuicioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) e ldquointelligencerdquo (H Rackham 1996 p 156) 116 Em EacuteN I 1103a 5-10 satildeo citadas somente estas duas virtudes morais como forma de exemplo mas Aristoacutetelesdescreve outras virtudes no decorrer de sua obra
40
possui uma natureza calcada na epiacutesteme e no nous pois visa aquilo que natildeo sofre alteraccedilotildees em
nenhuma circunstacircncia Por seu lado a phronecircsis se caracteriza por visar a praacutexis ao lidar com as
diversas situaccedilotildees que mudam constantemente
As virtudes intelectuais podem ser adquiridas e apuradas pela instruccedilatildeo enquanto as
virtudes morais satildeo robustecidas por meio do haacutebito117 Visto que nascemos dotados com elas em
potecircncia para que alcancem sua plenitude torna-se imperioso a sua solidificaccedilatildeo por meio de um
permanente esforccedilo do homem Se as virtudes morais e intelectuais jaacute estivessem plenamente
desenvolvidas no nosso caraacuteter natildeo seria necessaacuterio aprimoraacute-las pela repeticcedilatildeo das mesmas Neste
sentido eacute necessaacuterio desenvolver as virtudes uma vez que natildeo satildeo desenvolvidas na natureza
humana como satildeo por exemplo as faculdades da visatildeo ou da audiccedilatildeo que se encontram tanto em
um estado de potecircncia quanto em estado de ato118
Pode-se afirmar que uma parcela da conquista da eudaimonia consiste em harmonizar
corretamente a razatildeo e o desejo para que sejam conduzidos ao mesmo objetivo A adequada
harmonia consiste na proeminecircncia da racionalidade sobre os desejos e paixotildees A virtude moral
consiste nesta condiccedilatildeo estaacutevel do indiviacuteduo resultante de uma escolha que se transforma em um
haacutebito por ser repetida inuacutemeras vezes ao longo do tempo fazendo com que exerccedila bem sua funccedilatildeo
Mas para ser operacionalizada eacute fundamental a atuaccedilatildeo da razatildeo para escolher um fim razoaacutevel ao
qual o indiviacuteduo possa seguir por meio de sua vontade
Na formaccedilatildeo moral do homem para que este adquira uma nobreza de conduta e alcance uma
vida feliz vimos a importacircncia das virtudes morais para controlar os desejos provenientes da
faculdade sensitiva A felicidade eacute obtida pela primazia do intelecto sobre os desejos Neste
contexto de construccedilatildeo da eudaimonia haacute um componente a ser considerado que eacute o prazer ou a
dor proveniente das accedilotildees humanas Este eacute o assunto a ser abordado no proacuteximo toacutepico
22 A educaccedilatildeo dos prazeres e a eudaimonia
Uma percepccedilatildeo aristoteacutelica bastante interessante eacute assinalar a importacircncia de um treino
constante como sendo essencial para o robustecimento das virtudes morais pelo indiviacuteduo frente aos
acontecimentos Afinal ningueacutem eacute capaz de arrogar para si proacuteprio ou mesmo ser verdadeiramente
elogiado como sendo algueacutem virtuoso se natildeo se habituou a praticar as virtudes ao longo do tempo e
enfrentar as circunstacircncias concretas da vida Em outras palavras pode-se dizer que uma virtude eacute
conquistada quando for provada em vaacuterios casos e durante um periacuteodo de tempo prolongado Por
117 CF EacuteN II 1103a 15-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 27118 CF EacuteN II 1103a 30 Ibidem p 27
41
isso eacute imprescindiacutevel desde a mais tenra idade estabelecer uma paideacuteia (παιδεία)119voltada para a
praacutetica das virtudes conforme mostra Aristoacuteteles ao seguir a mesma linha de raciociacutenio de Platatildeo
sobre a importacircncia de uma boa educaccedilatildeo Esta boa educaccedilatildeo consiste em aprender a apreciar
aquilo que eacute desejaacutevel e rejeitar aquilo que eacute indesejaacutevel120
No que tange agrave educaccedilatildeo para orientar a pessoa a gostar daquilo que eacute desejaacutevel um dos
pontos fundamentais da filosofia moral aristoteacutelica eacute a questatildeo do prazer O fenocircmeno do prazer eacute
um tema corrente na tradiccedilatildeo filosoacutefica grega antiga sendo ele considerado uma das fontes acerca
da moralidade e conduccedilatildeo agrave uma vida feliz O pensamento eacutetico aristoteacutelico segue esta tradiccedilatildeo e
insere uma teoria do prazer uma vez que este eacute um dos elementos essenciais para a realizaccedilatildeo
humana O prazer eacute algo completamente inserido na vida humana a ponto de natildeo se concebecirc-la sem
a perspectiva do acompanhamento ou a ausecircncia dele Conforme assevera Aristoacuteteles ldquoAcresce que
o agradaacutevel e o doloroso cresceram conosco desde a nossa infacircncia e por isso eacute difiacutecil conter essas
paixotildees enraizadas como estatildeo em nossa vida E alguns mais e outros menos medimos nossas
proacuteprias accedilotildees pelo estalatildeo do prazer e da dorrdquo121 O filoacutesofo de Estagira cita que Eudoxo122
identificava o bem com o prazer pois observava que todos os seres racionais e irracionais tendiam
para esse sentimento123 Platatildeo tambeacutem se posiciona acerca do fenocircmeno do prazer no seu diaacutelogo
Filebo no qual o mestre de Aristoacuteteles argumenta que tanto o homem intemperante quanto o
temperante provam do prazer o intemperante com prazeres depravados o temperante com prazeres
mais elevados e o saacutebio tem prazer na sua praacutetica da sabedoria124 Posto que o fenocircmeno do prazer e
da dor satildeo intriacutensecos agrave natureza humana naturalmente tambeacutem satildeo inerentes agrave conduta humana e
este fato os torna fatores educativos para o ser humano A eudaimonia tambeacutem se traduz em uma
adequada escolha dos prazeres uma vez que o ser humano natildeo eacute somente razatildeo mas tambeacutem eacute
dotado de sentidos Por conseguinte uma orientaccedilatildeo adequada do ser humano consiste em levaacute-lo
ao deleite prazeroso das coisas nobres sendo fundamental um estiacutemulo para a praacutetica das virtudes
intelectuais e morais
As virtudes morais possuem como uma de suas caracteriacutesticas serem ligadas aos prazeres
ou agraves dores resultantes de nossos atos Assim prazer e dor tornam-se indicativos do caraacuteter virtuoso
ou natildeo virtuoso de uma pessoa Caso realize uma accedilatildeo virtuosa e esta traga sofrimento ao agente
este natildeo poderaacute ser tido como virtuoso Para ilustrar esta ideia tem-se o exemplo de um homem que
119 O termo paideacuteia eacute traduzido como educaccedilatildeo ensinamento instruccedilatildeo treinamento120 Cf EacuteN II 1104b 10-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29121 EacuteN II 1105a 1-5 Ibidem p 30122 Foi um disciacutepulo de Platatildeo123 Cf EacuteN X 1172a 10-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 174124 Cf Filebo 11d-12d PLATOacuteN Diaacutelogos VI Filebo Timeo Critias Traducciones Introducciones y Notas porMaria Angeles Duraacuten y Francisco List Madrid Gredos 1992 p 22-24
42
pratica a abstinecircncia dos prazeres do corpo para fins de adquirir a virtude da temperanccedila A pessoa eacute
tida como temperante se o esforccedilo da abstinecircncia lhe eacute prazeroso caso natildeo seja e ocasionar um
sofrimento este seraacute um homem destemperante ou seja que natildeo possui moderaccedilatildeo nas suas
accedilotildees125 A virtude moral refere-se em como saber lidar com os prazeres e dores para uma
apropriada formaccedilatildeo do caraacuteter pois o prazer pode induzir o indiviacuteduo a realizar accedilotildees vis e a dor
dificulta a realizar accedilotildees nobres126 O prazer eacute um fator indutor das accedilotildees humanas seja para o bem
ou para o mal porque o prazer eacute vinculado agrave natureza humana sendo objeto dos nossos desejos
Afinal espera-se alcanccedilar o prazer nas atividades que exercemos e natildeo que estas resultem em
tristezas ou dores as quais o ser humano tende a evitaacute-los Aristoacuteteles eacute enfaacutetico ao afirmar que na
educaccedilatildeo dos jovens o prazer e a dor encontram-se presentes sendo ldquoguiasrdquo dos caminhos a serem
seguidos Eacute de extrema importacircncia escolher bem e comprazer-se com as coisas certas aquelas que
se deve apreciar e se afastar das coisas inapropriadas que devem ser evitadas natildeo se permitindo o
deleite com aquilo que eacute peacuterfido Por isso esta escolha tem uma grande influecircncia na formaccedilatildeo de
uma pessoa virtuosa127
O homem eacute um ser racional Agrave luz deste fato nota-se como o desejo pode e deve ser
moldado agrave luz da razatildeo O desejo impele o indiviacuteduo a buscar aquilo que eacute mais prazeroso No dizer
de Otfried Houmlffe o prazer eacute um elemento integrante da felicidade mas uma vida de puro prazer natildeo
oferece um fundamento seguro para encontrar a eudaimonia128 Para Aristoacuteteles os prazeres do
intelecto superam os prazeres dos sentidos129 Por isso a parte racional deve orientar o desejo para
que tenha prazer no empenho necessaacuterio para adquirir e manter a virtude e obter a satisfaccedilatildeo com o
exerciacutecio das atividades do intelecto130
Essa eacute uma opccedilatildeo de fundamental importacircncia a ser feita e a qual ningueacutem pode ser furtar
consciente ou natildeo da existecircncia dessa escolha Uma vez que os desejos satildeo intriacutensecos agrave natureza
humana sendo uma parcela deles pertencentes a sua parte irracional eacute imperioso escolher quais
espeacutecies de prazeres seratildeo objeto de agrado os prazeres mais sublimes que resIbidem na vivecircncia
das virtudes morais e no intelecto aprimorado pelas virtudes intelectuais ou os prazeres mais
rasteiros que satisfazem apenas os apetites da alma humana
125 Neste ponto surge uma questatildeo interessante o virtuoso temperante pode frear sentimentos prazerosos parapermanecer no meio-termo No nosso entender a resposta eacute positiva O homem temperante para alcanccedilar o meio-termoe executar uma accedilatildeo virtuosa pode reprimir os sentimentos prazerosos principalmente se forem prazeres torpes Emesmo que sejam prazeres nobres o temperante pode escolher dominaacute-los caso natildeo o conduza a uma accedilatildeo virtuosa 126 Cf EacuteN II 1104b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 29127 Cf EacuteN X 1172a 20-25 Ibidem p 179128 Cf HOumlFFE Otfried Aristoacuteteles Op cit p 193129 EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186130 Cf EacuteN X 1177a 1- 27 e 1178a 1-8
43
Aristoacuteteles utiliza pessoas concretas para exemplificar e identificar quais prazeres satildeo os
melhores e por conseguinte mais aspiraacuteveis a todos os homens131 O paracircmetro dos prazeres eacute
fornecido pela proacutepria accedilatildeo das pessoas virtuosas e natildeo por aquelas que possuem uma deformaccedilatildeo
em seu caraacuteter moral As pessoas virtuosas satildeo a proacutepria concretizaccedilatildeo do que se constitui o criteacuterio
dos prazeres considerados bons e dignos Elas satildeo consideradas modelos por se deliciarem com
prazeres que satildeo frutos da parte racional do ser humano e tambeacutem por terem os desejos
controlados pelas virtudes morais Por isso estes indiviacuteduos elevam a patamares superiores a
conduta humana Portanto os prazeres que as pessoas virtuosas buscam e desfrutam isso eacute o que
devem ser procurados porque satildeo estes prazeres que tanto estimulam a praacutetica das virtudes quanto
resultam destas mesmas virtudes praticadas no dia-a-dia
As pessoas viciosas corrompidas moralmente natildeo podem ser tomadas como modelo de
uma vida feliz devido ao fato de optarem por buscar os prazeres torpes que satisfazem apenas os
sentidos proacuteprios da parte irracional esquecendo-se da satisfaccedilatildeo do intelecto da parte racional
Com isso afastam-se da racionalidade que eacute a parte mais ilustre e mais humana e aproximam-se de
um modo de vida mais animalesco pois como diz Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquo[] tais prazeres satildeo
muitos desejados pelas bestas mas natildeo o devem ser pelos homensrdquo132 A torpeza na conduta
fatalmente afasta o homem de uma vida virtuosa que eacute proacutepria da eudaimonia Logo na sordidez
encontra-se a infelicidade embora muitas vezes tenha a aparecircncia de uma vida feliz
O homem bom eacute o proacuteprio homem virtuoso Ele eacute o padratildeo de referecircncia acerca dos
prazeres que podem ser apreciados O que se afigura como prazeroso ao homem virtuoso pode ser
deduzido como um prazer correto e agradaacutevel sendo liacutecito o estiacutemulo para ser usufruiacutedo por outras
pessoas Um homem virtuoso natildeo se deliciaraacute com coisas ou accedilatildeo desonrosas Somente homens
pervertidos moralmente podem se comprazer com aquilo que eacute vergonhoso natildeo existindo
possibilidade de serem erigidos ao patamar de modelos de prazeres a serem vividos Aristoacuteteles eacute
enfaacutetico ao afirmar que os prazeres reconhecidamente ignoacutebeis natildeo devem ser apreciados como
prazeres sob nenhuma condiccedilatildeo pois satildeo indignos de homens com nobreza moral sendo apenas
131Cf EacuteN VI 1140b 10 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Aristoacuteteles tambeacutem aponta para os homensconsiderados prudentes para exemplificar a virtude da phronecircsis em atuaccedilatildeo e tentar demonstrar os criteacuterios utilizadospara uma accedilatildeo virtuosa O Estagirita cita o estadista Peacutericles e ldquohomens como elerdquo como exemplo de indiviacuteduos quepossuiacuteam a virtude da prudecircncia porque percebiam o que era bom para si mesmos e para os homens em geral Por issoeram considerados bons administradores de casas e de Estados No caso dos prazeres Aristoacuteteles tambeacutem aponta que oshomens virtuosos satildeo o modelo de quais espeacutecies de prazeres podem ser usufruiacutedos Satildeo os prazeres provenientes dasaccedilotildees virtuosas 132 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles TradTiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 p 38 A citaccedilatildeo em latim vem das Sententia Libri Ethicorumliber 10 lectio 4 n 3 ldquo[] Et similiter delectationes bestiales bestiis quIbidem sunt appetibiles non autemhominibusrdquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017 O Aquinate sintetiza a visatildeoaristoteacutelica referente a EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-15
44
apreciados por homens degenerados em seu caraacuteter Mas mesmo dentro da categoria dos prazeres
dignos e honrosos a questatildeo que surge eacute a acerca de quais destes prazeres satildeo mais adequados ao
ser humano Novamente eacute o homem dotado de virtudes que se torna o proacuteprio criteacuterio De acordo
com o Estagirita
Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado comosendo realmente talSe isto eacute correto como se afiacutegura ser e a virtude e o homembom como tais satildeo a medida de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os quelhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitarSe as coisas que ele acha enfadonhas parecem agradaacuteveis a outros natildeo haacute nada desurpreendente nisso pois os homens podem ser pervertidos e estragados de muitosmodos e tais coisas natildeo satildeo realmente agradaacuteveis mas soacute o satildeo para essaspessoas e outras nas mesmas condiccedilotildees Das que reconhecidamente satildeovergonhosas evidentemente natildeo se deveria dizer que satildeo prazeressalvo para umgosto pervertido133
O prazer (h9donh) natildeo eacute um bem em si mesmo natildeo eacute autossuficiente posto que esteja
sempre atrelado em alguma coisa boa ou maacute Por isso natildeo eacute o bem supremo pois variam conforme
as diversas espeacutecies de prazer aleacutem de serem alguns resultantes de boas obras e outras de obras
torpes Assim o prazer natildeo pode ser considerado universalmente bom nem como o uacutenico criteacuterio
de bem Como siacutentese desta premissa Satildeo Tomaacutes de Aquino aponta trecircs aspectos acerca dos
prazeres pelos quais Aristoacuteteles natildeo considera o prazer universalmente bom134 Primeiro o prazer
possui muitas espeacutecies e muitas vezes pode ser maleacutefico Este fato pode ser ilustrado citando a
diferenccedila entre um amigo e um adulador Com o amigo com o qual existe uma verdadeira amizade
o conviacutevio eacute pautado pelo bem que traz Em relaccedilatildeo ao adulador o conviacutevio tem por fundamento
somente o prazer Prontamente o amigo eacute louvado pelo bem que traz agrave amizade enquanto o
adulador eacute repreendido Segundo uma crianccedila concede uma maacutexima relevacircncia aos prazeres da
infacircncia e ningueacutem deseja continuar vivendo nesta etapa da vida mesmo que o crescimento e
amadurecimento signifiquem assumir as tristezas inerentes agrave vida adulta Terceiro existem
atividades que satildeo desejadas mas natildeo trazem nenhum tipo de prazer tais como o ato de recordar
adquirir conhecimento e possuir virtudes Estas atividades se concretizam sem necessariamente
terem um prazer como consequecircncia Neste sentido sendo as virtudes e o conhecimento
relacionados agrave eudaimonia Aristoacuteteles recomenda que mesmo que hipoteticamente natildeo houvesse
133 Cf EacuteN X 1176a 15-23 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186134 Cf Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 39 e Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 4 n 4 a8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017
45
nenhum prazer na praacutetica destas atividades elas deveriam continuar a serem escolhidas pelo bem
que carregam consigo135
Em siacutentese o prazer eacute como um ldquomotorrdquo que impele o indiviacuteduo a buscar o objeto
apropriado do desejo seja este um bom ou mau desejo Estes desejos geram prazeres considerados
nobres ou torpes O homem virtuoso para alcanccedilar a eudaimonia procura os prazeres originados
pelas accedilotildees virtuosas porque geram prazeres dignos
Aleacutem de ser uma fonte indutora das atividades humanas o prazer tambeacutem possui o papel de
aperfeiccediloar estas mesmas atividades Eacute esta funccedilatildeo de aperfeiccediloamento que seraacute estudada no
proacuteximo toacutepico
23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
Uma outra funccedilatildeo distintiva do prazer eacute o aperfeiccediloamento da atividade Esta relaccedilatildeo de
prazer e perfeiccedilatildeo se refere agrave dois pontos importantes que satildeo o aprimoramento da atividade e o
resultado da perfeiccedilatildeo atingida na accedilatildeo
Na concepccedilatildeo aristoteacutelica todas as pessoas buscam o prazer porque aspiram agrave vida136 Uma
vez que a vida eacute uma atividade cada indiviacuteduo exerce sua atividade sobre os objetos e com as
faculdades que mais lhe apraz o prazer inerente a essas accedilotildees estimula repetir continuamente esta
mesma accedilatildeo Por exemplo um muacutesico sente prazer na audiccedilatildeo e no estudo das melodias ou um
intelectual se deleita com o uso da razatildeo nas questotildees filosoacuteficas Por isso o prazer eacute um
complemento de uma atividade bem exercida137 Deste modo haacute um aprimoramento das accedilotildees
realizadas o que leva um aperfeiccediloamento da proacutepria vida pois esta conteacutem todas as atividades
Conforme descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
Dir-ser-ia que todos os homens desejam o prazer porque todos aspiram agrave vida Avida eacute uma atividade e cada um eacute ativo em relaccedilatildeo agraves coisas e com as faculdadesque mais ama por exemplo o muacutesico eacute ativo com o ouvido em referecircncia agravesmelodias o estudioso como o intelecto em referecircncia a questotildees teoacutericas e da
135 Usando o proacuteprio exemplo de Aristoacuteteles na EacuteN 1173b 20 ndash 1174a 1-10 Devemos notar que determinadasatividades como a visatildeo a memoacuteria o conhecimento a posse das virtudes etc podem gerar prazer ou natildeo Mas devemser buscadas mesmo que gerem dor Na referida passagem da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apenas afirma que devemser escolhidas independentemente de serem prazerosas ou natildeo Em nosso entender estas atividades podem emalgumas ocasiotildees natildeo serem prazerosas Mas natildeo significam necessariamente que gerem dor por isso deve-se optarpor elas tal como preconizado pelo Estagirita 136 A vida de um ser humano conteacutem prazeres e dores Todos os indiviacuteduos procuram ter uma vida prazerosa o quesignifica maximizar as atividades que trazem prazer e diminuir aquelas que provocam dor Logo dizer que um homembusca agrave vida significa que ele procura exercer as atividades que trazem alegria para si para que sua vida seja feliz137 Uma questatildeo que pode advir eacute se necessariamente uma atividade bem feita gera prazer Na nossa visatildeo entendemosque sim Porque o prazer eacute intriacutenseco agrave atividade ou seja acompanha cada accedilatildeo realizada de modo correto Oindiviacuteduo tem satisfaccedilatildeo ao final da accedilatildeo corretamente realizada
46
mesma forma nos outros casos Ora o prazer completa as atividades e portanto avida que eles desejam Eacute muito justo pois que aspirem tambeacutem ao prazer vistoque para cada um este completa a vida que lhe eacute desejaacutevel Mas quanto a saber seescolhemos a vida com vistas no prazer ou o prazer com vistas na vida eacute umaquestatildeo que podemos deixar de parte por ora Com efeito os dois parecem estarintimamente ligados entre si e natildeo admitir separaccedilatildeo jaacute que sem atividade natildeosurge o prazer e cada atividade eacute completada pelo prazer que a acompanha 138
Para Satildeo Tomaacutes de Aquino ldquoPortanto o prazer eacute a perfeiccedilatildeo da operaccedilatildeordquo139 Ou seja a
proacutepria atividade eacute completada pelo prazer O prazer em si depende da operacionalizaccedilatildeo da
atividade140 seja esta uma atividade atinente aos sentidos ou ao intelecto Mas pode-se dizer que
existe uma escala de prazeres pois os prazeres satildeo de diversos tipos e vinculados a diversas
atividades que tambeacutem podem ser subdividas em uma escala Logo uma atividade bem-feita eacute
prazerosa e uma atividade perfeita eacute prazerosiacutessima
Tatildeo diversas quanto agraves atividades tambeacutem satildeo os prazeres Existem prazeres vinculados
aos sentidos e outros vinculados ao intelecto sendo estes uacuteltimos considerados mais sublimes e
puros141 Ao existir uma variedade de atividades com diferentes prazeres haacute uma consequente
valoraccedilatildeo moral diversificada para cada prazer O criteacuterio adotado por Aristoacuteteles para a aplicaccedilatildeo
de um juiacutezo moral correto que possa identificar um prazer considerado moralmente bom ou mau eacute
o proacuteprio exemplo do homem bom142
No que tange agrave observaccedilatildeo aristoteacutelica acerca da ligaccedilatildeo entre as atividades realizadas e
os prazeres resultantes que trazem um aperfeiccediloamento da mesma accedilatildeo o adaacutegio popular que
afirma que ldquoa praacutetica leva agrave perfeiccedilatildeordquo resume bem neste quesito a posiccedilatildeo aristoteacutelica A
constacircncia nas virtudes morais conduz agrave excelecircncia do caraacuteter assim como a perseveranccedila nas
virtudes intelectuais acarretam uma maestria com o conhecimento tanto pelo aumento de
conhecimento quanto pelo manejo deste Isso traz ao homem virtuoso a alegria o prazer em duas
formas o primeiro de percorrer o caminho da virtude o segundo de alcanccedilar cada vez mais uma
nobreza de conduta que o faz ser um indiviacuteduo feliz
138 Cf EacuteN X 1175a 10-20 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 184139 Satildeo Tomaacutes de Aquino Sobre os Prazeres op cit p 51 Eacute interessante conferir esta liccedilatildeo na iacutentegra por issocoloco a citaccedilatildeo inteira em latim das Sententia Libri Ethicorum liber 10 lectio 6 n 5 ldquoEt inter huiusmodi operationessensus et intellectus illa est delectabilissima quae est perfectissima Perfectissima autem operatio est quae est sensusvel intellectus bene dispositi in comparatione ad optimum eorum quae subiacent sensui vel intellectui Si igitur operatioperfecta est delectabilis perfectissima autem delectabilissima consequens est quod operatio inquantum est perfecta sitdelectabilis Delectatio ergo est operationis perfectiordquo Corpus Thomisticum Sancti Thomae de Aquino Disponiacutevel emlthttpwwwcorpusthomisticumorgctc10htmlgt Acesso em 07 de setembro de 2017140 Embora existam prazeres sem atos como algumas deleitaccedilotildees141 Cf EacuteN X 1176a 1-4 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 186142 Cf EacuteN X 1176b 25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 187
47
24 O homem virtuoso
O indiviacuteduo que alcanccedilou a excelecircncia moral eacute denominado na visatildeo grega antiga de
spoudaios (σπουδαῖος) Conforme Aristoacuteteles assinala as virtudes morais estatildeo estritamente ligadas
agrave prudecircncia porque os princiacutepios que balizam a accedilatildeo humana satildeo fornecidos pela virtude intelectual
da prudecircncia A prudecircncia confere o paracircmetro correto para as virtudes morais143 O homem
prudente (φρόνιμος) aponta a melhor escolha a ser seguida O spoudaios eacute o indiviacuteduo que possui as
melhores condiccedilotildees para emitir um julgamento prudente acerca de quais prazeres satildeo liacutecitos em
serem gozados ou a correta medida das virtudes em cada caso especiacutefico O spoudaios torna-se o
proacuteprio criteacuterio de um bom julgamento dos princiacutepios morais prazeres e desejos perante as
circunstacircncias Na compreensatildeo de Pierre Aubenque para Platatildeo o homem saacutebio fixa seu
paracircmetro na Ideia de Bem ou seja em uma ordem ou norma transcendente a ele proacuteprio
Aristoacuteteles ao desconsiderar a existecircncia de um Mundo das Formas ideais transfere o paracircmetro de
sabedoria e retidatildeo a serem observadas para o proacuteprio phronimos Para sermos homens de retidatildeo
moral natildeo devemos ter como paracircmetro a Ideia de Bem e sim termos como paracircmetro o proacuteprio
homem de bem No entender de Pierre Aubenque inicialmente a palavra σπουδαῖος significava um
indiviacuteduo que tinha ldquozelordquo em suas faccedilanhas possuiacutea um ardor no combate sendo esta noccedilatildeo
aplicada ao ideal arcaico do heroacutei grego Depois passou a significar somente uma atividade
realizada de modo crediacutevel O spoudaios por ser zeloso na sua conduta inspira confianccedila visto que
eacute digno e honrado em suas accedilotildees Aristoacuteteles teria recuperado este antigo ideal heroacuteico mas
transmutado no homem que possui uma qualidade em seu julgamento por ser valoroso
moralmente144 Nota-se como o homem prudente o phronimos que possui uma excelecircncia na
virtude intelectual da prudecircncia se coaduna com o homem possuidor de excelecircncia moral o
spoudaios145
A vida virtuosa eacute uma vida prazerosa O spoudaios eacute o modelo do que deve ser feito e isso
inclui os prazeres considerados nobres e provenientes da virtude porque sabe discerni-los e pesaacute-los
bem146 O bem verdadeiro e por consequecircncia o prazer verdadeiramente bom eacute posto em relaccedilatildeo a
este indiviacuteduo considerado valoroso O spoudaios ilumina as situaccedilotildees e distingue aquilo que eacute
143 Cf EacuteN X 1178a 15-18 Ibidem p 190144 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 77-78145 Pierre Aubenque aponta a traduccedilatildeo de outros comentadores de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo ao termo σπουδαῖος ParaTricot eacute oldquohomem virtuosordquo para Voilquin eacute o ldquohomem de bemrdquo para Gauthier eacute o ldquovirtuosordquo para Ross eacute o ldquo thegood manrdquo Aubenque prefere chamar de ldquovalorosordquo Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p78 Independente da melhor forma de traduzir o termo σπουδαῖος o nuacutecleo central do conceito identifica-se com umaexcelecircncia de virtudes morais nobreza de conduta retidatildeo moral etc sendo contraacuterio agrave devassidatildeo ou condutapermeada de viacutecios 146 Cf EacuteN I 1099a 22-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 18
48
apenas aparecircncia ou nefasto daquilo eacute que autecircntico e benfazejo em cada categoria de coisas Um
indiviacuteduo pode considerar boa alguma coisa a ser feita ou buscada sem que aquilo seja
verdadeiramente bom devido a uma falsa percepccedilatildeo do que realmente eacute o bem em cada coisa Isto
tambeacutem ocorre com os prazeres inerentes agraves coisas que fazemos ou desejamos A princiacutepio podem
parecer prazeres edificantes mas tirados seus veacuteus conduzem apenas agrave ruiacutena Por isso eacute
imprescindiacutevel saber escolher corretamente os prazeres considerados bons e se habituar a desejaacute-
los Esta perspectiva do indiviacuteduo valoroso moralmente como regra e medida eacute subentendida desde
o Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco e se torna mais clara ao longo desta mesma obra Aristoacuteteles
assevera claramente este papel de criteacuterio ao spoudaios ao afirmar que
Com efeito o homem bom (σπουδαῖος) aquilata toda a classe de coisas comacerto e em cada uma delas a verdade lhe aparece com clareza mas cadadisposiccedilatildeo de caraacuteter tem suas ideacuteias proacuteprias sobre o nobre e o agradaacutevel e amaior diferenccedila entre o bom e os outros consiste talvez em perceber a verdade emcada classe de coisas como quem eacute delas a norma e a medida Na maioria doscasos o engano deve-se ao prazer que parece bom se realmente secirc-lo e por issoescolhemos o agradaacutevel como um bem e evitamos a dor como um malrdquo147
Podemos afirmar que na linha de raciociacutenio aristoteacutelica eacute necessaacuterio ser bom para decidir
bem O ato de discernir sopesar as coisas com acerto eacute uma accedilatildeo caracteriacutestica de um julgamento
correto acerca das coisas A retidatildeo de julgamento eacute uma qualidade distintiva do phronimos Por
isso Aristoacuteteles atribui ao homem prudente o exerciacutecio de estabelecer o criteacuterio para o julgamento
de cada classe de coisas O spoudaios eacute um homem nobre de conduta por ser virtuoso moralmente
mas ser um indiviacuteduo valoroso natildeo significa automaticamente ser um indiviacuteduo com um bom
discernimento acerca das circunstacircncias e da melhor accedilatildeo a ser operacionalizada Ser um homem de
virtudes morais eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para ser um homem com a virtude intelectual da prudecircncia 148
Por exemplo um indiviacuteduo incontinente que busque somente prazeres corporais natildeo consegue
julgar corretamente Todo phronimos eacute um indiviacuteduo valoroso moralmente natildeo sendo possiacutevel
algueacutem ser prudente se natildeo tiver se habituado a praacutetica das virtudes morais Uma vez que
Aristoacuteteles adere a posiccedilatildeo de imanecircncia dos criteacuterios de julgamento das coisas ao rejeitar a
transcendecircncia do Mundo das Formas traccedilada na filosofia platocircnica a reta razatildeo passar a ser
fundamentada no proacuteprio phronimos O homem prudente personifica a recta ratio porque ele se
torna aquele que possui a habilidade de julgar
O phronimos julga bem porque conhece aquilo que julga Conforme Aristoacuteteles assevera na
Eacutetica a Nicocircmaco que apenas julga bem quem foi instruiacutedo naquele assunto e julga bem as coisas
147 EacuteN III 1113a 30-39 Ibidem p 47148 Cf EacuteN VI 1143b 15- 23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 112
49
em geral por possuir uma instruccedilatildeo geral acerca de diversas coisas149 Tambeacutem natildeo basta somente
ser instruiacutedo sobre qualquer assunto na sua dimensatildeo teoacuterica mas eacute necessaacuterio ter ldquoexperiecircncia de
vidardquo para saber julgar corretamente as coisas e suas circunstacircncias Esta junccedilatildeo entre o
conhecimento teoacuterico dos princiacutepios e como aplicaacute-los nas diversas situaccedilotildees proporciona que o
indiviacuteduo seja considerado prudente A necessidade da maturidade como um dos fatores
fundamentais para a prudecircncia eacute posta por Aristoacuteteles quando explica que jovens natildeo satildeo bons
ouvintes para as instruccedilotildees acerca da vida poliacutetica pois natildeo possuem vivecircncia suficiente dos fatos
da vida150 Normalmente eles satildeo dados a seguirem suas paixotildees o que gera uma imaturidade que
atrapalha a accedilatildeo correta Vale frisar que na perspectiva aristoteacutelica indiviacuteduos adultos que natildeo satildeo
considerados jovens tambeacutem podem ser imaturos porque a maturidade depende de uma escolha do
modo de vida151 Desta maneira a aquisiccedilatildeo da virtude da prudecircncia vem de uma escolha que
envolve uma conduta de vida pautada pela racionalidade pelas virtudes morais e pela educaccedilatildeo
para desejar os prazeres corretos
25 As virtudes morais como mediania
Eacute notaacutevel a didaacutetica que Aristoacuteteles usa para explicar alguns conceitos descritos na Eacutetica a
Nicocircmaco Eacute frequente a comparaccedilatildeo que estabelece com as artes para expressar sua filosofia
moral Por exemplo ao argumentar sobre o bem das coisas usa a arte da navegaccedilatildeo a medicina a
equitaccedilatildeo a arqueria dentre outras Ao falar das virtudes recorre agrave figura dos construtores e
muacutesicos Esse recurso comparativo tambeacutem eacute usado para explicar as virtudes morais e o conceito de
mesoacutetes (152 Ao descrever a ideia de mediania como fundamental para uma conduta
virtuosa o Estagirita mostra que um mestre de ofiacutecio para atingir a excelecircncia na feitura de um
objeto busca a mediania por meio da qual evita o exagero ou uma deficiecircncia Logo o meio-termo
preserva a obra e os extremos a destroem A analogia confere clareza ao argumento aristoteacutelico
Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo (e escolhendo-o ndash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamentea noacutes Se assim pois que cada arte realiza bem o seu trabalho ndash tendo diante dosolhos o meio-termo e julgando suas obras por esse padratildeo e por isso dizemosmuitas vezes que agraves boas obras de arte natildeo eacute possiacutevel tirar nem acrescentar nada
149 Cf EacuteN 1094b 27 Ibidem p 10150 Cf EacuteN 1095a 3-5 Ibidem p 10 A relaccedilatildeo entre prudecircncia e experiecircncia seraacute estudada com mais detalhes noCapiacutetulo III 151 Cf EacuteN 1095a 6-13 Ibidem p 10152 O termo mesoacutetes pode ser traduzido por mediania meio-termo termo meacutedio mediedade
50
subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelecircncia dessas obrasenquanto o meio-termo a preserva e para este como dissemos se voltam osartistas no seu trabalho - e se ademais disso a virtude eacute mais exata e melhor quequalquer arte como tambeacutem o eacute a natureza segue-se que a virtude deve ter oatributo de visar ao meio-termo Refiro-me agrave virtude moral pois eacute ela que dizrespeito agraves paixotildees e accedilotildees nas quais existe excesso carecircncia e meio-termo153
O artesatildeo visa a mediania para realizar uma obra-prima Nesta nada eacute ausente tampouco eacute
possiacutevel acrescentar algo A excelecircncia da obra consiste na medida correta De modo anaacutelogo a
virtude moral se encontra na mediania O indiviacuteduo com virtudes morais eacute aquele que sabe constatar
nas situaccedilotildees qual eacute a proporccedilatildeo certa de seus afetos e accedilotildees para construir a si proacuteprio como ldquoobrardquo
de sua vida e alcanccedilar a eudaimonia
A virtude moral eacute caracterizada pela ideia de medianiaAmesoacutetes eacute o meio-termo entre
dois extremos de conduta Eacute o que nos mostra o Estagirita ao afirmar que ldquoPelas mesmas razotildees o
excesso e a falta satildeo caracteriacutesticos do viacutecio e a mediania da virtude pois os homens satildeo bons de
um modo soacute e maus de muitos modosrdquo154 Estes extremos satildeo considerados como viacutecios por
Aristoacuteteles Uma conduta virtuosa consiste em agir entre estes dois extremos Quais satildeo estas duas
formas de accedilatildeo ou emoccedilotildees que devem ser evitadas Satildeo dois tipos de viacutecios que denotam um
excesso ou uma carecircncia no sentir e no agir Deste modo a virtude eacute a proporccedilatildeo correta que evita
que o indiviacuteduo incorra em condutas que satildeo viciosas
A mediania natildeo deve ser entendida como um caacutelculo matemaacutetico exato e rigoroso Na
aritmeacutetica entre os nuacutemeros zero e dez a metade deste conjunto de numeraccedilatildeo eacute cinco Este
resultado eacute sempre o mesmo natildeo existe uma dependecircncia das situaccedilotildees para que isto ocorra Mas
esta exatidatildeo numeacuterica natildeo se aplica agrave conduta humana visto que a mediania deve ser observada
em relaccedilatildeo a noacutes examinando as situaccedilotildees pertinentes nas quais estamos inseridos Um exemplo
que ilustra o meio-termo eacute a alimentaccedilatildeo necessaacuteria de um atleta em comparaccedilatildeo a uma pessoa
sedentaacuteria que permanece o dia inteiro em um escritoacuterio O atleta necessita de uma alimentaccedilatildeo
mais rica em nutrientes e em quantidade maior enquanto o indiviacuteduo sedentaacuterio natildeo precisa de uma
nutriccedilatildeo diferenciada Ambos devem ter a alimentaccedilatildeo adequada agraves suas necessidades para que
possam cumprir sua funccedilatildeo e se manterem saudaacuteveis O mesmo ocorre com o exerciacutecio fiacutesico Por
isso o meio-termo preserva a sauacutede do corpo pois esta pode ser destruiacuteda tanto pelo excesso de
exerciacutecios alimentaccedilatildeo e bebida quanto pela sua total ausecircncia
153 EacuteN II 1106b 5-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32154 Cf EacuteN II 1106b 34-35 Ibidem p 33 Aleacutem da traduccedilatildeo utilizada neste trecho ldquopois os homens satildeo bons de ummodo soacute e maus de muitos modosrdquo feita por L Vallandro e G Bornheim 1987 indicamos a traduccedilatildeo feita por EdsonBini (2013 p 77) referente ao mesmo trecho ldquoSimples eacute a bondade muacuteltipla a maldaderdquo E a traduccedilatildeo realizada porMarco Zingano (2008 p 51) ldquoBravos pois de um soacute modo mas maus de muitos modosrdquo
51
No campo das virtudes morais esta mesma ideia de evitar o excesso ou carecircncia eacute aplicada
O indiviacuteduo que foge diante de quaisquer perigos ou natildeo enfrenta os desafios transforma-se em um
covarde Mas ao enfrentar todas as situaccedilotildees sem nenhum temor torna-se um temeraacuterio A coragem
consiste em natildeo ser um covarde nem ser um afoito que natildeo calcula os riscos Da mesma forma o
homem que cede a todos os prazeres natildeo praticando a temperanccedila assume a postura de um
libertino Entretanto se escolhe natildeo usufruir de nenhum tipo de prazer se converte em uma pessoa
insensiacutevel A temperanccedila estaacute na moderaccedilatildeo dos prazeres Tal como a sauacutede eacute adquirida e se
manteacutem pelo haacutebito de uma boa alimentaccedilatildeo e exerciacutecios fiacutesicos as virtudes satildeo adquiridas por
meio de uma boa praacutetica habitual Tornamo-nos temperantes evitando os extremos o que nos
capacita a sermos moderados O mesmo ocorre com a coragem ao confrontar aquilo que nos causa
medo nos tornamos corajosos Portanto as virtudes satildeo preservadas pela mediania mas satildeo
extinguidas pelo exagero ou pela deficiecircncia que impedem a execuccedilatildeo de uma accedilatildeo virtuosa
Eacute importante ressaltar que a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que proporciona um
proceder correto da conduta do indiviacuteduo A virtude diz respeito agraves paixotildees e as accedilotildees Em relaccedilatildeo
aos afetos significa que as paixotildees possam ser experimentadas da forma correta155 As paixotildees satildeo
corretamente vivenciadas quando atendem os requisitos de serem experimentadas no momento
oportuno quando se referem agraves pessoas certas visa o propoacutesito certo pelo motivo certo e da
maneira correta156 Os mesmos requisitos descritos acerca das emoccedilotildees satildeo aplicados agraves accedilotildees do
indiviacuteduo Estas tambeacutem devem ser realizadas do modo certo para serem consideradas virtuosas157
Satildeo as virtudes morais que permitem que o indiviacuteduo possa adquirir a excelecircncia ao lidar com as
paixotildees e consequentemente com as accedilotildees Diante dessas condiccedilotildees relacionadas tanto agraves paixotildees
quanto agraves accedilotildees o Estagirita assevera que eacute um desafio ser um homem bom porque eacute faacutecil errar de
muitos modos enquanto a conduta certa possui somente um uacutenico modo de agir158
Todas as accedilotildees e paixotildees possuem um meio-termo Aristoacuteteles afirma que determinadas
condutas natildeo satildeo passiacuteveis de aplicaccedilatildeo do conceito de mesoacutetes devido ao fato que estas satildeo maacutes
por si proacuteprias Natildeo satildeo os excessos ou as carecircncias que transformam estas condutas em accedilotildees ou
paixotildees agrave serem evitadas mas as suas proacuteprias essecircncias satildeo maldosas O Estagirita elenca alguns
exemplos referentes aos afetos como a malevolecircncia o despudor a inveja quanto agraves accedilotildees cita o
adulteacuterio o furto e o homiciacutedio Outro argumento exposto por Aristoacuteteles para natildeo aplicar a ideia de
mediania nas condutas mencionadas eacute que seria uma insensatez pensar a existecircncia de um meio-
termo em algo que por si mesmo jaacute eacute um excesso ou uma carecircncia Natildeo pode haver a ldquodemasiardquo de
155 Cf EacuteN II 1106b 15-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 32-33156 Cf EacuteN II 1106b 20-24 Ibidem p 33157 Cf EacuteN II 1106b 26-29 Ibidem p 33158 Cf EacuteN II 1106b 35 Ibidem p 33
52
um excesso ou a ldquocarecircnciardquo de uma insuficiecircncia cerca das maacutes condutas descritas outro
exemplo que demonstra a clareza da ideia consiste no fato de que natildeo eacute possiacutevel existir uma
mediania quando as proacuteprias essecircncias das accedilotildees ou paixotildees satildeo perversas A tiacutetulo de exemplo eacute
absurdo imaginar que um indiviacuteduo que comete adulteacuterio com a frequecircncia de ser ldquomeramenterdquo
uma vez por ano durante um evento determinado com uma pessoa considerada bondosa e com a
duraccedilatildeo do encontro por apenas alguns minutos pode estar justificada moralmente Natildeo eacute
moderaccedilatildeo deste tipo de conduta que a faz ser boa ela sempre seraacute perniciosa A mesma ilustraccedilatildeo
pode ser aplicada agraves demais accedilotildees maacutes Logo de qualquer forma que estas accedilotildees sejam cometidas
estatildeo sempre erradas conforme nos mostra Aristoacuteteles
Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes quejaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito () o despudor() a inveja (θόνος) e no campo das accedilotildees o adulteacuterio (μοιχεία) ofurto (κλοπή) o assassiacutenio () Todas essas coisas e outras semelhantesimplicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso oudeficiecircncia Todas essas coisas e outas semelhantes implicam nos proacuteprios nomesque satildeo maacutes em si mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais podehaver retidatildeo mas unicamente o erro E no que se refere a essas coisas tampoucoa bondade ou maldade dependem de cometer adulteacuterio com a mulher apropriadana ocasiatildeo e da maneira convenientes mas fazer simplesmente qualquer delas eacute ummalIgualmente absurdo seria buscar um meio-termo (um excesso e umafalta em atos injustos covardes ou libidinosos porque assim haveria um meio-termo do excesso e da carecircncia um excesso do excesso e uma carecircncia da carecircnciaMas do mesmo modo que natildeo existe excesso nem carecircncia de temperanccedila ecoragem pois o que eacute intermediaacuterio tambeacutem eacute noutro sentido um extremotambeacutem das accedilotildees que mencionamos natildeo haacute meio-termo nem excesso nem faltaporque de qualquer forma que sejam praticadas satildeo maacutes Em suma do excesso eda falta natildeo haacute um meio-termo como tambeacutem natildeo haacute excesso ou falta de meio-termo159
Nas diversas situaccedilotildees que o homem se depara Aristoacuteteles descreve que um dos
aspectos160que deve ser observado para que a virtude moral possa atuar eacute a noccedilatildeo de
ldquoquantidaderdquo161 Lidar com os afetos significa experimentaacute-los na proporccedilatildeo correta dentro da
situaccedilatildeo enfrentada pelo indiviacuteduo162 Neste sentido uma observaccedilatildeo menos cuidadosa das
caracteriacutesticas da virtude pode levar agrave interpretaccedilatildeo equivocada que a mediania consistiria somente
em ter sentimentos moderados de uma forma inflexiacutevel sem atentar para os demais requisitos Para
159 EacuteN II 1107a 10-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33160 Cf EacuteN II 1106b 20-24 ARISTOacuteTELES Ibidem p 33 Outros elementos satildeo a ocasiatildeo apropriada os objetosapropriados as pessoas apropriadas o motivo correto e a maneira conveniente 161 A ldquoquantidaderdquo pode ser entendida como intensidade das emoccedilotildees162 Cf EacuteN II 1106b 18-19 Ibidem p 33
53
exemplificar esta perspectiva imaginemos o caso de um indiviacuteduo que seja viacutetima de um assalto a
ldquomatildeo armadardquo Ele deve sentir brandamente raiva do meliante natildeo se exaltando diante da
ocorrecircncia Outro exemplo seria a pessoa que natildeo se alegra nos eventos prazerosos Portanto a
virtude como accedilatildeo e paixatildeo corretas seria baseada no aspecto quantitativo de afeto
Esta interpretaccedilatildeo acima descrita natildeo condiz com o argumento aristoteacutelico acerca da
virtude moral163 Primeiro porque desconsidera os outros aspectos que devem ser observados pelo
indiviacuteduo para que a accedilatildeo possa ser tido como moralmente virtuosa Estes aspectos satildeo o tipo de
pessoa qual o momento em que ocorreu a accedilatildeo se o motivo foi correto ou errocircneo se a maneira de
agir foi adequada ou natildeo Esta interpretaccedilatildeo equivocada determina a ldquoquantidade meacutediardquo de afetos
que o indiviacuteduo deve vivenciar independente de qual seja as circunstacircncias O problema estaacute no
fato que esta vivecircncia se baseia em pressupostos abstratos Segundo porque a avaliaccedilatildeo das paixotildees
e accedilotildees eacute realizada a partir das circunstacircncias concretas nas quais o indiviacuteduo estaacute inserido
Terceiro a virtude moral se encontra no campo da razatildeo praacutetica natildeo eacute possiacutevel estabelecer um
comportamento que tenha uma ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo dotada de uma precisatildeo matematicamente
exata e imutaacutevel164 Na visatildeo aristoteacutelica o exame correto da conduta visa agraves particularidades de
cada situaccedilatildeo e evita qualquer abstraccedilatildeo relacionada as emoccedilotildees A ldquoquantidaderdquo de emoccedilatildeo deve
ser adequada em cada situaccedilatildeo enfrentada A anaacutelise se o homem teve ou natildeo os afetos apropriados
deve considerar quem eacute a pessoa seus motivos o que estava ocorrendo naquele contexto etc
Portanto o aspecto quantitativo natildeo deve ser dispensado totalmente no exame da virtude visto que
ele tambeacutem compotildeem a accedilatildeo correta mas deve ser observado juntamente com os demais aspectos
relacionadas agrave accedilatildeo pautada pela virtude moral
Eacute importante ficar claro que o indiviacuteduo que busca atingir a mediania e por consequecircncia
uma accedilatildeo virtuosa precisa atentar para todos os aspectos envolvidos na virtude moral intensidade
correta dos afetos momento oportuno a pessoa visada o propoacutesito a maneira adequada de agir
Com frequecircncia erra-se em um requisito ou outro o que ocasiona um erro ou acerto parcial na
conduta Entretanto o equiacutevoco cometido em todos os aspectos acarreta uma accedilatildeo viciosa e por
isso uma maacute conduta Uma accedilatildeo virtuosa que prima pela excelecircncia cumpre todos as condiccedilotildees da
virtude moral Contudo Aristoacuteteles adverte que todos estes requisitos necessitam estar em
consonacircncia com a reta razatildeo165
Ao orientar a mediania a reta razatildeo implica que cada situaccedilatildeo necessita de uma accedilatildeo
apropriada O homem virtuoso pode agir de uma maneira ou de outra conforme a necessidade de
cada ocasiatildeo mas sempre com a finalidade de que sua accedilatildeo seja moralmente virtuosa Citamos um
163 Cf EacuteN II 1104b 20-29 Ibidem p 29164 Cf EacuteN II 1104a 3-9 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 28165 Cf EacuteN II 1103b 33-35 Ibidem p 28
54
exemplo para clarificar esta ideia em uma circunstacircncia ldquoxrdquo eacute imperioso que tenha muita ira e que
aja de acordo com este afeto Na circunstacircncia ldquoyrdquo apenas eacute necessaacuteria uma ira branda para que a
melhor accedilatildeo se realize Nota-se que a mediania que estaacute em concordacircncia com a reta razatildeo
estabelece que a accedilatildeo virtuosa eacute aquela que se adequa agrave situaccedilatildeo na qual o indiviacuteduo estaacute inserido
No entender de Martin Rhonheimer o meio-termo da virtude eacute o melhor e o maacuteximo que se deve
fazer em cada ocasiatildeo e isso eacute o bem determinado pela razatildeo166 As paixotildees e as accedilotildees satildeo avaliadas
agrave luz da racionalidade Eacute a razatildeo que examina se houve uma demasia ou uma insuficiecircncia E quem
define da melhor forma possiacutevel a reta razatildeo eacute a pessoa dotada de sabedoria praacutetica ou seja o
homem prudente (φρόνιμος) Por isso a virtude moral como mediania entre duas accedilotildees ruins estaacute
intimamente conectada agrave prudecircncia como mostra Aristoacuteteles
A virtude (ἀρετή) eacute pois uma disposiccedilatildeo (ἕξις) de caraacuteter relacionada com aescolha ( e consistente numa mediania ( isto eacute a medianiarelativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional proacuteprio do homemdotado de sabedoria praacutetica (φρόνιμος) E eacute um meio-termo (entre doisviacutecios ( um por excesso ( e outro por falta ( pois queenquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente notocante agraves accedilotildees ( e paixotildees ( a virtude encontra e escolhe omeio-termo E assim no que toca agrave sua substacircncia (ou0sian) e agrave definiccedilatildeo (l gonoacutej )que lhe estabelece a essecircncia (e0stin) a virtude eacute uma mediania com referecircncia aosumo bem ( e ao mais justo eacute poreacutem um extremo (167
Estabelecer a mesoacutetes em uma situaccedilatildeo concreta natildeo eacute uma tarefa faacutecil uma vez que eacute
imprescindiacutevel atentar para vaacuterios aspectos relacionados agrave virtude moral168 Diante deste fato
Aristoacuteteles propotildee trecircs criteacuterios que auxiliam na obtenccedilatildeo da mediania O primeiro eacute evitar o
extremo que mais se afasta do meio-termo Ao considerar a existecircncia de duas accedilotildees extremadas
(viacutecios) normalmente uma delas eacute mais grave e a outra menos Devemos escolher o menor dos
166 Cf RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda edicioacutenTrad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007 p 212 A obra original foi escrita na liacutengua alematildecom o tiacutetulo Die Perspecktive der Moral Grundlagen der philosphischen Ethik167 EacuteN II 1107a 1-5 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 33 Uma observaccedilatildeo importante eacute sobre a traduccedilatildeo dotermo pela palavra ldquoextremordquo escolhida pelos tradutores Leonel Vallandro e Gerd Bornheim cuja obrausamos como base nesta pesquisa O uso do termo ldquoextremordquo pode ser confundido com o viacutecio pois este eacute uma condutaextremada E natildeo com algo que eacute excelente Acreditamos que o conceito seria mais compreensiacutevel nocontexto desta passagem da Eacutetica a Nicocircmaco se fossem usados alguns termos como ldquoaacutepicerdquo ldquoelevadordquo ldquoaugerdquoPorque a virtude moral eacute a postura de excelecircncia que o indiviacuteduo possa ter ela permite atingir o bem humano Nestalinha de raciociacutenio Marco Zingano transcreve este trecho do seguinte modo ldquoA virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo deescolher por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo isto eacute comoa delimitaria o prudente Eacute uma mediedade entre dois males o mal por excesso e o mal por falta Ainda pelo fato deas disposiccedilotildees faltarem umas outras excederem no que se deve tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude descobree toma o meio-termo Por isso por essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlididade a virtude eacute uma mediedade massegundo o melhor e o bem eacute um aacutepicerdquo ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado davirtude moral Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008 p 51168 Cf EacuteN II 1109a 27 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37
55
extremos169 O segundo eacute conhecer quais erros somos mais propensos a cometer Isso pode ser
reconhecido pelo prazer ou dor que experimentamos ao cometecirc-los Apoacutes esta observaccedilatildeo de
tendecircncias que atraem ao erro eacute necessaacuterio caminhar na direccedilatildeo oposta para nos aproximar da
mediania170 O terceiro eacute ter uma atitude de cautela diante das coisas prazerosas porque estas
podem ser enganosas171 Deste modo o indiviacuteduo que observar estas precauccedilotildees pode atingir o
meio-termo e ser virtuoso nas circunstacircncias nas quais estaacute envolvido
Conforme exposto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter referente agraves escolhas que o
indiviacuteduo realiza A escolha correta estaacute na mediania Esta consiste em uma proporccedilatildeo correta de
paixotildees e accedilotildees entre dois extremos que satildeo considerados como viacutecios de conduta Um destes viacutecios
eacute caracterizado pela demasia e o outro pela insuficiente A percepccedilatildeo deste termo meacutedio eacute
delimitada pela reta razatildeo que atua nas circunstacircncias concretas A recta ratio eacute o proacuteprio homem
prudente Ele eacute quem deteacutem o melhor juiacutezo acerca das situaccedilotildees e realiza as melhores opccedilotildees eacute o
homem que possui a virtude intelectual da prudecircncia Portanto adentraremos na anaacutelise da
phronecircsis visto que haacute uma relaccedilatildeo desta com as virtudes morais e por ser importantiacutessima para a
obtenccedilatildeo da eudaimonia
169 Cf EacuteN II 1109a 30 Ibidem p 37170 Cf EacuteN II 1109a 35-1109b 5-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37171 Cf EacuteN II 1109b 8-10 Ibidem p 37
56
CAPIacuteTULO III
A PHRONEcircSIS COMO SABER PRAacuteTICO
Neste capiacutetulo examinamos o conceito de prudecircncia Com este intento estudamos a
diferenccedila entre o saber teoacuterico o saber poieacutetico e o saber praacutetico A prudecircncia eacute uma virtude
intelectual aplicada agraves coisas contingentes Ela eacute a excelecircncia do ato de decidir e de como dirigir a
proacutepria vida Portanto o homem prudente eacute aquele que sabe decidir bem
Para decidir da melhor maneira possiacutevel o phronimos sabe como deliberar bem e escolher
bem Neste sentido eacute necessaacuterio examinar no que consiste a deliberaccedilatildeo (bouleusij) e a escolha
(proairesij) O ato de deliberar e o ato de escolher satildeo aperfeiccediloados pela prudecircncia Tambeacutem
analisamos o que eacute a reta razatildeo (o0rqoj logoj) e sua funccedilatildeo para que uma accedilatildeo seja julgada
moralmente virtuosa Outro fator a ser examinado devido a sua importacircncia para o
desenvolvimento da virtude da prudecircncia eacute o fenocircmeno da experiecircncia (e0mpeiria) pois a
phronecircsis somente pode aparecer com o transcorrer do tempo
Ademais analisamos as partes integrantes da virtude da prudecircncia Satildeo as denominadas trecircs
virtudes intelectuais menores a boa deliberaccedilatildeo (eu0bolia) a inteligecircncia (sunesij) e ponderaccedilatildeo
(gnwmn) Por fim estabelecemos a relaccedilatildeo de como a phronecircsis contribui para que o homem seja
feliz
57
31 Linhas gerais acerca da prudecircncia
No decorrer da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles trata no livro I sobre a eudaimonia como fim
uacuteltimo do homem e no que consiste a felicidade humana Esta eacute conceituada como uma atividade
conforme a virtude Para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio a praacutetica das virtudes morais A definiccedilatildeo de
virtude moral eacute a de ser uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel quase permanente e adquirida que se
caracteriza pelo domiacutenio das paixotildees Este controle racional das paixotildees impele o homem a escolher
bem qual accedilatildeo a realizar pois o auxilia a alcanccedilar a mediania necessaacuteria entre dois viacutecios para que
seja uma accedilatildeo virtuosa defronte as circunstacircncias O paracircmetro deste termo meacutedio eacute percebido e
consequentemente fornecido pelo homem prudente que se orienta pela reta razatildeo
O Estagirita analisa de modo mais detalhado o papel do intelecto para a consecuccedilatildeo de uma
accedilatildeo moral virtuosa no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco Eacute nesta parte da obra que eacute estudada de modo
mais especiacutefico a virtude intelectual da prudecircncia Por isso neste toacutepico eacute analisado em que
constitui esta virtude e suas principais caracteriacutesticas
Para uma melhor compreensatildeo da phronecircsis faccedilamos uma breve retomada da divisatildeo da
alma examinada anteriormente no capiacutetulo II As virtudes da alma satildeo referentes agraves faculdades
sensitiva e intelectiva Em relaccedilatildeo agrave primeira as virtudes morais (eacuteticas) moldam os desejos agrave luz da
razatildeo orientando-os para o bem Na segunda as virtudes intelectuais (dianoeacuteticas) servem para
atingir a verdade As virtudes satildeo estados de excelecircncia vinculadas agraves funccedilotildees desempenhadas
Conforme escreve Aristoacuteteles ldquo[hellip] a obra (e2rgon) de ambas as partes intelectuais eacute a verdade
Logo as virtudes de ambas seratildeo aquelas disposiccedilotildees (e3ceij) segundo as quais cada uma delas
alcanccedilaraacute a verdade (a0lhqeuampsei) em sumo graurdquo172
Na faculdade intelectiva existem duas partes racionais referentes a dois tipos de raciociacutenios
ou conhecimentos Estes satildeo diferentes devido ao fato que visam realidades distintas com
caracteriacutesticas proacuteprias em cada uma O primeiro eacute o conhecimento cientiacutefico o qual objetiva
estudar agraves coisas que possuem causas imutaacuteveis por isso satildeo invariaacuteveis Esta parte do intelecto
tambeacutem eacute chamada de razatildeo teoacuterica que resulta na sabedoria contemplativa O segundo eacute
conhecimento calculativo ou deliberativo que analisa agraves coisas mutaacuteveis que variam com o tempo e
as circunstacircncias173 Este conhecimento visa orientar agrave accedilatildeo humana E esta pode ser feita de um
modo ou de outro Uma vez que lida com a praacutexis eacute chamada de razatildeo praacutetica ou sabedoria praacutetica
Neste sentido comeccedila-se a delinear o que seja a virtude da prudecircncia Ela eacute a proacutepria razatildeo praacutetica
que atua em um patamar de excelecircncia Conforme nos aponta Aristoacuteteles
172 EacuteN VI 1139b 12-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102173 Cf EacuteN VI 1139a 5-10 Ibidem p 101
58
Dividimos as virtudes da alma (yuxh~~j a0retaj) dizendo que algumas satildeo virtudesdo caraacuteter e outras do intelecto [hellip] Dissemos anteriormente que esta [alma] temduas partes a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeoFaccedilamos uma distinccedilatildeo simples no interior da primeira admitindo que sejam duasas partes que conceberam um princiacutepio racional uma pela qual contemplamos ascoisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamosas coisas variaacuteveis porque quando dois objetos diferem e espeacutecie as partes daalma que correspondem a cada um deles tambeacutem diferem em espeacutecie visto ser poruma certa semelhanccedila e afinidade com os seus objetos que elas os conhecemChamemos cientiacutefica a uma dessas partes e calculativas agrave outra pois o mesmo satildeodeliberar (bouleuestai) e calcular (logizesqai) mas ningueacutem delibera sobre oinvariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe umprinciacutepio racional Devemos assim investigar qual seja o melhor estado de cadauma dessas duas partes pois nele reside a virtude de cada uma174
A virtude da prudecircncia eacute diferente da ciecircncia (e0pisthampmh) O conhecimento cientiacutefico possui
como objeto de estudo aquilo que existe necessariamente Eacute um objeto eterno Por isso nunca se
altera natildeo perece nem eacute nascido ou criado Devido agraves qualidades mencionadas as coisas
invariaacuteveis podem ser consideradas como fundamentos seguros para prover um conhecimento
indubitaacutevel Este eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo podendo ser transmitido por meio da instruccedilatildeo A
ciecircncia visa o conhecimento dos universais Isto permite que haja um convencimento baseado
nestes primeiros princiacutepios Deste modo adquirimos um conhecimento seguro que permite alcanccedilar
a verdade quando se trata de uma realidade constante e perene Por isso a ciecircncia eacute uma espeacutecie de
saber diferente da prudecircncia Acerca do conhecimento cientiacutefico Aristoacuteteles nos diz que
Todos noacutes supomos que aquilo que sabemos natildeo eacute capaz de ser de outra forma[hellip]Por conseguinte o objeto de conhecimento cientiacutefico existe necessariamentedonde se segue que eacute eterno pois todas as coisas que existem por necessidade nosentido absoluto do termo satildeo eternas e as coisas eternas satildeo ingecircnitas eimpereciacuteveis Por outro lado julga-se que toda a ciecircncia pode ser ensinada e seuobjeto aprendido [hellip] Em suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nostorna capazes de demonstrar e possui as outras caracteriacutesticas limitativas queespecificamos nos Analiacuteticos pois eacute quando um homem tem certa espeacutecie deconvicccedilatildeo aleacutem de conhecer os pontos de partida que possui conhecimentocientiacutefico E se estes natildeo lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusatildeo suaciecircncia seraacute puramente acidental Com isto damos por terminada nossa exposiccedilatildeodo conhecimento cientiacutefico175
A virtude da prudecircncia tambeacutem eacute diferente da arte (texnh) Aristoacuteteles argumenta que no
mundo das coisas possiacuteveis de alteraccedilatildeo existe uma diferenccedila entre aquelas fabricadas e as accedilotildees
174 EacuteN VI 1139a 1-15 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 101175 EacuteN VI 1139b 18-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103
59
realizadas A arte eacute a capacidade de produzir um objeto por meio de um raciociacutenio correto176 A
coisa criada passa a existir somente apoacutes a fabricaccedilatildeo humana Esta fabricaccedilatildeo varia conforme o
utensiacutelio a ser produzido uma vez que natildeo eacute algo necessaacuterio nem eacute natural a sua existecircncia pois
pode variar de acordo com as situaccedilotildees A arte como a prudecircncia tambeacutem eacute produzido pelo
intelecto e ambas versam acerca das coisas variaacuteveis A arte e a prudecircncia tratam do contingencial
ou seja do que pode ser ou natildeo ser de uma maneira ou de outra conforme eacute requerido pelas
circunstacircncias Mas as duas formas do intelecto natildeo se confundem porque a razatildeo poieacutetica trata da
produccedilatildeo de utensiacutelios em geral e a razatildeo praacutetica atua sobre as accedilotildees humanas Logo estes dois
tipos de raciociacutenios satildeo distintos entre si porque miram em realidades diacutespares que possuem
caracteriacutesticas proacuteprias
O tipo de razatildeo usada para fabricar (poihsij) natildeo eacute o mesmo quando o objetivo eacute agir
(pra=cij Os dois modos de operaccedilatildeo da racionalidade satildeo baseados em um modo correto de
raciocinar para atingirem suas finalidades Mas o que significa este raciociacutenio verdadeiro no caso do
ato de produzir O proacuteprio Aristoacuteteles responde claramente a esta pergunta
Na classe do variaacutevel incluem-se tanto coisas produzidas como coisas praticadasHaacute uma diferenccedila entre produzir e agir (poihsij kai pra=cij)[hellip] de sorte que acapacidade raciocinada de agir (meta logou e3cij prarktikh) difere dacapacidade raciocinada de produzir (meta logou poihtikh=j) Daiacute tambeacutem o natildeose incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir Oracomo a arquitetura eacute uma arte sendo essencialmente uma capacidade raciocinadade produzir e nem existe arte alguma que natildeo seja uma capacidade desta espeacutecienem capacidade desta espeacutecie que natildeo seja uma arte segue-se que a arte eacute idecircnticaa uma capacidade de produzir que envolve o reto raciociacutenio Toda arte visa agravegeraccedilatildeo e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir algumacoisa que tanto pode ser como natildeo ser e cuja origem estaacute no que produz e natildeo noque eacute produzido Com efeito a arte natildeo se ocupa nem com as coisas que satildeo ou quese gerem por necessidade nem com as que o fazem de acordo com a natureza (poisessas tecircm sua origem e si mesmas) Diferindo pois o produzir e o agir a arte deveser uma questatildeo de produzir e natildeo de agir [hellip] Logo como jaacute dissemos a arte eacuteuma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacutenio e acarecircncia de arte pelo contraacuterio eacute tal disposiccedilatildeo acompanhada de falso raciociacutenioE ambas dizem respeito agraves coisas que podem ser diferentemente177
176 Cf EacuteN VI 1140a 10 Ibidem p 103 177 EacuteN VI 1140a 1-20 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 Em relaccedilatildeo agrave frase traduzida porVallandro e Bornheim na citada passagem ldquoDaiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacuteproduzir nem produzir eacute agir (grifo nosso)rdquo Acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 181) seja maisesclarecedora ldquo[hellip] nem eacute um deles uma parte do outro pois fazer natildeo eacute uma forma de criar e nem um criar uma formade fazer (grifo nosso)rdquo Afinal natildeo eacute uma questatildeo de inclusatildeo de um tipo de raciociacutenio no outro mas de uma diferenccedilaclara que existe entre estes dois modos de operaccedilatildeo do intelecto
60
No caso da fabricaccedilatildeo ou produccedilatildeo de um objeto a razatildeo correta significa seguir as ldquoregras
de produccedilatildeo certasrdquo que permitem o artesatildeo produzir qualquer coisa de modo adequado Assim ao
realizar da maneira certa a manufatura do objeto este cumpre com a finalidade para a qual foi
projetado pelo artesatildeo Sem seguir as regras de produccedilatildeo o artesatildeo natildeo consegue fabricar o objeto
para que cumpra com a finalidade escolhida Como exemplo o proacuteprio Aristoacuteteles cita a arte da
arquitetura uma casa projetada por um arquiteto possui uma finalidade proacutepria que somente eacute
atingida se a casa for construiacuteda corretamente Podemos citar outras inuacutemeras artes como ilustraccedilatildeo
desta relaccedilatildeo entre as normas corretas de produccedilatildeo de um objeto para atender uma finalidade A
tiacutetulo de ilustraccedilatildeo basta imaginar um cuteleiro ao criar uma faca ou um curtidor ao preparar o
couro A criaccedilatildeo destes utensiacutelios deve respeitar determinadas regras ndash o modo correto de produzi-
los ndash para que a faca e o couro possam ser existir e serem usados com eficaacutecia cumprindo as
finalidades para as quais foram feitas
No que se refere agrave distinccedilatildeo entra a arte e a prudecircncia o comentador Guy Hamelin descreve
bem as caracteriacutesticas dos dois saberes Embora ambos sejam raciociacutenios praacuteticos a habilidade de
produzir um artefato exige um tipo de raciociacutenio diferente do utilizado para discernir a accedilatildeo a ser
realizada No caso da produccedilatildeo de um objeto o artesatildeo possui escolhas mais restritas Para o
artefato ser produzido de modo correto deve ser feito seguindo prescriccedilotildees precisas de fabricaccedilatildeo
Enquanto no discernimento de uma accedilatildeo a prudecircncia natildeo pode seguir regras estabelecidas Natildeo haacute
um ldquomanualrdquo de como agir em cada situaccedilatildeo A forma correta de agir eacute determinada pela
deliberaccedilatildeo apropriada a cada circunstacircncia Citamos o texto do mencionado exegeta
O Estagirita estima ser necessaacuterio diferenciar a habilidade da prudecircncia ou dodiscernimento por que o raciociacutenio praacutetico usado na habilidade difere em pelomenos dois aspectos importantes do raciociacutenio praacutetico usado na accedilatildeo Primeiro aspossibilidades de escolha resultando da habilidade satildeo muito mais restritas do queas oferecidas pela razatildeo praacutetica ligada agrave accedilatildeo Eacute manifesto que existem maneirasmais limitadas de construir um bom navio por exemplo do que viver bem a suaproacutepria vida e alcanccedilar a felicidade Por conseguinte o indiviacuteduo que age na esferada habilidade (texnh) estaacute mais restrito nas suas escolhas do que a pessoa que estaacutedecidindo a maneira de viver a sua vida A segunda distinccedilatildeo entre a habilidade e aprudecircncia em Aristoacuteteles diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do saber necessaacuteria para agir emcada uma dessas duas esferas Adquirir uma habilidade teacutecnica consisteessencialmente em conhecer como produzir um artefato e esse conhecimentoreduz-se em boa parte a um conjunto de preceitos (paraggeliai) deixados peloshabilidosos aos aprendizes Aristoacuteteles natildeo pode aceitar que seja possiacutevel adquiriruma virtude a partir de regras preestabelecidas pois cada situaccedilatildeo concreta danossa vida implica tantas possibilidades que apenas uma deliberaccedilatildeo adequada agravecircunstacircncia pode nos indicar a accedilatildeo a cumprir178
178 HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista ArchaiBrasiacutelia n 04 jan 2010 p 110-111
61
Em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana esta possui um fim em si proacutepria O ato de agir natildeo transcende a
si mesmo como os objetos criados pelo artesatildeo Como nos afirma o Estagirita ldquoCom efeito ao
passo que o produzir tem uma finalidade diferente de si mesmo isso natildeo acontece com o agir pois
que a boa accedilatildeo eacute o seu proacuteprio fimrdquo179 Diante deste fato referente agrave natureza da accedilatildeo podemos
pensar que o homem tem por ldquotarefardquo impelido pela sua funccedilatildeo proacutepria (ἔργον)180 de aperfeiccediloar a
si mesmo para alcanccedilar a eudaimonia Para isso deve aprimorar sua racionalidade para atingir a
verdade e orientar os seus iacutempetos ndash dominar suas paixotildees educar seus desejos e prazeres ndash por
meio das virtudes morais para aquilo que eacute bom digno e nobre Neste sentido podemos dizer que a
ldquoobra-primardquo a ser realizada atraveacutes das nossas boas accedilotildees somos noacutes mesmos
A criaccedilatildeo (produccedilatildeo fabricaccedilatildeo) de um artefato pertence a um gecircnero diferente da accedilatildeo O
ato de criar possui uma finalidade que transcende o homem que cria O objeto fabricado eacute distinto
do criador Por exemplo a fabricaccedilatildeo de um vaso de argila por um artesatildeo Por outro lado a accedilatildeo eacute
imanente ao proacuteprio homem pois eacute realizada pelo proacuteprio agente Natildeo haacute um objeto produzido que
eacute exterior ao homem O phronimos ao escolher a melhor accedilatildeo a ser realizada natildeo cria um produto
tangiacutevel algo corpoacutereo que possa ser tocado Deste modo ao ser referir agrave accedilatildeo humana esta eacute
compreendida como um ato de agir e natildeo como um ato de criaccedilatildeo O ato de criar eacute referente a quem
produz alguma coisa
Da mesma forma que na Eacutetica a Nicocircmaco a distinccedilatildeo entre o saber teoacuterico e saber praacutetico
tambeacutem eacute assinalada na Metafiacutesica Nela Aristoacuteteles descreve que a busca da verdade eacute a finalidade
principal tanto para a parte cientiacutefica quanto para a calculativa do intelecto Tambeacutem satildeo
delimitados os campos de aplicaccedilatildeo dos respectivos saberes embora a verdade como finalidade do
saber praacutetico eacute expresso de modo mais contundente no tratado sobre a eacutetica Na Metafiacutesica o
Estagirita assevera que o conhecimento cientiacutefico tem o objetivo de conhecer a verdade enquanto o
conhecimento praacutetico visa a accedilatildeo Cita-se a passagem desta obra
E tambeacutem eacute justo chamar a filosofia da ciecircncia da verdade porque o fim da ciecircnciateoreacutetica eacute a verdade enquanto o fim da praacutetica eacute a accedilatildeo (com efeito os que visamagrave accedilatildeo mesmo que observem como estatildeo as coisas natildeo tendem ao conhecimentodo que eacute eterno mas soacute do que eacute relativo a determinada circunstacircncia e numdeterminado momento) Ora natildeo conhecemos a verdade sem conhecer a causa181
Eacute interessante notar que Aristoacuteteles natildeo considera o intelecto apenas algo meramente
instrumental embora em um determinado sentido a racionalidade possa ser compreendida como
179 EacuteN VI 1140b 6-7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 103-104 180 Conforme visto no capiacutetulo I no item 14 A Funccedilatildeo Proacutepria dos Seres181 Metafiacutesica 993b 20-23 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 73
62
instrumento para atingir um fim que satildeo as causas imutaacuteveis no caso do saber teoacuterico Na
produccedilatildeo de um objeto haacute a razatildeo poieacutetica E ainda haacute a deliberaccedilatildeo nas situaccedilotildees que dizem
respeito agrave razatildeo praacutetica A racionalidade tambeacutem pode ser entendida como um fim que ultrapassa a
perspectiva de mera instrumentalidade Natildeo eacute somente uma ferramenta para alcanccedilar fins desejados
Uma vez que o homem anseia pela verdade das coisas o desejo de conhecer eacute imanente a noacutes 182
Conhecer as coisas para alcanccedilar a verdade eacute uma funccedilatildeo proacutepria da razatildeo humana Logo a
atividade racional tambeacutem eacute desejada pelo homem pois permite que esta conheccedila a verdade e ao
conhececirc-la possa alcanccedilar a eudaimonia Em outros termos o proacuteprio exerciacutecio da razatildeo nos seus
distintos saberes torna o homem mais pleno e realizado e por isso mais feliz
Em suma o intelecto eacute parte da alma que busca compreender o mundo Para isso possui as
funccedilotildees de escolher ordenar hierarquizar especular O intelecto opera de formas distintas de
acordo como o tipo de finalidade exigida Em outros termos a razatildeo humana utiliza diferentes tipos
de raciociacutenios A sabedoria praacutetica natildeo eacute ciecircncia nem arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque
este se baseia em princiacutepios imutaacuteveis e por isso passiacuteveis de demonstraccedilatildeo Natildeo precisa utilizar
da deliberaccedilatildeo pois esta serve somente no caso de situaccedilotildees que variam e podem gerar diversos
resultados Tambeacutem natildeo eacute arte porque esta natildeo visa a accedilatildeo proacutepria do homem O conhecimento
produtivo cria coisas que possuem uma existecircncia concreta que diferem do artesatildeo que as produz
Apoacutes a exposiccedilatildeo dos diferentes tipos de saberes (e0pisthmh texnh fronhsij) com suas
respectivas finalidades resta expor de modo mais detalhado a proacutepria prudecircncia Neste sentido
abordaremos esta virtude intelectual no proacuteximo toacutepico
32 O conceito de prudecircncia
A virtude intelectual da prudecircncia tem como papel operar o saber praacutetico em niacutevel de
excelecircncia A prudecircncia eacute a areteacute da razatildeo praacutetica Isso significa que nas diversas circunstacircncias
enfrentadas pelo homem tanto em situaccedilotildees corriqueiras no seu cotidiano quanto naquelas mais
importantes que definem a vida como um todo eacute necessaacuterio decidir entre vaacuterias opccedilotildees que podem
ser tomadas A prudecircncia eacute o conhecimento da boa deliberaccedilatildeo e decisatildeo E decisotildees corretas
facilitam alcanccedilar a eudaimonia Dificilmente um homem pode ser feliz se a maior parte das
decisotildees que tomou foram errocircneas Neste sentido o homem prudente conhece a melhor forma de
tomar uma decisatildeo o que acarreta saber que accedilatildeo realizar perante as situaccedilotildees nas quais estaacute
envolvido
182 Cf Metafiacutesica 980a 22 Op cit p 04 Conforme descrito neste trecho da obra ldquoTodos os homens tendem aosaberrdquo Ibidem p 4
63
A prudecircncia eacute o raciociacutenio correto e verdadeiro que permite o homem deliberar sobre o que
eacute bom e apropriado para si mesmo e para os outros A partir desta percepccedilatildeo esta virtude possui a
funccedilatildeo de escolher a melhor accedilatildeo para atingir o fim escolhido A phronecircsis vislumbra os meios
mais eficazes para que a accedilatildeo seja eficaz O homem prudente eacute efetivo em suas accedilotildees porque decide
de modo correto age da forma certa ao escolher os melhores meios para alcanccedilar os fins e sua accedilatildeo
eacute nobre Portanto o phronimos eacute o homem que delibera com acerto e por isso decide bem agrave luz
das variadas situaccedilotildees Eacute o que nos mostra Aristoacuteteles
Ora julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacuteticao poder deliberar bem (kalw~v bouleusasqai) sobre o que eacute bom eacute conveniente(a)gaqa kai sumfeampronta) para ele natildeo sob um aspecto particular como porexemplo sobre as espeacutecies de coisas que contribuem para a sauacutede e o vigor massobre aquelas que contribuem para a vida boa em geral Bem o mostra o fato deatribuirmos sabedoria praacutetica a um homem sob um aspecto particular quando elecalculou bem com vistas em alguma finalidade boa que natildeo se inclui entre aquelasque satildeo objeto de alguma arte Segue-se daiacute que num sentido geral tambeacutem o homem que eacute capaz de deliberarsobre coisas que natildeo podem ser de outro modo (ou0k e1sti bouleusasqai per tw~~nigrave tw~~ne0c a0nagkhj ontwn) [hellip] Resta pois a alternativa de ser ela uma capacidade(e3cin) verdadeira (a0leqou~~j) e raciocinada de agir (meta logou praktinken) comrespeito agraves coisas que satildeo boas ou maacutes para o homem ( qr p a)gaqa kaiἀν ώpῳ a)gaqa kai ῳkaka0)183
A partir desta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles nota-se que a prudecircncia possui dois aspectos O
primeiro trata da sabedoria praacutetica aplicada agrave vida particular do homem O segundo versa sobre agrave
vida coletiva No acircmbito privado o homem prudente discerne sobre os melhores meios para atingir
os fins particulares que o levam agrave eudaimonia Mas na perspectiva aristoteacutelica o homem natildeo pode
ser feliz sozinho pois sua natureza eacute poliacutetica184 O bem humano tambeacutem eacute a finalidade da poliacutetica185
Uma vez que o homem vive com outros eacute necessaacuterio discernir os caminhos da comunidade para
que esta atinja a felicidade O acircmbito comunitaacuterio diz respeito agrave vida na poacutelis Sem a eudaimonia na
cidade-Estado o homem natildeo poderaacute ser completamente feliz Logo o phronimos ao visar a vida
feliz sabe que esta eacute composta pelo que eacute bom e nobre tanto para ele quanto para os outros que o
cercam Acerca da poacutelis como incentivadora da eudaimonia temos na Eacutetica a Nicocircmaco
183 EacuteN VI 1140a 26 a 1140b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104 Tambeacutem conferir EacuteN VI1141a 9-12 p 106184 Cf Poliacutetica I 1253a 5 A expressatildeo ldquoanimal poliacuteticordquo (politikon zw~~on) deve ser entendida no sentido denatureza social ou sociaacutevel Eacute natural dos indiviacuteduos serem gregaacuterios 185 Sobre a eudaimonia como finalidade da poacutelis eacute proveitosa a leitura das passagens na Poliacutetica III 1278a 23-301280a 32-40 agrave 1280b 1-10 1283a 15-20 Ademais devemos recordar que a virtude moral da justiccedila somente pode serefetivada na comunidade Esta virtude eacute a ldquojoiardquo que permite a vida feliz na poacutelis
64
Ningueacutem duvidaraacute de que o seu estudo [do sumo bem] pertenccedila agrave arte maisprestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra Ora apoliacutetica (politikh) mostra ser dessa natureza pois eacute ela que determina quaisciecircncias que devem ser estudadas num Estado quais satildeo as que cada cidadatildeo deveaprender e ateacute que ponto e vemos que ateacute as faculdades tidas em maior apreccedilocomo a estrateacutegia a economia e a retoacuterica estatildeo sujeitas a ela Ora como a poliacuteticautiliza as demais ciecircncias e por outro lado legisla sobre o que devemos e o quenatildeo devemos fazer a finalidade dessa ciecircncia deve abranger as das outras de modoque essa finalidade seraacute o bem humano (a0gaqon) Com efeito ainda que tal fimseja o mesmo tanto para o indiviacuteduo como para o Estado (polei) o deste uacuteltimoparece ser algo maior e mais completo quer a atingir quer a preservar Emboravalha bem a pena atingir esse fim para um indiviacuteduo soacute eacute mais belo (kallion) emais divino (qeioteron) alcanccedilaacute-lo para uma naccedilatildeo ou para as cidades-Estado(e1qnei kai polesin) 186
A prudecircncia particular estaacute atrelada agrave prudecircncia coletiva Esta ideia eacute importante porque
recorda que Aristoacuteteles nunca perde de vista que a felicidade do homem estaacute inserida na poacutelis grega
Embora o Estagirita assevere que a genuiacutena felicidade individual esteja na sabedoria
contemplativa187 esta eacute mais facilmente atingida em um ambiente de felicidade comunitaacuteria A
prudecircncia deve ser entendida como sendo uma virtude intelectual que propicia uma correta escolha
que permite tomar boas decisotildees direcionadas para os fins nobres Devemos recordar que o
phronimos eacute um homem que tem a prudecircncia consolidada em seu caraacuteter Deste modo ele possui
uma visatildeo clara sobre o que eacute bom justo e nobre para si e para a comunidade em que vive
Nesta linha de raciociacutenio basta imaginarmos uma cidade bairro ou qualquer outro ambiente
coletivo Se nestes imperam os viacutecios e natildeo as virtudes existiratildeo dificuldades maiores para o
homem ser feliz No caso contraacuterio nos lugares onde as virtudes se sobressaem o homem teraacute sua
busca pela felicidade facilitada E aleacutem disso em uma sociedade virtuosa desde a infacircncia o
homem eacute educado para as virtudes Isto gera um ciclo beneacutefico a cidade auxilia o cidadatildeo a ser
virtuoso e consequentemente a ser feliz e este ajuda a cidade a ser mais virtuosa Enfim eacute a antiga
liccedilatildeo que assim como satildeo os cidadatildeos tal seraacute a cidade
Como exemplo dessa prudecircncia que estabelece uma ligaccedilatildeo entre os fins particulares e os
coletivos Aristoacuteteles cita como modelo de homem prudente o estadista ateniense Peacutericles e outros
como ele188 Este eacute considerado o maior liacuteder ateniense ou pelo menos um dos seus maiores gecircnios
poliacuteticos Sua grandeza proveacutem do fato que ele discernia bem sobre estas duas aplicaccedilotildees da
prudecircncia Julgava com acerto os rumos que Atenas deveria seguir pois visava o que era bom para
os cidadatildeos atenienses O Estagirita tambeacutem coloca como detentores da prudecircncia os bons
186 EacuteN I 1094a 27 a 1094b 5-10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 10187 EacuteN X 1178b 28-33 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 191188 Cf EacuteN VI 1140b 10 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 104
65
ecocircnomos (oikonomikouj) e os bons estadistas (politikouj) porque visam a felicidade da poacutelis189
Sobre o fim uacuteltimo da cidade grega e sua organizaccedilatildeo mais uma vez podemos observar uma
diferenccedila entre o filoacutesofo de Estagira e Platatildeo O pensamento aristoteacutelico considera que a
eudaimonia coletiva eacute um fim alcanccedilado por meio da forma que a poacutelis se organiza e a filosofia
moral que a direciona O bem da cidade-Estado estaacute no estiacutemulo agrave racionalidade e virtudes morais
dos cidadatildeos Enquanto para o seu antecessor o mundo das Ideias eacute a referecircncia para a cidade-
estado O comentaacuterio de Pierre Aubenque expressa bem este entrelaccedilamento entre o acircmbito
particular e o coletivo e a distinccedilatildeo com o pensamento platocircnico ao dizer que
ldquoOra a vida feliz (que ser trate da cidade ou da casa como indiviacuteduo) eacute atotalidade que transcende os fins particulares O prudente natildeo eacute entatildeo o puroempiacuterico que vive o dia-a-dia sem princiacutepios e sem perspectivas mas eacute o homemde visatildeo de conjunto E permanece a seu modo o herdeiro do sunoptikojplatocircnico embora veja uma totalidade concreta ndash o bem total da comunidade ou doindiviacuteduo - e natildeo essa Totalidade abstrata e segundo Aristoacuteteles irreal que era omundo platocircnico das Ideiasrdquo190
O homem prudente eacute uma espeacutecie de visionaacuterio Natildeo no sentido contemplativo mas como
um homem que vecirc ou mesmo prevecirc a conjuntura presente ou futura e consegue escolher o melhor
caminho a ser tomado Isto tanto na esfera privada quanto na coletiva Ele eacute detentor de um
importante tipo de conhecimento o de perceber as sutilezas do que se passa a sua volta e consigo
mesmo para tomar boas decisotildees que resultam em accedilotildees corretas Enfim accedilotildees que geram
resultados positivos conduzem o homem e o grupo em que vive para mais perto da eudaimonia
Essa percepccedilatildeo de conjuntura que propicia a decisatildeo correta eacute a marca do homem
prudente191 Mas como o phronimos consegue ter esta avaliaccedilatildeo acertada das coisas Isto ocorre
devido ao fato que o prudente conhece os princiacutepios universais (gerais) mas tambeacutem observa as
particularidades de cada situaccedilatildeo192 Ele consegue relacionar de modo efetivo os universais e os
particulares na accedilatildeo pois a accedilatildeo se encontra nos particulares O exemplo que Aristoacuteteles utiliza eacute o
do homem que possui o conhecimento de que carnes leves satildeo de faacutecil digestatildeo Estas auxiliam na
manutenccedilatildeo da sauacutede Mas ter somente esta informaccedilatildeo natildeo lhe auxiliaraacute em nada Pois ao ignorar
quais satildeos os tipos de carnes consideradas leves natildeo poderaacute reestabelecer sua sauacutede A situaccedilatildeo eacute
semelhante para vaacuterios casos Um meacutedico pode saber os princiacutepios da sauacutede em geral mas se nunca
teve experiecircncia das particularidades no atendimento de cada paciente dificilmente poderaacute curaacute-
los Ou capitatildeo de navio que conhece os princiacutepios da navegaccedilatildeo mas nunca navegou natildeo estaraacute
189 Cf EacuteN VI 1140b 10 Idem p 104190 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit 95-96 O sunoptikoacutes platocircnico eacute o homem que possuiuma visatildeo abrangente das circunstacircncias 191 Cf EacuteN VI 1141a 23-25 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106192 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 96
66
apto para comandar uma embarcaccedilatildeo Em suma o accedilougueiro o enfermeiro e o velho marujo
devido agraves experiecircncias (e0mpeiria) adquiridas muitas vezes atingem melhores resultados que o
homem puramente teoacuterico Nos diz Aristoacuteteles
Tampouco a sabedoria praacutetica se ocupa apenas com universais (kaqolou) Devetambeacutem reconhecer os particulares pois ela eacute praacutetica e a accedilatildeo versa sobre osparticulares Eacute por isso que alguns que natildeo sabem e especialmente os que possuemexperiecircncia satildeo mais praacuteticos do que os outros que sabem porque se um homemsoubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse queespeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutedepoderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinha193
No quesito referente ao conhecimento dos universais e dos particulares eacute importante
delimitar a distinccedilatildeo entre o saber filosoacutefico (sofia)194 e o saber praacutetico (qronesij) Anteriormente
citamos as cinco virtudes intelectuais descritas por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco195
Jaacute descrevemos com mais detalhes o saber cientiacutefico (ἐπιστήμη) e a arte (τέχνη) resta-nos discorrer
sobre o saber filosoacutefico e a razatildeo intuitiva (nou~~j) No decorrer da sua exposiccedilatildeo sobre os tipos de
saberes o noucircs eacute descrito como sendo um tipo de conhecimento que permite a imediata apreensatildeo
dos primeiros princiacutepios196 Natildeo utiliza a demonstraccedilatildeo racional para conhecer como necessitam os
saberes cientiacutefico e filosoacutefico Neste sentido o noucircs natildeo realiza determinadas operaccedilotildees mediatas
do intelecto como a deliberaccedilatildeo ou o caacutelculo E o que satildeo estes princiacutepios captados pelo noucircs Satildeo
os princiacutepios mais universais que natildeo podem mais serem deduzidos de outros princiacutepios Mas
formam a base sobre a qual a ciecircncia pode operar partindo de princiacutepios gerais para os mais
especiacuteficos Eacute o que explica a comentadora Ursula Wolf ldquo[] E visto que nem todos os princiacutepios
podem ser deduzidos de princiacutepios mais gerais e que nem todos os conceitos podem ser definidos
por meio de conceitos mais conhecidos os conceitos mais elevados da ciecircncia jaacute natildeo podem ser
explicitados discursivamente mediante princiacutepios mas apenas apreendidosrdquo197 Logo o nocircus eacute uma
captaccedilatildeo de cunho ldquointuitivordquo dos primeiros princiacutepios utilizados pela ciecircncia demonstrativa198
193 EacuteN VI 1141b 15-20 Ibidem p 106-107194 Tambeacutem chamada de ldquosapiecircnciardquo por alguns autores como REALE (Metafiacutesica Vol II 2005 p 06) eABBAGNANO (Dicionaacuterio de Filosofia 2012 p 1025-1026)195 Conferir o capiacutetulo II no toacutepico 21 Definiccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais As cinco virtudes intelectuaissatildeo arte (τέχνη) conhecimento cientiacutefico (ἐπιστήμη) sabedoria praacutetica (φρόνησις) sabedoria filosoacutefica (σοφία) razatildeointuitiva (νοῦς)196 EacuteN VI 1141a 16-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Em relaccedilatildeo as possiacuteveis traduccedilotildeesdo termo noucircs remetemos agrave nota de rodapeacute nordm 115197 WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p149 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)198 Cf EacuteN VI 1141a 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105
67
A sabedoria filosoacutefica eacute a perfeita forma de conhecimento Ela eacute a uniatildeo do conhecimento
cientiacutefico e do noucircs A combinaccedilatildeo destes dois tipos de saberes permite que ela contemple e
conheccedila as coisas mais sublimes Aristoacuteteles inicia sua explicaccedilatildeo sobre o saber filosoacutefico a partir
de uma noccedilatildeo mais usual aplicada ao campo das artes Neste caso o saacutebio seria o artista
consagrado como o melhor naquele tipo de arte Como exemplo seriam os mais elevados expoentes
nas artes da cutelaria da pintura da escultura da arquitetura etc Poreacutem o Estagirita vai aleacutem deste
esclarecimento inicial Para ele uma vez que existem pessoas que satildeo saacutebias de um modo geral e
natildeo em alguma arte ou ciecircncia especiacutefica estes satildeo os saacutebios em um sentido filosoacutefico Estes
homens compreendem verdadeiramente estes primeiros princiacutepios e conseguem demonstrar as
conclusotildees que se inferem a partir deles Neste sentido este eacute o perfil do homem que pode ser
chamado de filoacutesofo (filosofoj) ele maneja as teorias ou seja ldquodominardquo o saber teoacuterico
Segundo o descrito na Eacutetica a Nicocircmaco
A sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos(a0kribestatoij) expoentes por exemplo a Fiacutedias como escultor e Policleto comoretratista em pedra e por sabedoria aqui natildeo entendemos outra coisa senatildeo aexcelecircncia na arte (a0reth texnhj) Mas a certas pessoas consideramos saacutebias demodo geral e natildeo em algum campo particular ou sob qualquer outro aspectolimitado [hellip] Eacute pois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas deconhecimento a mais perfeita Donde se segue que o homem saacutebio natildeo apenasconheceraacute o que decorre dos primeiros princiacutepios (a0rxw~~n) senatildeo que tambeacutempossuiraacute a verdade a respeito desses princiacutepios (a0rxaj a0lhqeuein) Logo asabedoria deve ser a razatildeo intuitiva combinada com o conhecimento cientiacutefico(soqia nou=j kai e0pisthmh)ndash uma ciecircncia dos mais elevados objetos que recebeupor assim dizer a perfeiccedilatildeo que lhe eacute proacutepriardquo199
No sentido aqui exposto a teoria (qewria) eacute um saber puro desvinculado da teacutecnica
aplicada agrave produccedilatildeo de uma coisa corpoacuterea Tambeacutem natildeo estaacute ligada aos assuntos referentes agrave accedilatildeo
humana objetivo do saber praacutetico Seu campo de estudo eacute aquilo que eacute inacessiacutevel agrave experiecircncia
sensiacutevel alcanccedilaacutevel apenas pela especulaccedilatildeo Este conhecimento especulativo natildeo eacute subordinado a
nenhum outro200 Antes se constitui como fundamento dos outros tipos de saberes Por ser mais
199 EacuteN VI 1141a 10-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 105-106 Eacute interessante fazer uma ressalvanas expressotildees ldquoA sabedoria (sofian) nas artes (texnaij) eacute atribuiacuteda aos seus mais perfeitos expoentes []rdquo e ldquoEacutepois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais perfeitardquo No texto da Eacutetica aNicocircmaco satildeo usadas as palavras a0kribestatoij e a0kribestath respectivamente na primeira e segunda fraseEmbora tenham sido traduzidas como ldquoperfeitosrdquo e ldquoperfeiccedilatildeordquo o termo ἀκριβής significa ldquoprecisatildeordquo ldquoacuradordquoldquoexatidatildeordquo ldquorigorosordquo ldquoestritordquo No texto em questatildeo eacute cabiacutevel o uso do termo ldquoperfeiccedilatildeordquo pois este engloba todos osoutros conceitos citados Entretanto acreditamos que a compreensatildeo desta passagem do texto pode ser melhorentendida do seguinte modo ldquoA sabedoria nas artes eacute atribuiacuteda aos seus mais acurados expoentes []rdquo e ldquoEacute poisevidente que a sabedoria deve ser de todas as formas de conhecimento a mais exatardquo 200 Cf Metafiacutesica I 981b 26-30 agrave 982a 4 e 15-17 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 6 - 9
68
afastada do mundo empiacuterico (sensiacutevel) acaba por se tornar um saber buscado por si mesmo natildeo
visando outro resultado diferentemente da epiacutesteme da poieacutesis e da praacutexis
Existe uma niacutetida distinccedilatildeo entre a sabedoria filosoacutefica e a sabedoria praacutetica Vimos que o
saber filosoacutefico visa os princiacutepios universais que satildeo imutaacuteveis necessaacuterios e eternos A prudecircncia
versa sobre o mundo contingente que muda a cada momento Por isso esta uacuteltima trata daquilo que
pode ser objeto de deliberaccedilatildeo Eacute importante observar que Aristoacuteteles demarca duas caracteriacutesticas
importantes sobre o ato de deliberar i) somente ocorre com as situaccedilotildees que satildeo mutaacuteveis e ii) a
deliberaccedilatildeo visa as coisas que possuem finalidades especiacuteficas e estas devem ser possiacuteveis de serem
obtidas pelas accedilotildees Logo o homem prudente delibera bem porque defronte das circunstacircncias faz
um caacutelculo para escolher os melhores meios para alcanccedilar o bem para o homem dentro da
conjuntura em que se encontra naquele momento De acordo com o Estagirita
A sabedoria praacutetica (fronhsij) pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas(a0nqpwpina) e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos queessa eacute acima de tudo a obra (e1rgon) do homem dotado de sabedoria praacutetica (fronimou) deliberar bem (bouleusesqai) Mas ningueacutem delibera (bouleueqai) arespeito de coisas invariaacuteveis nem sobre coisas que natildeo tenham uma finalidade(teloj) e essa finalidade um bem que se possa alcanccedilar pela accedilatildeo (praktona0gaqon) De modo que delibera bem (eu1bouloj) no sentido irrestrito da palavraaquele que baseando-se no caacutelculo eacute capaz de visar agrave melhor (a0ristou) para ohomem (a0nqpwpw|) das coisas alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo (praktw~~n)201
Apoacutes a descriccedilatildeo das caracteriacutesticas da sabedoria praacutetica e da filosoacutefica eacute possiacutevel
perguntar qual desses dois saberes eacute mais importante Aristoacuteteles responde que o homem prudente
necessita das duas formas de saber Pois a melhor accedilatildeo a ser realizada eacute o foco da virtude da
prudecircncia Esta conforme visto pressupotildee o conhecimento dos universais e dos particulares de
cada situaccedilatildeo Entretanto nem sempre eacute possiacutevel ter o domiacutenio destes dois saberes Neste caso
aplica-se o conselho aristoteacutelico ldquoOra a sabedoria praacutetica diz respeito agrave accedilatildeo Portanto deveriacuteamos
possuir ambas as espeacutecies de sabedoria ou a segunda [sabedoria praacutetica] de preferecircncia agrave primeira
[sabedoria filosoacutefica] Mas tanto da sabedoria praacutetica como da filosoacutefica deve haver uma espeacutecie
controladorardquo202 Afinal frequentemente o ato de agir perante uma conjuntura eacute feito somente com
a percepccedilatildeo dos fatos particulares e ainda apenas baseada na experiecircncia Muitas vezes estes dois
elementos da accedilatildeo atingem resultados satisfatoacuterios Deste modo tendo em vista agrave accedilatildeo humana a
preferecircncia eacute possuir a sabedoria praacutetica
201 EacuteN VI 1141b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106 Na expressatildeo ldquo[] um bem que sepossa alcanccedilar pela accedilatildeordquo visto que os termos utilizados em grego satildeo prakton a0gaqon acreditamos que a melhorforma de compreender a frase eacute ldquo[hellip] um bem que se possa alcanccedilar pela melhor accedilatildeordquo ou ldquopela correta accedilatildeordquo Istodevido ao fato que a palavra agathon a depender do uso significa ldquomelhorrdquo ldquobomrdquo ldquohonraacutevelrdquo ldquonobrerdquo ldquocorretardquoldquoconvenienterdquo ldquoefetivardquo dentre outros significados 202 EacuteN VI 1141b 22-23 Ibidem p107
69
Eacute importante observar que Aristoacuteteles traccedila uma outra caracteriacutestica da prudecircncia Esta
virtude intelectual deve focar em fins nobres A escolha dos meios natildeo pode ser voltada para
objetivos soacuterdidos O homem prudente eacute antes de tudo uma pessoa que possui um soacutelido caraacuteter
moral baseado nas virtudes morais Conforme visto anteriormente eacute considerado como um
spoudaios203 Seria contraditoacuterio que optasse por buscar fins que natildeo condizem com sua conduta
Ora o phronimos consegue visualizar as diversas nuances das circunstacircncias em que estaacute inserido
sejam individuais ou coletivas Por isso eacute perspicaz (deinothj)204 ou seja consegue encontrar as
melhores soluccedilotildees para os problemas Entretanto existe um outro tipo de pessoa que igualmente
possui perspicaacutecia diante das situaccedilotildees Eacute o homem vigarista (panou=pgoj) Este natildeo pode ser
considerado possuidor da virtude da prudecircncia por ser um homem eivado de viacutecios que busca fins
errocircneos Logo a prudecircncia somente eacute reservada para homens com nobreza de alma Eacute o que
Aristoacuteteles nos assevera
Existe uma faculdade que se chama habilidade (deinothta) e tal eacute a sua naturezaque tem o poder de fazer as coisas que conduzem ao fim proposto e alcanccedilaacute-loOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau ahabilidade seraacute simples astuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos osproacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj) Esta natildeo eacute afaculdade poreacutem natildeo existe sem ela e esse olho da alma natildeo atinge o seu perfeitodesenvolvimento sem o auxiacutelio da virtude como jaacute dissemos e como aliaacutes eacuteevidente E a razatildeo disto eacute que os silogismos em torno do que se deve fazercomeccedilam assim ldquovisto que o fim isto eacute o que eacute melhor eacute de tal naturezardquoAdmitamos no interesse do argumento que ela seja qual for mas soacute o homembom a conhece verdadeiramente porquanto a maldade nos perverte e nos leva aenganar-nos a respeito dos princiacutepios da accedilatildeo Donde estaacute claro que natildeo eacute possiacutevelpossuir sabedoria praacutetica quem natildeo seja bom205
Nota-se que a prudecircncia natildeo consiste somente na habilidade de escolher os meios para
atingir determinados fins Ela tambeacutem inclui este tipo de deliberaccedilatildeo de fins mais concretos Mas
satildeo apenas fins instrumentais que servem para atingir a eudaimonia O ato de deliberar e escolher os
meios devem ser compreendidos dentro de um panorama maior Eacute uma visatildeo geral da proacutepria vida
que acarreta em um ldquobom agirrdquo (eu0pracia) ou boa conduta constante O homem prudente delibera
203 Cf Capiacutetulo 2 item 24 O homem virtuoso204 Tambeacutem pode ser entendida como ldquohabilidaderdquo ldquoengenhosidaderdquo ldquoastuacuteciardquo ldquodestrezardquo Neste ponto eacute importanteressaltar que a moralidade maacute ou boa desta desenvoltura para resolver os problemas eacute definida pelos fins almejados Ohomem prudente a usa para alcanccedilar os fins nobres enquanto o vigarista a usa para fins errocircneos Neste sentido o termoldquoastuacuteciardquo na traduccedilatildeo citada eacute utilizado para descrever esta desenvoltura que tanto homens bons e maus possuem Naexpressatildeo ldquoOra se o fim eacute nobre a habilidade eacute digna de louvor mas se o fim for mau a habilidade seraacute simplesastuacutecia por isso chamamos de haacutebeis ou astutos os proacuteprios homens dotados de sabedoria praacutetica (fronimouj denouj)Esta natildeo eacute a faculdade poreacutem natildeo existe sem ela[]rdquo acreditamos que a traduccedilatildeo de E Bini (2013 p 197) permiteuma clareza melhor da ideia transmitida por Aristoacuteteles ldquoSe o objetivo for nobre revelar-se-aacute uma faculdade louvaacutevelse for vil revelar-se-aacute mera patifaria razatildeo pela qual nos referimos tanto a homens prudentes quanto a biltres comoengenhosos Ora ainda que essa faculdade natildeo seja idecircntica agrave prudecircncia esta a implicardquo205 EacuteN VI 1144a 25-35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p112
70
natildeo somente sobre accedilotildees imediatas mas tambeacutem sobre aquilo que eacute essencial para a vida Em
uacuteltima instacircncia o homem prudente escolhe os meios tendo em vista o Supremo Bem que eacute a
proacutepria felicidade
Para o comentador Martin Rhonreimer uma vez que a verdadeira virtude da prudecircncia eacute a
ldquosabedoria das coisas humanasrdquo ela aponta para aquilo que possui uma relevacircncia para a vida como
um todo Essas ldquocoisas humanasrdquo dizem respeito a um fim geral da vida humana que passa a ser
uma referecircncia para o homem dirigir todas as suas tendecircncias206
Por fim apoacutes as descriccedilotildees feitas podemos sintetizar o conceito de prudecircncia Ela eacute uma
virtude pertencente agrave parte racional da alma que versa sobre a realidade das coisas variaacuteveis Eacute
distinta da ciecircncia e da arte pois especificamente refere-se agrave accedilatildeo humana Eacute a excelecircncia do ato
de deliberar O homem prudente conhece os princiacutepios universais e sobretudo os fatos particulares
de cada circunstacircncia Logo esta virtude permite que o homem escolha corretamente o que eacute bom
para si mesmo e para a comunidade tendo em vista os fins nobres
Dito isso passemos ao proacuteximo toacutepico que trata sobre a relaccedilatildeo entre a prudecircncia a reta
razatildeo e a experiecircncia Seraacute estudada como o homem prudente aprende esta virtude com o passar do
tempo Aleacutem disto examinaremos como a reta razatildeo atua para que o homem prudente possar
realizar uma boa escolha
33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
A prudecircncia eacute a virtude que permite a escolha correta dos meios para atingir determinados
fins Eacute a excelecircncia do ato de decidir Uma vez que natildeo nascemos com esta virtude eacute necessaacuterio
desenvolvecirc-la ao longo da vida Entatildeo como o homem torna-se prudente
A resposta a esta pergunta consiste na aquisiccedilatildeo das virtudes morais da experiecircncia
adquirida com o tempo e o estudo das chamadas virtudes intelectuais menores Visto que as virtudes
morais foram estudadas anteriormente e as virtudes intelectuais menores seraacute objeto de estudo
posterior nos concentraremos na experiecircncia e como ela auxilia na formaccedilatildeo da reta razatildeo
Conforme descrito no item anterior a phronecircsis eacute o conhecimento dos princiacutepios gerais
somada agrave deliberaccedilatildeo dos fatos particulares O homem que natildeo possui o senso das peculiaridades
inerentes a cada situaccedilatildeo natildeo poderaacute ser prudente Caso detenha somente o entendimento dos
primeiros princiacutepios ou como proceder em uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica seraacute um homem versado
no saber teoacuterico Este tipo de conhecimento pode ser aprendido por meio do estudo207 Com a
prudecircncia somente eacute possiacutevel ter este tipo de ensino de modo parcial Uma vez que ela abarca as
206 RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Op cit p 240 207 O melhor exemplo disto satildeo as diversas ciecircncias ensinadas nas instituiccedilotildees de ensino formal universidadesescolas cursos etc
71
particularidades de cada caso esta virtude somente pode ser adquirida com a vivecircncia das mais
variadas situaccedilotildees ao longo da vida A importacircncia do conhecimento dos detalhes eacute asseverada por
Aristoacuteteles ao dizer que os jovens podem ser muitos bons nas ciecircncias mas somente os homens
experientes possuem a virtude da prudecircncia Conforme nos diz o Estagirita
[hellip] embora os moccedilos possam tornar-se geocircmetras (gewmetrikoi) matemaacuteticos(maqhmatikoi) saacutebios em mateacuterias que tais natildeo se acredita que exista um jovemdotado de sabedoria praacutetica (fronimoj) O motivo eacute que essa espeacutecie de sabedoriadiz respeito natildeo soacute aos universais mas tambeacutem aos particulares que se tornamconhecidos pela experiecircncia (e0mpeiriaj) Ora um jovem carece de experiecircnciaque soacute o tempo pode dar (neoj d e1mpeiroj ou0k e1stinrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] Que a sabedoriapraacutetica natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico eacute evidente porque ela seocupa como jaacute se disse com o fato particular imediato visto que a coisa a fazer eacutedesta naturezardquo208
Um exemplo claro da importacircncia da empeiria (e0mpeiria) refere-se agrave poliacutetica A realidade
do comando da poacutelis para direcionaacute-la agrave sua plenitude talvez seja o maior desafio para o homem
prudente Afinal existe uma imensa variedade de circunstacircncias a serem enfrentadas que exigem
decisotildees acertadas para natildeo levarem a cidade-estado agrave derrocada Diante deste contexto natildeo eacute
prudente deixar os rumos da poliacutetica estatal sob o comando de homens inexperientes Por isso
Aristoacuteteles afirma que os negoacutecios puacuteblicos natildeo satildeo para os jovens pois estes ainda natildeo possuem
competecircncia suficiente para este tipo de lideranccedila devido agrave sua falta de conhecimento praacutetico209 Na
visatildeo aristoteacutelica a poliacutetica necessita tanto do saber teoacuterico para determinar os fins quanto do saber
praacutetico para alcanccedilar estes fins atraveacutes das contingecircncias com as quais a poacutelis se defronta
Naturalmente o conhecimento das peculiaridades do mundo poliacutetico natildeo eacute a uacutenica realidade que
serve como ilustraccedilatildeo da importacircncia da empeiria Logo o que se deseja exemplificar eacute que a
funccedilatildeo da empeiria consiste em harmonizar estes dois saberes
Na Metafiacutesica Aristoacuteteles tambeacutem descreve esta relaccedilatildeo entre a experiecircncia e o saber
teoacuterico Seu argumento eacute ilustrado com uma comparaccedilatildeo com as artes A experiecircncia eacute uma etapa
do ato de produzir um objeto qualquer Mas a maestria eacute alcanccedilada somente apoacutes a aprendizagem
do conhecimento da teoria por traacutes da produccedilatildeo Eacute o aprendiz que fabrica algo sem necessariamente
saber a causa da peccedila ser feita daquele jeito O mestre a produz e tambeacutem conhece o porquecirc da
208 EacuteN VI 1142a 12-15 e 22-23 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106-107209 Cf EacuteN VI 1095a 3-5 Ibidem p 10
72
peccedila ser feita de uma determinada forma e natildeo de outra para que seja perfeita 210 De acordo como o
Estagirita
A experiecircncia (e0mpeiria) parece um pouco semelhante agrave ciecircncia e a arte Comefeito os homens adquirem ciecircncia (e0pisthmh) e arte (texnh) por meio daexperiecircncia A experiecircncia como diz Polo produz a arte enquanto a inexperiecircncia[falta de experiecircncia] produz o puro acaso [sorte] A arte se produz quando demuitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral (kaqolou genhtai) euacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantes Por exemplo o ato dejulgar que determinado remeacutedio fez bem a Caacutelias que sofria de certa enfermidadee que tambeacutem fez bem a Soacutecrates e a muitos outros indiviacuteduos eacute proacuteprio daexperiecircncia ao contraacuterio o ato de julgar que a todos esses indiviacuteduos reduzidos agraveunidade segundo a espeacutecie que padeciam de certa enfermidade determinadoremeacutedio fez bem (por exemplo aos fleumaacuteticos aos biliosos e aos febris) eacute proacuteprioda arteOra em vista da atividade praacutetica a experiecircncia em nada parece diferir da arteantes os empiacutericos tecircm mas sucesso do que os que possuem a teoria sem praacutetica Ea razatildeo disso eacute a seguinte a experiecircncia eacute conhecimento dos particulares enquantoa arte eacute conhecimento dos universais ora todas as accedilotildees e as produccedilotildees referem-seao particular De fato o meacutedico natildeo cura o homem a natildeo ser acidentalmente mascura Caacutelias ou Soacutecrates ou qualquer outro indiviacuteduo que leva um nome como elesao qual ocorra ser homem Portanto se algueacutem possui a teoria sem experiecircncia econhece o universal mas natildeo conhece o particular que nele estaacute contido muitasvezes erraraacute o tratamento porque o tratamento se dirige justamente ao indiviacuteduoparticularTodavia consideramos que o saber e o entender sejam mais proacuteprios da arte do queda experiecircncia e julgamos os que possuem a arte mais saacutebios do que os que soacutepossuem a experiecircncia na medida em que estamos convencidos de que a sapiecircnciaem cada um dos homens corresponda agrave sua capacidade de conhecer E isso porqueos primeiros conhecem a causa enquanto os outros natildeo a conhecem Os empiacutericosconhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outrosconhecem o porquecirc e a causa211
A prudecircncia eacute o equiliacutebrio entre a razatildeo teoacuterica e a razatildeo praacutetica Este equiliacutebrio somente eacute
ganho por meio da experiecircncia Esta uacuteltima eacute o ponto intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte A
experiecircncia eacute o uacutenico caminho para o aprendizado de como aplicar corretamente os princiacutepios
gerais traccedilados ou apreendidos pelo saber teoacuterico nas situaccedilotildees particulares Ou seja a sabedoria
praacutetica somente pode ser treinada e com isso aprendida no proacuteprio exerciacutecio de decidir qual a
melhor opccedilatildeo sob variadas condiccedilotildees A natureza da prudecircncia natildeo permite que ela seja ensinada
como um conteuacutedo de matemaacutetica A vivecircncia (experiecircncia) das situaccedilotildees eacute que forja o homem para
210 Como exemplo desta relaccedilatildeo entre saber teoacuterico saber praacutetico e experiecircncia pode-se imaginar um engenheiroautomotivo e um teacutecnico em mecacircnica de automoacuteveis O primeiro conhece a ldquociecircnciardquo por traacutes da teacutecnica enquanto osegundo apenas sabe a proacutepria teacutecnica em si Mas caso o engenheiro apenas conheccedila a ldquociecircnciardquo mas natildeo possua aexperiecircncia em consertar automoacuteveis sua accedilatildeo ficaraacute defasada Natildeo atingiraacute nenhum resultado posto que eacute inoacutecua suaaccedilatildeo 211 Metafiacutesica 981a 1-30 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Op cit p 5
73
que consiga sopesar seus atos e escolhas ao considerar todos os elementos envolvidos no conjunto
das circunstacircncias212 Aliaacutes eacute um fato da vida humana que em geral a ldquoforccedilardquo eacute a caracteriacutestica
marcante nos jovens enquanto a sabedoria praacutetica pertence aos mais velhos Sobre esta
constataccedilatildeo Aristoacuteteles a sintetiza na Poliacutetica ldquo[hellip] A natureza daacute vigor agrave juventude e a prudecircncia
a uma idade mais avanccedilada [hellip]rdquo213 Dessa forma eacute a ldquoexperiecircncia de vidardquo - o confronto com as
situaccedilotildees - que faz o homem adquirir a virtude da prudecircncia Isto porque ele torna-se mais apto a
realizar deduccedilotildees e decidir melhor para chegar a conclusotildees (imperativos) de como agir melhor nas
diversas situaccedilotildees
Pierre Aubenque descreve que a experiecircncia aristoteacutelica eacute intermediaacuteria entre a sensaccedilatildeo e a
ciecircncia Ela jaacute eacute um tipo de conhecimento baseado na observaccedilatildeo dos particulares Ademais existe
uma caracteriacutestica importante na sabedoria praacutetica adquirida pela experiecircncia a de ser singular e
insubstituiacutevel214 Eacute a partir deste olhar atento sobre os detalhes acerca das coisas e pessoas e em
especial o exemplo de homens prudentes eacute que o jovem vai delineando sua vida de forma
prudente
A partir desta anaacutelise sobre a relaccedilatildeo entre saber teoacuterico o saber praacutetico e a experiecircncia eacute
possiacutevel vislumbrar o que eacute a orthos loacutegos (o0rqoj logoj) A reta razatildeo tambeacutem chamada de justa
razatildeo razatildeo correta ou regra correta eacute o paracircmetro correto da accedilatildeo a ser seguida pelo homem em
qualquer situaccedilatildeo para atingir um fim moralmente bom A mediania das virtudes morais eacute
determinada por esta razatildeo Conforme nos mostra Aristoacuteteles quando se trata da accedilatildeo humana o
cerne da razatildeo praacutetica eacute a concordacircncia entre o desejo correto e o raciociacutenio verdadeiro215Isso
significa que a recta ratio a partir da compreensatildeo dos primeiros princiacutepios consegue deduzir de
modo certo e coerente proposiccedilotildees no campo da ciecircncia e da eacutetica Deste modo eacute possiacutevel perceber
a ldquocorreta medida das coisasrdquo discernir corretamente e agir conforme o bom entendimento das
situaccedilotildees
A empeiria eacute essencial para o aprimoramento da reta razatildeo Por isso o desenvolvimento da
prudecircncia necessita de tempo A experiecircncia aperfeiccediloa o aprendizado de decidir e eacute fundamental
para a consolidaccedilatildeo das virtudes morais Conforme vimos o homem prudente reuacutene estas
condiccedilotildees ele deveria ser considerado como o homem dotado de virtudes morais216 Tambeacutem
conhece os princiacutepios universais para serem aplicados em cada caso Com a experiecircncia adquirida
com o tempo ele consegue rapidamente identificar no decorrer das circunstacircncias dois elementos
212 Cf EacuteN VI 1109a 26-29 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 37 Estes elementos a serem observadosforam citados por Aristoacuteteles as pessoas envolvidas o momento a medida (quantidadeintensidade) e a maneira certa 213 Poliacutetica VII 1329a 16 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Op Cit p 156214 Cf AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 97- 98215 Cf EacuteN VI 1139a 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102216 Cf Capiacutetulo II item 24 O homem virtuoso
74
i) os meios para atingir os resultados (fins) e ii) quais os meios e os fins moralmente corretos Natildeo
pode haver uma dissonacircncia entre atos e fins na conduta Eacute interessante recordar que os fins satildeo
provenientes do desejo Por isso as virtudes morais satildeo necessaacuterias para fomentar os desejos nobres
para que o homem tenha apreccedilo por fins corretos A prudecircncia atuaraacute nos meios certos para alcanccedilar
estes fins Neste sentido o homem prudente por ter as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter
desejaraacute o que eacute bom e por ter a virtude intelectual da prudecircncia desenvolvida saberaacute discernir os
melhores meios para atingir os fins nobres Dessa forma ele estaacute mais apto que os outros para agir
em consonacircncia com a reta razatildeo
Sobre a empeiria o comentaacuterio de Satildeo Tomaacutes de Aquino reafirma a posiccedilatildeo aristoteacutelica que
somente o tempo a experiecircncia e o ensino permitem o florescimento da virtude intelectual da
prudecircncia De acordo com o descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] o Filoacutesofo diz que ldquoa virtude nasce e cresce principalmente pelo ensinamentoeacute por isso que ela requer experiecircncia e tempordquo Ora a prudecircncia eacute uma virtudeintelectual como se explicou anteriormente Logo natildeo somos prudentesnaturalmente mas graccedilas ao ensinamento e agrave experiecircncia Respondo Como estaacute claro pelo que foi dito antes a prudecircncia inclui oconhecimento dos universais e tambeacutem dos singulares que se devem fazer aosquais aplica os princiacutepios universais[ hellip] e como diz o Filoacutesofo ldquoA vidaespeculativa eacute melhor que a humanardquo Mas os princiacutepios universais posterioresseja da razatildeo especulativa seja da razatildeo praacutetica natildeo satildeo naturais Satildeo descobertospela experiecircncia ou pela instruccedilatildeo217
Diante do exposto a pergunta inicial de como um homem se torna prudente eacute respondida A
virtude da prudecircncia eacute adquirida ao longo do tempo por meio da empeiria e do aprendizado de
como aplicar este saber praacutetico no mundo contingente A prudecircncia permite ao homem apreender agrave
justa razatildeo E esta eacute a proacutepria prudecircncia em relaccedilatildeo agrave conduta218As palavras de W D Ross
sintetizam bem o conceito da reta razatildeo ldquoA regra correcta consiste numa regra obtida por uma
anaacutelise deliberativa do homem prudente a qual o informa de que o fim da vida humana seraacute melhor
atingido a partir de certas accedilccedilotildees intermeacutedias entres os extremos A virtude moral consiste na
217 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed SatildeoPaulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 610 Summa Theologiae II-II q 47 a15 ldquo[] quod philosophus dicit in II Ethicquod virtus intellectualis plurimum ex doctrina habet et generationem et augmentum ideo experimento indiget ettempore Sed prudentia est virtus intellectualis ut supra habitum est Ergo prudentia non inest nobis a natura sed exdoctrina et experimento Sed alia principia universalia posteriora sive sint rationis speculativae sive practicae nonhabentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti vel per disciplinam Respondeo dicendum quod sicut ex praemissis patet prudentia includit cognitionem et universalium et singulariumoperabilium ad quae prudens universalia principia applicat Quantum igitur ad universalem cognitionem eadem ratioest de prudentia et de scientia speculativa [] ut enim philosophus dicit in X Ethic vita quae est secundumspeculationem est melior quam quae est secundum hominem Sed alia principia universalia posteriora sive sintrationis speculativae sive practicae non habentur per naturam sed per inventionem secundum viam experimenti velper disciplinam[hellip]rdquo 218 Cf EacuteN VI 1144b 25-27 Ibidem p 113
75
obediecircncia a uma tal regrardquo219 Em suma ela eacute a referecircncia raciocinada que indica que algumas
accedilotildees nos conduzem de modo mais acertado agrave eudaimonia enquanto outras natildeo
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia do ato de deliberar e decidir Mas a decisatildeo
eacute composta por elementos que se corretamente observados fazem o homem realizar uma boa
decisatildeo Estes elementos estatildeo relacionados entre si e satildeo o desejo a escolha e a deliberaccedilatildeo No
proacuteximo toacutepico os estudaremos de forma mais detalhada
34 Desejo (o1recij) Deliberaccedilatildeo (bouleusij e Escolha (proairesij)
A virtude intelectual da prudecircncia eacute a razatildeo praacutetica que direciona a accedilatildeo humana para o bem
Para que este direcionamento seja correto e consiga ser efetivo na conduccedilatildeo da accedilatildeo o homem
prudente deve fazer uma deliberaccedilatildeo (bouleusij) que o permite realizar uma escolha
(proairesij) a fim de que sua accedilatildeo seja adequada agrave situaccedilatildeo Logo o processo decisoacuterio inicia-se
no ato de deliberar depois na escolha e finda com a accedilatildeo propriamente dita220
O que eacute a deliberaccedilatildeo Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles faz uma descriccedilatildeo das
caracteriacutesticas da bouacuteleusis Ao final o conceito torna-se claro A deliberaccedilatildeo somente eacute exercida
naquilo que eacute mutaacutevel Ningueacutem delibera sobre o que eacute necessaacuterio eterno e invariaacutevel As coisas
que possuem estas qualidades natildeo satildeo objeto de deliberaccedilatildeo Visto que natildeo satildeo factiacuteveis de
mudanccedila natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pela accedilatildeo humana O ato de deliberar somente visa aquilo que eacute
possiacutevel de ser atingido pela accedilatildeo do proacuteprio homem E tudo o que eacute realizado por meio da accedilatildeo
pode ter resultados incertos Afinal lidar com as contingecircncias eacute ldquomanejarrdquo as probabilidades de
erro ou acerto pois as variaacuteveis das situaccedilotildees podem mudar a cada momento Observa-se por
exemplo o campo da poliacutetica da economia da medicina dentre inuacutemeros outros Cada decisatildeo
deve ser tomada a partir das vaacuterias mudanccedilas circunstancias visando atingir o fim determinado
Neste quadro de incerteza parte do resultado por oacutebvio natildeo todo depende da accedilatildeo realizada a
partir da boa ou maacute deliberaccedilatildeo Dessa forma a deliberaccedilatildeo eacute a razatildeo praacutetica que tem de ponderar
perante o incerto com a maacutexima exatidatildeo possiacutevel Conforme nos mostra Aristoacuteteles
219 ROSS W D Aristoacuteteles Op cit p 226220 A bouacuteleusis e proairesis satildeo descritas por Aristoacuteteles tanto no livro III quanto no livro VI da Eacutetica a NicocircmacoNo decorrer da explicaccedilatildeo sobre estas duas fases da decisatildeo citaremos os dois livros Eacute interessante notar que o livroVI muitas vezes resume aspectos sobre a deliberaccedilatildeo e a escolha estudados anteriormente no livro III Este fatoocorre porque ao analisar a prudecircncia no livro VI o Estagirita coloca a deliberaccedilatildeo e a escolha em um patamar deexcelecircncia O homem prudente eacute aquele que delibera bem e escolhe bem
76
Eacute de presumir que devamos chamar objeto de deliberaccedilatildeo natildeo agravequilo que umneacutescio ou um louco deliberaria mas agravequilo sobre o que pode deliberar um homemsensato (nou~~n e1xwn) Ora sobre coisas eternas ningueacutem delibera por exemplosobre o universo material ou sobre a incomensurabilidade da diagonal com o ladodo quadrado [] Deliberamos sobre as coisas que estatildeo ao nosso alcance e podemser realizadas e essas satildeo efetivamente as que restam Porque como causasadmitimos a natureza a necessidade o acaso e tambeacutem a razatildeo e tudo quedepende do homem Ora cada classe de homem delibera sobre as coisas quepodem ser realizadas pelos seus esforccedilos [] as coisas que satildeo realizadas pelosnossos esforccedilos mas nem sempre do mesmo modo essas satildeo objetos dedeliberaccedilatildeo os problemas de tratamento meacutedico e de comeacutercio por exemplo221
O ato de deliberar envolve a observaccedilatildeo de coisas que ocorrem normalmente de uma certa
maneira Estas situaccedilotildees costumeiras favorecem o acerto quando deliberamos e agimos sobre elas
Entretanto natildeo significa que os resultados seratildeo necessariamente os esperados De acordo com
Aristoacuteteles ldquoDelibera-se a respeito de coisas que comumente acontecem de certo modo mas cujo
resultado eacute obscuro e daquelas em que este eacute indeterminado E nas coisas de grande monta
tomamos conselheiros por natildeo termos confianccedila em nossa capacidade de decidirrdquo222 A tiacutetulo de
ilustraccedilatildeo um meacutedico pode atender vaacuterios pacientes com a mesma doenccedila e receitar o remeacutedio
apropriado que comprovadamente curou a muitos Mas nada certifica que o remeacutedio poderaacute curar
sempre todos os pacientes Um raciociacutenio anaacutelogo pode ser aplicado a um time de basquete ou
nataccedilatildeo As accedilotildees satildeo realizadas com base em deliberaccedilotildees derivadas de observaccedilotildees do histoacuterico
do proacuteprio time e dos adversaacuterios As chances podem ser maximizadas para a vitoacuteria ainda assim o
resultado eacute indeterminado Por isso o Estagirita adverte que determinados assuntos devem ser
deliberados em conjunto para que haja uma anaacutelise mais acurada dos fatos
A deliberaccedilatildeo eacute a escolha dos meios para atingir os fins Caso haja vaacuterios meios que levam a
um mesmo resultado seraacute escolhido o meio mais eficaz Isso significa que em cada situaccedilatildeo o
homem prudente delibera sobre quais os melhores meios e como utilizaacute-los da melhor maneira
Cita-se o texto da Eacutetica a Nicocircmaco
Natildeo deliberamos acerca dos fins mas a respeito de meios (proj ta telh) Ummeacutedico por exemplo natildeo delibera (bouleuetai) se haacute de curar ou natildeo nem umorador se haacute de persuadir nem um estadista (politikoj) se haacute de implantar aordem puacuteblica nem qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade Datildeo afinalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcanccedilaacute-la e separece poder ser alcanccedilada por vaacuterios meios procuram o mais faacutecil e o mais eficazse for um soacute examinam como seraacute alcanccedilada por ele e por que outro meioalcanccedilar esse primeiro ateacute chegar ao primeiro princiacutepio que na ordem dedescobrimento eacute o uacuteltimo223
221 EacuteN III 1112a 20-35 e 1112b 1-5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45222 EacuteN III 1112b 8-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46223 EacuteN III 1112b 13-19 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46
77
Na dimensatildeo moral o aprimoramento do homem prudente eacute realizado pela consolidaccedilatildeo das
virtudes morais Na dimensatildeo da racionalidade praacutetica se traduz na sua capacidade de decidir cada
vez melhor ao passar pelas etapas da deliberaccedilatildeo e da escolha Quanto melhor for a deliberaccedilatildeo e a
escolha mais aperfeiccediloada seraacute a virtude da prudecircncia Neste sentido apoacutes a exposiccedilatildeo do ato de
deliberar estudaremos a escolha
Para uma melhor compreensatildeo do ato de escolher eacute preciso descrever brevemente a ideia de
voluntariedade e involuntariedade das accedilotildees humanas De modo geral Aristoacuteteles distingue o ato
voluntaacuterio e o involuntaacuterio O primeiro consiste na accedilatildeo como resultado de uma escolha do homem
Na accedilatildeo voluntaacuteria o homem deve estar consciente das particularidades de cada circunstacircncia224 e
no domiacutenio de suas paixotildees para sua accedilatildeo ser tida como voluntaacuteria225 O segundo ocorre quando o
homem ignora todos ou alguns aspectos das circunstacircncias aleacutem de natildeo possuir o controle de suas
paixotildees A ignoracircncia e falta de autodomiacutenio (a0krasia) o impede de alcanccedilar o fim esperado
Desta forma uma accedilatildeo para ser declarada voluntaacuteria ou involuntaacuteria depende do momento que eacute
realizada226 sob qual circunstacircncia ocorreu o ato o grau de conhecimento das particularidades e se
houve ou natildeo o controle dos paixotildees
Conforme exposto o domiacutenio de si ou a falta dele afeta as deliberaccedilotildees e as escolhas que
um homem pode fazer Por isso o controle dos desejos eacute fundamental para a consecuccedilatildeo de uma
boa escolha Isto porque o desejo faz parte da faculdade sensitiva do homem Eacute um indutor da accedilatildeo
humana que nos impele para a busca de diversos fins e entre eles o fim uacuteltimo a eudaimonia
Cada desejo varia de acordo com o tipo o apetite () eacute atraiacutedo por um determinado objeto e
o impulso ()227 por outro Devido a esta realidade inerente agrave natureza humana Aristoacuteteles
descreve que a accedilatildeo e a verdade satildeo regidas pela sensaccedilatildeo (ai1sqhsij) intelecto (nou~~j)228 e desejo
(o1recij) embora a sensaccedilatildeo natildeo seja o princiacutepio da accedilatildeo por natildeo ser fruto de nenhum tipo de
processo racional Conforme diz Aristoacuteteles
ldquoA virtude de um coisa eacute relativa ao seu funcionamento (e1rgon) apropriado Orana alma existem trecircs coisas que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo(ai1sqhsij) razatildeo (nou~~j) e desejo (o1recij) Destas trecircs a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepiode nenhuma accedilatildeo bem o mostra o fato de os animais inferiores possuiacuteremsensaccedilatildeo mas natildeo participarem da accedilatildeordquo229
224 Cf EacuteN III 1111a 21-25 Ibidem p 43225 Cf EacuteN III 1110a 1-4 Ibidem p 41226 Cf EacuteN III 1110a 15 Ibidem p 41227 O thumos tambeacutem eacute traduzido pelo termos ldquoirardquo ldquofuacuteriardquo ldquocoacutelerardquo De todo modo eacute um intenso descontentamentoprovocado por algo que faz o homem reagir a esse fato desencadeador 228 Acerca da dificuldade de traduccedilatildeo deste termo grego conferir nota de rodapeacute nordm 115229 EacuteN VI 1139a 17-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102
78
O desejo eacute uma atraccedilatildeo que alguma coisa causa em noacutes Podemos ser atraiacutedos por qualquer
coisa o que implica que podemos querer coisas que podem ser boas ou ruins aleacutem de nos
impulsionar a realizarmos accedilotildees moralmente boas ou maacutes para conseguir o objeto desejado Daiacute a
importacircncia das virtudes morais para ordenar os diversos desejos para que sejam orientados para a
retidatildeo moral Desta maneira os retos desejos facilitam que o homem prudente realize escolhas
voltadas para o bem
Esta relaccedilatildeo entre desejo escolha e virtude eacute percebida quando Aristoacuteteles conceitua a
virtude moral como uma disposiccedilatildeo para uma escolha (e3cij proairetikh) de accedilotildees e paixotildees
pautadas pela mediania230 A virtude moral predispotildee de forma beneacutefica o homem agrave fazer boas
escolhas relacionadas agrave vida de forma geral ou seja ao fins mais importantes No sentido aqui
descrito as escolhas bem feitas satildeo o resultado de uma clareza de visatildeo que as virtudes morais
proporcionam ao homem prudente que sabiamente escolhe os melhores meios para atingir os fins
Isto tambeacutem eacute apontado na Eacutetica a Eudemo ao mostrar que a escolha eacute realizada visando o bem
viver A nobreza de conduta eacute o fator orientador de todas as escolhas De acordo com a Eacutetica a
Eudemo
Uma vez definido em relaccedilatildeo a isso que todos os capacitados a viver de acordocom a preacutevia escolha deveriam visar algo a favor de viver bem e nobremente seja ahonra a reputaccedilatildeo a riqueza ou a cultura em funccedilatildeo do que orientariam toda a suaconduta (pois natildeo ter a proacutepria vida organizada em vista de algum fim eacute um clarosinal de grande loucura) conclui-se que eacute maximamente necessaacuterio comeccedilar por sedecidir pessoalmente nisso natildeo agindo nem apressada nem negligentemente emqual das coisas que nos dizem respeito estaacute encerrada a vida boa e quais satildeo ascondiccedilotildees imprescindiacuteveis que possibilitam a noacutes seres humanos entrarmos deposse dessa vida 231
Vimos que o homem deve orientar a sua vida para a eudaimonia sendo esta o fim uacuteltimo
que eacute desejado por todos Para que este desejo de felicidade natildeo permaneccedila no campo da
imaginaccedilatildeo satildeo necessaacuterias fazer escolhas concretas O ato de escolher eacute uma etapa do processo de
decisatildeo realizado por cada homem O homem prudente realiza este ato com maestria pois o ato de
escolher eacute de fundamental importacircncia para a consecuccedilatildeo de uma vida feliz Aquele que escolhe
mal dificilmente seraacute feliz Assim sendo devido a sua importacircncia para a formaccedilatildeo do phronimos
adentraremos na ideia aristoteacutelica de proairesis (proairesij)
230 Cf EacuteN II 1106b 36 Ibidem p 33231 EacuteE I 1214b 7-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 47
79
O que eacute a proiaresis A proiaresis eacute um ato de livre escolha232 Poreacutem nem todos os atos
voluntaacuterios satildeo decorrentes de uma escolha As crianccedilas e os animais satildeo capazes de realizarem atos
voluntaacuterios mas natildeo de realizar escolhas233pois satildeo atos efetivados sem o uso da razatildeo No livro III
da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a proiaacuteresis como uma accedilatildeo voluntaacuteria que envolve o
raciociacutenio e algum processo do intelecto sendo precedida pela deliberaccedilatildeo234 Logo a escolha
pressupotildee o uso da razatildeo que controla o desejo e eacute feita com um processo de raciociacutenio que procura
analisar as melhores opccedilotildees
Por envolver a razatildeo a proairesis difere do apetite () do impulso () da
vontade () e da opiniatildeo (doca) O apetite e o impulso natildeo envolvem nenhum tipo de
processo racional por isso natildeo podem ser considerados como escolhas Aleacutem disto o apetite
envolve o que eacute agradaacutevel (prazeroso) e o desagradaacutevel (doloroso) A proairesis natildeo depende destes
dois fatores Afinal o homem pode escolher tanto um quanto outro destes aspectos conforme o
resultado a ser obtido Em relaccedilatildeo agrave vontade por ser uma espeacutecie de desejo mais aproximada da
racionalidade nos fazendo tender para o bem auxilia nas aspiraccedilotildees humanas mais elevadas
Entretanto muitas vezes a vontade quer agravequilo que eacute maior que a capacidade do homem de
alcanccedilaacute-la Satildeo aspiraccedilotildees irrealistas O exemplo utilizado por Aristoacuteteles eacute a imortalidade Pode-se
desejar ser imortal mas isto eacute inantingiacutevel pela accedilatildeo humana A vontade tambeacutem pode nos levar a
desejar algo fora do nosso poder decisoacuterio Como desejar que o time desportivo que torcemos ganhe
o campeonato Assim os desejos provenientes da vontade podem aspirar a qualquer coisa poreacutem
para serem atingiacuteveis devem ser realistas As escolhas para serem plausiacuteveis devem estar estar no
acircmbito do que a accedilatildeo humana pode realizar Outras aspiraccedilotildees mais tangiacuteveis como ter sauacutede ter
paz ser feliz etc satildeo o fins (objetivos) gerais que podem ser plenamente alcanccedilados Mas para
atingiacute-los eacute necessaacuterio escolher os meios Essa eacute a funccedilatildeo do ato de escolher propriamente dito
Logo a proairesis visa os meios a serem utilizados e natildeo os fins
A proairesis natildeo eacute opiniatildeo Primeiro eacute possiacutevel opinar acerca de quaisquer coisas que
estejam em nosso poder alcanccedilaacute-las e tambeacutem sobre o que estaacute longe disto Segundo a opiniatildeo eacute
uma etapa inicial do processo de conhecimento sendo classificada como verdadeira ou falsa em
suas assertivas Por seu lado a proairesis refere-se agrave accedilatildeo humana podendo ser adjetivada como
boa ou maacute Esta diferenccedila pode ser notada quando observamos homens que opinam corretamente
acerca de vaacuterios assuntos poreacutem fazem peacutessimas escolhas ao agirem ou homens que escolhem
bem mas erram em suas opiniotildees Normalmente as escolhas ruins satildeo feitas devido aos viacutecios
232 Cf EacuteN III 1111b 8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 44 Conferir tambeacutem EacuteE II 1225b 1-18Eacutetica a Eudemo Op cit p 95233 A praacutexis humana eacute caracterizada pela accedilatildeo composta por um princiacutepio racional O raciociacutenio deve estar semprepresente Por isso animais natildeo ldquoagemrdquo no sentido aqui descrito 234 Cf EacuteN III 1111b 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45
80
Uma conduta viciosa influencia negativamente o raciociacutenio necessaacuterio para realizar uma boa
escolha Afinal os viacutecios satildeo desejados pelos homens incontinentes e pelos maldosos Observa-se
que a proairesis estaacute no campo da sabedoria praacutetica Em suma a opiniatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo pouco
cuidadosa dos fatos enquanto a proairesis eacute um ato que compotildee a accedilatildeo De acordo com
Aristoacuteteles
Ora com a opiniatildeo em geral natildeo haacute ningueacutem que a identifique [] Com efeito porescolher o que eacute bom ou mau somos homens de um determinado caraacuteter mas natildeo osomos por sustentar esta ou aquela opiniatildeo [] E tambeacutem escolhemos o quesabemos ser melhor (proairoumeqa men a4 malista i1smen a0gaqa o1nta) tantoquanto nos eacute dado sabecirc-lo mas opinamos sobre o que natildeo sabemos exatamente(docazomen de a4 ou0 panu i1smen) e natildeo satildeo as mesmas pessoas que passam porfazer as melhores escolhas e sustentar as melhores opiniotildees mas de algumas se dizque tecircm excelentes opiniotildees e no entanto padecem de um viacutecio (kakian) qualquerque as impede de escolher bem (kakian d airei=sqai ou0x a4 deirsquo e1mpeiroj ou0k e1stin =) 235
O Estagirita na sua obra Eacutetica a Eudemo assevera que a opiniatildeo e a vontade dizem respeito
aos fins enquanto a escolha refere-se aos meios236 A escolha eacute uma opccedilatildeo preferencial de uma
coisa e natildeo de outra Esta opccedilatildeo somente pode ser feita a partir da anaacutelise e deliberaccedilatildeo Por isso o
ato de escolher comeccedila na opiniatildeo deliberada (d chj bouleutikh=joacutej )237 Neste caso a opiniatildeo
significa o iniacutecio do exame das circunstacircncias sendo uma fase da deliberaccedilatildeo Contudo a escolha
natildeo eacute somente a opiniatildeo deliberada mas tambeacutem eacute composto pela vontade238 Por isso o filoacutesofo de
Estagira assevera que a escolha tambeacutem eacute um desejo deliberativo Esta uacuteltima noccedilatildeo de desejo e
deliberaccedilatildeo eacute destacada na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] a escolha ou eacute raciociacutenio desiderativo ou desejo
raciocinativo e a origem de uma accedilatildeo dessa espeacutecie eacute um homemrdquo239 Deste modo a escolha eacute
resultado do desejo deliberado ou envolve algum procedimento intelectual240
Descritas as caracteriacutesticas de cada uma entatildeo qual a diferenccedila entre proiaresis (escolha) e a
bouacuteleusis (deliberaccedilatildeo) Ambas se referem aos meios mas natildeo aos fins A distinccedilatildeo estaacute na
amplitude de visatildeo sobre o que deve ser feito A escolha diz respeito agravequilo que eacute mais imediato e
ldquoconcretordquo ou seja o plenamente operacionalizaacutevel em um dado instante Eacute a finalizaccedilatildeo da
deliberaccedilatildeo Pierre Aubenque define bem este caraacuteter da escolha eacute o momento da decisatildeo do voto
ela torna funcional a deliberaccedilatildeo e por isso pode pocircr-lhe um fim241 A deliberaccedilatildeo eacute o ato anterior agrave
escolha eacute a inteligecircncia ponderando e definindo qual o rumo a ser seguido A escolha eacute o desejo
235 EacuteN III 1112a 1-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 45 236 Cf EacuteE II 1226a 15-17 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 97237 Cf EacuteE II 1226b 1-10 Idem p 98238 Cf EacuteE II 1226b 20-25 Ibidem p 99239 EacuteN VI 1139b 5 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 102 240 Cf nota de rodapeacute nordm 232241 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 196
81
deliberado das coisas Ou seja eacute o desejo ldquofiltradordquo pela razatildeo adquirindo a medida correta para
que possa ser alcanccedilado pela nossa proacutepria accedilatildeo No processo decisoacuterio a sequecircncia seguida eacute que
primeiro deliberamos depois escolhemos os meios de acordo com o que foi deliberado Neste ato
de escolher o desejo passa a estar em consonacircncia com a deliberaccedilatildeo De acordo com Aristoacuteteles
Eacute a mesma coisa aquela sobre que deliberamos e a que escolhemos (bouleuton dekai poraireton to au0to) salvo estar o objeto de escolha jaacute determinado jaacute queaquilo por que nos decidimos em resultado da deliberaccedilatildeo eacute o objeto da escolha (togar e0k th=j boulh=j kriqen proaireton e0stin) Efetivamente todos cessam deindagar como devem agir depois que fizeram voltar o princiacutepio motor a si mesmose agrave parte dirigente de si mesmos pois eacute essa que escolhe[]Sendo pois o objetoda escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes adeliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcanceporque apoacutes decidir em resultado de uma deliberaccedilatildeo desejamos de acordo com oque deliberamos (bouleutikh o1recij tw~~n e0f0 h9mi~~n) Consideremos pois comodescrita em linhas gerais a escolha estabelecida a natureza dos seus objetos e ofato de que ela diz respeito aos meios (poi=a e0sti kai o3ti tw~~n ta telh) 242
Como exemplo simples imaginemos esta cena eu tenho o desejo de cursar um mestrado
strictu sensu em outro paiacutes Este curso estaacute condizente com a felicidade (fim uacuteltimo) que almejo
Apoacutes uma deliberaccedilatildeo iacutentima e consultiva com outras pessoas procuro analisar os melhores meios
para me deslocar para outro paiacutes e me matricular no curso almejado Quais meios para chegar em
outro paiacutes O aviatildeo o trem o automoacutevel a peacute Qual o meio para me matricular e manter a estadia
A bolsa de estudos economias bancaacuterias etc E assim por diante a boa escolha indicaraacute os
melhores meios Portanto nota-se que a escolha deriva de um objetivo determinado pelo desejo em
seguida haacute a deliberaccedilatildeo para analisar os meios (natildeo eacute possiacutevel deliberar sem termos um propoacutesito
uma meta)243 e finalmente eacute realizada a escolha de qual eacute o melhor meio para operacionalizar a
consecuccedilatildeo do mestrado
Eacute possiacutevel haver erro na deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles responde afirmativamente que eacute possiacutevel o
homem incorrer em equiacutevocos no ato de deliberar A deliberaccedilatildeo envolve o conhecimento dos
universais e dos fatos particulares que satildeo adquiridos respectivamente por meio do ensino e da
experiecircncia244 O erro deliberativo ocorre quando haacute ignoracircncia dos dois aspectos ou de apenas um
deles Utilizamos o proacuteprio exemplo citado na Eacutetica a Nicocircmaco ldquo[hellip] o erro na deliberaccedilatildeo pode
versar tanto sobre o universal como sobre o particular isto eacute tanto eacute possiacutevel ignorar que toda a
aacutegua pesada eacute maacute como esta aacutegua aqui presente eacute pesadardquo245
242 EacuteN III 1113a 1-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 46 Conferir tambeacutem EacuteE I 1226b 20-25ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99243 Cf EacuteE I 1226b 30 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Eudemo Op cit p 99244 Cf EacuteN VI 1141b 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 106245 EacuteN VI 1142a 20-22 Idem p 108
82
A escolha e a deliberaccedilatildeo satildeo dois procedimentos fundamentais para que haja uma accedilatildeo
correta O homem prudente deve sempre atentar para fazer do melhor modo possiacutevel as
mencionadas operaccedilotildees do intelecto O bom exerciacutecio destes dois estaacutegios proporcionam uma
capacidade superior de decidir Por conseguinte as boas decisotildees contribuem para uma vida feliz
Dito isto passamos a analisar no proacuteximo toacutepico as chamadas trecircs virtudes intelectuais
menores Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia Portanto conveacutem a anaacutelise para
entendermos como se forma a excelecircncia do ato de decidir ou seja a proacutepria virtude da prudecircncia
35 As trecircs virtudes intelectuais menores boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia (sunesij)
ponderaccedilatildeo (gnwmn)
As trecircs virtudes intelectuais menores satildeo a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) inteligecircncia
(sunesij)246e ponderaccedilatildeo (gnwmn)247 Para se tornar prudente o homem precisa adquirir o domiacutenio
destas capacidades intelectuais Elas satildeo partes integrantes da virtude da prudecircncia que possuem
trecircs funccedilotildees distintas A distinccedilatildeo ocorre conforme o segmento de realidade de prudecircncia a ser
examinado e discernido Deste modo estas virtudes satildeo tipos de operaccedilotildees intelectuais (raciociacutenios)
que consistem em estaacutegios do processo de anaacutelise das circunstacircncias
A primeira virtude intelectual eacute a boa deliberaccedilatildeo (eu0boulia) Esta eacute o aperfeiccediloamento da
deliberaccedilatildeo No livro VI Aristoacuteteles nos mostra que a boa deliberaccedilatildeo consiste em uma
investigaccedilatildeo sobre um assunto em particular Ela envolve uma espeacutecie de caacutelculo consciente que
objetiva atingir o melhor resultado possiacutevel Deste modo a boa deliberaccedilatildeo eacute uma ponderaccedilatildeo que
atinge um alto grau de exatidatildeo porque analisa todas as variaacuteveis envolvidas em uma determinada
situaccedilatildeo tendo em vista uma finalidade boa
Ressalta-se que a boa deliberaccedilatildeo envolve uma ponderaccedilatildeo correta somada a um fim bom
Pois um homem pode acertar sua anaacutelise dos fatos e escolher corretamente os meios para atingir
um fim proveniente de um desejo que natildeo eacute bom Eacute o que ocorre com os homens incontinentes ou
maldosos Outro caso eacute o de desejar um fim bom mas natildeo alcanccedilaacute-lo por causa de um raciociacutenio
246 As traduccedilotildees do termo grego synesis satildeo variadas Alguns tradutores utilizam as palavras ldquodiscernimentordquo (E Bini2013 p 192) ldquoentendimientordquo (J Marias 1959 p 97) ldquointeligecircnciardquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p 109)ldquounderstandingrdquo (H Rackham 1996 p 155) Preferimos o termo ldquointeligecircnciardquo porque nos parece expressar melhor oconceito de synesis que significa a capacidade de aprender bem e por isso julgar bem as particularidades das diversassituaccedilotildees 247 As traduccedilotildees do termo grego gnome tambeacutem divergem entre si Alguns tradutores usam as palavras ldquoponderaccedilatildeordquo(E Bini 2013 p 192) ldquocomprensioacutenrdquo (J Marias 1959 p 98) ldquodiscernimentordquo (L Vallandro e G Bornheim 1987 p110) ldquoconsiderationrdquo (H Rackham 1996 p 156) Acreditamos que o termo ldquoponderaccedilatildeordquo traduz melhor o conceito degnome por este ser um ato de sopesar a situaccedilatildeo com o fim de atingir a equidade
83
errado Ambos os tipos natildeo satildeo consideradas como boas deliberaccedilotildees Desta forma a deliberaccedilatildeo
ideal eacute feita de uma anaacutelise correta visando fins corretos De acordo com Aristoacuteteles
Mas por outro lado a excelecircncia da deliberaccedilatildeo (eu0boulia boulh=j) envolveraciociacutenio [hellip] Mas a excelecircncia da deliberaccedilatildeo eacute certamente a deliberaccedilatildeocorreta [hellip] o homem incontinente (a0krathj) e o homem mau (fau=loj) seforem haacutebeis alcanccedilaratildeo como resultado do seu caacutelculo (logismou=) o quepropuseram a si mesmos de forma que teratildeo deliberado corretamente mas o queteratildeo alcanccedilado eacute um grande mal para eles (o0rqw~~j e1stai bebouleumenoj kakonde mega ei0lhfwj) Ora ter deliberado bem eacute considerado uma boa coisa pois eacuteessa espeacutecie de deliberaccedilatildeo correta que constitui a excelecircncia da deliberaccedilatildeo ndash istoeacute aquela que tende a alcanccedilar um bem (o0rqothj boulh=j eu0bouliampampa h9 a0gaqou=teuktikh)248
A boa deliberaccedilatildeo pode ser feita de forma mais lenta ou mais raacutepida Alguns assuntos
levaratildeo mais tempo de deliberaccedilatildeo outros necessitam de menos duraccedilatildeo Com a experiecircncia de
vida a deliberaccedilatildeo em muitos casos torna-se mais veloz Mas essencialmente a boa deliberaccedilatildeo
feita em um periacuteodo razoaacutevel para obter a melhor decisatildeo Devemos recordar que o homem
prudente percebe e aproveita o momento oportuno (kairoj) para agir Por isso uma deliberaccedilatildeo
muito lenta eacute um indicativo que ainda natildeo se atingiu a excelecircncia para atingir o bem Eacute o que o
Estagirita nos mostra ldquo[hellip] eacute possiacutevel alcanccedilaacute-lo [o bem] por uma longa deliberaccedilatildeo enquanto um
outro homem chega a ele rapidamente Por conseguinte no primeiro caso natildeo possuiacutemos ainda a
excelecircncia no deliberar que eacute a correccedilatildeo tanto no que toca ao fim como ao meio e ao tempordquo249
Logo a boa deliberaccedilatildeo requer o tempo correto para ser feita de forma cuidadosa para a escolha do
meio correto mas sem procrastinaccedilatildeo
Observa-se que a deliberaccedilatildeo natildeo eacute conhecimento cientiacutefico (e0pisthmh) E tambeacutem natildeo eacute
mera opiniatildeo (doca)250 A epiacutesteme versa sobre o necessaacuterio e o inalteraacutevel A doacutexa eacute uma
afirmaccedilatildeo referente aos fatos enquanto a deliberaccedilatildeo ainda eacute uma anaacutelise Agraves vezes a opiniatildeo eacute
correta na interpretaccedilatildeo de um fato De qualquer modo ao falarmos que a deliberaccedilatildeo pressupotildee
uma anaacutelise dos fatos estaacute impliacutecito um raciociacutenio analiacutetico sobre uma fato particular
Eacute interessante observar que a bouleacute (boulh) na histoacuteria da Greacutecia Antiga significa o
ldquoconselhordquo reunido Era uma reuniatildeo de cidadatildeos em cada cidade-estado grega para deliberar
sobre assuntos puacuteblicos relativos agrave poacutelis Na eacutepoca homeacuterica era a reuniatildeo de um rei com seus
248 EacuteN VI 1142b 16-22 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109 Conferir tambeacutem EacuteE II 1226b 10-12 Eacutetica a Eudemo Op cit p 98 (E Bini 2015) ldquoNingueacutem delibera quanto ao fim o qual estaacute fixado para todosDelibera-se contudo sobre o que conduz a ele se isto ou aquilo conduz a ele e supondo estar decidido se isto ouaquilo como seraacute produzidordquo Cf Magna Moralia 1199a 5-9 The Works of Aristotle Magna Moralia EthicaEudemia De Virtutibus et Vitiis Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford ClarendonPress 1915 (sem paacutegina)249 EacuteN VI 1142b 25-28 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109250 EacuteN VI 1142b 8-10 Ibidem p 109
84
conselheiros Eacute desta noccedilatildeo de ldquoconselhordquo que Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar Aristoacuteteles
utiliza o vocaacutebulo eubulia251 e a considera uma virtude intriacutenseca agrave prudecircncia como o Estagirita
Conforme exposto na Suma Teoloacutegica
Em sentido contraacuterio a eubulia como diz o Filoacutesofo lsquoeacute a retidatildeo na deliberaccedilatildeorsquoMas a reta razatildeo aperfeiccediloa a virtude Logo a eubulia eacute virtude Como jaacute foi dito eacuteda razatildeo da virtude humana tornar bom o ato humano Entre os demais atos eacuteproacuteprio do homem deliberar porque implica uma busca conduzida pela razatildeorelativamente agrave accedilatildeo no que consiste a vida humana pois a via especulativa estaacuteacima do homem segundo o Filoacutesofo Ora a eubulia requer a bondade dadeliberaccedilatildeo De fato esta palavra eacute formada de eu que significa bem e de bouleacuteque significa conselho ou deliberaccedilatildeo como se dissesse o ato de bem deliberar ouantes o que aconselha bem Eacute pois evidente que a eubulia eacute uma virtudehumana252
Face ao exposto a boa deliberaccedilatildeo consiste em buscar compreender a realidade com todas
as suas variaacuteveis Esta compreensatildeo tem como objetivo alcanccedilar o maior grau de exatidatildeo possiacutevel
para aumentar a probabilidade de realizar uma escolha correta dos meios para atingir o fim
determinado O homem prudente ao realizar uma boa deliberaccedilatildeo analisa o conjunto das
circunstacircncias sempre com vistas a um fim nobre A boa deliberaccedilatildeo seleciona os meios que podem
ser alcanccedilados pela accedilatildeo Portanto a euboulia eacute o primeiro passo racional para obter a virtude da
prudecircncia
A inteligecircncia (sunesij) eacute a segunda virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles Eacute definida
como uma capacidade de aprender algo rapidamente O homem detentor desta virtude eacute algueacutem que
consegue assimilar e entender de modo ceacutelere o que satildeo as coisas e as relaccedilotildees entre estas Por
isso o homem inteligente possui uma maior propensatildeo a julgar corretamente qualquer conjuntura
No contexto do saber praacutetico a inteligecircncia assemelha-se agrave perspicaacutecia porque versa sobre a
habilidade de compreender com presteza o mundo que nos cerca Logo um homem perspicaz eacute um
homem inteligente
No acircmbito da accedilatildeo esta capacidade de aprender eacute referente aos assuntos possiacuteveis de
deliberaccedilatildeo e por isso pode gerar diversas visotildees diferentes Natildeo se trata de um aprendizado que se
refere agraves ciecircncias ou agravequilo que eacute necessaacuterio e eterno Natildeo se refere ao saber teoacuterico Tambeacutem eacute
251 A boa deliberaccedilatildeo tambeacutem eacute chamada de ldquobom conselhordquo na tradiccedilatildeo cristatilde252 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 637Summa Theologiae II-II q 51 a1 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoSed contra est quod eubulia estrectitudo consilii ut philosophus dicit in VI Ethic Sed recta ratio perficit rationem virtutis Ergo eubulia est virtusRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est de ratione virtutis humanae est quod faciat actum hominis bonumInter ceteros autem actus hominis proprium est ei consiliari quia hoc importat quandam rationis inquisitionem circaagenda in quibus consistit vita humana nam vita speculativa est supra hominem ut dicitur in X Ethic Eubulia autemimportat bonitatem consilii dicitur enim ab eu quod est bonum et boule quod est consilium quasi bona consiliatiovel potius bene consiliativa Unde manifestum est quod eubulia est virtus humanardquo
85
distinta de uma mera opiniatildeo dado que a synesis eacute uma inteligecircncia voltada para os aspectos
praacuteticos Ou seja ela diz respeito ao ldquoterritoacuteriordquo da accedilatildeo Esta virtude eacute a inteligecircncia em um grau
elevado que permite um aprendizado dos elementos envolvidos nas circunstacircncias Este fato auxilia
um julgamento correto de cada situaccedilatildeo
A synesis possui uma uacutenica funccedilatildeo que eacute o ato de julgar Poreacutem natildeo pode ser confundida
com a virtude da prudecircncia Na visatildeo aristoteacutelica a virtude da prudecircncia possui a funccedilatildeo de
comandar a maneira como o homem agiraacute visto que discerne o certo e o errado em relaccedilatildeo aos
meios A inteligecircncia restringe-se apenas a julgar do melhor modo possiacutevel os elementos
relacionados a cada situaccedilatildeo Com a compreensatildeo destes elementos a prudecircncia determinaraacute qual a
accedilatildeo a ser realizada Eacute o que nos diz Aristoacuteteles
Com efeito a inteligecircncia (sunesij) nem versa sobre as coisas eternas e imutaacuteveisnem sobre toda e qualquer coisa que vem a ser mas apenas sobre aquelas quepodem tornar-se assunto de duacutevidas e deliberaccedilatildeo (bouleusaito) Portanto osseus objetos satildeo os mesmos que os da sabedoria praacutetica (fronhsij) masinteligecircncia e sabedoria praacutetica natildeo satildeo a mesma coisa Esta uacuteltima emite ordensvisto que o seu fim eacute o que se deve ou natildeo se deve fazer (ti gar dei= prattein h9mh to teloj au0th=j e0stin) a inteligecircncia pelo contraacuterio limita-se a julgar(kritikh) Inteligecircncia eacute o mesmo que perspicaacutecia (eu0sunesia) e os homensinteligentes (sunetoi) o mesmo que homens perspicazes (eu0sunetoi)253
Satildeo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a virtude da synesis diz que ela eacute um juiacutezo reto
das accedilotildees particulares algo que tambeacutem faz a prudecircncia Mas esta uacuteltima comanda as accedilotildees para
que sejam feitas de modo ordenado para o bem254 A inteligecircncia por ser apenas uma correto juiacutezo
dos elementos particulares pode ser usada para fins ruins (maus) A inteligecircncia diferencia-se da
boa deliberaccedilatildeo e do saber teoacuterico Um homem pode deliberar bem ou dominar uma determinada
ciecircncia especulativa poreacutem isso natildeo significa ser um homem inteligente Deste modo o Aquinate
considera que o homem inteligente possui um bom senso das situaccedilotildees porque apreende as coisas
como satildeo em si mesmas Vejamos na Suma Teoloacutegica
Respondo A synesis implica um juiacutezo reto natildeo nas coisas de ordem especulativamas nas accedilotildees particulares que satildeo tambeacutem objeto da prudecircncia Tambeacutem comrelaccedilatildeo a esta palavra se diz em grego que alguns satildeo syneti isto eacute sensatos oueusyneti quer dizer homens de bom senso Ao contraacuterio satildeo chamados asynetiinsensatos aos que satildeo privados desta virtude Ora a diversidade de virtudes devecorresponder agrave diferenccedila de atos que natildeo se reduzem agrave mesma causa Com efeito eacuteevidente que a bondade da deliberaccedilatildeo e a bondade de juiacutezo natildeo se reduzem agrave
253 EacuteN VI 1143a 5-12 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 109254 Cf TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642Summa Theologiae II-II q 51 a 3
86
mesma causa porque muitos satildeo de boa deliberaccedilatildeo mas natildeo satildeo de bom sensoisto eacute dotados de um julgamento reto Na ordem especulativa alguns investigambem pelo fato de terem uma razatildeo capaz de discorrer sobre coisas diversas o queparece proceder das disposiccedilotildees da imaginaccedilatildeo que pode formar facilmentediversas representaccedilotildees imaginaacuterias e no entanto agraves vezes natildeo sabem julgar bempor deficiecircncia do intelecto o que procede sobretudo da maacute disposiccedilatildeo do sensocomum que natildeo julga bem Por tudo isso se necessita aleacutem da eubulia de outravirtude que julgue bem a qual se chama synesis255
Essa apreensatildeo eacute melhor feita por um homem de virtudes morais Os viacutecios dificultam e agraves
vezes impedem compreender as coisas particulares da maneira correta Tomaacutes de Aquino compara
este homem virtuoso e inteligente a um espelho que reflete perfeitamente as coisas como satildeo O
intelecto natildeo sofre distorccedilatildeo no momento de apreender o que satildeo as coisas em si Isso ocorre
porque as virtudes morais favorecem um juiacutezo correto sobre o que eacute o melhor a ser desejado pelo
homem Logo providenciam que o intelecto acerte no julgamento das coisas pois um homem
viciado deseja aquilo que eacute errado o que o faz interpretar as coisas conforme seus viacutecios Nos diz
Satildeo Tomaacutes na Suma Teoloacutegica
Quanto ao 1ordm portanto deve-se dizer que o juiacutezo reto consiste em que a potecircnciacognoscitiva apreenda as coisas tais como satildeo em si mesmas Isto se daacute quandoestaacute bem disposta como um espelho em boas condiccedilotildees reproduz as imagens doscorpos como satildeo em si mesmos Mas se for um espelho mal disposto as imagensaparecem distorcidas e disformes A boa disposiccedilatildeo da potecircncia cognoscitiva parareceber as coisas como satildeo em si mesmas proveacutem radicalmente da natureza equanto agrave sua perfeiccedilatildeo depende do exerciacutecio do dom ou da graccedila E isso pode sedar de dois modos diretamente por parte da proacutepria potecircncia cognoscitiva que natildeoestaacute imbuiacuteda de concepccedilotildees depravadas mas verdadeiras e retas tal eacute a funccedilatildeoproacutepria da synesis como virtude especial E indiretamente pela boa disposiccedilatildeo dapotecircncia apetitiva em virtude da qual o homem emite um juiacutezo reto sobre o que eacutedesejaacutevel E assim os haacutebitos das virtudes morais influem sobre um bomjulgamento virtuoso a respeito dos fins enquanto que a synesis se ocupa mais dosmeios Quanto ao 2ordm deve-se dizer que nos maus pode se encontrar um juiacutezo reto somenteno plano universal poreacutem com respeito agrave accedilatildeo singular seu juiacutezo eacute sempredefeituoso como acima foi dito256
255 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 640-641Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodsynesis importat iudicium rectum non quIbidem circa speculabilia sed circa particularia operabilia circa quae etiamest prudentia Unde secundum synesim dicuntur in Graeco aliqui syneti idest sensati vel eusyneti idest homines bonisensus sicut e contrario qui carent hac virtute dicuntur asyneti idest insensati Oportet autem quod secundumdifferentiam actuum qui non reducuntur in eandem causam sit etiam diversitas virtutum Manifestum est autem quodbonitas consilii et bonitas iudicii non reducuntur in eandem causam multi enim sunt bene consiliativi qui tamen nonsunt bene sensati quasi recte iudicantes Sicut etiam in speculativis aliqui sunt bene inquirentes propter hoc quodratio eorum prompta est ad discurrendum per diversa quod videtur provenire ex dispositione imaginativae virtutisquae de facili potest formare diversa phantasmata et tamen huiusmodi quandoque non sunt boni iudicii quod estpropter defectum intellectus qui maxime contingit ex mala dispositione communis sensus non bene iudicantis Et ideooportet praeter eubuliam esse aliam virtutem quae est bene iudicativa Et haec dicitur synesisrdquo 256 Ibidem p 640-641 Summa Theologiae II-II q 51 a 3 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoAdprimum ergo dicendum quod rectum iudicium in hoc consistit quod vis cognoscitiva apprehendat rem aliquam
87
Aristoacuteteles natildeo cita nenhum exemplo ilustrativo sobre a synesis limita-se somente em
descrever suas caracteriacutesticas Neste sentido pensamos ser oportuno fazecirc-lo para facilitar a
compreensatildeo desta virtude intelectual menor A inteligecircncia permite o ceacutelere aprendizado sobre os
elementos envolvidos em uma dada situaccedilatildeo Isto favorece o discernimento prudencial porque haacute
um conhecimento mais acurado das particularidades do caso Assim imaginemos uma conjuntura
do paiacutes no qual exista uma crise generalizada no transporte de insumos devida agrave falta de
abastecimento de combustiacuteveis Este eacute o panorama Para emitir um juiacutezo correto eacute indispensaacutevel
entender cada elemento que compotildeem a situaccedilatildeo Cada elemento deve ser entendido no seu
funcionamento proacuteprio e na sua relaccedilatildeo com os outros O homem prudente sendo possuidor da
synesis estudaraacute e aprenderaacute os vaacuterios elementos na circunstacircncia descrita por exemplo a
paralisaccedilatildeo dos transportadores e seu papel na logiacutestica de bens materiais o refinamento e
comercializaccedilatildeo dos derivados do petroacuteleo etc A compreensatildeo de cada parte que promove a
compreensatildeo do todo Logo para emitir um parecer correto ou seja sensato sobre a conjuntura e
decidir a melhor accedilatildeo a ser realizada o prudente utiliza a inteligecircncia para aprender os elementos
particulares e em que consiste cada um deles
Em suma a synesis eacute a capacidade de resolver situaccedilotildees novas de maneira ceacutelere e com
sucesso adaptando-se a elas por meio do conhecimento adquirido Esta virtude permite que se faccedila
um bom juiacutezo das coisas Deste modo o homem adquire um bom senso que interpreta com
razoaacutevel grau de acerto o que ocorre em cada caso
A ponderaccedilatildeo (gnwmn) eacute a terceira virtude intelectual descrita por Aristoacuteteles De acordo
com o filoacutesofo de Estagira eacute definida como ldquoO que se chama discernimento e em virtude do qual
se diz que os homens satildeo lsquojuiacutezes humanosrsquo e que lsquopossuem discernimentorsquo eacute a reta discriminaccedilatildeo
do equumlitativordquo257 O conceito de equidade significa julgar de uma foma justa uma determinada
demanda Para que este julgamento equitativo ocorra eacute necessaacuterio que o julgador possua a virtude
secundum quod in se est Quod quidem provenit ex recta dispositione virtutis apprehensivae sicut in speculo si fueritbene dispositum imprimuntur formae corporum secundum quod sunt si vero fuerit speculum male dispositumapparent ibi imagines distortae et prave se habentes Quod autem virtus cognoscitiva sit bene disposita ad recipiendumres secundum quod sunt contingit quidem radicaliter ex natura consummative autem ex exercitio vel ex muneregratiae Et hoc dupliciter Uno modo directe ex parte ipsius cognoscitivae virtutis puta quia non est imbuta pravisconceptionibus sed veris et rectis et hoc pertinet ad synesim secundum quod est specialis virtus Alio modo indirecteex bona dispositione appetitivae virtutis ex qua sequitur quod homo bene iudicet de appetibilibus Et sic bonum virtutisiudicium consequitur habitus virtutum moralium sed circa fines synesis autem est magis circa ea quae sunt ad finemAd secundum dicendum quod in malis potest quidem iudicium rectum esse in universali sed in particulari agibilisemper eorum iudicium corrumpitur ut supra habitum estrdquo Na presente citaccedilatildeo Satildeo Tomaacutes estaacute discutindo na questatildeo51 artigo 3 (1) se a synesis natildeo eacute virtude e (2) se os homens maus possuem ou natildeo a synesis257 EacuteN VI 1143a 19-21 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Conforme apontamos na nota derodapeacute nordm 245 a ediccedilatildeo em portuguecircs que usamos da EacuteN usa a palavra ldquodiscernimentordquo para traduzir o gnome (LVallandro e G Bornheim 1987 p 110) No presente trabalho preferimos chamar de ldquoponderaccedilatildeordquo pelos motivosexpostos na referida nota
88
moral da justiccedila O bom julgador eacute aquele que tem consideraccedilatildeo pelos outros Ou seja ele pensa nos
outros ao ponderar o que eacute mais justo para todos Em outros termos a gnome nasce na estima que o
julgador tem pelas outras pessoas Nos mostra Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco
Mostra-o o fato de dizermos que o homem equumlitativo (gnwmhn) eacute acima de tudoum homem de discernimento humano (suggnwmonaj) e de (sic) identificarmos aequidade com o discernimento humano a respeito de certos fatos E essediscernimento eacute aquele que discrimina corretamente o que eacute equitativo sendo odiscernimento correto (e0pieikou~~j o0rqh) aquele que julga com a verdade (o0rqh d h9rsquo e1mpeiroj ou0k e1stintou~~ a0lhqou~~j)258
Nota-se a vital importacircncia das virtudes morais para que exista a gnome Sem a solidez das
virtudes no caraacuteter do homem dificilmente poderaacute haver um julgamento justo quando a equidade
se fizer necessaacuteria A gnome e as virtudes morais satildeo imprescindiacuteveis para o exerciacutecio da justiccedila em
sociedade Deste modo natildeo existe nenhuma poacutelis ou naccedilatildeo que continue agregada de modo
civilizado sem a equidade
A Magna Moralia descreve que a esfera em que atua a gnome eacute aquela dos direitos legais
Onde as leis natildeo satildeo claras a equidade deve aparecer para esclarecer o que deve ser feito uma vez
que eacute impossiacutevel os legisladores preverem todos os tipos de situaccedilotildees em detalhes Logo cabe ao
bom julgador (eu0gnwmwn) clarear as questotildees que natildeo satildeo resolvidas prontamente pelas leis 259
Neste sentido a gnome eacute uma virtude intelectual que auxilia no conviacutevio muacutetuo Ela
promove a harmonia nas relaccedilotildees cotidianas entre os cidadatildeos Mas eacute indispensaacutevel para
governantes legisladores e magistrados haja vista o grande nuacutemero de pessoas que suas decisotildees
afetam260 Os governantes devem praticar este reto juiacutezo equitativo para que sua administraccedilatildeo
considere as necessidades de todos os cidadatildeos e natildeo apenas de uma parcela deles O juiacutezo
equitativo eacute ainda mais requisitado quando as leis satildeo inexistentes obtusas ou natildeo se aplicam ao
caso demandado Nesta situaccedilatildeo exige-se que o magistrado possua uma conduta moral iacutentegra para
que possa ponderar de forma correta e aplicar a justiccedila (dikh) Um magistrado que tenha viacutecios de
caraacuteter incorreraacute em dois efeitos maleacuteficos O primeiro eacute que natildeo julgaraacute de modo equitativo Por
ter viacutecios corruptiacuteveis natildeo poderaacute estabelecer a dike porque tenderaacute a proteger um dos querelantes
258 EacuteN VI 1143a 22-24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 A suggnome eacute a qualidade do homemaltruiacutesta indulgente Este homem pondera as situaccedilotildees visando o que eacute o mais justo para todos os envolvidos nasituaccedilatildeo Deste modo ele profere um reto julgamento 259 Cf Magna Moralia 1198b 24-34 The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et VitiisOp Cit sem paacutegina260 Devemos recordar que na filosofia moral aristoteacutelica o objetivo principal dos liacutederes da poacutelis eacute promover aeudaimonia na poacutelis Em vista disto a virtude intelectual da gnome tem uma fundamental importacircncia Cf EacuteN VI1142a 9-10 Poliacutetica I 1252a 5 1323b 22-35 1324a 5-35
89
em detrimento do outro O segundo eacute que o magistrado ao atingir o niacutevel de corrupccedilatildeo moral seus
viacutecios o impediratildeo de ponderar corretamente a querela Em vista disto no momento de proferir sua
sentenccedila inadvertidamente ao aplicar a lei o faraacute de modo que natildeo atende ao que eacute mais justo na
situaccedilatildeo
O juiacutezo equitativo eacute necessaacuterio para os legisladores porque sua missatildeo eacute promulgar leis
justas Estas leis auxiliam que a poacutelis atinja a vida feliz e estimulam os cidadatildeos a serem virtuosos
Os legisladores corrompidos por viacutecios de caraacuteter natildeo possuem condiccedilotildees para estabelecer uma
sociedade justa Ao contraacuterio as leis seratildeo promulgadas para fins errocircneos e incentivaratildeo os viacutecios
nos cidadatildeos O bom legislador possui a capacidade de ponderar de forma equitativa porque eacute
detentor de um caraacuteter virtuoso moral e intelectual Por conseguinte faraacute leis que preconizem as
relaccedilotildees justas entre os cidadatildeos
Santo Tomaacutes de Aquino ao comentar sobre a gnome argumenta que o juiacutezo equitativo eacute
aplicado nos casos insoacutelitos nos quais as regras comuns natildeo podem ser usadas como padratildeo de
referecircncia Satildeo casos de exceccedilatildeo ou extraordinaacuterios nos quais usar o padratildeo comum de julgamento
faria o julgador cometer um erro de juiacutezo e consequentemente uma injusticcedila Satildeo nestas situaccedilotildees
que o bom julgador pondera acertadamente sobre o mais justo a ser feito O Doutor Angeacutelico
assinala a diferenccedila entre synesis e gnome A primeira compreende as regras comuns que orientam
as accedilotildees nos casos ordinaacuterios e frequentes A segunda julga as situaccedilotildees excepcionais estas natildeo
podem ser solucionadas de acordo com o normativo regular e costumeiro Em vista disto a gnome
julga o que eacute mais justo a partir dos princiacutepios mais elevados que os aplicados nos casos ordinaacuterios
Conforme descrito na Suma Teoloacutegica
[hellip] Os haacutebitos cognoscitivos distinguem-se segundo princiacutepios mais ou menoselevados como a sabedoria considera os princiacutepios mais elevados no acircmbitoespeculativo do que a ciecircncia Por isso se distinguem entre si O mesmo deve sedar nas accedilotildees Eacute evidente que as coisas que estatildeo fora da ordem de um princiacutepio oude uma causa inferior cai agraves vezes sob a ordem de um princiacutepio mais elevado [hellip]Acontece agraves vezes haver a necessidade de fazer algo agrave margem das regras comunsda accedilatildeo Por exemplo natildeo devolver um depoacutesito ao inimigo da paacutetria e outrascoisas semelhantes Por isso se deve julgar a respeito desses casos segundoprinciacutepios mais elevados do que as regras comuns segundo as quais a synesisjulga E segundo estes princiacutepios mais elevados exige-se tambeacutem uma potecircnciajustificativa mais elevada esta chama-se gnome e ela implica certa perspicaacutecia nojulgamento[hellip] portanto deve-se dizer que a synesis julga bem todos os casos que caem sob asregras comuns Mas outras accedilotildees devem ser julgadas agrave margem das regras comunscomo se acabou de dizer [hellip] deve-se dizer que considerar tudo o que pode suceder agrave margem do cursonormal da natureza pertence somente agrave providecircncia divina mas entre os homens o
90
que for mais perspicaz pode conhecer por sua razatildeo muitas delas A isso se ordenaa gnome que implica certa perspicaacutecia no julgamento 261
Observa-se que as fronteiras entre a synesis e a gnome nem sempre satildeo muitos distinguiacuteveis
Ambas analisam as particularidades de cada situaccedilatildeo Mas se as funccedilotildees de cada uma destas
virtudes especiais nem sempre satildeo niacutetidas deve-se ao fato de que elas operam juntas e estatildeo
atreladas uma agrave outra O bom juiz somente consegue ponderar bem e promover a equidade em cada
situaccedilatildeo se conseguir ser inteligente o suficiente para aprender sobre os elementos particulares
envolvidos em cada circunstacircncia A partir daiacute consegue extrair regras comuns Justamente por
apreender as regras comuns com base nos fatos o homem prudente pode sopesar de modo correto
Diante disto as situaccedilotildees excepcionais podem ser julgadas agrave luz de princiacutepios mais elevados que as
regras comuns podem fazecirc-lo
Apoacutes a descriccedilatildeo das trecircs virtudes intelectuais menores e como elas interagem entre si para a
realizaccedilatildeo de uma boa decisatildeo pelo homem prudente julgamos oportuno descrever brevemente
sobre a razatildeo intuitiva (nou=j) Aristoacuteteles faz referecircncia sobre esta operaccedilatildeo do intelecto no mesmo
Livro VI no qual disserta sobre a prudecircncia e as demais virtudes menores Dito isto passamos ao
proacuteximo toacutepico acerca do noucircs (nou=j)
36 A razatildeo intuitiva (nou=j) e a prudecircncia
O noucircs (nou=j)262complementa as virtudes intelectuais No campo do saber teoacuterico eacute
conceituado como a capacidade que o intelecto possui de apreender os primeiros princiacutepios que
261 TOMAacuteS DE AQUINO Santo Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Op cit p 642-643Summa Theologiae II-II q 51 a 4 A citaccedilatildeo em latim proveacutem desta mesma ediccedilatildeo ldquoRespondeo dicendum quodhabitus cognoscitivi distinguuntur secundum altiora vel inferiora principia sicut sapientia in speculativis altioraprincipia considerat quam scientia et ideo ab ea distinguitur Et ita etiam oportet esse in activis Manifestum est autemquod illa quae sunt praeter ordinem inferioris principii sive causae reducuntur quandoque in ordinem altioris principiisicut monstruosi partus animalium sunt praeter ordinem virtutis activae in semine tamen cadunt sub ordine altiorisprincipii scilicet caelestis corporis vel ulterius providentiae divinae Unde ille qui consideraret virtutem activam insemine non posset iudicium certum ferre de huiusmodi monstris de quibus tamen potest iudicari secundumconsiderationem divinae providentiae Contingit autem quandoque aliquid esse faciendum praeter communes regulasagendorum puta cum impugnatori patriae non est depositum reddendum vel aliquid aliud huiusmodi Et ideo oportetde huiusmodi iudicare secundum aliqua altiora principia quam sint regulae communes secundum quas iudicat synesisEt secundum illa altiora principia exigitur altior virtus iudicativa quae vocatur gnome quae importat quandamperspicacitatem iudicii [] dicendum quod synesis est vere iudicativa de omnibus quae secundum communes regulas fiunt Sed praetercommunes regulas sunt quaedam alia diiudicanda ut iam dictum est [] dicendum quod omnia illa quae praeter communem cursum contingere possunt considerare pertinet ad solamprovidentiam divinam sed inter homines ille qui est magis perspicax potest plura horum sua ratione diiudicare Et adhoc pertinet gnome quae importat quandam perspicacitatem iudiciirdquo 262 Jaacute apontamos a dificuldade de traduccedilatildeo do termo grego noucircs (cf nota de rodapeacute nordm 115) Optamos pelo termoldquointuiccedilatildeordquo ou ldquorazatildeo intuitivardquo por julgarmos serem mais adequados para expressar o tipo de operaccedilatildeo intelectualdescrita por Aristoacuteteles
91
servem de fundamento para as ciecircncias Ele capta aquilo que natildeo eacute possiacutevel ser demonstrado por
meio de deduccedilotildees ou induccedilotildees Contudo o noucircs tambeacutem atua no campo do saber praacutetico Neste
aspecto o noucircs capta os fatos particulares que variam a cada situaccedilatildeo A partir dos particulares
realiza uma induccedilatildeo para chegar as premissas universais Por consequecircncia o noucircs auxilia o homem
prudente a perceber de modo imediato a melhor accedilatildeo a ser realizada sob quaisquer circunstacircncias
De acordo com Aristoacuteteles
A razatildeo intuitiva (nou=j) por sua vez ocupa-se com coisas imediatas em ambos ossentidos pois tanto os primeiros termos como os uacuteltimos satildeo objetos da razatildeointuitiva e natildeo do raciociacutenio e a razatildeo intuitiva pressuposta pelas demonstraccedilotildeesapreende os termos primeiros e imutaacuteveis enquanto a razatildeo intuitiva requerida peloraciociacutenio praacutetico apreende o fato uacuteltimo e variaacutevel isto eacute a premissa menor Eesses fatos variaacuteveis servem como pontos de partida para a apreensatildeo do fim[conclusatildeo do silogismo] visto que chegamos aos universais (kaqolou) pelosparticulares eacute mister por conseguinte que tenhamos percepccedilatildeo destes uacuteltimos etal percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva (toutwn ou]n e1xein dei= ai1sqhsin au3th d e0stirsquo e1mpeiroj ou0k e1stinnou=j)263
O noucircs natildeo eacute uma deliberaccedilatildeo nem opiniatildeo nem ciecircncia Podemos caracterizaacute-lo como uma
espeacutecie de ldquogolpe de vistardquo Eacute uma percepccedilatildeo imediata de tudo o que envolve uma situaccedilatildeo
qualquer e que ocorre sem a necessidade da deliberaccedilatildeo Pelo menos eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo
tatildeo veloz que mal pode ser definida como tal Eacute o homem que diante de uma ocorrecircncia sabe
rapidamente qual a accedilatildeo a ser realizada e com boas chances de acerto O comentador Pierre
Aubenque descreve esta atuaccedilatildeo do noucircs como um resultado abrupto que ocorre ao final da
reflexatildeo
Se se entende por nou~~j a apreensatildeo imediata dos princiacutepios da demonstraccedilatildeo tantoa prudecircncia quanto a sabedoria se encontram igualmente distantes disso emborapor razotildees diferentes a sabedoria porque eacute feita de demonstraccedilotildees a prudecircnciaporque natildeo concerne nem ao demonstraacutevel nem a seu princiacutepio Mas se se entendepor nou~~j a apreensatildeo imediata das ldquocoisas uacuteltimas e particularesrdquo264 seraacute precisoatribuir tal intuiccedilatildeo ao homem prudente ao mesmo tempo homem de pensamento eaccedilatildeo herdeiro dos heroacuteis da tradiccedilatildeo o phronimos une nele a lenta reflexatildeo e aimediatez do golpe de vista que natildeo eacute senatildeo a brusca eclosatildeo da primeira ele unea minuacutecia e a inspiraccedilatildeo o espiacuterito de previsatildeo e o espiacuterito de decisatildeo265
Este senso imediato sobre as circunstacircncias eacute resultado da atuaccedilatildeo conjunta das trecircs virtudes
intelectuais menores somada agrave empeiria Por isto o homem prudente eacute algueacutem que possui e exerce
263 EacuteN VI 1143a 35 ndash 1143b 7 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110264 Pierre Aubenque assinala esta passagem na EacuteN VI 1143a 28265 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op cit p 237-238
92
muito bem a euboulia a synesis a gnome A velocidade de saber o que fazer em certas situaccedilotildees eacute
fruto da experiecircncia adquirida com o passar do tempo que aperfeiccediloa as trecircs virtudes intelectuais
menores Afinal no decorrer do tempo quantas circunstacircncias foram deliberadas Quantos casos
foram julgados Quantas escolhas foram feitas dia apoacutes dia Devido a isto quando comparado a
outros homens o phronimos sabe do modo mais raacutepido e certeiro entender o que se passa a sua
volta e realizar as accedilotildees mais corretas266
Devido agrave empeiria e ao tempo que ajudam a desenvolver as virtudes intelectuais menores
Aristoacuteteles elogia os homens com mais idade e maior experiecircncia A sabedoria destes expressa em
suas opiniotildees maacuteximas e proveacuterbios merecem tanto respeito e atenccedilatildeo quanto a devida a
renomados cientistas ou especialistas em alguma ciecircncia Os homens prudentes satildeo os saacutebios os
ldquoespecialistasrdquo na arte de viver Conforme nos mostra Aristoacuteteles
Eis aiacute por que tais disposiccedilotildees [euboulia synesis noucircs] satildeo consideradas comodotes naturais e enquanto de ningueacutem se diz que eacute filoacutesofo (sofoj) por natureza amuitos se atribui um discernimento inteligecircncia e uma razatildeo intuitiva inatos (gnwmhn d e1xein kai sunesin kai nou=nrsquo e1mpeiroj ou0k e1stin ) [hellip] dizendo que uma determinada idade trazconsigo a razatildeo intuitiva e o discernimento isto implica que a causa eacute natural[Donde se segue que a razatildeo intuitiva eacute tanto um comeccedilo como um fim (a0rxh kaiteloj nou=j) pois as demonstraccedilotildees partem deste e sobre estes versam] Por issodevemos acatar natildeo menos que as demonstraccedilotildees os aforismos e opiniotildees(docaij) natildeo demonstradas (a0podeiceij) de pessoas experientes (e0mpeirwn) emais velhas assim como das pessoas dotadas de sabedoria praacutetica Com efeitoessas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olho(e0mpeiriaj o1mma o9rw~~sin o0rqw~~j)267
Vimos como o aperfeiccediloamento das virtudes intelectuais menores eacute fundamental para a
aquisiccedilatildeo da prudecircncia O entrelaccedilamento destas trecircs capacidades do intelecto permite uma
interpretaccedilatildeo correta dos fatos Esta por sua vez auxilia para que haja uma boa anaacutelise de
conjuntura ou seja condizente com a realidade dos fatos No que lhe concerne esta averiguaccedilatildeo
certeira favorece a boa deliberaccedilatildeo Logo o homem prudente eacute aquele que realiza um bom exame
das circunstacircncias porque conhece os fatos particulares e os fins aos quais se destinam agrave accedilatildeo
humana
Apoacutes o exame das partes integrantes da prudecircncia resta uma questatildeo a ser tratada como a
prudecircncia nos conduz agrave eudaimonia A elucidaccedilatildeo desta pergunta estaacute exposta ao longo de toda a
266 Recordamos que uma accedilatildeo correta precisa ser moralmente nobre e eficaz para atingir o resultado previsto 267 EacuteN VI 1143b 8-14 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 110 Referente a expressatildeo ldquo[hellip] Comefeito essas pessoas enxergam bem por que a experiecircncia lhes deu um terceiro olhordquo Acreditamos que seja melhorcompreensiacutevel transcrevendo-a da seguinte forma ldquo[hellip] pois a experiecircncia lhes transmitiu uma visatildeo com a qualenxergam as coisas com acertordquo (E Bini 2013 p 195) Outra traduccedilatildeo [hellip] for experience has given them an eye forthings and so they see correctlyrdquo (H Rackham 1996 p 157)
93
explanaccedilatildeo feita Mas pensamos ser interessante esclarecer melhor a resposta Dito isto passemos
ao proacuteximo toacutepico
37 Prudecircncia virtudes morais e eudaimonia
No final do livro VI268 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles responde a alguns questionamentos
especiacuteficos sobre a prudecircncia Provavelmente seriam questotildees feitas por homens natildeo afeiccediloados agraves
reflexotildees mais profundas sobre a sophia e a phronecircsis De modo geral as perguntas versam sobre a
utilidade das virtudes intelectuais Estes questionamentos possuem o seu valor porque vatildeo no
acircmago de um aspecto que natildeo pode ser esquecido no estudo sobre o saber teoacuterico e o saber praacutetico
Estes saberes satildeo apenas um mero exerciacutecio intelectual sem viacutenculo com o cotidiano do homem
comum Apenas seriam uma espeacutecie de jogo para exercitar o raciociacutenio Algo sem importacircncia para
a construccedilatildeo de uma vida feliz Naturalmente que natildeo A sophia e a phronecircsis satildeo fundamentais
para a felicidade Eacute o que o Estagirita tentaraacute demonstrar
O filoacutesofo de Estagira comeccedila se interrogando acerca do aparente fato de que a sophia natildeo
pode auxiliar na busca da eudaimonia porque natildeo diz respeito agraves coisas contingenciais nem agraves que
foram geradas Apenas trata das coisas eternas e necessaacuterias Ao contraacuterio do saber teoacuterico a
phronecircsis versa sobre aquilo que nos faz agir de modo justo e nobre Entretanto uma vez que ser
justo e nobre satildeo qualidades do homem bom natildeo faz sentido desenvolver estes dois saberes
porque em tese o homem virtuoso jaacute possui qualidades boas E para um homem que natildeo eacute
virtuoso natildeo faria nenhuma diferenccedila basta ele viver sem prudecircncia ou acatar os conselhos dos
prudentes Entatildeo qual a necessidade de aprender e aprimorar a sophia e a phronecircsis Citamos o
texto
Mas algueacutem poderia perguntar de que servem essas faculdades da mente jaacute que (1)a sabedoria filosoacutefica (sofia) natildeo considera nenhuma das coisas que tornam umhomem feliz (pois natildeo diz respeito agraves coisas que se geram) e quanto agrave sabedoriapraacutetica embora trate dessas coisas para que necessitamos dela A sabedoriapraacutetica eacute a disposiccedilatildeo da mente que se ocupa com as coisas justas nobres e boaspara o homem (fronesij e0stin peri ta dikaia kai kala kai a0gaqaa0nqrwpw) mas essas satildeo coisas cuja praacutetica eacute caracteriacutestica de um homem bom(agaqou= e0stin a0ndroj) e natildeo nos tornamos mais capazes de agir pelo fato deconhececirc-las se as virtudes satildeo disposiccedilotildees do caraacuteter (e3ceij ai9 a0retai ei0sin)[hellip]269
268 Cf EacuteN VI 1143b 20 - 1144a 35 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111-112 EacuteE I 1143b 20 -1144a 35 Eacutetica a Eudemo Op cit p 198-200269 EacuteN VI 1143b 18-28 Ibidem p 111
94
Decorrente do questionamento anterior surge outra questatildeo que Aristoacuteteles se defronta a
saber se a phronecircsis seria superior agrave sophia para construir uma vida feliz Ele faz uma comparaccedilatildeo
com a medicina e a sauacutede Pode-se pensar que natildeo necessariamente precisamos dominar a medicina
para termos sauacutede Basta praticar atos saudaacuteveis e teremos a sauacutede Poreacutem ao seguirmos esta linha
de raciociacutenio haacute uma estranheza a phronecircsis torna-se superior agrave sophia Ou seja a sabedoria
praacutetica que se refere aos meios torna-se mais importante que a sabedoria teoacuterica que compreende
as coisas mais elevadas Logo como a prudecircncia seria superior e mais importante que a sabedoria
teoacuterica De acordo com Aristoacuteteles
Mas (2) se dissermos que um homem deve possuir sabedoria praacutetica natildeo paraconhecer as verdades morais mas para tornar-se bom a sabedoria praacutetica nenhumautilidade teraacute para os que jaacute satildeo bons e por outro lado de nada serve ela para osque natildeo possuem virtude Com efeito nenhuma diferenccedila faz que eles proacutepriostenham sabedoria praacutetica ou que obedeccedilam (peiqesqai) a outros que a tecircm e seriasuficiente fazer o que costumamos fazer com respeito agrave sauacutede (u9gieian) emboradesejemos gozar sauacutede natildeo nos dispomos por isso a aprender a arte da medicina(3) Por outro pareceria estranho que a sabedoria praacutetica sendo inferior agrave filosoacutefica(sofiaj) tivesse autoridade (kuriwtera) sobre ela como parece implicar o fatode que a arte que produz uma coisa qualquer exerce o mando e o governorelativamente a essa coisa270
A resposta eacute que a sophia e a phronecircsis por serem virtudes correspondem agrave excelecircncia das
respectivas partes intelectuais da alma Elas satildeo o aacutepice das operaccedilotildees do intelecto que atuam nos
seus campos especiacuteficos a teoria e a accedilatildeo Portanto por serem a perfeiccedilatildeo daquilo que existe de
melhor em noacutes mesmos ndash a razatildeo ndash elas devem ser almejadas por si proacuteprias mesmo que
aparentemente natildeo produzam nenhum tipo de resultado
O detalhe eacute que as virtudes intelectuais e morais produzem efeitos reais Elas resultam na
eudaimonia Ao usar a razatildeo de maneira sublime o homem se torna mais feliz E quanto a
phronecircsis e as virtudes morais A prudecircncia e a virtude moral atuam juntas para que o homem
cumpra plenamente sua funccedilatildeo Ao cumpri-la o homem eacute feliz A prudecircncia garante a reta escolha
dos meios A virtude moral assegura a retidatildeo dos fins nobres pelos quais o homem orienta a sua
vida Portanto a conquista e o aprimoramento das virtudes intelectuais e morais satildeo indispensaacuteveis
para a eudaimonia Conforme nos expotildee Aristoacuteteles
270 EacuteN VI 1143b 29-34 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111
95
(1)Antes de tudo diremos que essas disposiccedilotildees de caraacuteter devem ser dignas deescolha porque satildeo as virtudes das duas partes da alma respectivamente e o seriamainda que nenhuma delas produzisse o que quer fosse (2) Em segundo lugar elasde fato produzem alguma coisa ndash natildeo poreacutem como a arte meacutedica produz sauacutedemas como a sauacutede (sic) produz sauacutede Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produzfelicidade (sofia eu0daimonian) porque sendo ela uma parte da virtude inteira [davirtude como um todo] (o3lhj a0reth=j) torna um homem feliz pelo fato de estar nasua posse e atualizar-se (e0nergei=n eu0daimona)271
A prudecircncia eacute relevante para tornar os homens melhores Certamente que sim Porque a
accedilatildeo virtuosa eacute resultado de uma escolha consciente do homem Os fins e os meios devem ser
corretos Somente quem for prudente realiza a correta escolha dos meios para alcanccedilar o fim
escolhido Unicamente opta pelos fins corretos quem for moralmente virtuoso O homem prudente
reuacutene em si todas as virtudes morais Desta maneira o Supremo Bem (eudaimonia) apenas pode ser
ldquovisualizadordquo pelo homem virtuoso e natildeo por aquele que tem viacutecios (kakoi) pois estes uacuteltimos
pervertem a visatildeo correta do que eacute o bem para o homem e dificultam a sua escolha De acordo com
Aristoacuteteles
(3) Por outro lado a obra (e1rgon) de um homem soacute eacute perfeita (a0potelei=tai)quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica (fponesij) e com a virtude moral(h0qikhn a0rethn) esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito (proairesin o0rqhnpoiei= h9 a0reth) aquela com que escolhamos os devidos meios [hellip] Assim comodizemos que algumas pessoas que praticam atos justos natildeo satildeo necessariamentejustas por isso ndash referimo-nos agraves que praticam os atos prescritos pela lei querinvoluntariamente quer devido agrave ignoracircncia ou por alguma outra razatildeo mas natildeo nointeresse dos proacuteprios atos embora seja certo que tais pessoas fazem o que deveme todas as coisas que o homem bem (sic) deve fazer - parece que do mesmo modopara algueacutem ser bom eacute preciso encontrar-se em determinada disposiccedilatildeo quandopratica cada um desses atos numa palavra eacute preciso praticaacute-los em resultado deuma escolha e no interesse dos proacuteprios atos 272
Assim a resposta agrave pergunta inicial do porque desenvolver as virtudes intelectuais e morais
para ser feliz pode ser respondida de modo satisfatoacuterio Eacute a consolidaccedilatildeo da virtude intelectual da
prudecircncia e das virtudes morais que o fazem se tornar um phronimos Deste modo ele consegue
discernir o bem em qualquer situaccedilatildeo e escolher os meios adequados para atingiacute-lo
271 EacuteN VI 1144a 1-8 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Op cit p 111 Na expressatildeo ldquo[hellip] mas como a sauacutedeproduz sauacutederdquo entendemos que a ideia que se quer transmitir eacute mais compreensiacutevel na traduccedilatildeo de Edson Bini ldquo[hellip]mas naquele segundo o qual o sadio eacute a causa da sauacutederdquo (E Bini 2013 p 196) Tambeacutem pode ser entendido como oldquosaudaacutevelrdquo em vez de o ldquosadiordquo272 EacuteN VI 1144a 9-22 Ibidem p 111-112
96
CONCLUSAtildeO
Nas consideraccedilotildees finais deste estudo sobre a phronecircsis retomamos brevemente o caminho
percorrido Como fio condutor trata-se de compreender no que consiste a virtude intelectual da
prudecircncia e como esta auxilia na obtenccedilatildeo da eudaimonia A Eacutetica a Nicocircmaco eacute um tratado sobre
as virtudes e a felicidade Nesta obra o objetivo de Aristoacuteteles eacute indicar o que eacute a verdadeira vida
feliz e traccedilar um itineraacuterio para alcanccedilaacute-la ou melhor construiacute-la A vida feliz natildeo eacute fruto do acaso
mas eacute resultado de uma escolha baseada nas virtudes E se eacute uma escolha o homem deve estar
consciente desta ldquoescolha de vidardquo e arcar com as responsabilidades que esta acarreta Se a
felicidade consiste em parte em tomar boas decisotildees a razatildeo praacutetica deve atuar A virtude
intelectual da prudecircncia eacute a excelecircncia da razatildeo praacutetica no que se refere ao aspecto decisoacuterio Do
mesmo modo que um construtor que conhece o que deve fazer para construir uma casa e escolhe os
melhores meios para fazecirc-la certamente a construiraacute da forma correta Ele atingiu a meta
determinada que eacute a proacutepria casa Assim tambeacutem eacute a construccedilatildeo de uma vida feliz Logo quanto
mais o homem se exercitar na virtude intelectual da prudecircncia melhores seratildeo suas decisotildees o que
aumentaraacute as suas chances de ter uma vida feliz
Eacute importante compreender como o Estagirita descreve a relaccedilatildeo entre os bens e os fins ateacute
chegar ao conceito de Supremo Bem que eacute a proacutepria felicidade Uma vez que o ser humano possui
uma funccedilatildeo proacutepria caraterizada pela racionalidade satildeo as virtudes morais que promovem o
domiacutenio dos desejos e permitem que o indiviacuteduo siga os ditames da razatildeo Isso significa que existe
uma interaccedilatildeo entre a virtude intelectual da prudecircncia e as virtudes morais Para que a prudecircncia
apareccedila eacute necessaacuterio que as virtudes morais tambeacutem se desenvolvam Por isto a aquisiccedilatildeo das
virtudes morais eacute imprescindiacutevel para que o homem atinja a excelecircncia moral e conquiste a
plenitude de vida Entretanto para que haja o florescimento dessas virtudes e sua consolidaccedilatildeo no
homem virtuoso a prudecircncia precisa atuar Neste contexto a phronecircsis delimita o paracircmetro
correto para que o homem possa exercer uma accedilatildeo virtuosa dentro das circunstacircncias mutaacuteveis com
as quais se depara constantemente Esta virtude intelectual aplica-se no domiacutenio do contingente e
natildeo trata das coisas que nunca se alteram Seu acircmbito de aplicaccedilatildeo eacute o mundo das atividades
humanas pois eacute a prudecircncia que sopesa e julga as situaccedilotildees Assim a prudecircncia orienta o indiviacuteduo
a perceber os melhores meios para atingir os fins escolhidos E principalmente permite escolher os
meios para alcanccedilar o fim mais elevado de todos que eacute a proacutepria eudaimonia Logo esta virtude
intelectual possui uma funccedilatildeo basilar para que o homem se torne virtuoso e obtenha a felicidade
O motivo de desenvolver as virtudes intelectuais e morais para obter uma vida feliz pode ser
compreendido de modo clariacutessimo A necessidade de desenvolvecirc-las reside na proacutepria natureza
97
humana O ser humano eacute dotado de racionalidade A razatildeo eacute a mais sublime parte de sua alma Ela
permite que cumpramos nossa funccedilatildeo proacutepria plenamente Por isto quanto mais exercitamos a
razatildeo mais aprimoramos as virtudes intelectuais Em relaccedilatildeo agraves virtudes morais a praacutetica habitual
acarreta um controle maior dos nossos desejos Esse aperfeiccediloamento intelectual nos torna cada vez
mais felizes Primeiro pelo proacuteprio ato de raciocinar que eacute uma atividade que causa um prazer
nobre Segundo porque a sophia auxilia na contemplaccedilatildeo da beleza proveniente daquilo que eacute
eterno e por isto completamente estaacutevel A phronecircsis porque sendo o saber da boa decisatildeo ajuda
a vivermos em mundo instaacutevel e por consequecircncia incerto A prudecircncia ao ser aprendida e
exercitada torna o homem mais confiante em si proacuteprio pois desenvolve a capacidade de lidar com
as contingecircncias da vida e agir da maneira mais correta diante destas Portanto saber decidir bem
maximiza as chances de construir uma vida feliz porque os ldquoventos do acasordquo dificilmente
promovem a felicidade humana
Na formaccedilatildeo moral do homem o prazer possui um papel de muita importacircncia pois eacute um
indutor para a realizaccedilatildeo de accedilotildees boas ou maacutes Por isto desde a tenra idade o homem tem de ser
educado para sentir prazer na praacutetica de accedilotildees nobres e se deleitar com a praacutetica das virtudes morais
e intelectuais O homem virtuoso deve se afastar dos prazeres moralmente ruins Estes prazeres
torpes satildeo aqueles que natildeo estimulam o homem a torna-se mais virtuoso antes o afasta de uma
conduta moralmente elevada O prazer tem duas funccedilotildees importantes que auxiliam a atingir a
eudaimonia A primeira eacute o aprimoramento das atividades realizadas quanto mais prazer haacute
envolvido em uma accedilatildeo mais estiacutemulo existe para praticaacute-la o que ocasiona a melhora a atividade
exercida Um exemplo eacute o violinista que sente prazer ao tocar o seu violino isto o induz a treinar
mais e consequentemente a ser um muacutesico melhor Este aperfeiccediloamento causado pelo prazer
tambeacutem ocorre com a accedilatildeo humana quanto mais o homem se esforccedila para habituar-se agrave praacuteticas das
virtudes mais prazer ele sente em realizar accedilotildees corretas e nobres A segunda funccedilatildeo estaacute associada
ao resultado por exemplo ao tocar o instrumento musical de forma sublime o violinista teraacute mais
prazer O homem ao praticar as accedilotildees nobres torna-se cada vez mais excelente Deste modo o
resultado alcanccedilado pela conduta virtuosa moral e intelectual eacute a proacutepria felicidade
A importacircncia das virtudes morais para a felicidade eacute muito niacutetida Elas satildeo os fundamentos
a base para a virtude da prudecircncia Satildeo as virtudes morais que orientam os nossos desejos para o
bem Sem elas afundamos sobre o proacuteprio peso de aspiraccedilotildees incoerentes ou nefastas Afinal pode-
se desejar qualquer coisa inclusive o que nos faz mal Com isto nos afastamos da razatildeo e perdemos
a ideia da verdadeira felicidade E ainda arruinamos a capacidade de construiacute-la Sem a prudecircncia
que eacute a reta razatildeo no agir e sem a virtude moral que eacute o justo meio da accedilatildeo natildeo conseguimos definir
os fins que temos que atingir Tampouco conseguimos descobrir que accedilatildeo realizar para alcanccedilar
98
estes fins Ou pode-se ter um vislumbre da meta e da accedilatildeo mas natildeo haacute forccedila interior suficiente para
operacionalizar este intento Deste modo o homem perde a noccedilatildeo do fim uacuteltimo e frequentemente
dos fins particulares pois os viacutecios o arrastam para longe do Supremo Bem Tal fato o leva a fazer
escolhas ruins com consequecircncias infelizes
O ponto central para a realizaccedilatildeo das virtudes morais eacute a ideia de mediania A virtude moral
eacute um meio-termo entre dois tipos de condutas perniciosas para o homem Uma accedilatildeo ruim eacute marcada
pelo exagero a outra accedilatildeo eacute marcada pela carecircncia O spoudaios ou seja o homem virtuoso
moralmente aplica a mediania nas suas accedilotildees Neste sentido a mediania constitui a excelecircncia da
accedilatildeo
Ao longo desta pesquisa vimos como a virtude intelectual da prudecircncia se relaciona com as
virtudes morais Todo homem prudente possui as virtudes morais consolidadas em seu caraacuteter Satildeo
as virtudes morais que orientam os desejos para aquilo que eacute correto o que permite que a prudecircncia
decida quais satildeo os melhores meios para alcanccedilar os fins nobres desejados O homem prudente eacute
dotado de um domiacutenio sobre suas paixotildees e possui uma anaacutelise racional acertada das circunstacircncias
o que permite a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo correta Deste modo a prudecircncia indica como alcanccedilar o
fim mais desejado de todos que eacute a felicidade
A prudecircncia eacute o saber intelectual aplicado ao mundo contingente Ele sabe discernir a
intensidade o momento e a quem se aplica as suas accedilotildees Eacute a virtude da boa decisatildeo perante as
inuacutemeras circunstacircncias que surgem no decorrer da vida O homem prudente sabe deliberar
compreender e julgar de modo acurado as situaccedilotildees Existem trecircs fatores que auxiliam o
refinamento destes atos do intelecto que satildeo o tempo a experiecircncia e a instruccedilatildeo Deste modo a
virtude intelectual da prudecircncia pode ser aperfeiccediloada a cada decisatildeo realizada perante as
circunstacircncias
Eacute importante recordar que eacute a virtude da prudecircncia que preserva a consciecircncia dos limites do
possiacutevel para o homem Eacute o conhecimento dos seus limites que impede a desmesura (u3brij) ou
seja a arrogacircncia fatal que natildeo reconhece o que pode ou natildeo ser realizado e com isso acarreta na
infelicidade humana Neste sentido coadunamos com o pensamento de Pierre Aubenque ao trazer a
peccedila teatral Antiacutegona como exemplo ilustrativo da prudecircncia Nesta peccedila o coro diz ao vaidoso
Creonte que despreza o pensar prudencial acerca dos seus atos ldquoa (sic) prudecircncia (to fronei=n) eacute
de longe a primeira condiccedilatildeo da felicidade Nunca se deve cometer impiedade contra os deuses Os
orgulhosos vecircem suas grandes palavras pagas pelos grandes golpes da sorte e eacute apenas com os anos
que aprendem a prudecircnciardquo273 A prudecircncia se forja com o raciociacutenio aplicado agraves circunstacircncias nas
tentativas de realizar as melhores decisotildees possiacuteveis Com o passar do tempo as inuacutemeras
273 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Op citp 260
99
experiecircncias vividas pelo homem permitem que suas decisotildees nas diversas situaccedilotildees tornem-se mais
apuradas Com este aprimoramento o homem prudente passa a ldquopersonificarrdquo a proacutepria reta razatildeo
Neste sentido a prudecircncia eacute a percepccedilatildeo salutar da ldquomedida das coisasrdquo que auxilia o bem viver
humano porque evita que desejos irreais e ideias absurdas que natildeo passaram no crivo da realidade
faccedilam o homem ser obstinado com fantasias que o conduziratildeo a uma trageacutedia individual ou coletiva
e natildeo a uma vida feliz
Diante do exposto acreditamos que eacute demonstrada a grande importacircncia que a virtude
intelectual da prudecircncia possui na vida do homem A eudaimonia que eacute o Supremo Bem desejado
por todas as pessoas somente pode ser atingida se houver boas decisotildees que nos conduzam ateacute uma
vida feliz O homem que seguidas vezes realiza decisotildees ruins ao longo de sua vida dificilmente
construiraacute uma vida feliz Somente eacute venturoso o homem que realiza o seu ergon ou seja alcanccedila a
sua plenitude a partir de dois atos extremamente importantes O primeiro ato eacute orientar os seus
desejos por meio das virtudes morais para os fins nobres e a ter prazer nas accedilotildees virtuosas sem
atitudes indignas de um homem valoroso O segundo ato eacute aprender a usar o intelecto para agir
corretamente ou seja a desenvolver a virtude da prudecircncia Afinal o homem prudente ao moderar
suas paixotildees e direcionar corretamente seus desejos para aquilo que eacute bom consegue decidir
corretamente o caminho a ser seguido dentro das diversas circunstacircncias
Em suma o homem sem prudecircncia e com os viacutecios que dominam o seu caraacuteter eacute como um
naacuteufrago sem mapa desorientado nos mares da vida Por outro lado o homem prudente sabe para
onde vai e possui a firmeza necessaacuteria para navegar ateacute laacute Logo nas incertezas da vida o
phronimos aristoteacutelico torna-se o seu proacuteprio porto seguro Isto o faz feliz
100
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de Filosofia Trad da primeira ediccedilatildeo brasileira coord e rev
por Alfredo Bosi rev e trad dos novos textos por Ivone Castilho Benedetti 6ordm ed Satildeo Paulo
WMF Martins Fontes 2012
ACKRILL JL lsquoSobre a Eudaimonia em Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica
nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 103-125
ARISTOTLE The Nicomachean Ethics Translated with Notes by Harris Rackham with a
Introduction by Stephen Watt Wordswhorth Classics of World Literature 1996
______________ Nicomachean Ethics Translated by WD Ross Batoche Books Kitchener 1999
______________ The Works of Aristotle Magna Moralia Ethica Eudemia De Virtutibus et Vitiis
Translated into English under the editorship of WD Ross MA Oxford Clarendon Press 1915
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea I 13 ndashIII 8 Tratado da Virtude Moral Trad Marco Zingano
Satildeo Paulo Odysseus Editora 2008
______________ Eacutetica a Eudemo Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro2015
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad de Edson Bini Bauru Satildeo Paulo Edipro 3ordf Ediccedilatildeo 1ordm
reimp 2013
______________ Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Maria Arauacutejo y Juliacutean Marias Ed Biliacutengue CEPC
Diretor Antonio Truyol Serra 2002
______________ Eacutetica a Nicocircmaco Poeacutetica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da
versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica traduccedilatildeo comentaacuterios e iacutendices analiacutetico e onomaacutestico de
Eudoro de Souza Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Nova Cultural
1987 (Col Os Pensadores)
______________ Fiacutesica I-II Trad Lucas Angioni Campinas Editora Unicamp 2009
______________ Metafiacutesica (ensaio introdutoacuterio texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterios de
Giovanni Reale) Volumes I II III Trad de Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2ordf Ediccedilatildeo
2005
101
______________ Oacuterganon Categorias Da Interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees Sofiacutesticas Traduccedilatildeo textos adicionais e notas por Edison Bini
Bauru SP Edipro 2ordm ed Rev2010 p 41-42 (Seacuterie Claacutessicos Edipro)
______________ Poliacutetica Trad Nestor Silveira 1ordm ed Satildeo Paulo Folha de Satildeo Paulo 2010
______________ Retoacuterica Traduccedilatildeo textos adicionais e notas de Edson Bini Satildeo Paulo Edipro
2011
______________ Sobre a Alma Trad de Ana Maria Loacuteio revisatildeo cientiacutefica de Tomaacutes Calvo
Martiacutenez adaptado para o portuguecircs do Brasil por Luiza Aparecida dos Santos Satildeo Paulo WMF
Martins Fontes 2013 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles coord Antoacutenio Pedro Mesquita)
______________ Toacutepicos Dos argumentos sofiacutesticos seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta
Pessanha traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de WA Pickard mdash
Satildeo Paulo Nova Cultural 1987
ARISTOTELES Graece Ex recensione Immanuelis Bekkeri Volumen Alterum Berolini apud
Georgium Reimerum Academia Regia Borussica 1831
ARISTOTELIS Ethica Nicomachea Franciscus Susemihl Editio Altera Curavit Otto Apelt
Lipisiae In Aedibus B G Teubneri MCMIII
AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad de Marisa Lopes 2ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo
Discurso Editorial Paulus 2008
BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bertolini Satildeo Paulo Paulus 2012 (Coleccedilatildeo
Filosofia)
BRUumlLLMAN Phillip A Teoria do Bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo
Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 (Coleccedilatildeo Aristoteacutelica)
CARVALHO Helder Buenos Aires A phroacutenesis aristoteacutelica Breve comparaccedilatildeo das leituras de
Alasdair MacIntyre e Paul Ricoeur Hypnos Satildeo Paulo Nuacutemero 27 2ordm semestre 2011 p 260-283
ETICHE DI ARISTOTELE Etica Eudemea Etica Nicomachea Grande Etica A cura di Lucia
Caiani Introduzione di Francesco Adorno Torino Unione Tipografico-Editrice Torinese 1996
(Classici della Filosofia)
102
GAZONI Fernando Felicidade controversa Voliccedilatildeo prescriccedilatildeo e loacutegica na eudaimonia
aristoteacutelica Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2012 220 paacuteginas
GEACH PT ldquoHistory of Fallacyrdquo Logic Matters Oxford Basil Blacwell 1972
HAMELIN Guy O saacutebio (sofoj) estoacuteico possui o discernimento (fronesij) aristoteacutelico Revista
Archai Brasiacutelia n 04 pp 109-119 jan 2010
HERMANN Nadja Phronesis a especificidade da compreensatildeo moral Educaccedilatildeo Porto Alegre
Rio Grande do Sul ano XXX n 2(62) p 365-376 maioagosto 2007
HARDIE WF R rdquoO Bem Final na Eacutetica de Aristoacutetelesrdquo In ZINGANO Marco (orgs) Sobre a
eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2010 p 44-64
HOumlOFE Otfried Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008
JAEGER Werner Wilhelm Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Trad Artur M Parreira
adaptaccedilatildeo para versatildeo brasileira Mocircnica Stahel revisatildeo do texto grego Gilson Cesar Cardoso de
Souza 3ordm ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994
MACINTYRE Alasdair Justiccedila de quem Qual racionalidade Satildeo Paulo Loyola 1991
PAIXAtildeO Maacutercio Petrocelli O problema da felicidade em Aristoacuteteles a passagem da eacutetica agrave
dianoeacutetica aristoteacutelica no problema da felicidade Rio de Janeiro Poacutes Moderno 2002
PERINE Marcelo Quatro Liccedilotildees sobre a Eacutetica de Aristoacuteteles Ed Loyola Satildeo Paulo Brasil 2006
PLATAtildeO Teeteto Cratilo Traduccedilatildeo direta do grego Carlos Alberto Nunes Coordenaccedilatildeo Benedito
Nunes 3bull Ediccedilatildeo Revisada Beleacutem- Paraacute 2001
RHONHEIMER Martin La perspectiva de la moral Fundamentos de la Eacutetica Filosoacutefica Segunda
edicioacuten Trad Joseacute Carlos Marcelo Mingo Ediciones RIALP Madrid 2007
SPINELLI Priscila Tesch A prudecircncia na Eacutetica Nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles Satildeo Leopoldo
Editora Unisinos 2007 (Col Precircmio ANPOF)
TOMAacuteS DE AQUINO Santo A prudecircncia a virtude da decisatildeo certa Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e
notas Jean Lauand 2ed Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014
103
__________________ Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles (I-III) O Bem e as Virtudes
Vol I Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Paulo Faitanin e Bernado Veiga Rio de Janeiro Mutuus 2015
p27
__________________Sententia Libri Ethicorum Disponiacutevel em
lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt
__________________ Sobre os Prazeres Comentaacuterio ao Deacutecimo Livro da Eacutetica de Aristoacuteteles
Trad Tiago Tondinelli Campinas Satildeo Paulo Ecclesiae 2013
__________________ Suma Teoloacutegica a feacute a esperanccedila a caridade a prudecircncia Vol 5 5ordm ed
Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004
VRANAS P ldquoAristotle on the best good Is ldquoNicomachean Ethicsrdquo 1094a 18-22 falaciousrdquo
Phronesis Vol 50 Nordm 2 2005 p 116-128
WEDIN Michael ldquoAristotle on the good for manrdquo Mind New Series Vol 90 Nordm 358 1981
p243-262
WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de AristoacutetelesTrad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2010 (Coleccedilatildeo aristoteacutelica)
ZINGANO Marco Aristoacuteteles Ethica Nicomachea I 13 ndash III 8 Tratado da virtude moral Satildeo
Paulo Odysseus Editora 2008
ZINGANO Marco Estudo de Eacutetica Antiga 2edSatildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009
ZINGANO Marco (orgs) Sobre a eacutetica nicomaqueacuteia de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo
Paulo Ed Odysseus 2010
- BRASIacuteLIA
-
- 14 A FUNCcedilAtildeO PROacutePRIA DOS SEREShellipp 23
- CAPIacuteTULO II ndash AS VIRTUDES MORAIS E INTELECTUAISp 37
- O BEM HUMANO E A EUDAIMONIA
-
- 16 O acaso na vida humana
- CAPIacuteTULO II
-
- AS VIRTUDES INTELECTUAIS E MORAIS
-
- 23 Prazer e aperfeiccediloamento de uma atividade
- 24 O homem virtuoso
- 25 As virtudes morais como mediania
- 33 A reta razatildeo (o0rqoj logoj) e a experiecircncia (e0mpeiria)
-